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344 RESBCAL, São Paulo, v.1 n.4, pg. 344-354, set./out./nov. 2012 ISSN 2238-1589 RESUMO ARTIGO DE REVISÃO 1 Médico do Programa de Residência Médica em Neurologia Clínica - UNIFESP 2 Graduando em Medicina, UNIFESP Autor para correspondência: Wladimir Bocca Vieira de Rezende Pinto Endereço para correspondência: [email protected] Recebido para publicação: 01/07/2012 Aceito para publicação: 30/11/2012 MODELOS ANIMAIS DE ATAXIAS CEREBELARES HUMANAS Wladimir Bocca Vieira de Rezende Pinto 1 , Paulo Victor Sgobbi de Souza 2 As ataxias cerebelares representam um conjunto de doenças neurológicas bastante emergentes e em rápida atualização tanto no número de condições clínicas quanto de proposições e ferramentas diagnósticas. Há grande desconhecimento, contudo, em relação aos mecanismos fisiopatológicos envolvidos e em abordagens terapêuticas eficientes. Assim, o desenvolvimento de modelos animais para ataxias cerebelares humanas para estudo da história natural e de novos esquemas de tratamento tornou- -se bastante proeminente na área da Neurologia Experimental associada às técnicas modernas de mutagênese em Biologia Molecular. Esta revisão objetiva resumir os principais modelos animais existentes para as ataxias cerebelares adquiridas e here- ditárias mais prevalentes na prática clínica. Palavras-chave: Modelos animais. Ataxias cerebelares. Mutagênese. Transgenia. 1 INTRODUÇÃO As ataxias cerebelares representam grupo im- portante de doenças em termos epidemiológicos dentro da Neurologia em especial quando se fala das doenças neurodegenerativas da infância e do adulto. Apesar de difícil caracterização epidemio- lógica, há como se dizer que as ataxias represen- tam um dos grupos de condições clínicas isolada- mente mais frequentes, apesar da sua sobreposição muito intensa com outros grupos importantes de doenças neurológicas, como as neurovasculares, desmielinizantes e inflamatórias. O termo “ataxia” implica a existência de decomposição irregular do ajuste motor fino, postural e mecânico, do movi- mento, ou simplesmente a incoordenação motora para movimentos voluntários finos coordenados ou ordenados (de musculatura axial, apendicular, bulbar ou ocular extrínseca), em geral relacionada a lesões ligadas ao cerebelo e às vias neuroanatô- micas a ele relacionadas (provenientes de tratos espinocerebelares ou vestíbulocerebelares), apesar do envolvimento macroscópico de tais estruturas não ser imprescindível para a gênese dos sinais e sintomas do quadro de ataxia. Para o uso do termo ataxia, deve-se subentender que a incoordenação motora existente não decorra de fraqueza muscu- lar, independente da origem da mesma. Lesões dos fascículos grácil e cuneiforme na coluna posterior da medula espinal (ou dos nervos periféricos) e do lobo frontal telencefálico podem originar qua- dros de ataxia (denominadas, respectivamente, de frontais e de sensitivas) passíveis de diferenciação semiológica da ataxia primariamente cerebelar. As manifestações dos distúrbios cerebelares são conhecidas da Neurologia e das correlações clínico-patológicas há longa data 1 . Os principais achados semiológicos associados a lesões cere- belares foram descritos inicialmente por neuro- logistas de destaque Sir Gordon Morgan Holmes, Joseph Jules François Felix Babinski e Jean-Mar- tin Charcot. Clinicamente as ataxias cerebelares tanto hereditárias quanto adquiridas manifestam- -se por distúrbios da marcha, fundamentalmente pela disbasia, por alteração dos movimentos finos distais dos membros superiores e inferiores, por disdiadocinesia ou incapacidade de movimentos

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ISSN 2238-1589

RESUMO

artIgo de revISão

1 Médico do Programa de Residência Médica em Neurologia Clínica - UNIFESP

2 Graduando em Medicina, UNIFESP

Autor para correspondência:Wladimir Bocca Vieira de Rezende Pinto

Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido para publicação: 01/07/2012Aceito para publicação: 30/11/2012

MOdELOS AniMAiS dE AtAxiAS CEREBELARES hUMAnAS

Wladimir Bocca vieira de rezende Pinto1, Paulo victor Sgobbi de Souza2

As ataxias cerebelares representam um conjunto de doenças neurológicas bastante emergentes e em rápida atualização tanto no número de condições clínicas quanto de proposições e ferramentas diagnósticas. Há grande desconhecimento, contudo, em relação aos mecanismos fisiopatológicos envolvidos e em abordagens terapêuticas eficientes. Assim, o desenvolvimento de modelos animais para ataxias cerebelares humanas para estudo da história natural e de novos esquemas de tratamento tornou--se bastante proeminente na área da Neurologia Experimental associada às técnicas modernas de mutagênese em Biologia Molecular. Esta revisão objetiva resumir os principais modelos animais existentes para as ataxias cerebelares adquiridas e here-ditárias mais prevalentes na prática clínica.

