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Não se conhecem detalhes acerca de como essas inquietações se desenvolveram no espirito de Espinosa, só sabemos que muito cedo manifestou desejo de estudar as novas correntes científicas. Para isso, era indispensá- velo conhecimento do latim, que continuava sendo a lingua dos sábios, o que ofez tornar-se aluno de Francisco van den Ende, médico e livre-pensador que, além de ensinar-lhe as lln- guas clássicas, iniciou-o no pensamento carte- siano. A nova educação e as próprias convicções alhearam Espinosa de seus companheiros de religião. Nunca pretendeu ser um agitador, po- rém, com o decorrer do tempo, viu que era im- possivel acomodar sua vida aos estreitos câno- nes da ortodoxia judaica. Ao morrer seu pai, em 1654, pôde desenvolver-se com maior de- sembaraço: deixou de visitar. a Sinagoga e de praticar os jejuns, e travou estreitas relações com cristãos. O choque surgiria fatalmente. A princípio os judeus guardaram silêncio, pois te- miam que o proceder de um homem de quem tanto haviam esperado pudesse ter imitadores. Quiseram retê-Io com dádivas, e se lhe prome- teu uma pensão anual se, pelo menos em apa- rência, permanecesse fiel à religião judaica. Quando Espinosa rechaçou essa indigna pro- posta, foi perseguido e renegado. Seu cunhado e sua irmã quiseram exclui-Io da herança pa- terna, porém, recorrido ao tribunal holandês, ganhou o pleito; no entanto, depois disso cedeu a seus irmãos por sua propria vontade a herança, reservando-se tão-só uma cama. Em 1656, os rabinos lançam sobre ele a ex- comunhão maior e o expulsam da comunidade. A fórmula da excomunhão, que datava dos pri- meiros tempos da Idade Média, era terrivel. Eis aqui algumas de suas mais importantes im- precações: "Por decisão angélica e expressão manifesta dos santos; com a aprovação de Deus e de toda esta Comunidade, excomungamos, expulsa- mos, anatematizamos e maldizemos a Baruch d'Espinosa ... Maldito seja no dia e na noite; maldito seja ao deitar e ao levantar; maldito em sua saida e maldito em sua entrada! Que jamais Deus lhe perdoe! ... Mandamos que ninguém trate com ele por palavra ou por es- crito; que ninguém, lhe preste socorro nem favor algum; que ninguém esteja com ele sob o mesmo teto nem se lhe aproxime a 'quatro va- No século XVI, os numerosos judeus que vi- viam na Espanha foram objeto de constantes perseguições. Convertidos à força em cristãos, continuaram sendo suspeitos aos olhos da In- quisição, e incessantemente temiam por sua vida. Em princípios do século XVI I, os Países Baixos lhe ofereceram refúgio, pois haviam re- cobrado a liberdade através da luta contra os espanhóis, e praticavam a religião protestante. Ali os judeus voltaram às suas antigas crenças e viveram em conformidade com as leis do Tal- mudo De uma destas familias de emigrados nasceu, em 1632, Baruch d'Espinosa, em Ams- terdam. Estudou na academia israelita de Amster- dam, onde aprendeu hebraico, leu a Biblia e o Talmud, e·aguçou seu talento na interpretação de seus textos. Demonstrando muita inteligên- cia, consagrou-se à teologia judaica, e, como , não tinha vocação para comerciante, seus com- patriotas viram nele a futura coluna sustenta- dora da Sinagoga. Porém estas esperanças dos rabinos se frustraram quando Espinosa se dedicou ao estudo do racionalismo. THOT 9

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Não se conhecem detalhes acerca de comoessas inquietações se desenvolveram noespirito de Espinosa, só sabemos que muitocedo manifestou desejo de estudar as novascorrentes científicas. Para isso, era indispensá-velo conhecimento do latim, que continuavasendo a lingua dos sábios, o que ofez tornar-sealuno de Francisco van den Ende, médico elivre-pensador que, além de ensinar-lhe as lln-guas clássicas, iniciou-o no pensamento carte-siano.

