Introdução Ingrid Kelly Laura dos Santos Pinto U

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23 Física na Escola, v. 16, n. 1, 2018 Sadi Carnot e as transformações sociais Introdução U m céu cheio de nuvens, fumaça saindo pelas chaminés, pessoas sujas de carvão. Revolta com as condições salariais, fome e desemprego, como pode ser visto em filmes como Ger- minal, adaptado da obra de Émile Zola. Essas imagens se contrapõem à Paris da Fig. 1, a Cidade das Luzes, em que o qua- dro de um palácio iluminado ilustrava o conhecimento que chegava com a eletri- cidade. Mas as duas situações retratam a França, e talvez outros países europeus, durante o século XIX. Como pode? O co- nhecimento não trazia avanços, progres- sos? E, principalmente, o que essa intro- dução tem a ver com o título deste texto? O objetivo deste artigo é situar o tra- balho de Sadi Carnot sobre as máquinas térmicas sob diferentes perspectivas. Pri- meiro discutiremos como as leis da termo- dinâmica, da forma como são adotadas atualmente, não correspondem ao seu desenvolvimento histórico e, portanto, não podem ser atribuídas a um ou outro personagem da história da física. Depois nos aprofundaremos no trabalho de Car- not publicado em 1824 e discutiremos como, apesar de partir de pressupostos diferentes, seus resultados podem ser apli- cados atualmente. Por fim, discutiremos como o momento histórico em que vivia Carnot está presente em seu trabalho. Dessa maneira, pretendemos mostrar que a abordagem histórica das leis da termo- dinâmica permite explorar relações entre ciência e tecnologia, bem como discutir Ingrid Kelly Laura dos Santos Pinto Grupo de História da Ciência e Ensino, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil E-mail: [email protected] Ana Paula Bispo da Silva Departamento de Física, Grupo de História da Ciência e Ensino, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil E-mail: [email protected] Muitos conceitos que aparecem nos livros didá- ticos acompanham um breve resumo histórico, atribuindo posse, datas e locais a leis, fórmulas e equações. É o caso das leis da termodinâmica, das quais Carnot é o “dono”. Entretanto, um estudo histórico contextualizado do trabalho de Carnot e das leis da termodinâmica mostra que conceitos mudam com o tempo e o con- texto sociocultural. Neste artigo discutimos co- mo a abordagem histórica das leis da termodi- nâmica permitem entender como ciência, tec- nologia e sociedade estão inter-relacionadas. Figura 1: Le Chateau d’eau and plaza, with Palace of Electricity, Exposition Universelle, 1900, Paris, France. Fonte: Library of Congress Prints and Photographs Division Wash- ington, D.C. 20540 USA.

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23Física na Escola, v. 16, n. 1, 2018 Sadi Carnot e as transformações sociais

Introdução

Um céu cheio de nuvens, fumaçasaindo pelas chaminés, pessoassujas de carvão. Revolta com as

condições salariais, fome e desemprego,como pode ser visto em filmes como Ger-minal, adaptado da obra de Émile Zola.Essas imagens se contrapõem à Paris daFig. 1, a Cidade das Luzes, em que o qua-dro de um palácio iluminado ilustrava oconhecimento que chegava com a eletri-cidade. Mas as duas situações retratam aFrança, e talvez outros países europeus,durante o século XIX. Como pode? O co-nhecimento não trazia avanços, progres-sos? E, principalmente, o que essa intro-dução tem a ver com o título deste texto?