Palavras-chave: Modelos animais. Ataxias cerebelares. Mutagênese. Transgenia.

1 intROdUçãO

As ataxias cerebelares representam grupo im-portante de doenças em termos epidemiológicos dentro da Neurologia em especial quando se fala das doenças neurodegenerativas da infância e do adulto. Apesar de difícil caracterização epidemio-lógica, há como se dizer que as ataxias represen-tam um dos grupos de condições clínicas isolada-mente mais frequentes, apesar da sua sobreposição muito intensa com outros grupos importantes de doenças neurológicas, como as neurovasculares, desmielinizantes e inflamatórias. O termo “ataxia” implica a existência de decomposição irregular do ajuste motor fino, postural e mecânico, do movi-mento, ou simplesmente a incoordenação motora para movimentos voluntários finos coordenados ou ordenados (de musculatura axial, apendicular, bulbar ou ocular extrínseca), em geral relacionada a lesões ligadas ao cerebelo e às vias neuroanatô-micas a ele relacionadas (provenientes de tratos espinocerebelares ou vestíbulocerebelares), apesar do envolvimento macroscópico de tais estruturas

não ser imprescindível para a gênese dos sinais e sintomas do quadro de ataxia. Para o uso do termo ataxia, deve-se subentender que a incoordenação motora existente não decorra de fraqueza muscu-lar, independente da origem da mesma. Lesões dos fascículos grácil e cuneiforme na coluna posterior da medula espinal (ou dos nervos periféricos) e do lobo frontal telencefálico podem originar qua-dros de ataxia (denominadas, respectivamente, de frontais e de sensitivas) passíveis de diferenciação semiológica da ataxia primariamente cerebelar.

As manifestações dos distúrbios cerebelares são conhecidas da Neurologia e das correlações clínico-patológicas há longa data1. Os principais achados semiológicos associados a lesões cere-belares foram descritos inicialmente por neuro-logistas de destaque Sir Gordon Morgan Holmes, Joseph Jules François Felix Babinski e Jean-Mar-tin Charcot. Clinicamente as ataxias cerebelares tanto hereditárias quanto adquiridas manifestam--se por distúrbios da marcha, fundamentalmente pela disbasia, por alteração dos movimentos finos distais dos membros superiores e inferiores, por disdiadocinesia ou incapacidade de movimentos

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rápidos alternados, por dismetria, por tremores de intenção e frequentemente por hipotonia e por hiporreflexia tendinosa profunda, todos achados comuns a qualquer distúrbio cerebelar adquirido. Contudo, hoje já é bem estabelecido o papel de-cisivo do cerebelo e de suas vias em processos cognitivos2, podendo o acometimento do mesmo originar graus diversos de disfunção cognitiva e executiva3.

Tanto pelo modo de início quanto pelo curso da doença as ataxias podem ser divididas nas de início agudo (de horas a dias), as episódicas, as subagudas (de semanas a meses) e as crônicas (em anos). Do mesmo modo, há ataxias adquiridas e hereditárias com idade de início muito variável desde pré-escolares, escolares, adolescentes, adultos jovens e em idosos, sendo este um dos dados mais importantes na formulação de hipó-teses diagnósticas, assim como a existência de outras vias acometidas que não as cerebelares. O conhecimento referente aos diferentes tipos de ataxias e suas manifestações clínico-radiológicas é muito amplo, contudo há grande desconhecimento ainda em relação aos mecanismos fisiopatológicos envolvidos e em novas abordagens terapêuticas. Assim, o desenvolvimento de modelos animais para ataxias cerebelares humanas para estudo da história natural e de novos esquemas de trata-mento tornou-se bastante proeminente na área da Neurologia Experimental associada às técnicas modernas de mutagênese em Biologia Molecular4. O objetivo desta revisão é abordar de forma clara os principais modelos animais existentes para o estudo de cada grupo de ataxias cerebelares, em especial das ataxias hereditárias. As ataxias here-ditárias secundárias a distúrbios mitocondriais não serão abordadas nesta revisão.

2 AChAdOS SEMiOLÓGiCOS dOS diStÚRBiOS CEREBELARES EM CAMUndOnGOS

Os principais achados semiológicos sugestivos de alterações estruturais ou funcionais no cere-belo ou em suas vias incluem: marcha com base

alargada (nem sempre lentificada); movimentos erráticos e aparentemente incoordenados; tremores de intenção axiais, de segmento cefálico (incluindo fenômenos de head bobbing e de head shaking) ou apendiculares; falta de equilíbrio para sustentação em posição vertical (quedas apesar de força mus-cular normal) ou quedas espontâneas (mais bem observadas em animais jovens pré-desmame); comportamento de rolamento corporal espontâneo em torno de seu próprio eixo; alteração no teste de posição com resposta anômala (incompleta ou inexistente) no reflexo de endireitamento; al-teração no sentido da marcha, no tempo de con-tato das patas na superfície e incoordenação das mesmas durante teste de footprinting; dissinergia tronco-membros; baixo tempo de permanência, astasia ou ausência/piora em desempenho em protocolos de treinamento na barra rotatória no teste de Rotarod, com ou sem aceleração5; baixo comportamento exploratório no teste de campo aberto; escore de 3 isoladamente (imersão com-pleta ao tentar nadar: underwater tumbling) ou de 2 com outros achados sugestivos (permanência na superfície da água, mas sem movimentação ativa: immobile floating) no teste de natação, segundo escala do Medical Research Council Harwell. Eventualmente a hipotonia neonatal pode ser o sinal mais precoce de uma disfunção cerebelar. Não é objetivo deste artigo abordar cada um dos testes descritos.

