Investigação acerca da possibilidade de uma estética em Karl Marx

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Idéias estéticas Marx Materialismo alienação Trabalho Trabalho criador

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  • INVESTIGAO ACERCA DA

    POSSIBILIDADE DE UMA

    ESTTICA EM KARL MARX

  • Ricardo Luis Reiter

    INVESTIGAO ACERCA DA

    POSSIBILIDADE DE UMA

    ESTTICA EM KARL MARX

    Este livro um trabalho de concluso de

    curso de graduao apresentado Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    (PUCRS), como requisito parcial para obteno

    do grau de Bacharel em Filosofia. Aprovado

    pela banca examinadora, composta pelos

    professores Dr. Ronel Alberti da Rosa, Dr.

    Norman Roland Madarasz e Ms. Eduardo Silva

    Ribeiro no segundo semestre de 2013.

    Porto Alegre

    2013

  • Direo editorial e diagramao: Lucas Fontella Margoni

    www.editorafi.com

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    REITER, Ricardo Luis

    Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    [recurso eletrnico] / Ricardo Luis Reiter. -- Porto Alegre, RS:

    Editora Fi, 2013.

    134 p.

    ISBN - 978-85-66923-17-9

    Disponvel em:

    http://www.editorafi.com/2013/12/investigacao-acerca-da-possibilidade-de.html

    1. Esttica. 2. Karl Marx 3. Alienao 4. Arte. 5. Trabalho. I.

    Ttulo.

    CDD-193

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Filosofia Alem 193

  • Investigao acerca da possibilidade

    de uma Esttica em Karl Marx

  • Dedico esse trabalho aos meus pais Dlson Luis

    Reiter e Marlize Schorr Reiter, e a minha irm Vanessa

    Cristine Reiter. Em todos os momentos sempre pude

    encontrar conforto na minha famlia.

  • AGRADECIMENTOS

    Durante todo processo de formao acadmica, tive

    grandes amigos que me apoiaram. Nesse momento desejo

    agradecer aqueles que sempre estiveram presentes.

    Agradeo, em primeiro lugar a Deus, pois sem ele

    impossvel concluir com xito qualquer projeto.

    Agradeo minha famlia, pelo apoio, incentivo e

    respeito pela minha deciso de cursar filosofia. O amparo da

    famlia sempre foi essencial na minha vida.

    Agradeo a minha esposa, Letcia, por ter

    permanecido ao meu lado nas madrugadas em que digitava

    este trabalho. Tambm cabe a ela parte dos crditos pela

    escolha do autor que aqui foi explorado neste trabalho.

    Muito obrigado.

    Agradeo ao Dr. Ronel por ter me orientado to

    bem nesse projeto. Suas observaes foram extremamente

    pontuais e claras, o facilitou a percepo do que deveria ser

    melhorado no presente trabalho. Mas ao mesmo tempo, a

    suas orientaes sempre me permitiram toda a liberdade

    como escritor, deixando ao meu critrio escolher os aspectos

    a serem contemplados e apresentados. Foi um prazer

    trabalhar com o senhor.

    Agradeo tambm ao Dr. Srgio Sardi pela

    disponibilidade em conduzir as cadeiras da monografia.

    Acredito que toda a turma concordar comigo quando digo

  • que sua pacincia e seu incentivo foram fundamentais no

    processo de elaborao e escrita durante esse ano que

    dedicamos-nos aos nossos trabalhos. Estou grato pela sua

    ajuda.

    Agradeo a coordenadora do Projeto Ao Rua do

    qual fao parte, Ana Paula, e no nome dela agradeo a toda a

    equipe. A pacincia e a alegria de vocs foram de extrema

    importncia para que eu pudesse suportar toda a teno que

    surge na hora da elaborao de um trabalho como esse.

    Estou grato por ter colegas to especiais como vocs.

    Agradeo tambm a duas pessoas que considero

    especiais: Elenice e Juliana. A convivncia e parceria com

    vocs tornou esses dias mais animados. Fico grato por ter

    pessoas como vocs comigo.

    Agradeo ao Dr. Norman Roland Madarasz que

    prontificou-se a participar da banca de aprovao desse

    trabalho e que foi um dos melhores professores com que

    pude conviver durante o perodo acadmico. Nossas

    conversas sobre Marx foram de grande valia na elaborao

    desse projeto e para a formao acadmica. Estou grato por

    ter tido o senhor como professor.

    Por fim, e no menos importante, agradeo ao Me.

    Eduardo Ribeiro, que alm de ser um grande amigo aceitou

    participar da banca de defesa desse trabalho. Com um

    simples gesto de desapegar-se de um livro, ele conseguiu dar

    novos rumos este trabalho. fantstico ter amigos que

    preocupam-se conosco. Muito Obrigado.

  • "A arte comea onde a imitao acaba." (Oscar Wilde)

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................. 15

    2 DEFININDO CONCEITOS ............................. 18

    2.1 O CONCEITO DE HOMEM ...................................20

    2.1.1 A influncia de Hegel para o pensamento de Marx ...24

    2.1.2 A influncia de Feuerbach no pensamento de Marx ...26

    2.1.3 O homem para Marx ...............................................31

    2.2 O CONCEITO DE ALIENAO ..........................33

    2.3 O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE EM MARX .....................................................................................40

    3 O ASPECTO ESTTICO DA ALIENAO .... 47

    3.1 ARTE E REALISMO ..................................................49

    3.1.1 Os falsos Realismos ..................................................54

    3.1.2 O Realismo de Marx e suas Implicaes ...................57

    3.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DO TRABALHO ..58

    3.2.1 O trabalho e o desejo de criao do homem .................63

    3.3 O ARTISTA ..................................................................69

    3.3.1 O sentidos humanos ..................................................72

    3.4 ARTE E ALIENAO ..............................................76

  • 3.4.1 Produo material X Produo artstica ....................77

    4 A PRODUO ESTTICA E A SOCIEDADE CAPITALISTA ........................................................... 88

    4.1.1 A atividade artstica e o trabalho assalariado ............99

    4.2 A PRODUO NO CAPITALISMO E A LIBERDADE DE CRIAO ......................................... 105

    4.2.1 O desenvolvimento da arte nas condies hostis do Capitalismo ........................................................................ 114

    5 PRODUO ARTSTICA E CONSUMO HUMANO ................................................................ 119

    5.1 CRIAO, GOZO ESTTICO E APROPRIAO HUMANA .......................................... 126

    6 CONSIDERAES FINAIS ........................... 130

    REFERNCIAS ....................................................... 131

  • 15 Ricardo Luis Reiter

    1 INTRODUO

    Todo trabalho que tem como assunto algum ponto

    especfico do projeto filosfico apresentado por Karl Marx

    se depara com o mesmo problema: onde comear? Sendo

    assim, este trabalho no poderia ser diferente. Desde o

    momento em que foi definido que a monografia se

    debruaria sobre a investigao acerca da possibilidade de

    esttica em Marx e como ela se apresenta, surgiu a mesma

    dvida fundamental: por onde comear?

    Marx no escreveu um tratado sobre esttica. Todo

    o projeto filosfico de Marx, porm, apresenta aspectos

    relevantes ao seu pensamento esttico. Isso fez com que

    suas principais obras estivessem recheadas de passagens

    sobre o seu pensamento esttico. Desde seus Manuscritos

    Econmico-Filosficos at sua obra mais madura, O

    Capital, encontram-se proposies, ideias e aspectos que

    fundamentam claramente que existe, em Marx, uma

    concepo prpria de esttica. A recente publicao dos

    Grundrisse vem acrescentar ainda mais material literrio

    grande bagagem deixada por Marx.

    Marx, ao iniciar seus estudos nos Manuscritos

    Econmico-Filosficos, no buscava nada relacionado

    esttica. Ao contrrio, seu projeto era encontrar a

    humanidade do homem. Humanidade essa que se teria

    perdido no momento em que o homem foi forado a se

  • 16 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    alienar pela sua sobrevivncia. Conforme Vzquez,

    Era o homem, ou, mais exatamente, o homem social,

    concreto, que - nas condies econmicas e histricas

    prprias da sociedade capitalista - se desfaz, se mutila ou

    nega a si prprio. Essa mutilao do homem, ou perda

    do humano, se d precisamente no trabalho, na

    produo material, isto , na esfera na qual o homem

    deveria se afirmar como tal e que tornou possvel

    prpria criao esttica. E, buscando o humano, o

    humano perdido, Marx encontra o esttico como um

    reduto da verdadeira existncia humana; no apenas

    como um seu reduto, mas como esfera essencial.

    (VZQUEZ, 2011, p. 45)

    Assim, era o homem o objeto especfico da arte,

    apesar de nem sempre ser o objeto a ser representado. A

    arte devolvia ao homem algo de essencial que ele perdeu. A

    esttica passaria a ser o ltimo reduto do humano ao qual o

    homem tem acesso. Assim, a arte seria uma forma de

    conhecimento; no de conhecimento cientfico, mas sim de

    um conhecimento humano sobre objetos humanizados1.

    Diante desse contexto, percebe-se que o aspecto

    esttico seria muito mais relevante em Marx do que poderia

    1 Para Fischer, a arte a unio do homem com o todo, ou seja, meio de satisfazer o desejo do homem de pertencer ao todo: (...) o desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele mais do que um individuo. Sente que s pode atingir a plenitude se se apoderar das experincias alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu inclui aquilo de que a humanidade, como um todo, capaz. A arte o meio indispensvel para essa unio do indivduo como o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associao, para a circulao de experincias e ideias. (FISCHER, 1976, p. 13)

  • 17 Ricardo Luis Reiter

    sugerir uma leitura rpida e descuidada de suas obras.

  • 18 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    2 DEFININDO CONCEITOS

    A filosofia de Marx apresenta muitos conceitos que

    j esto presentes dentro da filosofia clssica. A novidade

    desses conceitos, entretanto, est na nova leitura deles

    apresentada pelo autor de O Capital. Assim, conceitos

    como homem, alienao e espiritualidade, que sero

    apresentados a seguir, recebem uma nova roupagem

    prpria da filosofia marxista.

    Marx foi um filsofo que estava em contato com as

    vrias correntes vigentes em sua poca. Assim, sua filosofia

    acabou sendo influenciada principalmente por Hegel,

    Feuerbach, Schiller e os economistas, principalmente

    Ricardo e Mill. A filosofia de Marx recebe essa influncia,

    mas ao mesmo tempo apresenta crticas, observaes e

    novas interpretaes aos conceitos adotados.

