Iniciação ao Direito Romano (1996) - MARIO CURTIS GIORDANI

download Iniciação ao Direito Romano (1996) - MARIO CURTIS GIORDANI

of 174

Transcript of Iniciação ao Direito Romano (1996) - MARIO CURTIS GIORDANI

MRIO CURTIS GIORDANI

INICIAO AO

DIREITO ROMANO3 EDIO

MRIO CURTIS GIORDANITitular de Direito Romano da Faculdade de Direito Candido Mendes, Rio de Janeiro

INICIAO AO DIREITO ROMANO

3 EDIO

EDITORA LUMEN JURIS

Copyright Mrio Curtis Giordani Coordenao Editorial: Mrcia Regina de Jesus Campos Capa: Maaliaiui Informtica Ltda Tel : 242-4017 Impresso: Grfica Tavares & Tristo

Proibida a reproduo (Lei n 5.988/73)

1996

Impresso no Brasil

Todos us direitos reservados EDITORA LUMEN JURIS LTDA Rua da Assemblia, 36 Salas 203/204 Tels: 531-1790 CEP 20011Rio de Janeiro RJ

MEMRIA DO EMINENTE LATINISTA E HELENISTA

PROFESSOR BALTASAR XAVIER DE ANDRADE E SILVA

Sincera homenagem do autor.

APRESENTAO

Nesta breve Iniciao ao Direito Romano procuramos focalizar, de maneira sucinta, aspectos de alguns dos temas que consideramos indispensveis preparao para um posterior e aprofundado estudo do Direito Romano. A exposio revestiu um cunho didtico, o que explica, por exemplo, a ocorrncia de repeties quando, em diferentes captulos, so abordados pontos idnticos ou afins. Repetitio est mater studiorum, repetia com freqncia um saudoso mestre. Uma iniciao ao Direito Romano, por mais modesta que seja, no dispensa evidentemente a referncia a uma bibliografia especializada, ainda que sumria. Os autores consultados e citados encontram-se mencionados nas notas referentes ao texto e na relao bibliogrfica. Chamamos a ateno do leitor para a importncia dessas notas, pois a encontrar observaes esclarecedoras e at mesmo opinies divergentes. Procuramos tambm propiciar ao leitor um contato direto com as prprias fontes do Direito Romano reproduzindo numerosos textos latinos com a respectiva traduo.

O Autor

OBRAS PUBLICADAS DO AUTOR,

LIVROS

Histria da Ao Social da Igreja no Mundo Antigo. (Biblioteca de Cultura Catlica) - Vozes, 1959. Histria da Antigidade Oriental -17 edio - Vozes, 1963. Histria da Grcia 3 edio - Vozes, 1967. Histria de Roma 1 edio - Vozes, 1965. Histria do Imprio Bizantino 2 edio - Vozes, 1968. Histria dos Reinos Brbaros I - Vozes, 1970. Histria dos Reinos Brbaros II - Vozes, 1972. Histria do Mundo Feudal I - 2 edio - Vozes, 1973. Histria do Mundo Feudal II - 2 tomos - Vozes, 1982 e 1983. Histria do Mundo rabe - Vozes, 1976. Histria da frica - Vozes, 1985. Direito Penal Romano Forense, 1982. Iniciao ao Existencialismo Freitas Bastos, 1976.

ARTIGOS

O professor catlico em face do Ensino da Histria. (Estudo publicado na revista Vozes de abril, junho e julho de 1958). Origem da Humanidade Luz das Cincias Biolgicas. (Publicado na revista Vozes de agosto e de setembro de 1958 ). Origem da Humanidade Luz da Filosofia. (Publicado na revista Vozes de outubro e de novembro de 1958 ). Origem da Humanidade Luz da Teologia. (Revista Vozes de dezembro de 1958 ). A Bblia e a Histria do Oriente Antigo. (Publicado na revista Vozes de janeiro de 1959). Dilvio e Torre de Babel. (Publicado na revista Vozes de fevereiro de 1959).

ESTUDOS DE HISTRIA DO DIREITO

A Religio nas Constituies do Prximo e Mdio Oriente. (Publicado na revista Vozes de abril de 1959). O Direito Social nas Constituies dos Pases rabes. (Publicado na revista Vozes de maio de 1959). A Compra e Venda na Antiga Mesopotmia. (Publicado na revista Vozes de julho de 1959). O Direito Penal entre os Povos Antigos do Oriente Prximo. (Publicado na revista Vozes de setembro de 1959). O Direito Penal entre os Hebreus. (Publicado na revista Vozes de julho de 1960). A Greve do Direito Europeu Contemporneo. (Publicado na revista Vozes de abril de 1960). A Liberdade de Ensino e a Constituio da Guanabara. (Publicado na revista Vozes de agosto de 1961 ). So Toms de Aquino e o Direito Romano - in Estudos Jurdicos em Homenagem a Caio Mario da Silva Pereira Forense, 1984. O Novo Cdigo de Direito Cannico em sua Perspectiva Histrica, - Revista Forense, vol. 284.

ESTUDOS DE HISTRIA DA FILOSOFIA

Breve Introduo ao Existencialismo. (Publicado na revista Vozes de maro de 1962). Kierkegaard, Pensador Religioso. (Publicado na revista Vozes de maio de 1962 ). Heidegger, o Filsofo em Busca do Sentido do Ser, (Publicado na revista Vozes de agosto de 1962). Jaspers, o Filsofo da Transcendncia 1ndefinvl. (Publicado na revista Vozes de junho de 1962). Sartre; o Filsofo do Ser e do Nada. (Publicado na revista Vozes de setembro de 1962). Gabriel Marcel, o Filsofo do Problema e do Ministrio. (Publicado na revista Vozes de outubro de 1962 ). Concluses sobre o Existencialismo. (Publicado na revista Vozes de dezembro de 1962). Husserl, o Filsofo das Essncias Puras. (Publicado na revista Vozes de outubro de 1964). Farias Brito, o Apstolo da Filosofia. (Publicado na revista Vozes de novembro de 1964).

SUMRIOCAPTULO I NOO DE DIREITO ROMANO. INFLUNCIAS RECEBIDASNOO DE DIREITO ROMANO A LONGA VIGNCIA DO DIREITO ROMANO HISTRIA INTERNA E HISTRIA EXTERNA INFLUNCIAS NA EVOLUO DO DIREITO ROMANO INFLUNCIAS ORIENTAIS INFLUNCIAS DA CIVILIZAO GREGA INFLUNCIAS DO CRISTIANISMO

11 1 2 3 3 6 11

CAPTULO II ALGUNS TRAOS CARACTERSTICOS DO DIREITO ROMANOFRUTO DE UM TRABALHO SRIO DE JURISTAS E PRETORES FALTA DE UNIDADE. TRADICIONALISMO REALISMO CASUSMO INDIVIDUALISMO? DESIGUALDADE OUTRAS CARACTERSTICAS

1717 17 18 19 19 20 21

CAPTULO III UTILIDADE DO ESTUDO DO DIREITO ROMANOUTILIDADE DE ORDEM CULTURAL UTILIDADE DE ORDEM PRTICA

2222 26

CAPTULO IV DISCIPLINAS AUXILIARESLATIM HISTRIA DE ROMA EPIGRAFIA PAPIROLOGIA

2828 29 30 33

CAPTULO V ALGUMAS NOES ELEMENTARESO VOCBULO JUS JURISPRUDENTIA DEFINIO DE DIREITO AEQUITAS JUS E FAS MORAL E DIREITO DIVISES DO DIREITO

3737 38 39 39 40 41 43

Jus scriptum e Jus non scriptum Jus Civile Jus honorarium Jus Constitutionum Jus Gentium Jus Naturale Jus Singulare e Jus Communae Jus publicum e Jus privatum

43 44 45 48 49 52 55 56

CAPTULO VI FATOS E ATOS JURDICOSNOES GERAIS NEGCIO JURDICO REQUISITOS GERAIS DO NEGCIO JURDICO Vicios da vontade Coao (Vis, metus) ELEMENTOS ACIDENTAIS DO NEGCIO JURDICO REPRESENTAO

5959 59 61 62 65 65 69

CAPTULO VII ESTRUTURA POLTICAREALEZA Rei Senado Comicios Curiatos REPBLICA Magistraturas Imperium Magistrados cum imperio Magistrados sine imperio Edilidade Questura Tribunato da plebe O Senado Os Comicios Comicios curiatos Comicios centuriatos Comicios tributos PRINCIPADO Poderes de Otvio Dominato AS PROVNCIAS As provincias na Repblica As Provncias no Imprio RELAES INTERNACIONAIS

7373 74 74 75 75 76 76 78 79 79 80 80 81 82 82 82 84 85 85 88 89 90 90 91

CAPTULO VIII FONTES DO DIREITO ROMANONOO DE FONTE ORIGENS

9494 96

Costume ANTIGO DIREITO Lei das XII Tbuas Legislao posterior Lei das XII Tbuas PERODO CLSSICO Leis Costume Editos dos Magistrados Responsa Prudentium Senatusconsultos Constituies Imperiais PERODO DO BAIXO IMPRIO OU BIZANTINO Leges antes de Justiniano A jurisprudncia no periodo ps-clssico A lei das citaes Compilaes de Justiniano O 1 Cdigo O Digesto (Pandectas) As Institutas O segundo Cdigo Novelas Antinomias

96 97 97 99 99 99 103 104 106 110 111 113 113 114 115 116 117 117 119 119 120 120

CAPTULO IX INTERPRETATIONOES GERAIS A INTERPRETAO NO DIREITO ROMANO

121121 124

BIBLIOGRAFIA NOTAS

134 139

Captulo I NOO DE DIREITO ROMANO. INFLUNCIAS RECEBIDAS

NOO DE DIREITO ROMANOPodemos definir o Direito Romano como o conjunto de normas jurdicas que regeram o povo romano nas vrias pocas de sua Histria, desde as origens de Roma at a morte de Justiniano, imperador do Oriente, em 565 da era crist 1 . Estudando a Histria da Educao em Roma, o historiador Marrou sublinha que, no campo do ensino jurdico, cessa o paralelismo entre as escolas gregas e latinas : Abandonando aos gregos a filosofia e (ao menos por muito tempo) a medicina, os romanos criaram com suas escolas de direito um tipo de ensino superior original. Esta originalidade provm evidentemente do objeto desse ensino: o direito romano que, como acentua, ainda, Marrou, representa o aparecimento de uma forma nova de cultura, de um tipo de esprito que o mundo grego no havia de modo algum pressentido 2 . comum salientar-se que, enquanto a Grcia antiga notabilizou-se, entre outras caractersticas, pela vocao especulativa, cultora da idolatria da razo, que deu ao mundo ocidental a Filosofia, Roma, impregnada de um senso prtico, criou um admirvel ordenamento jurdico da sociedade, que reflete to bem os traos marcantes do gnio romano: a gravitas (senso de responsabilidade), a pietas (expresso da obedincia autoridade tanto divina como humana) e a simplicitas (a qualidade do homem que v claramente as coisas e as v tais como so). Kaser atribui aos dotes do povo romano a magnitude e a importncia do Direito Romano privado: A magnitude do Direito Romano privado e sua importante misso histrica devem-se aos dotes do povo de Roma para o Direito, sua constante ateno para com as realidades vitais e a um sentimento jurdico educado, depurado com o transcurso do tempo. 3 Compreende-se a magnitude dessa criao original ao gnio romano quando se considera que o Direito Romano chegou a ser, na palavra de Jhering, como o cristianismo, um elemento de civilizao moderna 4 .

