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INFLUÊNCIAS DO INGLÊS NO PORTUGUÊS DO BRASIL por JOSÉ MANUEL DA SILVA © 2000 Revisado e atualizado em novembro de 2007.

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INFLUÊNCIAS DO INGLÊSNO PORTUGUÊS DO BRASIL

porJOSÉ MANUEL DA SILVA

©2000

Revisado e atualizado em novembro de 2007.

“Uma das tarefas urgentes da sociolingüística nesta área de política de idioma é o aperfeiçoamento das técnicas de formação de palavras através de empréstimos e neologismos.”

STELLA MARIS BORTONI RICARDO,Porque a Tradutologia Precisa do Sociolingüista*

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 042 -- LÉXICO ...................................................................................................... 04

2.1 Empréstimo x Decalque ................................................................ 042.2 Palavras trazidas in natura ............................................................ 072.3 Palavras aportuguesadas .............................................................. 102.4 Palavras traduzidas ....................................................................... 122.5 Palavras erroneamente traduzidas ................................................ 142.6 Palavras criadas no português Neologismos .............................. 15

3 SINTAXE ..................................................................................................... 163.1 Preposição em fim de frase ........................................................... 163.2 Passivização excessiva ................................................................. 173.3 Gerundismo ................................................................................... 18

4 CONCLUSÕES ........................................................................................... 195 NOTAS ........................................................................................................ 226 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 23

Este texto possui direitos autorais protegidos. Trechos podem ser citados com reconhecimento da autoria. Para reprodução completa, por favor escreva para [email protected] mencionando “Permissão” no campo de assunto.Espero que o artigo seja útil. JMS, julho de 2010.

1 INTRODUÇÃO

É patente a influência que sofremos, no Brasil, a exemplo de inúmeros outros países, da cultura anglo-saxônica em vários campos de nossa vida.

Não só na área técnico-científica, o que se explicaria por sermos um país em franco desenvolvimento e ainda dependente das descobertas realizadas em países mais desenvolvidos, mas também nos esportes, nas artes (especialmente a música e o cinema) e até na moda e nos modismos, adotamos práticas e costumes importados. Nada mais lógico, então, do que incorporarmos simultaneamente determinados fenômenos lingüísticos.

Quando se aborda este tema, que já é reconhecido por grandes gramáticos, é praxe focalizar-se apenas o léxico, em que podemos, num curtíssimo espaço de tempo, listar inúmeras palavras e expressões oriundas do inglês. Após um exame aprofundado, no entanto, o problema parece mais complexo. Até no que respeita ao vocabulário, não temos simplesmente palavras incorporadas diretamente do inglês; às vezes as traduzimos, outras as adaptamos e chegamos inclusive a inventá-las! Além disso, começam a se fazer sentir influências mais enraizadas no português do Brasil relativamente a transformações sintáticas devidas à estrutura da língua inglesa.

Este pequeno trabalho se dispõe a apontar algumas dessas influências. Fala-se em português do Brasil por ser este o país onde vive o autor, que não pode, por isso, tecer comentários sobre o que ocorre em relação ao português de Portugal, por exemplo. Ressalte-se desde já o caráter introdutório deste esboço e a necessidade de um corpus maior e mais bem organizado e de pesquisa mais profunda, a partir de cujas conclusões poderíamos avaliar com mais precisão um assunto que a cada dia toma proporções mais vultosas entre nós.

2 LÉXICO

Esta é a área onde corriqueiramente se apontam as influências do inglês no português. E inegavelmente existe uma grande disseminação de vocábulos da língua inglesa em quase todos os campos de estudo, não esquecendo a vida diária, onde aportam quase que diariamente novas palavras e expressões designativas de hábitos e produtos que são incorporados incontinenti, às vezes por necessidade, outras por puro modismo.

Não obstante, é preciso distinguir as categorias em que se fazem presentes estas constantes "importações".

2.1 Empréstimo x Decalque

Não especificamente para as palavras trazidas do inglês, mas para as importações de vocábulos estrangeiros em geral, vários pesquisadores têm abordado o assunto dando-lhe nomes diferentes. Desde Cândido de Figueiredo com seus "estrangeirismos"1, passando por Laudelino Freire e seus "galicismos"2, até Mattoso Câmara3 e Jean Dubois4, muitos autores têm dedicado atenção às influências de vocábulos de outras línguas no português.

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Modernamente, utilizam-se os termos empréstimo e decalque para se tentar dar conta das palavras que chegam até nós, provindas de outras línguas. Jean Dubois afirma que há empréstimo lingüístico "quando um falar A usa e acaba por integrar uma unidade ou um traço lingüístico que existia precedentemente num falar B e que A não possuía; a unidade ou o traço emprestado são, por sua vez, chamados de empréstimos".5 É o que ocorre com futebol, palavra antes inexistente em português, mas que, ante a influência do inglês football, foi incorporada a nossa língua, na "tentativa de repetir a forma ou o traço estrangeiro".6 A palavra estrangeira pode passar à língua por ela influenciada com a mesma grafia original (e pronúncia também o mais próximo possível do original), como o demonstra freezer, que não sofreu nenhuma modificação na passagem do inglês ao português, a menos de ligeira modificação fonética.

Em resumo, o empréstimo cria uma palavra nova, antes inexistente na língua de aporte, variando suas modificações de zero (a palavra é mantida como na língua de origem) até um máximo de adaptação (a palavra adquire características morfológicas e/ou fonéticas da nova língua). Vejamos o Quadro I abaixo.

EmpréstimoVocábulos sem

nenhuma modificaçãoVocábulos com

alguma adaptaçãoVocábulos

com adaptação totalabât-jour (fr.) abajur

back up (ing.)becape, becapar (Houaiss)backupear, becapear[mais freqüente na língua oral e na Web]

Coca-Cola, Coke (ing.) Coca-Cola, Coke [pron. aport.] Coca

camping (ing.)camping [pron, /câmpin/; em inglês, é a ação, não o local, como entendemos hoje em português]

container (ing.) contêinerfootball (ing.) futebolhabeas-corpus (lat.)mutatis mutandis (lat.)hamburger (ing.) hambúrguerjogging (ing.)New York (ing.) Nova York Nova Iorquepizza (it.)savoir-vivre (fr.)shopping center (ing.) shoppingskate (ing.) skate [pron. aport.]States (ing.) States [pron. /istêitis/]Software (ing.) sófter

Quadro I

No caso do decalque, ainda consoante Dubois, temos o seguinte:

Diz-se que há um decalque lingüístico quando, para denominar uma noção nova ou um objeto novo, uma língua A (...) traduz uma palavra simples ou composta, pertencente a uma língua B (...) pela palavra simples correspondente que já existe na língua com outro sentido, ou por um termo composto, neologismo, formado dos elementos correspondentes aos da língua A.7

Explicando melhor, no empréstimo a nova palavra não existia na língua; no decalque a palavra pela qual se traduz o termo estrangeiro já existia na língua, mas com outro sentido. O decalque pode ser entendido como o que em terminologia se chama de ressemantização:

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(...) ao servir-se de seu patrimônio lexical, muitas vezes o português procede a uma ressemantização de unidades já comuns na língua. A reutilização do vocabulário já existente na língua, atribuindo-lhe novos sentidos, é um recurso usado freqüentemente nas terminologias. Esse procedimento evita a criação contínua de novas unidades até então inexistentes, fazendo-se economia de novas formas, o que expandiria ad infinitum o número de unidades diferentes do léxico. Assim, com base em traços semânticos que a significação nuclear da palavra já possui, ampliam-se seus valores de sentido para incluir novas denotações.7a

Um exemplo de decalque temos em quebra-luz, onde os termos quebra e luz já existiam em português, mas não com o sentido de quebra-luz, tradução do francês abat-jour. O mesmo se dá com realizar, no sentido de "compreender", "perceber"; realizar já existia em português, mas somente no sentido de "empreender algo", até que, por influência recente do inglês realize, ganhou o novo sentido. Vejamos o Quadro II abaixo.