O objetivo deste artigo é situar o tra-

balho de Sadi Carnot sobre as máquinastérmicas sob diferentes perspectivas. Pri-meiro discutiremos como as leis da termo-dinâmica, da forma como são adotadasatualmente, não correspondem ao seudesenvolvimento histórico e, portanto,não podem ser atribuídas a um ou outropersonagem da história da física. Depoisnos aprofundaremos no trabalho de Car-not publicado em 1824 e discutiremoscomo, apesar de partir de pressupostosdiferentes, seus resultados podem ser apli-cados atualmente. Por fim, discutiremoscomo o momento histórico em que viviaCarnot está presente em seu trabalho.Dessa maneira, pretendemos mostrar quea abordagem histórica das leis da termo-dinâmica permite explorar relações entreciência e tecnologia, bem como discutir

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Ingrid Kelly Laura dos Santos PintoGrupo de História da Ciência e Ensino,Universidade Estadual da Paraíba,Campina Grande, PB, BrasilE-mail: [email protected]

Ana Paula Bispo da SilvaDepartamento de Física, Grupo deHistória da Ciência e Ensino,Universidade Estadual da Paraíba,Campina Grande, PB, BrasilE-mail: [email protected]

Muitos conceitos que aparecem nos livros didá-ticos acompanham um breve resumo histórico,atribuindo posse, datas e locais a leis, fórmulase equações. É o caso das leis da termodinâmica,das quais Carnot é o “dono”. Entretanto, umestudo histórico contextualizado do trabalhode Carnot e das leis da termodinâmica mostraque conceitos mudam com o tempo e o con-texto sociocultural. Neste artigo discutimos co-mo a abordagem histórica das leis da termodi-nâmica permitem entender como ciência, tec-nologia e sociedade estão inter-relacionadas.

Figura 1: Le Chateau d’eau and plaza, with Palace of Electricity, Exposition Universelle,1900, Paris, France. Fonte: Library of Congress Prints and Photographs Division Wash-ington, D.C. 20540 USA.

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as influências mútuas entre ciência e con-texto sociocultural.

As leis da termodinâmica

Ao discutirmos as leis da termodinâ-mica no Ensino Médio, por vezes apareceuma questão cronológica: a lei zero veiodepois da primeira lei, a segunda lei veioantes da primeira e outras divagações.Afinal por que as leis estão “ordenadas”dessa maneira?

Historicamente, estas “leis” aparece-ram em momentos quase simultâneos ede forma independente. Sua “ordenação”ocorreu num momento muito posterior,em que já havia muito conhecimentosobre termodinâmica, e, possivelmente,mais com fins didáticos do que de orde-nação do conhecimento de um conteúdo.

Aquilo que denominamos atualmentede “primeira lei da termodinâmica” estárelacionado com as ideias de conservaçãode energia. Estudos relacionados à conser-vação e transformação de energia ocorre-ram durante o século XIX por estudiososem vários países ao mesmo tempo, semque fosse adotado o nome energia. JuliusRobert von Mayer (Alemanha, 1814-1878), James Prescott Joule (Inglaterra,1818-1889) e outros, por volta de 1850,investigavam como determinadas forçasse transformavam em outras, ou muda-vam de forma. Por exemplo: forças libe-radas em reações químicas pareciam for-necer calor (outro tipo de força) outransformavam-se em forças elétricas [1].Calor podia ser utilizado para força mecâ-nica (o que denominamos atualmente detrabalho). As transformações das forçaseram baseadas em diferentes hipóteses,muitas delas originárias de pressupostosfilosóficos. O que levava um estudioso ainvestigar que formas as forças podiamassumir nem sempre estava claro [2, 3].Ludwig August Colding (Dinamarca,1815-1888), um dos estudiosos queinvestigavam as transformações das for-ças, afirmou: “Todas as vezes que umaforça parece seaniquilar realizandoum trabalho mecân-ico, químico ou dequalquer outranatureza, ela apenasse transforma e rea-parece sob uma novaforma, onde elaconserva toda a suagrandeza primitiva” [2]. O que eleschamavam de força é muito semelhanteao que chamamos atualmente de energia.Por exemplo, Mayer define força como“coisas que podem assumir diferentesformas, mas cuja quantidade não varia,

