Irmandades Do Rosário

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BORGES, Célia Maia. Escravos E Libertos Nas Irmandades Do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII E XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005. Sobre a autora: Graduada em História em 1982 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concluiu o Mestrado em Sociologia também pela UFMG em 1989 com a tese “Amor E Conflito: a relação das pessoas com uma cidade histórica.” Em 1998 conclui seu doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com um período de pesquisa em Coimbra. É deste doutorado que sai a tese publicada da qual o presente trabalho tratará: “Escravos E Libertos Nas Irmandades Do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX.” Célia Maia é professora associada 4 do Departamento de História e do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de História com ênfase em História da Cultura e das Religiões. Sua pesquisa tem ênfase nos temas de associações leigas, ordens religiosas, beatas, eremitas, leituras e imagens sacras (disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do? id=K4786928E8 ). A obra: Trata-se de uma pesquisa no campo religioso que tem como objeto de estudo as Irmandades do Rosário em Minas Gerais, enxergando-as como uma forma organizacional capaz de criar brechas na estrutura vigente da sociedade colonial. Seria, portanto, uma forma de iniciativa, tanto individual quanto coletiva, que possibilitava “(...) a continuidade de uma existência social 1

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BORGES, Célia Maia. Escravos E Libertos Nas Irmandades Do Rosário: devoção e solidariedade

em Minas Gerais – séculos XVIII E XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.

Sobre a autora:

Graduada em História em 1982 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

concluiu o Mestrado em Sociologia também pela UFMG em 1989 com a tese “Amor E Conflito: a

relação das pessoas com uma cidade histórica.” Em 1998 conclui seu doutorado em História pela

Universidade Federal Fluminense (UFF), com um período de pesquisa em Coimbra. É deste

doutorado que sai a tese publicada da qual o presente trabalho tratará: “Escravos E Libertos Nas

Irmandades Do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX.” Célia

Maia é professora associada 4 do Departamento de História e do programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência na área de História com ênfase

em História da Cultura e das Religiões. Sua pesquisa tem ênfase nos temas de associações leigas,

ordens religiosas, beatas, eremitas, leituras e imagens sacras (disponível em:

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4786928E8).

A obra:

Trata-se de uma pesquisa no campo religioso que tem como objeto de estudo as Irmandades

do Rosário em Minas Gerais, enxergando-as como uma forma organizacional capaz de criar brechas

na estrutura vigente da sociedade colonial. Seria, portanto, uma forma de iniciativa, tanto individual

quanto coletiva, que possibilitava “(...) a continuidade de uma existência social viável¹.” Esta

continuidade social é, na verdade, a possibilidade do escravo de criar espaços nos quais ele poderia

se afirmar como pessoa que incidiam tanto no campo político como no econômico.

A escolha específica pelas Irmandades do Rosário justifica-se pelo seu sucesso como

projeto, existindo, inclusive, dados que comprovam o fato dessas Irmandades terem tido

rendimentos maiores que a da elite colonial, a Irmandade do Santíssimo Sacramento. Outro motivo

pelo qual a autora teria escolhido esse objeto de estudo está presente na especificidade do

catolicismo em Minas Gerais e nos seus laços com os negros. É importante ressaltar que a pesquisa

foi centrada em organizações fraternais específicas de negros como as de Tiradentes, Vila Rica,

Mariana e São João Del Rei (BORGES, 35).

Segundo Borges, todos esses fatores que constituem a peculiaridade das Irmandades do

Rosário geraram relações próprias protagonizadas por diversos grupos que davam uma dinâmica

própria a essas formações sociais. Nesse sentido, as irmandades eram espaços de socialização e

trocas culturais que, através da aproximação de indivíduos, buscavam o seu semelhante (BORGES,

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24). Estas eram, também, formas de mobilização em se tratando do contexto local e, além do papel

fraternal, desempenhavam o papel político através de reivindicações e soluções de conflitos.

O recorte temporal escolhido para a pesquisa foi de 1745 a 1808. A obra está divida em

prefácio, introdução e cinco capítulos: O fenômeno confrarial na Capitania de Minas; A

participação na confraria; A Irmandade do Rosário: culturas em negociação; A apropriação dos

cultos; A festa do Rosário: resgate de um ideal. E, por fim, a conclusão.

No decorrer do livro, a autora busca comprovar sua tese, segundo a qual o sincretismo

mineiro fora extremamente peculiar em comparação às outras regiões do Brasil e que, nesse

contexto, criaram-se espaços de solidariedade, nos quais os fins devocionais de ajuda mútua

constituíam a característica principal, seguindo o modelo confrarial português (BORGES, 44).