DecalqueVocábulo original estrangeiro Vocábulo já existente na

língua de aporteVocábulo da língua de aporte

depois do decalquecopy (ing., informática) copiar

"fazer uma cópia" – genérico ou fotocópia (significado 1)

copiar "fazer uma cópia" – genérico ou fotocópia (significado 1) na informática, “fazer cópia de arquivo”, “salvar” – alterna sempre com “colar” (significado 2)

credit (ing. “saldo monetário” ou “matéria na universidade”)

crédito "saldo" (significado 1)

crédito "saldo monetário" (significado 1) "matéria na universidade" (significado 2) "reconhecimento de autoria em vídeos" (significado 3)

digital (ing.) digital relativo a dedos

digital relativo a dedos (significado 1) tipo de tecnologia, oposta a "analógica" (significado 2)

discotheque(ing. "lugar onde sedança")

discoteca "coleção de discos" (significado 1)

discoteca "coleção de discos" (significado 1) "lugar onde se dança" (significado 2)

save (ing.; informática) salvar "resgatar de perigo" (significado 1)

salvar "resgatar de perigo" (significado 1) "armazenar", “copiar”, “fazer cópia” (na informática) (significado 2)

service (tênis)(ing. "saque")

serviço "tarefa" (significado 1)

serviço "tarefa" (significado 1) "saque" (no tênis) (significado 2)

Quadro II

Algum leitor mais apressado poderia erroneamente concluir que então, ao final das contas, toda e qualquer tradução é uma espécie de decalque. Tal não é o caso,

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porquanto, ao se traduzir bread por pão e house por casa, pão e casa não mudam de sentido (ou não ganham mais um) em português para traduzir as idéias, respectivamente, de bread e house.

Neste trabalho, nada seria mais simples do que utilizar os termos acima definidos (empréstimo e decalque) para categorizar, nas próximas seções, os exemplos de vocábulos ingleses incorporados ao português, os quais serão à frente analisados. Entretanto, pareceu-nos mais esclarecedor mudar um pouco a terminologia, pois empréstimos e decalques não dariam conta de todas as situações encontradas, e preferimos assim nos referir a cinco distintos grupos de palavras, a saber:

Palavras trazidas in natura (item 2.2); Palavras aportuguesadas (item 2.3); Palavras traduzidas (item 2.4); Palavras erroneamente traduzidas (item 2.5); Palavras criadas no português neologismos (item 2.6).

Nos itens (2.2) e (2.3) estaremos na verdade enfocando o que anteriormente definimos como empréstimo, porém sem precisar fazer referência ao grau de adaptação sofrida pela palavra; no item (2.4) abordaremos os assim chamados decalques, bem como palavras traduzidas corretamente. Precisávamos, para completar nosso acervo, do item (2.5), onde as palavras sofreram não um decalque mas uma tradução e errada , e também do item (2.6), onde listamos neologismos criados em português, com aparência e características de vocábulos ingleses, sem que tenham correspondentes na língua inglesa.

Ainda assim, é preciso explicitar nosso procedimento quanto aos parâmetros utilizados para classificar os vocábulos importados em "palavras trazidas in natura" e "palavras aportuguesadas". Nesta primeira fase da pesquisa, ainda um tanto tímida, consideramos como palavras trazidas in natura todas aquelas que não sofreram modificação gráfica (por exemplo, software, embora muitos profissionais da área de informática já falem e escrevam softer ou sófter; lobby), bem como aquelas que sofreram pouca ou quase nenhuma modificação fonética (por exemplo, smash, muitas vezes com a inclusão de uma vogal inicial e/ou da transformação da fricativa alveolar em palatal, o que produz algo como /izmesh/ ou /ishmesh/, ou ainda com a inclusão de uma vogal final, produzindo algo parecido a /izmeshi/ ou /ishmeshi/; game, com inclusão de vogal final, gerando /gueimi/). Os vocábulos que sofreram modificação gráfica (futebol, surfe) e aqueles que sofreram acentuadas transformações fonéticas (xerox, em inglês paroxítono e oxítono em português) foram enquadrados na categoria "palavras aportuguesadas". Fica a ressalva, porém, para o fato de reconhecermos que este critério ainda deixa a desejar na questão metodológica. Com o desenvolvimento da pesquisa, possivelmente necessitaríamos reestruturar não só estas duas categorias, como também os itens (2.4), (2.5) e (2.6) restantes da classificação aqui adotada.

2.2 Palavras trazidas in natura

Nesta categoria encontram-se palavras que são incorporadas à língua escrita da mesma forma como se escrevem em inglês e na língua oral com nenhuma ou quase nenhuma adaptação às regras fonéticas do português.

Em determinadas situações, são vocábulos cuja tradução é impossível por não existir termo equivalente em português, onde a tradução precisaria ser feita em circunlóquio ou

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mediante criação de um neologismo. Ou então, devido ao uso confinado a áreas específicas durante longos períodos de tempo, seu emprego se faz obrigatório devido ao costume adquirido, até por simplicidade e fácil manuseio.

No terreno desportivo poderíamos citar surf, body boarding, football, baseball (o primeiro e os dois últimos, entre vários, às vezes mantidos na grafia original inglesa, outras vezes aportuguesados, como surfe, futebol e beisebol cf. item 2.3 abaixo); step (banquinho modernamente usado em academias de ginástica); pulley (aparelho de ginástica); lob (movimento da bola ou tipo de jogada no jogo de tênis); lobby (tanto o hall quanto a influência exercida em âmbito político); smash (tipo de jogada do tênis); game (estágio do jogo de tênis); set (conjunto de seis games no tênis ou estágio no jogo de volleyball, também grafado voleibol ou volibol); bookmaker, dentre outros tantos termos que não citamos por economia de tempo e espaço.

No campo técnico-científico temos software e hardware (termos em princípio intraduzíveis, o primeiro já grafado softer ou sófter); CD, em maíusculas ou minúsculas ("compact disk", falado /cedê/, como o disco em si, ou /cidi/, do inglês, no conjunto CD player, significando o aparelho leitor de cds; PC, em maiúsculas ou minúsculas (curiosamente falado em português /pecê/, mas mantendo a ordem inglesa de personal computer, aliás da mesma forma que CD); UFO ("Unidentified Flying Saucer", com ordem inglesa, dividindo espaço com a tradução abreviada OVNI, "Objeto Voador Não-Identificado"); CEO ("chief executive officer", alto cargo em uma empresa, falado com o nome das letras em português ou em inglês, mas de novo mantendo a ordem inglesa); LP ("long-playing", normalmente falado /elipê/, com fonética portuguesa mas ordem inglesa, o que parece ser uma constante); marketing (este termo gerou o português marketeiro, também grafado marqueteiro, ao lado de mercado, uma tradução, e seus correlatos; já se encontra, embora raramente, a forma marqueting ou marquetingue; merchandising; bit (na engenharia mecânica, a ferramenta de tornear); laser; freezer; insight; flash; know-how etc.

Em nosso dia-a-dia também encontramos vários exemplos, tais como t-shirt; jeans; baby (significando "criança" ou "meu amor", nesta última acepção também com a grafia babe tanto em inglês quanto em português , nome até de um perfume brasileiro); handicap (tanto "vantagem" como "desvantagem", igual ao inglês); borderline; overlap; walkman (curiosamente nos jornais, no plural, aparece como walkmen, grafia inglesa, ou walkmans, já seguindo as regras do plural português8; em alguns textos jornalísticos aparece a forma walkman's, má interpretação para as regras de plural e possessivo em inglês); pub; light (em compostos como "comida light", não-gordurosa, ao lado de diet, dietético/a); soft (para minimizar algo, como em "probleminha soft"; neste caso, devido a uma confusão entre soft e light, a tendência observada é utilizar light para todos os casos: "problema light", "namoro light", trabalho light", "música light", quando a expressão inglesa é soft music); jazz (às vezes falado /djes/, aproximadamente como em inglês, outras /jas/ ou /jays/, aportuguesado); fair-play; milk shake; ticket etc. Encontramos também expressões usadas em comerciais, como What's up? Dan up! Estão neste caso ainda produtos que mantêm o nome de origem, tais como Coca-Cola (com pronúncia adaptada, ao lado da forma Coca), Coke (com pronúncia mantida), Sprite, Fanta etc.

