IRINEU NATAL DEROSSO JUNIOR - Setor de Ciências Humanas · linguísticos. “Um copo de cólera”...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LETRAS BACHARELADO COM ÊNFASE EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS “UM COPO DE CÓLERA”: UMA ANÁLISE A RESPEITO DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO LITERÁRIO IRINEU NATAL DEROSSO JUNIOR CURITIBA 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LETRAS

BACHARELADO COM ÊNFASE EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS

“UM COPO DE CÓLERA”: UMA ANÁLISE A RESPEITO DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO LITERÁRIO

IRINEU NATAL DEROSSO JUNIOR

CURITIBA 2011

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IRINEU NATAL DEROSSO JUNIOR

“UM COPO DE CÓLERA”: UMA ANÁLISE A RESPEITO DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO TEXTO LITERÁRIO

Monografia apresentada à disciplina de

Orientação Monográfica II do curso de Letras -

Inglês da Universidade Federal do Paraná, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Letras com ênfase em Estudos

Linguísticos.

Orientadora: Profa. Dra. Teresa Cristina

Wachowicz

CURITIBA

2011

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à minha mãe, Enelzi, ao meu

pai, Irineu, e à minha irmã, Alyne, pela paciência e pelo companheirismo ao

longo da produção deste trabalho. Nada teria sido feito sem que isso tivesse

existido antes.

Em segundo lugar, gostaria de agradecer à profa. Dra. Teresa Cristina

Wachowicz pela orientação de diversos projetos ao longo do curso de Letras,

o que culminou com a realização deste trabalho, e por ter sido, além de uma

excelente professora e orientadora, uma grande amiga durante esse tempo.

Em terceiro lugar, gostaria de agradecer à profa. Dra. Renata de Praça

Souza Telles pela indicação de diversos livros, incluindo a obra “Um copo de

cólera”, sem a qual esta monografia não teria sido realizada.

Por fim, gostaria de agradecer aos meus amigos, que talvez nunca

cheguem a ler este trabalho na íntegra, mas que foram, assim como todos

mencionados acima, fundamentais para a sua realização.

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All the world’s a stage, And all the men and women merely players: They have their exits and their entrances; And one man in his time plays many parts, His acts being seven ages. William Shakespeare

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SUMÁRIO

RESUMO..........................................................................................................6

1 INTRODUÇÃO...............................................................................................7

1.1OBJETIVOS..............................................................................................11

1.2 HIPÓTESES.............................................................................................12

1.3JUSTIFICATIVA........................................................................................14

2 REFERENCIAL TEÓRICO..........................................................................15

3 METODOLOGIA..........................................................................................17

4 ANÁLISE.....................................................................................................18

4.1 A CHEGADA.............................................................................................18

4.2 NA CAMA..................................................................................................21

4.3 O LEVANTAR...........................................................................................24

4.4 O BANHO.................................................................................................25

4.5 O CAFÉ DA MANHÃ.................................................................................26

4.6 O ESPORRO............................................................................................27

4.7 A CHEGADA.............................................................................................39

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................41

6 REFERÊNCIAS...........................................................................................43

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RESUMO

O presente trabalho propõe uma análise de alguns aspectos linguísticos do romance “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar. Para isso, foram escolhidas algumas inferências a serem discutidas: personificações, metáforas, comparações, ilustrações, paralelismo e quiasmo. Com base no pressuposto de Reboul (1998) de que determinadas estruturas linguísticas, tais como figuras de linguagem, podem ser utilizadas como um argumento retórico, o trabalho procurou ver a forma como as estruturas mencionadas acima se caracterizam como um argumento e acabam produzindo determinados efeitos de sentido para o leitor da obra analisada. Atrelando teorias linguísticas à análise de um texto de caráter literário, buscou-se também, neste trabalho, demonstrar que ambas as ciências podem trabalhar lado a lado para produzir conhecimento. Palavras-chave: Figuras de linguagem, Um copo de cólera, Retórica, Poética

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1 INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, houve resistência por parte dos estudiosos em

unir os estudos linguísticos aos estudos literários, de forma que uma ciência

pudesse contribuir para o estudo da outra. Até o século XIX, essa resistência

ocorria principalmente em virtude do objetivo destes dois campos de estudo.

Enquanto os estudos literários procuravam ater-se ao conteúdo das obras de

literatura, a linguística, com seu caráter cientificista, evitou estender seus

estudos para um tipo uso da língua que não fazia parte da linguagem usual

do cotidiano (Barthes 1968). Dessa maneira, não havia análises

aprofundadas a respeito do estilo de cada autor ou mesmo da linguagem

utilizada na literatura, mesmo sendo a língua o instrumento através do qual a

literatura toma forma.

Com o tempo, estudiosos de ambos os campos passaram a perceber

que esta relação poderia ser muito produtiva, já que a literatura nada mais é

do que uma arte verbal, feita a partir da linguagem. Surgiu então uma

questão relevante para o desenvolvimento destes estudos: o que difere a

palavra utilizada como arte do uso corrente da língua? Para isso, foi

incorporada à lingüística uma área de estudos que passou a entrelaçá-la à

literatura: a poética. Essa ciência, que é conhecida desde a Grécia antiga,

passou então a ganhar novos contornos. Pensando nisso, Roman Jakobson,

em Linguística e Comunicação, determinou seis funções exercidas pela

linguagem: emotiva, referencial, fática, metalinguística, conativa e poética.

Segundo Jakobson, cada função possui como foco um determinado fator

constitutivo da ação comunicativa. A função emotiva, por exemplo, possui

como foco o remetente da mensagem (um exemplo desse tipo de texto é o

diário, que se concentra na figura do “eu”), enquanto a função conativa se

concentra no destinatário (o que acontece com propagandas, por exemplo,

que oferecem produtos a uma segunda pessoa). Da mesma maneira, a

literatura é construída quando há um foco na mensagem, o que caracteriza a

função poética da linguagem. A partir disso, Jakobson delimita a ciência

poética como “aquela parte da linguística que trata a função poética em sua

relação com as demais funções da linguagem” (p. 131).

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Jean Cohen, em Estrutura da Linguagem Poética, afirma que a poética

é a ciência que estuda a poesia, sendo esta um desvio em relação à norma.

De acordo com Cohen, o falar anômalo do poeta ocorre de maneira muito

peculiar, tendo cada um deles um desvio próprio em relação ao padrão e

caracterizando um estilo próprio de composição. Cohen também faz algumas

considerações históricas a respeito da poética. Segundo ele, os gregos

clássicos viam o desvio de maneira negativa e reprimiam severamente as

ousadias. Já os modernistas passaram a enxergar o desvio quase como uma

regra para a escrita, tendo a originalidade ganho um valor estético muito mais

relevante (pág. 20). Essa liberalização do estilo poético só ocorreu após o

Romantismo, que tornou a arte poética consciente de si própria.

Outra ciência que se encarregou de unir linguística e literatura foi a

retórica. Ela surgiu na Grécia como uma técnica oratória, uma maneira de

aperfeiçoar o discurso, e tornou-se aos poucos uma ciência que percebeu a

literatura como uma criação da linguagem (Barthes 1968). Apesar de possuir

uma série de funções, a retórica é responsável principalmente por analisar o

conjunto de elementos de um discurso que criam um efeito de sentido para o

seu auditório e fazem com que tal discurso seja eficiente. É neste ponto que

ela encontra a literatura: há elementos utilizados na obra literária que a

caracterizam como arte, e não como uma forma de uso cotidiana da

linguagem. Certos efeitos conseguidos a partir de recursos estilísticos dão a

um discurso um caráter poético, artístico. Isso reitera a ideia discutida

anteriormente de que a linguagem literária é um desvio do padrão. No

entanto, não é um desvio qualquer, mas sim um desvio pensado, articulado

em moldes estéticos e tendo o objetivo de caracterizar-se como uma obra de

arte.