    Dessa forma, surge a necessidade de uma breve

    apresentao de alguns conceitos que esto presentes tanto

    na filosofia tradicional como na esttica marxista, contudo

    sob prismas diferentes. Quando Marx afirma que o

    trabalho humaniza o homem, por exemplo, preciso ter

    presente o que Marx entende por homem. O projeto

    esttico de Marx, como a prpria filosofia marxista, uma

    filosofia que se prope a reconstruir toda a filosofia a partir

    de um novo fundamento, a saber: o homem.

  • 19 Ricardo Luis Reiter

    Eagleton escreve que a filosofia, principalmente a

    esttica, at Marx, havia sido reduzido a uma anesttica.

    Seria preciso reconstruir tudo, partindo de um novo

    pressuposto.

    O materialismo implcito da esttica poder ainda ser

    redimido, mas para descarreg-lo do peso do idealismo

    que o verga, necessria uma revoluo do pensamento

    que faa de sua base o prprio corpo, e no um tipo de

    razo que luta por um espao prprio. (EAGLETON,

    1990, p. 146)

    O primeiro filsofo que se encarregou de

    apresentar uma nova filosofia que partisse da materialidade,

    do corpo, foi Marx. O materialismo de Marx no se limita a

    apresentar uma nova esttica; at porque a esttica apenas

    um dos temas da filosofia. Assim, ao reescrever a esttica a

    partir do corpo, Marx acaba por reescrever toda a filosofia,

    ou pelo menos toda a histria da filosofia.

    A histria que o marxismo tem para contar um relato

    classicamente hubrstico de como o corpo humano,

    atravs de suas extenses que ns chamamos de

    sociedade e tecnologia, chega a superar a si mesmo e a

    levar a si mesmo at o nada, reduzindo sua prpria

    riqueza sensvel a uma cifra no ato de converter o

    mundo em um rgo de seu corpo. (EAGLETON,

    1990, p. 147)

    Nas palavras de Marx, "a histria de todas as

    sociedades que j existiram a histria de lutas de classe"

    (MARX; ENGELS, 1998, p. 9). Essa a histria que Marx

    apresenta. Ela vai, entretanto, muito alm das lutas de

  • 20 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    classe. dentro desse processo histrico que o homem se

    desenvolve e se conhece. A histria das lutas de classe

    acaba sendo a prpria histria do homem no mundo

    2.1 O CONCEITO DE HOMEM

    Dentro da filosofia de Marx, um dos conceitos

    fundamentais, e com significado prprio, o conceito de

    homem. O homem marxista bem diferente do homem

    clssico e do homem estudado pela tradio filosfica.

    Marx adota um conceito de homem social, presente no

    mundo dentro de um processo histrico. Nas palavras de

    Fromm,

    Marx no acreditava, como o fazem muitos socilogos e

    psiclogos contemporneos, que houvesse algo assim

    como uma natureza do homem, que este ao nascer seja

    como uma folha de papel branco na qual a cultura

    escreve seu texto. Bem ao contrrio desse relativismo

    sociolgico, Marx partiu da ideia de que o homem como

    homem uma entidade identificvel e verificvel,

    podendo der definido como homem no apenas

    biolgica, anatmica e fisiologicamente, mas tambm

    psicologicamente. (FROMM, 1962, p. 34)

    Para Erich Fromm, Marx no concebia o homem a

    partir das mesmas premissas daqueles que o antecederam,

    pois criticava tanto o Idealismo quanto o Materialismo, por

    ambos serem abstratos demais. De fato, nem o

    Materialismo tradicional e nem o Idealismo consideraram o

    ser humano como ser histrico-social.

    Marx combateu o materialismo mecnico, burgus, o

  • 21 Ricardo Luis Reiter

    materialismo abstrato da cincia natural, que exclua a

    Histria e seus processos, e para seu lugar advogou o

    que denominou, em Manuscritos Econmicos e

    Filosficos, naturalismo ou humanismo [que]

    diferente tanto do Idealismo quanto do materialismo e,

    ao mesmo tempo, constitui a verdade que os unifica.

    De fato, Marx nunca empregou as expresses

    materialismo histrico ou materialismo dialtico; ele

    falou isso sim, de seu prprio mtodo dialtico, em

    contraste como de Hegel, e de sua base materialista,

    pelo que se referia simplesmente s condies

    fundamentais da vida humana. (FROMM, 1962, p. 20)

    Marx trouxe para sua filosofia o aspecto histrico-

    social, que havia sido ignorado por Hegel e, depois, por

    Feuerbach. Ele, Marx, apresentava, assim, uma nova

    concepo de Materialismo, um materialismo com razes

    histricas. Essa nova interpretao do Materialismo,

    contudo, trazia valores que j haviam sido introduzidos por

    Feuerbach, principalmente a valorizao do homem sobre a

    Ideia.

    A diferena do Materialismo histrico para o

    Materialismo que Marx se propusera assumir pode ser

    encontrada nas Teses sobre Feuerbach, escritas pelo

    prprio Marx:

    O principal defeito de todo o materialismo existente at

    agora - o de Feuerbach includo - que o objeto

    [Gegenstand], a realidade, o sensvel, s apreendido

    sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplao;

    mas no como atividade humana sensvel, como prtica,

    no subjetivamente. Da decorre que o lado ativo, em

    oposio ao materialismo, foi desenvolvido pelo

  • 22 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    Idealismo - mas apenas de modo abstrato, pois

    naturalmente o Idealismo no conhece a atividade real,

    sensvel, como tal. Feuerbach quer objetos sensveis

    [sinnliche Objekte] efetivamente diferenciados dos

    objetos do pensamento; mas ele no apreende a prpria

    atividade humana como atividade objetiva

    [gegenstndliche Ttigkeit]. Razo pela qual ele enxerga,

    na Essncia do cristianismo, apenas o comportamento

    terico como autenticamente humano, enquanto a

    prtica aprendida e fixada apenas em sua forma de

    manifestao judaica-suja. Ele no entende, por isso, o

    significado da atividade revolucionria, prtico-

    crtica. (MARX; ENGELS, 2007, p. 537)

    Em outra passagem, Marx faz uma crtica direta a

    Hegel e filosofia alem, por ter adotado o sistema

    hegeliano. Sua crtica refere-se falta do aspecto material

    na filosofia alem.

    Totalmente ao contrrio da filosofia alem, que desce do

    cu a terra, aqui se eleva da terra ao cu. Quer dizer, no

    se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou

    representam tampouco dos homens pensados,

    imaginados e representados para, a partir da, chegar aos

    homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente

    ativos e, a partir de seu processo de vida real, expe-se

    tambm o desenvolvimento dos reflexos ideolgicos e

    dos ecos desse processo de vida. Tambm as formaes

    nebulosas na cabea dos homens so sublimaes

    necessrias de seu processo de vida material, processo

    empiricamente constatvel e ligado a pressupostos

    materiais. A moral, a religio, a metafsica e qualquer

    outra ideologia, bem como as formas de conscincia a

    elas correspondentes, so privadas, aqui, da aparncia de

  • 23 Ricardo Luis Reiter

    autonomia que at ento possuam. No tem histria,

    nem desenvolvimento; mas os homens, ao

    desenvolverem sua produo e seu intercmbio

    materiais, transformam tambm, com esta sua realidade,

    seu pensar e os produtos de seu pensar. No a

    conscincia que determina a vida, mas a vida que

    determina a conscincia. No primeiro modo de

    considerar as coisas, parte-se da conscincia como

    indivduo vivo; no segundo, que corresponde vida real,

    parte-se dos prprios indivduos reais, vivos, e se

    considera a conscincia apenas como sua conscincia.

    (MARX; ENGELS, 2007, p. 94)

    Uma das principais diferenas entre Marx e

    Feuerbach (isto ser retomado novamente adiante) o fato

    de Marx ir alm de Feuerbach na crtica a Hegel e

    filosofia alem. A novidade apresentada por Marx estava

    justamente nessa associao do aspecto histrico social ao

    conceito de homem.

    Nogare, em um de seus estudos sobre antropologia

    filosfica, afirma que os filsofos que mais influenciaram o

    pensamento de Marx foram Hegel e Feurbach. Cada um

    dos autores forneceu aspectos relevantes para a formulao

    de conceitos centrais dentro da filosofia de Marx.

    Engels e Marx reconheceram essa influncia

    recebida dos dois filsofos. Mas, ao mesmo tempo

    ressaltam o quanto acabaram por se distanciar deles. Esse

    distanciamento deu-se muito por causa da apropriao

    prpria e do amadurecimento do pensamento de Marx.

    Apesar de aceitar aspectos da filosofia, tanto de Hegel

    quanto de Feurbach, Marx acaba por transcend-la e

    resignificar tais aspectos, acrescentando aquilo que ele traz

    de novo.

  • 24 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    2.1.1 A influncia de Hegel para o pensamento de

    Marx

    De Hegel, Marx recebe principalmente o conceito

    de dialtica. Marx adota esse conceito, mas o adapta

    conforme sua filosofia.

    Nogare apresenta o significado histrico de dialtica

    como um termo que significa conversar, dialogar, dizer um

    para o outro. Esse sentido de dialtica perdurou desde a

    filosofia grega, vale lembrar os dilogos de Scrates nos

    livros de Plato, at a Idade Mdia, onde ela acabou tendo

    seu sentido ampliado, abrangendo a lgica, e passando a

    significar um dilogo, segundo certas normas. Na filosofia

    moderna, Hegel apresenta a dialtica como sendo o

    movimento de uma tese que criticada por uma anttese,

    gerando uma sntese. Essa, por sua vez ser uma nova tese

    que repetir todo o movimento2. (NOGARE, 1990).

    Marx no aceita a formulao hegeliana de dialtica,

    apesar de ter adotado o conceito dele. No Posfcio da

    segunda edio de O Capital, ele apresenta sua prpria

    2 Nogare apresenta a sntese do conceito hegeliano de dialtica como um eterno dilogo entre tese, anttese e sntese: A dialtica hegeliana mantm da dialtica antiga o sentido de contradio, que est implcito no dilogo. Hegel, porem, v essa contradio, no somente nas palavras dos interlocutores, mas na realidade universal e consequentemente nas ideias, que constituem para ele a realidade (todo o real racional, todo racional real). A realidade - e a ideia que a constitui - pelo fato de resultar de elementos contraditrios um eterno dilogo entre: Tese (afirmao), Anttese (negao), donde se passa necessariamente a Sntese (negao da negao). A sntese por sua vez torna-se tese de uma sucessiva trade. Esta perene colocao da contradio e sua resoluo chama Hegel de dialtica. Exemplo: a trade fundamental em Hegel : tese: ser, anttese: no-ser, sntese: devir. Outro exemplo: tese: alma, anttese: corpo, sntese: o homem, esprito encarnado. (NOGARE, 1990, p. 84)

  • 25 Ricardo Luis Reiter

    definio de dialtica, apontando as principais diferenas,

    ou crticas definio hegeliana.

