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Em publicação no volume Regulação Financeira, organizado por Rogério Sobreira para a Editora Atlas. INOVAÇÃO FINANCEIRA E REGULAÇÃO PRUDENCIAL: DA REGULAÇÃO DE LIQUIDEZ AOS ACORDOS DA BASILEIA Fernando J. Cardim de Carvalho * 1. Introdução: Risco Sistêmico e Regulação Prudencial Entre os poucos consensos estabelecidos no pensamento econômico, ainda que não se tenha transformado numa unanimidade, está o de que o sistema financeiro exibe uma dinâmica de funcionamento especial em pelo menos um aspecto chave, quando comparado aos outros setores da economia: a existência do chamado risco sistêmico. Risco sistêmico refere-se à possibilidade de que um choque localizado em algum ponto do sistema financeiro possa se transmitir ao sistema como um todo e, eventualmente, levar a um colapso da própria economia. Uma instituição financeira é uma empresa. A atuação de qualquer empresa em uma economia de mercado é cercada de riscos. A lógica essencial de uma economia capitalista, dita de livre empresa, é que nela o agente privado decide livremente como dispor dos recursos de que dispõe, mas é também inteiramente responsável pelos resultados que obtem. Os prêmios da atividade bem-sucedida devem ser apropriados privadamente pela empresa, mas a ela cabe também absorver sozinha as perdas resultantes de um eventual fracasso. Uma empresa está, assim, exposta a riscos variados, como o de ser gerida de forma incompetente, ser atingida por desastres naturais ou acidentes, ou ainda cair em desgraça aos olhos do publico, seja por problemas de reputação, seja por problemas de mudança de preferências dos clientes. Uma empresa individual está exposta, portanto, a choques que poderíamos chamar de idiossincráticos ou localizados. Quando uma empresa sofre tais choques, não há porque se esperar que as dificuldades sejam transmitidas a outras empresas do mesmo setor. Ao

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Em publicação no volume Regulação Financeira, organizado por Rogério Sobreirapara a Editora Atlas.

INOVAÇÃO FINANCEIRA E REGULAÇÃO PRUDENCIAL: DA REGULAÇÃO

DE LIQUIDEZ AOS ACORDOS DA BASILEIA

Fernando J. Cardim de Carvalho*

1. Introdução: Risco Sistêmico e Regulação Prudencial

Entre os poucos consensos estabelecidos no pensamento econômico, ainda que não se

tenha transformado numa unanimidade, está o de que o sistema financeiro exibe uma

dinâmica de funcionamento especial em pelo menos um aspecto chave, quando

comparado aos outros setores da economia: a existência do chamado risco sistêmico.

Risco sistêmico refere-se à possibilidade de que um choque localizado em algum ponto

do sistema financeiro possa se transmitir ao sistema como um todo e, eventualmente,

levar a um colapso da própria economia. Uma instituição financeira é uma empresa. A

atuação de qualquer empresa em uma economia de mercado é cercada de riscos. A lógica

essencial de uma economia capitalista, dita de livre empresa, é que nela o agente privado

decide livremente como dispor dos recursos de que dispõe, mas é também inteiramente

responsável pelos resultados que obtem. Os prêmios da atividade bem-sucedida devem

ser apropriados privadamente pela empresa, mas a ela cabe também absorver sozinha as

perdas resultantes de um eventual fracasso. Uma empresa está, assim, exposta a riscos

variados, como o de ser gerida de forma incompetente, ser atingida por desastres naturais

ou acidentes, ou ainda cair em desgraça aos olhos do publico, seja por problemas de

reputação, seja por problemas de mudança de preferências dos clientes.

Uma empresa individual está exposta, portanto, a choques que poderíamos chamar de

idiossincráticos ou localizados. Quando uma empresa sofre tais choques, não há porque

se esperar que as dificuldades sejam transmitidas a outras empresas do mesmo setor. Ao

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contrário, pode-se esperar que as outras empresas se beneficiem com os problemas

passados pelo competidor. Se uma empresa do setor automobilístico sofrer perdas que a

levem a encerrar suas atividades, as outras empresas do setor irão se beneficiar com a

possibilidade de ocupar o espaço deixado vazio. Não há, assim, porque esperar que possa

haver o contágio das dificuldades sofridas pela empresa atingida para as outras empresas

do setor, antes pelo contrário: é de se esperar que outras empresas se beneficiem com o

desaparecimento de um competidor e a abertura da possibilidade de expansão para ocupar

o espaço aberto.

No setor financeiro, em contraste, o fenômeno do contágio se oferece como uma distinta

possibilidade quando uma instituição passa por problemas. Pode-se avançar várias

hipóteses para explicar a elevada probabilidade a priori de contágio nesse setor, a maior

parte das quais repousa sobre o papel singular que a confiança do publico joga nos

mercados financeiros. Contratos financeiros são transações que envolvem obrigações e

direitos a serem exercidos em uma data futura. A factibilidade, e portanto o valor, desses

contratos depende da confiança que se tenha em que no futuro aqueles contratos possam

ser honrados do modo esperado. Se dificuldades com instituições financeiras que operam

com determinado conjunto de contratos sinalizarem dificuldades com os cenários

esperados, outras instituições podem também ser atingidas por dúvidas semelhantes. O

mercado se retrairá com o fracasso de uma empresa financeira, e ao invés da ocupação do

espaço vazio por concorrentes, o que o fracasso de uma instituição causará é o fracasso

de outras, em uma reação em cadeia. Este risco está presente mesmo quando o problema

original, com a primeira instituição, tenha se devido à incompetência de seus gestores e

quando as instituições que podem sofrer o contágio estejam perfeitamente sãs. Na

verdade, é este o cerne do problema do contágio, e das dificuldades que ele causará para

o desenho de uma estratégia eficaz de regulação financeira: contágio se refere ao risco de

que problemas em uma dada instituição venham a contagiar todo o mercado, mesmo que

as outras instituições estejam tomando todos os cuidados possíveis para manter a solidez

de suas operações. A possibilidade de contágio dos problemas de uma empresa para o

resto do setor, portanto, é um fenômeno especifico do sistema financeiro, em grande parte

* Do Instituto de Economia da UFRJ. O autor agradece o apoio do CNPq.

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por causa do papel especial que a confiança do publico exerce neste mercado e da

fragilidade característica de elementos de natureza tão subjetiva quanto este.

O fenômeno do contágio e do risco sistêmico, contudo, não se esgota na possibilidade de

dificuldades de uma empresa do setor se transmitirem para outras empresas do mesmo

setor. Há uma segunda dimensão de risco sistêmico, certamente ainda mais preocupante

que a anterior, que diz respeito à inserção especifica do sistema financeiro em uma

economia capitalista moderna. Trata-se da possibilidade de contágio de problemas do

sistema financeiro para a economia como um todo.

