IRA e cirurgia cardíaca

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313 313 313 313 313 Real e Benemérita Beneficência Portuguesa de São Paulo Correspondência: João Egídio Romão Jr - Rua Maestro Cardim, 560/171 - 01322- 030 – São Paulo, SP Recebido para publicação em 17/6/98 Aceito em 23/2/00 Objetivo - Analisar o impacto da insuficiência renal aguda (IRA) na evolução de lactentes submetidos à cirur- gia cardíaca. Métodos - Avaliamos 15 lactentes submetidos à ci- rurgia cardíaca e que desenvolveram IRA, analisando da- dos demográficos, clinicocirúrgicos e sua evolução. Resultados - A idade das crianças era 4,4±4,0 meses,(8 dias e 24 meses) 12 eram do sexo masculino, sendo que 4 de- senvolveram IRA antes da cirurgia. A causa primária da IRA foi disfunção cardíaca imediata em 10 crianças, disfunção cardí- aca associada a sepsis em 2 e sepsis em 3. Todas estavam no pós-operatório dependentes de ventilação mecânica, 14 em uso de drogas vasoativas e 11 com processo infeccioso. Treze (87%) pacientes necessitaram de tratamento dialítico. Onze (73%) lactentes desenvolveram IRA oligúrica e todos tiveram necessidade de diálise peritoneal(DP); dos 4 casos com IRA não-oligúrica, 2 necessitaram de DP por hipervolemia. Das 13 crianças dialisadas, 4 faleceram nas primeiras 24h, devido à gravidadeda disfunção cardíaca de (uréia média =49±- 20mg/dl). A mortalidade de todo o grupo foi de 60% (9 ca- sos), sendo maior nos oligúricos (73% vs 25%, p<0,001). A causa de de óbito foi disfunção cardíaca em 6 crianças (IRA tipo-1, precoce) e sepsis em 3 outras (IRA tipo-2, tardia). Conclusão - IRA no pós-operatório de cirurgia car- díaca em lactentes esteve relacionada a uma alta mortali- dade (60%), especialmente na IRA oligúrica; a indicação dialítica foi devido sobretudo à hipervolemia e não ao es- tado hipercatabólico urêmico Palavras-chave: insuficiência renal aguda, cirurgia car- díaca, crianças, diálise peritoneal. Arq Bras Cardiol, volume 75 (nº 4), 313-317, 2000 João Egídio Romão Jr, Miguel G. Fuzissima, Armando F. Vidonho Jr, Irene L. Noronha, Paulo Sérgio L. Quintaes, Hugo Abensur, Maria Regina T. Araújo, Ivanir Freitas Jr, Marcello Marcondes São Paulo, SP A Evolução da Insuficiência Renal Aguda Associada à Cirurgia Cardíaca em Lactentes Artigo Original Insuficiência renal aguda é uma complicação diagnos- ticada em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca, que ocorre em até 9% das crianças submetidas a esse tipo de in- tervenção 1-7 . Na maioria dos casos, a insuficiência renal aguda acompanha-se de oligo-anúria e está relacionada à presença de insuficiência cardíaca de baixo débito. Embora possa reverter, espontaneamente, nas primeiras 48h após a cirurgia, a insuficiência renal aguda, em muitas ocasiões, resulta em hipervolemia e distúrbios eletrolíticos sérios que podem acarretar morbidade significante e mesmo ocasional mortalidade. A terapêutica para esta complicação inclui, além de restrição severa de líquidos e uso de drogas diuréticas, a re- moção de fluídos através de diálise e/ou ultrafiltração 5-7 . Evidências recentes sugerem que a remoção ativa de líquidos em pacientes com insuficiência renal aguda e baixo débito cardíaco, após cirurgia cardiopulmonar, pode melhorar variá- veis hemodinâmicas 8,9 . Muitos trabalhos têm chamado a atenção, especialmente nos últimos anos, para o uso de te- rapêutica extracorpórea para tratamento dessas crianças 8-12 . Entretanto, em nosso serviço, crianças com insuficiência renal aguda, após cirurgia cardíaca, são rotineiramente tra- tadas com diálise peritoneal intermitente ou contínua, méto- do seguro, efetivo e que dispensa alta tecnologia para ser utilizado. O objetivo do presente trabalho foi rever nossa expe- riência nos últimos dois anos com crianças com insuficiên- cia renal aguda e cirurgia cardíaca, com especial ênfase à evolução dessas crianças. Métodos Analisamos, retrospectivamente, as fichas de todos os 15 lactentes (idade 24 meses) portadores de insuficiência renal aguda associadas à cirurgia cardíaca, acompanhados na Clínica de Nefrologia – CUN, do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo, no período de janeiro/95 a dezem- bro/96. Todas as crianças estavam internadas na unidade de terapia intensiva e, primariamente, sob cuidados de uma