A nova educação e as próprias convicçõesalhearam Espinosa de seus companheiros dereligião. Nunca pretendeu ser um agitador, po-rém, com o decorrer do tempo, viu que era im-possivel acomodar sua vida aos estreitos câno-nes da ortodoxia judaica. Ao morrer seu pai,em 1654, pôde desenvolver-se com maior de-sembaraço: deixou de visitar. a Sinagoga e depraticar os jejuns, e travou estreitas relaçõescom cristãos. O choque surgiria fatalmente. Aprincípio os judeus guardaram silêncio, pois te-miam que o proceder de um homem de quemtanto haviam esperado pudesse ter imitadores.Quiseram retê-Io com dádivas, e se lhe prome-teu uma pensão anual se, pelo menos em apa-rência, permanecesse fiel à religião judaica.Quando Espinosa rechaçou essa indigna pro-posta, foi perseguido e renegado. Seu cunhadoe sua irmã quiseram exclui-Io da herança pa-terna, porém, recorrido ao tribunal holandês,ganhou o pleito; no entanto, depois disso cedeua seus irmãos por sua propria vontade aherança, reservando-se tão-só uma cama.

Em 1656, os rabinos lançam sobre ele a ex-comunhão maior e o expulsam da comunidade.A fórmula da excomunhão, que datava dos pri-meiros tempos da Idade Média, era terrivel.Eis aqui algumas de suas mais importantes im-precações:

"Por decisão angélica e expressão manifestados santos; com a aprovação de Deus e de todaesta Comunidade, excomungamos, expulsa-mos, anatematizamos e maldizemos a Baruchd'Espinosa ... Maldito seja no dia e na noite;maldito seja ao deitar e ao levantar; malditoem sua saida e maldito em sua entrada! Quejamais Deus lhe perdoe! ... Mandamos queninguém trate com ele por palavra ou por es-crito; que ninguém, lhe preste socorro nem favoralgum; que ninguém esteja com ele sob omesmo teto nem se lhe aproxime a 'quatro va-

No século XVI, os numerosos judeus que vi-viam na Espanha foram objeto de constantesperseguições. Convertidos à força em cristãos,continuaram sendo suspeitos aos olhos da In-quisição, e incessantemente temiam por suavida. Em princípios do século XVI I, os PaísesBaixos lhe ofereceram refúgio, pois haviam re-cobrado a liberdade através da luta contra osespanhóis, e praticavam a religião protestante.Ali os judeus voltaram às suas antigas crençase viveram em conformidade com as leis do Tal-mudo De uma destas familias de emigradosnasceu, em 1632, Baruch d'Espinosa, em Ams-terdam.

Estudou na academia israelita de Amster-dam, onde aprendeu hebraico, leu a Biblia e oTalmud, e·aguçou seu talento na interpretaçãode seus textos. Demonstrando muita inteligên-cia, consagrou-se à teologia judaica, e, como

, não tinha vocação para comerciante, seus com-patriotas viram nele a futura coluna sustenta-dora da Sinagoga. Porém estas esperançasdos rabinos se frustraram quando Espinosa sededicou ao estudo do racionalismo.

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ras de distância: que ninguém leia uma obracomposta ou escrita por ele!"

A excomunhão significava para Espinosa aseparação de todos os seus companheiros dejuventude; ao que parece, desde então nenhumjudeu manteve contato com ele. Não contentescom isto, os rabinos quiseram persegui-lo tam-bém como cidadão, e conseguiram expulsá-lode A msterdam , apresentando-o ante os pro-testantes como homem perigoso para a reli-gião. Graças à tolerância das autoridades ci-vis, pôde residir tranqüilamente numa aldeiadistante poucas milhas daquela cidade.

Espinosa teve de acomodar-se às novas con-dições de sua vida; estava resolvido a não fazernada contra suas convicções e a evitar, atéonde possível, todo conflito ou luta com os queo rodeavam. Não abraçou nunca o cristia-nismo, porque apesar do altissimo respeito quenutria pela moral de Cristo, não admitiu ja-mais os dogmas da igreja cristã. Esteve em es-treita relação com algumas seitas que só eramtoleradas na Holanda, comunidades que emsua essência aceitavam o Cristianismo para areforma moral de sua vida, porém em relaçãoaos dogmas deixavam seus membros em abso-luta liberdade.