Novamente, em condições normais, não há muitos setores da economia cujo eventual

desaparecimento possa levar a economia como um todo ao colapso. Em economias mais

primitivas (ou pouco diversificadas), alguns setores podem concentrar de tal forma o

emprego dos fatores de produção disponíveis, que uma interrupção de atividades neles

possa significar a paralisia da economia como um todo. Em alguns países, a produção de

um determinado bem ou conjunto limitado de bens é responsável pela geração de fração

significativa da renda nacional. Problemas no setor causariam dificuldades para todo a

país. Neste caso, porem, não há contágio: o que há é a impossibilidade de distinguir-se a

dimensão micro da macroeconômica.

A possibilidade de contágio seria relevante se, ao invés do ocorrido no primeiro caso, de

transmissão de problemas de uma empresa para o restante do setor, agora se tratasse da

transmissão de problemas setoriais para a economia como um todo. Novamente, também

aqui o setor financeiro é peculiar. Economias podem seguir funcionando quando

praticamente qualquer um dentre todos os outros setores sofra um colapso, mas

dificilmente poderá fazê-lo se o setor atingido for o setor financeiro, ou mais

precisamente o sistema bancário. Em outras palavras, uma crise no setor bancário

fatalmente se transmitirá (contagiará) o resto da economia, arrastando-a consigo para a

crise.

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Como no caso anterior, as razões pelas quais problemas no sistema bancário ameaçam o

resto da economia não são ainda inteiramente conhecidas, apesar do fenômeno interessar

a acadêmicos e reguladores há décadas. Há pelo menos dois canais de contágio que são,

de qualquer forma, obviamente relevantes. Por um lado, o mais evidente, ainda que não

necessariamente o mais importante, é o papel do sistema bancário na criação de um

insumo de uso generalizado, o crédito. Por outro, e ao que tudo indica mais importante

ainda que muito menos conhecido, o sistema bancário é responsável pela operação do

sistema de pagamentos mais essencial de uma economia moderna, baseado na

transferência de depósitos à vista entre bancos comerciais.

Praticamente todas as operações relevantes praticadas entre agentes privados não-

bancários em uma economia de mercado moderna são liquidadas através da transferência

de direitos sobre depósitos à vista mantidos nos bancos comerciais. Economistas não são

normalmente treinados para perceber a importância deste mecanismo. Aprende-se que

mercados se equilibram quando as curvas de oferta e demanda por um determinado bem

ou serviço, se interceptam, determinando o preço que satisfaz a ambos os grupos de

transacionadores, como se a operação de troca terminasse ali. Nenhum manual de

microeconomia se pergunta o que acontece em seguida, particularmente como a operação

é completada com a entrega da mercadoria e com a liquidação do pagamento por parte do

comprador do bem. Grande parte da teoria econômica, e neste caso não apenas a

ortodoxa, ainda mereceria o irônico qualificativo cunhado por Minsky de teorias da “feira

da aldeia” no que se refere à sofisticação com que concebe a liquidação de obrigações.

Pensa-se na entrega de papel-moeda ou mesmo na entrega de alguma outra mercadoria na

liquidação da obrigação gerada pela aquisição do bem, quando na verdade o processo é

muito mais complexo e arriscado, já que consiste não na simples entrega de papel-moeda

criada pelo governo mas, principalmente, no reconhecimento e transferência de direitos

sobre obrigações privadas, que são os depósitos à vista nos bancos comerciais.

Ao contrário do papel-moeda, cuja aceitação é geralmente obrigatória, de acordo com as

leis de contratos de cada país (que define sua moeda legal), o depósito à vista é uma

obrigação privada de aceitação estritamente voluntária. Um depósito à vista nada mais é

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do que a promessa feita por um agente privado, o banco, de entrega de um montante

determinado de moeda legal a qualquer momento em que o detentor desta obrigação

assim o deseje. A equivalência entre depósitos à vista e moeda legal, aos olhos do

público, que os transforma em substitutos perfeitos (e os depósitos à vista em meios de

pagamento) depende da confiança que o publico tenha de que aquela promessa possa

efetivamente ser honrada a qualquer momento por parte do banco que aceitou o depósito.

A eventual perda, ou mesmo o abalo desta confiança, pode levar os depositantes a

testarem a capacidade de um banco em resgatar os depósitos como prometido. Se isto

ocorrer, nos encontraremos no limiar do que se chama de corrida bancária.

Para entender-se o fenômeno da corrida bancária é preciso partir-se do reconhecimento

de que bancos modernos operam no chamado sistema de reserva fracionária. Bancos

comerciais definem-se pela exclusividade na aceitação de depósitos à vista, forma de

captação cujas características são únicas dentre o universo de contratos financeiros.

Depósitos à vista tem maturidade zero e valor fixado, ao par, em termos da moeda legal.

Estas duas características tornam este tipo de aplicação um substituto perfeito da moeda

legal, se o público perceber o risco de crédito do banco como nulo. Em outras palavras, o

publico será indiferente entre manter saldos transacionais sob a forma de moeda legal ou

sob a forma de depósitos à vista nos bancos comerciais sempre que não houver dúvidas

sobre a capacidade dos bancos de honrar as características do contrato. Os próprios

bancos comerciais, contudo, não podem dar esta garantia. Na verdade, a operação normal

destas instituições expõe os depósitos a um elevadíssimo risco de crédito. À medida em

que o publico se acostume à conveniência do uso de depósitos como meio de pagamento,

em substituição à moeda legal, as retiradas tenderão a diminuir de freqüência e valor.

Contando com sua própria experiência, bancos aprenderão que dos depósitos existentes a

qualquer momento, apenas uma pequena fração estará sendo provavelmente resgatada.

Isto permite a bancos criar depósitos muito alem de suas reservas em moeda legal, no

processo conhecido como multiplicador bancário. Deste modo, a cada momento há um

valor muito maior em depósitos aceitos pelos bancos do que reservas em moeda no caixa

dos bancos, fazendo com que, na realidade, bancos estejam prontos a honrar apenas uma

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fração dos compromissos criados sob esta forma.1 Do ponto de vista do depositante,

portanto, o risco de crédito dos depósitos à vista deveria ser extremamente elevado. É

importante lembrar que, às duas características do depósito à vista já mencionadas dve-se

agregar uma terceira, a de que resgates são realizados por ordem de pedido, de modo que

os primeiros depositantes a resgatarem seus depósitos poderão fazê-lo integralmente, até

que as reservas sejam exauridas, a partir do que os depositantes que estiverem no final da

fila nada receberão.2 As três características juntas praticamente garantem a repetição

periódica de corridas bancárias na ausência de medidas específicas para impedi-las.

Qualquer razão que faça um depositante tornar-se mais consciente do risco de crédito que

está correndo ao deixar recursos depositados em um banco poderá detonar uma corrida.

Assim, a substitubilidade entre moeda legal e depósitos à vista só pode ser obtida se o

risco de crédito associado aos depósitos seja percebido como nulo, isto é, equivalente ao

risco de crédito que cerca a moeda legal.