e que se distinguem da matéria por nãopossuírem peso” [3, p. 66]. Nesse sentido,calor, movimento e força de queda sãoequivalentes ao que denominamos hojeenergia térmica, energia cinética e energiapotencial [3, p. 67]. A transformação deuma força em outra, de modo que, nogeral, haja a conservação da grandezaprimitiva, como afirma Colding, é muitosemelhante ao “princípio de conservaçãoda energia” que utilizamos atualmente.Nenhum destes estudiosos escreveu aprimeira lei da termodinâmica comofazemos hoje. Cada um deles estava in-vestigando as transformações das forçascom objetivos e hipóteses diferentes. Che-garam a um resultado muito semelhante,que é a existência de uma equivalênciaentre as formas que as forças assumem.Por exemplo: havia uma equivalência en-tre a quantidade de calor (calor era umadas muitas formas da força) fornecidapara uma máquina e a força mecânica queessa máquina realizava (movimento). Oque podemos concluir é que a primeiralei da termodinâmica estava mais baseadaem pressupostos teóricos e filosóficos doque propriamente numa observação em-pírica.

A “segunda lei da termodinâmica”apareceu num contexto diferente. Nasprimeiras décadas do século XIX, enge-nheiros e estudiosos independentes bus-cavam encontrar uma máquina queproduzisse mais, consumindo menoscombustível. Portanto, esses estudiososestavam preocupados com o rendimentodas máquinas térmicas. Isso significavaencontrar uma máquina térmica queaproveitasse quase todo o combustível,utilizado no aquecimento, para produzirtrabalho. Há registros de patentes de vá-rias máquinas térmicas criadas nesse pe-ríodo, principalmente entre os ingleses[4]. Para construir máquinas térmicasmais rentáveis não era preciso dominaro conhecimento sobre a natureza do pro-cesso. A natureza do processo era a

mesma para qualquermáquina: calor pro-duzindo trabalho.Para dominar esseprocesso, era precisoter conhecimentostécnicos e levar emconsideração proble-mas técnicos e ques-tões práticas.

Portanto, o desenvolvimento dasmáquinas térmicas é mais pertinente àhistória da tecnologia do que à históriada ciência.

Porém, se a natureza do processo fos-se mais bem conhecida, ou seja, o enten-

dimento das condições que proporcio-navam o rendimento da máquina, issopoderia levar a uma melhoria da tecnolo-gia que o empregava. Quem vai formali-zar esse rendimento mínimo desejado é oengenheiro e militar Sadi Carnot (1796-1832), num trabalho que ele publicou em1824, anteriormente à discussão já feitaaqui sobre a transformação das forças.

Tanto nos estudos sobre transforma-ções de forças quanto naqueles preocu-pados com máquinas térmicas, conside-rava-se implicitamente que o calor ia docorpo de temperatura mais alta paraaquele de temperatura mais baixa, comose ele se movesse, seja como fluido ouatravés do atrito das menores partes damatéria. Mas essa “lei” só foi explicitadae entendida como “lei” depois de 1824.

Ou seja, não é possível especificaruma data, um nome, um lugar, nem mes-mo uma finalidade, para as leis da física,principalmente para as leis da termodi-nâmica. Elas não têm “donos” nem fo-ram determinadas da mesma forma e coma mesma intenção. Há todo um complexodesenvolvimento por trás das equações efórmulas que utilizamos nos livros didá-ticos. Apenas a compreensão dos aspectoshistóricos de forma contextualizada per-mite entendermos o papel do conhecimen-to científico, seja na sala de aula ou nasociedade de forma geral.

Sadi Carnot

Nicolas Léonard Sadi Carnot (Fig. 2)nasceu em 1º de junho de 1796, em Palaisdu Petit Luxembourg. Era o filho mais ve-lho de Lazare Carnot (1753-1823), o qual

Sadi Carnot e as transformações sociais

Figura 2: Imagem de Nicolas Léonard SadiCarnot com uniforme da ÉcolePolytechnique. Disponível em http://www-groups.dcs.st-and.ac.uk/~his-tory/Biographies/Carnot_Sadi.html.Acesso em 05/10/2017.

