ITACOATIARA VOL. 1 N. 1

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ARTIGOS | ENSAIOS | RESENHAS | LITERATURA VOL.1 - N.1 | OUTUBRO - 2011 ISSN 2237-9282 40 ANOS DO MOVIMENTO ARMORIAL UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE Uma Revista Online de Cultura ITACOATIARA EDIÇÃO DE LANÇAMENTO DOSSIÊ: Antropologia das Ciências e das Técnicas

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Uma revista online de cultura

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ARTIGOS | ENSAIOS | RESENHAS | LITERATURA

VOL.1 - N.1 | OUTUBRO - 2011ISSN 2237-9282

40 ANOS DO MOVIMENTO ARMORIAL

UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE

Uma Revista Online de CulturaITACOATIARA

EDIÇÃO DE LANÇAMENTO

DOSSIÊ: Antropologia das Ciênciase das Técnicas

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Maria Aparecida Lopes Nogueira | PPGA; NASEB/UFPE

Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE

Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim | NASEB/UFPE

Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE

Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto

Carlos Newton Junior | UFPE

Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP

Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ

Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência

de Literatura

Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de

Nanterre/Paris/França

Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE

Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE

Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN

Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP

Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE

Mabel G. Guimarães

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Maria Aparecida Lopes Nogueira

Por Edgard de Assis Carvalho

Fátima Branquinho

Ricardo Roque

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Por Guilherme José da Silva e Sá

Carlos José Saldanha Machado

Lilian Krakowski Chazan

Por Maria das Graças Vanderlei da Costa.

Texto de apresentação de Carlos Newton

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4

carta do editor

No ano de 2007, no âmbito das comemorações dos 60 anos da UFPE e dos 80 anos de Ariano Suassuna, foi criado, na Universidade Federal de Pernambuco, o Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros, com a finalidade de congregar pesquisadores com interesse na cultura brasileira, de um modo geral, e na obra suassuniana, em particular. Após três anos de atividade, o Núcleo lança, agora, a sua revista online, Itacoatiara, destinada a pesquisas voltadas para a cultura, numa perspectiva interdisciplinar e com periodicidade semestral. A Itacoatiara será um importante meio de divulgar os resultados dos trabalhos e pesquisas vinculados ao Núcleo assim como de colaboradores externos, desde que tenham seus trabalhos referendados pelo seu conselho editorial. Aproveitamos o ensejo para agradecer a Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim, Normando Jorge de Albuquerque Melo e Maria das Graças Vanderlei da Costa por comporem a Comissão Editorial da revista. Somos igualmente gratos a Carlos Newton Júnior, Lourival Holanda Barros, Roberto Mauro Cortez Motta, Edgard de Assis de Carvalho, Luis Assunção, Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Fátima Branquinho, Jesana Batista, Marcelo Burgos, Heloísa Arcoverde de Morais e Arnaldo Saraiva por aceitarem o convite para compor o nosso Conselho Editorial. É com imensa satisfação que colocamos a Itacoatiara na rede, na intenção de que tenha vida longa e agrade a todos os que a ela tenham acesso. O lançamento da revista coincide com os 40 anos do Movimento Armorial, lançado oficialmente no Recife, a 18 de outubro de 1970, como uma bandeira em defesa da cultura brasileira de vertente nacional-popular. É por isso que, na sessão Literatura, publicamos três poemas de Ariano Suassuna em que o autor e criador do Movimento se utiliza da palavra armorial, enquanto adjetivo, pelo menos vinte anos antes de 1970, demonstrando, assim, que o caminho em direção ao Armorial começa a ser traçado a partir da vivência de Suassuna como acadêmico de Direito, na Faculdade de Direito do Recife, com o grupo do Teatro do Estudante de Pernambuco. No mais, também agradecemos aos colaboradores desse primeiro número e desejamos uma boa leitura a todos e deixar, aqui, o nosso convite para que participem conosco da criação do próximo número.

Recife, 5 de outubro de 2011.

Maria Aparecida Lopes Nogueira

Editora-chefe

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Maria Aparecida Lopes Nogueira

Por Edgard de Assis Carvalho

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

NOGUEIRA

Maria Aparecida Lopes Nogueira1 - UFPE

“O tempo irreversível não anula este desejo

de eternidade que nasce da contemplação das estrelas”

(Michel Cassé)

Mais de 100 anos de Claude Lévi-Strauss. Mais de 20 livros; mais de 300

artigos. Mais de 600 comentadores e críticos da obra, oriundos de

múltiplos pertencimentos como da política, da literatura, da antropologia,

da arte, da psicanálise, da história, da filosofia, delineiam um autor que

ultrapassa fronteiras disciplinares e forja o diálogo entre ciência e arte,

ciência e mito, cultura científica e cultura das humanidades.

Ao posicionar-se criticamente contra as explicações difusionistas,

funcionalistas e evolucionistas, Lévi-Strauss propõe uma Antropologia

contornos de uma construção universalista da cultura, capaz de amenizar

as interpretações danosas que, ainda, infelizmente, teimam em

considerar o Outro como mero objeto.

Ao longo de sua trajetória o autor, enquanto observador das

constelações humanas, tem religado – de forma emblemática – vida e

ideias. Desde o início da carreira, quando a obstinação por uma

Antropologia de caráter formal, nos moldes das ciências duras, era

bastante clara, sua pretensão é conferir inteligibilidade à palavra Homem.