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Romão Jr e colsInsuficiência renal aguda e cirurgia cardíaca em lactentes

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Real e Benemérita Beneficência Portuguesa de São PauloCorrespondência: João Egídio Romão Jr - Rua Maestro Cardim, 560/171 - 01322-030 – São Paulo, SPRecebido para publicação em 17/6/98Aceito em 23/2/00

Objetivo - Analisar o impacto da insuficiência renalaguda (IRA) na evolução de lactentes submetidos à cirur-gia cardíaca.

Métodos - Avaliamos 15 lactentes submetidos à ci-rurgia cardíaca e que desenvolveram IRA, analisando da-dos demográficos, clinicocirúrgicos e sua evolução.

Resultados - A idade das crianças era 4,4±4,0 meses,(8dias e 24 meses) 12 eram do sexo masculino, sendo que 4 de-senvolveram IRA antes da cirurgia. A causa primária da IRA foidisfunção cardíaca imediata em 10 crianças, disfunção cardí-aca associada a sepsis em 2 e sepsis em 3. Todas estavam nopós-operatório dependentes de ventilação mecânica, 14 emuso de drogas vasoativas e 11 com processo infeccioso. Treze(87%) pacientes necessitaram de tratamento dialítico. Onze(73%) lactentes desenvolveram IRA oligúrica e todos tiveramnecessidade de diálise peritoneal(DP); dos 4 casos com IRAnão-oligúrica, 2 necessitaram de DP por hipervolemia. Das 13crianças dialisadas, 4 faleceram nas primeiras 24h, devido àgravidadeda disfunção cardíaca de (uréia média =49±-20mg/dl). A mortalidade de todo o grupo foi de 60% (9 ca-sos), sendo maior nos oligúricos (73% vs 25%, p<0,001). Acausa de de óbito foi disfunção cardíaca em 6 crianças (IRAtipo-1, precoce) e sepsis em 3 outras (IRA tipo-2, tardia).

Conclusão - IRA no pós-operatório de cirurgia car-díaca em lactentes esteve relacionada a uma alta mortali-dade (60%), especialmente na IRA oligúrica; a indicaçãodialítica foi devido sobretudo à hipervolemia e não ao es-tado hipercatabólico urêmico

Palavras-chave: insuficiência renal aguda, cirurgia car-díaca, crianças, diálise peritoneal.

Arq Bras Cardiol, volume 75 (nº 4), 313-317, 2000

João Egídio Romão Jr, Miguel G. Fuzissima, Armando F. Vidonho Jr, Irene L. Noronha,Paulo Sérgio L. Quintaes, Hugo Abensur, Maria Regina T. Araújo, Ivanir Freitas Jr, Marcello Marcondes

São Paulo, SP

A Evolução da Insuficiência Renal Aguda Associada àCirurgia Cardíaca em Lactentes

Artigo Original

Insuficiência renal aguda é uma complicação diagnos-ticada em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca, queocorre em até 9% das crianças submetidas a esse tipo de in-tervenção 1-7. Na maioria dos casos, a insuficiência renalaguda acompanha-se de oligo-anúria e está relacionada àpresença de insuficiência cardíaca de baixo débito. Emborapossa reverter, espontaneamente, nas primeiras 48h após acirurgia, a insuficiência renal aguda, em muitas ocasiões,resulta em hipervolemia e distúrbios eletrolíticos sérios quepodem acarretar morbidade significante e mesmo ocasionalmortalidade.