Além dos sinais descritos anteriormente como disfunções cerebelares do exame físico dos ca-mundongos, há um protocolo descrito recente-mente para a caracterização da gravidade da ataxia em diversos modelos genéticos (em especial na ataxia espinocerebelar do tipo 7), compreendendo 4 medidas básicas: hindlimb clasping test, ledge test, análise da marcha e teste de avaliação de cifose (do aumento da convexidade anterior da coluna)6. Cada item é avaliado com nota de 0 a 3, variando, portanto, o escore final de gravidade de 0 a 12, devendo-se levar em conta a obesidade como possível viés durante a interpretação dos resultados. São realizadas 3 baterias com os 4 testes, sendo retirada a média para cada bateria para computar o valor final para o protocolo todo.

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Modelos aniMais de ataxias cerebelares huManas

De forma geral, quanto maior o escore, maior a gravidade da ataxia. Para que se tenha uma idéia, apesar de bastante variável, animais selvagens apresentam escore somatório no máximo de 1 com a média das 3 avaliações, geralmente ocorrendo em idade mais avançadas.

No ledge test (teste da borda da caixa), o mais específico descrito para avaliação da coordenação motora cerebelar, o camundongo é retirado da caixa e mantido sobre a borda da mesma, sendo que a reação esperada é que o mesmo ande sobre os limites e tente entrar novamente na caixa, sem perda de equilíbrio e de forma coordenada utili-zando cada pata (denominado escore 0). Se apenas uma das patas perde contato, mas mantém relativa coordenação, o animal recebe escore 1. Se o animal não utiliza suas patas traseiras ou coloca a cabeça à frente das patas ao tentar retornar para a caixa, recebe o escore 2. Se o animal cai para fora da bor-da (ou não cai por auxílio do experimentador) ou treme em repouso e não anda apesar dos estímulos do experimentador, recebe o escore máximo 3.

No hindlimb clasping test, marcador fidedigno da progressão de doença em diversos contextos de neurodegeneração, sustenta-se a cauda do animal próximo da sua base e mantém-se o animal fora de contato de objetos ao redor, observando-se a posição das patas traseiras por pelo menos 10 se-gundos. Se o animal mantém suas patas traseiras abertas à distância do abdome, recebe escore 0. Se mantiver uma das patas traseiras retraídas ao abdome por menos de 50% do tempo de suspen-são, recebe escore 1. Se mantiver ambas as patas traseiras parcialmente retraídas ao abdome por mais que 50% do tempo de suspensão, recebe escore 2. Se mantiver ambas as patas traseiras to-talmente retraídas ao abdome e tocando o mesmo por mais de 50% do tempo de suspensão, recebe escore máximo de 3.

Na avaliação da marcha, o animal é retirado da sua caixa, mantido em superfície plana com a cabeça voltada para o lado contralateral ao do examinador, e liberado para deambulação. Se o animal apresentar movimentação normal, com o suporte corporal nas 4 patas, sem toque do abdome na superfície e com integração motora e sinergismo

entre ambas patas traseiras, receberá escore 0. Se o animal apresentar tremor discreto de uma ou mais patas ou axial ou aparentar claudicação durante a movimentação, recebe escore 1. Se o animal apresentar tremor grave, claudicação importante ou houver desvio dos pés em relação ao eixo principal da deambulação, recebe escore 2. Se o camundon-go tiver dificuldade para deambular para frente ou arrastar seu corpo pela superfície por meio de contato do abdome, recebe escore máximo 3.

No teste de avaliação da cifose, apesar da mes-ma não ser específica de condições neurodegene-rativas primárias, após retirar o animal da caixa e colocá-lo sobre superfície plana, observa-se se o animal é capaz de facilmente alinhar o eixo da coluna vertebral enquanto deambula e se não apre-senta cifose persistente no período, caracterizando escore 0. Se houver cifose leve, mas o animal conseguir alinhar sua coluna enquanto deambula, recebe escore 1. Se o animal não conseguir alinhar completamente sua coluna e mantiver cifose leve, receberá escore 2. Se o animal mantiver cifose importante enquanto deambula ou mesmo em repouso, recebe escore 3. O teste não é específico para ataxias (pior dos 4 componentes do protoco-lo), mas representa bom marcador da progressão de ataxias que cursam com escoliose.