O título deste trabalho é inspirado nas semelhanças explicitadas,

por Lévi-Strauss, entre o ofício do etnólogo e o do astrônomo, convertem

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Coordenadora do Núcleo

Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

NOGUEIRA

o primeiro em observador das constelações humanas. Essas reflexões do

autor foram elaboradas no início da década de 50; confirmam o

imbricamento entre o tempo linear-histórico e tempo rotativo-mítico, de

acordo com as formulações do astrofísico Michel Cassé, integrante da

Comissão para a Energia Atômica e Investigador do Instituto de

Astrofísica de Paris. Mais do que isso: reiteram a atualidade do ideário

lévi-straussiano.

Em 2009 celebra-se o Ano Internacional da Astronomia. Também

delineiam seu movimento em direção à sutura com a Astrologia, a partir

das descobertas mais recentes que retomam a religação antropo-cosmos;

religação já presente na seguinte afirmação de Lévi-Strauss: “o homem

faz parte da vida, a vida da natureza, e a natureza do cosmo”. (1998:70).

Nessa formulação, sua idéia de universal se amplia; extrapola as

bordas do dizível e alcança o cosmo. É nessa magnitude que os saberes

das alteridades são expressões de um universal, simultaneamente, em

nós e fora de nós. Todos submetidos à finitude.

Que sentidos subjazem à pulsação humana de eternização? Do

mesmo modo, também as estrelas lutam contra a morte, a entropia. Há

uma tendência para esquecer a irreversibilidade do tempo e desenvolver

tentativas e/ou estratégias constantes para abrandar, corrigir, subverter,

transgredir as grandes leis que regem o universo.

Tal pulsação traz consigo a importância da sabedoria perene dos

itinerários mítico-imaginários; “caixas de promessas irreais”, no dizer de

Lévi-Strauss, recheadas de esperança.

No livro As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado em

1949, o autor - impregnado de esperança - reconhece na Linguística um

campo de pertinência fecundo para a análise dos sistemas simbólicos. Por

isso, a 1a. fase da obra é denominada de Pregnância Linguística. É ela

que lhe possibilita entender a sociedade como linguagem. Há, portanto,

uma semelhança entre os atos linguísticos e os fatos sociais, que ressoa

na demarcação do sistema das diferenças e das oposições binárias que

escapam da percepção de quaisquer agentes sociais.

É por meio da Regra da Proibição do Incesto, passagem lógica – e

não histórica – da natureza para a cultura, que Lévi-Strauss opera a

sutura dos elementos formadores desse par de opostos. Tal sutura é

compreendida em termos de um equilíbrio instável, pois a passagem não

é definitiva, e permite o diálogo entre o universal e o particular, o

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NOGUEIRA

inconsciente e o consciente, o caos e a ordem, a objetividade e a

subjetividade.

A noção de Estrutura, pedra angular de sua proposta, extrapola a

rede empírica das relações sociais, mas diz respeito a modelos

construídos de acordo com elas. Ou seja, há algo inconsciente, recalcado;

nem tudo é cintilação e objetividade. Existem mistérios, sombras,

ocultidades situadas nas profundezas da alma humana que impedem o

conhecimento total de como os homens percebem e vivem o mundo dos

acontecimentos.

Ao dialogar com a Psicanálise, a Geologia e o Marxismo, Lévi-

Strauss também circunscreve seu trabalho, juntamente com os

pensadores dessas áreas do saber, para além do visível. Afinal, de acordo

com as premissas de Gastón Bachelard, não devemos nos deixar seduzir

pelo que nos revelam os primeiros dados.

Sem negar a importância do pensamento marxista na formulação

do seu ideário e o papel fundamental das infra-estruturas, Lévi-Strauss

discorda do messianismo e prometeísmo subjacentes na proposta,

alegando que a luta visível travada pelos homens reais não trouxe apenas

progressos, ela também engendrou tristes regressões culturais, como a

intolerância que estamos testemunhando na contemporaneidade. Por

isso, nem mesmo os processos históricos conseguem dar conta do

grande empreendimento que é conhecer o Homem.

Em 1962, com a publicação do livro O Pensamento Selvagem,

escrito sob forte influência da Filosofia, o autor inicia outra fase da obra,

denominada de Pensamento Unitário. Seu interesse primordial se volta

para as operações do pensamento. Partindo do pressuposto de que razão

e sensibilidade se retroalimentam, critica de forma veemente a utilização

da dicotomia primitivo e civilizado.

Para ele, todo e qualquer sapiens sapiens pensa de forma

semelhante, com o mesmo aparato neuronal e as mesmas possibilidades

cognitivas, apesar dos avatares da história. O pensamento selvagem não

diz respeito ao pensamento do selvagem. Trata-se de um modo

específico que todos os humanos possuem para operar o pensamento a

partir de uma visão mais totalizadora, usando a intuição e os processos

de bricolagem. O outro modo de pensar – o pensamento domesticado -

requer, sobretudo, a fragmentação e o exercício da razão. Portanto, os

dois modos co-existem e dizem respeito à condição humana.

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

NOGUEIRA

Como bem alerta Zigmund Bauman, a cultura não se reduz a

fábricas de ordens; ela expressa uma “luta incessante entre ordem e caos

(...). Está diariamente envolvida com o que Lévi-Strauss deu o nome

memorável de bricolagem” (1998:174).

Essa formulação constitui uma ruptura epistemológica de grande

repercussão em todos os campos do conhecimento científico, pois

implode de uma vez por todas com as fronteiras existentes entre

primitivo e civilizado, razão e desrazão, lógica e ilógica, ao mesmo tempo

que propõe novos sentidos aos desatinos humanos e resiste ferozmente

ao olhar hierarquizado do Mesmo em relação ao Outro.

Uma maior aproximação com esse Outro, para usar uma feliz

expressão de Bachelard, pode ocorrer se trabalharmos, simultaneamente,

com a lógica do sensível e a lógica do inteligível.