Como carecia de recursos e não podia obtercargo algum nem dedicar-se ao ensino, teve deapela" para o trabalho manual para ganhar osustento. Aproveitou seus conhecimentoscientíficos e se dedicou a preparar cristais paralentes de telescópios, dos quais havia naquelaépoca grande demanda em conseqüência dosdescobrimentos astronômicos, sendo, emtroca, muito poucos os que sabiam fabricá--los.

O tempo que o seu trabalho lhe deixava li-vre, dedicava-o ao estudo. Em princípio viveucom simplicidade e modéstia numa aldeia pró-xima a Amsterdam, depois em Leiden, perto deHaya, e por último nesta cidade. Espinosa to-mou parte ativa nas questões que agitaramseus contemporâneos. A liberdade religiosa aaHolanda, país que havia dado hospitalidade aseus pais, e que a ele havia proporcionado umrefúgio seguro contra todas as preocupações,estava seriamente ameaçada: os calvinistas,que por razões políticas tinham-se filiado àcasa dos Orange, tratavam de impor o pre-domínio de sua Igreja. Espinosa interveio nes-tas contendas com a publicação (1670) de seu'Tratado Teológico-político ", que, como opróprio nome indica, ocupa-se das relações en-tre a teologia e a política, entre a Igreja e o Es-tado, e no qual sustenta a superioridade deste ecombate a influéncia política do clero; aomesmo tempo nega a origem divina da Bíblia,fazendo uma crítica histórica do Antigo Testa-mento, para o qual estava capacitado pela for-mação judaica de sua juventude. O audaz es-crito alcançou grande ressonância, e era tantaa indi nação rovocada com sua publicação,

quanto o desejo de lê-lo. Apareceram numero-sas réplicas, e o autor teve de sofrer as conse-qüências de sua ousadia. Seus amigos pessoaiso abandonaram, e a perseguição ameaçava al-cançar por igual a obra e o autor. A proteção deJan de Wit, diretor naquela ocasião da políticaholandesa, livrou-o de um sério perigo. Entre-tanto, começava a oscilar a posição de Jan deWit, que havia descuidado da organização doexército terrestre, preocupando-se somente daarmada, debilitando assim a resistência holan-desa contra a invasão das tropas de LuIS XlV.A indignação popular, sustentada pelo clero,culminou em 1672 com o terrível assassinatode Jan de Wit e de seu irmão. O filósofo, de tãopacífico temperamento, revoltou-se contraaquele crime vergonhoso e quis expressar seuprotesto colocando nos muros de sua casa umaplaca, na qual dizia que os habitantes de Hayaeram os maiores bárbaros do mundo. Indubi-tavelmente pereceria vítima da ira popular se odono da casa não lhe tivesse ocultado, impe-dindo a agressão.

Isto explica porque Espinosa não publicara,sob seu nome, mais que uma exposição da filo-sofia de Descartes, o qual escreveu para umdiscípulo seu que não era capaz de receber aexposição de suas próprias idéias e doutrinas.Este livro valeu o chamado da Universidade deHeidelberg, que, em carta dirigida a Espi-nosa, lhe assegurava a liberdade de ensino, po-rém com a condição de que não diria nada con-tra a Igreja. Espinosa sabia que não tardariamem surgir novos conflitos, e com a claridade ecalma que punha sempre em seus assuntos pes-soais, não quis aceitar tão honroso chamado.Continuou, pois, seu sistema de vida; porém oduplo esforço, intelectual e físico, de seu traba-lho, e o pó de cristal que se produzia com o po-limento, prejudicou sua delicada saúde,levando-o a contrair uma afecção pulmonarque lhe causou morte prematura, com a idadede 45 anos. '

Seus amigos publicaram, pouco depois, suasobras, entre as quais figuravam a principal, aque Espinola havia posto o título de "Ética",ou "Teoria ou Doutrina da moral ou da vidajusta" .