A terapêutica para esta complicação inclui, além derestrição severa de líquidos e uso de drogas diuréticas, a re-moção de fluídos através de diálise e/ou ultrafiltração 5-7.Evidências recentes sugerem que a remoção ativa de líquidosem pacientes com insuficiência renal aguda e baixo débitocardíaco, após cirurgia cardiopulmonar, pode melhorar variá-veis hemodinâmicas 8,9. Muitos trabalhos têm chamado aatenção, especialmente nos últimos anos, para o uso de te-rapêutica extracorpórea para tratamento dessas crianças 8-12.Entretanto, em nosso serviço, crianças com insuficiênciarenal aguda, após cirurgia cardíaca, são rotineiramente tra-tadas com diálise peritoneal intermitente ou contínua, méto-do seguro, efetivo e que dispensa alta tecnologia para serutilizado.

O objetivo do presente trabalho foi rever nossa expe-riência nos últimos dois anos com crianças com insuficiên-cia renal aguda e cirurgia cardíaca, com especial ênfase àevolução dessas crianças.

Métodos

Analisamos, retrospectivamente, as fichas de todos os15 lactentes (idade ≤24 meses) portadores de insuficiênciarenal aguda associadas à cirurgia cardíaca, acompanhadosna Clínica de Nefrologia – CUN, do Hospital da BeneficênciaPortuguesa de São Paulo, no período de janeiro/95 a dezem-bro/96. Todas as crianças estavam internadas na unidade deterapia intensiva e, primariamente, sob cuidados de uma

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equipe de cirurgia cardíaca pediátrica. Dados relativos aessas crianças encontram-se na tabela I. Observamos osachados demográficos dos pacientes, características dacardiopatia e da cirurgia, os fatores que poderiam ser impor-tantes na patogênese da insuficiência renal aguda, uso dedrogas vasoativas e, principalmente, a evolução após odiagnóstico da insuficiência renal aguda, com as condutasclínicas tomadas.

Insuficiência renal aguda foi diagnosticada quandohouve elevação dos níveis de creatinina séricos superior a30% dos valores basais, redução da diurese na ausência dehipovolemia aparente e presença de evidente quadro clínicodesencadeador.

A indicação de terapêutica dialítica incluía um ou maisdos seguintes quadros: anúria ou oligúria (<0,5ml/kg depeso/h) por 12h ou mais; hiper-hidratação e/ou hipervolemianão responsivas ao uso de restrição hídrica e diuréticos(furosemida, 1 – 2 mg/kg/dose endovenosa); hipercalemia(potássio sérico acima de 5,0 mEq/l), e necessidade de infu-sões de líquidos (para nutrição parenteral, por exemplo) napresença de função renal diminuída e balanço hídrico muitopositivo. As crianças que necessitaram de terapêutica de de-puração extra-renal foram submetidas à diálise peritoneal,segundo técnica já descrita 13. Para tanto, foram instaladoscateteres peritoneais pediátricos por via percutânea (rígidos)ou cirúrgica (cateteres flexíveis). As sessões eram realizadaspor técnica manual, instalando-se uma bureta graduada nosistema de infusão em crianças menores e usando-se de 30 a50ml/kg de peso de solução de diálise comercial (con-centração de glicose a 1,5 e 4,25%) a cada troca. Inicialmente,as trocas de banho foram realizadas a cada hora, nas primeiras24 a 36h; com a estabilização do quadro bioquímico (controleda hiperpotassemia, da acidose metabólica e da uremia) e ocontrole da hiper-hidratação da criança, o intervalo entre as

trocas era aumentado para 2 a 4h (houve casos mantidos emdiálise peritoneal contínua por até 33 dias).

Os dados quantitativos são apresentados como média± desvio padrão. Diferenças entre dados qualitativos forampesquisadas pelo teste exato de Fisher, considerando-secomo significativo p<0,05, e usando-se o pacote estatísticoInStat (GraphPad Software Inc, San Diego, EUA)

Resultados

A idade média das crianças estudadas era 4,4±4,0 me-ses, variando de oito dias a 24 meses. Destas, 12 (80%) eramdo sexo masculino. Onze (73% dos casos) desenvolveraminsuficiência renal aguda após a cirurgia cardíaca e quatro(27%) já apresentavam insuficiência renal aguda previa-mente ao procedimento cirúrgico (valores da creatininasérica crescentes e >30% do basal). Nenhum paciente foisubmetido a processo dialítico ou ultrafiltração durante oprocedimento cirúrgico. Os dados clínicos dos pacientesencontram-se na tabela I.