O papel da cultura é forjar novos rearranjos e reorganizações; ou

seja, criar novos signos e significações a partir de resíduos acabados da

cultura. A bricolagem expressa, portanto, a maior especificidade do homo

sapiens sapiens: sua infinita capacidade de criar e recriar.

Com a publicação dos 4 volumes das Mitológicas, a partir de

1971, tem início a 3a. fase da obra de Lévi-Strauss, denominada de

Pensamento Aberto. Regido por uma ciência reencantada, sua escrita

rigorosa e sofisticada ganha leveza, oscila entre a metáfora e a

metonímia, trata de temas diversos, seduzido pela melodia mítica

presente – sobretudo – no campo das artes.

As Mitológicas são constituídas de mais de 800 narrativas

míticas. Podem ser lidas de forma não-sequencial; afinal os mitos são

espécies de máquinas de supressão do tempo linear; linguagens da

imaginação que religam natureza e cultura, linearidade e ciclicidade,

visível e invisível.

É no território circular dos mitos que podemos encontrar

respostas para algumas das intermináveis indagações sobre a existência

humana. Trata-se, de acordo com Lévi-Strauss, de um esboço confuso do

Teorema de Gödel, aquele que denuncia a existência do paradoxo no

âmago da lógica.

No âmbito das narrativas míticas todos os seres ganham alma e

interagem, as contradições se exacerbam, os impasses são ressaltados; o

infortúnio, a dor e o inacabamento forjam a indissociabilidade entre a

Vida e a Morte.

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

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Por isso os mitos convencem pela repetição; nas palavras de Lévi-

Strauss, “dizem todos a mesma coisa” (1996:406). Recorrem a memórias

involuntárias no afã de desvendar enigmas e contradições, que desde

sempre têm acompanhado o homem na sua breve passagem pela Terra.

Os mitos são operadores cognitivos que nos convidam a

experimentar as coisas do mundo: a olhar, escutar, cheirar, sentir,

lamber... São melodias, por isso devem ser contados e ouvidos: unem

som e imagem. São, antes de tudo, bons para pensar e constituem

patrimônio universal da cultura.

Para Octávio Paz, “os mitos se comunicam por meio dos homens

e sem que estes o saibam”. É como se todos nós estivéssemos

recontando ad infinitum uma mesma história, ou “narrativa serva”, de

acordo com as formulações de Michel Serres, aquela que permite o

reconhecimento da integração de todos os humanos, por mais diferentes

que sejam, numa mesma e única espécie.

Para restabelecer a unidade da e na diversidade, cada recontação

adquire a marca do seu tempo e lugar; ou seja, atualiza-se,

contextualiza-se. Tem como inspiração a abertura para o Outro, por isso

requer a refundação do humanismo, dissolvendo o homem na natureza,

inserindo-o na teia da vida. Essa contraposição ao antropocentrismo,

condição fundamental para a sustentabilidade do planeta, pode subsidiar

a criação de políticas que estimulem a colaboração e a tolerância entre os

mais diferentes povos; já preconizadas no famoso texto Raça de História,

ainda na década de 1950.

A obra magistral de Lévi-Strauss nos convida a navegar no

“Oceano Fios de Histórias”. Tal Oceano fica próximo do pólo sul da Lua,

de acordo com as informações de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi,

contidas no Dicionário de Lugares Imaginários, e baseadas na obra de

Salman Rushdie intitulada Haroun e o Mar de Histórias. Penso que foi lá

onde Lévi-Strauss descobriu que o livre curso dos mitos pode ocorrer;

para isto, basta removermos - como qualquer outro viajante - a rolha

que impede seu fluxo. Até mesmo as narrativas mais antigas podem

recuperar seu sabor e fluidez. Sejamos, pois, viajantes; cuidadores da

limpidez e do fluxo das águas da Vida.

Lévi-Strauss continua navegando nesse “Oceano Fios de

Histórias”, tomado pelas águas instáveis de impossíveis universos

contidos nas narrativas míticas. Mesmo reconhecendo as incertezas e os

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

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mistérios do devir, segue enfeitiçado pelo canto da sereia que teima em

entoar a reconciliação entre o homem e a natureza, a ciência e o mito.

Como astrônomo das constelações humanas, Lévi-Strauss torna

presente a dimensão da invisibilidade; ao mesmo tempo que reconhece a

mútua solidariedade existente entre as sociedades e o cosmos.

Recife, 9 de agosto de 2009.

Aniversário de Jarbas Araújo, meu marido.

Por isso este trabalho é dedicado a ele.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

BACHELARD, G., Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado.

Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

BAUMAN, Z., O Mal-Estar da Modernidade. Tradução de Mário

Gama e Cláudia Martinelle Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LÉVI-STRAUSS, C., As Estruturas Elementares do Parentesco. 2ª.

ed. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1982.

______, Antropologia Estrutural. 4a. ed., Tradução de Chaim Samuel Katz e

Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s./d..

______, Raça e História In: Antropologia Estrutural Dois. 4ª. ed. Tradução e

Coordenação de Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro: 1993.

______, O Pensamento Selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas:

Papirus, 1989.

______, O Cru e o Cozido (Mitológicas). Tradução de Beatriz Perrone-

Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______, Do Mel às Cinzas (Mitológicas V. 2). Tradução de Carlos Eugênio

Marcondes de Moura e Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify,

2004.

______, A Origem dos Modos à Mesa (Mitológicas V. 3). Tradução de

Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

______, Olhar, Escutar, Ler. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São

Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L.

NOGUEIRA

MANGUEL, A. & GUADALUPI, G., Dicionário dos Lugares

Imaginários. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003.

MORIN, E. & CASSÉ, M., Filhos do Céu: Entre Vazio, Luz e Matéria.