Olivier Reboul, em Introdução à Retórica, faz um panorama histórico

desta ciência. De acordo com ele, apesar ter sido criada como uma ciência

apenas pelos gregos, a retórica é anterior à sua própria história, tendo sido

uma técnica utilizada por diversas outras civilizações. Segundo Reboul, ela

nasceu, na Sicília, com um propósito judiciário. Seu primeiro teórico foi

Córax, que, ao lado de seu discípulo Tísias, publicaram a “arte oratória” para

que as pessoas recorressem à justiça. A retórica só começou a ser

identificada com a literatura (e, portanto, com a poesia, já que, para os

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gregos, o teatro, a épica e a prosa não eram ainda vistos como

manifestações literárias) a partir de Górgias, que criou a prosa eloquente,

passando a por a retórica a serviço da beleza, adicionando ao discurso uma

série de figuras de linguagem que o tornavam esteticamente valoroso. Nas

mãos dos sofistas, a retórica passou a ter mais valor do que a própria

verdade de um discurso, o que parece ter gerado algumas controvérsias. Por

fim, a retórica ganhou novos contornos com Aristóteles, que acreditava que

um bom retor deve ser capaz de defender os prós e os contras de uma tese e

que o justo e o verdadeiro são mais fortes, mesmo que haja veredictos que

não se atêm a eles. Hoje, após um processo de reinvenção da retórica

ocorrido nos anos 1960, dois campos de estudo dentro desta ciência

passaram a se destacar. A primeira vertente tem como principais

representantes Perelman e Tyteca, que estudam a retórica como a arte de

argumentar, visando a convencer. Já na outra vertente, cujos membros

principais são Cohen, Genette, Mourier e o grupo “MU”, estuda-se a retórica

como estudo de estilo e de figuras, visando a tornar literário um texto.

Levando-se em consideração os pressupostos apresentados até aqui,

fica evidente que há uma vertente de estudos muito vasta que une o estudo

da língua ao da obra literária. A modernização das técnicas literárias tornou

este campo ainda mais vasto, já que autores modernos e contemporâneos

passaram a empregar outras formas de “fugir da norma” da língua, criando

estilos cada vez mais heterogêneos. A análise de obras cada vez mais

diversas, sob um ponto de vista da linguística, permite entender como a

literatura utiliza a língua para se construir como arte para quem a lê.

Pensando nisso, o romance “Um copo de cólera”, de Raduan Nassar,

surgiu como uma obra que possibilitaria uma análise muito produtiva a

respeito da construção de sentido do texto literário a partir de recursos

linguísticos. “Um copo de cólera” foi escrito na década de 1970, época

marcada pela atitude autoritária do governo militar no cenário político

nacional. Seu enredo é bastante simples: um homem e sua parceira, após

uma noite de amor, entram em conflito por conta de causas aparentemente

tolas. No entanto, a cólera que toma conta de ambos os leva para uma

discussão intensa, o que faz com que coloquem em ação o seu lado mais

passional e íntimo. O discurso acaba se tornando um elemento central da

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trama: enquanto questionam o domínio de um sobre o outro, da figura

masculina sobre a feminina e vice-versa, fazem uma reflexão muito extensa a

respeito do uso da linguagem e da construção de argumentos na explosão de

um bate-boca. Por isso, a linguagem ganha um papel fundamental dentro da

obra, sendo que é nela que a caracterização da posição de cada personagem

dentro do discurso é feita.

Uma análise desta obra, que entremeia a poesia e a prosa e coloca

em cheque uma série de conceitos, possibilita entender com clareza a forma

como a língua constroi seus meios para se tornar arte. A maneira como se

diz, e não necessariamente o que se diz, mostra a face da literatura como

uma verdadeira expressão estética. Se ignorarmos o fato de que a ciência da

língua e a literária estão sempre interligadas, correremos o risco de ver o que

aponta Barthes:

É bem possível que a linguística, explodindo no exato momento em que é

honrada como o primeiro dos modelos, apareça aos poucos como uma

ciência historicamente ligada a certo objeto, que por sua vez também é

histórico: a fala; mas, a partir do momento em que se considera que a escrita

não pode ser uma simples “transcrição” da fala (...), a linguística, que nunca

fez distinção, corre o risco de ser levada, ou pelo menos confinada, a ser a

pura ciência da comunicação oral, e não das inscrições. E, por um outro

lado, é bem possível que a literatura, apesar da sua sobrevivência na cultura

de massa, seja pouco a pouco privada, pelo próprio trabalho dos escritores,

de seu status tradicional de arte realista ou expressiva, e realize a sua

própria destruição para renascer na forma de uma escritura que já não

estará exclusivamente ligada ao impresso, mas será constituída por todo

trabalho e toda prática de inscrição. O texto fará caducar a linguística, assim

como a linguística está fazendo caducar a obra. (BARTHES 2004, p. 99-100)

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1.1 OBJETIVOS

Considerando os problemas apresentados na introdução, tem-se como

objetivo inicial deste trabalho avaliar o uso de determinadas estruturas de

linguagem, principalmente figuras, no sentido de enriquecer uma obra literária

com relação a seu efeito poético, resultando na construção de um

determinado efeito de sentido para o leitor. Da mesma maneira, as estruturas

de quebra do código usual da língua são o principal meio para tornar a língua

uma forma de manifestação artística.

Essa avaliação será feita a partir da análise do romance “Um copo de

cólera”, de Raduan Nassar, em vista de sua fuga muito extensa da norma da

linguagem. Isso deixa mais evidente a quebra do código linguístico como

recurso essencial para se atingir a arte da palavra.

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1.2 HIPÓTESES

Tendo em vista a problematização apresentada acima, este trabalho

se propõe a fazer uma análise de aspectos linguísticos presentes no romance

“Um copo de cólera”, de Raduan Nassar. Levando-se em consideração a

ideia de que o efeito poético se faz através de determinadas quebras das

normas da linguagem, pretende-se avaliar a maneira como certos recursos

foram utilizadas pelo autor ao longo da obra e de que forma eles auxiliam no

processo de construção de sentido dentro do texto literário.

Em vista da enorme quantidade de figuras de linguagem e outros

recursos empregados no romance, foi necessário delimitar algumas

inferências específicas para a análise. Estas inferências são as seguintes:

1) personificação: ao longo de “Um copo de cólera”, Raduan Nassar

utiliza uma série de personificações, principalmente de partes do

corpo, tais como as mãos, os pés, os ouvidos e os olhos;

2) ilustrações: para construir a relação entre as personagens, o autor

ilustra alguns eventos similares aos discursos e aos atos entre as

pessoas, tais como a ilustração de rituais religiosos e de elementos

teatrais;

3) metáforas e comparações: um dos elementos mais utilizados ao longo

do romance são as metáforas, que são utilizadas ao lado das

ilustrações para dar caráter poético ao texto. Neste trabalho, serão

analisados principalmente dois tipos recorrentes de metáforas

presentes no livro: as metáforas que se relacionam a animais e as que

se relacionam a vegetais;

4) paralelismo e quiasmo sintático: há um paralelismo que liga o início e o

final de “Um copo de cólera”, visto que a ação do início se repete no

fim, mas a ação é dirigida por outra personagem. Esses trechos

possuem uma diferença sintática em relação ao meio da obra.

Enquanto o início e o fim possuem estruturas sintáticas que se

assemelham a sentenças interrogativas, o meio se apresenta com

sentenças declarativas, formando uma espécie de quiasmo na

estrutura sintática do romance;

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Estas inferências serão relevantes no sentido de demonstrar como se

dá a construção do texto literário. No caso de “Um copo de cólera”, a análise

dos pontos expostos acima tentará justificar as principais questões temáticas

da obra, que são o choque entre gênero masculino e feminino e a

importância da construção do discurso.

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1.3 JUSTIFICATIVA

O trabalho terá a finalidade de encontrar alguns elementos do texto

literário que são muitas vezes deixados de lado na análise de obras. Há uma

série de trabalhos que delimitam suas análises a elementos como o narrador,

o tempo e o espaço em uma determinada obra. No entanto, obviamente sem

desmerecer os referidos trabalhos, os elementos linguísticos utilizados pelo

autor são tratados com menos frequência. Trabalhos que analisam o gênero

poesia, por exemplo, fazem isso mais frequentemente, mas muitos ainda

destacam outros elementos.

De maneira análoga, a linguística busca, na maior parte do seu tempo,

trabalhar com fatos da língua que estão distantes da literatura. Talvez pelo

fato de a literatura não ser parte do uso corrente e comum da linguagem, a

quantidade de linguistas que direcionam seus estudos para as obras literárias

e para o uso da língua como uma expressão de arte ainda é pequena.

Nesse sentido, a análise de figuras de linguagem do romance “Um

copo de cólera” é um trabalho que contribui para maior análise de elementos

linguísticos na literatura. Através deste trabalho, é mostra-se que é possível

realizar um trabalho que lida, ao mesmo tempo, com fenômenos linguísticos

e literários.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para a realização deste trabalho, foram utilizados, em primeiro lugar,

os pressupostos de Reboul (1998), que constroi em seu livro uma verdadeira

esquematização de como preparar o discurso retórico.