Historicamente, as “leis”apareceram em momentos

quase simultâneos e de formaindependente. Sua “ordenação”

ocorreu num momento muitoposterior, em que já havia muito

conhecimento sobretermodinâmica

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sempre teve papel importante na sociedadefrancesa. Lazare participou da política lo-cal e estudou engenharia mecânica,chegando a publicar o livro Essai Sur lesMachines em Général (Ensaio Sobre as Má-quinas em Geral), em 1783. Por ver queseu filho possuía aptidão pelas ciênciasexatas, decidiu colocá-lo na École Poly-technique (Escola Politécnica), local emque estudava apenas a elite intelectualfrancesa [5]. A Politécnica na época eravoltada principalmente para as engenha-rias e a arte militar, exaltando o progressotecnológico e industrial, assim como pre-gavam os ideais do Conde de Saint Simon,Claude-Henri de Rouvroy (1760-1825).

Sadi Carnot, assim como seu pai, en-trou na vida militar, em março de 1814.Juntamente comoutros estudantes,lutou contra as forçasinvasoras durante oreinado de Napoleão eem outubro desse mesmo ano se tornousegundo-tenente, estudando na École duGénie, em Metz. Em 1819 abandonou avida militar e passou a se dedicar aosestudos e pesquisas sobre o desenvol-vimento industrial, em particular asmáquinas térmicas. No livro de Carnot otermo utilizado é machines à vapeur(máquina a vapor) e/ou machines à feu(máquina a fogo). Neste artigo utiliza-remos o termo máquina térmica de for-ma geral, uma vez que o sentido atribuídopor Carnot é o mesmo. Carnot teve comogrande influenciador Nicolas Clément(1779-1841), professor do Conservatóriode Artes e Ofício, e estudioso das máqui-nas a vapor e da teoria dos gases [5, 6].Nessa época, a Inglaterra destacava-secomo potência graças à máquina a va-por. Era natural, portanto, para um enge-nheiro e militar francês, supor que aFrança poderia seguir os mesmos cami-nhos da Inglaterra se dominasse a ciênciadas máquinas a vapor.

Assim, após a morte de seu pai, emagosto de 1823, o irmão mais novo deSadi, Hippolyte (1801-1888), retornou aParis e o ajudou em sua primeira obra:Réflexions sur la Puissance Motrice du Feuet sur les Machines Propres à Déveloper CettePuissance (Reflexões sobre a Potência Motrizdo Fogo e sobre as Máquinas Apropriadaspara Desenvolver essa Potência). Essa obrafoi publicada em 12 de julho de 1824.

Nesta obra, Carnot apresenta um es-tudo detalhado sobre gases e sua aplica-bilidade nas máquinas térmicas. A todomomento, entre os cálculos e deduçõesmatemáticas, Carnot se volta para asmáquinas térmicas e aplica seu conheci-mento. Ele considerava que as máquinas

térmicas funcionavam com a troca decalórico entre reservatórios e, nessa troca,havia a produção de trabalho. Calórico erao termo atribuído ao calor enquantofluido, que passava do corpo de tempera-tura mais alta para o corpo de temperatu-ra mais baixa. O calórico era consideradoum fluido imponderável, que não podiaser visto ou pesado, mas as transforma-ções envolvendo variação de temperaturalevavam ao seu reconhecimento. Paramais detalhes, sugerimos a leitura de Silvaet al. [7]. Carnot associava às máquinastérmicas o mesmo conhecimento que jáse tinha das máquinas “mecânicas”, comoforça animal, quedas d’água, ou seja, umconhecimento geral que independe docombustível e da forma de aplicação. A

produção do podermotor é devida aoestabelecimento doequilíbrio do calórico,ou seja, seu transporte

do corpo mais quente para o mais frio.Só pode haver utilidade (movimento) damáquina térmica se houver uma diferençade temperatura (movimento do calórico).Assim, o calórico funciona como umaqueda d’água. Na queda d’água, apotência depende da diferença de alturaentre os reservatórios mais baixo e maisalto. Para o calórico, a potência dependeda diferença de temperatura entre osreservatórios frio e quente [8, p. 6].