Tradução de Ana Paula de Viveiros. Lisboa: Instituto Piaget, 2007.

SERRES, M., O Incandescente. Tradução de Edgard de Assis

Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

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ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO

Edgard de Assis Carvalho – PUC SP

Professor titular de Antropologia

São Paulo, abril 2008.

Costuma-se afirmar que o interesse mais amplo da Antropologia reside

no inventário de informações sobre um grande número de modos de vida

e pensamentos que coexistem atualmente na superfície planetária.

Comumente essa massa de dados é apresentada em linguagens

específicas dos próprios universos culturais. Aparentemente objetiva, é

ela que garante a neutralidade aparente do sujeito cognoscente diante do

objeto pesquisado. Daí decorre a afirmação de que a Antropologia é a

ciência da diversidade, das diferenças e alteridades que se espalham no

planeta. Trata-se de uma modalidade de discurso que o Ocidente

construiu sobre si mesmo a partir dos efeitos transfiguradores da

dominação.

A história linear das teorizações da disciplina sempre conferiu

pesos diferenciados a esses jogos de linguagem estabelecidos entre o eu

e o outro. Apesar da acumulação dos dados ser mais descritiva do que

explicativa, a Antropologia, enquanto campo disciplinar cifrado do poder

acadêmico, não criou novas paradigmatologias capazes de enfrentar os

desafios de uma ciência social voltada para a explicação da unidualidade

e da unidiversidade do sapiens sapiens demens.

Alguns obstáculos impedem a Antropologia de entender a cultura

como práxis cognitiva planetária gerada pelos humanos pelo menos há

130 mil anos: 1. A hipótese relativista: espécie de complacência moral

gerada pelo Ocidente para definir o outro, o estrangeiro; funda-se no

pressuposto de que as verdades locais instituem-se como regimes de

verdade. A ótica do sujeito teórico que os produz pode considerá-los

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ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO

bons e maus, positivos e negativos, desde que a descrição empírica não

transcenda o campo local; 2. A alterização acrítica: decorrência da

hipótese relativista, baseia-se no pressuposto de que é impossível criticar

o código da diferença. Por isso, instalou-se uma dispersão temática de

dimensões incalculáveis, que se explicita por meio de uma oposição

dualista entre o outros e o mesmo, quer isso ocorra no sentido espacial

ou temporal (não é por mero acaso que a 25a reunião da ABA, associação

brasileira de antropologia tem 51 grupos de trabalho) ; 3. A identidade

prometeica: mesmo que pensadores de matizes variados tenham se

fixado na ética do descentramento como condição inequívoca de acesso

às alteridades, a Antropologia voltou as costas para os ensinamentos da

Antropologia implícita presente na filosofia, na literatura, na psicanálise

e, com isso, contentou-se em construir painéis empíricos de identidade

fundados no caráter prometeico do constraste identitário.

Mesmo que se entenda as culturas como textos, ao modo de

Clifford Geertz, ou que se adira a uma duvidosa Antropologia que se

autodenomina pós-moderna, a noção de identidade contrastiva dualiza o

real, reifica o outro, decreta que as culturas são conjuntos autônomos

ausentes de historicidade, portadores de linguagens específicas.

Diante disso, pode-se considerar que o ponto de partida de todos

os relativismos seja expresso na constatação de que, em sua globalidade,

as culturas não foram feitas para dialogar, e isso porque uma cultura não

fala, e nem falará, a língua da outra. Aquelas que tentam fazê-lo exibem

nada mais do que uma representação ideologizada da representação do

outro.

As possiblidades de superação desses obstáculos podem ser

sistematizadas em alguns pontos. 1. O esgotamento do paradigma

dualizador de fundo cartesiano: encontros internacionais

transdisciplinares realizados a partir dos anos 90 constatam a existência

de uma patologia que coloca sob suspeita a criatividade cultural

autônoma. Mesmo que o mundo midiático globalizado comandado pela

tecnociência seja responsável pela uniformização de gestos, palavras,

atitudes, poderes, a religação dos saberes representa um modo de

entendimento dos sistemas vivos, uma antropoética para espécie, na qual

as fragmentações inter-ciências não terão mais lugar. A busca de uma

civilização planetária, mesmo que aberta às singularidades,

singularizações e especializações, deve preocupar-se em recompor o

paradigma perdido, a unidade da cultura, pela implosão da dualidade

sujeito/objeto, assim como de quaisquer outras que se possam

considerar. 2. A atitude transdisciplinar: há, pelo menos, tres

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ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO

interpretações do termo: a. um domínio cognitivo que se localiza além

das disciplinas; b. uma atitude construída por meio de uma viagem entre

as múltiplas áreas do saber. c. uma metamorfose dos refúgios

disciplinares em meta pontos de vista sobre a vida, a terra, o homem, o

cosmo. Não se trata de um sincretismo entre ciência e tradição, ciência e

mito, ciência e arte, mas de uma circulação de saberes convergentes

ampliadores de cosmovisões e ideologias.

A transdisciplinaridade busca meta pontos de vista a partir dos

quais se possa realizar a interação desses amplos domínios dos

fazimentos humanos. Busca, igualmente, construir espaços de

pensamento que insiram esses fazimentos em uma base sócio-histórica e

dialógica. Simultaneamente diferentes e semelhantes, constituem uma

unidade, totalidade instável, não teleológica, que se movimenta num

espaço aberto plurilinear e pluricultural.