Esses espaços seriam, portanto, brechas encontradas na estrutura da sociedade colonial para

reivindicar certa autonomia e possibilitar a integração entre os irmãos, sobretudo os negros vindos

de diferentes nações africanas, estabelecendo uma linguagem em comum². No entanto, ao mesmo

tempo em que apresenta um caráter de resistência, esse espaço evidencia de maneira ambígua a

dependência dos grupos escravizados em relação aos instrumentos de dominação da elite colonial.

Para Célia Maia, um dos fatores fundamentais que possibilitou a relativa autonomia das

Irmandades do Rosário foi o fato da Coroa ter proibido a entrada de ordens religiosas nas Minas,

dando uma feição própria a estas, tornando-as absolutamente diferentes das litorâneas. Assim, é

preciso compreender que os europeus trouxeram os modelos de confrarias para o Brasil, contudo

eles se confrontaram com modelos e associações pré-existentes entre os africanos, gerando dentro

de um contexto local uma organização muito específica.

Nesse sentido, podemos pensar numa organização cuja composição é constituída em grande

parte por leigos. Lembremos-nos da posição da Contra-Reforma a respeito da atuação dos leigos em

instituições ligadas à Igreja. Dessa maneira, podemos entender que a relação entre irmandades e

Igreja fora permeada por conflitos e a Irmandade do Rosário chegara a ser alvo de perseguição.

Mas, diversas outras irmandades sofreram com as políticas repressivas do Estado e da Igreja, o que

gerou uma aproximação entre os irmãos de diferentes confrarias, capacitando-os a defesa de seus

próprios interesses, independente dos grupos dominantes (BORGES, 71). Ou seja, as relações com

a Igreja e com o Estado, para além das benesses, das brechas e fendas encontradas, geraram

conflitos que não trouxeram apenas prejuízos, mas foram capazes de reforçar laços que

contribuíram de maneira efetiva para a manutenção da autonomia das irmandades em Minas.

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Haja vista que essas irmandades eram compostas por pessoas de diversas etnias, inclusive

havia a diversidade dentro de uma mesma irmandade, não só o catolicismo funcionou como

denominador comum, mas, também, os estatutos foram fundamentais para a organização e o

funcionamento dessa irmandade. Portanto, havia hierarquia e indivíduos responsáveis pela

administração das irmandades que, juntos aos estatutos, atribuíam dinâmicas ímpares em cada uma

delas. Nesse sentido, encontram-se evidentes as diferenças entre as organizações fraternais de

Minas em comparação com às do litoral.

Na questão da construção da identidade e do sincretismo religioso, a autora cunha um termo

interessantíssimo: culturas em negociação (BORGES, 127). O termo é usado para explicar o

processo de intercâmbio cultural, sobretudo no campo religioso, nas manifestações artísticas. Para

Célia Maia, as festas e as manifestações artísticas eram as principais maneiras de socialização dos

negros e a partir disto seria possível construir uma identidade, tendo, portanto, a noção de

pertencimento a um grupo. O principal objeto de análise do terceiro capítulo, que trata dessa

questão, é a música, mais precisamente a da arte barroca. À luz da cultura dominante, os negros

conduziram o processo de sincretismo dando significados da sua religião e cultura às formas da

religião e da cultura da elite colonial.

Ainda dentro do processo sincrético, os santos tiveram um papel fundamental na conversão

dos negros ao catolicismo (BORGES, 153). Por terem convergências em relação ao culto aos

mortos, por exemplo, alguns grupos teriam sido mais permeáveis à aceitação das confrarias, como

os Bantos (BORGES, 157). E semelhanças, como a ideia de ancestralidade relacionada aos santos,

podem ter facilitado os processos de resignificação e apropriação. Dessa maneira, processos de

resignificação dos símbolos da religião dominante foram cruciais para apropriação pelos negros da

religião católica. Em suma, a ação contínua desse processo moldou um catolicismo plural,

multiculturalista, resultando numa espécie de religião católica com forte presença de elementos de

candomblé e congado.

É na festa do Rosário – ritual mais importante da irmandade – que encontramos a melhor

representação de toda estrutura e atuação das Irmandades do Rosário. Nela identificamos a

ritualização de diversos conflitos, dando um forte significado simbólico à festa; estes são

dramatizados e superados de maneira simbólica. Além disso, permitem que laços sociais sejam

solidificados (BORGES, 38). Os rituais eram praticados numa festa que tinha sua origem no

catolicismo europeu dos fins do século XVI, por ordem do Papa Gregório XIII (BORGES, 173) e,

no entanto, tinham uma diversidade muito grande, sobretudo por influência do sincretismo, com

fortíssima presença de elementos e celebrações, as quais representavam partes dos conflitos

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supracitados, das religiões de matriz africana. Porém, o processo litúrgico da celebração

permaneceu com a estrutura tradicional do ritual em algumas localidades em virtude do controle

político, econômico e religioso, como é o caso de São João Del Rei. Concessão e repressão por

parte das elites dominantes variavam de acordo com os interesses desses grupos (BORGES, 180).

