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Jonas Vieira INSEPARÁVEIS

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Jonas Vieira

INSEPARÁVEIS

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1ª Edição

Coleção Contos Ilustrados

Inseparáveis

Jonas Vieira

2017

Projeto de livro e diagramação: Jonas Viera

Revisão: Pedro Penido

Ilustrações:

Edição: Livro do Autor

[email protected]

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– Vai querer o que primeiro?

– Ir a algum lugar que tenha um torresmo bem gorduroso e cachaça servida

em copos mal lavados.

– Não tinha nada disso aí dentro?

– Eu não sei se você percebeu, Frank, mas acabei de sair de uma prisão.

– Os serviços hoteleiros desses lugares têm ficado cada dia melhor. Não

pensei que seria difícil conseguir.

– Isso aqui é impossível! O nível é muito alto aí dentro. Não aceitam coisas

pouco sofisticadas assim.

– Dias difíceis...

– Nem fala... Não vou sentir saudade de nada.

– Tá bom, agora entra aí.

– E esse carro?

– Meu.

– Eu sei. Quero saber se é roubado.

– Não.

– Imaginei. Uma sucata.

– Você ficou quinze anos aí dentro. Quando entrou, ele ainda era novo.

– Tá bom! Agora vamos sair daqui. Você tem passagem pela polícia, não

quero ser visto conversando com figuras suspeitas.

{Já no carro, avançados na avenida}

– Tem preferência de lugar?

– No Sérgio. O torresmo dele é o pior que eu consegui lembrar agora.

– O Sérgio morreu.

– O quê?

– Dois anos já.

– Mas fecharam o bar?

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– Não. Mas agora a vigilância sanitária vai lá.

– Nossa! Que excelente começo de liberdade! O que aconteceu com ele?

– Enfartou!...

– Nossa!

– Ele devia comer os torresmos que fazia.

– Se tiver sido, valeu a pena.

– Foi o que eu pensei.

– Um bom torresmo vale um infarto!

– Se tivesse de escolher, não pensaria duas vezes. Mas não se preocupe, eu

conheço outro lugar. Lá tem de tudo.

– De tudo?

– Não esse tudo...

– É para onde iremos, então.

– Pensei que fosse dizer isso primeiro.

– Por mais que eu queira, já somos velhos, Frank. As coisas já não são mais

como antes. Preciso estar bem alimentado antes de qualquer atividade sexual. Caso

eu falhe, preciso dormir saciado de alguma forma.

– Na cadeia não tinha nada?

– Tinha, mas não era exatamente o que eu procurava.

– Pode me contar. Jamais diria isso para mais que seis pessoas.

– Quem me dera tivesse ocorrido alguma coisa, Frank. Se meu pau tivesse

levantado para qualquer uma das "meninas" da cadeia, já seria um sinal de bravura.

– Que nojo cara! Você comeu traveco?

– Travesti Frank! Mais respeito!

– Que mané respeito! Eles têm pau!

– Frank, aprenda uma coisa: a solidão transforma pênis em detalhe.

– Ah credo! Você comeu traveco?! Aposto que pegou sífilis!

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– Cara, dirige essa porcaria de carro em silêncio e não me lembre tão

rapidamente o quanto é difícil ficar ao seu lado!

– Você já parou pra pensar que se não fosse eu a ir te buscar ninguém mais

iria?

– Tô pensando se não teria sido melhor.

– Ingrato. Isso que você é! Mas vou ponderar. Você não merece, mas ainda

sou seu amigo. Ficar quinze anos trancado com assassinos e travestis com sífilis

pode alterar o juízo de qualquer homem.

– Elas não tinham sífilis.

– Viu?! Você comeu traveco! Mas deixa isso pra lá. Você não vai deixar de

ser meu amigo por causa de um pênis que eventualmente possa ter tocado em você.

Próxima parada, prostitutas?

– Claro Frank... Eu não vejo uma vagina há quinze anos!

– Elas continuam as mesmas. Macias e cheirosas.

– Ok. Mas antes passa na farmácia!

– E outra, você vai voltar a gostar logo na primeira!