As pesquisas transdisciplinares apoiam-se nas energias oriundas

da arte, da poesia, da filosofia, da ciência, da tradição, da espiritualidade,

eles mesmos concebidos em sua unidade e diversidade. Essa atitude

poderá vir a desembocar em novas liberdades de espírito. Graças a

estudos transhistóricos, transculturais e transreligiosos, novos conceitos,

teorias e modelos podem possibilitar às ciências do homem abrirem-se à

singularidade/pluralidade do mesmo e do outro e à inteireza do ser. 3. A

constituição de uma Antropologia simultaneamente histórica, dialética,

dialógica e planetária. Liberta dos axiomas constitutivos da lógica binária

clássica, fundada nos princípios de identidade, de não contradição e do

terceiro excluído, a recriação do anthropos investe na busca de uma

ontologia de base universalista, na religação dos saberes, na recusa do

relativismo isolacionista, na construção de uma política de civilização

fundada na antropoética, na socioética e na auto-ética.

Esta terceira via depende dos pensadores que se incumbirão de

pô-la em marcha na vida e nas idéias, na ética e na política, na

universidade e fora dela. Para esses novos sujeitos do conhecimento, a

Antropologia passa a ser entendida como ciência das simultaneidades

bio-sócio-culturais fundada na razão aberta, nômade, polifônica, jamais

teleológica. Liberta de qualquer modalidade de nostalgia do absoluto, a

pertinência do conhecimento antropológico efetivar-se-á num circuito

duplo: o das exigências da democracia política e o das incertezas

cognitivas que cercam os fundamentos dos saberes planetários quaisquer

que sejam eles.

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DOSSIÊ: :

Antropologia das Ciências e das Técnicas

Potes de barro cheios de natureza e conhecimento: notas sobre a possibilidade da etnografia de objetos

Fátima Branquinho

Ossos, ‘histórias’ e colecções coloniais

Ricardo Roque

Estar ciente e fazer ciência: sobre encontros e transformações

Por Guilherme José da Silva e Sá

Uma leitura sócio-antropológica de um objeto complexo: a gestão dos recursos hídricos

Carlos José Saldanha Machado

“Antes, as imagens eram horríveis!” Construindo a estabilização da tecnologia de ultra-som como produtora de conhecimento confiável na gravidez

Lilian Krakowski Chazan

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ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO

P

:

Fátima Branquinho1

Procientista - UERJ

Durante os últimos trinta anos, foram desenvolvidos estudos iluminados

pela teoria do ator-rede sobre objetos e projetos técnicos diversos. Essa

teoria e método de trabalho é base para análises sobre a produção do

conhecimento empreendida pela antropologia das ciências e das técnicas.

Os estudos realizados reúnem-se a uma gama de outros que vêm

em resposta à postura adotada pelas ciências humanas e sociais contrária

a leituras simplificadas da realidade, levantando a bandeira da

complexidade.

Mais recentemente, os estudos sociais da ciência – como também

pode ser reconhecida tal antropologia – têm examinado práticas de

conhecimento buscando considerar que o contraste entre simplicidade e

complexidade pode não ser uma simples dicotomia (Law & Mol, 2002),

reclamando por mais atenção no uso da referida teoria.

Em que pese o questionamento de Law e Mol, vindo de dentro

dos estudos sociais da ciência, a teoria do ator-rede vem fundamentando

1 Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Meio

Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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estudos realizados por pesquisadores da América latina2 e restante do

mundo. Esses estudos têm como objetivo geral analisar processos onde

conhecimento esteja sendo construído considerando a construção

simultânea da natureza e da sociedade.

Tal ponto de vista baseia-se, sobretudo na noção segundo a qual

a construção do conhecimento não responde a um modelo linear nem

unidirecional e que a circulação e a própria construção do conhecimento

realizam-se em diversos espaços e com atores não-científicos e

científicos, a exemplo do que ocorre com a cerâmica.

A etnografia3 do objeto cerâmica que vem sendo realizada

pretende confirmar a hipótese segundo a qual argumentos técnicos estão

compondo o tecido social: controvérsias sobre o entendimento a respeito

de certo objeto atraem atores diferentes e constroem, igualmente,

espaços diferentes, criando zonas que claramente favorecem ao

desenvolvimento de um campo disciplinar, produtor de conhecimento

científico e técnico.

A cerâmica e a análise do campo (inter)disciplinar que se dedica

ao seu estudo, construindo argumentos técnicos revelam como

pesquisadores do campo da arte, artistas plásticos, designers, técnicos,

economistas, historiadores, arqueólogos constróem a sociedade.

Fazer cerâmica é uma forma de memorizar e transmitir

conhecimentos sobre uma sociedade, pois as peças “falam” aos olhos

sobre conceitos, ensinamentos, visão de mundo e conhecimentos. Os

estudos, debates, seminários sobre ela são excelente ferramenta para

entender a sociedade porque os processos que concebem técnicas e

conhecimento científico deságuam num oceano de modos de vida e

trabalho, traduzindo-se em aspectos particulares sobre como a

sociedade vive e se organiza. A cerâmica pode, assim, falar da sociedade

2 A produção intelectual desse campo de conhecimento tem crescido. No último encontro

anual da Society for Social Studies of Science (4S), realizado em Montreal em outubro de

2007, a qualidade dos trabalhos justificou a organização da sessão 5.9 denominada Latin

American Science and Ways of Knowing, da qual participei com auxílio da FAPERJ,

apresentando o trabalho Branquinho, F. T. B. About inlanders fiber over the sociotechnical

network of Açu's barrage: a history told by flooded rupestrian pictures. In: Annual Meeting

Society for Social Studies of Science, 2007, Montreal. Ways of Knowing. Montreal: Society

for Social Studies of Science, 2007. v. 1. p. 1-22.

3 A pesquisa iniciada em janeiro de 2008 recebeu auxílio APQ1/FAPERJ e vem sendo

desenvolvida com uma equipe de bolsistas, alunos da Faculdade de Educação da Uerj, que

recebem bolsa de auxílio à graduação FAPERJ.