As figuras de linguagem se caracterizam como um importante

elemento na construção de um discurso em que a retórica está envolvida.

Elas funcionam como um elemento enriquecedor de qualquer argumento,

como afirma Reboul (1998):

Quando os antigos falam das figuras, é para evocar o prazer que elas

proporcionam, que eles relacionam com o delectare e mais raramente com o

movere. A figura seria, portanto, uma fruição a mais, uma licença estilística

para facilitar a aceitação do argumento. (REBOUL 1998, p. 114)

Já Perelman-Tyteca (apud Reboul 1998) enxergam nas figuras de

linguagem não apenas um enriquecimento do argumento, mas o argumento

em si. Os autores afirmam que toda figura de retórica é um condensado de

argumentos, citando o exemplo da metáfora, que é um condensado de

analogia. Reboul discorda dizendo: “A nosso ver, essa teoria é intelectualista

demais: esquece-se do prazer da figura” (p. 114). Neste trabalho, tentar-se-á

unir as duas posições teóricas para a análise do texto, procurando provar que

as figuras podem funcionar como um argumento, mas que também há nelas

um prazer que auxilia na persuasão do auditório, ou seja, do leitor.

Reboul (1998), além de discutir a utilidade das figuras de linguagem,

faz uma extensa lista delas, fornecendo alguns exemplos de seus usos. Para

este trabalho, foram utilizados os conceitos de metáfora, comparação,

personificação e quiasmo expostos pelo autor. Não somente isso, foi também

utilizado o conceito de alegoria. No entanto, ao invés do termo “alegoria”, foi

utilizada a palavra “ilustração”, que é de autoria de Perelman-Tyteca, e

possui uma função muito próxima da alegoria (descrever ou narrar realidades

conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade

abstrata; é a estrutura primordial do provérbio, da fábula e da parábola), mas

pareceu mais pertinente para esse trabalho. Em alguns casos, pode-se

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afirmar que o uso de uma figura de linguagem leva à criação de outra (a

metáfora, por exemplo, pode tornar-se uma hipérbole e, quando estendida,

uma ilustração). Contudo, preferiu-se, nesse trabalho, fechar o ciclo de

figuras nas cinco mencionadas acima (lembrando que o quiasmo será

analisado apenas por sua função de marcar uma alteração sintática na obra,

e não em usos específicos ao longo do texto).

Além disso, foram levados em consideração alguns conceitos

expostos em Cohen (1974) e Jakobson (2005), principalmente no que se

refere ao uso poético da linguagem. A determinação e a construção da

linguagem caracterizada como poética é importante para se entender como

“Um copo de cólera” se torna uma verdadeira obra de arte em que a

linguagem é o tema central. Através dos artifícios da linguagem, tais como as

figuras mencionadas no parágrafo acima, e do conceito de uso poético da

linguagem é que se pode determinar o efeito de sentido que o livro em

questão traz para seu leitor.

Por fim, foram utilizadas algumas questões expostas em Barthes

(2004) como justificativas para o presente trabalho, visto que, em sua

essência, ele se propõe a contribuir tanto para os estudos linguísticos quanto

para os literários. Dessa maneira, buscou-se utilizar a teoria linguística para a

análise de uma obra de caráter literário, sendo esta uma ideia muito

defendida por Barthes (2004), já que ambas as ciências se complementam

no estudo dos usos da língua.

Sendo assim, a análise de “Um copo de cólera” tentou levar em

consideração as bases teóricas expostas acima, sempre procurando utilizar

fundamentos de teorias linguísticas para explicar o uso de determinados

artifícios ao longo da obra. É importante mencionar ainda a utilização de

algumas questões expostas na defesa da dissertação de mestrado de Ana

Paula de Melo Peixoto sobre a obra. Alguns conceitos e discussões

mencionados ao longo da defesa foram definitivos para a análise desse

trabalho, tais como a fusão entre o masculino e o feminino, a argumentação

entre as personagens e a personificação do corpo.

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3 METODOLOGIA

Em vista da natureza deste trabalho, será feita, inicialmente, a

localização das figuras e dos recursos a serem analisados e sua devida

interpretação com base nas bibliografias mencionadas nas referências

teóricas. A partir disso, o trabalho consistirá de uma análise da utilização

destes recursos em partes do texto e, posteriormente, de uma análise da

construção de sentido proporcionada pelos mesmos recursos no texto como

um todo.

Para isso, o trabalho será dividido de acordo com os capítulos do livro,

de forma que todas as figuras, após serem analisadas separadamente

durante o momento de leitura da obra, possam ser relacionadas às outras

quanto à sua função e ao seu efeito de sentido dentro do texto. Ao final do

trabalho, o objetivo é realizar uma análise geral do uso destes recursos,

formulando uma explicação que dê conta de ilustrar como os meios

linguísticos utilizados criam determinados efeitos.

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4 ANÁLISE

Conforme explicado acima, a análise do romance “Um copo de cólera”

será realizada de acordo com os capítulos do livro, para que ao final seja

possível relacionar todos os capítulos e chegar a uma conclusão a respeito

do efeito de sentido da obra como um todo.

4.1 A CHEGADA

Em “A chegada”, o primeiro capítulo de “Um copo de cólera”, a

personagem masculina (que designarei, a partir daqui, por “ele”, em oposição

à personagem feminina, que designarei por “ela”, ambos sempre em itálico, já

que seus nomes não são apresentados na obra) retrata a chegada à sua

própria casa (como já diz o nome do capítulo). A narração inicia da seguinte

forma:

E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava

andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse no carro,

e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço,...(NASSAR

1992, p. 9)

Interrompendo-se a leitura por um instante e dirigindo-se ao último

capítulo do livro, lê-se uma sentença com a mesma estrutura da sentença

apresentada no trecho acima:

E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse

ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao

descer do carro, uma atmosfera precoce se instalando entre os

arbustos,...(NASSAR 1992, p. 82)

Como se vê, há aqui um paralelismo entre o primeiro e o último

capítulos do livro, cujos títulos, por sinal, são os mesmos (“A chegada”). Essa

chegada é, no entanto, narrada por vozes diferentes. Enquanto no primeiro

capítulo vê-se a narração dele, o último capítulo é narrado por ela, o que

constroi uma espécie de ligação entre as personagens: é a chegada de

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ambos que os coloca juntos em pontos opostos do livro. É interessante

observar que as passagens expostas acima fazem referências aos mesmos

elementos. A casa, por exemplo, é identificada através de uma metonímia

(“27”). Além disso, há um olhar dele e dela para o portão, que é aberto por

ela no início e se encontra aberto no fim. O carro também se faz presente em

ambos os trechos.

Voltando ao primeiro capítulo, nota-se, na página 10, o início de uma

tentativa de diálogo entre as personagens. Esta tentativa inicia com uma

pergunta da personagem feminina: “que que você tem?”. Após isso, a

personagem masculina afirma que, após certa insistência da pergunta,

responde: “você já jantou?”. Vê-se aqui uma repetição de estrutura

interrogativa no diálogo. Apesar de ele estar respondendo a uma pergunta,

faz isso utilizando uma outra pergunta. A repetição desta estrutura cria um

clima de tensão entre as personagens, clima este que vai se desenrolar e

tornar-se muito mais intenso ao longo do texto. No entanto, o auge da tensão,

como será visto adiante, apresenta diálogos com estruturas declarativas, ao

contrário do início. Esta construção é realizada quase como uma figura de

linguagem conhecida como quiasmo. Reboul (1998) cita o quiasmo como

uma construção feita através de uma oposição baseada numa inversão com

estrutura ABBA, tal como ocorre na sentença “Deve-se comer para viver, não

viver para comer”. No caso de “Um copo de cólera”, pode-se dizer que

Raduan Nassar utiliza um quiasmo sintático quando faz a inversão entre

estruturas de pergunta e de resposta, retomando a estrutura de pergunta no

final (já que há ainda um paralelismo entre o início e o fim do livro). Esta ideia

será mais explorada na análise dos outros capítulos, onde seu efeito ficará

mais evidente.