{Algumas horas depois}

– Boa noite, gatão!

– Você escutou, Frank? Do que ela me chamou?

– Sim. Elas falam isso pra todos.

– Desde que chegamos eu não vi nenhuma delas chamar você de nada. Pode

assumir que o tempo fez estragos diferentes em nós e que eu estou melhor que

você!

– Claro. A cadeia rejuvenesce a pele de qualquer um.

– Boa noite, rapazes!

– Rapazes, Frank!... Rapazes! Há quanto tempo não ouvimos isso!

– Boa noite. Esse aqui é o Abner, meu amigo. Nos conhecemos há mais de

cinquenta anos e ele esteve preso nos últimos quinze, totalmente sem sexo.

Estamos aqui porque ele precisa dos seus serviços.

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– Frank, isso são maneiras de você me apresentar pra moça?!

– Não se preocupem rapazes... Não me importo com histórias.

– Viu?!

– Mas a parte dos quinzes anos sem sexo é verdade, moça!

– Quanto é meia hora?

– Duzentos.

– Frank! Que falta de educação! Não se discute valores assim, tão direto.

Perdoe meu amigo. Ele nunca teve modos para tratar desses assuntos. Frank,

aproveita e paga a... como é mesmo seu nome?

– Pode escolher...

– Frank, meu caro amigo, dê à Dolores os duzentos reais e peça uma bebida

pra você... Não prometo que essa meia hora dure apenas isso.

{Quinze minutos depois}

– Não me olhe com essa cara, há muitos anos Einstein provou que o tempo

é relativo.

– Conseguiu?

– Sim... Só não consegui vestir meu blazer ainda.

– Sei como é. Também perco as forças depois de uma boa gozada.

– Esse remédio é bom mesmo! Eu nunca botei fé nessas coisas.

– A velhice ajuda a ter fé em muita coisa. Você pegou o telefone dela?

– Não. Sem envolvimentos.

– E agora?

– Temos duas opções... Podemos ir embora porque você é um velho fraco,

ou podemos nos drogar e pensar em algo terrível pra fazer... Correr da polícia me

parece uma boa opção.

– Eles não correm atrás de velhos como a gente.

– Para perto de uma viatura que eu vou mijar nela.

– O Ivan adorava fazer isso!

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– Aprendi com ele. Aliás, essa vai ser em homenagem a ele. E que Deus o

tenha em bom lugar...

– Deus não gosta da gente.

–Você foi visita-lo no hospital?

– Não.

– Pelo amor de Deus, Frank! Que tipo de parceiro você é?

– Eles cortaram o pau dele Abner! Isso é constrangedor pra nós. Metade de

um homem é o pau dele.

– Então quer dizer que se cortassem meu pau você não iria no hospital me

ver?

–Não... Mas já que você faz tanta questão, eu poderia ir.

– Você já foi um homem melhor, Frank...

– Eu devia ter te deixado na prisão.

– Você foi me buscar, não me soltar. Eu poderia ter pegado um táxi. Ou

saído a pé mesmo e caminhado até meu corpo resolver como iria me matar.

– Ia pegar um táxi com que dinheiro?

– Eu tenho um canivete aqui, rapaz! E você sabe o que eu sou capaz de fazer

com um canivete!

– Me poupa.

– Você tinha que ter ido visitar o Ivan.

– Abner, sem sentimentalismo, por favor! Você sabe que eu não fui visitar

o Ivan para não piorar a situação dele. Um homem que tem pau pequeno é um

homem que sofre, o Ivan se tornou um cara de pau nenhum. Ou seja, qualquer um

que tivesse um pau, já era maior que o dele. Eles cortaram na raiz, Abner... Eles

acabaram com o Ivan, cara. Agora para de falar nisso. Nós ainda estamos vivos e

temos o pau no lugar.

– Você não podia ter feito isso...

– Ah cala sua boca, comedor de traveco!

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– Que feio da sua parte... se eu soubesse que te deixar sozinho aqui fora te

deixaria desse jeito eu teria dado um jeito de fugir. Eu pedi pro Mexida Errada

ficar de olho em você, mas nem isso ele conseguiu.