Para que o risco de crédito seja zero, é preciso criar instituições que garantam que bancos

poderão cobrir retiradas em quaisquer circunstâncias, inclusive aquelas em que o próprio

banco está sendo incapaz de realizar seus ativos. Esta garantia não pode ser dada por

instituições privadas que, por definição, são vulneráveis a falências. Ela tem de vir do

Estado, que, tendo o monopólio de emissão da moeda legal, tem sempre a possibilidade

de suprir aos bancos a quantidade de moeda que for necessária para permitir que os

resgates desejados sejam honrados.

As razões que levam o Estado a estender estas garantias (através da criação de bancos

centrais como emprestadores-de-última-instância ao setor bancário, por exemplo ou de

instituições de seguros de depósitos) não podem ser exploradas neste artigo, já que tem a

ver com o aumento da eficácia do processo de política monetária. Aceitando-se, contudo,

como um fato empírico que esta garantia será estendida, chega-se a um quadro

relativamente instável em que o publico aceita manter seus saldos transacionais sob a

forma de depósitos à vista enquanto houver a confiança em que os bancos serão capazes

1 Para uma introdução à operação do sistema de reserva fracionária, veja-se Carvalho et alli (2000), cap. 14.2 Este sistema se contrasta com o rateio, característico de outras formas de aplicação.

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de honrar os resgates desejados, seja por seus recursos próprios, seja pela ajuda do

emprestador-de-última-instância. Este quadro pode ser instável pelas dúvidas que podem

subsistir na mente do público quanto à capacidade, vontade ou agilidade do Estado em

fazer valer as garantias que oferece.

Uma vez que esta substitutibilidade entre moeda legal e depósitos à vista se enraíze na

economia, um novo tipo de risco sistêmico emerge, que é o de que a possibilidade de um

colapso de um banco comercial comprometa o sistema bancário (pelos canais discutidos

anteriormente, como a perda de confiança em um dado banco que pode resultar da

observação de que outro banco foi fechado ou enfrentou graves dificuldades) e que o

eventual colapso do sistema bancário paralise a economia como um todo e que os

mecanismos de proteção criados não se mostrem suficientes para evitar perdas aos

depositantes. Assim, se a corrida bancária ocorrer, esta segunda manifestação de risco

sistêmico simplesmente consiste na percepção de que um colapso do sistema bancário

paralisaria o principal sistema de pagamentos da economia, aquele através da

transferência de titularidade sobre depósitos à vista mantidos nos bancos comerciais.

Neste caso, o contágio se dá do sistema bancário para o resto da economia, pelo simples

fato de que praticamente nenhuma operação senão aquelas de valor muito baixo pode ser,

hoje em dia, liquidada através da entrega de papel moeda. O eventual fechamento dos

bancos comerciais impediria que se completasse quaisquer outras transações de mercado

que não aquelas de valor muito pequeno. A paralisação do sistema bancário nos primeiros

meses do Plano Collor, em 1990, ou a testemunhada na Argentina em seguida ao colapso

de 2001 e introdução do “corralito”, ilustra a redução de atividade econômica que resulta

do bloqueio do sistema de pagamentos via depósitos.

Contágio, assim, é uma manifestação especifica ao sistema financeiro da noção de

externalidade, um tipo de imperfeição de mercado que exige uma intervenção corretiva.

No caso do sistema financeiro, esta intervenção toma duas formas: a criação de redes de

segurança, para evitar que choques possam causar os problemas sistêmicos descritos, e a

definição de regras de regulação e supervisão que reforcem a capacidade do sistema de

evitar ou absorver choques. Esta forma de regulação será chamada de prudencial,

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indicando que se destina a reduzir a exposição do sistema financeiro a riscos que possam

se propagar por toda a economia. Como a possibilidade de contágio é, ao que tudo indica,

única ao setor financeiro, a regulação prudencial será igualmente uma exigência

praticamente única ao setor.3

2. A Estratégia Tradicional da Regulação Financeira: O Foco em Liquidez

Como visto, o problema que desafia o regulador é a possibilidade de contágio, isto é, o

risco sistêmico criado na atividade do setor financeiro. Idealmente, a regulação deveria

estar voltada para o controle (ou, idealmente, a eliminação) dos canais de contágio de

problemas, de forma a que se pudesse restaurar no setor financeiro a regra central de

disciplina de mercado pela qual uma empresa faz o que quiser com os recursos que

controla, mas paga sozinha os custos de decisões que se mostrem a posteriori

inadequadas. A principal dificuldade para aplicar este princípio reside, em grande

medida, na importância desmedida que a variável confiança tem para a operação do setor.

A falência de uma instituição financeira traz consigo um possível aumento do grau de

desconfiança com relação a instituições semelhantes que pode levar o público a esperar a

repetição de problemas semelhantes e, por conseguinte, a se precaver, liquidando seus

negócios com a instituição ameaçada e, com isso, efetivamente condenando-a a

desaparecer. Idealmente, o papel da autoridade responsável por garantir a estabilidade do

sistema financeiro deveria estar confinado à sinalização de que problemas em uma

instituição são isolados e que não colocam em risco o resto do sistema. Tal tarefa,

contudo, tem se mostrado impossível, até mesmo pelo pouco conhecimento que ainda

hoje se tem (e talvez nunca possa ser significativamente aumentado) dos determinantes

dos estados de confiança do público.

Nestas circunstâncias, as estratégias regulatórias até hoje adotadas buscam uma

alternativa, um second best: se o ideal de permitir que instituições paguem

individualmente por seus erros, sem contagiar terceiras empresas, é inatingível, será

melhor (ou, pelo menos, assim se tem acreditado) tomar todas as medidas necessárias

3 Uma discussão que diverge desta nas ênfases dadas a cada fator é oferecida em Goodhart et alli (1998).

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para minimizar a freqüência com que instituições financeiras se vêem às voltas com

dificuldades que criam temores no público em geral. Por esta razão, a estratégia

alternativa da regulação financeira focalizará não os processos de transmissão de

dificuldades, mas as próprias instituições financeiras. Será visto como necessário

garantir que tais instituições, dentre as quais, particularmente, bancos, se exponham o

menos possível a riscos que venham a comprometer efetivamente sua existência, porque

se teme que uma vez observada a falência de uma instituição individual, todas as outras

possam ser ameaçadas pela redução da confiança dos depositantes no mercado financeiro

em geral. A manutenção da confiança é meta tão importante que o Estado criará também,

paralelamente, a rede de segurança para garantir que se, apesar das precauções, ainda

assim bancos incorrerem em dificuldades, os depósitos à vista serão honrados de

qualquer forma. A combinação regulação/rede de segurança se constitui, deste modo, em

um único fenômeno, dois lados da mesma moeda.