    Meu mtodo dialtico, por seu fundamento, difere do

    mtodo hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para

    Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma

    em sujeito autnomo sob o nome de ideia - o criador

    do real, e o real apenas uma manifestao externa. Para

    mim, ao contrrio, o ideal no mais do que o material

    transposto para a cabea do ser humano e por ela

    interpretado.

    (...) A mistificao por que passa a dialtica nas mos de

    Hegel no o impediu de ser o primeiro a apresentar suas

    formas gerais de movimento, de maneira ampla e

    consciente. Em Hegel, a dialtica est de cabea para

    baixo. necessrio p-la de cabea para cima, a fim de

    descobrir a substncia racional dentro do invlucro

    mstico. (MARX, 2006, p. 29)

    Surge aqui a grande diferena, segundo Nogare,

    entre Hegel e Marx no que diz respeito dialtica: para

    Hegel, a realidade originria e, portanto, fundamental, o

    esprito (ideia). A dialtica, em Hegel, a prpria vida e

    desenvolvimento da ideia, e mtodo para a compreenso

    dessa vida e desenvolvimento. J em Marx, a realidade

    originria e fundamental no a ideia e sim a matria. Por

    isso, ele afirma que seu processo oposto ao de Hegel. Em

    Marx, a dialtica o modo de desenvolvimento dessa

    realidade que origina da matria e tambm o mtodo para a

    compreenso de todo esse processo, que no fundo um

    processo histrico.

    Vale citar a definio de homem em Hegel

    elaborada por Lima Vaz:

  • 26 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    A concepo hegeliana do homem articula-se, assim,

    segundo um ritmo dialtico ternrio que Poe em

    evidncia o carter subjetivo do Esprito, ou seja, sua

    negatividade essencial que lhe permite realizar-se como

    sujeito efetivamente real, ou seja, em sua individualidade

    efetiva. , pois, o homem efetivo (der wirkliche

    Mensch) que se constitui por meio desse movimento

    dialtico que, em seu ritmo tridico, pode ser

    considerado uma tentativa de superao do dualismo

    corpo-alma. A resposta questo kantiana O que o

    homem? , pois, ao mesmo tempo uma exposio

    (Darstellung) dos momentos constitutivos do ser do

    homem e do movimento dialtico de seu tornar-se

    homem (das Werden des konkreten Menschen) segundo

    os nveis de sua realidade, ou seja, segundo a matria ou

    o ser do homem, objeto da Antropologia, segundo a

    forma ou o operar do homem, objeto da

    Fenomenologia, e segundo a figura ou realizao do

    homem, objeto da Psicologia. (VAZ, 2001, p. 124)

    2.1.2 A influncia de Feuerbach no pensamento de

    Marx

    Segundo Nogare, Feuerbach legou a Marx

    preocupao para com a prioridade da matria sobre o

    esprito e a antropologia da religio. Apesar de esses

    conceitos serem fundamentais em Marx, eles passaram por

    uma correo e receberam novas propriedades (NOGARE,

    1990).

    Lima Vaz ao escrever sobre o papel de Feuerbach

    na histria da filosofia apresenta que

  • 27 Ricardo Luis Reiter

    A posio de L. Feuerbach, na histria da filosofia ,

    tipicamente, uma posio intermediria ou de transio

    entre os grandes sistemas do Idealismo Alemo (...) de

    uma parte e, de outra, o materialismo histrico de Marx

    e o materialismo cientificista da segunda metade do

    sculo XIX. Essa posio intermediria de Feuerbach j

    fora realada por F. Engels, e ela se caracteriza

    justamente pela inflexo antropolgica que Feuerbach

    imprime a algumas categorias herdadas por Hegel.

    (VAZ, 2001, p. 125-126)

    Segundo Nogare, o grande mrito de Feuerbach foi

    desafiar Hegel num cenrio em que a filosofia hegeliana

    havia se tornado a filosofia oficial da Alemanha, quase

    como uma religio do Estado. De fato, aps a morte de

    Hegel, a sua filosofia passou a ter prestigio a ponto de ou o

    filsofo ter de ser hegeliano ou, caso contrrio, ser

    considerado um brbaro idiota. Hegel era como o sol em

    torno do qual giravam dependentes todas as outras teorias.

    E em meio a esse contexto que surge Feuerbach, aluno de

    Hegel, dizendo que seu mestre estava sem razo

    (NOGARE, 1990).

    Nogare afirma que, para Marx e Engels, o grande

    mrito de Feuerbach foi acabar com a adorao hegeliana e

    com seu Idealismo, trazendo de volta o materialismo,

    proporcionando uma viso realista do mundo. A inverso

    dialtica realizada por Marx, do Idealismo ao Materialismo,

    tem suas razes na crtica de Feuerbach a Hegel.

    Outro aspecto relevante da filosofia feuerbachiana e

    que foi assumido por Marx referente religio

    antropolgica apresentada por Feuerbach3.

    3 Nogare faz um comentrio sobre a importncia da crtica de

  • 28 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    A conscincia de Deus e a conscincia que o homem

    tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o

    conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo

    Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem

    conheces o seu Deus; ambos so a mesma coisa. O que

    Deus para o homem e o seu esprito, a sua alma e o

    que e para o homem seu esprito, sua alma, seu corao,

    isto e tambm o seu Deus: Deus e a intimidade revelada,

    o pronunciamento do Eu do homem; a religio uma

    revelao solene das preciosidades ocultas do homem, a

    confisso dos seus mais ntimos pensamentos, a

    manifestao pblica dos seus segredos de amor.

    (FEUERBACH, 2007, p.44)

    Essa posio de Feuerbach est muito prxima da

    posio de Marx. Em ambos, a religio vista como forma

    de alienao4. A postura de Feuerbach muito clara: Deus

    Feuerbach para a religio antropolgica. Esse mesmo conceito adotado depois por Marx e fundamenta a critica marxista da religio: Coerentemente com seu materialismo, Feuerbach em A essncia do Cristianismo ensina que no foi Deus quem criou o homem, mas o homem criou Deus, segundo seu retrato. Deus no mais que o conjunto de propriedades do homem, projetadas para fora sob a forma de tipo ideal. Deus uma criatura do homem, a exteriorizao e objetivizao de seus prprios traos e caractersticas. Quando Feuerbach fala de Deus como projeo do homem, entende no o homem indivduo, mas o homem espcie, o homem genrico, o homem que idealizamos e que no conseguimos realizar por ns prprios. (NOGARE, 1990, p. 90) 4 Em sua obra Essncia do Cristianismo, Feuerbach coloca que toda a religio , no fundo, mera antropologia. O homem projeta em Deus sua prpria natureza: Mas estou longe de atribuir antropologia uma importncia insignificante ou apenas subordinada, uma importncia que Ihe seja devida enquanto uma teologia estiver acima dela e contra ela - ao reduzir a teologia antropologia na verdade elevo a antropologia para a teologia assim como o cristianismo que, ao reduzir Deus ao

  • 29 Ricardo Luis Reiter

    seria uma projeo humana: no momento que o homem

    parar de procurar fora de si aquilo que ele j carrega dentro

    de si, ento ele, o homem, ter foras para mudar sua

    realidade. No fundo, o homem seu prprio Deus.

    Apesar de toda a influncia recebida de Feuerbach,

    Marx elabora uma srie de crticas ao seu mentor. Um dos

    textos mais clebres so suas Teses sobre Feuerbach, onde

    ele elabora 11 teses que apresentam de forma sucinta as

    divergncias de Marx com o pensamento de Feuerbach. As

    teses 5, 6 e 7 apresentam a principal crtica de Marx

    filosofia de Feuerbach:

    5: Feuerbach, no satisfeito com o pensamento abstrato,

    quer a contemplao [Anschauung]; mas ele no

    compreende o sensvel [die Sinnlichkeit] como atividade

    prtica, humano sensvel.

    6: Feuerbach dissolve a essncia religiosa na essncia

    humana. Mas a essncia humana no uma abstrao

    intrnseca do indivduo isolado. Em sua realidade, ela o

    homem, fez do homem um Deus, certamente um Deus afastado do homem, transcendente e fantstico - assim como tambm a palavra antropologia, o que e autotico, no no sentido da filosofia hegeliana ou de ate agora em geral, mas num sentido infinitamente mais eleva do e geral. A religio o sonho do esprito humano. Mas tambm no sonho no nos encontramos no nada ou no cu, mas sobre a terra - no reino da realidade, apenas no enxergamos os objetos reais a luz da realidade e da necessidade, mas no brilho arrebatador da imaginao e da arbitrariedade. Por isso nada mais fao a religio - tambm a teologia ou filosofia especulativa - do que abrir os seus olhos, ou melhor, voltar para fora os seus olhos que esto voltados para dentro, i.e., apenas transformo o objeto da fantasia no objeto da realidade. Mas certamente para esta poca que prefere a imagem a coisa, a cpia ao original, a fantasia a realidade, a aparncia, a essncia, e esta transformao, exatamente por ser lima desiluso, uma destruio absoluta ou uma prfida profanao, porque sagrada e somente a iluso, mas profana a verdade. (FEUERBACH, 2007, p.24-25)

  • 30 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    conjunto das relaes sociais.

    Feuerbach, que no penetra na crtica dessa essncia real,

    forado, por isso:

    1. A fazer abstraes do curso da histria, fixando o

    sentimento religioso para si mesmo, e a pressupor um

    indivduo humano abstrato - isolado.

    2. Por isso, a essncia s pode ser apreendida como

    gnero, como generalidade interna, muda, que une

    muitos indivduos de modo natural.