A LONGA VIGNCIA DO DIREITO ROMANOAs origens, a evoluo e, finalmente, a reinterpretao e atualizao do Direito Romano nas compilaes justinianas no sculo VI P. C. abrangem um multissecular espao de tempo em que os institutos jurdicos surgiram, desenvolveram-se e sofreram modificaes, algumas to profundas que os tornaram quase irreconhecveis ou simplesmente extinguiram-nos. Compreende-se, assim, que o Direito Romano no oferea em seu conjunto uma unidade monoltica. Como anota Margadant, frases como: no Direito Romano encontramos a seguinte regra... sugerem falsamente uma unidade que no existe 5 . A diversidade do Direito Romano encontra fcil explicao em numerosos fatores que, atravs do tempo, influram direta ou

1

indiretamente na estrutura dos institutos jurdicos. Essa vasta gama de fatores inclui desde os acontecimentos polticos, econmicos, sociais, religiosos que assinalaram as diferentes fases da Histria de Roma at a intensa atuao dos jurisconsultos das mais diferentes pocas, o profcuo trabalho dos pretores e as normas jurdicas emanadas de fontes to diversas como os Comcios, o Senado e o Imperador.

HISTRIA INTERNA E HISTRIA EXTERNAO filsofo alemo Leibniz (+ 1716) distinguiu, no estudo do Direito Romano, entre Histria Externa e Histria Interna. Nem todos os autores esto acordes em aceitar esta diviso e os que a adotam divergem no que tange a seu sentido exato e respectiva periodizao. A Histria Externa tem por objeto o estudo das instituies polticas e sua atuao como fontes produtoras do direito; a Histria Interna visa a conhecer os institutos do direito privado em sua formao e ulteriores desenvolvimentos. A periodizao da Histria Externa do Direito Romano coincide com a da Histria de Roma: 6Realeza (da fundao de Roma at o incio da Repblica em 510 a.C.). Repblica (de 510 a. C. at a batalha de Actium, 31 a. C. ). Imprio subdividido em: a) Principado (do incio do reinado de Augusto at o reinado de Diocleciano). No principado o imperador o primeiro (princeps) dos cidados, mas submetido s leis como os demais. b) Dominato (do reinado de Diocleciano (284-305) at a morte de Justiniano em 565).

O imperador no mais o primeiro dos cidados, mas o senhor (dominus). Este qualificativo j exigido anteriormente torna-se obrigatrio por ordem de Diocleciano. Observe-se que, da Histria de Roma, dois acontecimentos devem ser lembrados: em 395, opera-se a diviso definitiva do Imprio em Imprio Romano do Ocidente e Imprio Romano do Oriente. Em 476, o primeiro sucumbe com a deposio de seu ltimo imperador, Rmulo Augstulo. Entre outras, podemos anotar a seguinte periodizao da Histria Interna : 71. 2. 3. 4. Perodo das origens (coincide com a Realeza). Perodo do antigo Direito (do incio da Repblica at a poca dos Gracos segunda metade do II sculo a. C.). Perodo clssico (da poca dos Gracos at Diocleciano ). Perodo ps-clssico, romano-helnico ou bizantino (de Diocleciano at a morte de Justiniano).

No se deve confundir perodo bizantino da Histria do Direito Romano com Direito Bizantino, isto , o Direito que se desenvolveu no Imprio Romano do Oriente, aps a morte de Justiniano. 8

2

INFLUNCIAS NA EVOLUO DO DIREITO ROMANOInserido no importante quadro da Histria de Roma, o Direito Romano est sujeito atravs dos numerosos sculos a um longo desenvolvimento que se de um lado conserva uma perene continuidade a partir de suas origens, apresenta, de outro lado, uma ampla e intensa variedade caracterizada por justaposies e estratificaes e que ,leva da extrema simplicidade primitiva mais vasta complexidade 9 . No estudo dessa longa e complexa evoluo histrica do Direito Romano constitui um aspecto interessante a indagao sobre se teria havido e, em caso positivo, at onde se teriam feito sentir influncias de outros sistemas jurdicos ou de outras manifestaes culturais estranhas ao povo romano. No cabe evidentemente, dentro dos estreitos limites da presente obra, aprofundar um tema to interessante e que j despertou entre romanistas os mais vivos debates. Pretendemos, apenas, abordar resumidamente trs problemas: 1. Influncia dos Direitos Orientais; 2. Influncia da Civilizao Grega; 3. Influncia do Cristianismo.

INFLUNCIAS ORIENTAISAs descobertas arqueolgicas no Oriente Prximo revelaram a existncia de rico material de contedo jurdico desde os cdigos legislativos (entre os quais deve-se destacar o famoso Cdigo de Hamurabi) at contratos redigidos em milhares de tabletes de argila 10 . Compreende-se que a decifrao e o estudo de toda essa vasta documentao de contedo jurdico (na qual deve ser includa tambm a grande quantidade de papiros) tenha chamado a ateno no s dos historiadores, de um modo geral, mas dos especialistas em Histria do Direito e, de modo muito particular, dos romanistas. Ao lado do desenvolvimento do estudo do Direito Comparado surge entre alguns autores a tendncia para explicar as origens e a evoluo do Direito Romano por influncias de outros sistemas jurdicos. Volterra sintetiza a histria dos estudos sobre a influncia dos Direitos Orientais no Direito Romano, na primeira parte de sua obra Diritto Romano e Diritti Orientali. Alis a preocupao em comparar normas jurdicas romanas com normas orientais e de mostrar a falta de originalidade das primeiras em relao s segundas j aparece claramente na Mosaicarum et Romanarum legum collatio (Comparao das leis mosaicas e romanas), um longo fragmento conhecido atravs de trs manuscritos (de Berlim, de Vercelli e de Viena), parte de uma compilao redigida provavelmente no sculo IV e que justape textos mosaicos extrados de tradues latinas da Bblia com textos de Gaio, Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e de constituies contidas principalmente nos Cdigos Gregoriano e Hermogeniano. Intil lembrar ao leitor aqui todos os exageros a que o entusiasmo pelas legislaes orientais levou os historiadores do Direito. Assim, por exemplo, Mller lanou em 1903 a hiptese de que a legislao de Hamurabi, a legislao mosaica e a lei das XII Tbuas

3

derivariam de uma fonte primitiva. Ainda o mesmo autor, com base no Livro Siro-Romano (traduo em rabe, armnio e siriaco de um manual de direito romano redigido em grego, no sculo V), que ele considerava como uma fuso de normas romanas e normas orientais, procura demonstrar profundas relaes entre ambos os direitos 11 . Um estudo ainda que superficial do problema das relaes entre os sistemas jurdicos orientais e o Direito Romano deve levar, desde logo, em considerao, que entre as origens da Civilizao Romana de um lado e as Civilizaes Orientais de outro lado encontra-se um hiato cronolgico e cultural. Quando as legies romanas conquistam a bacia do Mediterrneo Oriental encontram-na helenizada, fato esse que levanta os seguintes problemas estudados mais adiante: Qual a influncia da civilizao grega na evoluo do Direito Romano? Teria havido influncias orientais atravs dos gregos? Quais as influncias orientais no Direito Romano tardio? Volterra sublinha que na comparao entre os institutos arcaicos romanos e os institutos das antiqssimas legislaes orientais o direito quiritrio aparece como absolutamente independente dessas legislaes, apresentando uma completa autonomia originria 12 . Uma breve comparao entre o Direito contido na Lei das XII Tbuas (como nos foi transmitido pela tradio) e os sistemas jurdicos orientais revela-nos uma anttese fundamental. Com efeito, anota Volterra, o primeiro em substncia um direito destinado, nas suas origens, a regular a vida pblica e privada de uma cidade e que conservar por quase todo o perodo republicano este carter fundamental 13 . O direito do Cdigo de Hamurabi, o direito assrio, o direito egpcio, j a partir da V e da VI dinastias, so, ao contrrio, direitos aptos a regular a complexa vida de imprios grandiosos, perfeitamente organizados, a assegurar a existncia de sociedades ricas de indstrias e de comrcios. Tais direitos respondem, pois, a exigncias absolutamente diversas, tm atrs de si um longussimo e laborioso processo de evoluo: regulam institutos comerciais e industriais que os romanos conhecero somente em poca tardia, a distncia de muitos sculos; exercem-se e desenvolvem-se sobre territrios vastssimos 14 . A diferena entre o Direito Romano e os antigos Direitos Orientais acentua-se em um ainda que rpido confronto entre as estruturas dos principais institutos. Procedendo-se a tal confronto, anota Volterra, experimenta-se uma verdadeira sensao de estupor ao constatar-se que alguns autores tenham podido encontrar com tanta segurana analogias entre elementos to dspares 15 . Cabe aqui uma observao curiosa que explica, pelo menos em parte, os equvocos resultantes da comparao entre Direito Romano e Direitos Orientais: os orientalistas, ao traduzirem os documentos jurdicos de antigas civilizaes orientais, foram levados a usar termos romansticos correntes para designarem institutos que, na realidade, apresentavam muitas vezes com os institutos romanos apenas uma aparente e confusa analogia 16 . Os juristas e historiadores, iludidos assim por uma falsa terminologia, teriam concludo da aparente identidade de termos para a existncia de uma identidade de estrutura. De tudo o que se escreveu parece-nos lcito extrair a seguinte concluso: Como se pode constatar, mesmo um rpido confronto entre o direito quiritrio e os antiqssimos direitos orientais suficiente para persuadir-nos que nenhuma influncia podem ter exercido estes sobre aquele e para fazer-nos concluir que na origem o Direito Romano - e sobretudo o privado apresenta uma singular autonomia de princpios e de institutos 17 . Quanto indagao sobre possvel penetrao de institutos e princpios de direitos orientais no antiqssimo Direito Romano atravs de influncias gregas (uma vez que a civilizao grega apresenta em suas origens vnculos diretos ou indiretos com as antigas civilizaes do Oriente Prximo ), a resposta depender da constatao da influncia helnica na poca em tela. Focalizaremos mais adiante o problema 18 .

4

Passemos agora s influncias dos direitos orientais na evoluo posterior do Direito Romano. Volterra, depois de sublinhar que a influncia maior foi no direito pblico (grande parte da organizao poltica do Imprio do Oriente teria sofrido influncias orientais), cita e discute uma srie de provveis ou certos exemplos dessa influncia oriental em institutos e princpios do Direito Romano tardio. Convm, desde logo, advertir o leitor de que necessrio proceder aqui com cautela. No h dvida de que a expanso romana para o Oriente ps os conquistadores em contato com povos cuja civilizao possua razes milenares e entre os quais estavam vigentes diversos sistemas jurdicos: O ambiente provincial da pars Orientis do Imprio era, segundo Grosso, um tanto variado e complexo 19 . O mesmo autor chama a ateno para o fato de no ser sempre certa a derivao grega de normas e institutos (o perodo tardio da Histria do Direito Romano chamado romano-helnico) e de no ser sempre possvel discernir o caminho atravs do qual penetraram no Direito Romano, neste perodo, certos institutos que derivam dos antigos direitos orientais. Teriam as influncias orientais impregnado os ambientes provinciais e estes, por sua vez, provocado uma reao positiva no Direito Romano? Ou a penetrao das inovaes no Direito Romano teria sido direta atravs do direito hebraico graas difuso do Antigo Testamento pelos cristos? 20 Sem pretender aprofundar o tema das influncias orientais no Direito Romano tardio, vamos limitar-nos aqui apenas a citar alguns exemplos que, parece, do margem a dvidas. Quanto ao Direito Pblico lembremos que o deslocamento do centro de gravidade do Imprio Romano para o Oriente favoreceu a influncia da mentalidade e das concepes orientais na estrutura governamental. Meyer chama a fase da Histria do Direito Romano que vai de Diocleciano a Justiniano a era da orientalizao do Direito Romano. Expresso caracterstica do novo regime o tratamento de dominus dado ao imperador por ordem de Diocleciano 21 . O Imperador lembra ento os soberanos absolutos orientais: legislador exclusivo e absoluto. Afastava-se do modelo do princeps romano para seguir o da teocracia heleno-egpcia. J no era princeps, mas dominus (et deus); a quem, como tal, se renda culto (adoratio) 22 . Quanto ao Direito Privado, podemos apontar os seguintes exemplos de influncias orientais 23 : 1. 2. As arrae sponsaliciae: soma em dinheiro que um dos sponsi entrega ao outro por ocasio da concluso dos esponsais 24 . Papel da escrita como elemento formal dos contratos. San Nicolo;. entre os exemplos principais da influncia oriental sobre o Direito Romano sublinha a sempre maior importncia assumida pela escrita como elemento formal dos contratos e nota a diferena que neste campo apresenta o desenvolvimento do direito ps-clssico oriental em confronto com o direito ocidental, onde a instrumento escrito de compra e venda conserva o carter probatrio e no formal. 25 O aparecimento de novas formas de adoo consagradas definitivamente por Justiniano (a adoptio minus plena) marca, segundo Giffard, a orientalizao do Direito Romano. 26 . O Oriente apresenta resistncia assimilao da patria potestas romana, fato esse que se reflete na simplificao das formalidades da emancipao e na reduo dos efeitos desse instituto. 27

3.