Espinosa era de temperamento profunda-mente religioso, que aspirava à união íntimacom Deus, e para alcançar isso servia-se do en-tendimento. Sua condição de homem religiosoe ao mesmo tempo pensador impediu-lhe acei-tar o credo de alguma ordem religiosa; isto seexplica devido a que a submissão e o acomoda-mento exteriores são mais fáceis para tempe-ramentos de pensamento menos claro ou desentido religioso mais débil que o seu. Se qui-sermos compreender a filosofia de Espinosa,convém relacionar estas aspirações, profunda-mente arraigadas na alma do filósofo, encami-nhadas a fundamentar uma vida moral e reli-giosa por meio do pensamento.

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O PENSAMENTO DE ESPINOSA

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Deus é o ser absolutamente perfeito, con-teúdo e resumo de todo ser; nada há fora delee, por conseguinte, é o único a que se pode cha-mar substância. Da natureza e conceito destasubstância única, infinita, que tudo abarca,procede, com necessidade matemática, todoser e todo não-ser. Para Espinosa, a criação doUniverso não é nem pode ser um ato livre queDeus pudesse deixar de realizar a sua vontade:Deus é a unidade do mesmo Universo; e consti-tui um atributo essencial e necessário da divin-dade o manifestar-se neste Universo. Todo oindividual e distinto só é real quando participada divindade. A idéia da individualidadebaseia-se numa limitação e, portanto, numanegação: nós (individualidade) somos homensunicamente (limitação] porque não somos ani-mais, plantas ou pedras (negação); podemosescolher uma determinada profissão enquantorenunciamos a todas as demais possibilidadesde preocupar-nos com o sustento. Esta conclu-são nos permite compreender o principio me-diante o qual Espinosa pretende derivar da uni-dade da natureza divina a especialidade indivi-dual dos distintos seres; toda concreção ou de-terminação é uma negação.

Todas as coisas distintas, corpos ou almas,não são senão uma conseqüência necessária eoutras tantas limitações de uma natureza di-vina, verdadeiramente ativa e eficiente; e esta éde tal índole, que se emana e manifesta em for-mas infinitamente variadas. Espinosa designacom O nome de atributos a esses desdobra-mentos ou modos de manifestar-se a divindade,cada um dos quais independente de todos osdemais e ilimitado em seu gênero. Dos infini-tos atributos da divindade, só dois nos sãoacessíveis: a extensão ou o mundo corporeo, eo pensamento ou o mundo do espírito. Ambossão totalmente independentes um do outro; po-rém, como os dois pertencem à mesma unidadedivina, que tudo abarca, um e outro estão regi-dos pela mesma ordem regular. Nem nossopensamento, nem nossa vontade movem nossobraço; porém este obedece a nossa unidadecom Deus pelo fato de que, quando queremosmover o braço, no mesmo instante se produz,pela lei de necessidade do fenômeno fisico, ummovimento cerebral, que é causa do movi-mento do braço. Um pensamento não pode serjamais a causa de um movimento, nem vice-versa; porém, como os pensamentos e os movi-mentos procedem da mesma necessidade di-vina, a conexão das coisas corporeas é idênticaao enlace e ao trabalho dos pensamentos.

Daí se deduz também que a toda coisa cor-porea corresponde um ser animico. Nossaalma não é já uma verdadeira substância, masuma parte da ordem divina do mundo espiri-tual, que corresponde a uma determinada

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-P..a/~(~t)dÇl,(p,:~m/jiv~nÇJ)f{C?,:lflfrJ(kvl{('R~",((Q\C(Pseja, ao nosso corpo. Se e certo para nosso Icorpo, deve sê-lo também para os demais cor-pos. Espinosa não se vê impelido a negar queos animais tenham alma, porque estes nãoconstituem uma exceção no mundo concebidopelo filósofo; antes, inclui as coisas aparente-mente inanimadas que devem ter algo espiri-tual. Para Espinosa, nós mesmos pertencemosou formamos parte de uma ordem necessáriaque nossa vontade não pode alterar um mínimosequer. Segundo esta ordem, é absurdo pensarque o homem possa influir de algum modo nomundo corpóreo. Na natureza não há fins, nemconveniência ou adaptação a esses fins, senãocausas e ações necessárias destas causas, e amesma necessidade impera também na esferaespiritual. Todo ato de nossa alma procede,com matemática necessidade, da maneira dedesenvolver-se a divindade, ou é um atributo dopensamento, da mesma maneira que a quedade uma pedra lançada ao ar procede do atri-buto da extensão. Daí que o filósofo deva con-templar os sofrimentos humanos com a calmafria e racional com que contempla as figurasgeométricas, ou melhor, sem amor ou temor,porque também procedem necessariamente deDeus e devem ser compreendidos nesta necessi-dade.