A causa da insuficiência renal aguda foi disfunção car-díaca aguda imediata (baixo débito e choque cardiogênico)em 10 crianças, disfunção cardíaca associada a sepsis emduas e sepsis com choque séptico em três. Quatorze (93,3%)lactentes fizeram uso de drogas vasoativas e 11 (73%) apre-sentavam processo infeccioso associado à insuficiência renalaguda. Onze lactentes desenvolveram insuficiência renalaguda oligúrica (diurese inferior a 1ml/kg de peso/hora) e to-dos tiveram que ser submetidos à diálise; dos quatro outroscasos que evoluíram com insuficiência renal aguda não-oligúrica, a metade necessitou de terapêutica dialítica, tendocomo indicação principal a presença de hipervolemia, conges-tão pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva.

Nos 13 pacientes (87% dos casos) que necessitaram de

Tabela I- Dados clínicos dos pacientes estudados.

# Idade Diagnóstico Dia da Tempo Upré Udur Evol.1ª DP de DP (mg/dl) (mg/dl)

1 3 m CIV+EP 1º PO# 0,5 d * 15 Óbito2 23 d PCA+DAVP 1º PO 4 d 71 46 Alta3 3 m Tetr. Fallot 4º PO 0,5 d * 59 Óbito4 3 m PCA 11º PO 0,5 d * 62 Óbito5 8 d HVE+PCA+

CIA+CIV 1º PO 0,5 d * 63 26 Óbito6 29 d PCA+DATVP 2º PO# 4 d 29 23 Alta7 9 m CIA+EA+EP 2º PO 24 d 81 57 Óbito8 2 m EP 1º PO# 10 d 83 56 Óbito9 4 m CIV 1º PO 33 d 98 68 Alta10 18 d HVE+AP+AT 16º PO 2 d 126 96 Óbito11 24 m CIA+DSAV 5º PO ** 136 Alta12 5 m CoA + CIV + DVSVD+EA 8º PO 12 d 93 82 Óbito13 10 m PCA 2º PO 5 d 150 132 Óbito14 1 m CIA + CoA + PCA 2º PO ** 144 Alta15 19 d HVE + PCA + CIA 2º PO# 3 d 93 81 Alta

Upré- uréia sérica pré-diálise; Udur-uréia sérica média durante o período de diálise peritoneal; CIV- comunicação intraventricular; CIA- comunicação intra-atrial;EP- estenose pulmonar; EA- estenose aórtica; HVE- hipoplasia de ventrículo esquerdo; AP- atresia pulmonar; AT- atresia tricúsoide; CoA- coarctaçào da aorta;DATVP- drenagem anômala do tronco da veia pulmonar; PCA- persistência do canal arterial; PO- pós-operatório; * óbito ocorreu nas primeiras 24h de diáliseperitoneal; ** não necessitaram de diálise; # IRA pré-cirurgia.

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procedimento dialítico, a diálise peritoneal com cateter flexí-vel foi o método mais utilizado (em 73% dessas crianças). Aindicação de diálise foi hipervolemia nos 15 casos (associadaà uremia em cinco crianças), na presença de diurese reduzidae necessidade de uso de infusão de líquidos. A terapêuticadialítica foi instituída entre o 1º e o 16º dia pós-operatório (me-diana=2º dia). Nesse grupo de crianças, a média da uréia e dacreatinina no momento da indicação do tratamento era85,7±44,4mg/dl e 2,2±1,9mg/dl, respectivamente. Desses,quatro faleceram nas primeiras horas da terapêutica, não emdecorrência da insuficiência renal aguda e sim pela grave do-ença de base; que apresentavam nível médio de uréia séricano início da diálise de 49±20mg/dl. Os outros nove pacientesapresentavam, no início da diálise, uréia sérica média de86±44mg/dl. Com a introdução da terapêutica dialítica,acidose metabólica, hiperpotassemia e hipervolemia foramcontroladas em todas as crianças nas primeiras 12 a 24h detratamento, e a média dos níveis de uréia sérica, durante operíodo de manutenção dialítica (até a última sessão dediálise peritoneal ou por ocasião do óbito), era de 75,7±33mg/dl, mostrando a efetividade do processo de depuração extra-renal usado. A média do tempo de manutenção dialítica nospacientes foi de 6,8±10,5 dias (mediana - 4 dias), variando demeio a 33 dias; em sete crianças o tempo de permanência emdiálise peritoneal contínua foi de 4 a 33 dias (média=13,1±11,2dias) e, nas demais, diálise peritoneal intermitente foi mantidapor 12 a 48h. Nenhuma criança apresentou quadro deperitonite ou complicação maior durante o tratamento, comexceção de um caso de perfuração de bexiga por cateter rígi-do, corrigida com reposicionamento do cateter.