Ainda no primeiro capítulo, é possível observar a primeira referência à

figura de um animal para caracterizar uma personagem. Na página 10, ele

diz:

...e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate,

salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um

empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os

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dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha

boca,...(NASSAR 1992, p. 10)

A imagem do cavalo da à personagem masculina uma virilidade mais

expressiva, a qual será explorada por ele ao longo do livro, muitas vezes

como um argumento para justificar sua dominação em relação à personagem

feminina. Neste trecho, ele afirma claramente que sua intenção é mostrar-se

a ela, numa espécie de afirmação do masculino. Este jogo de afirmação inicia

a caracterização de um ritual quase selvagem entre o homem e a mulher,

que aos poucos abandonam seu lado humano e ganham contornos

animalescos. Ainda de uma maneira quase selvagem, os dois se aproximam

e entram no quarto, quase sem trocar palavras, marcando o fim do primeiro

capítulo.

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4.2 NA CAMA

O segundo capítulo é iniciado com uma ilustração que se repete ao

longo da obra de maneira a comparar o ambiente em que se passa a

narrativa com um ambiente teatral. A personagem masculina se refere, pela

primeira vez, a uma plateia, dizendo: “nós parecíamos dois estranhos que

seriam observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela”. É

claro que, por enquanto, esta referência é muito sucinta, mas ela se fará

muito presente ao longo da obra. Um palco é ilustrado para expor os

acontecimentos, com plateia e cenários, onde as personagens se referem a

si mesmas como atores e fazem referência a um público.

Na página 13, Raduan Nassar chama, pela primeira vez, atenção para

uma parte do corpo. Como mencionado nas hipóteses deste trabalho, há uma

série de personificações de partes do corpo ao longo da obra, de forma que

elas levam em si características do corpo todo, parecendo estarem vivas por

si só. O corpo, em “Um copo de cólera”, fala junto com a voz dos narradores

personagens. Ele (e todas as suas partes) possui voz própria, justificando os

sentimentos e os pensamentos das personagens. Em um momento em que

ele e ela sentam-se na cama, ele tira os sapatos e discorre a respeito dos

próprios pés:

...sabia que tudo aquilo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse

seu pesadelo obsessivo por uns pés, e muito especialmente pelos meus,

firmes no porte e bem feitos na estrutura, um tanto nodosos nos dedos, além

de marcados nervosamente no peito por veias e tendões, sem que

perdessem contudo o jeito tímido de raiz tenra...(NASSAR 1992, p. 13)

A primeira questão que pode ser apontada a respeito do trecho acima

refere-se à caracterização quase animal dos pés da personagem masculina,

como se fossem patas (“firmes no porte e bem feitos na estrutura”). Esta

caracterização reforça a comparação descrita na análise do primeiro capítulo

(do cavalo), tornando a figura masculina ainda mais viril, o que se vê

destacado nos próprios pés, “marcados nervosamente no peito por veias e

tendões”. Ao final do trecho, Raduan Nassar utiliza um adjetivo que

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geralmente se liga a objetos animados: tímido. Esta é a primeira

personificação de uma parte do corpo, levando-se em conta que seus pés

ganham características humanas. O que se pode inferir a respeito dessa

ideia é que os corpos das personagens representam o que elas são. Neste

caso, o pé é caracterizado como viril para destacar o seu possuidor como

sendo tão viril quanto os próprios pés. A virilidade está, então, presente em

cada parte da personagem, e acaba por possuir o seu todo.

Na página 15, a personagem masculina faz a primeira referência que

caracteriza um ritual. Ele narra o relacionamento com sua parceira dizendo:

“quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um

único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num

exercício quase cristão”. A representação ritualística é muito frequente ao

longo da obra, funcionando como uma ilustração da relação da personagem

masculina com a feminina, não apenas da relação física, mas da ligação

sentimental, de maneira que ambos caminham para formarem um só ser

através da ligação entre eles. Em outras palavras, a ilustração do ritual

caracteriza a fusão entre o masculino e o feminino, um dos elementos mais

relevantes em “Um copo de cólera”. Na página 16, há mais uma referência à

mesma metáfora:

...ela tentava me descrever sua confusa experiência de gozo, falando

sempre da minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal

escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de

Deus às minhas obcenidades...(NASSAR 1992, p. 16)

Neste trecho, o ritual se refere à relação sexual entre as personagens,

mas essa ideia estará relacionada a outros sentidos também. É interessante

observar aqui que quem “conduz o ritual” é o homem (que, no caso, é o

narrador), se sobressaindo sobre a mulher e demonstrando, em sua

narrativa, seu domínio sobre o sexo feminino, o que é feito desde o início da

narrativa. Isso se reforça no trecho que vem logo a seguir, em que ele afirma:

...e era então que eu falava da inteligência dela, que sempre exaltei como a

sua melhor qualidade na cama, uma inteligência ágil e atuante (ainda que

só debaixo dos meus estímulos)...(NASSAR 1992, p. 16)

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O trecho destacado mostra a visão que o narrador masculino possui

como sendo superior e dominador da personagem feminina, fato que se

inverte por diversas vezes ao longo da obra.

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4.3 O LEVANTAR

O terceiro capítulo inicia com uma comparação da mulher com um

elemento da natureza: “...mas ela então se enroscou em mim feito uma

trepadeira, suas garras se fechando onde podiam”. Mais adiante, ela, sendo

citada por ele, utiliza uma metáfora que denota a mesma ideia, comparando-

o a um ciprestes: “...ela em troca me disse fingindo alguma solenidade “eu

não vou te deixar, meu mui grave cyprestes erectus””. É interessante

observar que, neste caso, as duas metáforas (trepadeira e ciprestes) não

apenas destacam o caráter selvagem das personagens, mas reforçam a

fusão entre elas, sendo a trepadeira uma planta que naturalmente envolve

uma árvore (no caso, o ciprestes). Esta ideia é mais um recurso que realiza a

fusão entre o masculino e o feminino, fazendo dos dois um só, como a

trepadeira e o ciprestes que formam um só ser quando juntos.

A personagem masculina narra as tentativas de se livrar da

personagem feminina, afirmando, com o uso das mesmas metáforas, que

“não há rama nem tronco, por mais vigor que tenha a árvore, que resista às

avançadas duma reptante”. No final do capítulo, a personagem feminina volta

e “prende” novamente o homem, e os dois acabam se dirigindo para o

chuveiro.

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4.4 O BANHO

No quarto capítulo, a personificação de partes do corpo aparece

novamente, agora com as mãos e os dedos ganhando características

humanas. No momento do banho, a personagem masculina narra o ato de

sua parceira passar as mãos pelo seu corpo, dizendo que “corriam

perscrutadoras com muita espuma” e que “aquelas mãos já me devassavam

as regiões mais obscuras”, de forma que as mãos parecem ter vida própria.

Após isso, o foco passa para os dedos de sua parceira:

...me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, ainda que eu

soubesse que eles, ardendo, anunciavam francamente o meu asseio, e não

demorou ela me puxou de novo sob a ducha, e seus dedos começaram a

tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos...(NASSAR 1992,

p. 22)

Além disso, a ilustração do ritual religioso aparece novamente aqui.

Ele diz:

...quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela

minha pele d’água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada

perturbava o ritual, e assim que ela fechou o registro me deixei conduzir

calado do box para o piso...(NASSAR 1992, p. 23)

É interessante que, ao lado da ilustração ritualística, aparece a palavra

“freios”, que pode se relacionar com a figura do cavalo, utilizada

anteriormente para reforçar a virilidade masculina. Aqui, no entanto, esta

metáfora é usada para deixar claro o domínio dele sobre ela, como um

cavaleiro que controla seu cavalo, ou até mesmo como possuidor do controle

no “ritual”. Ao mesmo tempo, há, paradoxalmente, uma ideia de entrega dele

a ela, já que as mãos da personagem feminina (ou seja, a própria

personagem feminina em si) agem sobre a personagem masculina, que se

deixa ser dominado. No final do capítulo, ele afirma: “me entregava

inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do

meu corpo”.

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4.5 O CAFÉ DA MANHÃ

O momento do café é aquele em que há pouco uso de recursos

trabalhados nesta análise. Numa espécie de impaciência com sua funcionária

(Dona Mariana), a personagem masculina utiliza a ilustração do ritual

religioso para descrever o seu sentimento no instante em que fala (“na

verdade, me exercitando na magia do exorcismo”). Pouco após isso, a

personagem feminina faz uma pergunta a seu parceiro, de forma a

caracterizar a estrutura de pergunta que ainda é dominante no início de “Um

copo de cólera”, mas que será invertida no capítulo seguinte.