Claro é que num mundo tão lógico e severa-mente uniforme e ordenado não cabe a liber-dade da vontade. Nossas ações e pensamentossão tão necessariamente determinados pelacorrelação divinamente natural, quanto o mo-vimento giratório da Terra ou a queda da pe-dra. Os homens se enganam quando acreditamque são livres; e o motivo desta opinião é quetêm consciência de suas ações, porém ignoramas causas que as determinam; por conseguinte.o que constitui a própria idéia de liberdade é ofato de desconhecerem a causa de suas ações.Dizem que as ações humanas dependem davontade, mas isto constitui umafrase sem sen-tido, porque todos ignoram o que é a vontade ecomo a vontade pode mover o corpo.

Assim, um menino acredita que o seu apetiteé livre, quando tem vontade de beber leite, domesmo modo um encolerizado quando pre-tende vingar-se, ou um covarde ao fugir. Umhomem em estado de embriaguez acredita di-zer muita coisa, que a livre vontade da Almanesse estado lhe dita, e que fora dessa situaçãoele jamais diria: igualmente o que delira, ocharlarão, a criança, e um grande número depessoas de semelhante espécie, acreditamfalarporque o livre mando da alma assim o quer,não podendo, portanto, conter o impulso que osleva a falar.

A experiência mostra, pois, que a razão emque os homens se fundam para se julgarem li-vres, está na consciência das suas ações e naignorância das causas que as determinam:além do mais, os decretos da alma não são mais

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quando os homens vivem dirigidos pela razãoconcordam mais em natureza: e, por conse-guinte, quanto mais procura cada um o que lheé útil, mais úteis são os homens uns para comos outros.

Agir por virtude é agir sob o -governo da ra-zão, e tudo aquilo para o qual nos esforçamos,dirigidos pela razão, chama-se conhecimento:assim, o bem supremo dos que seguem a vir-tede é conhecer Deus, ou melhor, um bem co-mum a todos os homens, que pode ser possuidoigualmente por todos, enquanto são da mesmanatureza. O bem que se deseja para si mesmo,que se segue de virtudes, é também desejadopara os outros homens, tanto mais quantomaior seja o conhecimento que se tenha adqui-rido a respeito de Deus.

Chama-se moralidade ao desejo de fazerbem, que se origina disto que nós chamamos ogoverno da razão. Quanto ao desejo que temum homem de unir-se aos outros, através doslaços da amizade, chama-se honradez: honra-dos os que aplaudem os homens que vivem diri-gidos pela razão, e vis os que se opõem ao esta-belecimento de amizade. Percebe-se facilmentea diferença que existe entre a impotência e averdadeira virtude, pois, enquanto esta últimaresulta apenas em agir sob o governo da razão,a impotência consiste unicamente em que o ho-mem se deixe passivamente conduzir pelas coi-sas exteriores, que lhe determinam a fazer oque pede a constituição do mundo exterior enão o que exige a sua própria natureza consi-derada em si mesma.

É útil, também, antes de tudo aperfeiçoar-mos o entendimento ou a razão, enquanto issoseja possivel. A felicidade suprema ou a beati-tude do homem, consiste apenas nisto, porquea beatitude não é outra coisa que o contenta-mento interior que nasce do conhecimento in-tuitivo de Deus: aperfeiçoar o entendimentonão é outra coisa são conhecer Deus e os atri-butos de Deus, com as ações que dai se deri-vam pela necessidade da natureza. Por isto ofim último do homem, conduzido pela razão,ou seja, o desejo supremo com o qual ele pre-tende dirigir todos os outros desejos, é que oleva a conceber adequadamente todas as coisasqeu podem ser para ele objeto de claro conheci-mento. Pois as coisas são boas somente na me-dida em que ajudam o homem a desfrutar avida da alma, que justamente é definida peloconhecimento claro: dizemos que são más uni-camente aquelas coisas que, pelo contrário,impedem o homem de aperfeiçoar a Razão edesfrutar a vida de acordo com ela.