Utilizando-se dessa analogia e consi-derando os conhecimentos já existentessobre teoria dos gases e calorimetria, den-tre outros, ele faz a análise teórica e ma-temática dos processos envolvidos nofuncionamento das máquinas térmicas echega a algumas conclusões importantes.Considerou um experimento imaginário(cíclico) em que variavam as grandezaspressão, volume e temperatura, fazendocom que os estados iniciais e finais fossemiguais. A partir desse ciclo, Carnot chegouàs seguintes conclusões: 1) o poder mo-tor é independente dosagentes (combustí-veis) empregados pararealizá-lo; sua quan-tidade é determinadasomente pelas tem-peraturas dos corposentre os quais é efetuada, no fim, atransferência de calor [8, p. 20] e 2)quando um gás passa, sem mudar atemperatura, de um volume e pressãodefinidos para outro volume e outrapressão igualmente definidos, a quan-tidade de calórico absorvida ou cedida ésempre a mesma, qualquer que seja anatureza do gás escolhido como objeto doexperimento [8, p. 22].

Depois, ainda a partir do ciclo adotadoe considerando o conhecimento sobre ga-ses já determinado por estudiosos comoGay-Lussac, Mariotte, Desórmes, Delaro-che, Carnot chegou às conclusões: 3) adiferença entre o calor especifico sob pres-são constante e calor específico sob volu-me constante é a mesma para todos osgases (baseando-se nos estudos do som edos gases já conhecidos) [ 6; 7; 8, p. 24] e4) quando um gás varia de volume, semmudar a temperatura, a quantidade de ca-lor absorvida ou cedida está em progressãoaritmética, enquanto as variações de volu-me estão em progressão geométrica [8,p. 28]. Considerando as aproximações fei-tas, as conclusões de Carnot atendiam aoque se observava até então.

Porém, Carnot deixou um problemaem aberto. Se a quantidade de calor devidaà mudança de um gás é tanto mais consi-derável quanto mais elevada seja a tempe-ratura, por que se observa que “a quedade calórico produz mais poder motriz nosgraus inferiores que nos graus superiores”[6, p.72]? Ou seja, consideremos dois con-juntos de reservatórios quente e frio. Noprimeiro conjunto, as temperaturas friae quente são 10° e 60°, respectivamente.No segundo conjunto, as temperaturassão 60° e 110°. A diferença de temperaturaé a mesma entre os reservatórios. Carnotconcluiu que o rendimento seria maior noprimeiro caso do que no segundo. Consi-derando suas premissas, e o conhecimentoque já possuía, Carnot não conseguiuexplicar isso.

Ainda que partisse de uma concepçãode calor diferente do que temos hoje (ener-gia em movimento), os resultados de Car-not são muito próximos do que utiliza-mos atualmente. No entanto, mesmoenfatizando as aplicações práticas das má-quinas térmicas já conhecidas, o que erao mais importante para o contexto, o tra-balho de Carnot não foi reconhecido e per-maneceu esquecido. Antes de morrer, em

1832, Carnot aindarealizou mais estudossobre máquinas tér-micas em que intro-duzia as novas dis-cussões que apa-reciam na Academia,

a exemplo dos experimentos de Rumford,que consideravam o calor como movi-mento. Contudo, esses estudos não forampublicados [8, p. xii].

Em 1834, Émile Clapeyron (1799-1864) recuperou o trabalho de Carnot,corrigindo alguns erros e refazendo suasanálises. Diferentemente de Carnot, otrabalho de Clapeyron concentrava-se naresolução analítica dos problemas associa-

Sadi Carnot e as transformações sociais

Em seu trabalho, Carnot adotao calórico, ou seja, calor como

fluido

O diagrama de pressão,volume e temperatura que

representa o ciclo de Carnot foiapresentado por Clapeyron em

1834

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dos às máquinas e não em questões prá-ticas. Foi Clapeyron quem transformouo ciclo de Carnot num diagrama. O tra-balho de Clapeyron também não foireconhecido imediatamente. Somente após1843, quando o trabalho de Clapeyron foitraduzido para o alemão, tanto ele quantoCarnot passaram a ser reconhecidos e ser-viram como base para Rudolf Clausius(1822-1888) introduzir o conceito deentropia. Clausius desenvolveu o trabalhode Carnot considerando o calor comomovimento e conseguiu explicar o pro-blema que ele havia deixado em aberto.