É interessante ainda mencionar o fato de que Dona Mariana, a

funcionária, atua, ao longo da obra, como elemento da plateia do teatro

construído pelas personagens principais. Neste capítulo, essa ideia é exposta

novamente, mas ainda de forma sucinta. A personagem masculina, ao se

referir a Dona Mariana para solicitar seu café, afirma que “ela sabia muito

bem, pelo tom, que que eu queria dizer com isso”. Essa frase denota um

conhecimento da funcionária de seu patrão, não conhecendo-o apenas por

possuir um contato diário com ele, mas por caracterizar uma espectadora dos

fatos de sua vida.

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4.6 O ESPORRO

Além de ser o mais extenso, este é o capítulo central do livro e

decisivo para esta análise. Neste ponto da obra, há uma verdadeira

intensificação no uso de todos os elementos que estão sendo analisados,

bem como um ápice na trama da narrativa.

O primeiro parágrafo traz a personificação de elementos da natureza,

como se vê no trecho a seguir:

O sol já estava querendo fazer coisas em cima da cerração, e isso era fácil

de ver, era só olhar pra carne porosa e fria da massa que cobria a granja e

notar que um brilho pulverizado estava tentando entrar nela...(NASSAR

1992, p. 29)

A personificação do sol, da cerração e do “brilho pulverizado” torna a

natureza viva em “Um copo de cólera”, fazendo com que o ambiente natural e

selvagem se pareça com o ser humano e vice versa (lembrando que os

personagens também ganham características de animais e de outros

símbolos pertencentes à natureza).

Na página seguinte, o autor utiliza novamente uma série de

personificações, mas neste momento elas são feitas com partes do corpo. Da

mesma forma que os pés, as mãos e os dedos foram personificados nos

capítulos anteriores, neste ponto do livro os pulmões e os olhos o são. Em

um momento sentado no terraço de sua casa, ele diz: “sentia os pulmões me

agradecerem os dedos cada vez que o cigarro subia à boca”. Aqui a voz do

corpo torna-se muito evidente. Ao invés de expressar esta mesma ideia de

forma padrão (afirmando que o cigarro dá prazer ao fumante), Raduan

Nassar deixa o homem de lado e torna cada pedaço de seu corpo um homem

completo. Esse recurso reforça o sentimento das personagens e garante

efeito poético ao texto, dando vida àquilo que não é vivo. No mesmo trecho,

os olhos dele também são personificados: “meus olhos de repente foram

conduzidos”. A figura acaba por dar vigor e autonomia a coisas que não são

autônomas, deixando clara a dependência entre estas mesmas coisas e o ser

que as possui (no caso, a personagem masculina).

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Neste momento de “Um copo de cólera”, surge o problema que

desencadeia todos os conflitos posteriores. A personagem masculina vê um

rombo em sua cerca-viva, resultado de um ataque de formigas saúvas. Ao

enxergar isso, ele narra o próprio nervosismo, cujo motivo é logo questionado

por sua parceira (a estrutura sintática de pergunta fica clara aqui), e à qual

ele não responde. A personagem masculina utiliza, então, uma metáfora para

explicar o seu estado de espírito (“...eu estava uma vara vendo o estrago...”),

deixando clara a sua ira. Esta mesma ira causa uma reação na personagem

feminina, que, de acordo com a personagem masculina, afirma: “não é pra

tanto, mocinho que usa a razão”. Aqui, é interessante observar a questão da

voz que narra o texto. Da forma que a personagem masculina descreve o

diálogo, a fala dela ganha um tom irônico. Dessa maneira, pode-se refletir a

respeito do tom utilizado por ela, já que o retrato da personagem masculina

simplesmente mostra uma versão do diálogo, e não o diálogo real. A ironia e

a autoridade relacionadas ao falar da personagem feminina são colocadas na

obra por ele, mas não são necessariamente características da voz feminina.

Esta caracterização abre portas para a reflexão das personagens do texto a

respeito do próprio discurso, caracterizando a metalinguagem.

Após algumas considerações a respeito do diálogo entre as

personagens, o narrador (ele) faz a primeira reflexão sobre a construção da

linguagem na obra:

...eu que ficando no entrave do “mocinho” podia perfeitamente lhe dizer “fui

mais manipulado pelo tempo” (se bem que ela não fosse lá entender que

vantagem eu tirava disso), passando-lhe também um sabão pelo uso,

enfadonho no fundo, da ironia maldosa, não que eu cultivasse um gosto

raivoso pelo verbo carrancudo, puxando aí pro trágico, não era isso e nem o

seu contrário, mas a ela, que via naquela prática um alto exercício da

inteligência, viria bem a calhar se eu então sisudo lhe lembrasse que não

dava qualquer mistura ironia e sólida envergadura...(NASSAR 1992, p. 34)

Dentro das digressões a respeito do uso da linguagem, observa-se em

“Um copo de cólera” a presença de quatro vozes: a voz da personagem

masculina por ela mesma, a voz da personagem feminina por ela mesma, a

voz da personagem feminina retratada pela personagem masculina e, por

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fim, a voz da personagem masculina retratada pela personagem feminina.

Isso influencia na maneira como a linguagem é retratada. Como já discutido

anteriormente, o tom irônico da voz da personagem feminina é, no fundo, um

tom retratado pela personagem masculina, que é quem narra os seis

primeiros capítulos do livro.

Um pouco após o trecho mencionado acima, a personagem masculina

desenha o cenário teatral para o discurso da obra: “eu já puxava ali pro palco

quem estivesse a meu alcance, pois não seria ao gosto dela, mas, sui

generis, eu haveria de dar um espetáculo sem plateia”. Essa referência surge

como o início de um espetáculo que está para acontecer, o que aparece

novamente no comportamento da personagem masculina exposto na

personificação a seguir: “atrelado à cólera – eu cavalo só precisava naquele

instante dum tiro de partida, era uma resposta, era só de uma resposta que

eu precisava”. Ainda no mesmo trecho, a ideia de esperar a resposta anuncia

o início da inversão da estrutura sintática da obra (de estrutura interrogativa

para estrutura exclamativa), marcando a proximidade com o auge da trama.

O primeiro grande estouro (ou, como diz o narrador, o “desembestar”),

acontece num diálogo com dona Mariana, uma das personagens

coadjuvantes da obra.

Após esse estouro, a personagem feminina reaparece e novamente

afirma não compreender o comportamento da personagem masculina. Ele

fala a respeito do comportamento dela:

...deglutindo o grão perfeito do meu chamariz, e desenterrando

circunstancialmente uns ares de gente séria (ela sabia representar o seu

papel), entrou de novo espontaneamente em cena, me dizendo com

bastante equilíbrio “eu não entendo como você se transforma, você de

repente vira um fascista”...(NASSAR 1992, p. 38)

Esse comentário da personagem feminina acaba despertando mais

ainda a ira da personagem masculina, que discute a própria recepção desta

resposta, fazendo o uso de mais uma ilustração muito presente daqui em

diante: a do alquimista. Ele diz:

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...fiquei um tempo quieto, me limitando a catar calado duas ou três achas do

chão, abastecendo com lenha enxuta o incêndio incipiente que eu puxava

(eu que vinha – metodicamente – misturando razão e emoção num insólito

amálgama de alquimista)...(NASSAR 1992, p. 39)

A ilustração do alquimista funciona como uma substituição à figura

daquele que prepara o discurso, que utiliza os elementos mais produtivos

para tornar sua fala eficiente (que, para Reboul (1998), seria o retor).

Refletindo a respeito da recepção do discurso da outra personagem, o

narrador se coloca no lugar do ator no palco, continuando a ilustração do

teatro: “de qualquer forma eu tinha sido atingido, ou então, ator, eu só fingia,

a exemplo, a dor que realmente me doía”.

Construindo o seu discurso de forma a tornar sua palavra mais efetiva

que a palavra da personagem feminina, a personagem masculina utiliza uma

nova ilustração, a da pesca, para marcar-se como o dominador no discurso,

dizendo: “não desprezava um bom preâmbulo, era só fazer de conta que

cairia na sua fisga, beliscando de permeio a isca inteira, mamando seu grão

de milho como se lhe mamasse o bico do seio”. É interessante que a

personagem feminina atua, nessa ilustração, como se estivesse fazendo o

papel do pescador, enquanto a personagem masculina o do peixe a ser

pescado. Quem domina, segundo a voz do narrador, é o peixe. É mais uma

superposição do masculino sobre o feminino, que agora alcança, além do

campo semântico da natureza, a construção do discurso.