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Neste ponto caberia uma observação, em princípio para a categoria em estudo, ou seja, a de palavras trazidas in natura, mas que pode ser estendida a outra categoria, estudada no item 2.3. O problema é que a palavra emprestada pode ter seu significado reduzido na passagem do inglês ao português. Poderíamos chamar este caso específico de "palavras com redução semântica". Tal é o caso de blues. Em inglês, blues pode significar tanto um tipo de música quanto algo próximo de "tristeza", "baixo astral". Em português, a palavra só é utilizada como estilo musical. Houve então uma redução de significado do termo original. O mesmo ocorreu com impeachment, que no inglês pode variar desde uma acusação até a interrupção do mandato de uma figura pública, dentre outras nuances de significado, como por exemplo "desabono moral" etc. Em português, o termo só é usado na primeira acepção, e mesmo assim só com o sentido de interrupção do mandato do governante. O caso em pauta é curioso porque em português temos o vocábulo jurídico impedimento, talvez até por influência do termo inglês impeachment, que rarissimamente é usado referindo-se à interrupção de mandato de ocupante de cargo público.

Podemos dizer que o fato lingüístico registrado acima dá margem a que postulemos o fenômeno inverso, ou seja, "palavras com ampliação semântica". Aí teríamos o caso de vocábulos que na passagem ao português ampliam sua gama de significados. É o que ocorre com xerox, que em português refere-se à máquina ("uma xerox"), à loja onde são feitas as cópias ("uma xerox na esquina"), à cópia reproduzida ("uma xerox do documento") ou ao processo ("isso é feito por xerox"); em inglês, a rigor, xerox funciona mais como adjetivo (nos casos acima, respectivamente, teríamos "xerox machine", "xerox place", "xerox copy", "xerox", sendo este o único caso que admite a função de substantivo), mas o inglês parece preferir a forma photocopy (substantivo cópia ou fotocópia e verbo copiar ou fotocopiar) e seus derivados photocopier (máquina copiadora). Em nossa língua o significado da palavra xerox estendeu-se a "coisas bastante semelhantes", por exemplo, quando dizemos "não posso aceitar a sua redação; ela é xerox da do seu colega", ou ainda "ele é tão parecido com o irmão, parece um xerox dele". É bom salientar que o termo original em inglês, xerox, é marca registrada de um fabricante de copiadoras, Xerox Corporation. Hoje temos o vocábulo clone, oriundo de filmes de ficção científica e experiências genéticas, exercendo o mesmo papel de “cópia”, por extensão: “ele é um clone do irmão”. O mesmo aconteceu com surfer, que em inglês só se refere a praticante do esporte no mar; ao adaptar-se a nosso contexto, especialmente no Rio de Janeiro, acrescido de um adjetivo passou a representar o indivíduo que faz acrobacias sobre os trens surfista ferroviário. Em outras palavras, surfista em português deixou de ser privilégio do mar, como era (e é) em inglês. Além disso, em um contexto escolar, surfista virou sinônimo de vagabundo, aquele aluno que não freqüenta as aulas regularmente, neste caso, igual ao termo turista. (No caso da Internet, o inglês possui o verbo surf para indicar a ação de trafegar pelas várias páginas; no português, embora se utilize a expressão "surfar na Internet", com clara influência do inglês, a preferência é por navegar, registrando-se que a língua inglesa também utiliza o termo navigate e outro, bem mais antigo, sail; ambos são traduzidos por navegar.)

Pelo acima exposto, seria coerente postular a existência de palavras que nem reduzem nem ampliam sua área semântica na passagem do inglês ao português, mas trocam completamente de sentido. É exatamente isso que ocorre com as palavras que classificaremos de "palavras com alteração semântica". Como exemplo temos o termo follow-up, que em inglês significa um "acompanhamento" de algum trabalho já iniciado, uma atividade posterior para dar prosseguimento a algo já executado, ou simplesmente para verificar o que está ocorrendo com o tal trabalho já pronto. No português, no início dos anos 2000, particularmente em determinadas áreas de engenharia ou em finanças, follow-up referia-se a "um conjunto de etapas para a execução de uma tarefa", significado

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este bastante diferente do original inglês. A rigor o exemplo não é tão bom, uma vez que alguns profissionais também utilizavam o termo com o significado original da língua inglesa, o que o colocaria entre as palavras com ampliação semântica; no entanto, isto não se manteve e o termo hoje tem somente o significado de “acompanhamento”.

Um caso curioso de alteração semântica aparece com o que atualmente em português se grafa bottom e se lê aproximadamente como /bótom/. Aparentemente parece o inglês bottom, mas na verdade trata-se do inglês button. O termo inglês button, entre outros significados, é uma espécie de broche que se usa normalmente no peito para fins de propaganda, demonstração de partidarismo, defesa de alguma causa social ou simplesmente com objetivos jocosos. Quando veio para o Brasil, por não saberem a pronúncia correta do termo inglês, algo como /bâtan/, os falantes do português do Brasil começaram a se referir ao vocábulo button como /bótom/. Posteriormente, talvez por terem conhecimento da existência do vocábulo bottom (fundo, parte inferior, nádegas), ainda que sem saber seu significado correto e erroneamente associarem-no a button, algumas pessoas começaram a escrever a forma bottom, pronunciada desta vez corretamente /bótom/, mas com o significado alterado para “broche”.

Para ilustrar a dificuldade inerente à nomenclatura científica, citemos os vocábulos digital e digitalização. Considerando-se a terminologia referida no item 2.1, teríamos aqui um caso tipicamente limítrofe (ou seria melhor usar borderline?) entre empréstimo e decalque. Digital (em português oxítono, do inglês digital, proparoxítono, processo tecnológico oposto a analógico, do inglês analog ou analogue) já existia em português com sentido de algo "relacionado a dedos", como em "impressões digitais", o que justificaria sua classificação como decalque. Por outro lado, visto que na grafia as palavras são iguais e no som bastante semelhantes, poderíamos entender o português digital como um empréstimo do inglês digital, a quase igualdade sendo mera coincidência lingüística. Levando-se em conta a terminologia utilizada ao longo deste trabalho, o português digital poderia se enquadrar no item 2.2, uma palavra trazida in natura, com ampliação semântica, ou no item 2.3, uma palavra aportuguesada. Pitorescamente, pode ser um "neologismo semântico", "um decalque gráfico e sonoro" e "um empréstimo lexical", tudo ao mesmo tempo. No caso de digitalização, poder-se-ia deduzir que foi criado já em português, a partir do termo digital; não é o caso, pois quando do surgimento da tecnologia em questão, o inglês criou simultaneamente os termos digital e digitalization, tendo os dois aportado no Brasil simultaneamente. Daí concluirmos que o inglês digital produziu o português digital, no mesmo momento em que o inglês digitalization produzia o português digitalização. É importante notar que o inglês mais recente vem optando pelo termo digitize para o verbo, em português traduzido por digitalizar; o adjetivo digitized é traduzido por digitalizado.

2.3 Palavras aportuguesadas

Alguns vocábulos passam a nossa língua com basicamente a mesma forma de seu original inglês, porém sofrendo alterações (às vezes menores, às vezes maiores) fonéticas e/ou gráficas. Tal é o caso, nos esportes, de surfe (de surf); futebol (de football); andebol (de handball); basquetebol, às vezes grafado basketebol (de basketball); golfe (de golf); jóquei (de jockey, na corrida de cavalos); boxe, às vezes grafado box, como no original inglês; beque (no futebol, possivelmente uma redução de fullback, ou mesmo aportuguesamento de back). No caso de box (em português box ou boxe), com sentido de “caixa”, o termo também é usado hoje como sinônimo de alguns tipos de embalagem

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(“box de DVDs”), ou uma parte da habitação onde fica o chuveiro (“banheiro com box”). Em banheiros ainda temos closet, “recinto onde fica o vaso sanitário”.