Outro exemplo de reconhecimentotardio do trabalho de Carnot é a introdu-ção da temperatura absoluta por WilliamThomson (Lorde Kelvin - 1824-1907),num trabalho de 1848. Segundo Kelvin,o efeito mecânico produzido por umadeterminada quantidade de calor seriauma escala absoluta, já que Carnot haviamostrado que o trabalho realizado pelasmáquinas térmicas dependia apenas dastemperaturas e não da substância [9]. Ouseja, a definição de escala Kelvin, que hojeutilizamos como “grau de agitação dasmoléculas” , partiu de considerações queinicialmente nem pressupunham a exis-tência de moléculas!

Apenas em 1865, quando RudolfClausius publica seu trabalho sobre entro-pia (Sobre uma forma modificada do segundoteorema da teoria mecânica do calor), a“segunda lei” fica conhecida. Nesse mo-mento, o equivalente calor-trabalho daconservação da energia já estava sendoaceito e as discussões sobre a natureza docalor tinham se encaminhado para o calorcomo movimento. Portanto, quando asideias de Carnot foram finalmente aceitas,outras concepções estavam vigentes.

As transformações sociais

O entendimento das ideias de Carnotfoi feito durante um contexto científico esocial muito diferente daquele em que ha-viam sido divulgadas inicialmente.Durante o século XIX, muitas mudançasestavam ocorrendo nasociedade, principal-mente na Inglaterra,na França e na Ale-manha, pátrias dosestudiosos citados notexto [10, 11]. Muitasdessas mudanças fo-ram causa ou consequência de fenôme-nos envolvendo termodinâmica, ou seja,não é possível dissociar o conhecimentocientífico dos motivos que o provocaramou que foram resultado dele.

Sendo assim, vamos tentar situarqual era o contexto social em que Carnot

desenvolveu seus trabalhos. Um dos mar-cos a considerar é a revolução industrialna Inglaterra, que teve seu auge na se-gunda metade do século XVIII. De carátereconômico, modificou os modos de pro-dução, com a introdução das máquinas avapor, e trouxe consequências para agri-cultura, transportes e comunicação, au-mento populacional e, mais importante,levou à criação de duas classes sociais:proletários e burgueses. Os burgueses con-centravam a renda e os proletários, o tra-balho, com mínimas condições de vida.Com a renda que obtinham, os burguesesinvestiam mais na produção de mais e me-lhores máquinas, para gerar mais lucro,mais renda e por aí vai. Parte dessa rendaera utilizada para financiar estudos, como financiamento de sociedades científicase criação de escolas técnicas [10, p. 300].Já para os operários, as coisas eram bemdiferentes. Eram explorados nas minas(extração de carvão), com muitas horasde trabalho, baixos salários e nenhumbenefício. O acesso à educação eraprivilégio dos burgueses, principalmenteconhecimento que levasse ao progresso,

ou seja, à melhoriadas máquinas e daprodução.

A diferença entreclasses sociais já vinhaprovocando mani-festações entre nobrese burgueses na França

do século XVIII, o que acabou culminandona Revolução Francesa. De caráter maispolítico, a revolução francesa levou àascensão da burguesia, que queria ter asmesmas vantagens da burguesia inglesa– ou seja, incentivo para a introdução dasmáquinas, investimento em melhores

condições de produção e, consequen-temente, empobrecimento dos proletáriose péssimas condições de trabalho [10,p. 305]. O acesso à educação também eraprivilégio dos burgueses, que tinham apossibilidade de frequentar a EscolaPolitécnica (École Polytechnique), queformava os engenheiros, muitos tambémmilitares (afinal, precisavam defender ointeresse da classe que estava no poder).Isso explica o símbolo da Escola Politéc-nica, com os dizeres “pela pátria, as ciên-cias e a glória” (Fig. 3.)