As ações da personagem masculina fazem com que ela retome a

ilustração teatral, agora relacionando a sua própria atuação com a da

personagem feminina:

...precisava mais do que nunca – pra atuar – dos gritos secundários duma

atriz, e fique bem claro que não queria balidos de plateia, longe disso, tinha a

lúcida consciência então de que só queria meu berro tresmalhado...eu

estava dentro de mim, eu já disse (e que tumulto!) (NASSAR 1992, p. 42-43)

Ambos passam, então, a ser percebidos como verdadeiros

personagens de uma peça. Os comportamentos e os discursos de cada um

são descritos como se fossem falas decoradas, ideias ensaiadas previamente

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e postas em prática no momento presente da obra, o que denota o

conhecimento que cada uma das personagens possui sobre a outra. Nesse

contexto, o corpo, elemento de importante expressão, continua a falar por

conta: “mudou a cara em dois olhos de desafio, os dois cantos da boca

sarcásticos”.

Com o cenário preparado e o discurso construído, dá-se início ao

conflito intenso entre ambos, que começa com uma frase em que o narrador

exclama “você aí, sua jornalistinha de merda”. É uma declaração, o que

denota uma verdadeira inversão do discurso, que daqui em diante (com

exceção das últimas páginas) passa a ser construído apenas por

declarações, não mais por perguntas.

No início da discussão, a personagem masculina utiliza a ilustração do

professor, dizendo o seguinte à personagem feminina: “o pouco que você

aprendeu da vida foi comigo, comigo”. A frase denota mais uma tentativa dele

de sobrepor-se a ela. Entretanto, ele é barrado por um discurso de tom

altamente irônico por parte dela, que passa a dirigir-se a ele como seu

“honorável mestre” e deixa-o ainda mais irritado. A sua falta de títulos

(confessada por ele mesmo) faz dele exatamente o oposto de um mestre.

Isso é reafirmado na página 47, em que a personagem masculina declara:

“de nada adiantava o gesto que destorcia a chave, eu, “biscateiro”,

(“graduado” no biscate), eu não era um “mestre”, menos ainda honorável”.

Nesse ponto da obra, começa a acontecer uma espécie de inversão de

papeis, em que o masculino, até então hegemônico, passa a ser,

gradativamente, rebaixado e a ter seu lugar ocupado pelo feminino.

As metáforas de animais, então, se misturam com a questão da

sobreposição de gêneros. Diz o homem o seguinte:

...abra minha boca e conte você mesma os dentes deste cavalo (...) nunca te

passou pela cabeça, hem intelecta de merda? Nunca te passou pela cabeça

que tudo que você diz, e tudo que você vomita, é tudo coisa que você ouviu

de orelhada, que nada do que você fazia, que você só trepava como

donzela, que sem minha alavanca você não é porra nenhuma, que eu tenho

outra vida e outro peso... (NASSAR 1992, p. 47-48)

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As respostas dela a ele continuam irônicas, o que reforça a inversão

de gêneros aqui. Ela utiliza, em seu discurso, uma ilustração que materializa

esta inversão: a do travesti. Para caracterizar o comportamento de seu

parceiro, ela afirma:

...você me faz pensar no homem que se veste de mulher no carnaval: o

sujeito usa enormes conchas de borracha à guisa dos seios, desenha duas

rodelas de carmim nas faces, riscos pesados de carvão no lugar das

pestanas, avoluma ainda com almofadas as bochechas das nádegas, e sai

depois por aí com requebros de cadeira que fazem inveja à mais versátil das

cabrochas; com traços tão fortes, o cara consegue ser – embora se traia nos

pêlos das pernas e nos pêlos dos peito – mais mulher que mulher de

verdade... (NASSAR 1992, p. 50)

É fato que essa comparação não surge para questionar o gênero na

obra, mas sim para metaforizar o comportamento da personagem masculina,

que, segundo ela, é um privilegiado que se fantasia de povo. No entanto, é

inquestionável que o seu discurso é um dos momentos de “Um copo de

cólera” em que a inversão fica evidente, já que o homem é, aqui,

transformado em mulher. Ao ouvir a metáfora, a personagem masculina

demonstra reconhecimento da capacidade retórica de sua parceira,

considerando que essa característica “não era só populismo”, e deixando

claro: “eu devia cumprimentar a pilantra, não tinha o seu talento”.

Impressionado com a parceira, após reconhecer o seu talento retórico,

a personagem masculina resolve reconstruir o próprio discurso. Ele afirma o

seguinte:

...acabei invertendo de vez as medidas, tacando três pás de cimento pra

cada pá de areia, argamassando o discurso com outra liga, me reservando

uma hóstia casta e um soberbo cálice de vinho enquanto entrava firme e

coeso (além de magistral, como ator) na liturgia duma missa negra “tinha

treze anos quando perdi meu pai, em nenhum momento me cobri de luto,

nem mesmo então sofri qualquer sentimento de desamparo, não estaria pois

agora à procura de nova paternidade, seria resgatar a minha história pr’eu

abrir mão dessa orfandade”... (NASSAR 1992, p. 52)

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Este trecho apresenta diversas questões interessantes para esta

análise. Em primeiro lugar, o discurso é exposto como uma verdadeira

construção, o que retoma a essência da atividade retórica da personagem

para fazer valer o seu argumento sobre o de sua parceira. Além disso, a

construção do discurso é relacionada, aqui, a outras metáforas e ilustrações

expostas anteriormente. A primeira delas e a ilustração do ritual religioso,

presente desde o início da obra. Neste caso, a personagem masculina se

coloca no lugar do padre, como já fizera anteriormente, procurando

demonstrar o domínio do ritual, (da missa neste caso, que metaforiza a

discussão). A sua própria palavra é comparada à palavra de um padre, figura

em quem os fieis religiosos creem quase sem questionamento. Com isso, ele

eleva o poder de sua palavra em comparação à palavra de sua parceira. Ao

mesmo tempo, a figura do ator é retomada, e junto a ela é retratada uma

entrada “magistral” de sua parte, ou seja, trazendo um discurso forte.

O discurso reconstruído fica evidente no que ele diz à personagem

feminina, evocando o seu passado de sofrimento por conta do

relacionamento com o pai e comparando-o ao seu presente. Esse jogo de

ideias constitui uma ferramenta retórica muito importante, em que a

personagem se coloca na condição quase que de vítima para se fazer mais

forte em relação ao seu oponente. Esse tipo de argumento é conhecido como

etos, se constituindo, segundo Reboul (1998), de uma estratégia em que o

orador assume determinado caráter para inspirar confiança em seu auditório

(que, no caso, é a personagem feminina). No entanto, o orador aqui

demonstra uma certa falta de sinceridade no uso desse artifício, que não

parece surtir o efeito desejado sobre ela. A personagem feminina desconstroi

o argumento utilizado mostrando a enorme distância existente entre um

“órfão” (como ele se diz ser) e um “grisalho” (o que ele de fato é).

Irritada novamente, a personagem masculina coloca em seu discurso

uma série de questões filosóficas, o que mostra a perda dos seus planos com

relação a um discurso reconstruído. A personagem feminina, vendo isso,

assume: “se largo as rédeas, ele dispara no bestialógico”. Nesse ponto, a

figura do cavalo (representada pela personagem masculina), que traz,

através do ponto de vista masculino, sinais de virilidade e dominância, ganha

característica de ser dominado, submetido aos controles de sua parceira. A

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isso, ele se questiona a respeito do atrevimento das respostas de sua

parceira, mostrando não aceitar ser dominado nesta relação, dizendo: “pode

ser até que eu tivesse algo de bovino, mas é preciso convir também em que

ela exorbitou no atrevimento ao cometer tamanha violência no nariz do meu

cavalo”.