Nas ciências, especialmente a informática, podemos citar ressetar (do verbo reset, usado para "zerar" uma máquina ou contador, este traduzido de counter); printar (de print, "imprimir", vocábulo aliás que dispensaria o decalque); xerox (grafia idêntica à original inglesa, mas pronúncia com acentuação oxítona, quando o original inglês a tinha paroxítona); deletar (do verbo delete, "apagar", palavra que, mais uma vez dispensaria o decalque); plotar (de plot); reestartar ou restartar (de restart); rebutar (de reboot); inicializar (de initialize). A informática é rica em exemplos deste tipo: renderizar (de render); cropar (de crop); pixelar (de pixel, verbo); startar ou estartar (de start), que pode ser utilizado em frases como “(e)startar o computador”, ou em outros contextos como “(e)startar o processo de venda”. Alguns termos são mais utilizados na fala e na Web, como (e)startar, já visto, forwardar (de forward, verbo), butar ou rebutar (de boot e reboot, verbos). Por serem ainda novos na língua portuguesa, existe hesitação quanto à grafia (butar ou bootar? rebutar ou rebootar? becapear ou backupear?). Só a título de exemplificação, aqui estão alguns trechos recolhidos da Web:

Como becapear minha lista de e-mails bloqueados, em regras de mensagens?Gostaria de saber como faço para becapear (gostaram?) a FAT (...)(...) e assim sendo tive que “becapear” tudo o que eu tinha(...)Ferramenta para backupear sua coleção de DVDs (...)Olá lista, Quero backupear windows nt dentro do meu linux.(...) e cliquei pra rebutar (...)(...) começou a rebutar a máquina.(...) eu tenho que rebootar o sistema!Não reconhece o CDROM após rebootar.Micro demora mais de uma hora pra butar.Recarregar essa Página 1 bip longo e 2 curtos ao butar (...)Alguem ai sabe com fazer para o linux bootar automático (...)Como coloco uma senha ao bootar?

Na música um exemplo é samplear (do inglês sampler, aparelho que faz colagens de trechos de músicas; note-se que o substantivo inglês gerou o verbo português, para dar conta da nova ação tecnológica). Ainda dentro do terreno musical podem-se citar os termos mixar / mixagem (do inglês mix / mixing) e masterizar / masterização (do inglês master / masterization).

Com o vocábulo mídia acontece algo interessante: curiosamente, mantemos o vocábulo latino medium, já grafado médium em português, principalmente no espiritismo; seu plural latino media, aportuguesado média, entretanto, tem emprego específico (como em "média aritmética", "média geométrica", ou em outras situações como "a média das pessoas", "a média de idade dos candidatos" etc.). Modernamente, o vocábulo latino media, com a pronúncia do inglês /mídia/, voltou ao português significando rádio, tv, imprensa, veículos de comunicação de modo geral, pronunciado e grafado mídia; mais recentemente ainda, já começa a ser pronunciado /média/ e grafado média, mas unicamente na expressão multimédia (ou multimídia, do inglês multimedia). Ainda dentro desta categoria podemos citar disquete (de diskette) e contêiner (conforme Ferreira; segundo o Vocabulário Ortográfico, grafado como o original inglês container, mas pronunciado /contêiner/), entre outros.

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Cotidianamente encontramos palavras deste tipo: hambúrguer (de hamburger); xisbúrguer (de cheeseburger); coquetel (de cocktail); clube (de club, às vezes mantido club na grafia, como em "Grajaú Country Club", mas sempre pronunciado /clubi/); líder (do inglês leader, que alguns Ferreira, Morais e Nascentes fazem vir diretamente do inglês, mas que Aulete faz vir do inglês via francês); desapontamento (influência do inglês disappointment, introduzida por Almeida Garrett, que tanto desagradava aos puristas); Irãgate (de Irangate).

Como foi dito no item 2.2, poderíamos nos referir aqui também a palavras com redução e ampliação de significado. No primeiro caso destacaremos o inglês drink, que em inglês, além do verbo "beber", pode referir-se a bebidas alcólicas e também, por extensão, a qualquer líquido passível de ser bebido (embora, mesmo em inglês, haja uma tendência a se relacionar com bebidas alcólicas somente; a indústria de refrigerantes, no entanto e por exemplo, só se refere a drinks ou beverages); o português drinque ficou exclusivamente restrito a bebidas alcólicas. No segundo caso podemos citar paquete, vindo do inglês packet-boat ("pequeno barco") através do francês paquebot em forma reduzida. No português, além de "embarcação", passou a significar "menstruação" (a idéia subjacente é: no Brasil, os packet-boats normalmente chegavam uma vez por mês), embora em linguagem chula.

2.4 Palavras traduzidas

Aqui listamos vocábulos traduzidos, ora por seu significado denotativo no contexto (wave e onda, na eletrônica, no surfe) o que dá conta de tradução propriamente dita , ora por seu significado genérico (ingl. radical e port. radical, gíria com sentido de "ótimo") o que dá conta de alguns decalques.

Na esfera esportiva, podemos listar serviço (de service, ou seja, quem está com o saque no tênis); peso pesado (de heavyweight, no boxe); tubo e onda (de tube e wave, no surfe). O vocábulo português amarelar ("acovardar-se") não é um termo existente na língua inglesa com este sentido, mas talvez a partir da conotação que possui a cor amarela na cultura anglo-saxônica (em inglês yellow), qual seja, "covardia", "intimidação", passou ao português com estes sentidos, o que, a ser verdadeira esta suposição, pode criar o que chamaríamos de “tradução figurada”, ou seja, a tradução de uma idéia abstrata de uma língua para uma palavra de outra língua.

Na técnica, podemos falar de computador (de computer); computador pessoal (de personal computer); micro (com pronúncia portuguesa, do inglês micro); vídeo (de video, em inglês sem acento); alta-fidelidade (de high fidelity); entrada e saída (de input e output); buraco negro (de black hole, termo da Astronomia). O caso de duplo deck (espécie de gravador para duas fitas-cassete, do inglês double cassette-deck recorder, por redução da expressão e tradução) constitui o que se poderia chamar de uma semitradução, já que parte foi traduzida (double para duplo) e parte deixada em inglês (deck). Outro exemplo é microondas (do ing. microwave).

Aqui podemos citar uma ocorrência pitoresca. Traduzindo termos técnicos, é obrigatória a pesquisa a pessoas e/ou dicionários especializados, pois às vezes são usados termos novos, decalques ou traduções (trolley, adaptado para trole; software, mantido software – no primeiro caso –; copy, decalcado em copiar; save, decalcado em salvar; – no segundo caso –; software, traduzido por programa – no terceiro caso), mas em outras ocasiões os termos são traduzidos diretamente em seu sentido (heater, traduzido por aquecedor). Um

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exemplo marcante é o que descreve as partes de uma garrafa de cima para baixo: finish, top, neck, body, foot, bottom, traduzidos, respectivamente, por acabamento, topo, pescoço, corpo, pé, fundo. Um outro exemplo curioso seria fone-de-ouvido (de earphone); interessante notar que o termo inglês headphone pode ser traduzido por fone-de-ouvido ou ser escrito como no original inglês (headphone, ou mais recentemente headset). Ainda um outro cuidado que se deve ter na tradução técnica é quanto aos chamados "falsos amigos" (falsos cognatos), ou seja, palavras que provêm do mesmo étimo, mas que, embora com aparentemente a mesma grafia, em inglês e em português possuem significados diferentes. Um exemplo é o inglês temple, que em português é o recozimento de um metal após tratamento térmico e que poderia ser confundido com o português têmpera, termo cujo equivalente em inglês é hardening, outro tratamento térmico bastante diferente do primeiro.

Alguns exemplos ilustram a total falta de necessidade da incorporação do termo original inglês ou do neologismo, devida, nestes casos, a puro pedantismo ou desconhecimento da língua portuguesa e seus recursos, como é o caso de drogadicto (do inglês drug addict, via espanhol), termo de psiquiatria perfeitamente compatível com viciado ou dependente (em relação a drogas). O mesmo ocorre com printar (do ing. print), pois o português já possui o termo imprimir.

Em nossa vida diária poderíamos citar mala-direta (oriundo de direct mail), filme (de film), leite batido (de milk shake, modernamente em desuso, em prol do termo inglês original), vaca preta (de black cow, bebida feita com sorvete e Coca-Cola), radical (em português oxítono, provindo do inglês radical, este proparoxítono, significando "ótimo", "muito bom", "o maior barato"), dentre outros.

O termo mercado, da área de propaganda, tradução direta do inglês market, curiosamente não gerou no português "mercadeiro"; para esta função o português adotou a forma marqueteiro (também grafado marketeiro), esta oriunda do inglês marketing, obviamente derivado do market inglês; no inglês não existe equivalente direto para marqueteiro. Fala-se muito também em perfil do consumidor (do inglês consumer profile).

