Isolamento Térmico e Armazenamento de Energia

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  • 8/2/2019 Isolamento Trmico e Armazenamento de Energia

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    Joo Arajo Pereira Coutinho

    CICECO, Departamento de Qumica da Universidade de Aveiro

    a minha av e o astronautamateriais de mudana de fasepara isolamento trmico earmazenamento de energia

    Lembro-me de observar a minha av em tardes da minha infncia a dobar uma meada del com um bloco de parafina na mo por onde passava o fio cavando profundos sulcosnaquela 'pedra' cerosa e estranhamente leve... Nenhum dos dois imaginava que um quar-to de sculo mais tarde as parafinas fossem incorporadas em fibras txteis de uma formabastante mais elaborada e para fins bem menos prosaicos do que o impedir que a meada seensarilhasse... Qual de ns, o olhar perdido na insegura chama de uma vela deste adventoimaginaria que 'Histria de uma vela', contada h sculo e meio por Faraday, se pudessemjuntar novos captulos no dealbar do terceiro milnio? Mas assim . Deixarei as velasgigantes, que so o pesadelo da explorao petrolfera em guas profundas, para um outrodia enquanto volto s recordaes de infncia. Falar de velas um tema bastante apropria-do poca e gostaria de vos explicar como elas nos podero ajudar a passar um Natal maisquente, no pela libertao de calor na sua combusto, mas ao vestirmo-nos com elas ouao habitar dentro de uma.

    Pretendia com isto introduzir-vos aos materiais de mudana de fase, ou materiais termo-activos como gosto de lhes chamar. Quando falamos de acumulao de energia ou de isola-mento trmico pensamos normalmente em materiais que funcionam de uma forma passiva,acumulando calor sob a forma de calor sensvel atravs de capacidades calorficas ou demassas elevadas e minimizando a transferncia de calor com baixas condutividades trmica.A natureza dotou no entanto o nosso organismo de formas bem mais eficientes de regulao

    trmica acumulando ou dissipando energia atravs de reaces qumicas ou fsicas. Quandoaquecemos em demasia o corpo exsuda gua que vai forar o abaixamento de temperaturaatravs da mudana de fase do lquido usando o calor latente de evaporao para arrefeci-mento. Este mesmo princpio utilizado para manter fria uma bebida num quente dia devero pela adio de uns cubos de gelo, mtodo bem mais eficiente do que simplesmentearrefecer a bebida a temperaturas baixas pois a entalpia de fuso do gelo vai consumir o calorque lhe chega a uma temperatura constante de 0 C impedindo assim o aquecimento da bebi-da. (Para os que gostam de nmeros, o calor necessrio para fundir um cubo de gelo de2 cm de lado aqueceria em 15 C 50 cm3 de uma bebida.) Da mesma forma que todassubstncias, em qualquer estado fsico que se encontrem, tm uma determinada capacidadecalorfica, tambm quase todas (a menos que se decomponham antes ou se encontrem numafase amorfa) tm associada a elas um entalpia de mudana de fase que poderia ser usada

    para armazenamento de energia ou isolamento trmico. A especificidade da aplicao vai noentanto impor mltiplas restries. importante que a substncia apresente energias demudana de fase elevadas de forma a armazenar um mximo de energia num mnimo devolume (ou massa), que a temperatura de transio se encontre na gama de temperaturasa que desejamos termoestatizar o sistema ou em que a energia esteja disponvel, e que asubstncia no seja nociva para o sistema em que vai ser utilizada.

    Joo AP Coutinho Engenheiro Qumico licenciado

    pela FEUP e doutorado pela Universidade Tcnica da

    Dinamarca. Tem desenvolvido investigao na rea da

    Termodinmica Aplicada e em Biotecnologia, liderando

    um grupo de investigao nestes domnios.

    actualmente Professor Associado no Departamento de

    Qumica da Universidade de Aveiro desenvolvendo

    funes docentes na licenciatura em Engenharia Qumica

    desta Universidade.