– Tá bom Sean Connery! Aonde você quer ir agora?

– Me leva em algum lugar que tenha cocaína de qualidade. E a propósito,

eu não gosto daquele filme da Ilha. Prefiro o do Clint Eastwood.

– Virou cinéfilo?

– Eles passavam esses filmes na prisão. Trabalho motivacional.

– Tinha cocaína lá?

– Fraca, mas tinha.

– Tem um rapaz novo aqui no bairro que tem uma ótima!

– Fina?

– Um talco!

– Mas vamos trocar de carro antes...

– Qual o problema com meu carro?

– Frank, não vamos começar outra briga, por favor. Com essa sucata a gente

não corre de uma bicicleta!

– Olha Abner, eu não vou perder meu tempo discutindo com você. Vou

respeitar seus desejos por causa de nossa amizade e de tudo que te aconteceu, mas

se você não está contente com meu carro, vá você roubar outro.

– Eu não esperava mais de você, seu bundão! Agora me deixa perto de

alguma agência lá em cima.

– Carro novo não, Abner... Dá muito trabalho.

– Nossa Frank, eu tinha certeza que você ia se tornar esse tipo de velho

quando chegasse a hora.

– Que hora?!

– Você não pode ser preguiçoso assim, cara! Não pode entregar os pontos

desse jeito, senão vai acabar roubando só galinha e padaria de bairro.

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– Deixo você lá e vou pra casa guardar meu carro e tomar banho. Não

demore, não me ligue; se for pego, não te conheço.

– Escolha uma roupa bacana, seu bundão! A noite vai ser longa!

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Ele não demorou a chegar à

minha casa. De nós três, eu, Ivan e

ele, era o único que conseguia

roubar um carro em poucos

minutos. Em compensação, não era

nada sutil e quase sempre, para não

falar sempre, amassava uma porta

ou arranhava a pintura. Abner e eu

somos amigos há mais de cinquenta

anos. No início, roubávamos de

tudo, até de nós mesmos. Com o

tempo e a idade, optamos apenas

por bancos e carros-fortes. Embora

pareça dar mais trabalho, o retorno

é maior e se gasta mais tempo

planejando do que na execução.

Roubar grandes quantidades de

dinheiro em espécie é uma tarefa

muito cansativa. Os malotes não são

leves. Não dá para fazer todo dia. O

que faz valer a pena é que quanto

mais pesado, melhor. Ladrão

quando fica velho, se não tiver preso

nem morto, prefere trabalhar com a

cabeça. Não gostávamos de roubar

carros. Era pouco lucrativo pelo

trabalho que dava. Isso sem contar a

choradeira entre os compradores. O

mercado de carros roubados é

prostituído e sem ética. Furtávamos

ocasionalmente, por razões

puramente funcionais ou

comemorativas, como aquela.

– Você bateu o carro, Abner? Pelo amor de Deus, o carro era novo!

– Foi só um amassadinho... A porta era mais estreita do que eu tinha

imaginado.

– Então do outro lado também está assim?!

– O de lá está pior.

– Pelo amor de Deus!

– Entra logo que a polícia deve estar vindo e você acabou de sair do banho;

um simples resfriado é suficiente para matar um homem na sua idade.

– Só tinha essa cor?

– Não. Mas os outros estavam muito atrás, ia dar mais trabalho.

– Eu não sei por que esse pessoal de agência insiste em colocar só os pratas

na frente da loja. Nem todo mundo gosta de prata.

– O vermelho que estava na parte de trás era o mais bonito.

– Esse é 1.6?

– 2.0. O 1.6 já saiu de linha faz tempo... Você tava dormindo, Frank?!

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– Que se dane! Eu lá tenho tempo de ficar vendo motor de carro. Você que

tava preso, que tinha tempo de ficar vendo essas futilidades.

O Abner sempre gostou de

carros. Esteve sempre a par do que

era lançado e sabia até fazer alguns

pequenos reparos. Ele e o Ivan

adoravam correr da polícia. Eu os

acompanhava, mas não sou desses

agitos. Envelheci primeiro que eles.