Observamos uma taxa de mortalidade de 60% (noveóbitos), sendo maior (p<0,01) nos oligúricos (73%) do quenos não-oligúricos (25%). Das 12 crianças que desenvolve-ram insuficiência renal aguda devida a disfunção cardíacaaguda nos primeiros cinco dias após a cirurgia (insuficiênciarenal aguda tipo 1), a metade faleceu devido a falência cardía-ca-choque cardiogênico; todas as crianças que desenvolve-ram insuficiência renal aguda devida a processo infecciososistêmico após o 7º pós-operatório (insuficiência renal agudatipo 2) vieram a falecer devido a septicemia-choque séptico.

Discussão

O pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca paramalformações cardíacas em crianças pode estar associado àfalência circulatória sistêmica e, conseqüentemente à insu-ficiência renal aguda. A incidência de insuficiência renalaguda nessas crianças tem sido relatada em até 9% 1,4-8, es-tando esta associação relacionada a uma alta morbidade emortalidade. A insuficiência renal aguda nesses pacientestem sua etiologia geralmente de caráter multifatorial 2,4 e,suas manifestações, mais freqüentes, a falência aguda car-díaca, a redução da diurese, elevação dos níveis de uréia ecreatinina séricas e um balanço hídrico muito positivo.Quando o manuseio clínico-medicamentoso não conseguereverter tais manifestações, a indicação dialítica se impõe.Nesta situação, o suporte dialítico para crianças com insufi-

ciência renal aguda torna-se necessário até que se corrijamas anormalidades existentes, melhore a função cardíaca eos rins retomem uma função normal, que ocorre após algunsdias de insuficiência renal aguda. O objetivo, na maioriadessas crianças, é interromper o ciclo de retenção hídrica,sobrecarga cardíaca e edema tissular (principalmente pul-monar) que, não controlados rapidamente, contribuem parao óbito desses pacientes. Em diversos trabalhos, a freqüên-cia de intervenção dialítica situa-se entre 1,6 e 7,7% dos pa-cientes submetidos à cardiotomia 1-6,14.

O uso da diálise peritoneal em crianças com insuficiênciarenal aguda pós-cirurgia cardíaca tem-se mostrado um métodoefetivo e seguro, de fácil instalação e que não exige nem infra-estrutura especial nem pessoal de enfermagem com treinamen-to específico e complexo (nada diferente do que o existente emqualquer unidade de terapia intensiva) 1,2,4,6,14,15. O uso de cate-teres rígidos teve boa evolução em nossos casos mantidosem diálise peritoneal por curto prazo, porém seu uso porperíodo longo (diálise peritoneal contínua) tem-se associa-do a uma maior incidência de peritonite 13,16,17. Assim, para amaioria dos casos temos como conduta a instalação cirúrgi-ca de um cateter peritoneal flexível (tipo Tenckhoff), sobvisualização direta, que pode ser instalado mesmo durante acirurgia cardíaca 18 e utilizado por vários dias, com total se-gurança 13. Para os cateteres implantados, cirurgicamente,não observamos hemorragias importantes, infecção em sí-tio de instalação do cateter ou vazamentos problemáticos,embora problemas de obstrução ou de drenagem, com ne-cessidade de troca do cateter, tenham sido descritos na lite-ratura. Kholi e cols. 19 e Hanson e cols. 20 mostraram apenasum e dois casos de mau funcionamento do cateter, respecti-vamente, e também não tiveram complicações mecânicasnas crianças estudadas (31 e 22 crianças, respectivamente).Entretanto, Lattout e cols. 21 e Reznik e cols. 22 relataram com-plicações no funcionamento de cerca de 30% dos cateteresimplantados em suas crianças.