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    Apesar destas restries h ainda assim um nmero considervel de candidatos a materiais

    termoactivos de mudana de fase para armazenamento de energia e isolamento trmico.gua, alguns sais, e ceras so as principais substncias actualmente em estudo ou comer-cializao como materiais de mudana de fase. De entre as ceras, as mais populares peloseu custo, acessibilidade, estabilidade, flexibilidade (gama alargada de pontos de fuso entre0 e 80 C) e baixa toxicidade so sem dvida as parafnicas, ou sejam as nossas velas... Aideia simples como todas as ideias geniais: defina-se uma temperatura ideal para o nossosistema (produto, corpo, casa), escolha-se uma cera cujo ponto de fuso corresponda aessa temperatura, quando o calor excessivo as ceras fundem, a temperatura constante,consumindo essa energia em excesso em valores que podem chegar aos 250 kJ/ kg. Quandoa temperatura baixa e o calor se torna deficitrio, ento a cera liberta, sempre a temperatu-ra constante, a energia trmica armazenada. Consegue-se assim um material que consomea energia quando em excesso e a repe quando ela deficitria minimizando as oscilaes

    trmicas a que est sujeito o sistema.

    Imaginemos agora como seria utilizar uma roupa feita de fibras que incorporassem estesmateriais termoactivos com um ponto de fuso ajustado para 37 C. Corremos pela manhpara apanhar o autocarro rumo ao trabalho ou entramos numa sala demasiado aquecida eas ceras incorporadas nas fibras da nossa roupa tratam de acomodar o calor em excessosempre a uma temperatura prxima da do corpo no permitindo que este aquea. Assimque samos de novo para o exterior, em lugar do choque trmico habitual, teremos a nossaroupa no apenas a impedir que o nosso corpo arrefea mas activamente a libertar calorpara o aquecer. Parece fico cientfica? Comeou de facto por s-lo. Esta tecnologia foi ini-cialmente desenvolvida em cooperao com a NASA para proteger astronautas mas halgum tempo saiu do espao e hoje est disponvel em qualquer centro comercial. Duasempresas, a Freudenber com o Confortempe a Outlast com o Smart Fabric, so deten-toras de mltiplas patentes para incorporao destes materiais em fibras, tecidos e em notecidos e partilham este mercado. Hoje se quisermos umas meias ou botas Timberland,umas luvas North Face, equipamento para ski Burton, material desportivo Puma, umascalas Dockers, um bluso Camel, um fato Benvenuto, pronto a vestir Pierre Cardin ou sim-plesmente um edredo e almofada da Quilts of Denmark entre muitos outros produtos (umavisita pgina da Outlast poder surpreend-lo), poderemos adquiri-las sem esforo noshopping local.

    A tecnologia de incorporao dos materiaisde mudana de fase nos txteis passa por

    confinar as parafinas em microcpsulas dealguns mcron de dimetro que depoispodem ser embebidas na prpria fibradurante a sua fiao ou simplesmente dis-persas no tecido durante a sua produoconforme mostrado na Figura 1 (umaestratgia semelhante pode ser usada paraaromas ou outro tipo de compostos a seremlibertados e / ou absorvidos enquanto seusa uma roupa).

    De umas meias ou um fato, para uma casa s um salto de escala. A ideia a mesma mas

    aplicada agora nossa 3 pele (se pensarmos na roupa como a segunda). Revestir asparedes de uma casa com uma grossa camada de polmero isolante como passar o anovestido com uma camisola de l. Talvez agradvel no inverno mas desconfortvel novero... E se, em lugar de revestir paredes com polmeros, de baixa condutividade trmica certo, mas tambm de reduzida capacidade de armazenamento de energia, utilizassemosmateriais de mudana de fase incorporados no revestimento ou estrutura de forma a

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    Figura 1 Incorporao de microcpsulas num txtil

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    coluna[ materiais de mudana de fase para isolamento trmico e armazenamento de energia ]

    conseguir com eles recriar o conforto trmico proporcionado por umas grossas paredes de

    alvenaria ou adobe? Se, tal como descrito anteriormente, estas paredes pudessem retardara transferencia de calor absorvendo a energia trmica em excesso para a repor mais tardequando esta se tornasse necessria? Se fosse possvel obter o efeito de uma parede deTrombe com uma muito menor espessura deslocalizando-a por toda a habitao. justamente isso que tentam fazer mltiplos grupos de investigao em todo o mundodesenvolvendo produtos que comeam agora a entrar no circuito comercial. A BASFproduz e comercializa Micronal (www.micronal.de), parafinas microencapsuladas quepodem ser dispersas em rebocos de revestimento ou usadas para produzir placas de pladur.A incorporao de Micronalem rebocos foi feita na Alemanha pela Maxit, e em placas degesso pela Knauf. A aplicao foi feita com sucesso na recuperao de uma zona residen-cial cujo projecto ficou conhecido como 'Casas 3 litros' (www.3lh.de). O objectivo erareduzir o consumo de energia de uma habitao, dos actuais 25 para 3 litros de fuel de

    aquecimento por m2 e por ano reduzindo assim as emisses de CO2 em 80% Neste projectoos materiais de mudana de fase, incorporados em revestimentos foram, no os nicos, masprotagonistas de relevo.