4.

5

Concluamos estas consideraes sobre a influncia dos Direitos Orientais no Direito Romano tardio com duas observaes: 1. 2. A matria complexa e muitos exemplos de influncia oriental esto sujeitos a controvrsia. Volterra, seguindo S. Nicolo (I problemi degli influensi...), anota que o incio da influncia oriental situa-se bem antes de Justiniano e, precisamente, no primeiro sculo do Baixo Imprio, quando, como repetidas vezes afirmou Albertario e como afirma a doutrina dominante, teria cessado a resistncia imperial, ainda fortssima sob Diocleciano, aos direitos estrangeiros e quando a diviso do Imprio teria favorecido tal influncia. 28

INFLUNCIAS DA CIVILIZAO GREGAAs influncias gregas na evoluo da Civilizao Romana constituem tema por demais conhecido e estudado tanto nos grandes tratados de Histria de Roma como em simples compndios escolares. Que essa influncia se tenha feito sentir j em poca bem remota um indcio seguro o fato inconteste de o alfabeto latino derivar de um alfabeto grego de tipo ocidental (talvez por intermdio dos etruscos 29 ). A Expanso Romana atravs da Magna Grcia e a conquista do Oriente helenizado com a perda definitiva da independncia grega ( 146 a.C.) vo ter como conseqncia a intensificao da influncia helenstica em Roma. Lngua, Literatura, Religio, Educao, etc. sofrem o impacto helnico e Horcio (Ep. II, 1, 156) assinala a vitria do vencido sobre o vencedor: Graecia capta ferum victorem cepit et intuit artes agresti Latio (a Grcia vencida conquistou por sua vez seu selvagem vencedor e trouxe a Civilizao ao inculto Lcio). No presente item interessa-nos apenas indagar de modo sucinto sobre a influncia da civilizao grega no Direito Romano, quer atravs de legados do prprio Direito Grego ao Direito Romano, quer atravs da Filosofia Grega. Preliminarmente convm dizer algumas palavras sobre o Direito Grego. Um rpido olhar sobre a Histria deste Direito revela-nos, desde logo, um pluralismo de sistemas jurdicos. A vida jurdica encontra-se particularizada em cada uma das numerosas cidades gregas, embora todas elas tenham um denominador comum a civilizao grega que se expressa por uma relativa unidade lingstica 30 . Dos direitos das antigas cidades gregas o que melhor conhecemos o direito de Atenas. A poca helenstica, caracterizada sobretudo no Egito dos Ptolomeus por uma vida jurdica intensa revelada pelos papiros gregos, assinala uma nova etapa da evoluo histrica do Direito Grego em que influncias extra-helnicas se fazem sentir. Assim que, no Egito, devemos falar de um direito greco-egpcio. O estudo do Direito Grego antigo no encontrou por parte dos historiadores e juristas o mesmo interesse demonstrado pelo Direito Romano, o que se explica facilmente pelo fato de o primeiro aparecer como um direito meramente histrico sem as profundas repercusses que o segundo teve na elaborao da Civilizao Ocidental. Acrescente-se a dificuldade que o estudo do Direito Grego apresenta em virtude da documentao esparsa que constitui sua fonte de cognio. 6

Cabe aqui uma observao curiosa. Algumas obras gerais que focalizaram o Direito Grego (como por exemplo a notvel Histoire du droit priv de la Rpublique Athnienne, da autoria de Beauchet, 1897) revestem a tendncia de expor a matria de direito helnico dentro dos quadros tradicionais do Direito Romano. Este mtodo de exposio pode sugerir uma semelhana entre um e outro. Na realidade um paralelo entre ambos mostra algumas acentuadas diferenas. Um fato chama logo a ateno quando se estuda a formao do Direito Grego: embora tenha existido na Grcia uma vida jurdica, no encontramos a, anota Gernet, como rgo de conservao e de elaborao do direito, qualquer coisa comparvel aos prudentes romanos 31 . A Grcia no produziu juristas. Roma, ao contrrio, faz do Direito o objeto de uma jurisprudncia profissional 32 . Outra, diferena fundamental : o costume, a regra no escrita enraizada em um passado mais ou menos distante, existe em diversos planos (familiar, religioso, econmico) mas no considerado expressamente, teoricamente, como fonte do direito: H no grego uma disposio intelectualista que o inclina a no reconhecer outra norma alm da norma escrita, que como um decreto da inteligncia a Lei 33 . interessante observar que a atuao dos tribunais atenienses, que no so integrados por profissionais, obedece preocupao de orientar-se pela justia. O sentimento do justo domina o sistema legislativo. bem caracterstico que os gregos falem constantemente do justo e no possuam um vocbulo especializado para o direito 34 . Sublinhe-se que, em face do Direito Romano, o Direito Grego apresenta, em alguns aspectos essenciais, caractersticas originais. Assim, por exemplo, o desenvolvimento do Direito Comercial. Quanto ao problema das influncias gregas no Direito Romano, sublinhemos, desde logo, que enfrentamos um tema controvertido. Mayr, depois de afirmar a existncia de numerosos paralelismos entre o Direito Grego e o Direito Romano, sublinha como verossmil a opinio dos que crem que em Roma houve, em diferentes pocas e sob diferentes formas, uma vasta recepo de instituies e concepes jurdicas helnicas 35 . A notcia sobre a to discutida misso Grcia com a finalidade de estudar a legislao como preparo para a codificao das XII Tbuas, constituiria, segundo Mayr, uma parfrase com que se quer aludir s evidentes e profundas influncias gregas que se encontram nas XII Tbuas 36 . Arangio-Luiz nega essa influncia grega: Na organizao da propriedade como no sistema das penas, nas formas do processo como naquelas dos negcios jurdicos, os decnviros operaram com idias e institutos francamente romanos, cujas origens poderamos, talvez, encontrar no mundo etrusco ou latino, se estes ambientes jurdicos nos fossem melhor conhecidos; e tambm as adaptaes que tiveram maior carter de novidade (como a extino do ptrio poder em conseqncia da trplice venda do filho, ou como a interrupo do usucapio do poder marital com a ausncia da mulher, por trs noites do lar comum) foram concebidos em conformidade com o gnio da raa, no substituindo as antigas por novas concepes jurdicas, mas deduzida sutilmente da prpria estrutura dos institutos primordiais. 37 Arangio-Luiz admite que algumas normas particulares gregas (como, por exemplo, as que condenam o luxo dos funerais e que parecem imitadas da legislao de Slon) tenham sido adotadas por intermdio da Etrria sem que os legisladores romanos tivessem conhecimento das origens mais distantes. Tais normas, entretanto, no seriam suficientes para caracterizar um sistema jurdico. Convenhamos que o direito vigente no ambiente de intensa vida urbana do mundo grego no tinha muito a oferecer ao mundo romano ainda num estgio de predominncia da vida pastoril. 38 Na poca das guerras pnicas a influncia grega em Roma torna-se intensa. ento somente que os romanos comeam a imitar a literatura grega; pouco pouco, seus talentos despertam ao contato com as obras-primas helnicas e chegam a produzir obras literrias mais 7

originais. 39 Entre estes talentos romanos que se inspiram na literatura, nas instituies e nos costumes gregos conservando, contudo, um cunho de profunda originalidade no estilo e na lngua, figura Plauto (+ 184 a.C.) com suas numerosas comdias. Por que cit-lo aqui? Porque suas obras constituem um curioso testemunho do conhecimento do Direito Grego por parte dos romanos. Plauto conhece a linguagem jurdica e emprega uma srie de termos jurdicos romanos de tal forma que primeira vista parece constituir uma fonte para o conhecimento de institutos do Direito Romano contemporneo. Na realidade, a terminologia jurdica romana est aplicada s vezes a institutos do direito grego essencialmente diversos dos institutos do Direito Romano 40 . Evidentemente, a onda avassaladora do helenismo no atingiria somente o campo literrio e o direito grego no chamaria somente a ateno de comedigrafos como Plauto. Chegamos assim ao estudo da influncia grega no Direito Romano j no mais na poca da Lei das XII Tbuas mas em sua posterior e longa evoluo. Antes porm de falarmos da inegvel influncia, vamos fazer duas observaes que nos parecem de capital importncia. 1. Segundo alguns autores as chamadas influncias helensticas sofridas pelo Direito Romano no perodo ps-clssico (perodo denominado romano-helnico) constituem, no raro, o produto da ao da refinada tcnica romana em uma exigncia de vulgarizao e da influncia de fatores econmico-sociais (...).41 Romanistas como Riccobono e Chiazzese defendem a tese de que, em verdade, as inovaes ps-clssicas nada mais so do que o desenvolvimento espontneo dos elementos romanos colocando em evidncia tendncias que se observavam no jus honorarium e no jus extraordinarium do perodo clssico 42 . 2. A segunda observao diz respeito s diferenas existentes entre os direitos vigentes nas regies em que predominava a civilizao helenstica, e o Direito Romano. Vejamos, somente para ilustrar, alguns exemplos significativos que demonstram a recproca impermeabilidade entre o Direito Romano e os direitos helensticos.43Direito Romano 1) Patria potestas, em princpio, vitalcia. 2) Sucesso dos filhos me e vice-versa s foi aceita na poca imperial e com limitaes. 3) No caso de ad-rogao, o ad-rogado perdia seu patrimnio em favor do ad-rogante. No caso de adoo, cessavam as relaes jurdicas entre o adotado e a famlia de origem. 4) A disposio dos bens em testamento obedecia, no Direito Romano, proibio de testar apenas sobre parte do patrimnio. (Nemo pro porte testatius, pro pocrte intestatus decedcre potest). 5) No Direito Romano os efeitos jurdicos, via de regra, estavam ligados enunciao de palavras solenes (verba sollemnia). O uso da escrita havia-se generalizado apenas para testamento visando ao segredo da manifestao da ltima vontade. Direitos Helensticos 1) Patria potestas extingue-se com a maioridade do filho. 2) Este tipo de sucesso era amplamente reconhecida. 3) A adoo helenstica no destrua as relaes com a famlia de origem e no privava o adotado dos bens que eventualmente possusse. 4) Os direitos helensticos permitiam que se testasse sobre uma parte do patrimnio, deixando o restante aos herdeiros legtimos. 5) Nos direitos helensticos, via de regra, os negcios jurdicos se processavam por escrito.