A implicação da argumentação feita até aqui é que o foco da regulação prudencial,

voltada para o setor bancário por ser onde o risco do sistema financeiro pode se

transformar em risco global (em função dos efeitos de um colapso do sistema de

pagamentos), será o banco individual e não as relações interbancárias que podem ser vir

de canal de contágio de crises.

Tendo em conta que a manifestação mais visível da crise sistêmica consistia na corrida

bancária, não deveria surpreender que o foco original da atividade reguladora fosse

justamente a liquidez dos depósitos. O emprestador-de-última-instância (e, mais tarde, os

seguros de depósitos) serviria, naturalmente, de última linha de resistência na garantia da

segurança do sistema bancário. No entanto, havia muitas razões pelas quais este

instrumento devesse ser mantido em reserva, para ativação apenas em ocasiões

excepcionais. Em primeiro lugar, a existência deste emprestador representa um subsídio

que a sociedade (através do Estado) dá ao setor bancário4. Como todo subsidio, sua

4 Mesmo que a disponibilização dos recursos seja feita a custos punitivos, como, por exemplo, se afacilidade usada é o redesconto de liquidez, a taxas de juros superiores às do mercado. O subsídio existe àmedida em que em circunstâncias semelhantes empresas que operam em qualquer outro setor

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concessão é sempre polêmica em termos políticos e econômicos, já que pode gerar

incentivos perversos.5 Por outro lado, o emprestador entra em cena quando o mercado

bancário já está sob tensão, quando as fontes de financiamento normais com que conta

um banco (por exemplo, o mercado interbancário de reservas) já se fechou para a

instituição que busca apoio. Dinâmicas destrutivas se tornam muito mais prováveis nestas

circunstâncias. Se o instrumento ativado for o seguro de depósitos, ao invés do

redesconto, a situação será certamente ainda pior, pois isto só se dá quando o banco já

sofreu algum tipo de intervenção aberta, criando comoção no mercado. Do ponto de vista

do depositante, a existência de um seguro de depósito, se bem serve para tranqüilizá-lo

quanto à perda de seus recursos, não é suficiente, porem, para evitar perdas de bem-estar.

Isto porque durante o período em que a validade dos registros de depósitos é examinada,

previamente à liberação dos seguros, o depositante vê seus saldos transacionais se

transformarem involuntariamente em aplicações financeiras de curto prazo (já que sua

liberação deixa de ser imediata), sem o concorrente pagamento de juros. Por esta razão,

ainda que exista o seguro de depósito, este pode não ser suficiente para prevenir corridas

contra bancos saudáveis por parte de depositantes que queiram se antecipar a possíveis

períodos de indisponibilidade no caso de seus bancos também sofrerem dificuldades

semelhantes.

Por todas estas razões, o regulador buscará atuar ao nível da instituição bancária

individual no sentido de minimizar a probabilidade de ocorrência de situações onde o

banco se veja impedido de funcionar normalmente. A evolução dos meios e modos de

perseguir esta meta servirá para diferenciar o método de regulação e supervisão

utilizados desde o início do século XX, da regulação de liquidez aos acordos da Basiléia.

A meta, no entanto, não mudou em todo este período.

O foco na liquidez dos depósitos foi funcional enquanto a instituição bancária manteve

um perfil relativamente simples de atividades. Durante grande parte do século XX,

provavelmente verão negado seu acesso a qualquer fonte de recursos, enquanto que bancos podem ficarseguros que as demandas serão satisfeitas, mesmo se a custos mais altos que o normal.5 Este é o núcleo do argumento dos que criticam a existência de redes de segurança pelo risco moral quecriam.

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bancos depositários captaram recursos principalmente através de depósitos à vista, e

aplicaram-nos em empréstimos de maturidades curtas e, no máximo, médias. O

envolvimento destas instituições com mercados de capitais era limitado, seja por força de

regulação, como no caso dos Estados Unidos a partir da grande depressão dos anos 1930,,

seja pela inexistência de mercados de títulos significativos, como no caso da Europa

ocidental e do Japão.

A transformação da atividade bancária foi relativamente lenta no período anterior à

segunda guerra e nas primeiras duas décadas que se lhe seguiram. Em grande medida, as

mudanças relevantes havidas neste período deveram-se à própria existência da regulação

nos termos descritos. À medida em que a regulação de liquidez focalizava mais

concentradamente os depósitos à vista, ela própria acabava por servir de estímulo aos

bancos para procurar outras fontes de captação, que preocupassem menos os reguladores

e, com isto, estivesse sujeita a um conjunto menor de restrições regulatórias. Mas os

depósitos à vista não eram apenas de interesse de reguladores prudenciais. Também a

política monetária voltava-se principalmente para o comportamento dos depósitos, na

busca por controle do estoque de meios de pagamento em circulação. Algumas das mais

importantes inovações financeiras dos anos 1950 no setor bancário dos Estados Unidos, o

surgimento de CDBs e o desenvolvimento do mercado interbancário de reservas, foram

respostas a pressões de política monetária pelo Federal Reserve.6

As inovações mais radicais, no entanto, tiveram lugar a partir da década de 1970, quando

se abriu um processo de transformação dos métodos de suprimento de serviços

financeiros cujo fim ainda não está à vista. Os intensos choques macroeconômicos

sofridos a partir da aceleração da inflação americana nos anos 1960, como os aumentos

de preços das matérias primas (especialmente o petróleo) em 1973 e 1979, o colapso do

sistema de taxas de câmbio fixas mas ajustáveis de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a

adoção de políticas monetárias contracionistas por praticamente todos os países

industrializados no final daquela década, e os movimentos de desregulação financeira

doméstica e, posteriormente, de liberalização de movimentos internacionais de capitais,

6 Veja-se Minsky (1982), cap.7.

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particularmente no mundo desenvolvido, tiveram como resultado o crescimento

dramático da volatilidade de preços, taxas de câmbio e taxas de juros em praticamente

todo o mundo. A incerteza que cerca transações financeiras cresceu de forma aguda

forçando as instituições e mercados financeiros a modificarem suas práticas de modo a

permitir sua adaptação à operação neste quadro.

Novos mercados surgiram, notadamente aqueles voltados para negociar não mais

recursos financeiros propriamente, mas os riscos envolvidos nestes negócios. Os

mercados de derivativos expandiram-se precisamente em resposta à demanda por

proteção por parte de agentes privados e de instituições financeiras desconfortáveis com

os riscos que assumiam mesmo em operações tradicionais no novo contexto. Contratos

com derivativos permitem decompor os riscos implícitos na obrigação para negociação

em separado. Um simples empréstimo, por exemplo, está exposto a riscos que antes

passavam despercebidos, como o risco de que a atividade que está sendo financiada não

alcance os retornos esperados, não por incompetência do tomador de recursos mas por

causa de movimentos inesperados de preços relativos, que podem ser intensos quando a

inflação se acelera, ou de variações bruscas nas taxas de juros causadas por mudanças

imprevistas na política monetária ou, ainda, se se tratar de operações em mercados

externos, por causa de flutuações do câmbio que antes não podiam ocorrer em função do

acordo de Bretton Woods. O aumento da volatilidade apontado acima mostrou que estes

movimentos, a partir dos anos 1970, poderiam ser fatais.