3 MOdELOS PARA AtAxiAS CEREBELARES AdQUiRidAS

As ataxias cerebelares adquiridas são doenças neurológicas diversas de origem esporádica, sem padrão de hereditariedade, sem histórico familiar de doença cerebelar ou neurodegenerativa, que cursam com alterações reversíveis ou não na função e na estrutura do cerebelo e/ou das vias a ele relacionadas. As principais causas de ataxias cerebelares adquiridas encontram-se resumidas na Tabela 1. De uma forma geral, o controle da etiolo-gia metabólica, neoplásica, infecciosa, vascular ou imunológica, desde que reversível e não-sequelar, origina melhora sintomática importante, exceto na maioria dos casos de traumas e malformações.

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Dentre as ataxias adquiridas, uma das mais im-portantes representantes é a ataxia imunomediada do glúten (ou com sensibilidade ao glúten), que se manifesta geralmente em pacientes com altos títulos de anticorpos antigliadina ou antitransglu-taminase (mais raramente em anti-endomísio), com ou sem antecedente clínico de envolvimento gastro-intestinal pela doença celíaca (clinica-mente manifesta ou não), apresentando evolução lentamente progressiva de ataxia da marcha (envolvendo de modo mais importante membros inferiores), frequentemente associada com hiper-reflexia, nistagmo evocado pelo olhar, neuropatia periférica (tipo axonal sensitivo-motora) e sem disfunção autonômica, iniciados geralmente entre a 5ª e 6ª décadas de vida9. Acredita-se que possa

representar uma das causas principais de ataxias esporádicas idiopáticas no nosso meio. Apesar da íntima associação de tal ataxia com a doença celíaca, apenas 6-10% dos pacientes com doença celíaca desenvolvem complicações neurológicas. Não é infrequente a existência de outras condições auto-imunes, como o diabetes mellitus tipo 1, o hipotireoidismo e a anemia perniciosa. A biópsia do intestino delgado mostra enteropatia apenas em um terço dos pacientes apresentando ataxia com sensibilidade ao glúten, sendo que todos os pacientes terão anticorpos antigliadina (IgG e/ou IgA) positivos, 56% terão anticorpos antitrans-glutaminase e apenas 22% antiendomísio. Até 60% dos casos apresentarão atrofia cerebelar em exames de neuroimagem e eventualmente leuco-

tabela 1. Principais causas de ataxias adquiridas7,8.

etiologias das ataxias adquiridas doenças

I) Neurodegenerativas Atrofia de múltiplos sistemas (variante olivopontocerebelar), Atrofia cerebelar idiopática de início tardio (ILOCA)

II) doenças imunomediadas

Desmielinizantes (esclerose múltipla, encefalomielite aguda disseminada, neuromielite óptica) e não-desmielinizantes (ataxia imunomediada do glúten, degeneração cerebelar paraneoplásica, ataxia anti-GAD)

III) Para-infecciosa e pós-infecciosa Cerebelite aguda pós-varicela, EBV, Síndrome de Miller-Fisher

Iv) MetabólicaEndocrinopatias (encefalopatia de Hashimoto, hipoparatireoidismo, hipertireoidismo), hipovitaminoses (vitaminas E, B1 e B12)

v) tóxico-medicamentoso

Degeneração cerebelar alcoólica, intoxicação crônica pelo lítio, pela fenitoína, por metronidazol, por ciclosporina, por antineoplásicos (citarabina, 5-fluoruracil), por metais pesados, por solventes (tolueno)

vI) Lesões estruturais do cerebelo

Acidente vascular encefálico do cerebelo e do tronco encefálico, neoplasias primárias (meduloblastoma, astrocitoma pilocítico, ependimoma do IV ventrículo) e metastáticas, traumas (TCE, trauma perinatal), siderose superficial, vasculites (primárias e sistêmicas), anomalias adquiridas da junção crânio-vertebral

vII) Infecciosas

Doenças priônicas (Doença de Creutzfeldt-Jakob forma esporádica, síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker), HIV, neurotoxoplasmose, leucoencefalopatia multifocal progressiva, abscessos cerebelares

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Modelos aniMais de ataxias cerebelares huManas

encefalopatia extensa e confluente nos casos com episódios mimetizando migrânea com aura. Não há evidência até o momento de que o controle dietético com suspensão do glúten possa oferecer a mesma melhora clínica vista para os distúrbios disabsortivos gastro-intestinais.