Sou mais caseiro, mais da maconha

que da cocaína, mais jazz que rock

and roll. Depois que o Ivan se foi, nós

nunca mais fizemos isso. Até porque

o Abner foi preso logo em seguida.

Fizemos um assalto em um banco

de uma pequena cidade do interior.

Eu, ele e mais dois. Foram três meses

de planejamento, um mês

hospedados num hotel e muitos

desencontros entre nós. O Abner é

um cara com disposição, corajoso,

envolvido, mas é muito chato. É

muito difícil trabalhar com ele. Com

o tempo, eu me acostumei, mas

nunca deixamos de brigar por isso. E

o problema maior nem foi esse.

Porque ele bate boca com qualquer

um. E nesse trabalho não foi

diferente. Ele criou caso com nós três

e até com o mandante do serviço; o

cara que conseguiu as informações

do banco, reuniu o pessoal,

conseguiu armamento, carro, etc.

Até aí tudo bem, a fama de reclamão

do Abner era conhecida. O

problema foi que o Abner dormiu

com a mulher do cara. Com tantas

no mundo, ele pegou logo a mulher

do cara! Marcinha Bazuca. Um

mulherão, diga-se! Coisa de parar o

trânsito, mas ainda assim, não valia o

risco, jamais! A Marcinha era aquele

tipo de mulher discreta, sutil, que

você nunca imaginaria que fosse

capaz de uma coisa dessas. O

Bazuca era por causa do corpão

malhado que ela tinha. – Não acho

que o apelido faça o menor sentido,

mas enfim... – Porém, por de trás de

toda aquela gostosura e polidez

havia uma mulher carente e

sozinha. Rejeitada na infância (o

Abner sempre gostou de ouvir as

histórias das pessoas) e desprezada

por seu companheiro. Um homem

rude e insensível. (Nessa hora eu me

pergunto, por que uma mulher com

um histórico de vida como o dela,

escolhe repetir tudo de novo? Só

não acho isso mais estupido porque

eu também faço). O Tony, o chefe

do assalto e marido dela, nunca deu

a mínima para a esposa. Tinha a

mulher como um pedaço de carne

e não fazia questão de andar muito

longe quando queria experimentar

coisa nova. Às vezes, ia em casa

mesmo, debaixo do nariz dela.

Quando o Abner surgiu, um

cinquentão boa praça, corpo

esguio, voz rouca (Nessa época ele

era a cara do Al Pacino naquele filme

do Advogado do Diabo), a mulher

se enfeitiçou por ele... Pelo menos foi

o que pareceu. Eu achei aquilo

estranho e com cheiro de merda!

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Quando o Abner veio me falar, ele já

tinha feito.

– Você ficou maluco, cara?!

– O Tony não tá nem aí pra ela... Dá nada não!

A primeira parte era verdade,

o Tony não dava a mínima pra ela.

Pagava para ela estar sempre bonita,

mas nada muito além disso. Márcia

era só um carro encerado na

garagem. Bonito por fora e sem

ninguém por dentro. Abner viu isso

e quis dar uma volta no carango –

Eu sei que minha analogia parece

machista e talvez até grosseira, mas

nesse caso o recurso metafórico

ajuda na compreensão. Vocês já

sabem que o Abner é louco por

carros. Vamos ser mais diretos. Eu só

quero desabafar e falar do trágico

desfecho dessa aventura de meia

idade. O Abner apunhalou o Tony

pelas costas... Ladrão não trai ladrão.

Existe um código de honra entre nós

contraventores que deve ser

seguido à risca. Não por sermos

melhores ou mais éticos que o

restante dos cidadãos de bem.

Porque não somos. Mas é porque o

nosso tribunal é de chumbo! O

Abner cravou o punhal no Tony

sabendo que não acertaria o

coração, mas acabou acertando em

cheio no orgulho! Quando eu

soube, nós já tínhamos feito o

serviço, o Tony descobriu antes, mas

deixou rolar. Um mês depois, Abner

foi preso. Alguém o entregou. Antes,

porém, Tony acertou com a mulher.