Muitos relatam a possibilidade de que a diálise perito-neal não seja efetiva para remoção de líquidos ou de escóri-as nitrogenadas em pacientes hipercatabólicos, incluindo apossibilidade de haver comprometimento da competênciada membrana peritoneal em pacientes chocados 10. Tais fa-tos podem ser refutados, quer pela demonstração clínicadeste ou de outros trabalhos 1,2,4,6,14, como por dados quedemonstram que mesmo em pacientes chocados a perfusãosangüínea peritoneal não se apresenta reduzida o bastantepara comprometer sua eficiência dialítica 23.

A simplicidade da diálise peritoneal opõem-se à com-plexidade das técnicas de depuração extracorpóreas emcrianças, que requerem pessoal altamente especializado etreinado, além do emprego de materiais e equipamentos es-pecíficos de alto custo. Além disso, a crianças têm superfí-cie peritoneal proporcionalmente maior do que a do adulto(a superfície peritoneal da criança por unidade de peso épouco mais de uma vez superior à do adulto) 24, o que fazcom que a diálise peritoneal na criança tenha a metade daeficiência, quando comparada à hemodiálise, enquanto que,no adulto, é da ordem de 20% 25. Com relação à evolução de

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crianças com insuficiência renal aguda e cirurgia cardíaca,diversos trabalhos têm apresentado experiência com o usoda terapêutica dialítica extracorpórea (hemofiltração arterio-venosa (CAVH) e venovenosa (CVVH) contínua) 8,9,11,12. Emtodos, a mortalidade tem se mostrado elevada e o uso preco-ce e agressivo esteve relacionado a um prognóstico menosletal, como o descrito para a diálise peritoneal 12.

A insuficiência renal aguda pós-cirurgia cardíaca emcrianças tem uma mortalidade relatada entre 10 a 90% 1-6,10,12,20

e nossos dados confirmam esses valores. Este prognósticotem sido determinado muito mais pela doença de base e in-tercorrências infecciosas e hemodinâmicas do que pelométodo dialítico empregado. Trabalhos mais antigos mos-travam mortalidade acima de 70% nas crianças submetidas àcirurgia cardíaca, necessitando de terapêutica dialítica, mos-trando que a diálise não era capaz de trazer benefícios evolu-tivos a esse grupo de pacientes, o que poderia refletir tam-bém uma certa relutância em indicar e iniciar precocemente otratamento dialítico 10. Mais recentemente, alguns trabalhoscitam mortalidade 5 bem mais baixas (até inferiores a 50%) emgrupos de crianças dialisadas, mais precocemente, após acirurgia e de maneira mais intensa 26-28. A noção de se insti-tuir tratamento dialítico precoce é reforçada por dados quemostraram que a diálise melhora a perfusão renal e diminui asobrecarga hídrica, particularmente em pacientes com falên-cia cardíaca direita, nas quais um cateter peritoneal foi insta-lado durante o ato cirúrgico 26; na presença de oligúria resis-

tente a diuréticos no pós-operatório imediato, o sistema dediálise peritoneal deve ser instalado imediatamente. Deve-mos enfatizar que, mesmo em lactentes portadores de insu-ficiência renal aguda de natureza clínica, a mortalidade rela-tada tem sido elevada, com taxas próxima aos 35-40% 29.

Finalmente, deve-se ressaltar que a insuficiência renalaguda relacionada à cirurgia cardíaca em crianças, como jádescrita em adultos, apresenta duas características bemdefinidas: a insuficiência renal aguda ocorrida no pós-ope-ratório imediato (insuficiência renal aguda tipo 1), nos pri-meiros cinco dias após o procedimento cirúrgico primário,sendo a insuficiência renal aguda secundária à falência car-díaca aguda e tendo o choque cardiogênico como principalfator para o óbito do paciente; e a insuficiência renal agudaocorrida após o 7º dia pós-operatório (insuficiência renalaguda tipo 2), secundária a quadros infecciosos graves etendo a sepsis como a maior causa contribuinte para o óbitodas crianças 30,31.

Concluímos que a insuficiência renal aguda emlactentes submetidos à cirurgia cardíaca é uma situação crí-tica, com a maioria desses pacientes necessitando de trata-mento dialítico, todos submetidos à diálise peritoneal, devi-da, principalmente, à hipervolemia não controlada clinica-mente e não ao estado hipercatabólico urêmico. Apesar dadiálise peritoneal ter sido eficaz e precoce, a mortalidade foielevada (60%), índice alto de mortalidade relacionado aograve distúrbio hemodinâmico presente, agravado pela in-suficiência renal aguda.

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