Não há modelos genéticos específicos desen-volvidos para a ataxia imunomediada do glú-ten10,11, contudo um experimento sem potencial de transmissão hereditária entre gerações mostrou-se bastante promissor e reprodutível. Com o objetivo de avaliar o papel dos anticorpos antitransgluta-minase (anti-TG2), foram estabelecidos painéis de anticorpos a partir de biópsia intestinal de pa-cientes com doença celíaca (e em estudo posterior a partir de amostra sérica) e, após purificação dos mesmos, foram aplicados nos ventrículos laterais de camundongos, sendo os mesmos avaliados posteriormente após 1, 3, 6 e 24 horas no teste de Rotarod. Por volta de 3 a 6 horas da aplicação, houve importante piora do desempenho motor no teste, caracterizado por ataxia grave, desequilíbrio e no segundo teste com disbasia e marcha atáxi-ca no teste de footprinting, resolvendo a antiga dúvida quanto ao papel real desempenhado pelos anticorpos da doença celíaca nesta ataxia e com-provando a existência real de tal entidade clínica através da fisiopatologia da mesma, apesar de não comprovar de que se trate de produção intra-tecal ou de mecanismo fisiopatogênico único. Da mesma forma, observaram-se também aumento discreto em comportamento de ansiedade sem significância estatística no teste de labirinto em cruz elevado, lançando a luz de que possivelmente a fisiopatologia das alterações comportamentais (ansiedade e depressão) seja distinta.

4 MOdELOS PARA AtAxiAS hEREditáRiAS AUtOSSôMiCAS dOMinAntES

Estima-se de forma bastante variável na litera-tura que as ataxias hereditárias representem algo entre 5 e 20% do total de doenças genéticas do sis-tema nervoso. Os principais representantes das ata-

xias dominantes são as ataxias espinocerebelares (SCAs), grupo bastante heterogêneo de doenças com manifestações clínicas cerebelares isoladas ou diversas. As principais ataxias autossômicas dominantes encontram-se resumidas na Tabela 2. Um mecanismo comum envolvido na fisiopato-logia das ataxias autossômicas dominantes inclui a expansão de repetição de trinucleotídeos CAG (poliglutamina), expansão de repetições não codi-ficadoras de proteínas e mutações convencionais.

Dentre as principais ataxias hereditárias autos-sômicas dominantes, destaca-se a ataxia espino-cerebelar do tipo 1 (SCA1). A SCA1 representa ataxia hereditária autossômica dominante, resul-tante de expansão de repetição de trinucleotídeos CAG no gene ATXN1, localizado no locus 6q22.3, que codifica a ataxina 1. Tal proteína funciona como fator de ligação da cromatina que suprime a sinalização dentro da via de Notch na ausência de ativação do receptor Notch. Contudo, a ataxina 1 mutante gerada a partir da expansão de CAGs com 40 a 83 repetições rica em poliglutaminas em sua cauda expandida causa quadro de neurotoxi-cidade direta ao provocar disfunção de fatores de transcrição e de proteínas nucleares ligantes de poliglutamina, ao reprimir transcrição ao se ligar ao DNA e ao modular a histona desacetilase 3 e o co-repressor da transcrição SMRT (silencing mediator of retinoid and thyroid hormone recep-tors)5,15, gerando grandes inclusões nucleares com subunidade 20S da proteassoma e a chaperona HSJ2 da família Hsp40. O quadro clínico é ca-racterizado por ataxia pancerebelar progressiva da marcha e axial com início na 3ª e 4ª décadas de vida (do grupo com atrofia olivopontocerebelar), associada com disartria, disfagia, fala arrastada, hiperreflexia, nistagmo e amplos sinais de libe-ração piramidal, evoluindo posteriormente com disfunção executiva e mais tardiamente com dis-tonia, coréia, lentificação de sácades e dismetria (OMIM: #164400).

Dentre os vários modelos descritos para a SCA1, o modelo por transgenia knock-in com 154 repetições de expansões de trinucleotídeos CAG no locus do camundongo (com background genético de C57Bl6/J x 129Sv/Ev) é bastante in-

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teressante pelos diversos resultados promissores em sua evolução, apresentando incoordenação motora, déficits cognitivos, morte prematura, perda de células de Purkinje e disfunção sináptica do hipocampo, gradual e mais prevalente com idades avançadas16. Também foi mostrado em tal modelo animal que a proteína ataxina-1 mutante, além das funções anômalas descritas previamente, também reprime a transcrição de VEGF/VEGFA (Vascular Endothelial Growth Factor)17, descrito com alterações em doenças do neurônio motor e expresso no endotélio, nos neurônios e nas células de Purkinje do cerebelo. Optou-se por acasalar os animais atáxicos com camundongos transgênicos com hiperexpressão induzida geneticamente do VEGF humano. O parâmetro de comparação para resultados no estudo foi o desempenho prévio e após intervenções no teste de Rotarod. O desem-penho não se equiparou no período de treinamento em nenhum momento ao observado em animais do grupo controle na idade precoce (13 semanas), apesar de ter ocorrido aprendizagem motora, se

comparado ao desempenho de piora dos mutantes para SCA1 após 4 dias de treinamento. Contudo, com a idade de 6 meses, não houve diferença no desempenho pré e pós-treinamento em relação a animais do grupo controle, revelando o papel executado pelo VEGF por alguma via após sua re-posição na estabilização melhora de desempenho motor. O modelo descrito mostra as diferentes fa-ses de um modelo animal desde seu planejamento, caracterização e posterior abordagem terapêutica em fase pré-clínica.