Semelhante é o caso do verbo reportar, hoje utilizado na expressão "Eu me reporto diretamente ao Sr. Almeida". Os dicionários de regência verbal não apresentam exemplos com o verbo assim utilizado, fato que deve ter vindo do inglês report directly to somebody, expressão utilizada em Recursos Humanos, de onde também provém reporte-direto (do inglês direct report; substantivo em ambas as línguas), pessoa herarquicamente imediatamente superior a um determinado empregado. O mesmo se dá com o verbo retornar em expressões como "Vou te retornar a ligação mais tarde", o que, tudo indica, provém do inglês return a call, fato comum nesta língua. Já o caso de "Me dá um retorno disso", provavelmente oriundo do inglês, pode ter explicação no mesmo fato lingüístico relatado acima (em relação ao verbo inglês return), sendo então uma criação já feita no português, embora calcada na influência de return a call e posteriormente estendida a qualquer circunstância; ou então pode estar ligada ao termo feedback, palavra que em inglês pode ser o equivalente português de um retorno, termo técnico de eletricidade e computação, mas que, ainda em inglês, é usado em vários contextos, inclusive aquele no qual está sendo usado retorno no português moderno do Brasil, ou seja, "dar uma resposta", "responder a uma consulta", "fornecer uma informação". Também neste caso, os dicionários de regência consultados ainda não dão conta do fato aqui relatado.

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2.5 Palavras erroneamente traduzidas

Embora menos recorrentes, podemos encontrar termos em português provindos do inglês, que deveriam ter sido traduzidos por outros, mas que, tendo sido confundidos com similares da língua portuguesa, foram traduzidos erradamente e ficaram no português definitivamente em lugar de outros vocábulos que poderiam ter sido melhor aplicados. Em determinados casos, o problema foi causado por adaptação fonética por meio de palavra já existente (deuce termo usado no jogo de tênis traduzido por justo, devido à má pronúncia do termo inglês; curiosamente, algumas pessoas, inseguras quanto a qual pronúncia usar, falam algo parecido com /djust/, talvez por associação com a palavra inglesa just), e em outros por desconhecimento do significado da palavra no inglês (editor em inglês proparoxítono traduzido por editor em português oxítono).

Um exemplo aparece no tênis. Em inglês, quando o game empata, procede-se ao desempate, dizendo-se deuce, que quer dizer "estamos empatados", ou "empatou", ou "empate", ou ainda “vai a dois”, “é preciso desempatar”. O similar português, já existente em outros esportes, seria melhor de três ou vai a dois, para a solução do problema, ou igual (também iguais), ao lado do termo usado em outros esportes empate, para a situação em si (a rigor, este termo já é usado no caso em pauta); entretanto, devido a uma aproximação fonética, passou-se a falar justo quando o jogo chega a esta situação.

Em computação, o inglês utiliza o termo text editor (modernamente word processor) para designar um programa que permite redação e correção de um texto digitado. No jornalismo, em inglês, o profissional que desempenha estas funções é o editor (em português redator), sendo publisher o nosso editor. Por analogia, verteu-se text editor para o português como editor de texto, quando o certo teria sido redator de texto, que é exatamente o que faz o programa: "redação e correção de textos". No entanto, o termo editor de texto já tem suficiente autonomia no português para não permitir substituição.

O verbo correlato edit em inglês carrega o significado de "fazer correções", "compor", "montar", "cortar", tudo com relação a gravação de áudio e vídeo. Com isso, já é disseminado no Brasil o uso do termo "editar", como em "editar uma fita", "editar um programa", "editar uma música", fazendo surgirem novos profissionais de mídia: editor de programação, editor de vídeo etc. O termo edição, que normalmente aparece nos créditos (do inglês credit) de filmes e programas de TV tem relação com esta atividade.

As expressões segurar uma onda, segura essa/tua onda, entre os jovens brasileiros significam "agüentar", "suportar", "ter forças para enfrentar uma situação", no primeiro caso, e algo próximo de "prepare-se", "agüenta firme", no segundo. Provavelmente as expressões vêm do inglês catch the wave ou catch this wave, muito veiculadas nas rádios americanas, com significados vários há um trocadilho no inglês, pois wave pode ser "onda de praia" ou "onda de rádio" , mas que não incluem os que usamos no Brasil, fato que batizamos no item 2.2 de alteração semântica. Outro exemplo seria realizar, com sentido de "perceber" (do inglês realize), já usado em português até por uma famosa apresentadora de programa televisivo de entrevistas. Note-se que em inglês realize também pode ser utilizado, raramente, com o sentido de realizar (realize a project, realize a dream), mas os falantes do português aparentemente desconhecem este fato devido a seu uso restrito.

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O vocábulo shopping pode ser outro exemplo. Em português, refere-se ao local (Norte Shopping, Barra Shopping, Plaza Shopping, “vou ao shopping”), sendo que o local em inglês é shopping center. Shopping, em inglês, nas expressões acima, teria o sentido de “compras”, “ir às compras”. Este fato pode ser interpretado de outra forma: uma criação já no português, através de uma palavra inglesa (cf. próximo parágrafo).

2.6 Palavras criadas no português Neologismos

Ocasionalmente o parco e superficial aprendizado da língua inglesa por brasileiros, ou uma simples brincadeira momentânea, pode criar palavras que até provêm de vocábulos ingleses, mas que não têm similar com o mesmo significado na língua inglesa. Em alguns casos, seus criadores estão perfeitamente dentro dos limites da morfofonética e da semântica inglesas; em outros, infringem suas regras básicas. Este fato é diferente do que chamamos no item 2.2 de alteração semântica, pois os neologismos aqui referidos foram criados no Brasil e não trazidos do inglês.

Collorgate, expressão veiculada na imprensa brasileira durante o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, deriva possivelmente de Watergate (expressão usada em contexto semelhante nos EEUU) e originou outras como Irãgate (do inglês Irangate), com a partícula -gate significando "escândalo". Além disso, está dentro da conformidade da morfologia inglesa, adaptando-se facilmente ao português. Existem ainda compostos com car, club, shop, center, fashion, wear, sale, muito usados em lojas e serviços. Em muitos destes casos, o nome em questão existe em inglês, como sale isoladamente, surf wear, car wash, mas não em todos, como moda fashion, neologismo criado já dentro do português, sendo redundante se analisado em inglês (fashion já significa "moda"); o termo aqui significa "moda em uso atualmente", "moda atual".

Por outro lado, expressões como point (com sentido de "local de encontro de jovens") e footing (que em finais do século XIX e início do século XX adquiriu peso significativo no contexto sócio-lingüístico-cultural de nossa língua, vindo do francês, onde foi cunhado) não existem com o mesmo significado em inglês. Seus criadores brasileiros utilizaram os mecanismos próprios da língua inglesa, nestes exemplos palavras existentes nela, mas com sentido não encontrado no dia-a-dia anglo-saxônico. Point em português poderia ter-se originado de parte da expressão portuguesa "ponto de encontro", ponto erradamente traduzido para o inglês (em inglês o termo equivalente seria hangout, hot spot). Fato similar ocorre com shopping, via de regra usado com sentido de shopping center, "local onde se congregam várias lojas", "conglomerado comercial". Daí Norte Shopping, Off Shopping, Barra Shopping. Shopping em inglês é a atividade de compra propriamente dita, mas passou ao português como redução de shopping center, devido, é bem capaz, à tendência redutora do português, que reduz José ou Joaquim para Jô, Renata para Rê, Beatriz para Bia e automóvel para auto (estes dois últimos oriundos, eles mesmos do inglês, possivelmente através do francês). Deve-se enfatizar, entretanto, que esta tendência redutora não é exclusiva do português, como pensam muitos; a língua inglesa também recorre a este artifício incontáveis vezes, reduzindo magazine para mag, husband para hub ou hubby, president para prez, representative para rep, além de muitos outros exemplos.

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Ainda poderíamos relembrar nomes de produtos, os quais, por uma estratégia mercadológica (do inglês market, que provocou a criação do termo mercado e seus correlatos, como já vimos), possuem nomes em inglês, como Golden Cross (a opção por manter o termo em inglês foi reconhecida há tempos numa entrevista por um de seus diretores), Blue Cross, Play Center, New York City Center, Shopping Downtown, além de outros que nada têm a ver diretamente com a língua inglesa, exceto as palavras usadas, como o refrigerante Diet in, marca de guaraná, que ficou no mercado durante um certo tempo e posteriormente teve seu nome trocado (teriam os fabricantes sido alertados?). Um último exemplo pode ser o termo play, utilizado no tênis, em português, para dizer ao oponente que "pode começar", que "pode sacar", equivalente a "estou pronto", "vai", "joga"; em inglês usa-se normalmente outro termo para se referir à mesma situação: serve, ou ainda service.