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brasileira, pois toda técnica espelha, em um contexto particular, a

complexa organização social.

A etapa de campo que vem sendo realizada no âmbito da

pesquisa mostra que os ceramistas entrevistados até agora dominam

todas as etapas da produção de suas peças até a comercialização, mesmo

que o barro venha de outra região. Eles costumam dizer que a argila não

pode ser nem “forte” nem “fraca”: “se é forte demais misturo areia fina, se

é fraca, coloco pó de caco de telha, cinza de certas plantas...”. Sobre isso

Valladares (1978:30) diz:

A ciência do ceramista não está apenas no adestramento das

mãos para a criação de peças diversificadas. Está também no

conhecimento do barro, na identificação dos depósitos, na escolha e

coleta das melhores camadas, na preparação da massa, na lenha que

deve ser usada para a queima, na colocação das peças no forno,

maiores e mais pesadas por baixo, menores e mais leves por cima.

Tudo é conhecimento adquirido “dos antepassados”.

Sobre essa “ciência do ceramista” a qual se refere Valladares

existe significativa produção intelectual assinada por professores –

mestres e doutores – dos Institutos de Arte de diversas IES. Tal produção

intelectual, apenas em parte identificada até agora, indica a amplitude do

material empírico que contribuirá para a construção do objeto de análise

dessa pesquisa: o campo (inter)disciplinar da arte, em especial da arte em

cerâmica e a sociedade e natureza a ele associadas.

No processo de fazer cerâmica, da pigmentação do barro ao

forno, do brilho dado a cada peça à pintura e apliques decorativos, está

presente a concepção de natureza do ceramista e a própria natureza na

forma de raízes, seixos rolados, sementes, água, cabaças, fragmentos de

galhos de vegetação local temperado por elementos da vida cotidiana,

hábitos, sentimentos, amores, saudade assim como, modos de vida,

trabalho e tratamentos de saúde.

Se eleita como peça de arte, a cerâmica sai do anonimato e

transforma-se em objeto de estudo, revelando igualmente concepções de

natureza e sociedade de pesquisadores. Se ela pode ganhar estatuto de

“arte” e/ou de objeto de estudo, pode ser parte de uma controvérsia,

instigando a formulação de perguntas análogas a de Latour (1984) sobre

os micróbios e Pasteur: onde estavam os grupos de retirantes antes de

Vitalino? Ou ainda: onde estavam os currais de gado ou as casas-de-

farinha, antes de Cândido? Parece-me oportuno questionar se, tal como

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outros campos disciplinares da ciência, as artes importem - além de suas

fronteiras disciplinares - critérios para designar/definir seus “fatos

científicos”.

Em outras palavras, tal como diversos campos disciplinares da

ciência, a arte em cerâmica se constitui como campo disciplinar

independente do diálogo com outras disciplinas ou com sistema de

conhecimento próprio ao popular? Alguns ceramistas entrevistados

afirmam que o trabalho que fazem “não é arte”. Essa questão já foi

apontada por Souza (2002), na pesquisa antropológica realizada em

Icoaraci (PA) onde buscou analisar as auto-identificações sobre

identidades locais - artesão, artesão-artista e artesão-copista - e as que

surgiram no processo de mudança ocorrido na organização do saber-

fazer nas olarias de cerâmica, em meados da década de 60. Uma outra

etnografia, essa realizada no Rio de Janeiro, mais especificamente na

Escola de Artes Visuais do Jardim Botânico, acerca da aquisição das

disposições que transformam seres comuns em possíveis artistas foi

realizada por Dabul (2001). Desse modo considero pertinente questionar

como dialogam os conceitos, fatos próprios ao campo de conhecimento

que estuda a cerâmica e os valores, o contexto social? O modo como tal

diálogo se processa não é evidente e não está descrito.

A “ciência” a qual Valladares se refere exemplifica o objeto

adequado à pesquisa proposta aqui. Ela não distingue ceramistas que

estão na academia dos que estão fora dela implicando a descrição dessa

rede sociotécnica, descrição que amplia a compreensão sobre a realidade

social em que vivemos.

Uma consulta ao site www.ceramica.com.br mostra uma

reportagem sobre mulheres cujo trabalho realizado com barro em Rio

Real/BA representa claramente a expressão técnica e artística que

absorveu a fertilidade criadora da cerâmica indígena. A técnica de

produção, todo o conhecimento, valores e costumes associados ao fazer,

têm sido transmitidos de geração para geração. A tradição da arte do

barro preserva ainda a própria região, uma vez que esse grupo de

mulheres desempenha importante papel nos cuidados com o mangue de

onde tiram matéria prima para o trabalho. E no Estado do Rio de Janeiro?

O trabalho dos ceramistas é realizado em suas próprias casas? Contam

com a ajuda da família? Há um galpão comunitário como ocorre em

alguns locais produtores de cerâmica? Existe região mais concentrada de

oficinas do que outras? Como os ceramistas explicam forma, desenho e

cores das peças que produzem? O que determina a produção de cerâmica

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ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO

utilitária ou decorativa do ponto de vista dos ceramistas? Como essa

distinção se constitui para eles? Como é feita a modelagem das peças?

Por quem é feita? Quais os instrumentos/ ferramentas utilizados? Quem

os fabrica e com que material? Quais são as etapas de produção da

cerâmica? As etapas da produção estão sujeitas a alguma forma de

sazonalidade? Como essas perguntas aparecem respondidas nos artigos

científicos de pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema? Como a

bibliografia existente está contribuindo não apenas para a constituição

do campo da arte como para a construção da sociedade? Até que ponto o

reconhecimento do grande público pode ser considerado como elemento

do sistema de conhecimento que pretendo investigar? O que motiva a

atribuição de patrimônio imaterial a alguma forma de cerâmica, de

processo de fazer cerâmica e não a outras?