5 MOdELOS PARA AtAxiAS hEREditáRiAS AUtOSSôMiCAS RECESSivAS

Tomando como referência critério etiopatogê-nico, é possível dividir as ataxias autossômicas re-cessivas em congênitas, degenerativas, metabólicas (incluindo as mitocondriais) e por defeito de reparo do DNA (Tabela 3). As ataxias congênitas não-

tabela 2. Principais ataxias hereditárias autossômicas dominantes7,12-14.

Manifestações clínicas das ataxias hereditárias autossômicas dominantes ataxias hereditárias autossômicas dominantes

Síndrome cerebelar pura SCAs 5, 6, 11, 26ataxias episódicas (ea) EAs 1-7

Neuropatia periférica SCAs 1,2, 3, 4, 6, 8, 12, 18, 22, 25 e associada ao FGF14 (fator de crescimento de fibroblastos 14)

epilepsia SCAs 10,17, atrofia dentatorubro-palidoluysiana (DRPLA)

alterações cognitivo-comportamentais SCAs 1, 2, 3, 10, 12, 13, 14, 17, 19, 21, associada ao FGF14, DRPLA

alterações oftamológicasLentificação de sácades (SCAs 1, 2, 3, 7, 28), nistagmo down-beat (SCA 6), oftalmoparesia (SCAs 1, 2, 3, 28 e 30), discinesia ocular (SCA 10), retinopatia pigmentar (SCA 7)

distúrbios de movimentos

Parkinsonismo (SCAs 1, 2, 3, 12, 17, 21), distonia (SCA 3, 14, 17), discinesias (associada ao FGF14), mioquimia (SCA 5), coréia (SCAs 1, 17, DRPLA), mioclônus (SCAs 2, 14, 19, DRPLA), tremores (SCAs 8, 12, 16, 19, 20)

Sinais piramidais SCAs 1, 2, 3, 4, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 28, 30

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Modelos aniMais de ataxias cerebelares huManas

-progressivas serão descritas em categoria separada mais adiante neste artigo. A maioria das ataxias autossômicas recessivas apresenta manifestação precoce, antes dos 20 anos de idade, acometendo fundamentalmente adolescentes, escolares e pré--escolares, apresentando na ataxia apenas um dos sinais cardinais de suas apresentações. São con-dições clínicas bastante heterogêneas, com graus variáveis de manifestação de ataxia cerebelar.

A ataxia de Friedreich por representar a forma autossômica recessiva mais comum de ataxia cere-belar será abordada em maiores detalhes. Trata-se de condição resultante de degeneração de grandes neurônios sensitivos da medula espinal, dos tratos espinocerebelares, de cardiomiopatia e de diabetes mellitus, induzidos por níveis gravemente reduzi-dos da proteína frataxina, após expansão anormal de repetições de trinucleotídeos GAA, afetando o controle do mecanismo antioxidativo mitocondrial ligado ao ferro. O quadro clínico se inicia geral-mente entre a 1ª e a 3ª semana, manifestando-se com alterações de sensibilidades associadas ao cordão posterior (vibratória e cinético-postural),

ataxia progressiva da marcha e postural, hiporre-flexia com sinais de liberação piramidal, sácades hipermétricas, nistagmo, escoliose e pes cavus, além de hipoacusia de origem neurossensorial, miocardiopatia hipertrófica e intolerância à glicose (ou diabetes mellitus). Exames de neuroimagem não revelam atrofia cerebelar notória, mas sim atrofia da porção cervical da medula espinal. Um dos principais modelos desenvolvidos para a ataxia de Friedreich denominado neuronal-cardíaco (in-duzido por cruzamento com animais hererozigotos transgênicos para deleção do éxon 4 e carreando transgene promotores para creatinoquinase mus-cular e para enolase neurônio-específico) reproduz importantes achados da doença em modelos ani-mais20,21, incluindo a ataxia progressiva associada à perda proprioceptiva iniciada com 12 dias pós--natal e a cardiomiopatia hipertrófica evoluindo para vacuolização citoplasmática e cardiomiopatia dilatada tardia, apesar do baixo peso ao nascer, da expectativa de vida desproporcionalmente reduzi-da (25 dias) em relação ao esperado pela doença humana e de achados diferenciados em relação

tabela 3. Principais ataxias hereditárias autossômicas recessivas7,18,19.

grupo etiológico ataxia hereditária autossômica recessiva1) degenerativas Sd. Marinesco-Sjögren, Ataxia espástica de Charlevoix-Saguenay2) ataxias por defeitos nos sistemas de reparo do dNa

Ataxia telangiectasia, Ataxia telangiectasia-like disorder, Ataxia espinocerebelar com neuropatia axonal – SCAN1, Sd. Cockayne tipos A e B, Ataxia com apraxia oculomotora tipos 1 e 2, Xeroderma Pigmentoso