8

Werner Jaeger, em sua famosa Paidia, considera a Filosofia como a criao mais maravilhosa do esprito grego 44 . O contato com o helenismo iria despertar nas classes elevadas de Roma o amor pela cultura literria e o interesse pelas idias filosficas. O gnio romano, entretanto, no possua vocao para a especulao filosfica. O senso prtico dos intelectuais romanos levaram-nos a um ecletismo filosfico, aceitando e selecionando, adaptando e vulgarizando os sistemas filosficos helnicos. Os filsofos romanos raciocinaram em termos de filosofia grega. Lembremos, apenas para exemplificar, o ecltico Ccero (+ 43 a.C ) e os esticos Sneca ( + 65 P.C. ) e Marco Aurlio (+ 180 P.C. ) Ccero tem o grande mrito de difundir em alto nvel a filosofia grega entre seus concidados, criando, em latim, uma verdadeira linguagem filosfica. A par da influncia das idias filosficas deve ser acentuado o papel da retrica grega na formao intelectual do romano. Compreende-se esse papel quando se considera com Marrou que a retrica marca profundamente todas as manifestaes do esprito helenstico 45 . E observe-se que, como a filosofia, estamos aqui em face de uma manifestao cultural estritamente grega. Os autores latinistas inclusive Ccero, estavam impregnados dos ensinamentos da retrica grega, procurando criar um vocabulrio tcnico latino que reproduz, no raro de modo servil, a nomenclatura grega. 46 A evoluo do Direito Romano no poderia evidentemente fugir s influncias da filosofia e da retrica helnicas. Enfatize-se, todavia, que essa influncia nada subtrai ao mrito prprio dos criadores do Direito Romano e nem retira a estes o cunho da criao original que, j vimos, Marrou caracteriza como uma forma nova de cultura. Monier acentua que com os escritos de Ccero, so os princpios da filosofia estica, de uma grande elevao moral, que exercem sua influncia benfazeja sobre o direito 47 . Registrese que Ccero, imbudo da mentalidade grega, preconiza fazer do direito civil uma arte, isto , um corpo de doutrina estruturado. Villey, depois de observar que a influncia de uma doutrina filosfica sobre os juristas no deve ser imaginada como um decalque literal, pois eles se inspiram livremente nas filosofias, salienta que os juristas romanos recorreram simultaneamente a diversas escolas filosficas: O estoicismo, em que sobretudo foi instrudo Ccero e ao qual aderiu um bom nmero de jurisconsultos clssicos, deixou sobre o direito romano uma marca bem visvel; e o platonismo tambm no lhe foi sempre estranho. Mas a nossos olhos da doutrina de Aristteles que, no incio do perodo clssico, recebeu seus princpios constitutivos e seu valor excepcional 48 . Passemos agora, somente a ttulo de ilustrao, a examinar brevemente alguns exemplos da influncia da filosofia e da retrica grega no Direito Romano. 1. Direito natural. A idia de um direito superior, ideal, proveniente de Deus ou decorrente da prpria natureza humana que encontramos em textos romanos, tem suas razes na filosofia grega. No tratado De Republica, Ccero inseriu a famosa definio de lei natural. nitidamente estica : Est quaedam vera lex, recta ratio, naturae congruens, difjusa in omnes, constans, sempiterna; quae vocet ad officium jubendo, vetczndo a fraude deterreat (...) . Existe uma verdadeira lei, reta razo, conforme natureza, difundida entre todos, constante, eterna; que por seus mandamentos chama ao cumprimento de um dever; por suas proibies afasta do mal (...) 49 . Ccero conclui dizendo que Deus o autor dessa lei e que seus transgressores sero punidos pois repudiaram sua natureza humana. Villey chama a ateno para certas definies romanas do direito natural que nos foram conservadas pelas Institutas de Gaio ou pelo Digesto e que possuem uma tintura estica49a. Assim, parece proceder de origem estica a definio de Ulpiano que estende o direito natural a todos os animais (omnia animalia) (D. I, 1,1,3).

9

2. Coisas corpreas e incorpreas. Esta classificao das coisas em corpreas e incorpreas anterior a Ccero e provm da filosofia estica. Era desconhecida,no perodo do Antigo Direito 50 3. Direito e Moral. Giffard, depois de comentar textos de Ulpiano em que parece haver confuso entre o Direito e a moral, atribui essa confuso influncia dos filsofos gregos que no separaram jamais o direito da moral e viam nesta a cincia geral das aes dos homens da qual o Direito constitua uma parte 51 . Mais adiante voltaremos ao problema da distino entre Direito e Moral. 4. Aequitas, bona fides, utilitas. Essas trs concepes, segundo Villers, penetram no Direito Romano atravs da Filosofia Grega. A primeira uma noo matemtica extrada das obras de Aristteles: inspira-se na proporo ou igualdade de duas relaes. No plano jurdico, convida a manter entre os homens uma igualdade proporcional tanto s foras como s necessidades de cada um. Da o famoso suum cuique tribuere (dar a cada um o que seu) de Ulpiano (D. I,1,10) 52 . O Exemplo de influncia da eqidade na elaborao do direito a correo feita pelos pretores s iniquitates do velho direito civil, ao elaborarem as regras da sucesso pretoriana 53 . Na interpretao do Direito, a retrica ensina a preferir a inteno do legislador ou das partes s palavras proferidas. A fides (f) era uma velha noo religiosa ligada deusa Fides a quem o rei Numa havia consagrado um templo. Sob influncia grega a fides secularizou-se, chegando a revestir um carter puramente tico, como, por exemplo, em Ccero (De Officiis I, 7) que a qualifica de fundamentum justitiae 54 . No campo do jus, a fides, qualificada de bona fides, apresenta uma dupla acepo: objetiva e subjetiva. Na primeira, temos as aes de boa f que possuem uma clusula ex bona fide. Na segunda acepo, temos a bona fides quando um comprador de boa f cr em determinadas qualidades da coisa adquirida 55 . Finalmente os juristas identificam o fim do direito com a utilidade comum. o bem comum, o bem geral, anota Villers; a idia admitida tanto pelos jurisconsultos como pelos magistrados 56 . Os jurisconsultos do sculo III, por exemplo, diro que o jus praetorium foi aceito por causa da utilidade pblica (propter utilitatem publicam). 5. Diviso do direito segundo Gaio. A famosa diviso do Direito segundo Gaio (I, 1-8) : Omne autem jus quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones (todo o direito de que usamos ou diz respeito s pessoas ou s coisas ou s aes), possuiria uma origem retrica e remontaria a um prottipo de inspirao grega 57 . 6. A filosofia grega tem influncia decisiva na formao dos jurisconsultos romanos e na didtica jurdica. Marrou chama a ateno para o fato de que a sabedoria do juris prudens, por muito tempo intuitiva, tornou-se refletida, consciente e soube alimentar-se de toda a contribuio formal do pensamento grego, da robusta armadura lgica do aristotelismo como da riqueza moral do estoicismo 58 . Ainda Marrou observa que foi somente a partir da gerao de Ccero e largamente, ao que parece, graas sua ao e propaganda que a pedagogia jurdica romana acrescenta ao ensinamento prtico (respondentes audire) um ensinamento sistemtico (instituere). Ccero havia intitulado uma de suas obras, infelizmente perdida, de jure civili in artem redigendo; lanando mo de todos os recursos da lgica grega, o direito romano esforase, desde ento, por apresentar-se aos iniciantes sob a forma de um corpo de doutrina, de um sistema, constitudo por um conjunto de princpios, de divises e classificaes apoiados em uma terminologia e em definies precisas. 59 Kaser sublinha tambm a influncia da filosofia grega no mtodo dos juristas, colocando-a j no sculo II a. C.: Pela metade do sculo II a.C. produz-se uma mudana fundamental no mtodo dos juristas romanos que, impulsionados pela filosofia grega, do matria jurdica um enfoque dialtico 60 . Kaser admite que os precedentes gregos da legislao 10

das XII Tbuas tenham favorecido a elaborao de normas gerais (regulae) e acrescenta: E se nos ltimos tempos a produo de regras cobrou novo impulso, at ao ponto de dar a uma determinada fase da evoluo o nome de jurisprudncia de regras, deve-se isso ao encontro que se produz entre a jurisprudncia romana e a filosofia grega nesta poca (obra citada, p. 27). Monier, depois de salientar a influncia dos princpios esticos atravs dos escritos de Ccero, acrescenta: Ao mesmo tempo, a retrica grega ensina aos jurisconsultos a substituir o mtodo de interpretao literal por um mtodo de interpretao lgica e a procurar a vontade do legislador nos redatores do ato jurdico focalizado. 61 A respeito da influncia da retrica sobre a jurisprudncia, convm anotar a advertncia de Kaser: No obstante, as notas comuns entre jurisprudncia e retrica chegam logo a seu fim. Isso se deve sobretudo a que seus fins e seus meios so diversos, embora coincida seu campo de ao no processo. A retrica no tendeu em nada caso concreto realizao da justia e, se o fez, foi de modo secundrio. Por isso nada teve a ver com esse conhecimento intuitivo do Direito, que alcanou com os juristas uma mestria genial. A arte oratria persegue antes xitos puramente externos e amide duvidosos, se temos que julgar com critrios ticos (Kaser, En torno del mtodo, p. 37). Quanto influncia direta do Direito Grego no Direito Romano constitui ainda um vasto campo de pesquisas e de controvrsias. Limitar-nos-emos aqui a um exemplo: a chamada Lex Rhodia. Ccero (Pro lege Manilia 18) menciona e elogia a longa tradio naval dos rdios (Rhodii... quorum usque ad nostram memoriam disciplina navulis et gloria remansit). Estrabo, sob o reinado de Augusto, testemunha a prosperidade de Rodes enaltecendo os regulamentos a elaborados para o policiamento dos mares e que foram adotados por todos os grandes portos de comrcio 62 . Compreende-se pois que Roma aplicasse as leis e costumes martimos convencionados - sob o nome de Lex Rhodia. Augusto aprovou-a expressamente em um rescriptum. Volusius Maecianus, jurisconsulto que se dedicou ao ensino jurdico sob Marco Aurlio, (+ 180), narra-nos que Antonino, o Pio, (+161), atendendo a uma petio do grego Eudmon, cujo navio naufragara em Icria, citou a lex Rhodia como a norma jurdica pela qual devia ser julgado o litgio entre Eudmon e os publicanos de Icria que se haviam apoderado dos despojos do naufrgio. Eis a resposta de Antonino : Eu sou o senhor do orbe, mas a lei Rdia a senhora do mar; julgue-se esta questo pela lei Rdia martima no que ela no contrariar alguma de nossas leis. Assim tambm julgou o divino Augusto (D. XIV, 2,9) 63 . O jurisconsulto Paulus, prefeito do pretrio sob Alexandre Severo (222-235), menciona a Lex Rhodia em suas Sententiae (II, 7 ), sob a rubrica ad legem rhodiam. Qual, afinal, o contedo da famosa Lex Rhodia? Em virtude dos princpios reunidos sob essa denominao (Lex Rohdia de jactu), os proprietrios de mercadorias lanadas ao mar (jactu), em momento de perigo, devem ser indenizados para que os prejuzos sejam suportados, proporcionalmente, por todos - pelo armador do navio e pelos donos das mercadorias salvas 64 .