Essas e outras questões podem ter sido respondidas para

diferentes regiões brasileiras, acrescidas, muitas vezes, de explicações

sobre a linha de tradição a qual pertence cada cerâmica identificada. Tais

questões podem servir de modelo para novas investigações à luz da

teoria do ator-rede. Apesar de haver arte em cerâmica fluminense não

sabemos o que ela conta sobre a relação com a natureza dessa região e

sobre o conhecimento que ela vem reunindo por séculos. Tanto a

natureza fluminense quanto o conhecimento construído sobre ela no

processo de fazer cerâmica constituem a própria sociedade, constituem

nós mesmos e falam sobre como podemos valorizar mais essa mesma

natureza, conhecimento, tradições.

Em acordo com Ingold (1996), defendo a pertinência de incluir o

mundo natural e físico na construção do mundo social, já que ele

assume, tal como os pesquisadores dos estudos sociais da ciência, que o

mundo natural molda o mundo humano tanto quanto é moldado por ele,

contrariando visões positivistas nas quais princípios, leis e materialidade

são exteriores e independentes do social e do todo do conhecimento

(Descola, 2002).

De acordo com a teoria do ator-rede o tempo é um híbrido de

tempos e o espaço, igualmente o é. Sendo assim, porque não admitir que

o que é tradição no fazer cerâmica no cotidiano continua vivo, se

renovando ao interagir com outras tradições? Por que não considerar que

o espaço em que antepassados trabalhavam se prolonga até as oficinas

de ceramistas atuais no Rio de Janeiro – do Complexo da Maré ao Jardim

Botânico –, como também em Cunha, Itaboraí, Búzios ou Friburgo, só

para citar alguns dos municípios já visitados?

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ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO

A cerâmica conta a história da culinária, assim como fala da

religiosidade e conta outras histórias das quais objetos de barro vêm

sendo atores coadjuvantes. Entre uma descrição da cerâmica fluminense

e a descrição de outras histórias, como por exemplo, a das técnicas, do

comércio, da escravidão, do vestuário, das festas, da religião, da

economia antiga, etc., é possível que sejam percebidas algumas relações

que estão não apenas, mas também, no conteúdo imagético do suporte

cerâmico. Contudo, essas relações se interpenetram, e é a teoria do ator-

rede que permite abordar com segurança o problema que interessa a

etnografia da cerâmica fluminense: o das interferências entre a

elaboração das criações culturais/intelectuais e a sociedade como um

todo.

A etnografia do objeto cerâmica trata, portanto, de descrever as

controvérsias científicas percebidas nos artigos que têm cerâmica como

objeto de estudo, e analisar a relação desse resultado com o significado

atribuído à cerâmica, ao processo de sua manufatura (e a si mesmos)

pelos próprios ceramistas fluminenses que pertencem a círculos

acadêmicos ou não, isto é, independente do fato de registrarem técnicas,

conceitos, valores, tradição por meio da escrita ou da cerâmica

propriamente dita.

Em síntese, na etnografia do objeto cerâmica, trata-se de

descrever a rede sociotécnica por ela esculpida. Afinal, é pouco evidente

que não exista “ciência do ceramista”, que este sistema de conhecimento

seja homogêneo, não mereça ser investigado ou, ainda, que esteja sendo

construído de modo linear, apartado do mundo natural, da sociedade ou

apenas por atores acadêmicos e especialistas em arte.

Referências Bibliográficas

DABUL, L. (2001). Um percurso da pintura: a produção de identidades de

artista, Niterói, EDUF.

DESCOLA, P. (2002). La antropologia e la cuestión de la naturaleza. In:

Repensando la Naturaleza, Bogotá, Universidad Nacional de Colombia/Sede

Leticia, Instituto Amazónico de Investigaciones (IMANI), Instituto Colombiano de

Antropología e Historia (ICANH), Conciencias.

INGOLD, T. (1996). The optimal Forager and Economic Man. In: Descola,

P.;Palsson, G. (Eds.). Nature and society: anthropological perspectives, Londres,

Routledge.

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 19-25

ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO

LATOUR, B. (1984). Les Microbes, guerre et paix, suivi de Irredutions,

Paris, A.-M. Métailié.

LAW, J. & MOL, A. (2002). Complexities, Durham and London, Duke

University Press.

SOUZA, Marzane Pinto de (2002). Mãos de Arte e o Saber-Fazer oos

Artesãos de Itacoareci: um estudo antropológico sobre socialidade, identidades e

identificações locais, 1v. 184p. Mestrado, Universidade Federal Fluminense.

VALLADARES, C. do P. (1978) Introdução In: Fundação Nacional da Arte,

Artesanato brasileiro, Rio de Janeiro, edição Funarte.