    7: Feuerbach no v, por isso, que o prprio

    sentimento religioso um produto social e que o

    indivduo abstrato que ele analisa pertence a uma

    determinada forma de sociedade. (MARX; ENGELS,

    2007, p. 534)

    Fica claro que a principal crtica de Marx filosofia

    da religio de Feuerbach justamente essa abstrao do

    homem. Alis, esse um assunto que volta tona quando

    Marx critica a viso de Feuerbach sobre o Materialismo. Na

    Ideologia Alem, l-se:

    [...] na realidade, e para o materialismo prtico, isto ,

    para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo, de

    enfrentar e de transformar praticamente o Estado de

    coisas por ele encontrado. Se, em certos momentos,

    encontra-se em Feuerbach pontos de vista desse tipo,

    eles no vo alm de intuies isoladas e tem sobre sua

    intuio geral muita pouca influncia para que se possa

    consider-los como algo mais do que embries capazes

    de desenvolvimento. A concepo feuerbachiana do

    mundo sensvel limita-se, por um lado, mera

    contemplao deste ltimo e, por outro lado, mera

    sensao; ele diz o homem em vez de os homens

    histricos reais. (MARX; ENGELS, 2007, p. 30)

  • 31 Ricardo Luis Reiter

    2.1.3 O homem para Marx

    Tanto a filosofia de Hegel quanto a de Feuerbach

    receberam crticas da parte de Marx por terem ignorado o

    aspecto histrico do homem5. Fica claro, portanto, que,

    para Marx, o aspecto histrico um dos elementos

    fundamentais no homem.

    Segundo Fromm, existem em Marx duas formas de

    natureza humana. A primeira a forma mais primordial,

    mais substancial. Essa natureza seria a essncia do

    homem. A segunda forma seria a expresso especfica da

    natureza humana em cada cultura6, ou em cada momento

    histrico. Existe no homem um potencial humano. Esse

    permanente. Contudo ele quem transforma o ser humano

    no processo histrico.

    O potencial do homem, para Marx, um potencial dado;

    o homem , por assim dizer, a matria-prima humana

    5 (...) para Hegel o homem essencialmente Esprito e o Esprito Deus. Diz: Conquanto considerado finito por si mesmo, o homem tambm imagem de Deus e fonte da infinidade em si mesmo, pois o fim de si mesmo e tem em si mesmo o valor infinito e a destinao para a eternidade (Philosophie der Geschichte, ed. Gloekner, p. 427). Hegel define cristianismo como a posio de unidade do homem e de Deus (ibid., p. 416). Nessas definies de homem, a relao do homem com Deus vista como positiva. Mas essa relao pode ser vista de modo negativo ou invertido, permanecendo substancialmente a mesma. Feuerbach, por exemplo, diz que o homem se revela e se define no seu conceito de Deus. O ser absoluto, o Deus do homem, o ser do homem, diz ele (Wesen des Christentum, 1). Aquilo que o homem pensa de Deus a definio de homem: Pensas o infinito? Ento pensas e afirmas a infinitude do poder do pensamento. Sentes o infinito? Sentes e afirmas a infinitude do sentimento. (Ibid.). (...) (ABBAGNANO, 2000, p. 513) 6 FROMM, Erich. O conceito marxista do homem. 2.ed.. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES, 1962, p. 35

  • 32 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    que, como tal, no pode ser modificada, tal como a

    estrutura do crebro tem permanecido a mesma desde a

    aurora da histria. Contudo, o homem de fato muda no

    decurso da histria; ele se desenvolve, se transforma, o

    produto da histria; assim como ele faz a histria, ele

    seu prprio produto. A Histria a histria da auto

    realizao do homem; ela nada mais que a autocriao

    do homem por intermdio de seu prprio trabalho e

    produo: o conjunto daquilo a que se denomina

    historia do mundo no passa de criao do homem pelo

    trabalho humano, e o aparecimento da natureza para o

    homem; por conseguinte, ele tem a prova evidente e

    irrefutvel de sua autocriao, de suas prprias origens.

    (FROMM, 1962, p. 35-36)

    Em Marx, encontra-se um homem que se afirma na

    natureza ao transform-la. A grande capacidade do homem

    estaria em sua essncia: a capacidade de transformar o

    homem histrico durante o processo histrico. Em outras

    palavras, ao transformar o mundo, o homem acabaria por

    transformar-se a si mesmo7.

    7 Para compreender com mais clareza essa capacidade que o homem tem de transformar-se no processo histrico, cita-se a passagem a seguir: Para Marx a especificidade do homem se destaca sobre o fundo das caractersticas que ele tem em comum com os animais. Seja o homem, seja o animal se definem pelo tipo de relao que os une natureza, isto , pela forma como vivem sua vida. Ora, enquanto o animal sua prpria vida, ao homem cabe produzir a sua. Essa produo da prpria vida ir implicar, no homem, os predicados especificamente humanos da conscincia de si, da intencionalidade, da linguagem, da fabricao e uso de instrumentos e da cooperao com seus semelhantes. Conquanto algumas dessas caractersticas, como a intencionalidade, a fabricao e uso de instrumentos e o comportamento gregrio, possam encontrar-se igualmente nos animais, pelo menos sob uma forma anloga, a conscincia de si e a linguagem so predicados exclusivos do homem e, como capacidades cognitivas,

  • 33 Ricardo Luis Reiter

    2.2 O CONCEITO DE ALIENAO

    Um dos aspectos centrais dentro da filosofia de

    Marx o conceito de alienao. A alienao est presente

    tanto na religio, quanto na arte, e nos demais campos da

    atuao do homem. na economia, entretanto, que a

    alienao se manifesta de forma mais clara e gritante. Toda

    a filosofia de Marx se esfora em combater a alienao do

    homem, buscando devolver a ele seu aspecto humano.

    Nogare apresenta o sentido etimolgico da palavra

    alienao8. Alienar tornar alheio. Ou seja, um termo

    so capazes de imprimir uma feio especificamente humana s outras caractersticas. (LIMA VAZ, 2001, p. 119) 8 (...) Esse termo, que na linguagem comum significa perda de posse, de um afeto ou dos poderes mentais, foi empregado pelos filsofos com certos significados especficos. (...) Esse termo foi utilizado por Rousseau para indicar a cesso dos direitos naturais comunidade, efetuada com o contrato social. As clusulas deste contrato reduzem-se a uma s: a alienao total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade (Contrato Social, I ,6). Hegel empregou o termo para indicar o alhear-se a conscincia de si mesma, pelo qual ela se considera como uma coisa. A alienao da autoconscincia, diz Hegel,coloca, ela mesma, a coisalidade, pelo que essa alienao tem significado no s negativo, mas tambm positivo, e isto no s para ns, ou em si, mas tambm para a auto conscincia. Para esta, o negativo do objeto ou a auto-subtrao deste ltimo tem significado positivo, isto , ela mesma;de fato, nessa alienao ela coloca-se a si mesma como objeto ou, por fora da inscindvel unidade do ser-para-si, coloca o objeto como si mesma, enquanto, por outro lado, nesse ato est contido o outro momento do qual ela tirou e retornou em si mesma essa alienao e objetividade, estando, portanto, no seu ser outra coisa como tal, junto a si mesma. Este o movimento da conscincia que nesse movimento a totalidade dos prprios momentos (Phnomen. des Geistes, VIII, 1). Esse conceito puramente especulativo foi retomado por Marx nos seus textos juvenis, para descrever a situao do operrio no regime capitalista. segundo Marx, Hegel cometeu o erro de confundir objetivao, que o processo pelo qual o homem se coisifica, isto , exprime-se ou exterioriza-se na natureza atravs do trabalho,

  • 34 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    muito vago que apenas tem sentido completo ao ser

    com a alienao, que o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto de no se reconhecer. Enquanto a objetivao no um mal ou uma condenao, por ser o nico caminho pelo qual o homem pode realizar sua unidade com a natureza, a alienao o dano ou a condenao maior da sociedade capitalista. A propriedade privada produz a alienao do operrio tanto porque cinde a relao deste com o produto de seu trabalho (que pertence ao capitalista), quanto porque o trabalho permanece exterior ao operrio, no pertence sua personalidade, logo, no seu trabalho, ele no se afirma, mas se nega, no se sente satisfeito, mas infeliz... E somente fora do trabalho sente-se junto de si mesmo, e sente-se fora de si no trabalho. Na sociedade capitalista, o trabalho no voluntrio, mas obrigatrio, pois no satisfao de uma necessidade, mas s um meio de satisfazer outras necessidades. O trabalho exterior, o trabalho em que o homem se aliena, um trabalho de sacrifcio de si mesmo, de mortificao (Manuscritos econmico-filosficos, 1844, I, 22) (...) (ABBAGNANO, 2000, p. 27-28). Ernest Fischer faz um pequeno esboo sobre a aplicao do termo alienao dentro da filosofia de Hegel e, mais tarde, de Marx: Hegel e o jovem Marx desenvolveram filosoficamente o conceito de alienao. A alienao do homem comea quando ele se separa da natureza atravs do trabalho e da produo. (...) na medida em que o homem vai se tornando cada vez mais capaz de dominar e transformar a natureza e todo o mundo circundante, tambm vai-se vendo em face de si mesmo e do seu trabalho como um estranho e acaba rodeado de objetos que, embora produzidos pela sua atividade, tendem a crescer fora do seu controle e a impor cada vez mais fortemente ao homem as suas leis de objetos. Essa alienao, necessria ao desenvolvimento humano, precisa ser constantemente superada, a fim de que o homem ganhe conscincia de si mesmo no processo de trabalho, se reencontre no produto da sua atividade, crie novas condies e se torne senhor (e no escravo) da produo. O arteso, que era um criador, ainda se podia sentir vontade em seu trabalho e ainda podia ter um sentimento pessoal em relao ao seu produto. Com a diviso do trabalho, porm, na produo industrial, isso se tornou impossvel. O operrio submetido a parcelarizao do trabalho na produo industrial capitalista no pode ter em relao ao seu trabalho um sentido de unidade e no se pode defender contra tal alienao. Sua atitude ante o produto do seu trabalho a atitude a ser tomada em face de um objeto estranho que tem poder sobre ele. Aliena-se das coisas por ele mesmo feitas e aliena-se de si prprio, perdendo-se no ato da produo. (FISCHER, 1976, p.95).

  • 35 Ricardo Luis Reiter

    apresentado o segundo termo, referente ao qual alguma

    coisa alienada. Apesar de estar fortemente presente na

    filosofia marxista, alienao um termo que foi utilizado

    por Hegel para significar a objetivao da Ideia na

    natureza e do prprio homem pelo trabalho (NOGARE,

    1990, p. 93).

    Em Fromm, l-se a seguinte definio sobre a

    alienao marxista:

    A alienao (ou alheamento) significa, para Marx, que

    o homem no se vivencia como agente ativo de seu

    controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza,

    os outros, e ele mesmo) permanecem alheios e estranhos

    a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos,

    malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados.