INFLUNCIAS DO CRISTIANISMOPela Constituio Tanta (chamada tambm confirmao do Digesto - De Confirmatione Digestorum), Justiniano promulga o Digesto (dezembro de 533) em nome de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo (in nomine Domini Dei nostri Jesu Christi). Esta expresso, que teria causado

11

espanto aos jurisconsultos clssicos, bem um sinal dos tempos: o Cristianismo que, havia muito, emergira vitorioso das catacumbas com o edito de Milo (313), tornara-se religio de Estado desde o reinado de Teodsio I (+ 395) e constitua agora um fator determinante da Civilizao, tanto na Pars Orientis como na Pars Occidentis do velho Imprio Romano, esta ltima j em sua maior parte dominada pelos reinos brbaros. Por sua natureza, a pregao crist visava antes de tudo a renovao espiritual colocando sobre os altares a crena no Deus crucificado e implantando nos coraes dos homens o mandamento sublime da fraternidade universal. Desde o martrio de S. Pedro, o primeiro papa, em Roma, sob o reinado de Nero (54-68), o Cristianismo no cessara de adquirir adeptos e de difundir-se por todas as provncias do Imprio dos Csares. Os cristos, segundo um famoso texto de Tertuliano (Apol. 32, final do II sculo), no viviam margem da sociedade: Ns, cristos, no vivemos margem do mundo; freqentamos, como vs, o forum, os banhos, as oficinas, as lojas, os mercados, as praas pblicas (...) Compreende-se, assim, que a mentalidade da Roma pag fosse, cada vez mais, sofrendo a profunda influncia da doutrina e da moral crists. O Direito Romano, evidentemente, no ficaria isento dessa influncia. Defini-la, verificar sua extenso e profundidade tem sido o objeto de numerosos estudos e concluses divergentes. Gaudemet resume, a esse respeito, os pontos de vista dos historiadores: Para alguns historiadores, bem raros, verdade, a influncia do Cristianismo teria sido limitada. Outros reconhecem uma influncia geral da moral crist sobre a civilizao romana de preferncia a uma ao precisa que tivesse resultado na modificao das regras jurdicas. Outros, enfim, admitem que, pelo menos em certos domnios, o Cristianismo faz modificar certos princpios jurdicos 65 . Um estudo da influncia do Cristianismo no Direito Romano, parece-nos, deve levar em considerao duas fases fundamentalmente distintas : a fase anterior converso de Constantino e a fase posterior a essa converso. Na primeira, no ser to fcil estabelecer se determinadas modificaes que se enquadram no esprito da doutrina crist, refletem realmente a atuao da nova doutrina. Em outras palavras : se os inovadores pagos teriam agido inconscientemente j influenciados pela doutrina crist difundida em vrias camadas da populao, inclusive nas altas esferas administrativas, ou se as transformaes das normas jurdicas num sentido mais humanitrio obedeceram aos influxos de fatores diversos, inclusive de idias filosficas helnicas. Lon Homo, focalizando o Sculo de Ouro do Imprio Romano, isto , a poca dos Antoninos, sublinha o grande lan de humanidade e de caridade que caracteriza o mundo romano no II sculo depois de Cristo: Os fracos e os sacrificados da sociedade romana, as mulheres e os escravos em particular, iriam ser os beneficiados naturais dessas tendncias novas. A transformao assinala-se, de incio, nos costumes, at passar para as leis 66 . Homo explica o lugar importante que a moral ocupa na sociedade do II sculo P.C. por duas causas : a evoluo do mundo romano, de uma parte, a influncia da filosofia, de outra. Este lan de humanidade reflete-se na maneira com que alguns autores e a prpria legislao focalizam a situao do escravo j, alis, a partir do sculo I at, inclusive, o sculo III P.C. Vejamos alguns exemplos. Sneca, o filsofo estico vitima de Nero, v entre os homens um parentesco natural e reivindica os direitos da Humanidade para o escravo nascido da mesma origem que ns, escravo pelo corpo mas livre pelo esprito. 67 Epicteto, filsofo estico que viveu no fim do sculo I e no incio do II, proclama que, para os homens livres, os escravos so irmos 68 . Plnio, o Jovem (+ 113), que no professa o estoicismo e que entra em contato com o Cristianismo, revela um sentido profundamente humanitrio em relao a seus escravos 69 . Juvenal (+ 130 ?) critica em suas stiras o avarento que no nutre os escravos e a mulher que os castiga pela menor falta, com severidade. 12

Carcopino observa que a indignao do poeta corresponde opinio pblica 70 . Marcial (+ 102 ?), embora no hesite em infligir um castigo corporal a seu cozinheiro, dedica a seus escravos terna afeio. 71 Segundo o jurisconsulto Florentino (II sculo P.C.), a escravido um instituto do direito das gentes pelo qual algum est submetido ao domnio de outro contra a natureza (Servitus est constitutio juris gentium, quo quis dominio alieno contra naturam stebicitur D.1,5. 4.1. ). Ainda Florentino observa que a natureza estabeleceu entre os homens um certo parentesco (inter nos cognatzonem quandam natura constituit - D. 1,1,3). O jurisconsulto Ulpiano (sc. III) ensina que, no que tange ao direito natural, todos os homens so iguais (Quia quod ad jus naturale attinet, omnes aequales sunt - D. 50, 17. 32). Ainda Ulpiano (D. 1.1.4) proclama que por direito natural todos os homens nasceriam livres e que nem seria conhecida a manumisso pois a escravido seria ignorada (Cum jure naturali omnes liberi nascerentur nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita). Alm de escritores, poetas e jurisconsultos, a prpria legislao romana revelou-se tambm favorvel aos escravos Vejamos alguns exemplos. A lex Petronia (19 P.C.), completada por senatus-consultos e rescritos imperiais, probe aos senhores entregar o escravo para combater contra feras sem autorizao especial do magistrado 72 (Post legem Petroniam et senatus consulta ad eam legem pertinentia dominis potestas ablata est ad bestias depugnandas suo arbitrio servos tradere: oblato tamen judici servo, si justa sit domini querella, sic poenae tradetur - D. 48,8 .11. 2). Segundo um edito de Cludio (41-54), perdia a propriedade sobre o escravo, o senhor que o abandonasse velho ou doente; ao escravo era concedida a cidadania latina 73 . A castrao dos escravos foi proibida e severamente punida por Domiciano e seus sucessores. 74 Adriano (117-138) condena a cinco anos de relegatio (desterro) uma mulher que, por motivos fteis, maltratara uma escrava. (Divus eticim Hadrianus... quandam matronam in quinquennium relegavit, quod ex levissimis causis ancillas atrocissime tractasset - D. 1. 6. 2). A legislao pe em cheque o jus vitae necisque (direito de vida e morte) do senhor sobre o escravo. Referindo-se ao sculo II P. C. , Troplong anota : Tudo se modifica ento na jurisprudncia sobre as relaes com os escravos; o direito de vida e de morte se transfere aos magistrados. O direito de correo deixado aos magistrados tem que exprimir-se em regras mais humanas; um magistrado, o prefeito da cidade, o encarregado de aplicar essas medidas 75 . Vamos encerrar esses exemplos de modificao dos costumes num sentido humanitrio com a seguinte pgina de Gaio, contemporneo dos Antoninos : Mas nos tempos atuais nem aos cidados romanos, nem a quaisquer outros homens, que se encontram sob o imprio do povo romano, permitido maltratar exageradamente e sem causa os seus escravos. Pois em virtude de uma constituio do sacratssimo imperador Antonino, aquele que sem causa matar seu escravo to responsvel como quem matar um escravo alheio. Mas reprime-se tambm, pela constituio desse mesmo prncipe, a excessiva crueldade dos senhores; pois, consultado por alguns governadores de provncias sobre os escravos que se refugiam nos templos dos deuses ou nas esttuas dos prncipes, ordenou que, se a dureza dos senhores parecesse insuportvel, fossem eles obrigados a vender os escravos. E ambas essas disposies so corretas, pois no devemos usar mal de nosso direito (...) (Sed hoc tempore neque civibus romanis nec ullis aliis hominibus, qui sub imperzo populi romani surit, licet supra modum et sine causa in servos suas saevire; nam ex constitutione sacratissimi imperatoris Antonini qui sine causa servum suum occiderit non minus teneri jubetur, quam qui alienum servum occiderit. Sed et maior quoque asperitas dominorum per ejusdem principis constituionem corcetur; nam consultus a quibusdam praesidibus provinciarum de his servis, qui ad fana deorum vel ad 13

statuas principum confugiunt, praecepit, ut si intolerabilis videatur dominorum saevitia, cogantur servos suos vendere. Et utrumque recte fit: male enim nostro jure uti non debemus ... Gaio, I,1, 63). Como j observamos, no se pode afirmar categoricamente que algumas dessas situaes da mentalidade romana e da prpria norma jurdica em relao situao do escravo tenha sido exclusiva influncia crist. Quando o estoicismo faz sua entrada em Roma (II e I sculos a. C. ), revela-se como a forma da filosofia talhada para o temperamento romano. 76 A doutrina do Prtico ( prtico) encontra-se na segunda etapa de sua evoluo histrica abordando j problemas ticos. A terceira etapa do estoicismo coincide com a poca imperial romana. Predominam ento os temas ticos. Na poca que focalizamos nas linhas acima e atravs desses sculos o estoicismo inegavelmente influiu na mente de intelectuais romanos, tanto no terreno da filosofia como no do direito. Parece-nos, entretanto, que seria exagero atribuir exclusivamente ao estoicismo a tendncia humanitria de certos aspectos do Direito Romano. Paralelo ao estoicismo (que atingia principalmente parte da elite intelectual), toma vulto a difuso crist fecundada pelo sangue de seus mrtires. Essa difuso atinge no s as baixas camadas da populao, mas tambm as altas esferas da sociedade romana. As apologias crists visam a intelectualidade e vrias apologias foram dedicadas a imperadores. Septimio Severo confiou ao cristo Prculo a educao de seu primognito. Alexandre Severo, filho de uma me quase crist, adorava Jesus Cristo juntamente com Abrao e Orfeu; tinha, sem cessar, nos lbios, esta mxima evanglica: No faas a outrem o que no quererias que te fizessem a ti, mxima que fez gravar em seus palcios e at nas paredes dos edifcios pblicos. 77 Vamos concluir estas breves consideraes em torno das provveis influncias crists no Direito Romano na fase anterior a Constantino, repetindo as palavras de Troplong 78 . A filosofia no pde ter o privilgio de permanecer mais afastada que a sociedade, que o recebia atravs de todos os poros, da influncia do Cristianismo. Num tempo em que todas as coisas tendiam a relacionar-se e a unir-se; em que os homens e as idias pareciam possudos de uma incessante necessidade de comunicao e transformao; em que o ecletismo filosfico meditava a fuso de todos os grandes sistemas em um sincretismo poderoso; onde o Estado Romano, abrindo seu seio a um pensamento de homogeneidade que durante tanto tempo lhe repugnou, dava o ttulo de cidados a todos os sditos do Imprio, apagando assim as distines de raa-e origem, confundindo o romano com o gauls, o itlico com os filhos da Sria e da frica; no meio de tal ao de todos os elementos sociais, uns sobre os outros, no parece absurdo pensar que o Cristianismo seja o nico que no subministrou seu contingente massa comum das idias, estando de posse das mais comunicativas e civilizadoras? Pisamos terreno firme quando se trata de apontar a influncia do Cristianismo no Direito Romano a partir de Constantino. Biondo Biondi, que escreveu uma obra em trs volumes com o sugestivo ttulo de Il Diritto Romano Cristiano, sublinha: as leis ps-clssicas e justinianias tm o cunho essencialmente cristo 79 . Gaudemet, estudando a influncia do Cristianismo no Direito ps-clssico, compara-a com a do estoicismo sobre o Direito Clssico: Estoicismo e Cristianismo propunham uma filosofia do indivduo e do grupo. Notaram-se tambm analogias das doutrinas: ambas afirmam a igualdade e a liberdade natural de todos os homens, ensinam o amor ao prximo e a moral familiar. Mas as diferenas entre estoicismo e cristianismo no so menos evidentes. No vamos aqui realar as diferenas doutrinrias mas somente assinalar o quanto a diferena entre uma moral altiva feita para uma elite e uma religio que se dirigia a todos e que encontrou seus primeiros adeptos entre os humildes, devia necessariamente acarretar diferenas em seu modo e possibilidade de ao sobre o direito. Difundidas pela pregao, as idias morais do