Na página 60, a questão de quem domina e quem é dominado é

exposta em uma comparação que ele faz dela com uma policial, afirmando

não ver nenhuma diferença entre um redator chefe (que, ao longo da obra,

parece ser a profissão dela) e um chefe de polícia. Na continuação do próprio

discurso, e ainda questionando a dominação do discurso, ele utiliza a

ilustração religiosa para engrandecer seu argumento. Ela responde com a

mesma ilustração, o que se vê no trecho abaixo:

...olhe bem aqui...” eu disse chegando ao pico da liturgia, e foi pensando na

suposta subida do meu verbo que eu, pra compensar, abaixei sacanamente

o gesto “tenho colhão, sua pilantra, não reconheço poder algum!” “hosana!

eis que chega o macho! Narciso! Sempre remoto e frágil, rebento de

anarquismo!... (NASSAR 1992, p. 61 62)

Ela, mostrando seu crescente domínio na discussão, se utiliza da

ironia para derrubar os argumentos dele. Ao se colocar como o condutor da

liturgia e ser recebido com um “hosana” por parte dela, a personagem

masculina parece tentar utilizar um cleuasmo para se redimir. De acordo com

Reboul (1998), o cleuasmo é uma figura de linguagem que caracteriza o

desgabo que o orador faz de si mesmo para angariar confiança por parte do

auditório. No texto, ele, após ouvir a resposta dela, diz:

...dispenso a exortação, fique aí, no círculo da tua luz, e me deixe aqui, na

minha intensa escuridão, não é de hoje que chafurdo nas trevas: não cultivo

a palidez seráfica, não construo com os olhos um olhar pio, não meto nunca

a cara na máscara da santidade, nem alimento expectativa de ver a

minha imagem entronada num altar;... (NASSAR 1992, p. 62)

No trecho destacado, ele renuncia à imagem do padre que havia

acabado de utilizar para comparar a si mesmo. Isso demonstra o

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enfraquecimento da própria imagem, da dominância masculina em frente ao

discurso feminino dela. Ao fazer isso, ela passa, então, a compará-lo com

Lúcifer, sendo esta figura o oposto do que ele acabara de dizer que não era

(“Lúcifer e seu cão hidrófobo (...) um fechando os buracos da cerca, o outro

montando guarda até que chegue a noite”, fazendo também referência ao

cão, neste caso). Essa reviravolta de metáforas no discurso mostra que ele

se torna fraco mediante o discurso dela, chegando até a afirmar que seu

próprio discurso está longe de ser racional.

A crescente divergência de opinião entre as personagens faz aparecer

uma série de outras comparações. Ela compara-o a um fascista em função

de sua opinião extremista. Ele, por sua vez, utiliza a mesma comparação

para caracterizá-la, o que demonstra que ambos se igualam na maneira de

ser. A raiva (ou a cólera, já que este termo é parte do título do livro) passa a

se intensificar, até o instante em que ele agride a ela com um tapa no rosto

(“eu me queimando disse “puta” que foi uma explosão na boca e minha mão

voando outra explosão na cara dela”), representado pela metáfora da

explosão. A partir daí, o domínio do discurso parece ser exercido novamente

por ele, que, exercendo sua força sobre ela, passa então a controlar a

situação. Para representar isso, ele traz novamente à tona algumas

ilustrações e metáforas, como pode ser visto no trecho a seguir:

...eu tinha o pêndulo e o seguro controle do seu movimento, estava claro que

eu tinha mudado decisivamente a rotação do tempo (...) e foi bem aqui

comigo que “peraí que você vai ver só” “peraí que você vai ver ainda” foi o

que pensei dando conta de que a merda que me enchia a boca já escorria

pelos cantos, mas eu não perdia nada dessa íntima substância, ia aparando

com a língua o que me caía antes da hora, sem falar que a fumaceira do

momento era extremamente propícia ao ocultismo, não ia desperdiçar

aquela chance de me exercitar nas finas artes de feiticeiro (...) meu rosto

começou a transmudar-se, primeiro a casca dos meus olhos, logo depois a

massa obscena da minha boca, num instante eu era o canalha da cama e eu

li na chama dos seus olhos “sim, você canalha é que eu amo”... (NASSAR

1992, p. 70)

De fato, o que se vê acima é a utilização da ilustração do feiticeiro que

conduz o ritual para expor a recente troca de comando da situação, que

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agora passa a ser exercida por ele, que se representa na imagem do

feiticeiro que atua sobre sua parceira de modo hipnotizante, controlando-a

por completo. A leitura dele dos olhos dela justifica essa situação. Através

dos olhos quase falantes, ela se deixa ser conduzida por ele, expondo,

segundo a visão dele, um gosto por ser dominada. Antes disso, vale a pena

observar a representação metafórica do sentimento negativo que ele nutre

naquele momento (“a merda que me enchia a boca”), que parece extravasar

por todos os poros do corpo. Não é objetivo deste trabalho, mas é

interessante dizer que esta situação caracteriza uma hipérbole, que pode ser

definida como um exagero. A hipérbole, no entanto, surge apenas quando há

uma metáfora, que determina o simbolismo característico de determinada

representação.

Em sua posição dominante no discurso, ele passa então a descrever a

postura passiva dela, o que se confirma na imagem da hipnose ( ““sacana”

“sacana” ela disse numa entrega hipnótica, já entrando quem sabe em

estado de graça”). O corpo, então, é personificado novamente e ganha voz, e

ele utiliza ainda a ilustração de mestre para reforçar seu comando: “e

começamos a nos dizer coisas através dos olhos (essa linguagem que eu

também ensinei a ela) (...) e logo seus olhos me responderam num grito

“sacana sacana sacana”. Ainda a respeito da questão do domínio do

discurso, ela, utilizando uma metáfora, mostra aceitar a sua situação

submissa, dizendo: “você é sem dúvida o melhor artesão do meu corpo”. A

mesma ideia se reforça quando ele diz ter avaliado mal o tamanho dela,

comparando-a a uma formiga. Com essa metáfora, fica evidente que

enquanto ele cresce, ela diminui, passando a tornar a figura feminina quase

insignificante perante à figura masculina, numa inversão total do que

antecedia este trecho.

Quase como num ritual selvagem, ele a atrai como a uma fêmea,

seduzindo-a e reforçando o tom instintivo da trama que circunda as

personagens. Entretanto, após dominá-la por completo, ele a expulsa do

local, explodindo em um ímpeto de ódio. Utilizando metáforas de animais, ele

ainda afirma:

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...a tartaruga livre e desenvolta a quem eu tinha sabido como devolver o

peso e a tortura da carapaça,reduzi seu tempo de reação a uma agonia, vi o

terror nos olhos dela, não basta sacrificar um animal, é preciso encomendá-

lo corretamente em ritual... (NASSAR 1992, p. 76)

Após um intenso bate-boca, ela se retira da situação. Nisso, ele

compara a relação entre ele e ela com a sua relação com outras mulheres,

afirmando: “a femeazinha que ela era, a mesma igual à maioria, que me

queria como filho, mas (emancipada) me queria muito mais como seu

macho”. Nesse sentido, ele se coloca numa posição ora como filho, ora como

homem, mostrando a sua dupla identidade de homem adulto e ao mesmo

tempo de menino.

A saída dela é retratada por ele como o surgimento de um palco vazio,

fazendo com que um ar angustiante tome conta da situação. A personagem

masculina se sente, então, como o ator solitário em cena (“sem plateia, sem

palco, sem luzes, debaixo de um sol já glorioso e indiferente”), abrindo

caminho para que ele passe a sentir uma espécie de arrependimento por

conta do que acabara de fazer, sentindo-se dependente da personagem

feminina e trazendo à tona uma nova inversão de dominância. Neste

momento, quem passa a diminuir é a personagem masculina, que recorre

então aos fatos do passado para comentar o seu remorso naquele instante.

Em uma das lembranças, ele afirma:

...um filho só abandona a casa quando toma uma mulher por esposa e

levanta outra casa para nela procriarem, e seus filhos, outros filhos, era esse

o movimento espontâneo da natureza, procriar e com trabalho prover o

sustento da família... (NASSAR 1992, p. 79)

Aos poucos, a figura do homem (viril e sensato até então) é tomada

pelos sentimentos de um menino (frágil, sensível, inseguro). A sua angústia

se revela na voz do corpo (“os olhos formigando”, o que pode ser visto como

uma ligação com a primeira frustração dentro da obra, as formigas saúvas

que destruíram a cerca-viva) e o auge da sua queda acontece quando ele se

vê apanhado por Dona Mariana e por seu Antônio, que auxiliam-no como a

um filho, tentando desviá-lo do que acabara de acontecer. Nesse instante, ele

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afirma: “os dois tentando me erguer do chão como se erguessem um

menino”. Essa sentença reforça a diminuição da figura masculina, que perde

seus caracteres fundamentais longe da feminina. A passagem marca o auge

da distância entre os gêneros na obra, que passam a se complementar

novamente no capítulo seguinte. No entanto, a distância dará lugar á fusão

entre ambos, o que constroi o efeito de sentido mais claro da obra: expor a

ideia de que os conceitos de masculino e de feminino só existem enquanto

unidos, que se constroem porque estão lado a lado, e não distantes um do

outro.

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4.7 A CHEGADA

O último capítulo retoma a estrutura do primeiro (“E quando cheguei

na casa dele lá no 27”), a qual já foi exposta na análise do primeiro capítulo.