Portanto, ao iniciar o século XIX, ocontexto socioeconômico da França e daInglaterra incentivava o progresso e,admitia-se, esse progresso estava relacio-nado à melhoria da tecnologia (máquinas)[11, p. 83]. O conhecimento da naturezado processo, o estudo de filósofos e a par-ticipação nas sociedades científicas eraprivilégio dos burgueses. Os proletários,trabalhadores, precisavam aprender aoperar e eram apenas treinados.

Já a Alemanha passou por mudançastardiamente. Somente a partir de 1848,quando houve a unificação dos estadosindependentes, é que se iniciou um pro-cesso de industrialização e reformas edu-

Sadi Carnot e as transformações sociais

Sugestão para o professor

Esse tema pode ser abordado na forma de projeto envolvendo várias disciplinas,como história, literatura, geografia, química, física e biologia. Os ideais de AugustoComte influenciaram tanto a Europa quanto o Brasil e tiveram larga extensão, comoa criação das escolas politécnicas, as reformas na saúde, os movimentos eugenistasetc. Também é possível questionar sobre o método científico, seus pressupostos e suavalidade diante do papel que a ciência tem na sociedade. Além da bibliografia indicada,alguns documentários e filmes podem enriquecer o projeto, como:

• filme e livro Germinal de Émile Zola.

• O Positivismo no Brasil. Disponível em https://youtu.be/-yiVQTZrRfg. Acessoem 5/10/2017.

• A revolta da vacina. Disponível em https://youtu.be/SBLVc8BWsnY. Acessoem 5/10/2017.

Revistas de divulgação científica sobre o temaA Ciência na Era dos Inventores - História da Ciência - Scientific American Brasil, ed.

n. 4).Entropia: A Medida da Desordem do Universo, Ciência Hoje, v. 54, n. 323, março

2015.

Figura 3: Símbolo da Escola Politécnica.Disponível em https://www.polytechnique.edu/fr/histoire.Acesso em 05/10/2017.

O trabalho de Carnot foi escritosob a influência do positivismo

de Augusto Comte, quebaseava-se na organização da

sociedade, o que incluía adefesa do regime ditatorial

27Física na Escola, v. 16, n. 1, 2018 Sadi Carnot e as transformações sociais

Referências

[1] A. P. Chagas, in: O Saber Fazer e Seus Muitos Saberes: Experimentos, Experiências e Experimentações, editado por A.M. Alfonso-Goldfarb et al. (Editora EDUC-FAPESP, São Paulo, 2006), p. 337-349.

[2] A.P.B. Silva e J.A.Silva, Hist., Ciências, Saúde-Manguinhos 24, 3 (2017).[3] R.A. Martins, Cad. Hist. Fil. Cien. 6, 63 (1984).[4] J.C. Passos, Anais XXXI Cobenge, Rio de Janeiro, 2003.[5] J.F. Challey, in: Dicionário de Biografias Científicas, editado por C. Benjamin (Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2007).[6] A. Castignani, Sadi Carnot e o Desenvolvimento Inicial da Termodinâmica Clássica. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, 1999.[7] A.P.B. Silva, T.C.M. Forato e J.L.A.M.C. Gomes, Cad. Bras. Ens. Fis. 30, 3 (2013).[8] S. Carnot, Reflections on the Motive Power of Fire (Dover, New York, 1960).[9] W. Thomson, Rev. Bras. Ens. Fís. 29, 4 (2007).[10] M.A. Andery, N. Micheletto, Para Compreender a Ciência (Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2007).[11] E. Hobsbawm, A Era das Revoluções: 1789-1848 (Editora Paz e Terra, São Paulo, 2010).[12] F.S. Santos e I. Jusdensnaider, Prometeica 10, 58 (2015).[13] D.B.S. Borges e T.C.M. Forato, in: Histórias das Ciências, Epistemologia, Gênero e Arte: Ensaios para a Formação de Professores,

editado por B.A. Moura e T.C.M. Forato (Editora UFABC, São Paulo, 2017), p. 139-161.

cacionais. Portanto, entre os estudiososalemães, os objetivos do conhecimento danatureza eram outros [10, p. 326].