Entretanto, encontra-se em muitos locais rituais de origens africanas, como o ritual da

sagração, os “Reis do Congo”, reproduzindo-se a realeza e o ritual do homem da máscara,

característico de povos africanos, cujo principal instrumento simbólico representativo era

confeccionado em Angola: as máscaras. Além da apropriação, da resolução de conflitos e da

manifestação artística e identitária, as festas do Rosário foram fundamentais para a sociabilidade

entre os grupos de regiões vizinhas, integrando, dessa forma, diferentes grupos e, portanto as

diferenças. Era a celebração da fraternidade, da solidariedade, da resistência e da participação dos

irmãos negros na constituição de uma cultura regional plural, misteriosa e muito rica.

Célia Maia escreve “(...) a palavra participação resume o nosso trabalho.” (BORGES, 29). É

nesse sentido que ligamos os fios que perpassavam a obra. Através de um olhar analítico e crítico

voltado para as Irmandades do Rosário, entendemos o papel do negro naquele contexto na região de

Minas e na participação desses grupos subalternos da sociedade na criação de arte, de cultura; de

uma nova estrutura social com uma hierarquia própria; da busca por autonomia e na mobilização

em defesa de seus interesses. Foi em função da participação dos irmãos que se tornou possível a

criação de uma identidade coletiva, a sobrevivência de estruturas sociais próprias e a realização de

seus rituais, muito embora com base nas tradições da religião dominante e na resignificação e

apropriação do catolicismo.

1 Trecho presente no prefácio da obra de Célia Maria Borges, que fora escrito por Pierre Sanchis, professor emérito da

UFMG e especialista no campo religioso

2 Entendo o uso dessas brechas como mecanismos para reivindicar autonomia como semelhante à ação dos escravos -

como os apadrinhamentos - nas fazendas do Rio no texto “Elite das Senzalas e Nobreza da Terra” do professor João

Fragoso. Bem como a ambiguidade das relações entre senhores e escravos.

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Análise Crítica:

A obra é muito interessante, pois nos mostra uma perspectiva pouco explorada do

sincretismo religioso. É a apropriação contrária do que estamos acostumados a nos defrontar. É o

negro se apropriando da religião do branco europeu conferindo ao catolicismo elementos de suas

tradições – diferente da implantação de símbolos católicos nas religiões de matriz africana -, a fim

de usá-lo de acordo com seus interesses e de maneira que ele pudesse trazer unidade e identidade a

grupos distintos do continente africano que viviam sob as garras do escravismo colonial. Podemos

ver como esses grupos foram perspicazes nos usos das brechas disponíveis para possibilitar a sua

existência e não apenas deixaram que fossem oprimidos. Assim como em alguns textos trabalhados

em sala, tanto sobre índios como sobre escravos, que desmistificam a relação senhor e escravo,

índio e colonizador, pude tomar conhecimento de mais uma forma no campo religioso e cultural que

foi usada como ferramenta para quebrar os paradigmas estabelecidos nas relações sociais da

colônia.

As fontes usadas são múltiplas e interessantes. Fontes primárias para tratar dos rendimentos

e gastos com celebrações, das relações das irmandades com outras irmandades e com a Igreja;

utiliza-se também de diversas obras de sociólogos, antropólogos e historiadores para aplicação de

múltiplos conceitos tornando-os bem claros e para traçar um panorama geral dos assuntos

abordados no livro, como a origem das confrarias em Portugal, permitindo-nos estar

contextualizados no processo histórico. No entanto, a pesquisa obedece a um recorte temporal e

espacial muito específico e aborda os aspectos culturais africanos que estão ligados de maneira mais

direta às Irmandades do Rosário. Haja vista a limitação das fontes e das especificidades do objeto

de estudo, acredito que a abordagem poderia ter sido um pouco mais ampla, apesar de se tratar de

História Cultural, no sentido de fazer paralelos com algumas outras instituições e manifestações de

grupos subalternos que buscavam autonomia e legitimação.

No mais, a narrativa é bem estruturada e interessante, e a obra é extremamente

enriquecedora, nos traz lições do catolicismo europeu e do catolicismo colonial. Além das relações

para além da estratificação enraizada da sociedade colonial, mostrando o papel do negro na

formação da nossa cultura no campo das artes, no campo religioso, econômico e político; e da sua

briga na busca por seu semelhante, da construção da coletividade e na participação das decisões

locais, na origem e na resolução dos conflitos.

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