Mandou um de seus homens até

sua casa, deu-lhe as informações

necessárias e cuidou para estar

longe na hora marcada. O sujeito só

teve o trabalho de chegar e atirar.

De alguma forma, o Abner soube

disso e foi atrás. Chegou lá quando

o assassino já estava de saída. Entrou

correndo e viu a mulher no chão,

com um tiro no meio da testa. Nem

sequer tocou nela, saiu correndo,

entrou no carro e partiu atrás do

outro cara. Para sua sorte (ou azar)

conseguiu encontrá-lo na curva do

rio. O capanga estava com um dos

carros do Tony, (o que era uma

burrice e um amadorismo sem

precedentes). Abner deu só um

"totozinho" na traseira e o outro

carro bateu em cheio em uma

caçamba de lixo na saída da ponte.

Abner desceu do carro e não se deu

o trabalho de conferir se o cara

ainda estava vivo. Chegou e meteu

uma bala na cabeça dele também.

Com o tiro, o corpo caiu de lado

dentro do carro e Abner pode ver

quem era. Para sua surpresa, era o

Telmo, o irmão mais novo do Tony.

A merda que o Abner fez havia

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acabado de piorar. Duas semanas

depois ele foi preso pelo assalto ao

banco. A polícia não conseguiu ligar

a ele o assassinato do Telmo e esse

não entrou na conta. Na cadeia,

depois de muito apanhar, ele não

entregou o resto da quadrilha.

Tony sabia que ele poderia tê-lo

entregado, mas se o Tony caísse,

iríamos todos junto. Abner disse que

não faria isso. A polícia ofereceu um

acordo, se ele entregasse os outros a

pena seria reduzida. Ele não aceitou

e teve que pagar quinze anos de

cadeia por isso. O Abner entrou

nessa porque traiu um colega e

ficou preso esse tempo todo porque

quis ser leal a um amigo... Eu não

gosto de rachas com a polícia, mas

por ele vale esse sacrifício e qualquer

outro.

–Quando você saiu o alarme já tinha disparado?

– Sim. Já, já, a gente tá encontrando com a polícia por aí!

– Espero mesmo.

– Tá com sono?

– Um pouco.

– Ainda nem é meia noite...

– Cala a boca Abner. Só dirige.

E ele dirigiu mesmo... Por mais

de duas horas ao longo da

madrugada. Corremos da polícia

dentro da cidade, nos arredores e na

cidade vizinha. Depois de os policias

não conseguirem nos pegar, Abner

dirigiu mais trinta quilômetros até

um pequeno distrito vizinho e

tentou provocar a polícia de lá,

empreitada em que não obteve

sucesso. Abner só parou porque

estava cansado. As drogas, o álcool

e o tempo abreviaram nossa

resistência. Energéticos e cocaína já

não nos mantinham mais acordados

como antes. Decidimos parar por ali.

Abandonamos o carro e fomos

embora a pé mesmo. Algumas ruas

à frente, uma viatura nos abordou e

o Abner disse que estávamos

voltando de um bingo. Um deles

pareceu ter caído no papo, o outro

quis saber mais. Ele conhecia o

bairro e, diferente do parceiro, não

estava tão apressado em sair dali. Eu

disse que o bingo era privado, na

casa de uma senhora que eu

gostaria de não dizer o nome. Claro

que ele não comprou essa história

fajuta. Eu já esperava que não, mas

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foi de propósito. Os guardas

começaram a se irritar e o policial

bom, de antes, voltou atrás. Agora

os dois estavam desconfiados. Pedi a

Abner que se afastasse e mostrei aos

guardas a caixa do estimulante que

o Abner havia utilizado. Disse aos

guardas que ele sofria de

impotência generalizada e, por

consequência disso, depressão. O

que seria absolutamente plausível

num caso desses. Disse também que

Abner havia perdido um casamento

por isso e que estava em terapia,

devido às últimas tentativas de

suicídio; uma por enforcamento,

quatro por ingestão excessiva de

remédios. Por fim, disse–lhes que o

bingo era apenas um pretexto para

a sacanagem. Inventei que a dona

se chamava Matilde e que lá só

frequentavam velhos viúvos e

divorciados com alguma esperança

de safadeza. Aposta terapêutica

aprovada pelo psiquiatra, inclusive.