    Alienar-se , em ltima anlise, vivenciar o mundo e a si

    mesmo passivamente, receptivamente, como sujeito

    separado do objeto. (FROMM, 1962, p. 51)

    Fromm acrescenta que os sentidos de alienao em

    Hegel e Marx esto muito prximos. Em Hegel, a histria

    , na verdade, a histria da alienao humana. Conforme o

    prprio Hegel escreve, o Esprito realmente se esfora por

    atingir seu prprio ideal, mas o esconde de si mesmo e se

    orgulha e tem prazer nesta alienao de si mesmo

    (HEGEL, 2001, p. 106).

    Tanto em Marx quanto em Hegel, o conceito de

    alienao est forjado na distino entre essncia e

    existncia. De fato, o termo alienao traz em si essa

    concepo do homem que fica alheado de sua essncia. O

    homem, na realidade, no aquilo que o qual tem potncia

    de ser. Ou ainda, ele no o que poderia ou deveria ser

  • 36 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    (FROMM, 1962).

    Fromm aplica o conceito de alienao dentro da

    filosofia de Marx:

    Para Marx, o processo de alienao manifesta-se no

    trabalho e na diviso do trabalho. O trabalho , para ele,

    o relacionamento ativo do homem com a natureza, a

    criao de um mundo novo, incluindo a criao do

    prprio homem. (A atividade intelectual, est claro, para

    Marx sempre trabalho, como atividade manual ou

    artstica.) com a expanso da propriedade privada e da

    diviso do trabalho, todavia, o trabalho perde sua

    caracterstica de expresso do poder do homem; o

    trabalho e seus produtos assumem uma existncia

    parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento.

    (...) O trabalho humano alienado porque trabalhar

    deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e

    consequentemente, ele no se realiza em seu trabalho,

    mas nega-se a si mesmo, tem um a impresso de

    sofrimento em vez de bem estar, no desenvolve

    livremente suas energias mentais e fsicas, mas fica

    fisicamente exaurido e mentalmente aviltado. (FROMM,

    1962, p. 54-55)

    Dessa forma, o homem acaba por alienar-se em

    relao a si mesmo, pois, na produo capitalista, ele acaba

    afastando-se das suas faculdades criadoras. De fato, o

    homem, que antes concebia racionalmente o objeto e

    depois o criava, j no existe mais. Nas fbricas, onde se

    adota a produo em srie, cada um executa apenas uma

    parte do todo. Assim, tanto quem monta o objeto como

    quem o concebe racionalmente acabam por alienar-se. O

    primeiro porque produziu algo que lhe foi imposto, no

  • 37 Ricardo Luis Reiter

    podendo acrescentar nada de prprio no objeto; o segundo,

    apesar de ter criado mentalmente o objeto, no o produziu

    materialmente. Para ambos acabou faltando o que sobrou

    no outro.

    E tambm o objeto de seu trabalho acaba por se

    tornar um objeto estranho ao trabalhador. Muito disso se

    d pela relao j explicitada no pargrafo anterior: a

    produo em srie (e no s ela) tira do trabalhador a

    liberdade de acrescentar algo de seu no objeto. Assim, sem

    ser humanizado, o objeto, fruto de trabalho humano, acaba

    por tornar-se algo estranho ao seu criador, seja este o

    trabalhador ou o idealizador.

    Nogare relaciona em seu livro Humanismos e Anti

    humanismos as principais formas de alienao denunciadas

    por Marx. A primeira forma de alienao reconhecida por

    Marx foi a alienao religiosa. Esse reconhecimento fruto

    da bagagem que Marx recebeu de Feuerbach. Em suma,

    seria preciso destruir a religio, qualquer tipo de religio,

    para que o homem recupere sua dignidade e liberdade. A

    segunda forma a alienao ideolgica. As ideologias so

    criadas para servirem de farol aos homens. Entretanto, as

    mesmas, muitas vezes, acabam por tornarem-se

    instrumentos de tirania e opresso. O prprio socialismo

    real sovitico comprova essa tese. Outra forma de alienao

    referente poltica. Os homens criam grupos e

    sociedades, que acabam fundando o Estado. O objetivo

    garantir que seus direitos e bens no sejam violados.

    Entretanto, comum acontecer que os grupos e o prprio

    Estado se voltem contra os homens, privando-os e

    mutilando seus direitos. Para Marx, a existncia do Estado

    corre sempre o risco de ser utilizada como ferramenta de

    opresso pela burguesia (FROMM, 1962).

  • 38 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    Quando, no curso do desenvolvimento, as diferenas de

    classe tiverem desaparecido e toda a populao tiver sido

    concentrada nas mos de indivduos associados, o poder

    pblico perder seu carter poltico. O poder poltico,

    propriamente chamado, , meramente, o poder

    organizado de uma classe para oprimir outra. Se o

    proletariado se eleva necessariamente condio de

    classe dominante em sua luta contra a burguesia e, na

    condio de classe dominante, tira de cena as antigas

    relaes de produo, ento, com isso, ele tira tambm

    de cena a condio para a existncia da oposio entre as

    classes e para a prpria existncia de classes. E acaba por

    abolir seu papel de classe dominante. (MARX;

    ENGELS, 1998, p. 45)

    Por fim, resta ainda a alienao econmica, que,

    para Marx, a mais grave delas e a base para as demais9.

    Ela funda-se na propriedade privada dos meios de

    produo, ou seja, seria preciso abolir a propriedade

    privada para extinguir todas as formas de alienao. Sem

    alienao econmica, no haveria mais classes. Portanto,

    9 Em seu terceiro volume sobre a histria da filosofia, Reale escreve que o trabalho perdeu seu carter essencial no momento em que o homem teve todo seu processo de criao alienado: Se olharmos para a histria e a sociedade, veremos que o trabalho no mais feito, juntamente com os outros homens, pela necessidade de apropriao da natureza externa, veremos que no mais realizado pela necessidade de objetivar a prpria humanidade, as prprias ideias e projetos, na matria-prima. O que vemos que o homem trabalha pela sua pura subsistncia. Baseada na diviso do trabalho, a propriedade privada torna o trabalho constritivo. O operrio tem alienada a matria-prima; so alienados os seus instrumentos de trabalho; o produto do trabalho lhe arrancado; com a diviso do trabalho, ele mutilado em sua criatividade e humanidade. (REALE; ANTISERI, 1991, p. 193)

  • 39 Ricardo Luis Reiter

    no existiria mais a necessidade de ideologias e grupos

    polticos. Enfim, o homem ser livre para guiar sua prpria

    vida, criando de fato uma religio do homem, onde o

    prprio homem ser seu deus (NOGARE, 1990).

    O fruto da alienao, de qualquer tipo de alienao,

    roubar do homem sua humanidade. Ao alienar do

    homem tudo aquilo que ele precisa para produzir, o

    capitalista acaba tambm por retirar dele sua humanidade,

    fazendo do trabalhador mero objeto de consumo. O

    operrio torna-se mercadoria nas mos do capital10. Essa

    a definio de Reale para alienao. Transformar o homem

    em mero objeto o que o capital busca. Todo processo de

    alienao busca mostrar ao trabalhador que ele no tem

    nenhuma outra natureza a no ser aquela de servir ao

    capitalista. A nica necessidade do trabalhador a

    necessidade de produzir para sobreviver.

    Por fim, a noo de alienao est encorpada na

    concepo de homem de Marx. a manifestao dessa

    relao do homem com as suas alienaes d-se no decurso

    da historia, o que j havia sido apresentado por Hegel. A

    diferena que Marx apresenta uma definio do homem

    como ser que produz. Dessa forma, o modo de produo

    de cada poca, segundo Lima Vaz, que permite a diviso da

    histria em quatro grandes partes, que seriam o mtodo de

    produo asitico, o escravismo antigo, o feudalismo e o

    capitalismo. Dentro dessa evoluo histrica o socialismo

    seria a grande fase de transio para o comunismo, que

    dentro da viso de Marx, a ltima etapa da histria. Por

    isso ele afirma que o advento de uma ordem socialista

    10REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Histria da filosofia: do romantismo at nossos dias. 2.ed.. Vol. III. So Paulo: PAULUS, 1991, p. 193.

  • 40 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    inevitvel.

    2.3 O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE EM

    MARX

    Encontra-se em Vzquez e em Mszros a ideia de

    que o esttico em Marx venha satisfazer uma necessidade

    espiritual do homem. Os chamados valores espirituais do

    homem so, na verdade, aspectos da plena realizao de sua

    personalidade como um ser natural (MSZROS, 2006,

    p. 174-175). Contudo, espiritual aqui no remete a um

    dualismo que implique na existncia de um mundo das

    ideias em Marx, at porque o prprio Marx deixa claro que

    rejeita qualquer possibilidade de Idealismo. Na Ideologia

    Alem, em uma passagem na qual critica Feuerbach, pode-

    se ler:

    (...) ele [Feuerbach] diz o o homem em vez de os

    homens histricos reais (...) certo que Feuerbach tem

    em relao aos materialistas puros a grande vantagem

    de que ele compreende que o homem tambm objeto

    sensvel; mas, fora o fato de que ele apreende o homem

    apenas como objeto sensvel e no como atividade

    sensvel - pois se detm ainda no plano da teoria -, e

    no concebe os homens em sua conexo social dada, em

    suas condies de vida existentes, que fizeram deles o

    que so ele no chega nunca at os homens ativos,

    realmente existentes, mas permanece na abstrao o

    homem e no vai alm de reconhecer no plano

    sentimental o homem real, individual, corporal, isto ,

    no reconhece quaisquer outras relaes humanas do

    homem com o homem que no sejam as do amor e da

    amizade, e ainda assim, idealizadas. No nos d

  • 41 Ricardo Luis Reiter

    nenhuma critica das condies de vida atuais. (MARX;

    ENGELS, 2007, p. 31-32)

    Marx no se contenta com proposies abstratas.

    preciso, para ele, que as ideias tenham respaldo no

    cotidiano das pessoas. E no das pessoas de modo geral,

    mas naquela pessoa histrica, que vive nas aes do seu

    dia-a-dia. Marx resgata a individualidade do homem e

    sobre essa individualidade que ele trabalha, evitando

    generalizaes precipitadas.

    Da mesma forma, o termo espiritual no serve para

    designar um reino abstrato, pelo contrrio, refere-se a uma

    esfera da vida cotidiana do homem. E ainda mais, espiritual

    equivale, nesse caso, a uma necessidade primordial, que j

    estava presente no momento em que o homem

    desenvolveu o trabalho, mas que se perdeu com a alienao

    humana.

    nessa perspectiva que a esttica consegue

    responder o anseio espiritual que o homem tem de querer

    transformar o mundo. Existiria no homem um desejo inato

    de moldar o mundo, de humanizar o mundo. Por isso, o

    homem seria um eterno insatisfeito. Seria impossvel

    satisfazer essa necessidade espiritual, a no ser pela criao

    esttica. O homem j no consegue mais satisfazer suas

    necessidades espirituais, pois desaprendeu a criar. Por fim,

    o homem passou a conviver com um conflito interno, entre

    o material e espiritual.