    Em Portugal a Weber e Broutin Portugal SAest a desenvolver rebocos com parafinasmicroencapsuladas que em breve deveroestar disponveis no mercado portugus.Um reboco de 2 cm de espessura com10-20% de parafinas microencapsuladastem uma capacidade de armazenamento deenergia equivalente a uma parede de betocom 20 cm de espessura. A Figura 2 mostrao aspecto de um reboco contendomicrocpsulas de parafina.

    Materiais de mudana de fase em suportes porosos so disponibilizados por uma outraempresa com sede tambm na Alemanha, Rubitherm (www.rubitherm.com). Usando avasta experincia Sul-africana em sntese de Fischer-Tropsch a Rubitherm produz parafinas

    com distribuies muito estreitas que tm excelentes caracters-ticas para uso como materiais de mudana de fase. ORubithermGR, um granulado poroso de SiO2 contendo cerca de35% de parafinas, disponvel com vrios pontos de fuso, est a

    ser utilizado para armazenamento de calor em sistemas de aque-cimentos por piso radiante. A acumulao de energia usando afuso das parafinas muito elevada permitindo poupanasenergticas considerveis. Uma anteviso desta aplicao apre-sentada na Figura 3. Este sistema poder ser ainda mais eficientese ligado a um sistema de aquecimento solar com a possibilidadede transferir a energia armazenada durante o dia para a noitequando as temperaturas so mais baixas e as necessidades deaquecimento maiores. Empresas como a TEAP comercializamsolues semelhantes para o mesmo fim usando outros materi-ais de mudana de fase como sais hidratados. Estes so dos

    poucos comercialmente disponveis em Portugal (www.cleanvita.com).

    Outros produtos da Rubitherm visam a utilizao em acumuladores de energia ligados acolectores solares com uma capacidade de armazenamento por unidade de volume oumassa muito superior aos suportes convencionais. Solues anlogas com outros materiaisso propostos tambm por outras empresas (www.cristopia.com; www.climator.com).

    Figura 2 Incorporao de microcpsulas num reboco

    Figura 3 Incorporao de materiais de mudana de fase

    numa parede

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    Conforme mencionado algumas destas tecnologias esto j

    disponveis no mercado alemo e espera-se que estejamdisponveis em Portugal dentro de pouco tempo. Entretantopor c alguns grupos de investigao vo abordando esteapaixonante mundo dos materiais termoactivos. O Centro deCincia e Tecnologia Txtil da Universidade do Minho(www.2c2t.uminho.pt) tem desenvolvido actividades relacionadascom a microencapsulao de PCMs e a sua incorporao emtxteis. Ns em Aveiro estamos a desenvolver compsitos decelulose e cortia com materiais de mudana de fase que aliem asboas capacidades de isolamento trmico de um material capaci-dade de armazenamento de energia do outro e em colaboraocom o INEGI a produzir betes polimricos incorporando materiais

    de mudana de fase (sweet.ua.pt/ ~ jcoutinho). Os resultadostm sido muito interessantes e enquanto esperamos pela Casa doFuturo vamos tentar em 2006 passar de provetes laboratoriaispara a construo de um prottipo de um compartimento paratestar e validar os materiais desenvolvidos.

    A Casa do Futuro (www.egi.ua.pt/ casadofuturo) no apenas acasa do amanh, um projecto multidisciplinar a decorrer na

    Universidade de Aveiro quevisa a construo de uma casareal com a incorporao doestado da arte das tecnologiasconstrutivas, umas quantasdesenvolvidas na UA, e queestou certo ir incorporar umaboa dose de materiais demudana de fase. Espero que,em colaborao com a Webere Broutin e outras empresasenvolvidas no projecto e inter-essadas nesta tecnologia, aCasa do Futuro se possa tornarum polo difusor da utilizao

    dos materiais de mudana defase na construo civil nonosso pas.

    Mas o futuro deste materiais no para por aqui. O seu uso tende aestender-se a todos as situaes em que algum se sinta descon-fortvel termicamente ou algo necessite de ser mantido a uma tem-peratura controlada, de um banco de automvel a um circuito elec-trnico. O limite? Apenas a nossa imaginao.

    Figura 4 Incorporao de materiais

    de mudana de fase num piso com

    aquecimento

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