3 SINTAXE

Nem só de léxico vive uma influência estrangeira, embora seja nas palavras e expressões trazidas do inglês que percebemos mais imediatamente as marcas desta língua no português, numericamente já bastante elevadas e sem previsão de interrupção. Além disso, o léxico de uma língua está mais sujeito a mudanças do que a sintaxe; esta última resiste bem mais a influências externas. No entanto, isto não quer dizer absolutamente que a sintaxe rejeite eternamente as influências de outras línguas. No nosso caso, vindas do inglês, estas influências já existem no português, só que em baixo número e para muitas pessoas gramáticos e lingüistas, inclusive despercebidas.

3.1 Preposição em fim de frase

Um desses ingressos sintáticos está no fato de algumas construções (principalmente na língua oral) já apresentarem preposições finais (devidas à regência do verbo na frase ou a complementos encerrando períodos).

É conhecida a característica marcantemente inglesa de encerrarem-se períodos com preposições, o que estilisticamente foi (e ainda o é, no âmbito da gramática tradicional) condenado durante bastante tempo nos países de língua inglesa. As construções "Whom are you talking to?" e "I don't know what she's thinking about", deveriam, de acordo com uma gramática mais formal, ser respectivamente substituídas por "To whom are you talking?" e "I don't know about what she's thinking". De qualquer forma, não se conseguiu coibir o uso dos dois primeiros exemplos, havendo uma tendência a serem considerados típicos da linguagem mais informal, ao passo que os outros são atributos de um discurso mais cuidado, provavelmente por influência do latim. 9

Este uso, pelo menos em princípio, não é abonado pelos grandes gramáticos brasileiros. Os melhores compêndios de gramática de nosso país (Rocha Lima, Gladstone Chaves de Melo, Celso Cunha) nada mencionam sobre o assunto, à exceção de Evanildo Bechara, que, ao falar sobre a posição das preposições, apresenta um exemplo de preposição em fim de frase:

Quem há de resistir?Resistir quem há de?10

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O exemplo, retirado de um poeta carioca cuja obra oscilou do Romantismo ao Parnasianismo, atesta a flexibilidade da língua portuguesa em alguns aspectos, mas não ilustra uma utilização disseminada da ocorrência lingüística. Já aqui, Luís Guimarães Júnior poderia ter recorrido ao inglês durante a escritura dos versos (o que não temos meio de provar, ao menos sem uma análise mais aprofundada de sua obra e biografia), ou ter ousado uma inversão por motivos poéticos (estilo, rima, métrica, ou outro qualquer).

Outros exemplos podem ser retirados de Moacy Cirne**, como ilustrado abaixo:

Não que o mito não possa ser apreendido através de uma abordagem científica, mas apenas que, por sua maleabilidade e imprevisibilidade, se torna mais difícil de. (p. 26)

Já as revistas em quadrinhos (ou as estórias em) implicam uma contradição (...) (p. 38)

(...) ao mostrar um profundo conhecimento da linguagem (de um dos elementos da) peculiar aos quadrinhos, Ziraldo critica a base semântica (...) (p. 48)

Por ser um dos maiores especialistas brasileiros em histórias em quadrinhos, Moacy Cirne provavelmente lê inglês fluentemente, o que pode tê-lo influenciado nas construções exemplificadas acima.

O fato é que a situação em pauta não é freqüente no português corrente, formal e informal.

Entretanto, já se tem ouvido em muitos contextos a emissão de períodos encerrados por preposição, tanto em frases completas quanto em fragmentos. Um exemplo coletado de uma emissora de televisão nos dá: "Que tipo de perfil esta gente está em busca de?"11

Além disso, já são comuns nas nossas falas diárias diálogos como os que aparecem transcritos a seguir:

a) A: Você vai à praia amanhã? B: Estou a fim de. ou Estou pensando em.

b) A: Você chegou a ir a Olinda? B: Não, só passamos por.

c) A: Já fez o concurso? B: Estou me preparando para.

d) A: Já resolveu o problema com sua mulher? B: Falamos sobre.

Este caso é complexo e demanda investigação mais profunda. A utilização de preposições no final dos períodos acima pode ter origem no inglês de maneira geral (visto que a construção é típica deste idioma), mas nos itens (a) e (d) o inglês necessitaria do pronome “it” após a preposição: (a) I feel like it; I’m thinking about it; (d) We talked about it. De qualquer modo, este tipo de construção no português é mais comum na língua oral.

3.2 Passivização excessiva

Até há bem pouco tempo, a voz passiva no português era reservada a um certo número de verbos em um certo número de casos, especialmente na área semântica de "perguntar" e "informar". Por exemplo, as formas "Fui consultado a respeito", "Ela foi informada do assunto" e "Somos sempre avisados com antecedência" sempre foram

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comuns em português. A norma culta do português estabelece que somente os verbos transitivos diretos podem ser utilizados na voz passiva (“O relatório foi preparado”, “O fato foi comunicado ao diretor”) e ainda abona as construções acima, ao lado de formas como “Sou sempre obedecido”.

Hoje em dia, no entanto, encontramos voz passiva em verbos que antes não a utilizavam, como, por exemplo, em, “Não fui copiado (no e-mail)”, "Ela foi perguntada por um jornalista"12, "Marcílio foi indagado diversas vezes"13, "Sanches foi comunicado da decisão"14 etc. É bastante plausível supor que, com toda a influência norte-americana no Brasil e numa época em que cada vez mais pessoas aprendem o inglês (e convivem com ele, em especial no âmbito profissional), tal mudança seja uma incorporação de um fato lingüístico corriqueiro no inglês, qual seja, a possibilidade de um grande número de verbos serem postos na voz passiva. Frases como "She was asked several questions", “They've been sent a cable" e até, estranho ao português pelo menos por enquanto , "I was told not to interfere" são perfeitamente possíveis e usadas naturalmente no idioma inglês, embora a gramática normativa do inglês em tese desaconselhe o uso excessivo de voz passiva.

As gramáticas da língua portuguesa consultadas nada relatam sobre o assunto. Os dicionários de regência verbal também nada esclarecem especificamente sobre este tópico, mas quanto ao verbo perguntar já se encontram registrados dois exemplos que admitem seu uso na forma como queremos atribuir à influência do inglês. O primeiro está em Luft ("O infrator é perguntado sobre as circunstâncias da infração."15) e o segundo em Fernandes ("E perguntado pela causa, respondeu..."16). A verdade é que as ocorrências antes mencionadas não são usuais no português do Brasil, sendo a voz passiva mais geralmente aplicada só a determinados verbos. Não se veja aqui uma crítica de cunho purista ao emprego de tais construções, mas tão-somente a tentativa de descobrir sua origem. 17

Analisando-se os exemplos acima, vemos que a influência do inglês, caso se confirme como a causa do fato lingüístico aqui apontado, indica uma tendência: esta construção no português ocorre com verbos ao mesmo tempo transitivos e intransitivos. A norma culta do português, como vimos, permite a ocorrência da passiva com verbos transitivos diretos; o uso, no entanto, vem consagrando a extensão a outros tipos de verbos, e este trabalho sugere que esta mudança se deve à influência do inglês, idioma que em princípio não apresenta restrições ao uso da voz passiva em termos do tipo de verbo empregado. O inglês, assim como o português, aconselha evitar o uso da voz passiva nos textos (talvez por razões estilísticas), exceto na linguagem científica, para existir a necessária impessoalidade no texto.

3.3 Gerundismo

Para desespero dos puristas e normativistas do português, formas como “Vou estar transferindo sua ligação”, “Estarei enviando um fax em seguida”, “Nesta reunião vamos estar tratando da parte financeira” e “Vou estar pedindo que a senhora esteja me enviando o recibo” entraram no português do Brasil e aqui devem estar permanecendo por algum tempo. Sem entrar no mérito de ser construção correta ou não do ponto de vista da gramática normativa (em muitos aspectos anacrônica, diga-se de passagem), o fato é que este tipo de construção, correntemente chamado de gerundismo, parece ter origem na área de telemarketing [sic] e veio para o Brasil através do inglês. A construção equivalente em inglês não é estranha à língua, embora não fosse utilizada em excesso

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até aproximadamente 10 anos atrás, mas atualmente é bastante corriqueira entre os operadores de telemarketing, atendentes de empresas de cartão de crédito, aeroportos e empresas em geral (especialmente em telefonemas). Por ser facilmente traduzida de forma literal para o português, a construção tem se tornado bastante comum no Brasil, principalmente nas mesmas áreas profissionais. Não é possível dizer neste momento se o modismo permanecerá no português do Brasil e, em caso afirmativo, por quanto tempo; entretanto, deve-se observar que esta é somente uma dentre outras influências lingüísticas e que não necessariamente contribui para “empobrecer” ou “denegrir” nosso idioma. Tudo indica que é um modismo que se tornou clichê e ainda pode desaparecer. Ou não, mas sem que isto traga prejuízos irreversíveis e nocivos à língua portuguesa e à cultura nacional.