3) ataxias metabólicas

Deficiência de coenzima Q10, deficiência isolada de vitamina E, abetalipoproteinemia, deficiência de biotinidase, doença de Hartnup, deficiência de carnitina acetiltransferase, Xantomatose Cerebrotendínea, doença de Niemann-Pick tipo C, deficiência de γ-glutamil-cisteína-sintetase, citrulinemia, Ataxia espinocerebelar de início precoce, Acidemia L-2-hidróxi-glutárica, doença de Wilson, forma intermitente da leucinose, doença de Refsum, hipobetalipoproteinemia, deficiência da carbamoil-fosfato sintetase, deficiência da ornitina-transcarbamoilase, deficiência da argininosuccinato-liase, mutação da DNA-polimerase-gama

4) ataxias congênitasAtaxia tipo Cayman, Sd. Joubert, a Hipoplasia cerebelar associada ao receptor do VLDL, Sd. Paine, Sd. Gillespie, Malformações cerebelares e de fossa posterior (tipo Chiari e Dandy-Walker)

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ao homem, como a disfunção hepática e lesões corticais telencefálicas espongiformes. O modelo animal guarda relação bastante interessante entre gravidade e achados neuropatológicos à seme-lhança do que ocorre na doença humana. A partir do modelo inicial, por abordagem direcionada ao gene Frda, foram produzidos outros dois modelos variantes de interesse: hipertrofia cardíaca sem envolvimento muscular esquelético e disfunção dos grandes neurônios sensitivos medulares sem alterações de fibras pequenas e de motoneurônios.

6 MOdELOS PARA AtAxiAS hEREditáRiAS LiGAdAS AO x

Dentre as principais ataxias ligadas ao X, destacam-se a síndrome de Arts, a Adrenoleu-codistrofia ligada ao X, a Síndrome de Rett, a ataxia-demência (SCAX4) e a Síndrome de ataxia--tremor ligada à pré-mutação do X frágil (FXTAS), esta última que aqui será detalhada. A FXTAS é causada por quadro de pré-mutações com 55-200 repetições de triplets de CGC no gene FMR1 no locus Xq27.38, mesmo envolvido em casos de 200 ou mais repetições com a Síndrome do X--frágil. Trata-se da forma clínica mais grave de pré-mutação do sítio do X-frágil, correspondendo a até 4% das ataxias de etiologia desconhecida. Acomete fundamentalmente homens entre 4ª e 5ª décadas de vida (início tardio), originando tremor de intenção, ataxia cerebelar da marcha, alterações comportamentais (predomínio dos transtornos de humor), e eventualmente parkinsonismo discreto, neuropatia periférica, declínio cognitivo (bastante variável) e disfunção autonômica. As avaliações de neuroimagem mostram o característico e suges-tivo hipersinal do pedúnculo cerebelar médio na ponderação T2 da RM da maioria dos pacientes, com graus variáveis de atrofia cortical telence-fálica global, de hipersinal periventricular e de hidrocefalia comunicante. Não há tratamento es-pecífico curativo para tal condição clínica, mas há controle sintomático adequado para as diferentes manifestações descritas previamente.

Há diversos modelos animais descritos até o momento para a FXTAS22. O mais importante deles é o modelo knock-in (KI) do gene Fmr1, com 98 repetições de trinucleotídeos CGG, de-nominado modelo “CGG KI mice”. Tal modelo foi criado inicialmente para estudo dos efeitos e mecanismos da instabilidade genômica associa-dos à repetição de trinucleotídeos, por meio da substituição do número de 8 repetições normais do gene do camundongo por segmento com as 98 cópias de trinucleotídeos do gene humano mutante através de técnica de recombinação homóloga em células-tronco embrionárias. Nas transmissões para as gerações posteriores, foram observados tanto contrações quanto novas expan-sões, incluindo animais com até 230 repetições. A avaliação neuropatológica cerebral revelou a presença de altos níveis de RNA mensageiro do gene Fmr1 (já a partir de 1 semana extra-uterina e persistente, não correlacionada ao número de repetições de trinucleotídeos, diferentemente do que ocorre no homem) e expressão reduzida da proteína Fmrp (exceto no hipocampo), além da presença de inclusões intranucleares ubiquitina--positivas (semelhante às humanas, porém pouco presentes em astrócitos e apenas em algumas células de Purkinje) no córtex telencefálico, no núcleo olfatório, no núcleo talâmico parafas-cicular, no núcleo mamilar medial, no colículo inferior, no cerebelo, na amígdala e em núcleos pontinos, todas ricas na chaperona Hsp40 e no complexo proteassomo 20S, mas sem a proteína Fmrp. Quanto ao fenótipo neurológico, há impor-tante disfunção de performance motora avaliada no Rotarod com a idade, além de alteração na memória e na aprendizagem espaciais a partir de 52 semanas no labirinto aquático de Morris e de comportamento ansioso no teste de campo aberto a partir de 72 semanas, especialmente naqueles com inclusões intra-hipofisárias e intra-adrenais. Assim, tal modelo correlacionou-se de forma im-portante com o fenótipo neurológico da doença humana, assim como forneceu novas evidências de disfunção neuroendócrina como origem para as alterações comportamentais observadas nos casos de ansiedade. Não houve ainda a partir de tal mo-

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Modelos aniMais de ataxias cerebelares huManas

delo desenvolvimento de novo arsenal terapêutico nem de testes pré-clínicos.