14

Cristianismo conheceram uma mais ampla audincia e, em conseqncia, exerceram uma influnca mais profunda que as mximas esticas, apangio de um crculo restrito de sbios. 80 A influncia crist na legislao imperial, a partir do sculo IV, to grande que mereceria um estudo especial. Curioso que certos historiadores, desvinculados do contexto histrico em que esta influncia se processava, viram nela a prepotncia imperial sobre a Igreja. Assim que, como observa Biondo Biondi, Justiniano, louvado e abenoado pelos papas de seu tempo, e colocado por Dante no paraso como fiel filho da Igreja, foi representado pelos modernos, sem (e at contra) qualquer documentao, como o tpico opressor da Igreja 81 . Entre os numerosssimos textos da legislao imperial referentes ao Cristianismo, de suma importncia lembrar o edito de Tessalnica (380) que Teodsio enderea ao povo de Constantinopla e que impe a todos os povos (cunctos populos) a religio que o apstolo Pedro levou aos romanos (quam divum Petrum apostolum tradidisse romanis) (C. J. 1, 1,1). Cabe aqui chamar a ateno para o papel decisivo de Santo Ambrsio (+ 397 ?), o grande bispo de Milo, exemplo da encarnao do gnio romano depurado pelo Cristianismo, que exerce ento uma atuao decisiva na cristianizao do Imprio. Achile Ratti, sucessor de Ambrsio na s milanesa e posteriormente sucessor de Pedro na s romana sob o nome de Pio XI, chama a ateno para o fato de que, graas ao santo bispo, o esprito cristo havia penetrado mais nas leis e o Imprio como tal acabara de tornar-se cristo. 82 Ambrsio teve ampla influncia na legislao imperial promulgada na poca em que exerceu o episcopado (323-397). As constituies imperiais passam a adotar as determinaes eclesisticas conferindo-lhes fora de lei. O Cdigo de Teodsio II cita os conclios de Nica (C. Th. 16.1.3; 381), de Rimini e de Constantinopla (16, l, 14; 386), de feso (16, 5, 66; 435). O Cdigo de Justiniano cita os quatro primeiros conclios ecumnicos (1, 5, 8; 455). Fora dessas referncias expressas, as constituies imperiais inspiram-se freqentemente em disposies conciliares sem cit-las formalmente. 83 O livro XVI do Cdigo de Teodsio encerra legislao de contedo religioso. No Cdigo de Justiniano esses textos tero lugar especial figurando antes dos que se referem s fontes do Direito (C. J. I, 1-13). 84 A influncia crist no se limitou somente ao domnio religioso em que, observa Gaudemet, ela evidente e normal. Essa influncia fez-se sentir tambm no campo da legislao familiar e social. Gaudemet cita os seguintes exemplos: 1. Alterao do calendrio, passando o dies solis a domingo (ver C. Theodsio 2.8.18) 85 . 2. A condenao dos jogos de gladiadores em 32 jogos persistiram at o incio do sculo V). 86 3. A represso da prostituio em 343. 4. Sobre a escravido, anota Gaudemet : Se a Igreja no pde obter o desaparecimento da escravido, foi sem dvida ao Cristianismo que se deveu a proibio de marcar os escravos na fronte ou de separar as famlias servis. O reconhecimento da plena validade da manumisso in ecclesia, que na origem no foi seno uma forma particular de manumisso inter amicos, foi devida igualmente interveno da Igreja. 87 5. No direito de famlia, a influncia crist mais sensvel. Temos, por exemplo, a proibio do casamento por affinitas; as restries liberdade do divrcio; as sanes que acompanham a ruptura injustificada dos esponsais: a proteo dos interesses pecunirios dos filhos do primeiro leito; a luta contra a exposio dos recm-nascidos, contra a venda de crianas e os abusos da patria potestas. 88 6. No campo do Direito penal, deve-se provavelmente influncia crist a supresso do suplcio da cruz; aos bispos foi tambm dada a misso de fiscalizar as prises. 89 (embora de xito limitado, pois esses

15

7. Troplong, na segunda parte de sua conhecida obra Influence du Christianisme sur le Droit Civil des Romins, estuda esta influncia nos seguintes setores: escravido, matrimnio, impedimentos matrimoniais em virtude do parentesco, restries ao divrcio, celebrao religiosa do matrimnio, concubinato, patrio poder, condio da mulher e direito das sucesses.

16

Captulo II ALGUNS TRAOS CARACTERSTICOS DO DIREITO ROMANOA longevidade da vigncia do Direito Romano dificulta evidentemente a tarefa de apontar-lhe os traos caractersticos gerais. Cada perodo da Histria Interna apresenta caractersticas prprias. O mesmo se pode dizer respectivamente do Direito Privado e do Direito Pblico. Neste item vamos tentar apenas sublinhar algumas caractersticas que, no seu conjunto, possibilitem formar uma ligeira idia do que seria o esprito do Direito Romano. 90

FRUTO DE UM TRABALHO SRIO DE JURISTAS E PRETORESNo decurso da presente obra, o leitor poder sentir que este primeiro trao caracteriza bem a multissecular elaborao do Direito Romano. No item referente s fontes teremos oportunidade de enfatizar a atuao dos juristas e dos pretores. Por ora, contentemo-nos em repetir Villey: O Direito Romano o fruto de um trabalho srio. Os pretores e jurisconsultos que o elaboraram pacientemente no pretenderam jamais refazer a sociedade sobre bases novas, o que estaria bem acima das foras do esprito humano. Mas lentamente, partiro de dados positivos, guiados somente pela paixo da eqidade e da utilidade social criaram um direito verdadeiramente adaptado natureza do homem. 91

FALTA DE UNIDADE. TRADICIONALISMOAqui esto duas caractersticas que, primeira vista, parecem conflitar entre si, mas que se harmonizam perfeitamente quando consideradas sob o aspecto dinmico da evoluo histrica do Direito Romano. Assim, por exemplo, se considerarmos dois estratos jurdicos distintos como o jus civile e o jus honorarium, procedentes respectivamente de fontes diversas, aparece-nos ntida a falta de unidade, j sublinhada, alis, quando tratamos da longa vigncia do Direito Romano. Por outro lado, entretanto, mesmo nesta falta de unidade possvel perceber a marca do tradicionalismo. Assim, por exemplo, muitos aspectos do jus honorarium (criado pelos magistrados) que se estende a todos os campos do Direito Privado e do Processo Civil, encontram seu fundamento e sua origem no prprio Jus Civile. E talvez seja oportuno lembrar que recentes estudos confirmaram que o jus civile era, na sua origem, consuetudinrio, era o costume jurdico dos romanos 92 . H, pois, na evoluo do Direito Romano, uma certa unidade na diversidade, isto , uma certa tradio que s aos poucos e diante da prpria evoluo histrica vai cedendo s transformaes inevitveis. Entre outras, duas razes explicam esse tradicionalismo. Em primeiro lugar porque os romanos, como observa Kaser, no ab-rogam suas velhas instituies, mas cram junto a elas outras novas, confiando em que, em virtude das

17

melhores vantagens que estas oferecem, as antigas iro perdendo a vigncia. S em poucos casos, nos quais inevitvel a inovao, recorre-se s leis ou normas reformadoras. 93 Outra razo desse tradicionalismo reside na constante atuao dos juristas romanos atravs dos sculos. Esta atuao no se faz sentir somente no campo privado, mas no assessoramento direto de magistrados, juzes e jurados. O tradicionalismo, anota Grosso, est inserido , na prpria mentalidade do jurista (...) 94 . Lembremos aqui, a ttulo de exemplo, a importncia que os juristas atribuem muitas vezes autoridade de seus predecessores, citando-os e emprestando s suas opinies mais valor que a argumentos de fundo 95 . Este fio condutor da tradio no impede as transformaes, mas est presente em todas as fases da histria do Direito Romano, at mesmo nas Compilaes de Justiniano 96 . Concluamos lembrando o apego dos romanos ao tradicionalismo com sua idia de manter a todo o custo os costumes que tivessem mostrado sua razo de ser atravs das geraes. O mos maiorum criou um quadro muito claro das instituies da sociedade e de seus fundamentos, que, em parte, estavam j respaldados por preceitos e proibies; quadro que, firmando-se num conservadorismo agrcola, transmitido de pais para filhos, conduziu por leitos seguros o conhecimento do Direito at o final da poca clssica 97 .

REALISMODois exemplos podem ser mencionados como manifestao do realismo: a atuao dos juristas, principalmente nos perodos pr-clssico e clssico, e a criao do jus honorarium. Nos perodos citados o Direito privado se manifesta de modo marcante como criao dos jurisprudentes que enfatiza Kaser (Derecho Romano Privado, p. 17), no so sbios idealistas, mas homens prticos que extraem seus conhecimentos e seu saber da prpria vida do Direito e que, por sua vez, influem com seus conhecimentos na prtica jurdica. A permisso dada aos magistrados com atribuies judicirias (exemplo: pretores, edis curuis e governadores nas provncias) de aplicar em matria de direito privado e direito processual princpios que no repousavam em explcitas bases legais foram admitidos por uma tcita tolerncia porque correspondiam a exigncias prticas), criando assim o jus honorarium, revela o senso realista que presidiu a evoluo histrica do direito romano. O direito honorrio foi introduzido por utilidade pblica (propter utilitatem publicam D. 1.1. 7 .1 ). Enfatizando o sentido dos romanos para a realidade da vida o qual, tanto na poltica como no Direito, levava-os a encontrar sempre os meios mais idneos para realizar suas intenes, Kaser anota: Este realismo conduzia a solues que se ajustavam de modo mais perfeito natureza das coisas e, portanto, normatividade da matria tratada 98 . Vale aqui repetir a observao de Biondi (Scritti Giuridici I, p. 326) : A atividade dos juristas guiada no por um vo intelectualismo, mas por uma finalidade prtica: os juristas compreendem muito bem que o direito no especulao, mas sim instrumento para satisfazer necessidades concretas e mutveis, e sempre a realidade da vida com todas as suas exigncias que guia o desenvolvimento do sistema. Concluamos estas breves consideraes sobre o realismo com dois textos que revelam de modo eloqente como o jurista romano prezava a realidade das coisas que nem a lei poderia, de qualquer forma, alterar. Gaio (I. 3, 794) : Pois nem a lei pode tornar ladro manifesto quem no o , como no pode tornar ladro quem absolutamente no o , ou tornar adltera ou homicida quem no nem uma nem outra cousa. (Neque enim lex facere potest, ut qui 18

manifestus fur non sit, manifestus sit, non magis quam qui omnio fur non sit, fur sit, et qui adulter aut homicida non sit, adulter vel homicida sit). Paulo (D. 41. 2 .1. 4) adverte que uma situao de fato no pode ser anulada pelo direito civil (res facti infirmari jure civili non potest).