Intermediários financeiros em geral, e bancos em particular, vão sentir este aumento de

incerteza de modo mais intenso, já que a intermediação financeira internaliza esses riscos

no balanço da instituição. O banco passa a concentrar em seu balanço riscos de toda

natureza, como resultado dos descasamentos de maturidades, de liquidez, de câmbio, etc,

que eram sua própria razão de existência, em escala que tudo indicava ter passado a ser

inadministrável.7

7 A noção tradicional de firma bancária sempre acentuou seu papel de transformador de maturidades e deliquidez, vendendo obrigações de curto e curtíssimo prazo ao publico aplicador (como depósitos, por

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Depois de uma década particularmente problemática para as instituições financeiras,

especialmente nos Estados Unidos, como foi a década de 1980, mudanças profundas

tiveram lugar no sistema financeiro que inviabilizaram definitivamente as estratégias de

regulação tradicionais. As inovações financeiras mais importantes que resultaram deste

quadro foram o impulso ao processo de securitização, o desenvolvimento dos mercados

específicos para risco (derivativos) e a transformação da firma bancária.8

O processo de securitização não abarcou apenas a expansão rápida dos mercados de

títulos tradicionais, como as ações e títulos de dívidas de empresas, mas incluiu também

dois outros tipos de canais antes servidos pela intermediação bancária. Por um lado,

certas demandas de recursos, antes atendidas por bancos, passarão a ser atendidas pelo

mercado de títulos. O exemplo mais importante desta modalidade de securitização foi a

expansão dos mercados de papéis de curto prazo, os commercial papers. A oferta de

recursos de curto prazo, para capital de giro, foi por muito tempo a área por excelência de

atuação dos bancos comerciais. Durante os anos 1980, contudo, nos Estados Unidos,

grandes empresas verificaram que poderiam captar recursos colocando papéis

diretamente junto a investidores (evitando a intermediação bancária, portanto) pagando

taxas de juros menores que aquelas pagas pelos próprios bancos para captar depósitos.

Note-se que bancos ainda imporiam um spread (diferencial de juros) sobre estas taxas de

captação para colocar os recursos obtidos à disposição de empresas, tornando o crédito

bancário excepcionalmente caro quando comparado à colocação direta de commercial

papers. Esta situação era resultado da percepção por parte dos investidores de que, nos

anos 1980, bancos eram tomadores especialmente arriscados, já que estavam envolvidos

em diversas crises, como as dos empréstimos para países subdesenvolvidos, ao setor de

energia e à construção que estavam se desenrolando naqueles anos. Assim, os aplicadores

cobrariam mais dos bancos do que cobrariam das empresas, já que estas não estavam

sofrendo dificuldades tão graves quanto as do setor bancário.

exemplo) e emprestando a prazos maiores aos tomadores. O mesmo se daria em termos de liquidez, demoedas de denominação, etc. O ganho do banco decorreria exatamente da aceitação destes riscos.8 Para uma discussão destas tendências enfatizando implicações para a teoria de operação dos mercadosfinanceiros, veja-se Carvalho (1997).

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Outra manifestação importante do processo de securitização teve lugar no financiamento

hipotecário. A década de 1980 testemunhou o colapso dos bancos de poupança e das

associações de poupança e empréstimo nos Estados Unidos. Estas instituições eram

caracterizadas pelo agudo descasamento de maturidades entre seus ativos (muito longos)

e seus passivos (muito curtos) que as tornava extremamente vulneráveis a aumentos da

taxa de juros, como os que se deram a partir de 1979 naquele país. A falência das

instituições financeiras do setor obrigou a criação de um novo mercado para o

financiamento hipotecário. Neste novo mercado, as instituições financeiras apenas

originam empréstimos, empacotam-nos e os revendem a investidores, principalmente

investidores institucionais como fundos de pensão ou de investimento. Securitização aqui

significa transformar ativos que antes permaneciam nos balanços dos bancos em ativos

que possam ser negociados com investidores.

Os bancos comerciais e bancos de poupança que perdem participação no mercado

financeiro como resultado do processo de securitização têm de adaptar sua forma de

operação para encontrar algum espaço de operação nestas novas condições. O mercado

de títulos abre vários espaços deste tipo para os bancos capazes de se adaptar. Estes

papéis são normalmente vendidos apoiados por reforços de credito (credit enhancement),

dispositivos que servem para aumentar a liquidez dos papéis. O suprimento destes

reforços de crédito permitiu a muitos bancos encontrar um nicho nos novos mercados e

defender seus lucros sem se expor aos riscos de anteriormente.

Genericamente, as transformações por que passa o setor bancário, envolvem o

crescimento da participação nos mercados de títulos, emulando (e concorrendo com)

bancos de investimento. Depósitos perdem importância relativa para este banco que se

transforma, já que, como no caso de bancos de investimento, formas permanentes de

financiamento não têm tanta importância para instituições que não precisarão reter os

ativos por muito tempo em seus balanços. Poucos bancos abandonarão inteiramente, ou

mesmo a maior parte, de seus negócios tradicionais. Em tese, os bancos diversificados,

com atuação tanto como intermediário financeiro quanto como corretor nos mercados de

15

títulos, teriam melhores condições de sobreviver a turbulências financeiras e

macroeconômicas do que instituições capazes de concentrar suas atividades em apenas

um segmento. Durante os anos 1990, o modelo de banco universal, uma instituição em

tese capaz de operar em todos os segmentos relevantes do mercado financeiro, converte-

se no modelo ideal de firma bancária, aos olhos do setor, especialmente para aqueles

bancos comerciais que querem reduzir sua exposição aos riscos antes mencionados.

A eficácia do banco universal permanece tema polêmico até o presente. As evidências

não são conclusivas nem a favor nem contra a existência de economias de escopo na

atividade financeira. Os exemplos históricos são pouco relevantes, já que praticamente

toda a historia do setor bancário nos Estados Unidos do século XX se deu em um

contexto de um sistema financeiro segmentado em compartimentos estanques, enquanto

países como a Alemanha, que permitiam a existência de bancos universais, nunca tiveram

mercados de capitais significativos que servissem como fronteira de expansão para suas

instituições bancárias. O banco universal, até a década dos 1990, era apenas um conceito

teórico, cujas características empíricas ainda estavam (e estão) por ser conhecidas.