4 CONCLUSÕES

Em primeiro lugar, é importante notar que não é privilégio do português a incorporação de palavras e usos inerentes a outra língua. Muitos idiomas, em certas fases de sua existência, incorporam vocábulos e construções de outros. Como ilustração, citemos o próprio inglês, que adotou várias palavras e construções latinas, desde a invasão dos romanos em 43 d.C., passando pela conquista normanda de 1066 a 1200 (quando muitas palavras de origem latina passaram ao inglês via francês), até a Renascença (1500 a 1650), quando o reviver autores greco-latinos trouxe inúmeros vocábulos latinos, não só diretamente mas também através de neologismos criados para satisfazer necessidades estilísticas e tecnológicas, além de construções frasais inspiradas no latim. Não é à toa que aproximadamente 60 % dos vocábulos do inglês moderno provêm, direta ou indiretamente do latim, sem contar aqueles que ingressaram no inglês por intermédio de outras línguas. Nem por isso deixa o idioma de Shakespeare de ser digno de respeito; a incorporação de influências de outras línguas retrata o grau de intercâmbio cultural existente no mundo, além do nível de "globalização" vigente em dada época. Destarte, uma influência deste tipo jamais poderá ser preconceituosamente tachada de nociva à língua que a acolhe; não se trata em absoluto de decadência ou deterioração, e sim de maleabilidade lingüística. Lembre-se aqui que a própria Filologia evita hoje o termo latim vulgar, substituindo-o por latim falado, em reconhecimento ao dinamismo inerente a todas as línguas.

O francês atual, embora ainda bastante refratário a influências estrangeiras, não consegue evitar a penetração de vocábulos ingleses, sobretudo nas áreas técnica e científica, além do que o dia-a-dia está impregnado de expressões também oriundas do inglês. Exemplificando, embora o francês queira impor o vocábulo baladeur, o termo walkman é bastante empregado. O mesmo se dá com disque compact, tentando sobrepujar compact disc; com logiciel, tentando sobrepor-se a software; e com SIDA, versão francesa de AIDS, uma das poucas instâncias em que prevaleceu o purismo francófono. (Ressalte-se que em Portugal, o termo usado também é SIDA, talvez até pela proximidade com a França; o mesmo ocorre com ecrã, do francês écran.) Sem falar em exemplos como week-end, jogging e camping, de uso disseminado, para desespero dos puristas franceses. Sem falar também nos neologismos criados em francês a partir da língua inglesa, mas inexistentes nesta última, como footing, fato semelhante ao que ocorre no português do Brasil, claramente uma influência francesa da virada dos séculos XIX e XX, como já vimos anteriormente.

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Vale ressaltar que o francês possui inúmeros dicionários de anglicismos, o que atesta a enorme influência do inglês na língua de Molière. Vale lembrar também que a influência do inglês no português hoje é bem semelhante à do francês no século XIX no Brasil, como prova o grande número de dicionários de galicismos em português. Vocábulos como arrivista, carnê, coquete, flambado, plissado, balé, ao lado de dezenas de outros vindos do francês não empobreceram o português nem denegriram a cultura nacional, embora contemporâneos de Machado de Assis também tenham reagido figadalmente à influência estrangeira, neste caso, francesa.

Por ser o inglês hoje uma língua universal, é natural que empreste inúmeros vocábulos a outras, sem se excetuar o português. O círculo vicioso se completa quando acompanhando a língua inglesa vem também a cultura e arte norte-americanas (além das de outros países de língua inglesa) que, por sua vez, trazem novos termos designativos de hábitos e costumes anglo-saxões. Tudo isto faz com que o português (mas não só ele) seja um receptáculo para novos vocábulos e até construções sintáticas.

Em segundo lugar, vale ressaltar que a chegada de uma palavra estrangeira, aliada aos processos de formação lexical do próprio português, provoca a criação de novas palavras, aumentando assim o repertório das palavras portuguesas de origem, no caso aqui analisado, inglesa. Como exemplo, os termos xerox, printer, reset e plot não somente originaram xerocar, printar, ressetar e plotar (o que atesta que a nossa conjugação verbal de maior produtividade é a primeira), como também incorporaram o termo xerox, além dos adjetivos derivados xerocado, printado, ressetado e plotado, sendo que este último ainda nos deu plotador, programa e/ou dispositivo de plotar. Fato similar ocorreu a partir de microcomputer, em inglês não reduzido a micro (o inglês prefere PC), passando ao português como microcomputador e abreviadamente micro, gerando micrar, micragem e até micreiro. Neste ponto relembramos a advertência constante da introdução deste trabalho, segundo a qual nos ativemos ao português do Brasil, porquanto uma mesma palavra chegando a Portugal ou ao Brasil pode gerar vocábulos diversos nos dois países, ou ainda significados diferentes para a mesma palavra importada. É o caso de xerox, que em Portugal é a máquina, sendo o produto chamado de uma cópia xerográfica; no Brasil, além da máquina, xerox normalmente é a cópia ou, capitalizado, a marca e/ou empresa (também em Portugal, neste último caso). Inúmeras outras instâncias podem ser obtidas da área de informática, onde, só para citar algumas, o arquivo brasileiro é o ficheiro português (do inglês file); um aplicativo é uma aplicação (do inglês program ou application; no Brasil também se usa o termo programa); o gerenciador de arquivos é o gestor de ficheiros (do inglês file manager); o mouse é rato (do inglês mouse); salvar é guardar (do inglês save); zoom é focar (do inglês zoom; note-se que no Brasil, zoom será sempre substantivo, como em "dar um zoom", ao passo que em Portugal a expressão mais corrente se utiliza do verbo focar, recorrendo em alguns casos ao substantivo foco). Pelos exemplos acima, vê-se a preferência do português de Portugal pelo uso de vocábulos já existentes na língua ou neologismos.

Há outras influências do inglês no português que não foram mencionadas aqui, mas duas últimas se fazem importantes. Uma é o fato de se utilizar o ponto decimal ao invés da vírgula. Por exemplo, as quantidades 1.2 e 0.379 em inglês deveriam ser escritas 1,2 e 0,379, respectivamente, em português. Entretanto, a tendência é utilizar-se a maneira inglesa cada vez mais, talvez devido à importação maciça de equipamentos e acessórios de procedência americana, inglesa ou de países que utilizem esta notação numérica. A outra influência é incluir entre vírgulas a idade de um indivíduo em texto jornalístico (Aline, nove, foi encontrada: ou com algarismos: Aline, 9, foi encontrada); tais construções são

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típicas de textos jornalísticos americanos e ingleses e estão se espalhando em publicações de outros países.