CASUSMOO enfoque do Direito sob a perspectiva do caso concreto domina todos os perodos da histria do Direito Romano. Kaser sublinha que o Direito Romano manteve sempre este carter de casustica jurdica, ou melhor, de problemtica jurdica. E isto continua sendo certo embora tenha havido atos de codificao em tempos primitivos com as XII Tbuas e, depois, no final da Idade Antiga, com o Corpus Juris. Estas codificaes no excluem que o carter total do Direito romano e, concretamente, do clssico, tenha sido determinado pelo fato de que o conjunto das idias jurdicas se encarna nos problemas casusticos que os juristas resolvem e expem 99 .

INDIVIDUALISMO?Pode-se atribuir ao Direito Romano a caracterstica de individualista por ter reconhecido a liberdade e a autonomia do indivduo nas relaes com outros membros da sociedade ou por considerar o indivduo como titular de direitos subjetivos? De Martino, em interessante estudo sobre Individualismo e Diritto Romano Privato, chama a ateno para o fato de que essa autonomia e essa titularidade de direitos subjetivos constituem fundamentos essenciais do direito privado. 100 Por si s no seriam suficientes para caracterizar um sistema jurdico como individualista. Individualista, segundo De Martino, um sistema em que a liberdade individual concebida e regulada como fim em si mesma, fora de qualquer subordinao aos interesses do grupo os quais so simplesmente considerados como soma dos interesses individuais que, devendo existir, limitam-se reciprocamente em sentido negativo. O mesmo autor considera a posio da vontade individual no sistema das fontes, em Roma, bem limitada e definida 101 . Vejamos, a seguir, alguns exemplos citados por De Martino em que o Direito Romano aparece com um sentido social, tico, oposto ao individualista. 1. O formalismo na idade primeira do Direito Romano constitui a primeira vitria da sociedade sobre o individual 102 . 2. A tipicidade dos negcios, considerada como uma das categorias fundamentais do pensamento jurdico romano, revela-se um grave limite autonomia privada. Encontramos, com efeito, no Direito Romano figuras bem determinadas e definidas de negcios com seus elementos essenciais, com suas aes correspondentes 103 . 3. O cunho dado propriedade romana como senhoria absoluta, como poder independente, como ato de verdadeira soberania do paterfamilias, no constitui uma caracterstica ntida de individualismo? De Martino considera esse cunho, essa marca, no como uma exasperao individualstica, mas antes como afirmao da autoridade do pater, isto , de um grupo tnico autnomo, e cita Bonfante que procura demonstrar que quando necessidades gerais e absolutas da coexistncia social o exigiram, tambm a propriedade romana tolerava 19

limites 104 . Refutando a opinio muito difundida que acusa o condomnio romano de extremo individualismo, De Martino observa que o princpio do jus prohibendi, usado no Direito Romano direito de veto de um condmino em relao atuao de outro condmino no menos equnime e social que o princpio da maioria. Este, ao contrrio, mais francamente individualstico porque d aos mais fortes um poder quase tirnico contra os fracos, isto , contra os menores e mais modestos interesses 105 . 4. No direito das obrigaes, De Martino sublinha que as idias e tendncias sociais possuem uma fora preponderante 106 . A aceitao da bona fides (que no uma categoria originria do Direito Romano) constitui um critrio eminentemente social e tico e revela uma esplndida influncia das idias sociais sobre o direito 107 . 5. A atuao do pretor, intervindo contra a rgida aplicao do jus civile (conforme veremos mais adiante, especialmente no estudo do processo), acentuou mais o esprito social que impregna certos aspectos do Direito Romano.

DESIGUALDADEEstudando brevemente alguma das caractersticas do Direito Romano, Villey observa : O direito romano, sem dvida, incompleto. Admite a escravido, no protege os pobres, os doentes, os proletrios; est bem longe de fazer reinar uma perfeita igualdade entre os homens. 108 A idia difundida entre os intelectuais romanos pelo estoicismo de que todos os homens eram fundamentalmente iguais por direito natural (ver o que j escrevemos em pginas anteriores) era contrria ao esprito do Direito Romano que, segundo a clssica summa divisio de Gaio (1,9), dividia todos os homens em livres e escravos (omnes homines aut liberi sunt aut servi). A mentalidade que admite a igualdade fundamental dos homens como filhos do mesmo Deus, s triunfou graas pregao crist. Ao lado da desigualdade extrema entre livres e escravos, o Direito Romano admitia tambm desigualdade entre os prprios livres. Estudando o esprito do Direito Romano, Ihering enfatiza: Em Roma no existia direito nem Estado, seno para os romanos; ou para falar com mais acerto, o direito era circunscrito comunidade dos gentis. Gentilidade e capacidade civil plena, falta de gentilidade e completa incapacidade civil so, em sua origem, equivalentes 109 . Notem-se aqui duas modificaes impostas pela evoluo dos tempos. A concesso do commercium aos estrangeiros e a ampliao da concesso da cidadania. Focalizando as diferentes formas de proteo aos estrangeiros, Ihering observa : A mais apreciada consistia na concesso do commercium que fazia participar o estrangeiro das leis romanas sobre os bens, permitindo-lhe, por conseguinte, reclamar a proteo que o Estado garantia ao direito. J neste ponto o Direito Romano eleva-se concepo jurdica moderna que no estabelece distino entre os estrangeiros e os indgenas, com a importante diferena de que, o que em Roma era resultado de um privilgio concedido, ou de um pacto pblico especialssimo, entre ns a aplicao de um princpio geral e o efeito de uma idia jurdica superior. A concesso do commercium era, entre os romanos, a forma regular que dava acesso s relaes jurdicas internacionais 110 . Outra modificao importante introduzida com a Constituio de Caracala do ano 212 P.C. que, com algumas excees, concedia a cidadania romana a todos os sditos do Imprio, transformando esta cidadania, no dizer de Grosso, em uma cidadania universal do Imprio 111 .

20

Entre os prprios cidados romanos o Direito estabelecia desigualdades quanto capacidade jurdica. Assim, por exemplo, o cidado romano liberto (ex-escravo) formava uma classe parte e no possua a mesma capacidade dos cidados romanos ingnuos (que haviam nascido livres e jamais haviam sido escravos). Justiniano iria conceder a todos os libertos a condio de ingnuos 112 .

OUTRAS CARACTERSTICASEncerremos esta tentativa de apontar algumas caractersticas do Direito Romano com a observao de Villey segundo o qual esse Direito protege as liberdades individuais, com os direitos de contornos firmes assegurados a cada um; reconhece a autonomia da famlia com o ptrio poder; ensina ao homem a ter uma palavra e a mant-la; no estranho aos sentimentos humanitrios 113

21

Captulo III UTILIDADE DO ESTUDO DO DIREITO ROMANOPor que estudar Direito Romano? Como resposta bem geral a essa indagao poderamos repetir Von Ihering em sua j citada obra O Esprito do Direito Romano: Sucede com o Direito Romano o mesmo que com a fascinao que exercem certos indivduos sobre outros: sentem o encanto, sem saberem ao certo como se pde realizar. Tal foi a atrao que ele exerceu para aqueles que o estudaram. Todos tiveram a percepo de sua grandeza, alguns levaram-na ao mais cego fanatismo, mas ningum pensou em formular a justificao cientfica dessa percepo. Tm-se estudado a matria nos seus ntimos detalhes e, cada vez que se trata de formular uma opinio contentam-se em outorgar-lhe, nos termos mais gerais, em mais brilhantes testemunhos. Se s se aspirasse geral apreciao, se s se procurasse projetar luz brilhante sobre a grandeza do Direito Romano e no se tivesse outro fim seno convencer ao ignorante, ou fechar a boca ao ctico, bastaria deixar falar os fatos, porque a histria leva em si o melhor testemunho em favor da excelncia do Direito Romano: o papel que desempenhou assinala sua verdadeira grandeza. 114 Nas pginas seguintes vamos tentar demonstrar a utilidade do estudo do Direito Romano sob um duplo aspecto: cultural e prtico.

UTILIDADE DE ORDEM CULTURALCultura geral - Numa poca em que o pragmatismo e o tecnicismo ameaam bitolar as inteligncias, nunca ser demais sublinhar quo importante se constitui para o ser humano ampliar cada vez mais seus horizontes culturais adquirindo conhecimentos que lhe proporcionem uma ampla viso de conjunto dos fenmenos que entretecem toda a trama da civilizao, quer focalizada em sua horizontalidade atual, quer visualizada em sua verticalidade temporal. Em outras palavras: para o ser humano viver conscientemente sua insero no contexto histrico, indispensvel se torna : aquisio de um bom lastro do que se chama cultura geral, isto , de conhecimentos que no possibilitem necessariamente lucro pecunirio ou aplicao tecnolgica: Entre esses conhecimentos figuram de modo mpar os relativos Histria, de um modo geral, e, de um modo muito especial, Histria de nossa Civilizao Ocidental. Ora, a presena do Direito Romano uma constante em todas as fases da elaborao dessa Civilizao, desde suas razes clssicas at a poca contempornea. Compreende-se pois que, se o conhecimento da Histria de nossa Civilizao parte integrante do cultura geral e se o DirEito Romano constitui um elemento importante na formao dessa civilizao, o estudo, ainda que superficial, dos principais aspectos desse Direito, contribua para melhor compreenso dos fenmenos histricos e conseqente ampliao da cultura geral. Exemplifiquemos. A civilizao greco-romana o pedestal de nossa Civilizao e o Direito Romano constitui, sem dvida, um dos aspectos mais interessantes dessa civilizao. Sem uma noo