De qualquer forma, as inovações financeiras que tiveram lugar em torno da expansão dos

mercados de títulos não eram movidas por preocupações teóricas ou mesmo regulatórias,

mas, sim, por pressões do mundo real, que mantem-se fortes ainda hoje. Assim, as

incertezas sobre os méritos teóricos do banco universal não detiveram os bancos

comerciais que buscaram desesperadamente abrir canais mais promissores de expansão

do que a atividade bancária tradicional. Depósitos à vista perderam importância relativa,

como também perderam os empréstimos, desenvolveram-se novas formas de hedge por

parte dos bancos, como o apelo ao mercado de derivativos, e novos produtos.9 Com este

movimento, a vulnerabilidade a riscos, preocupação central do regulador prudencial,

perdeu nitidez, forçando a mudança nos métodos de regulação e supervisão financeira até

então aceitos. A percepção da inadequação dos métodos de regulação e supervisão

empregados até então, porem, não se estabelecerá de forma clara imediatamente. Ao

contrário, o processo de transformação das estratégias de regulação será incerto e

9 Uma excelente discussão destas tendências é oferecida em Kregel (1998).

16

tateante, de modo muito semelhante à evolução do próprio mercado. O próprio passo

inicial do processo de modernização da estratégia regulatória não será, ao que tudo

indica, percebido como tal senão após sua própria introdução na década dos 1990 e da

verificação de seus efeitos.

3. O Acordo da Basiléia de 1988

O Comitê da Basiléia para a Regulação Bancária é um dos comitês mantidos pelo BIS

para servir como fórum de debates entre representantes dos governos do G10, acionistas

da instituição. Desde o inicio dos anos 1980 este comitê examinava a possibilidade e a

oportunidade de introduzir mudanças nos métodos de regulação bancária nos países do

G10. Regulação e supervisão financeiras são áreas de decisão doméstica. Não há

autoridades internacionais encarregadas de definir e aplicar regras ao sistema financeiro.

O Comitê da Basiléia, neste quadro, não tem poder para determinar a implementação de

qualquer estratégia. Reunindo autoridades do grupo de países mais avançados, contudo,

suas recomendações são, espera-se, muito influentes e têm alta probabilidade de serem

absorvidas pelos sistemas domésticos de regulação e supervisão financeiras.

O Acordo da Basiléia de 1988, na verdade, foi um resultado mais da globalização

nascente do que da que percepção da necessidade de uma reorientação estratégica dos

métodos de regulação financeira pelas razões referidas acima. O objetivo do acordo era,

na verdade, bastante modesto, se comparado com o papel que veio a assumir na década

dos 1990. Seu móvel principal foi o nivelamento do campo de jogo, na expressão

americana, para a concorrência entre grandes bancos. De fato, logo no inicio do

documento é explicado que as recomendações ali feitas tinham como alvo apenas os

bancos internacionalmente ativos. Na introdução ao acordo, temos assim definidos os

seus objetivos:

“Dois objetivos fundamentais estão no coração do trabalho do Comitê sobre a

convergência regulatória. Estes são, primeiro, que a nova estrutura deveria servir para

reforçar a saúde e a estabilidade do sistema bancário internacional; e, em segundo lugar,

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que a estrutura deveria ser justa e ter um alto grau de consistência em sua aplicação a

bancos em diferentes países com vistas a diminuir uma fonte existente de desigualdade

competitiva entre bancos internacionais. ... a estrutura [proposta] pelo Comitê é dirigida

mais especificamente a bancos que participem do mercado internacional.” (BCBS, 1988,

pp. 1-2; ênfases acrescentadas)

O processo de liberalização financeira e globalização tinha colocado em confronto direto

bancos americanos, bancos europeus e bancos japoneses. No início dos anos 80, os

bancos americanos parecem ser os mais frágeis neste confronto, envolvidos por crises, e

limitados nas suas escolhas de diversificação de atividades pela lei Glass/Steagal. Ao

mesmo tempo em que estes bancos enfrentavam a concorrência dos novos mercados que

surgiam, como os criados pela securitização, tinham de enfrentar também bancos

estrangeiros em sua própria estreita área de atuação. Bancos comerciais e autoridades do

setor passam a fazer pressão por mudanças de regras que superassem o que era percebido

como desvantagens competitivas injustas impostas às instituições americanas, seja pela

legislação doméstica, como no caso da lei Glass/Steagal, seja por outras características do

setor nos Estados Unidos, que se comparavam desfavoravelmente com o encontrado em

outros países. Uma desvantagem que foi particularizada era a característica dos bancos

americanos de operar com capital próprio relativamente elevado, enquanto bancos

europeus e japoneses operavam praticamente apenas com recursos de terceiros. Esta

diferença implicava custos de capital mais elevados para bancos americanos, que tinham

de emitir ações ou outras formas de papéis para constituir um patrimônio líquido que

bancos concorrentes estavam dispensados de obter. O Acordo da Basiléia de 1988

consistirá principalmente na transformação da exigência de capital próprio numa norma

regulatória aplicável a todos os competidores. Por esta razão, o acordo estava voltado

apenas para os bancos internacionalmente ativos. A definição de uma exigência de

coeficientes de capital próprio para os bancos não tinha como razão central a busca de

normas prudenciais alternativas ao foco sobre liquidez, que tinha sido característico do

período anterior, mas, sim, a equalização de condições competitivas entre bancos

americanos, europeus e japoneses. O acordo resultou mais da percepção, portanto, de que

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a competição era injusta do que da percepção de que os sistemas até então usados de

regulação prudencial tinham perdido sua eficiência.

Deste modo, o acordo consistiu simplesmente na exigência de que os bancos que

efetivamente concorressem com bancos americanos na arena internacional sofressem as

mesmas restrições que se abatiam sobre estes últimos. Neste sentido, dada a estreiteza do

objetivo principal do acordo, ele poderia perfeitamente ter consistido não na exigência de

coeficientes de capital para todos os bancos internacionalmente ativos, mas na eliminação

desta exigência para os bancos americanos.

O acordo, no entanto, acabou sendo utilizado de um modo, ao que tudo indica,

inesperado. Não apenas os países do G10 adotaram suas recomendações centrais (ainda

que impondo adaptações locais que diluíam em certo grau a força do acordo), como o

fizeram para todo o setor bancário e não apenas para os bancos internacionalmente

ativos.10 Em outras palavras, o acordo passou de um acerto de regras competitivas para

um marco na reorientação das estratégias de regulação prudencial no final do século XX.

De fato, não apenas os países industrializados adotaram-no de forma muito mais

generalizada que o previsto, mas também o fizeram praticamente todo os outros países

considerados desenvolvidos e um grande número de países emergentes e em

desenvolvimento.11 No final da década dos 1990, o FMI e o Banco Mundial tornaram a

adesão ao acordo o elemento principal da avaliação da solidez financeira dos países

membros, no programa conhecido como Padrões e Códigos.

Na verdade, a adesão ampla ao acordo de 1988 não foi acidental. Como visto, há muito

tempo alimentava-se uma certa ansiedade com relação à crescente inadequação da

estratégia regulatória anterior às novas condições de operação dos bancos. Por outro lado,

o estabelecimento de coeficientes de capital, principio central do acordo de 1988, parecia

se constituir numa alternativa capaz de resolver os piores problemas gerados pela

estratégia anterior. Esta nova opção parecia satisfazer tanto aqueles que estavam

10 No caso da Europa ocidental, os coeficientes de capital passaram a ser exigidos inclusive de instituiçõesvoltadas para outros segmentos do mercado financeiro.