Vê-se, com facilidade, em que difere um ho-mem conduzido apenas pela emoção e aqueleoutro que é dirigido pela razão. O primeiro,queira ou não, não sabe de modo algum o quefaz: o segundo não faz mais senão agradar a simesmo, ou, ainda, faz somente aquilo quesabe, que está colocado em primeiro lugar den-

que os próprios apetites e variam, por conse-qüência. seguindo a disposição variável docorpo. Na verdade. os que acreditam que falamou silenciam, ou que realizam uma ação qual-quer através da vonrade da alma, sonham comos olhos abertos.

Esta doutrina é útil em quatro aspectos: 1)porque nos ensina que agimos unicamente pelogosto de Deus e que participamos da naturezadivina: 2) porque nos ensina como devemoscomportar-nos quanto aos êxitos da fortuna:esperar e suportar, com a mesma disposição,uma e outra face da sorte, uma vez que todasas coisas derivam de Deus: 3) porque nos en-sina a não odiar, nem depreciar ninguém, anão enganar, ou sentir cólera por alguém, ouainda não invejar aos demais. Ensina cada uma se contentar com o que tem e a ajudar o pró-ximo, não por piedade, por parcialidade ou su-perstição, mas por convicção racional, pelo go-verno da razão, segundo exigem as situações: e4) ensina, também, a condição pela oual aspessoas devem ser governadas e dirigidas, paraque cheguem livremente ao melhor, e não paraserem escravas.

Quanto ao mal e ao bem, não indicam nadade positivo ou negativo nas coisas. São apenasmodos de pensar ou noções que formamos,porque comparamos as coisas entre si. Umamesma coisa pode ser, ao mesmo tempo, boa emá, e também indiferente: por exemplo, amúsica é boa para o melancólico, má para oaflito, mas para o surdo não é boa nem má.Entendemos por bom aquilo que sabemos, comcerteza, que é um meio de nos aproximar cadavez mais do modelo da natureza humana talqual a concebemos. Pelo contrário, entende-mos que é mau aquilo que sabemos, com cer-teza, que nos impede de reproduzir um modelo.

Com respeito à virtude, o seu princípio é opróprio esforço para conservar o seu ser (di-vino) e a felicidade consiste no fato de o ho-mem poder conservar o seu ser: a virtude deveser desejada por si mesma, e não existe coisaalguma mais valiosa que ela: ou que nos sejamais útil. Quanto mais nos esforçamos em pro-curar o que é útil, ou seja, conservar o nossoser, e quanto maior for o nosso poder em con-seguir isto, mais dotados estamos de virtude:ao contrário, à medida que não conservamos oque é útil, o nosso ser, vamos ficando impoten-tes.

Não se dá coisa alguma singular na Natu-reza mais útil ao homem, que um homem viversob o governo da razão, porque o mais útilpara o homem é o que se acha mais de acordocom a sua natureza. O homem, portanto, ageabsolutamente pelas leis de sua natureza,quando vive sob o governo da razão, e somentenesta medida concorda sempre, necessaria-mente, com a natureza do outro homem: nãohá, pois, nada entre as coisas singulares maisútil ao homem ue um outro homem. Assim,

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tI'Oda vida, e que e o que ele deseja mais poresta mesma razão. Chama-se, em conseqüên-cia, servo o primeiro, e livre o segundo. Um ho-mem livre não pensa em coisa alguma, nem namorte: sua sabedoria é uma meditação, nãoem torno da morte, mas em torno da vida.