22

elementar da estrutura poltico-administrativa e das normas jurdicas que regeram o povo romano atravs das fases de sua longa histria, impossvel compreender plenamente a vida na Roma Antiga, a organizao da famlia romana e seu papel decisivo na Histria de Roma, o xito admirvel dos romanos na conquista, integrao e governo de povos os mais variados sob o ponto de vista racial e cultural, todos reunidos no vasto e imponente Imprio. Petit chama ateno para a importncia do Direito Romano no estudo da civilizao romana: O Direito indispensvel para compreender a histria e literatura romanas. Em Roma, mais que em qualquer outra parte, os cidados estavam iniciados na prtica do direito; era isto a conseqncia de sua inclinao natural e de seu sistema de organizao judiciria 115 . Outro exemplo. Pode-se afirmar, de um modo geral, que os brbaros germnicos invasores do Imprio Romano do Ocidente respeitaram o Direito Romano. Vasiliev acentua a influncia das normas jurdicas romanas sobre os Reinos Brbaros: Enfim, o Cdigo Teodosiano, introduzido no Ocidente na poca das invases germnicas exerceu, com os dois cdigos anteriores, as Novelas posteriores e alguns monumentos jurdicos da Roma Imperial (as Institutas de Gaio, por exemplo), uma grande influncia, direta e indireta, sobre a legislao brbara. A famosa Lei Romana dos Visigodos (Lex Romana Visigothorum) destinada aos sditos romanos no reino visigtico no seno uma abreviao do Cdigo Teodosiano e das outras fontes que acabamos de mencionar. Por isso a Lei Romana dos Visigodos se denomina tambm Brevirio de Alarico (Breviarium Aluricianum), do nome do resumo publicado pelo rei visigodo Alarico II, no incio do sculo VI. Este um exemplo de influncia direta exercida sobre a legislao brbara pelo Cdigo de Teodsio. Porm maior foi ainda a influncia indireta que exerceu por intermdio do supracitado cdigo visigtico. Na Alta Idade Mdia sempre que se alude Lei Romana, invariavelmente a Lei Romana dos Visigodos e no o verdadeiro Cdigo Teodosiano que se cita. Durante todo esse perodo e at a poca de Carlos Magno inclusive, a legislao da Europa Ocidental foi influenciada pelo Brevirio de Alarico que se converteu na principal fonte do Direito Romano no Ocidente 116 . Enquanto nas antigas provncias romanas do Imprio do Ocidente ocupadas agora pelos brbaros estava vigente o Direito Romano baseado no Codex Theodosianus e em algumas disposies legislativas subseqentes, mas anteriores a Justiniano, na pennsula itlica, aps a reconquista, pelas tropas bizantinas, passou a ter vigncia o Direito Justinianeu 117 . Sublinhe-se que este Direito, consubstanciado nas compilaes que posteriormente seriam designadas como Corpus Juris Civilis no se tornou conhecido em sua totalidade na pennsula itlica. Assim, por exemplo, o Digesto s foi conhecido provavelmente por estudiosos do Direito Romano, pois na prtica passou despercebido durante sculos. provvel que uma das causas desse lastimvel esquecimento se encontre na elevada linguagem dos jurisconsultos romanos que no estaria ao alcance dos talo-romanos habituados a um latim bastante decadente. As Institutas de Justiniano, entretanto, foram conhecidas e estudadas durante todo o perodo dos Reinos Brbaros e em pleno Mundo Feudal. Como o leitor facilmente concluir, a Histria da Europa nos sculos que seguiram a Queda do Imprio do Ocidente seria incompreensvel sem uma noo ainda que elementar do papel exercido ento pelo Direito Romano. Diga-se o mesmo da Histria da Europa Feudal, principalmente graas ao xito da difuso do Direito Romano especialmente o justinianeu. a partir da famosa Escola de Bolonha. A vida jurdica da Europa na poca do Mundo Feudal, a atuao dos legistas, a decadncia do sistema feudal, etc. constituem aspectos da Histria Medieval que s podem ser plenamente compreendidos levando-se em conta a maior ou menor influncia do Direito Romano 118 .

23

Cultura Jurdica

Que o conhecimento, ainda que elementar, do Direito Romano contribua para ampliar a cultura jurdica, parece-nos ocioso demonstrar. Limitemo-nos, pois, neste item, a chamar a ateno, meramente a ttulo de exemplo, para alguns aspectos da cultura jurdica em que a presena do Direito Romano marcante, especialmente no que concerne Histria do Direito e ao estudo do Direito Comparado. O que se escreveu a propsito da cultura geral evidencia que o Direito Romano atravs dos tempos constitui um captulo obrigatrio em qualquer estudo da Histria do Direito. Monier chama a ateno para a importncia do Direito Romano sob o ponto de vista histrico: Sob o ponto de vista histrico, o estudo das instituies jurdicas romanas permite seguir a evoluo das regras de direito no decurso de um perodo de mais de dez sculos: assistimos, de certo modo, ao nascimento de um direito ainda imperfeito e brbaro, seguimos seu desenvolvimento medida em que se transforma o meio econmico e social at o perodo dito clssico, quando, sob a influncia dos jurisconsultos, adquire um valor tcnico raramente igualado. Enfim, vemos a cincia jurdica entrar em decadncia no Baixo Imprio, em um perodo de depresso econmica e de perturbaes sociais 119 . Depois de uma brilhante demonstrao da importncia do jusromanismo como meio para proporcionar uma cultura histrico-jurdica, Floris Margadant chama a ateno para o fato de que o direito romano contribui tambm no sentido de ilustrao de teorias sociolgicojurdicas: No s histrica mas tambm sociologicamente, interessante o Direito Romano. Quantos temas de sociologia jurdica surgem durante a explicao de um sistema jurdico, do qual podemos observar mais de um milnio de desenvolvimento (desde as XII Tbuas at Justiniano, se aceitamos por um momento os limites tradicionais do ensino jusromanista) dentro de uma sociedade ou de feixe de sociedades cujos aspectos religiosos, literrios, polticos, militares, econmicos, etc. e cujas transformaes sociolgicas conhecemos com suficiente detalhe! Assim, durante nossos cursos de direito romano podemos por o aluno em contato com mltiplas ilustraes concretas de idias e teorias sociolgicas 120 . Ihering, depois de salientar que a importncia do Direito Romano para o mundo atual no consiste somente em haver sido por um momento a fonte ou origem do direito, anota: A sua autoridade reside na profunda revoluo interna, na transformao completa que fez sofrer todo o nosso pensamento jurdico e em ter chegado a ser, como o cristianismo, um elemento da civilizao moderna 121 . A presena do Direito Romano atravs dos tempos, desde as compilaes de Justiniano at nossos dias, comparada por Biondi com um rio majestoso que atravs de seu curso continuamente abandona e absorve elementos, mas que avana sempre 122 . Matos Peixoto sublinha a influncia do Direito Romano em cdigos legislativos modernos: A influncia do direito romano foi to profunda que nele se baseiam, em substncia, as legislaes modernas no campo do direito privado. Apesar de revogado, o direito romano no desapareceu: transformouse e adaptou-se s novas exigncias sociais. Seus preceitos ressurgem, modificados e refundidos, no Cdigo Civil Brasileiro e nos congneres estrangeiros. O direito romano pois a fonte dessas legislaes, a medula de seus dispositivos (Gaston May). Para se conhecer a evoluo das normas jurdicas procedentes dessas fontes e medir-lhes ou fixar-lhes o sentido e alcance, indispensvel remontar ao direito romano 123 . Vale aqui repetir Abelardo Lobo: Se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Cdigo Civil, verificaremos que mais de quatro quintos deles, ou seja, 1. 445, so produtos de cultura romana, ou diretamente apreendidos nas fontes da organizao justiniania, ou

24

indiretamente das legislaes que a foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, Alemanha, Frana e Itlia, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo e profundo para mitigar sua sede de saber 124 . Monier adverte: No esqueamos que o conhecimento dos princpios essenciais do direito romano encontra-se base de todo estudo de direito comparado, pois que o direito alemo sofreu ainda mais que os cdigos franceses ou italianos a influncia das regras emitidas pelos jurisconsultos; o direito anglo-saxo, em aparncia mais independente, encerra tambm bom nmero de regras de origem romana 125 . Vale citar, ainda, Matos Peixoto: Os romanos criaram assim, para sempre, as categorias do pensamento jurdico adotados por todos os povos cultos, mesmo por aqueles como o ingls, o norte-americano e o japons cujas legislaes se formaram fora da influncia romana. O direito romano , pois, necessrio para compreender a lngua comum aos jurisconsultos de todos os pases e por isso ao mesmo tempo a melhor preparao para o estudo do direito comparado e do direito internacional privado 126 . A presena do Direito Romano no se faz sentir somente em boa parte dos cdigos ocidentais, Ren David lembra: O atual Direito japons est absolutamente integrado no Direito Ocidental; ao romanista japons Harada foi possvel referir aos direitos ocidentais ou ao Direito Romano a totalidade dos artigos do Cdigo Civil japons 127 . De tudo isso fcil ser concluir a importncia do Direito Romano como pressuposto indispensvel para a melhor compreenso da Histria do Direito Comparado. Seja-nos permitido fazer aqui uma rpida comparao entre a importncia do estudo do Latim e do Direito Romano. O conhecimento da lngua latina perfeitamente dispensvel para que se fale ou escreva corretamente o portugus ou outra lngua romnica. Ningum, entretanto, ter uma perfeita compreenso de certos fenmenos de qualquer uma dessas lnguas sem um estudo prvio da gramtica histrica que, evidentemente, exige como pr-requisito indispensvel o conhecimento do latim. Em outras palavras, para que exista slida cultura filolgica indispensvel um estudo ainda que elementar do belo idioma de Ccero. No caso especfico da procedncia da maior parte das palavras da lngua portuguesa, no constitui um ornamento cultural saber que o acusativo considerado o caso lexiognico dessas palavras? Quanto ao Direito Romano, podemos afirmar tambm que possvel advogar tranqilamente sem o conhecimento do Direito Romano. Para uma cultura jurdica mais ampla, porm, parece-nos indispensvel uma noo ainda que elementar das origens de numerosos institutos de nossos cdigos, especialmente do Cdigo Civil. Que belo ornamento cultural para um advogado saber, por exemplo, referir a fontes romanas inmeros artigos de nosso Cdigo Civil, explicando a origem, a evoluo e a adaptao de institutos to familiares como o ptrio poder, a adoo, a legitimao, a tutela, a curatela, a emancipao, o dote, etc. No contribui para a cultura jurdica do advogado ter conscincia da preponderante influncia romana em nosso direito das obrigaes? E como poderia um jurista dedicar-se ao estudo da obra do genial Teixeira de Freitas sem um preliminar conhecimento do Direito Romano? 128

25

UTILIDADE DE ORDEM PRTICAA primeira utilidade de ordem prtica que poderamos atribuir ao estudo do Direito Romano provm de ser ele admirvel instrumento de educao jurdica, segundo observa Moreira Alves: Nas cincias sociais, ao contrrio do que ocorre nas fsicas, o estudioso no pode provocar fenmenos para estudar as suas conseqncias. bvio que no se pratica um crime nem se celebra um contrato apenas para se lhe examinarem os efeitos. Portanto, quem se dedica s cincias sociais tem o seu campo de observao restrito aos fenmenos espontneos, e o estudo destes, na atualidade, se completa com o dos ocorridos no passado. por isso que, se o qumico, para bem exercer sua profisso, no necessita de conhecer a histria da qumica, o mesmo no sucede com o jurista. Ora, nenhum direito do passado rene, para esse fim, as condies que o direito romano apresenta. Abarcando mais de 12 sculos de evoluo documentada com certa abundncia de fontes nele desfilam, diante do estudioso, os problemas da construo, expanso, decadncia e extino do mais poderoso imprio que o mundo antigo conheceu. assim o direito romano notvel campo de observao do fenmeno jurdico em todos os seus aspectos 129 . A utilidade prtica do conhecimento do Direito Romano aparece de modo insofismvel para os estudantes das Faculdades de Direito quando se chama a ateno para a ntima relao existente entre inmeros institutos do Direito Privado e do Direito Romano. de suma importncia didtica que os alunos, especialmente no primeiro ano do curso jurdico, tenham uma viso de conjunto das diversas categorias jurdicas que sero mais tarde aprofundadas especialmente atravs dos anos subseqenteS em que o ensino do Direito Civil assume revelo especial. Uma simples comparao do programa de Direito Romano privado com um ndice sistemtico do Cdigo Civil ser suficiente para demonstrar como o desenvolvimento do primeiro constitui um elemento propedutico de inestimvel valia em relao ao estudo do segundo. O Direito Romano oferece tambm ao estudante oportunidade para excelente exerccio de interpretao de leis e contratos conforme as regras constantes no Corpus Juris. Cabe aqui lembrar os brocardos jurdicos de Justiniano contidos no ltimo ttulo do Digesto sob a rubrica De Diversis Regidis Juris Antiqui. Embora muitas dessas sentenas j tenham perdido o seu valor em virtude da evoluo histrica do Direito, convm lembrar a observao de Limongi: Em grande parte, porm, estes brocardos apresentam uma lucidez alarmante trazendo ao esprito do estudioso um grande sentimento de admirao pelo fato de, decorridos quase dois milnios, haverem conseguido exprimir, de modo lapidar, verdades bsicas estveis da concepo do Direito 130 . Tambm no campo da casustica o Direito Romano oferece ao estudante vastas e interessantes possibilidades para exe