19

preocupados apenas com o estabelecimento de condições competitivas equânimes entre

grandes bancos quanto aqueles que julgavam que a estratégia regulatória anterior estava

alimentando mais que controlando os riscos sistêmicos gerados pelos mercados

financeiros.

O debate acadêmico girava em torno, principalmente, da possibilidade de risco moral

envolvida no binômio rede de segurança/regulação financeira que vinha sendo praticado.

O argumento central neste debate era o de que a operação do sistema bancário sob aquele

binômio ilustrava os efeitos de um modelo agente/principal sob assimetria de

informações. O banco era o agente dos depositantes, o principal, representando-os como

intermediário financeiro na escolha do destino dos recursos que tivessem disponíveis para

aplicação. Sob a rede de segurança que cerca os depósitos à vista, o depositante tem

pouco interesse em saber o que o banco, seu agente, faz com seu dinheiro, já que seu

retorno será zero e o risco de crédito envolvido será igualmente zero em qualquer

circunstância. Os bancos se encontram, assim, livres para decidir o que fazer com os

recursos recebidos em depósito. Suponhamos que o banco possa escolher entre duas

classes de empréstimos: uma classe de tomadores bastante arriscados, mas que, por isto

mesmo, terão de pagar uma elevada taxa de juros pelo empréstimo; outra classe de

tomadores muito seguros, dos quais só se pode extrair, portanto, uma taxa de juros muito

menor. Operando com recursos alheios, a escolha do banco é clara: os tomadores mais

arriscados são os preferidos, já que o custo dos recursos é o mesmo (depositantes não se

importam com os riscos corridos pelo banco, já que seus depósitos estão protegidos pela

rede de segurança), e no caso do empréstimo ser bem sucedido, o retorno para o banco

será alto, enquanto que se houver default, quem pagará os depositantes será o gestor da

rede de segurança. Deste modo, o agente não era incentivado, nesse sistema, a considerar

os interesses do principal, nem este era incentivado a tomar precauções na escolha do

banco onde fazer seus depósitos. A estratégia de regulação falhava, portanto, em levar os

bancos a construir posições mais seguras, minimizando a probabilidade de crises.

11 O Brasil aderiu ao acordo em 1994. Sobre a adesão brasileira, veja-se Alexandre (2003).

20

A imposição de coeficientes de capital aos bancos serviria como resposta também para o

problema descrito acima. O modo mais eficaz de reduzir a divergência de interesses entre

agente e principal é fazer com que aquele compartilhe em algum grau a natureza e os

móveis deste último. Deste modo, se o banco pusesse seu próprio capital em risco quando

fizesse empréstimos, expondo-se a perdas em caso de default, seria de se esperar que

fosse mais cauteloso em suas decisões. A imposição de coeficientes de capital poderia

ser, assim, uma medida de regulação prudencial mais efetiva que as até então usadas,

voltadas para a liquidez dos depósitos. Mas a ser uma estratégia alternativa de regulação

prudencial, e não apenas instrumento de nivelação competitiva, o acordo não deveria ser

aplicado apenas aos bancos maiores e mais internacionalizados, mas a todos os bancos,

em qualquer país. Foi isto exatamente o que aconteceu, disseminando-se a prática da

imposição de coeficientes de capital por um grande número de países e tornando-se, algo

inesperadamente, o acordo de 1988 o novo paradigma de regulação prudencial.

O acordo, porém, sofria de várias limitações, algumas das quais foram imediatamente

percebidas, abrindo aos bancos oportunidades inesperadas de ganhos arbitrando as

diferenças entre o que ocorria efetivamente nos mercados de crédito e aquilo que o acordo

assumia estar ocorrendo.

O acordo de 1988 compartilhava com a estratégia anterior a natureza tutelar da

supervisão financeira. Voltado para a administração do risco de crédito, o procedimento

do comitê não consistiu apenas na prescrição de instrumentos de gestão de riscos, mas

também na definição quantitativa daqueles riscos. Em outras palavras, o comitê não

apenas criou instrumentos para gerir os riscos de crédito como também calculou quais

seriam os riscos envolvidos nas diversas operações de crédito, emitindo uma tabela onde

a cada classe de ativos identificada correspondia uma medida de risco. Dada a

diversidade de operações realizadas por um único banco, não deveria ser surpreendente a

conclusão de que uma tabela produzida pelo comitê, ou por qualquer comitê, teria de ser

extremamente grosseira e inexata. O resultado desta tentativa de tutelar instituições,

dizendo a elas qual o risco a que cada uma estava sujeita em suas operações, não foi o

reforço do sistema, mas, sim, a ampliação de suas distorções. Novas distorções de

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incentivos foram introduzidas pela própria tentativa de melhorar o sistema. Ao classificar

certas operações com uma ponderação de risco diversa daquela efetivamente reconhecida

pelo mercado, o acordo abriu a possibilidade de ganhos de arbitragem que derrotavam o

propósito do próprio acordo. Por exemplo, ao classificar empréstimos a países da OECD

como tendo risco zero, o comitê estava na verdade incentivando a realização de

empréstimos àqueles países mais arriscados dentro do grupo, já que na determinação das

taxas de juros a serem pagas prevaleciam as avaliações de risco dos mercados, mas na

determinação do custo regulatório destes empréstimos prevalecia a recomendação da

Basiléia de que países da OECD não ofereciam risco.

Na verdade, como concebido inicialmente, o acordo tendia a introduzir distorções ainda

maiores. A concepção de atividade bancária implícita no acordo de 1988 estava se

tornando rapidamente obsoleta já quando o seu texto foi preparado e o processo de

obsolescência foi, na verdade, acelerado pela nova regulação. De fato, o comitê concebeu

o banco comercial como operando dentro das fronteiras tradicionais, isto é, como uma

instituição que capta depósitos para fazer empréstimos. Neste período, os avanços do

processo de securitização já desafiavam os bancos a buscar novas fronteiras de expansão,

particularmente nos mercados de títulos. Quando o acordo de 1988 definiu uma estratégia

regulatória voltada exclusivamente para o risco de crédito, não apenas deixou lacunas

importantes (não formulou regras prudenciais para a atuação nos mercados de títulos),

como, na verdade, estimulou os bancos que pudessem fazê-lo a mudar o mais

rapidamente o seu mix de serviços em favor do aumento da participação nos mercados de

títulos, sobre a qual não incidiam quaisquer obrigações de natureza regulatoria. Em outras

palavras, ao “punir” a atividade de crédito com o peso de regulações, deixando livre a

operação nos mercados de papéis, o acordo estimulou os bancos a minimizarem seus

custos operacionais privilegiando a participação nos processos de securitização.