Os guardas, dois homens de meia

idade, pareceram ter contemplado

esse possível fim para eles próprios e

nos liberaram em seguida. Antes de

partirmos, agradeci a compreensão

de ambos.

– O que você falou pra eles?

– Que você era impotente e depressivo.

– De novo essa história?! Falou que eu perdi um casamento também?

– Claro. Essa parte é a mais importante. Nada é mais comovente do que um

divórcio por impotência. Homens são solidários com homens que tem o pau mole.

– Só pra você saber, eu sempre achei essa sua teoria ridícula.

Nosso debate durou até

ficarmos cansados de tanto andar e

pararmos num banco de praça.

Ainda faltava muito até minha casa.

– Há muito tempo eu não ficava cansado desse jeito – disse Abner, Frank o

ouviu, mas não disse nada. Havia ficado apreensivo desde que se sentaram. Algo

o incomodava.

– Sim. Sim... Eu também.

{Um bom tempo de silêncio entre eles}

– Ele te pagou quanto?

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– Trinta mil.

– Que porra hein, Frank!... Pensei que fôssemos amigos.

– Abner, se não fosse eu, seria outro.

– Eu não estou falando disso!... Como você aceita me matar por essa

mixaria?!

– Ele tava oferecendo vinte. Eu disse que não aceitaria se não fosse pelo

dobro...

– Mas fechou em trinta. Grande negociador de bosta você é!

– Abner, ele tem um monte de gente que aceitaria te matar até por um pão

com salame. Eu não tive muitas margens de manobra.

– Por que ele aceitou suas condições então?

Apesar de o Tony querer o

Abner morto, ele e eu tivemos uma

boa relação. Já o salvei da morte

uma vez, quando ele ainda era

apenas um traficantezinho de bairro.

E apesar de alguns defeitos, Tony é

um homem que sabe ser grato, que

sustenta alguns valores. Criminosos

que chegam aonde ele chegou não

permanecem vivos se não for dessa

forma. Havia entre nós, guardadas

as proporções do ofício, uma

admiração e gratidão mútua. Tony

não deixou de retribuir o favor que

fiz no passado. Mais de uma vez,

inclusive. Mas nada disso o faria

voltar atrás no caso do Abner. É

verdade que o Tony não dava a

mínima para esposa, tratava-a como

patrimônio. E mesmo que isso

enfraquecesse a relação, não

retirava da mulher o título de esposa.

E se existem dois lugares que você

jamais deve atingir em um homem

mau é no bolso e no ego. O Abner,

com um tiro, acertou os dois. Ele fez

com que todos soubessem que o

Tony foi traído e, de quebra, matou

o irmão mais novo do cara também.

Braço direito dele nos negócios. Em

resumo, o Abner havia feito a maior

merda da vida dele. Quando foi

preso, todos nós sabíamos que havia

sido coisa do Tony. Mais ninguém

do assalto ao banco caiu junto com

ele. Ou seja, o Tony deu um jeito de

a polícia saber do Abner, sem

comprometer o resto. E apostou

que, se ele caísse, não levaria

ninguém. Tudo ocorreu como

planejado. Tony era um bom

jogador e mexeu as peças certas.

Quando Abner foi pra cadeia eu

acreditei que ele fosse morrer por lá.

Além do assalto, ainda tinha a morte

do Telmo para acertar. Aqui do lado

de fora, o pessoal já estava

apostando em quanto tempo ele

duraria.

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O que ninguém imaginou era que o

Tony decidiu ter paciência. E que iria

esperar calmamente até que o

Abner cumprisse sua pena. Alguns

chegaram a pensar que ele havia até

desistido. O que infelizmente, não

tinha a menor chance de acontecer.

Quando o Abner demorou a morrer

na prisão, eu entendi quais eram os

planos do Tony. Ele queria que

todos soubessem o que ele iria fazer.