    O Capitalismo impede o homem de poder satisfazer

    suas necessidades espirituais. O homem acaba sendo levado

    a acreditar que no possui nenhuma necessidade alm

  • 42 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    daquelas que dizem respeito a sua sobrevivncia11.

    Assim, o capitalista assume o controle sobre as

    necessidades que o proletrio deve satisfazer. No interessa

    ao capitalista que o proletrio satisfaa suas necessidades

    primordiais, ou espirituais, porque o proletrio no precisa

    tomar conscincia de si. Ao capitalista interessa muito mais

    que o proletrio siga uma vida regrada e controlada, focada

    apenas na sua sobrevivncia e na satisfao de seus

    instintos.

    Marx reconhece essa dinmica nos Manuscritos

    Econmico-filosficos quando ele escreve que

    Em parte, este estranhamento se mostra a medida em

    que produz, por um lado, o refinamento das carncias e

    dos meios; por outro, a degradao brutal, a completa

    simplicidade rude abstrata da carncia; ou melhor,

    apenas produziu-se novamente a si na sua significao

    contrria. Mesmo a carncia de ar livre deixa de ser, para

    o trabalhador, carncia; o homem retorna caverna, que

    est agora, porm, infectada pelo meftico [ar] pestilento

    da civilizao, e que ele apenas habita muito

    precariamente, como um poder estranho que

    diariamente se lhe subtrai, do qual ele pode ser

    diariamente expulso se no pagar. (...) A imundice, esta

    corrupo, apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto

    11 Sobre esse aspecto, Eagleton escreve que: O Capitalismo reduz a plenitude corprea de homens e mulheres simplicidade crua e abstrata da necessidade - abstrata, porque quando a mera sobrevivncia material est em jogo, as qualidades sensveis dos objetos intencionados por essas necessidades no se tematizam. Em fala freudiana, pode-se dizer que a sociedade capitalista transforma os impulsos, pelos quais o corpo humano transcende suas prprias fronteiras, em instintos - aquelas exigncias fixas monotonamente repetitivas, que encarceram o corpo dentro de suas fronteiras. (EAGLETON, 1990, p. 148-149)

  • 43 Ricardo Luis Reiter

    (isto compreendido a risca) da civilizao torna-se para

    ele um elemento vital. Nenhum de seus sentidos existe

    mais, no apenas em seu modo humano, mas tambm

    no num modo no humano, por isto mesmo nem

    sequer num modo animal. (...) [Isto quer dizer] no

    apenas que o homem deixa de ter quaisquer carncias

    humanas, [mas que] mesmo as carncias animais

    desaparecem.(MARX, 2011, p. 140)

    Nota-se que, para Marx, a estrutura imposta pelo

    Capitalismo priva o homem de suas necessidades

    primordiais e reduz sua existncia a um estado inanimado.

    De fato, at mesmo as carncias animais so negadas ao

    homem. O capitalista consegue reduzir o homem a um

    estado em que ele, homem trabalhador, no possui mais

    nenhuma necessidade a no ser aquela de trabalhar para

    pagar esta casa morturia12 na qual ele habita. Ainda

    sobre as consequncias do processo que o capitalista usa

    para reduzir o homem a um ser sem necessidades e

    carncias, Marx escreve que

    Na medida em que ele [o capitalista] reduz a carncia do

    trabalhador mais necessria e mais miservel

    subsistncia de vida fsica e sua atividade ao movimento

    mecnico mais abstrato; ele diz, portanto: o homem no

    tem nenhuma outra carncia, nem de atividade, nem de

    fruio, pois ele proclama tambm esta vida como vida e

    existncia humanas; na medida em que ele calcula a vida

    (existncia) mais escassa possvel como norma e,

    precisamente como norma universal: universal porque

    vigente para a massa dos homens, ele faz do trabalhador

    12 MARX, Karl. Grundrisse. 1.ed.. So Paulo: BOITEMPO EDITORIAL, 2011, p. 140

  • 44 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    um ser insensvel e sem carncias, assim como faz da sua

    atividade uma pura abstrao de toda atividade, cada

    luxo do trabalhador aparece a ele, portanto, como

    reprovvel e tudo o que ultrapassa a mais abstrata de

    todas as carncias - seja como fruio ou externao de

    atividade - aparece a ele como luxo.(MARX, 2011, p.

    141)

    Fica claro que, ao capitalista, interessa apenas que o

    homem tenha necessidade de trabalhar para sua

    sobrevivncia. Aquilo que visto como luxo aos olhos do

    capitalista, e, portanto, desprezado, justamente o

    necessrio a todo homem para satisfazer essas suas

    necessidades primordiais ou espirituais. O Capitalismo

    acaba por substituir, tanto para o capitalista como para o

    trabalhador, as suas necessidades pelo capital. Ambos so

    roubados de seus sentidos e passam a satisfazer apenas uma

    necessidade: a necessidade de acumular capital. Escreve

    Marx que

    Quanto menos comeres, beberes, comprares livros,

    fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares,

    amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires, etc.,

    tanto mais tu poupas, tanto maior se tornar o teu

    tesouro, que nem as traas nem o roubo podem corroer,

    teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos

    externares tua vida, tanto mais tens, tanto maior tua vida

    externada, tanto mais acumulas da tua essncia

    estranhada. Tudo o que o economista nacional te

    arranca de vida e de humanidade, ele te supre em

    dinheiro e riqueza. E tudo aquilo que tu no podes, pode

    o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile, o

    teatro, saber de arte, de erudio, de raridades histricas,

  • 45 Ricardo Luis Reiter

    de poder poltico, pode viajar, pode apropriar-se disso

    tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele a verdadeira

    capacidade. Mas ele, que tudo isso, no deseja seno

    criar-se a si prprio, comprar a si prprio, pois tudo o

    mais , sim, seu servo, e, se eu tenho o senhor, tenho o

    servo e no necessito mais de seu servo. Todas as

    paixes e toda a atividade tm, portanto, de naufragar na

    cobia. Ao trabalhador s permitido ter tanto que

    queira viver, e s permitido querer viver para

    ter.(MARX, 2011, p. 141-142)

    Dentro dessa dinmica imposta pelo sistema

    capitalista, somente aquele que possui capital pode atender

    suas necessidades espirituais. Contudo, no ser ele quem

    as satisfar e sim seu capital, que no possui nenhuma

    necessidade a no ser aquela de multiplicar-se. Ao

    proletrio somente permitido ter capital suficiente para

    que ele queira viver. J o capitalista tem capital, mas deixa

    de atender suas necessidades para acumular mais capital13.

    Por fim, para que a esttica consiga responder as

    necessidades espirituais do homem, preciso que o homem

    seja liberto da situao de alienao em que ele vive. Para

    Marx, a libertao do homem est vinculada ao combate

    alienao econmica, da qual as demais alienaes so

    frutos.

    13 Sobre essa relao entre o capitalista e o capital, Eagleton escreve que: o capital um corpo fantasma, um monstruoso Doppelgnger que sai para caar enquanto seu mestre dorme, consumindo mecanicamente os prazeres de que ele austeramente abstm-se. Quanto mais o capitalista renuncia ao seu prazer, devotando seus esforo, em seu lugar, modelao deste alter-ego zumbi, mais satisfao de segunda mo ele capaz de colher. Tanto o capitalista quanto o capital so imagens de mortos-vivos, um animado, apesar de anestesiado; o outro inanimado, mas ativo. (EAGLETON, 1990, p. 149)

  • 46 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    Uma vez que o homem esteja livre da alienao que

    o impele a produzir e a acumular capital, ele poder ir a

    busca daquilo que satisfaa suas necessidades espirituais.

    dentro desse quadro que a esttica se apresenta. Ela vem

    para satisfazer essas necessidades espirituais e para indicar

    ao homem aquilo que o est aprisionando.

  • 47 Ricardo Luis Reiter

    3 O ASPECTO ESTTICO DA

    ALIENAO

    No captulo anterior, foi feita uma breve

    apresentao de alguns conceitos importantes em Marx,

    assim como da forma como esses conceitos recebem um

    significado novo dentro da filosofia marxista. Na esttica

    proposta por Marx, o conceito de homem est muito

    presente, principalmente porque toda a filosofia de Marx

    construda sobre o homem histrico-social. E esse

    homem que possui necessidades espirituais que precisam

    ser satisfeitas, para que ele, enquanto homem, possa firmar-

    se no mundo e libertar-se da alienao. A alienao o

    processo que impede o homem de assumir o controle sobre

    sua vida e suas aes.

    Segundo Mszros, Marx foi quem primeiramente

    percebeu que a arte est constantemente sofrendo com o

    mal da alienao. Ao contrrio daqueles que o antecederam,

    principalmente Schiller e Hegel, ele percebeu que o

    problema da alienao esttica deveria ser combatido

    diretamente na sua raiz. Ou seja, a crtica de Marx

    alienao esttica , novamente, uma crtica contra o

    capitalismo, para ele, fonte de toda alienao

    (MSZROS, 2006).

    Em outra passagem de Mszros pode-se ler que

    as consideraes estticas ocupam um lugar muito

    importante na teoria de Marx. Esto to intimamente

    ligadas a outros aspectos de seu pensamento que

    impossvel compreender adequadamente at mesmo sua

    concepo econmica sem entender suas ligaes

  • 48 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    estticas. Isso pode parecer estranho a ouvidos refinados

    com o utilitarismo. Para Marx, porm, a arte no o tipo

    de coisa que pode ser atribudo esfera ociosa do

    lazer e, portanto, de pouca ou nenhuma importncia

    filosfica, mas algo da maior significao humana e,

    portanto, tambm terica. (MSZROS, 2006, p. 174)

    Assim, um estudo sobre a concepo esttica de

    Marx, segundo Mszros, faz-se necessrio para uma

    completa compreenso do pensamento marxista. Tanto a

    esttica quanto a economia, por exemplo, esto fundadas

    sobre o mesmo pilar: o homem. Aquilo que diz respeito,

    portanto, esttica acaba dizendo respeito tambm s

    demais reas do pensamento filosfico de Marx.

    Se no campo econmico, religioso, poltico etc. o

    grande mal a ser combatido a alienao, no campo

    esttico no poder ser diferente. A libertao do homem

    passa pelo combate s formas de alienao que o prendem.