Deve-se frisar mais uma vez que o presente trabalho não se propõe julgar como certo ou errado o fato de o português receber tantas adições por intermédio da língua inglesa. O que se buscou fazer aqui foi simplesmente tentar apontar as origens o mais exato possível destas contribuições. O julgamento do mérito da questão certo x errado não interessa ao lingüista ou ao filólogo, para quem só interessa a história da língua. Na realidade, tendo em vista que uma língua se destina primordialmente à comunicação, é ponto pacífico que ela estará sempre sujeita a mudanças, por vezes causadas por seus próprios falantes, por outras devido a influências externas, uma das quais a abertura a aspectos de outra língua. Com efeito, é fácil verificar que esta influência sempre se deu; se assim não fosse, o inglês não conteria aproximadamente 60 % de vocábulos "estranhos" ao tronco germânico, nem o português apresentaria em seu léxico um sem-número de galicismos. Se o raciocínio purista for levado ao extremo, poderemos chegar a uma conclusão perigosa (e pitoresca): no caso do português, se a prioridade fosse manter a língua "pura", "isenta de contaminações estrangeiras", talvez devêssemos ainda falar latim (ou tupi-guarani, como queria Policarpo Quaresma); nem deveriam existir línguas neolatinas. Além disso, cabe a pergunta aos que defendem o purismo lingüístico: o que fazer de "estrangeirismos" tais como ipso facto, mutatis mutandis, i.e., e.g., grosso modo, ipsis litteris, et alii, flanar, alta costura, restaurante, sutiã, prêt-a-porter, whisky, rock, (roque, roquenrou), bravo!, pizza (pizzaria) e centenas de outros da mesma ordem? Existe aí claramente um privilégio cultural, ou seja, as "contaminações" latinas e francesas podem e devem ser aceitas, mas não as de outras línguas. Num mundo globalizado (aliás termo oriundo do inglês globalized, globalization) como o atual, jamais se conseguirá evitar a entrada de outras culturas e influências, quaisquer que sejam, o que na verdade sempre ocorreu em certa medida, mas que será cada vez mais acentuado devido à tão falada globalização. No mais, talvez estejamos diante de uma inversão irreversível de valores: quanto mais flexibilidade possuir a língua, de modo a assimilar todas as influências externas, seja criando palavras novas, traduzindo outras, adaptando ainda outras, melhores resultados obterão seus falantes na comunicação cada vez mais intensa e diversificada entre os povos.

À guisa de registro, mencione-se que o purismo lingüístico ainda existente em alguns guetos intelectuais parece ter um cunho mais ufanista e nacionalista, e por que não político, do que lingüístico. Como já se apontou acima, citações em inglês e francês, palavras de origem francesa (uma herança do século XIX e do privilégio do francês como língua “universal”, da intelectualidade, da modernidade dos costumes) e expressões trazidas de outras línguas têm seu uso encorajado em contextos ditos sofisticados para se manter o “bom tom” (temo, aliás, originário do francês bon ton). Critica-se via de regra a “influência ianque” (ou deveríamos grafar yanque? lembrando que o termo é um estrangeirismo), a “dominação americana”, e em geral fala-se, direta ou indiretamente, dos Estados Unidos. Esquece-se, no entanto, que aquele não é o único país de língua inglesa a contribuir com modismos e, se é que isto é verdade, a “impor” sua cultura. Os Beatles eram ingleses, assim como uma infinidade de bandas de rock and roll (ou roque); a informática é trazida ao Brasil tanto dos EUA quanto da Inglaterra, Austrália e outros países; os acordos econômicos e tecnológicos são celebrados com diversos países de língua inglesa; diversão, comidas e bebidas com nomes ingleses vêm de diversos países e não somente dos EUA. E o que dizer de cuscuz, zero, alface, alfaiate, azulejo (do árabe); crachá, crochê, tricô (do francês); prima-dona, nhoque, lasanha, macarrão (do italiano); samba, umbanda, macumba (de línguas africanas); gueixa, samurai, mangá, caratê, saquê (do japonês)? Vale notar que em diversas épocas as nações recebem

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influências diversas que acabam por ter reflexo no idioma e isto é fruto do compartilhamento do saber e da cultura, do intercâmbio entre os seres humanos. Em termos lingüísticos, tais influências não são a priori nocivas; pelo contrário, podem ser interpretadas como enriquecimento do idioma.

Em resumo, seja por questões estilísticas, por comodidade, por mera influência, por modismo ou por necessidade, as línguas estarão sempre a adotar palavras originárias de outros idiomas. Em certos casos até por modismo, por ser um must, para se ficar in! Isto hodiernamente, pois no passado, com a Belle Époque invadindo o Brasil e trazendo o francês como língua com ares de universal (que os intelectuais da época idolatravam e os puristas ortodoxos execravam), ficava-se au courant!

Este pequeno trabalho tentou demonstrar que a classificação das importações lingüísticas meramente em empréstimo e decalque não satisfaz à variedade de casos em que se dão estas importações. O assunto parece ser bem mais complexo e requer pesquisa mais detalhada. Tal estudo se faz necessário, não somente para entender mais precisamente os mecanismos da inter-relação entre as línguas, mas também para auxiliar os profissionais do idioma (professores, tradutores, escritores) a utilizarem os idiomas que dominam com mais conhecimento de sua sincronia e diacronia.

6 NOTAS

*"Porque a Tradutologia Precisa do Sociolingüista", Stella Maris Bortoni Ricardo, in Estudos de Tradutologia 1, Delton de Mattos, editor, p. 61. Brasília, Kontakt, 1981.1Figueiredo, 1938 e 1928.2Freire, 1921.3Câmara Júnior, 1988.4Dubois, s.d.5Dubois, p. 209.6Dubois, p. 210.7Dubois, p. 165.7aBiderman8walkmen, O Globo, 26/11/92, p. 25; walkmans, plural usual nos jornais.9Quirk, p. 300.10Luís Guimarães Júnior, citado em Bechara, p. 158.** Cirne, 1973.11Canal 6, Rede Manchete, programa jornalístico, em 30/09/92. A ocorrência registrada foi uma pergunta de um entrevistador a um entrevistado.12O Estado de São Paulo, 27/10/92, p. 10.13Folha de São Paulo, 27/11/92, p. 8.14Folha de São Paulo, 22/11/92, p. 1-4.15Luft, p. 400.16Fernandes, p. 458.17Esta observação vale também para todos os itens analisados neste trabalho, cujo objetivo é, etimológica e filologicamente, tentar atinar com a procedência dos vocábulos e usos aqui discutidos.

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5 REFERÊNCIAS

1 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Vocabulário Ortográfico da LínguaPortuguesa. 1 ed., 1ª impressão. Rio de Janeiro: Bloch, 1981.

2 AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 2 ed.,5 vol. Rio de Janeiro: Delta, 1970.

3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 3 ed. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1987.

4 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. O conhecimento, a terminologia e o dicionário. Cienc. Cult. [online]. Apr./June 2006, vol.58, no.2 [cited 16 October 2007], p. 35-37. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252006000200014&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0009-6725. Acessado em: 16 out. 2007, 11:50.

5 CAMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Dicionário de Lingüística e Gramática.14 ed. Petrópolis: Vozes, 1988.

6 – CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

7 DAUZAT, Albert, et alii. Nouveau Dictionnaire Étimologique et Historique.Paris: Larousse, 1964.

8 DUBOIS, Jean, et alii. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, s.d.

9 FERNANDES, Francisco. Dicionário de Verbos e Regimes. 35 ed. Rio deJaneiro: Editora Globo, 1987.

10 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.2 ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

11 FIGUEIREDO, Candido de. Estrangeirismos. Vol. 1, 3 ed.; vol. 2, 3 ed. Lisboa:Livraria Clássica Editora, 1938 (vol. 1) e 1928 (vol. 2).

12 FREIRE, Laudelino. Gallicismos. Rio de Janeiro: S. A. Litho-TypographiaFluminense, 1921.

13 HOUAISS, Antônio, editor. Dicionário Inglês-Português. 1 ed. Rio de Janeiro:Record, 1982.

14 LUFT, Celso Pedro. Dicionário Prático de Regência Verbal. São Paulo: Ática, 1987.

15 MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 1 ed.Lisboa: Editorial Confluência, 1956.

16 NASCENTES, Antenor. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:Academia Brasileira de Letras, 1943.

17 QUIRK, Randolph, et alii. A Grammar of Contemporary English. 14 impressão.

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18 REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la Lengua Española. 20 ed.Madri: 1984.

19 ROBERT, Paul. Micro Robert Dictionnaire du Français Primordial. Edição revista e atualizada. Paris: Le Robert, 1981.

20 SILVA, António de Morais. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 10 ed. revista, corrigida, muito aumentada e atualizada. Lisboa: Editorial Confluência, 1949.

21 THE AMERICAN HERITAGE DICTIONARY OF THE ENGLISH LANGUAGE. Newcollege edition. Boston: Houghton Mifflin Company, 1976.

22 WEBSTER'S THIRD NEW INTERNATIONAL DICTIONARY. Edição completa.Massachussetts, Merriam-Webster Inc., 1986.

NOTA: Este texto precisa ser atualizado constantemente, em termos de exemplos, devido ao constante aporte de palavras do inglês.Comentários são bem-vindos: [email protected], julho de 2010.

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