Deste modo, enquanto, por um lado, predominou a percepção de que o uso de

coeficientes de capital era um avanço em relação ao foco anterior em liquidez de

depósitos, disseminou-se rapidamente a percepção de que o acordo tinha sido

estabelecido em termos grosseiros demais para induzirem nos bancos a seleção mais

22

segura dos riscos a correr. O fato de que o comitê parecia entender sua missão de forma

diferente, e bem mais estreita do que a reformulação ampla de estratégias de regulação,

tornou-se um detalhe frente à realidade do adesão generalizada aos termos do acordo.

Em meados da década dos 90, veio à luz uma primeira iniciativa de correção de rumos

por parte do comitê da Basiléia. Uma emenda ao acordo original foi aprovada em 1995,

estendendo a necessidade de constituição de coeficientes de capital também para o risco

de mercado (risco representado pela variação de preços dos títulos que se tenha em

carteira). Por outro lado, o cálculo deste risco já não era responsabilidade do regulador e,

sim, do próprio banco, cabendo ao supervisor aprovar o método de cálculo e as

estratégias de administração de risco correspondentes.12 Pelo menos no concernente ao

risco de mercado, a emenda abria uma nova possibilidade de relacionamento entre

regulador e regulado, pela qual se confiava a este último a responsabilidade pelo

dimensionamento do risco.

4. Epílogo: O Novo Acordo da Basiléia

A emenda de 1995 serviu para fechar as lacunas mais urgentes do acordo, mas sua

contribuição mais importante foi apontar o caminho que seria seguido numa

reformulação mais ampla do texto de 1988. A emenda já reconhecia que o banco

representativo dos anos 90 já não era mais aquela instituição dedicada apenas a captar

depósitos e fazer empréstimos. Tratava-se agora de regular e monitorar a operações de

firmas bancárias muito mais complexas e diversificadas, que encaravam riscos

igualmente muito mais complexos e diversificados. No entanto, o abandono da

perspectiva tutelar da supervisão financeira representava um rompimento com uma

tradição quase secular. Na verdade, tudo indica que este rompimento deu-se menos pela

persuasão de que se poderia confiar no mercado para tomar as precauções adequadas e

muito mais pela percepção da limitação da capacidade dos reguladores em antecipar

12 O cálculo do coeficiente de capital necessário para o banco precaver-se contra crises seria feito através daformulação de modelos conhecidos como VAR (Value at Risk), que calculariam as perdas que o bancosofreria na eventualidade dos preços dos títulos variarem em medidas definidas. Para exemplos destesmodelos, veja-se Goodhart et alli (1998), cap. 5.

23

movimentos adversos por parte dos bancos e criar os obstáculos adequados para detê-los.

A capacidade inovadora das instituições financeiras em ambiente de desregulação e

liberalização tornou a supervisão detalhista e intrusiva do século XX praticamente

impossível, a não ser que se decidisse reverter dramaticamente as mudanças por que

passaram os mercados até então. A focalização das atenções nas estratégias de risco, mais

do que nas suas manifestações especificas foi menos uma escolha por parte dos

reguladores do que um choque de realidade com respeito às suas limitações.

O novo acordo da Basiléia, ou Basiléia II como tem sido conhecido, consagra esta

reorientação estratégica ao estender a possibilidade do próprio banco definir e mensurar

os riscos a que está sujeito também ao risco de crédito.13 Há enormes dificuldades em

adaptar o tratamento dado ao risco de mercado ao risco de crédito, a começar pela

inexistência de dados adequados ao calculo das probabilidades efetivas de default que

permitam avaliar o valor-em-risco resultante de cada estratégia de administração de

riscos selecionada pelo banco. Limitações de espaço impendem o aprofundamento desta e

de outras disposições do texto do novo acordo neste trabalho. O aspecto mais importante

do novo acordo, contudo, assumindo que as difíceis negociações para estabelecer o novo

texto possam chegar a uma conclusão, é que ele completa o processo de transição para

um novo estilo de regulação e supervisão financeiras profundamente contrastante com as

práticas anteriores. A pequena matriz abaixo condensa visualmente este argumento.

EVOLUÇÃO DAS ESTRATEGIAS REGULATORIAS

Foco da Regulação FinanceiraSobreLiquidez Sobre Solvência

Mé- Tutelar Até 1988 Basileia I e Emendato- De 1995dos

Incentivo - - - Basileia II

13 Basiléia II inclui também nas suas prescrições medidas com relação ao chamado risco operacional. Esterisco, porem, é uma categoria omnibus, que inclui desde a possibilidade de acidentes até a verificação deincompetência ou a ocorrência de fraudes. Seu tratamento é pragmático, não cientifico como se quer seja ocaso com os riscos de credito e de mercado.

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Grandes incertezas, de variadas naturezas, ainda cercam o novo acordo, inclusive a

respeito da capacidade dos supervisores financeiros de realmente avaliar estratégias de

risco adotadas por instituições bancárias que podem ser extremamente complexas. No

entanto, o que parece irreversível é a tendência de devolução de responsabilidades pelos

riscos assumidos aos próprios bancos. A década dos 1990 foi muito generosa com o setor

bancário dos países desenvolvidos, não servindo como um teste decisivo para a solidez

das novas regras. O único episódio de maior gravidade e com potencial mais ameaçador

ocorrido na década, contudo, em torno do fundo de hedge LTCM no segundo semestre de

1998 exigiu uma heterodoxa intervenção do Federal Reserve de Nova York para evitar

que a crise assumisse proporções mais ameaçadoras. É de supor, contudo, que apenas

crises de dimensões realmente catastróficas pudessem levar a uma reorientação drástica

das escolhas feitas até agora.

Referências

Basle Committee on Banking Supervision (BCBS), International Convergence of CapitalMeasurement and Capital Standards, Julho de 1988, www.bis.org.

F. Carvalho, “Financial Innovation and the Post Keynesian approach to ‘the process ofcapital formation’”, Journal of Post Keynesian Economics, 19 (3), Primavera de 1997.

F. Carvalho, F.E. Souza, J. Sicsú, L.F. de Paula e R. Studart, Economia Monetária eFinanceira. Teoria e Política, Rio de Janeiro: Campus, 2000.

C. Goodhart, P. Hartmann, D. Llewellyn, L. Rojas-Suarez e S. Weisbrod, FinancialRegulation. Why, how and where now?, Londres: Routledge e Banco da Inglaterra, 1998.

J. Kregel, The Past and Future of Banks, Quaderni di Ricerche 21, Bancaria Editrice,1998.

H. Minsky, Can ‘It’ Happen Again?, Armonk: M.E. Sharpe, 1982.

Patricia Vieira Alexandre, Regulação e supervisão bancária: uma avaliação dosimpactos das regras de adequação de capital do acordo da Basiléia no Brasil, Tese demestrado submetida e aprovada pelo IE/UFRJ, 2003.