Queria mostrar que uma boa

vingança pede tempo. O Tony é

dessas coisas. Tinha a brutalidade de

Pablo Escobar, com a paciência, se

necessário, de Don Vito Corleone.

Eu tentei persuadi–lo a deixar isso de

lado, esquecer o Abner. Propus que

fôssemos embora da cidade e, assim,

ninguém mais ouviria falar de nós.

Óbvio que não funcionou. Eu

mesmo não acreditei quando fui

falar com ele. No entanto, acabou

não sendo de todo perdido. O Tony

não arredou o pé da ideia de matar

o Abner, mas não deixou de levar

em conta sua gratidão comigo. Ele

vivia dizendo que não se deve negar

um favor a um amigo. Essa era mais

uma das coisas que o Tony

aprendeu com O Padrinho – ele

chegou ao ponto de comprar um

gato para imitar o Marlon Brando,

tamanha a obsessão. E com a

mesma generosidade do mafioso,

Tony me ofereceu o direito de matar

o Abner. Disse que iria oferecer vinte

mil para quem se interessasse,

porém, a preferência era minha. Eu

aceitei, mas pedi o dobro. Ele

recusou. Disse que já estava me

dando o direito de matá–lo e sem

dor, o que muito o contrariava.

Então, se eu quisesse, a condição era

essa. Nem um centavo a mais. O

argumento era forte e o Tony

também, mas aquilo que o fazia

forte era também a brecha de sua

sangria. Bastava apenas uma boa

sequência de movimentos no

tabuleiro para ele abandonar antes

de um xeque–mate inevitável. Tony

não era o único que sabia jogar ali.

Com a genialidade de um Bobby

Fischer contra a locomotiva

soviética, relembrei Tony o motivo

de ele estar me oferecendo a

cortesia de executar o Abner; depois

disse a ele que meu motivo de pedir

mais dinheiro era o mesmo. Gostaria

de poder me despedir do meu

melhor amigo proporcionando –lhe

o melhor desse mundo e de seus

prazeres. E que isso também era por

mim. Aliás, mais por mim, porque

depois que ele se fosse = lembrando

que o Ivan já tinha morrido também

- eu ficaria sozinho. O Tony

entendeu. Ele dava valor a essas

coisas e sabia o quanto Abner e eu

erámos importantes um para o

outro. Não tínhamos família,

parentes, amigos. Não restou nada.

Ou Deus não gostava de nós ou ele

havia se esquecido. Depois de

minha longa exposição ele se viu

sem o que fazer e partiu para seus

movimentos finais:

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– Quarenta mil? Você precisa mesmo disso tudo?

Não. Não seria necessário

tudo isso. Foi apenas uma oferta de

captura da torre para tomada do

bispo que defende o rei. Ele disse

que quarenta não pagaria. Sua

última oferta seria trinta e se eu

demorasse aceitar ele voltaria atrás.

Eu aceitei. Xeque–mate!

{No banco... da praça}

– Bom, para quem teve a vida que eu tive, morrer por trinta barões parece

uma morte digna.

– Quantas vezes nós já quase morremos de graça!

– O que você vai fazer com esse dinheiro?

– Com o que sobrou dele, você quer dizer né? Porque você já me custou

uma boa quantia desde que colocou os pés pra fora da cadeia.

– Você recebeu esse dinheiro pra me matar. Eu sou a razão de tudo isso,

então não reclame!

Outra vez, um breve silêncio entre ambos. A madrugada adentrava e eles

permaneceram sentados no banco da praça até que algo incomum aconteceu.

– O que é isso Frank? Uma lágrima?! Você tá chorando?... Pelo amor de

Deus, Frank! Você virou viado?!... Foi só eu ficar preso uns dias e te deixar aqui

sozinho pra você virar viado?! Que decepção!... Depois de velho, meu melhor

amigo passou a gostar de pinto!

– Cala a boca! Era só um cisco...

– Ah, claro!

– Nossa Abner, você é chato até pra morrer!

– Sim. Mas pelo menos não vou morrer viado.

– Eu não virei viado!

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– Não é o que parece. Você nunca atirou em ninguém não?