Isso indica o paralelismo que caracteriza a obra: as estruturas linguísticas do

início são as mesmas do fim (lembrando ainda que até o título dos dois

capítulos é o mesmo). Entretanto, este capítulo é narrado pela personagem

feminina da obra, ao contrário dos outros, o que possibilita uma análise da

linguagem dela por ela mesma e, com menor frequência, dele por ela.

O início do capítulo repete uma descrição muito parecida com a

descrição feita pela personagem masculina no primeiro capítulo, pois tanto

ele quanto ela se atentam para os mesmos elementos. Ela começa por narrar

o ambiente e o tempo, utilizando, assim como ele o fizera, uma

personificação, tornando o próprio ambiente um personagem da narrativa: “a

tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro, notando, ao descer do carro,

uma atmosfera precoce se instalando entre os arbustos”.

Ao entrar na casa, ela narra o encontro de um bilhete escrito por ele,

fazendo, então, uma análise do estilo do seu discurso: “uma mensagem bem

no estilo dele – breve, descarnada pelo cálculo, escrita ainda, com intenção,

num forjado garrancho escolar”. É interessante observar aqui a

caracterização da voz masculina pela voz feminina. A voz feminina,

caracterizada como racional e autoritária por ele anteriormente, caracteriza,

aqui, a voz masculina como fria, calculista, cheia de razão e vazia de

emoção. Isso mostra que ambas as personagens enxergam a si mesmas e

uma a outra da mesma maneira. Isso reduz as diferenças entre ele e ela, que

se aproximam cada vez mais de uma união total, de uma fusão entre

masculino e feminino.

Nas páginas 83 e 84, ela descreve o ambiente interno da casa, mais

especificamente o da sala. Recorre, para isso, à imagem dele, que não está

presente na sala no momento em que ela fala:

...inventariando sem pressa os vestígios espalhados pelo assoalho, as duas

almofadas que pouco antes lhe teriam servido de travesseiro (...) sem falar

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nas surradas sandálias de couro cru, abandonadas displicentemente como

as sandálias duma criança... (NASSAR 1992, p. 83-84)

Para descrever a personagem masculina, ela utiliza a comparação

com uma criança, o mesmo feito por ele no final do capítulo anterior (“os dois

tentando me erguer do chão como se erguessem um menino”). Ela ainda faz

o uso da palavra menino após isso, se referindo à cena da personagem

masculina dormindo quando ela chega ao quarto (“não era a primeira vez que

ele fingia esse sono de menino”). Essa comparação coloca a personagem

feminina num papel materno com relação à personagem masculina, que é

visto em sua maneira de retratar os hábitos infantis dele, que são trazidos à

tona como se uma mãe falasse sobre o próprio filho. Essa ideia se confirma

nas últimas linhas, onde ela termina seu discurso:

...fui tomada de repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e

insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura

pra receber de volta aquele enorme feto. (NASSAR 1992, p. 84)

Neste trecho, que marca o fim de “Um copo de cólera”, a relação entre

as personagens masculina e feminina torna-se uma mistura da relação entre

mãe e filho e entre homem e mulher. O sentimento de ternura, característico

de uma mãe por um filho, se une à metáfora do feto, representado pela

personagem masculina, para expor o sentimento materno. Ao mesmo tempo,

a ação de “se abrir” está intimamente ligada à sexualidade, ou seja, ao

relacionamento entre homem e mulher. A ligação entre ambas as relações se

faz através da palavra “prematura”, que, ao mesmo tempo em que trata do

anseio de uma mãe por receber um filho, expõe o desejo da mulher de

receber, dentro de si, o homem. Com essa junção entre ambos, é realizado,

finalmente, o efeito de fusão entre masculino e feminino, representando a

igualdade de gêneros e a união de ambos em um só ser ao fim do processo.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise de alguns elementos linguísticos utilizados por

Raduan Nassar em “Um copo de cólera”, é possível perceber que as figuras

de linguagem e outros recursos são muito relevantes na construção de

sentido e de argumento dentro do texto literário.

Pôde-se perceber, em primeiro lugar, que a utilização da

personificação na obra constitui um elemento relevante para dar voz a coisas

inanimadas, principalmente partes do corpo, tais como os pés, as mãos e os

olhos. Não somente isso, a personificação foi utilizada para dar vida a

elementos da natureza (a cerração e o sol, por exemplo) numa tentativa de

equiparar o vivo e o não vivo, tornando as personagens humanas mais

parecidas com o ambiente que as envolve. Juntamente com o uso das

metáforas e comparações, as quais reduzem o homem à sua condição

natural, a personificação eleva a natureza e as partes que compõem o corpo

a um nível quase humano.

Uma segunda questão foi a utilização de ilustrações. Sobre isso, pode-

se dizer que elas, juntamente com as metáforas, trabalham no sentido de

representar possíveis analogias entre os fatos narrados na obra e outras

situações externas a ela. Através da ilustração do ritual religioso, por

exemplo, a personagem masculina se coloca na posição de dominador do

discurso, equiparando-se tanto à figura do padre (no caso da liturgia católica)

quanto à do xamã (quando são feitas referências a um feiticeiro). Da mesma

maneira, através da ilustração do alquimista a personagem masculina

representa a importância do ato de construção do discurso, uma tarefa do

retor, e através da ilustração do teatro as ações adquirem características do

drama, tais como a existência de um palco, a plateia e os atores

(representados pelas próprias personagens), conferindo ao livro uma

equiparação entre a vida real e a ficção.

Com relação ao intenso uso de metáforas e comparações, pôde-se ver

que ele é feito para caracterizar as personagens da obra. Na tentativa de

retratar o lado instintivo das personagens, num terreno dominado pela

emoção, o autor utilizou animais que pudessem servir de comparação com as

pessoas na obra (cavalo, boi), além de outros elementos da natureza que

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tiveram a mesma função (ciprestes, trepadeira). Essas comparações e

metáforas distanciam as personagens de sua racionalidade humana e

elevam o seu lado sentimental e animalesco, quase selvagem, mostrando a

busca de Raduan Nassar pela representação da essência não racional do ser

humano.

Por fim, o paralelismo entre o início e o fim de “Um copo de cólera” dá

à obra um caráter circular, enquanto o quiasmo sintático (a mudança da

estrutura interrogativa para declarativa) marca uma mudança na trama do

livro. O uso destes recursos linguísticos para demarcar a estrutura narrativa

eleva a importância da linguagem no conteúdo da obra, cuja forma e cujo

conteúdo são frutos de reflexões a respeito do uso da língua.

É relevante dizer que há uma fonte inesgotável de elementos a serem

analisados na obra, principalmente no capítulo “O esporro”, o mais extenso e

produtivo. Levando-se em consideração essa característica, tentou-se

delimitar algumas questões a serem analisadas, e, mesmo dentro destas

questões, foi necessário deixar de lado alguns exemplos das estruturas

analisadas. Do contrário, pode-se dizer que este trabalho não teria fim,

tamanha a abundância de aspectos e casos a serem avaliados.

Com a combinação dos elementos analisados neste trabalho, Raduan

Nassar constroi uma reflexão a respeito da relação entre o masculino e o

feminino, relação esta que é aqui representada através de série de

metáforas, ilustrações e personificações que contribuem com o caráter

simbólico do texto. Além disso, o autor faz uma analise do discurso como um

tema central do livro, fazendo da relação entre as personagens um

acontecimento linguístico por si só. Dessa forma, o texto mostra um caráter

metalinguístico, associando o uso de determinados recursos da linguagem à

caracterização e ao comportamento das personagens. É claro que há uma

série de outras inferências desta obra podem ser analisadas nesse sentido,

mas a delimitação foi necessária em função do propósito deste trabalho.

Como mencionado no parágrafo anterior, a análise de recursos linguísticos é

inesgotável quando se trata de literatura, principalmente em um texto como

“Um copo de cólera”, em que todos os tipos de recursos linguísticos são

utilizados para marcar a quebra da linguagem comum e construir uma

verdadeira arte verbal.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. trad. Ivone Castilho Benedetti NASSAR, R. Um copo de cólera, São Paulo: Companhia das Letras, 1992 BARTHES, R. “Linguística e Literatura”. In: Inéditos I: teoria. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. JAKOBSON, R. “Linguística e poética”. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2005. COHEN, J. Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Cultrix, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974. trad. Álvaro Lorencini e Anne Arnichand