7 MOdELOS PARA AtAxiAS COnGênitAS

É frequente a divisão das ataxias congênitas em progressivas e não-progressivas23. O grupo das progressivas foi descrito neste artigo dentro do grupo das hereditárias autossômicas recessivas. As ataxias congênitas não-progressivas são grupo de distúrbios de encefalopatia infantis crônicas não-progressivas, envolvendo predominantemente a faixa etária dos 6 aos 22 anos, sendo 51% dos casos sem etiologia clinicamente definida e 45% pré-natal (hereditária ou não). São geralmente divididas em ataxia cerebelar sem outros sintomas adicionais ou ataxia cerebelares congênitas puras (incluindo as hipoplasias cerebelares hereditárias e esporádicas, a Síndrome de Dandy-Walker, as malformações de Chiari e os cistos de aracnóide) e em síndromes com ataxia cerebelar (incluindo aquelas com hipoplasia cerebelar, como a Síndro-me de Joubert, a Síndrome COACH, a Síndrome Paine, a Síndrome de Gillespie, a Síndrome de Varadi e a Síndrome de Dekaban-Arima; as in-fecções congênitas em geral por citomegalovirose e os traumas periparto; a síndrome de Ritscher- Schinzel, dentre outros).

Dentre as principais ataxias congênitas, a ataxia tipo Cayman é aquela que possui um dos modelos animais mais conhecidos na experimentação. A ata-xia tipo Cayman manifesta-se com ataxia cerebelar não-progressiva proeminente associada a atraso do desenvolvimento neuropsicomotor marcante, clinicamente manifestos por tremor de intenção, nistagmo, fala disátrica e disbasia. Origina-se a partir da mutação do gene ATCAY, que codifica a proteína caitaxina mutante restrita aos neurônios que apresenta domínio conservado CRAL-TRIO (ligador de moléculas pequenas lipofílicas em região C-terminal) e que interage com proteína Bcl-2 anti-apoptótica e com a proteína E1B 19 kDa do adenovírus. Houve efeito fundador da doença em uma região das ilhas Grande Cayman, dando

origem ao nome descrito para a ataxia. O modelo jittery, tradicionalmente tido como representante da ataxia tipo Cayman, teve sua origem a partir de mutação espontânea germinativa com padrão de herança autossômico recessivo (inserção mutagê-nica B1 no éxon 4 do gene Atcay, no cromossomo 10 do camundongo, com lócus homólogo ao da ataxia humana), ocorrida durante etapa de fixa-ção da linhagem Bagg albino, que daria origem à primeira série de animais BALB/c. Os mutantes homozigotos caracterizam-se por ataxia grave de tronco e apendicular (com início pré-desmame entre 10 e 16 dias pós-natal e principalmente das patas traseiras), além de infertilidade masculina e de desidratação e inanição importantes até morte prematura invariável com 3-4 semanas pós-natal. Foram observados também hipoatividade secreto-ra e hipotrofia tímicas, congestão e hiperplasia da adenohipófise e aumento de conjuntivo folicular tireoideano pós-desmame. Outros dois alelos mu-tantes também já foram descritos (hesitant com ataxia leve e distonia e sidewinder com ataxia grave semelhante à do jittery). Alguns animais isoladamente já foram descritos com epilepsia progressiva (com crises espontâneas), espasmos musculares graves (geralmente após o início da ataxia) e resposta de endireitamento alterada24,25.

8 COnCLUSõES

As ataxias cerebelares representam quadros clínicos de difícil diagnóstico, com achados clí-nicos propedêuticos muitas vezes típicos a cada uma das doenças, mas ainda com a maior parte dos mecanismos fisiopatogênicos envolvidos bastante desconhecidos e sem ampla gama de abordagens terapêuticas gerais ou direcionadas. Os modelos animais descritos neste artigo (e os demais exis-tentes que não foram alvo de discussão) oferecerão novas possibilidades experimentais nos estudos farmacocinéticos e farmacodinâmicos das novas drogas e servirão como base para compreensão da história natural e dos eventos fisiopatogênicos em cada condição clínica.

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AniMAL MOdELS Of hUMAn CEREBELLAR AtAxiAS

The cerebellar ataxias are a wide group of emerging and quickly updating neurological diseases both in the number of clinical conditions and diagnostic tools. There is great ignorance, however, regarding the pathophysiological mechanisms and effective therapeutic approaches. Thus, the development of animal models for human cere-bellar ataxias to study the natural history and new treatment regimens became quite prominent in the field of Experimental Neurology associated with modern techniques of mutagenesis in Molecular Biology. This review aims to summarize the main existing animal models for the acquired and hereditary cerebellar ataxias most prevalent in clinical practice.

Keywords: Animal models. Cerebellar ataxia. Mutagenesis. Transgenic.

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REfERênCiAS