– Já!

– Então, por que dessa viadagem? Para com isso! Você já fez coisa pior por

muito menos... Por um décimo dessa quantia eu já teria colocado uma bala no meio

da sua cabeça.

– Ah, tinha!... Ainda mais você, bundão do jeito que é!

– Cala sua boca! Eu já tive que me segurar um monte de vezes pra não fazer

isso!

Abner e Frank brigaram por mais um tempo até que perderam o fôlego. O

silêncio retornou entre eles e uma lágrima desceu em cada rosto.

– Que porra, Abner! Com tanto biscate por aí, você foi pegar logo a mulher

do Tony?!

– Foi a maior merda que já fiz. E ainda matei o irmão do cara... Se eu

soubesse que ia dar nisso eu teria feito diferente.

– Você pelo menos se arrependeu?

– Em parte, sim. Eu não tô nem aí pro Tony, mas eu não queria que você

tivesse que ter que fazer isso agora.

– Nem eu... seu filho da puta!

– Se ficasse por conta do Tony, ele ia mandar que me machucassem muito,

antes.

– Não tenha dúvida disso.

– Posso te falar uma coisa?

– Fala.

– Obrigado... Homens como a gente não costumam acabar bem.

– Para com isso...

{Outras duas lágrimas e um sorriso}

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– O Ivan podia estar aqui.

– Não sei. Ele era muito frouxo pra essas coisas. Eu acho que eu ia ter que

dar nele um tiro antes de morrer.

– É verdade. Mas eu também não estou achando isso muito agradável. Se

pudesse, eu trocaria esse dinheiro por ter que te aguentar mais uns anos.

– Eu também... Agora vamos ao que interessa. Você tem um trabalho a fazer

e já foi pago por ele!

– Você tem preferência?

– Atira no joelho.

– Isso só vai te matar de dor!

– Aí eu vou querer que você me mate de verdade e você não terá outra

opção.

– Você tá achando que eu não consigo?

– Sim... Agora faz o que eu tô falando. Eu já vi isso num filme, funciona.

O Abner foi chato até o

último minuto! Atormentou o

quanto conseguiu e tornou ainda

mais difícil o que não havia outra

forma de fazer. Era mais fácil quando

se tratava apenas de desconhecidos

ou pessoas por quem eu não tinha

o mínimo de afeto. Matar o Abner foi

a melhor e a pior coisa que eu já fiz

na minha vida. Pior porque ele era

mais que meu melhor amigo. Abner

era minha família. A melhor, porque

o que o esperava era realmente

terrível. Seus últimos anos na prisão

não foram fáceis, a cada visita eu me

deparava com um homem um

pouco mais morto. Se eu não tivesse

feito o que fiz e ele fosse torturado

antes de morrer porque eu havia me

acovardado, eu me sentiria a pior

pessoa do mundo. E olha que, nós,

bandidos somos vacinados contra

dor de consciência. Resumo da

ópera: das opções dadas, fiz a que

iria doer menos em nós dois e não

me arrependo. Matei meu melhor

amigo e sei que ele faria o mesmo

por mim, mesmo que dissesse o

contrário. Entreguei–o para Morte,

que era quem de fato poderia nos

separar. Dizem que apenas uma

mulher pode acabar com uma

amizade entre dois homens. Uma

vez isso nos aconteceu, há muitos

anos, quando ainda éramos muito

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jovens. E agora, de certa forma,

outra... Quanta ironia.

Depois de atirar em Abner, Frank ficou ao seu lado por mais algum tempo.

O barulho do tiro fez com que alguém chamasse a polícia. Ao se aproximarem,

encontraram dois cadáveres. Frank se matou em seguida e se despediu do mundo

ao lado do amigo... Com a partida apressada, como de um passageiro atrasado que

ainda tenta embarcar, Frank não viu o bilhete que Abner havia escrito a pouco e

deixado no bolso do paletó.

"É uma honra partir assim... dane–se o dinheiro,

o Tony e aquela vadia! Eu te perdoo,

seu velho rabugento.... Somos inseparáveis! ”