Voltando a Carnot e à termodinâmica.Na França, o estilo de pensamento vai serrepresentado principalmente por AugustoComte (1798-1857), um dos fundadoresdo Positivismo. Adepto das ideias de SaintSimon, baseava-se na organização dasociedade, o que incluía a defesa do re-gime ditatorial. A organização da socie-dade deveria ocorrer assim como ocorriana natureza [10, p.373].

Para Comte, a natureza assumia umavisão mecânica, seguindo regras (leis)

invariáveis. Para conhecer a natureza, ohomem deveria basear-se nos fatos obser-váveis e, a partir da razão, que eliminavacausas finais e agentes sobrenaturais,chegar às relações invariáveis de sucessãoe similitude. O objetivo era chegar a leisgerais invariáveis que explicassem ofuncionamento da natureza. Essa orde-nação da natureza através de leis levariaao conhecimento positivo e ao progresso[12]. O conhecimento positivo não admitedúvidas e, portanto, o método utilizadopara adquiri-lo (Fig. 4) deve ser único epresente em todas as ciências que inten-cionam o conhecimento verdadeiro.

Há muitas semelhanças entre os obje-tivos de Carnot e os ideais de Comte. Elessão contemporâneos e tinham como visãoa natureza funcionando mecanicamente(assim como vários outros estudiosos damesma época). Para ambos, seria possívelencontrar uma lei generalizada, baseadana regularidade da natureza e que levassea um avanço nas máquinas e, portanto,ao conhecimento positivo que permitia oprogresso.

De volta ao início – algumasconsiderações

Conhecer o contexto em que Sadi Car-not desenvolveu seus trabalhos ajuda aexplicar a imagem apresentada no iníciodeste trabalho [13, p. 140], bem como aordenação das leis da termodinâmica.

Em um tempo em que o conheci-mento positivo representava o progresso,a imagem da Paris iluminada pela recémdescoberta eletricidade é muito maisatrativa do que aquelas das chaminésemitindo fumaça e ruas cheias de mendi-gos e proletários rebeldes. O conhecimentopositivo também pressupunha uma

Figura 4: Exemplo adaptado do métodocientífico proposto por Comte. Disponívelem http://proficiencia.org.br/article.php3?id_article=487. Acesso em06/04/2018.

linearidade, uma sucessão de verdades quelevaria ao real conhecimento da natureza.Daí a ordenação das leis da termodinâmicade forma ahistórica. Afinal, para seconhecer a natureza, partimos da lei zeropara depois chegar à lei dois. Não há lugarpara agentes sobrenaturais (inobservá-veis) e causas finais na organização danatureza.

Por outro lado, desvincular os estudosde Sadi Carnot do contexto pode acabardistorcendo-o. Podemos interpretá-loscomo símbolo do progresso tecnológico eda busca pela melhoria das condições devida – e de conhecimento – pelo homem.Mas como foi argumentado no item an-terior, o conhecimento positivo era parapoucos e também poucos se beneficiaramdo “progresso” que ele trouxe. Isso nosleva a questões maiores, como: há relaçãodireta entre ciência, tecnologia e progres-so? O que influencia a ciência? E, umapergunta sem resposta: ciência e tecno-logia são boas ou ruins para a sociedade?

Entendemos que, ao discutirmosconceitos de física – no caso, as leis datermodinâmica – inserindo o contextosocial com a abordagem histórica, épossível compreender não somente oconteúdo conceitual em si, mas tambémtodas as implicações que ele envolve.Longe do que pressupõe o positivismo, aciência não traz uma verdade sobre anatureza, mas uma resposta dentre tan-tas outras possíveis. A escolha por umaresposta envolve vários fatores que vãoalém da própria ciência.

Agradecimento

Este trabalho contou com o financia-mento do CNPq, Edital Universal projetonº 474924/2012-2.