    A esttica, portanto, como as demais reas do pensamento

    de Marx, vem para combater sua forma de alienao, que ,

    em suma, tornar-se mercadoria.

    Para Eagleton, existem na sociedade muitos

    sintomas que apontam aspectos da vida humana que esto

    em constante alienao, como se essa fosse uma doena a

    ser combatida. A prpria percepo sensvel cria sintomas a

    partir do momento em que ela cai no processo de

    alienao. Eagleton escreve que:

    a percepo sensvel, para Marx, , em primeiro lugar, a

    estrutura constitutiva na prtica humana, mais que um

    conjunto de rgos contemplativos; na verdade, ela s se

    torna este ltimo na medida em que j , previamente a

    primeira, a propriedade privada a expresso sensvel

  • 49 Ricardo Luis Reiter

    da alienao do homem em relao ao seu prprio

    corpo, o deslocamento sombrio de nossa plenitude

    sensvel em direo ao impulso nico de possuir: todos

    os sentidos fsicos e intelectuais foram substitudos pela

    simples alienao de todos - no sentido de ter. Para dar

    luz sua riqueza interior, a natureza humana foi

    reduzida sua absoluta pobreza. (EAGLETON, 1990,

    p. 148)

    A alienao esttica traz malefcios ao homem. Ela

    afeta no somente o artista, mas o prprio gozo esttico.

    Aqui, no somente o artista que sofre com a alienao,

    mas tambm a obra de arte e o espectador. E

    principalmente esse ltimo, por no encontrar, na arte

    alienada, algo que responda sua necessidade espiritual de

    afirmar-se no mundo como humano. J o artista acaba

    agindo contra a sua natureza, por no poder criar aquilo

    que realmente deseja, mas sim aquilo que o sistema o fora

    a reproduzir.

    O ser humano um ser que cria. Cria no apenas

    objetos para satisfazer suas necessidades imediatas. Ele cria

    para firmar-se humanamente no mundo. Essas criaes so

    estticas, artsticas. Elas visam responder s necessidades

    espirituais do homem.

    3.1 ARTE E REALISMO

    Para Aristteles, todos os homens tm, por

    natureza, desejo de conhecer14. Por isso, eles seriam

    eternos insatisfeitos. Em toda sua vida sobre a terra, o

    14ARISTTELES. tica e Nicmaco. 1.ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleo os Pensadores; v.2), p. 11.

  • 50 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    homem busca, cria e desenvolve tecnologias que so

    resultado de sua busca por conhecimento. No campo

    filosfico, sempre houve um grande debate sobre a forma

    mais segura de se conhecer algo. Duas so as grandes

    vertentes do conhecimento: o empirismo e o racionalismo.

    A partir de Descartes, o racionalismo recebeu certa

    credibilidade como fonte segura de conhecimento. Afinal

    de contas, o conhecimento cientfico guia-se por mtodos

    racionais. Alguns filsofos, entretanto, alertaram que a

    razo no seria uma instncia plenamente confivel.

    Rousseau j afirmava que a razo frequentemente engana.

    Este um debate aberto at os dias de hoje, por mais que a

    cincia apresente seus mtodos como infalveis. Marx, em

    seus Manuscritos Econmico-Filosficos j adverte que os

    sentidos so histricos. Ou seja, o homem sempre aprende

    a ouvir, cheirar, ver etc. algo novo. Sendo assim, os

    sentidos agregam conhecimentos aos quais a razo no tem

    acesso (KONDER, 2005).

    o que acontece com a arte. A arte uma forma de

    conhecimento. No um conhecimento sobre o mundo

    abstrato e universal; mas sobre o mundo concreto,

    experimentado. Ou seja, a arte revela conhecimento sobre

    o homem atravs da representao do mundo humanizado.

    Porm, os filsofos racionalistas tm levantado objees ao

    conhecimento transmitido pelas manifestaes artsticas,

    conforme escrito por Konder:

    Ao longo de sculos, contudo, em vez de reconhecer

    essa complementaridade, os racionalistas, confrontados

    com a arte, tm as vezes reagido de modo

    preconceituoso; nem sempre tm reconhecido o desafio

    que a arte lhes apresenta, um desafio que exige

  • 51 Ricardo Luis Reiter

    ampliaes, aprofundamentos e revises permanentes da

    razo.

    De fato, os representantes das perspectivas racionalistas

    tradicionais tm, com frequncia, manifestado na

    histria do pensamento, desde Plato, certa m vontade

    em relao expresso artstica. E a oposio a eles, por

    seu turno, tem muitas vezes escorregado para posies

    irracionalistas, baseadas na convico da superioridade

    intrnseca, permanente, da percepo sensvel da

    razo.(KONDER, 2002, p. 213)

    O Realismo15, como estilo artstico, vem em

    15 O conceito de Realismo, na arte, extremamente vago. Pode ser visto como uma escola ou perodo, ou como uma posio artstica. Marx opta por definir o Realismo como uma posio que o artista tem diante realidade. Sobre o Realismo, Fischer escreve que: o conceito de Realismo em arte , infelizmente, elstico e vago. Por vezes, o Realismo definido como uma atitude, como o reconhecimento de uma realidade objetiva; por vezes, definido como um estilo ou um mtodo. Frequentemente a linha divisria entre as duas conceituaes apagada. Em alguns casos, o termo realista aplicado a Homero, a Fdias, a Sfocles, a Policleto, a Shakespeare, a Miguel ngelo, a Milton e a El Greco; em outros casos, reservado para o mtodo posto em prtica por determinado tipo particular de escritor ou pintor: de Fielding e Smollet a Tolsti e Gorki; de Gericault e Coubert a Manet e Czanne. Se considerarmos o reconhecimento de uma dada realidade objetiva como a natureza do Realismo na arte, precisamos no reduzir tal realidade ao mundo puramente exterior, existente independentemente de nossa conscincia. O que existe independentemente de nossa conscincia a matria. A realidade, porm, abrange toda a imensa variedade de interaes nas quais o homem, com sua capacidade de experimentar e compreender, pode ser envolvido. Um artista que pinta uma paisagem obedece as leis da natureza descobertas pelos fsicos, qumicos e biologistas; mas o que ele est pondo no a natureza independente dele: a paisagem vista atravs das suas sensaes, da sua experincia. O artista no o mero acessrio de um rgo sensorial que apreende o mundo exterior, ele tambm um homem que pertence a uma determinada poca, classe e nao, possui um temperamento e um carter particulares, e todas essas

  • 52 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    oposio ao Naturalismo, que uma materializao grfica

    de trivialidade desconexa e completa superficialidade. Isso

    assim porque a natureza retratada pelos artistas naturalistas,

    com frequncia da maneira fiel tediosamente detalhada,

    a natureza desumanizada (MSZROS, 2006).

    O Realismo, para Marx16, precisa plasmar, na obra

    de arte, a realidade como ela percebida pela conscincia

    do homem, captando os fundamentos do real, isto , do

    material. O objeto dela no a realidade como

    apresentada, mas sim como captada pelo homem

    humano17.

    coisas influem na maneira pela qual ele v, sente e pinta a paisagem. Todas se combinam para criar uma realidade mais ampla do que o dado conjunto de rvores, pedras e nuvens, elementos que podem ser medidos e pesados. A nova e mais ampla realidade determinada, em parte, pelo ponto de vista individual e social do artista. a soma de todas as relaes entre o sujeito e o objeto, envolve no s o passado como o futuro, no s os acontecimentos objetivos como as experincias subjetivas, os sonhos, pressentimentos, emoes, fantasias. A obra de arte une a realidade imaginao. As bruxas de Shakespeare e de Goya so mais reais do que os pintores e operrios idealizados que aparecem em certo gnero de pinturas. A rotina estpida da vida cotidiana, elevada ao nvel de stira fantstica por Gogol ou Kafka, nos revela mais acerca da realidade do que as descries naturalistas. Don Quixote e Sancho Panza so mais reais, ainda hoje, do que as centenas de personagens prosaicas que pupulam em romances tirados da vida real. Se decidirmos definir o Realismo no como um mtodo, mas como uma atitude a atitude que fixa a realidade na arte chegaremos concluso de que quase toda a arte (com exceo da are abstrata, do tachismo, etc.) realista. (FISCHER, 1976, p.122-123) 16 Segundo Vzquez, uma concepo marxista de arte realista pode ser definida como: a arte que, partindo da existncia de uma realidade objetiva, constri com ela uma nova realidade que nos fornece verdades sobre a realidade do homem concreto que vive numa determinada sociedade, em certas relaes humanas histricas e socialmente condicionadas, e que, no marco delas, trabalha, luta, sofre, goza ou sonha. (VZQUEZ, 2011, p. 32) 17 Mszros faz uma bela explicao sobre a concepo de Marx de arte

  • 53 Ricardo Luis Reiter

    O que difere uma obra de arte realista de uma

    naturalista a forma como representam o mundo.

    Enquanto o Naturalismo representa a natureza como ela se

    apresenta, sem focar-se em nenhum aspecto humanizado

    da realidade, o Realismo busca representar a realidade

    como ela percebida pelo homem. O artista realista capta

    particularidades humanamente significativas da realidade e

    as transfere para a obra de arte

    O que determinar se ele [o artista] realista ou no

    aquilo que ele seleciona de uma massa de experimentar a

    realidade, histrica e socialmente especfica. Se ele no

    for capaz de selecionar particularidades humanamente

    especficas, que revelem as tendncias e caractersticas

    fundamentais da realidade humana em transformao,

    mas - por uma ou outra razo - se contentar com o

    retrato da realidade tal como ela lhe aparece de modo

    imediato, nenhuma fidelidade de detalhe o elevar

    acima do nvel do naturalismo especfico. (MSZROS,

    realista ao escrever que: Na obra de arte realista, todo objeto representado, natural ou feito pelo homem, deve se humanizado, isto , a ateno deve ser focalizada sobre sua significao humana, de um ponto de vista histrica e socialmente especfico. (A cadeira de Van Gogh de grande significao artstica precisamente devido poderosa humanizao pelo artista de um objeto do cotidiano, de outro modo insignificante). O Realismo, em relao aos seus meios, mtodos, elementos formais e estilsticos, est necessariamente sujeito mudana, porque reflete uma realidade em constante transformao, e no egosta. O que se mantm inalterado no Realismo, e com isso nos permite aplicar esse termo geral avaliao esttica de obras de diferentes pocas, o seguinte: o Realismo revela, com propriedade artstica, as tendncias fundamentais e conexes necessrias que esto com frequncia profundamente ocultas sob aparncias enganosas, mas que so de importncia vital para um entendimento real das motivaes e aes humanas das vrias situaes histricas. (MSZROS, 2006, p. 177-178)

  • 54 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    2006, p. 178)

    3.1.1 Os falsos Realismos

    Para Vzquez a arte realista um divisor de guas,

    separando a arte realista daquelas que no querem ou no

    cumprem uma funo cognoscitiva. Nesse grupo esto

    principalmente os falsos Realismos, que no conseguem

    enriquecer o conhecimento do homem justamente por

    aterem-se por demasiado na realidade exterior ou interior

    do homem. O motivo dessa despreocupao com o

    conhecimento do homem pode dar-se por dois motivos

    principais: primeiro porque o conhecimento do homem j

    no mais o foco do artista; segundo porque o mtodo

    empregado no permite ao artista captar e penetrar nos

    aspectos fundamentais da realidade humana (VZQUEZ,

    2011).