A verdadeira liberdade do homem relaciona--se com a firmeza da alma. E o homem dealma forte considera, antes de mais nada, quetudo se deriva da necessidade da Natureza di-vina e que, por conseguinte, se em sua opiniãoalguma coisa é considerada como insuportávele má, imoral, digna de horror, baixa ou in-justa, é porquejulga as coisas de uma maneiradesordenada, incompleta e confusa: por estemotivo, esforça-se antes de tudo em concebê--Ias como são em realidade e em afastar os obs-táculos que se opõem ao conhecimento verda-deiro, tais como o ódio, a cólera, a inveja, aironia, o orgulho e tantos outros semelhantes,'portanto esforça-se, no possível, em fazer obem e manter-se feliz.

Concluindo, o ignorante, além de ser agi-tado de muitas maneiras em face das causasexteriores, não possui nunca o verdadeiro con-tentamento interior: está numa inconstânciaquase completa em relação a si mesmo, a Deuse às coisas, e tão logo cessa de sofrer, tambémcessa de ser.

Ao contrário, o sábio, considerado como tal,não conhece a perturbação interior, senão quetem, por causa de certa necessidade eterna,consciência de si mesmo, de Deus, das coisas,e assim jamais cessa de ser, porque possui overdadeiro contentamento. Entretanto, se o ca-minho que conduz até aqui parece difícil, nempor isso devemos deixar de percorrê-lo. Certa-mente, tem de ser difícil o que é encontradocom tão pouca freqüência. Se a salvação esti-vesse em nossas mãos, se pudéssemosconsegui-Ia sem grande esforço, é possivel quea desdenhássemos, como fazem quase todos.Tudo o que é belo, é também difícil e raro.

LUCY BLUMENTAL

Bibliografia1. Zweig, Arnold "O Pensamento Vivo de

Espinosa"Livraria Martins Edi-tora S.A., São Paulo,1955"Los Grandes Pensado-

res"Editoral Labor, S.A.,Barcelona, 1935

2. Cohn, lonas

o Sistemade memóriada abelha

As abelhas possuem um sistema memoriza-dor surpreendentemente sofisticado que as ca-pacita a viajar em busca de alimento em diasnublados, de acordo com dois biólogos de Prin-ceton.

Já é fato conhecido há muito tempo que asabelhas vaculhadoras usam o Sol como umponto de referência para sua orientação de vôo.Elas também informam uma às outras a dire-ção onde está o alimento mediante uma dançacomplicada, baseada na posição do Sol e doalimento. Mas como podem elas executar essadança em dias nublados, quando não podemver o Sol?

Existem três possibilidades principais, se-gundo Fred C. Dyer e James L. Gould, em ar-tigo publicado na revista Science. As abelhas

. podem ver os raios ultravioletas do Sol atravésdas nuvens. Ou podem empregar um compassomagnético tal como o usado pelos pombos--correio em dias enevoados. Ou então, elas po-dem recordar a posição do Sol assumida emdias anteriores.

Para testar tais possibilidades, os dois biólo-gos idearam uma experiência de duas etapas.Primeiramente, eles colocaram uma colméia eum suprimento de alimento ao longo de umafi-leira de árvores efizeram as abelhas se acostu-marem a seguir as árvores para obterem seu a-limento.

Então, eles deslocaram a colméia para umoutro lugar junto com dois suprimentos de co-mida - um na mesma direção periférica comoa do suprimento anterior, e o outro numa dire-ção diferente, mas ao longo da mesma linha deárvores.

Em dias ensolarados e no novo local. todasas abelhas incorporaram a posição direcionalcorreta do Sol em suas danças. mesmo se con-fiassem em acompanhar a fileira de árvorespara encontrar seu alimento. Mas em dias nu-blados. as abelhas acompanhavam a fileira deárvores e embora executassem a sua dança.esta não era a correta para a sua nova posição.conquanto o fosse para a localização anterior.As abelhas. aparentemente. estavam confiandona sua lembrança do rumo anterior do Sol enão podiam determinar a posição do astro di-retamente.

O sistema de orientação das abelhas produ-toras de mel. cone/uem os biólogos. é sofisti-cado bastante para conservar a memória dotempo e ter a noção do movimento do Sol du-rante o dia. [Extraido do Jornal do Brasil-27.12.81)

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