    Vzquez apresenta duas formas principais de falsos

    Realismos. O primeiro falso Realismo aquele que faz da

    representao das coisas um fim e no um meio a servio

    da verdade1819 . Essa forma de arte, focar-se-ia em

    reproduzir a realidade. A arte acaba por ser como uma

    fotografia: apenas representa uma cpia da realidade, sem

    adicionar nenhuma carga de valores humanos. Esse falso

    Realismo peca justamente por preocupar-se em ser

    extremamente fiel natureza, esquecendo-se de captar nela

    18 Aqui vale a lei moral j formulada por Kant, admoestando que a humanidade nunca deve ser usada como um meio para obter-se algum fim: age de tal maneira que tu possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca simplesmente como meio (KANT, 2003, p.59) 19 VZQUEZ, Adolfo Snchez. As ideias estticas de Marx. 1 Edio. So Paulo: EXPRESSO POPULAR, 2011, p. 33.

  • 55 Ricardo Luis Reiter

    a realidade subjacente, que influencia o modo de viver e

    agir do homem. Por ser meramente uma representao

    idealizada da realidade, ela acaba por no agregar nada ao

    homem justamente por no humanizar a realidade

    representada.

    Outra forma de falso Realismo aquela que

    mantm a realidade humana como seu objeto, mas acaba

    buscando nela no o que , mas o que deve ser. Assim, ela

    acaba por transformar os objetos para que esses reflitam

    uma realidade humana idealizada, embelezada, caindo-se

    assim num Idealismo ou irrealismo (MSZROS, 2006).

    Essa foi a grande forma de arte do perodo

    socialista (o Realismo Socialista). Buscava apresentar uma

    realidade perfeita, onde tudo era harmnico. Contudo,

    esquecia-se de seu papel principal: apresentar a realidade de

    forma humanizada ao homem20. Dessa forma, alm de no

    20 Um bom ensaio sobre desumanizao da arte foi escrito por Ortega e Gasset, sob o ttulo de A desumanizao da arte. Nessa obra, o autor apresenta caractersticas daquilo que ele chama de nova arte, ressaltando o aspecto da desumanizao dela. Ela tem o efeito de dividir a massa popular, sendo a maioria contrria ela: a nova arte tem a massa contra si e sempre ter. impopular por essncia; ainda mais, antipopular. Uma obra qualquer por ela criada produz no pblico, automaticamente, um curioso efeito sociolgico. Divide-o em duas pores: uma, mnima, formada por reduzido nmero de pessoas que lhe so favorveis; outra, majoritria, inumervel, que lhe hostil. (...) A obra de arte atua, pois, como um poder social que cria dois grupos antagnicos, que separa e seleciona no amontoado uniforme da multido duas diferentes castas de homens. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 21-22). Para esclarecer sua teoria, o autor faz uso de uma analogia: um homem ilustre agoniza. Sua mulher est junto ao leito. Um mdico conta as pulsaes do moribundo. No fundo do quarto h outras duas pessoas: um jornalista, que assiste cena obituria por razo de seu ofcio, e um pintor que a sorte conduziu at ali. Esposa, mdico, jornalista e pintor presenciam um mesmo fato. No obstante, esse nico e mesmo fato a agonia do homem se apresenta a cada

  • 56 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    agregar conhecimento nenhum ao homem, servia de

    ferramenta para a manipulao social do pensamento

    humano.

    Para Vzquez, o Realismo socialista21 teria grande

    um deles com aspecto diferente. To diferentes so esses aspectos, que tem apenas um ncleo comum. A diferena entre o que para a mulher aflita de dor e para o pintor que, impassvel, observa a cena, tanta que quase mais exato seria dizer: a esposa e o pintor presenciam dois fatos completamente diferentes. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 33). No decorrer do captulo, o autor apresenta o ponto de vista de cada personagem da cena. Interessa aqui apenas a leitura que o pintor faz: por ltimo, o pintor, indiferente, no faz outra coisa que pr os olhos em coulisse. Descuida-se com quanto se passa ali; est, como se costuma dizer, a cem mil lguas do fato. Sua atitude puramente contemplativa e mesmo se pode dizer que ele no o contempla em sua integra; o doloroso sentido interno do acontecimento fica fora da sua percepo. S atenta ao exterior, s luzes e s sombras, aos valores cromticos. No pintor chegamos ao mximo de distncia e ao mnimo de interveno sentimental. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 36). Por fim, Ortega y Gasset sintetizam a posio do artista afirmando que esse busca a desumanizao da realidade: longe de o pintor ir mais ou menos entorpecidamente realidade, v-se que ele foi contra ela. Props-se decididamente a deform-la, romper seu aspecto humano, desumaniz-la. Com as coisas representadas no quadro tradicional poderamos ilusoriamente conviver. Pela Gioconda se apaixonaram muitos ingleses. Com as coisas representadas no quadro novo impossvel a convivncia: ao extirpar seu aspecto de realidade vivida, o pintor cortou a ponte e queimou as naves que poderiam transportar-nos ao nosso mundo habitual. Deixa-nos encerrados num universo abstruso, fora-nos a tratar com objetos com os quais no cabe tratar humanamente. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 41-42) 21 Sobre o Realismo Socialista, Vzquez escreve que: O verdadeiro Realismo socialista no tem por que mistificar a realidade. A mentira o mata; ao contrrio, a verdade que pode proporcionar legitima e justifica sua existncia. Por isso, se a arte uma forma de conhecimento que capta a realidade humana em seus aspectos essenciais e rasga assim o vu de suas mistificaes; se a arte - servindo verdade - pode servir ao homem em sua construo de uma nova realidade humana, no h nada que possa impedir - a menos que se caia num dogmatismo de novo tipo - uma concepo de arte - nem exclusiva nem sectria - como a do Realismo socialista. (VZQUEZ, 2011, p. 33)

  • 57 Ricardo Luis Reiter

    potencial. Entretanto, precisaria abandonar a concepo de

    realidade idealizada e focar-se na realidade como ela se

    apresenta e como deve ser humanizada. O Realismo

    Socialista precisaria adotar o papel de arte que denuncia as

    mistificaes que levam alienao humana

    3.1.2 O Realismo de Marx e suas Implicaes

    Em seu captulo sobre o aspecto esttico da

    alienao, Mszros apresenta uma breve sntese do que ,

    segundo sua perspectiva, a definio de arte realista para

    Marx:

    Para Marx, o Realismo no apenas uma entre as

    inmeras tendncias artsticas, confinadas a um perodo

    ou outro (como romantismo, imaginismo etc.), mas

    o nico modo de produo da realidade adequado aos

    poderes e meios especficos postos disposio do

    artista. Os mestres inimitveis da arte grega so grandes

    realistas, assim como Balzac. No h nada,

    estilisticamente, comum a eles. Mas apesar dos sculos,

    das barreiras sociais, culturais, lingusticas, etc. que os

    separam, eles podem ser reunidos num denominador

    comum porque, de acordo com os traos especficos de

    suas situaes histricas, eles alcanam uma descrio

    artisticamente adequada das relaes humanas

    fundamentais de suas pocas. por isso que podem ser

    chamados de grandes realistas. (MSZROS, 2006, p.

    180)

    Das palavras de Mszros podem ser obtidas

    algumas concluses. A primeira diz respeito ao conceito de

    Realismo presente em Marx, para quem o Realismo seria a

  • 58 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx

    principal forma de arte desenvolvida pelo homem. Atravs

    dela, e somente por ela, que o artista conseguiria

    apresentar ao pblico a realidade de forma humanizada.

    O artista realista possuiria a capacidade de captar a

    humanizao presente no objeto. Ao pintar uma rvore, ele

    no o faria da forma que o bilogo ou o botnico o fariam.

    O artista realista colocaria suas impresses, sua experincia,

    suas emoes na tela. Assim, a obra no seria apenas uma

    representao de uma rvore e sim de uma rvore

    humanizada que teria por funo levar ao pblico a

    humanidade presente na rvore.

    A segunda concluso diz respeito ruptura que

    Marx cria na tradicional estrutura de escolas artsticas. Para

    ele, o Realismo no seria mera tendncia artstica. Com

    isso, Marx, de certa forma, cria um divisor de guas na arte,

    onde toda forma de arte que busca e apresenta

    conhecimento humano ao homem seria arte realista e o

    resto nem arte seria. Dessa forma, o Realismo j no seria

    mais uma escola, e sim uma categoria. onde se

    enquadrariam todos aqueles que, durante a histria da

    humanidade, buscaram criar uma arte que representava a

    realidade como ela era percebida pelo homem, trazendo a

    tona aqueles sentimentos humanos perdidos com a

    alienao do homem. Assim, existiria arte realista desde os

    primrdios e no poder-se-ia criar uma hierarquia dentro da

    arte realista, pois todas realizaram seu objetivo comum, a

    saber, levar conhecimento humanizado ao homem.

    3.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DO

    TRABALHO

    Existe em Marx um ponto comum a suas reas de

  • 59 Ricardo Luis Reiter

    pesquisa: o trabalho. Praticamente tudo em Marx

    perpassado pela ideia de trabalho. Com a esttica, no

    poderia ser diferente. O trabalho e a produo artstica so

    atividades que, no incio da humanidade, estavam

    intimamente ligadas22.

    O Capitalismo, principalmente com a Revoluo

    Industrial, rompeu com as formas tradicionais de produo.

    Antes, o arteso produzia livremente e produzia o produto

    em sua totalidade. Com o surgimento da figura do

    capitalista, o processo de produo muda: o capitalista

    quem dita as regras do jogo. Primeiro, surgem as

    manufaturas e depois as indstrias. Sobre as manufaturas,

    Marx escreve que

    a manufatura se origina e se forma, a partir do