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

Ricardo Roque

Universidade dos Açores

Introdução

Durante os fins do século XIX e o começo do século XX, período

áureo da expansão imperial europeia e da institucionalização da

antropologia científica, milhares de crânios humanos foram

coleccionados pelos europeus nos antigos territórios coloniais de África,

América, Ásia e Oceânia. Muitos destes materiais, então recolhidos em

museus com vista a estudos antropológicos, continuam ainda

depositados nessas instituições, um pouco por todo o mundo. Alguns

anos atrás, iniciei um projecto de pesquisa com o propósito de traçar a

circulação destas colecções e contar a sua história colonial.1 Este projecto

adquiria, à partida, dupla pertinência: por um lado, articulava-se com o

debate público em curso sobre o repatriamento das ossadas indígenas na

posse dos museus das velhas nações imperiais; e, por outro, dialogava de

perto com a emergente literatura em estudos sobre a ultura material e

Diferentes versões deste texto foram apresentadas em seminários no Instituto Universitário Europeu

(Florença), ISEG (Lisboa) e Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge

(Reino Unido), em 2004. Agradeço a Christopher Bayly, Tiago Moreira, Vololona Rabeharisoa, Alexis

Rappas e Kim Wagner os valiosos comentários a versões iniciais do artigo. Esta pesquisa foi possível

graças a uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Portugal

(BD/9048/2002) e ao apoio de Smuts Memorial Fund e Darwin College, Universidade de Cambridge.

Agradeço a Ron Vanderwal, Sandra Winchester e Frank Job (Museu Victoria, Melbourne) o apoio

prestado na pesquisa em Austrália.

1 Este projecto inseriu-se inicialmente na minha pesquisa de doutoramento (iniciada em 2002) sobre

colonialismo e colecções antropológicas em Timor Leste e Papua Nova Guiné.

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

estudos sobre a ciência sobre biografias de artefactos e de objectos

científicos.2

Enquanto investigava para este projecto deparei-me com um

facto algo inesperado. Nos velhos arquivos que consultava nos museus,

já existiam outras „histórias‟ escritas sobre a história que eu pretendia

escrever. Durante as minhas visitas de campo aos museus apercebi-me

que muitos dos artefactos etnográficos e dos restos humanos aí

depositados se encontravam associados a um complexo de narrações e

indexações históricas que precediam a minha chegada ao terreno – um

complexo que os curadores tratavam pelo nome de „histórias‟ dos

objectos. Este género de conhecimento sugeria a existência de uma

forma de historiografia das colecções praticada por antropólogos,

curadores de museu, e outros colaboradores no passado; e cujos

produtos continuavam no presente a ser preservados, revistos e

actualizados pelos actuais curadores. Este facto era inesperado porque na

literatura de história da antropologia e das colecções encontrei sugestões

insistentes de que, na origem colonial das colecções e na cultura

museológica oitocentista, as colecções antropológicas (quer se tratassem

de artefactos materiais ou de ossadas humanas) existiam destituídas de

história. Caracterizava-as um estado de historicidade ausente, destruída

ou ocultada, pelo qual eram responsáveis os antigos antropólogos do

museu e os coleccionadores coloniais.3 Contudo, o meu contacto com a

historicidade dos objectos presente nos museus parecia contradizer estas

perspectivas. Em lugar de me apontar para a ausência de história,

sugeria-me que as práticas de coleccionar coisas, desde o terreno ao

museu, eram correlativas de práticas de criação de „histórias‟ para as

coisas em colecções – inclusive durante o período colonial em que foram

obtidas. Com efeito, muitas das „histórias‟ que habitam hoje os arquivos

dos museus possuem uma datação colonial. Foram feitas por agentes

que, durante o século XIX e inícios do século XX, estiveram envolvidos no

processo original de recolha das colecções no terreno e seu

armazenamento em instituições científicas.

2 Na história e sociologia da ciência, veja-se em especial: Daston, 2000a. Na antropologia e nos

estudos da cultura material as referências básicas são Appadurai, 1986; Kopytoff, 1986; Thomas,

1991. 3 Os recentes estudos de história da antropologia, museus e colecções etnográficas tendem a assumir

que, no museu, a historicidade das colecções existe omissa ou oculta desde o momento colonial da

sua obtenção e só agora, em tempos „pós-coloniais‟, os investigadores começaram a escrevê-la,

„descobrindo‟ o valor de devolver às coisas o seu passado. Para um ensaio crítico desta literatura e

um esboço de conceitos alternativos cf. Roque, 2006.

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | ABRIL - 2011 | P. 26 - 47

ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

Este artigo explora o encontro com estas „histórias‟. Baseando-

me em trabalho de campo em museus de Reino Unido e Austrália,

procuro dar visibilidade às histórias coloniais das colecções que

proliferam e habitam os espaços do museu, considerando-as como

narrações válidas e consequentes, e não como narrativas obsoletas que

apenas interessa contrariar ou denunciar como incorrectas. No que

consistem; como são feitas; o que provocam; que desafios colocam e que

género de história das colecções é possível contar a partir delas. Partindo

destas perplexidades exploro a historicidade das colecções

antropológicas no período colonial enquanto propriedade emergente dos

objectos, desafiando a atenção menor que na produção especializada tem

recaído sobre este domínio de conhecimento historiográfico das coisas.4

Decerto, sendo as „colecções‟ em questão compostas por crânios

humanos existem especificidades culturais que devem ser tidas em

consideração. Nas tradições da cultura Ocidental, por exemplo, o crânio

está rodeado de uma simbologia liminal, evocando uma perigosa zona de

fronteira com a morte; permanece ainda fortemente associado à definição

do eu, da alma e da pessoa.5 Para mais, nos museus, os restos humanos

pertencentes a populações nativas dos antigos territórios coloniais

encontram-se hoje rodeados de especiais precauções éticas e políticas,

devido às controvérsias sobre o seu repatriamento. Todavia, salvo se

necessário, não acentuarei aqui estas especificidades. Partirei da hipótese

de que a análise deste tipo de colecções permite extrair algumas

conclusões mais abrangentes acerca do problema da historicidade

colonial dos objectos em colecções científicas.

O argumento aqui esboçado é o seguinte: a constituição de restos

humanos como colecções antropológicas implica um trabalho colectivo

orientado para garantir a associação entre coisas materiais e contextos

históricos singulares. Neste sentido, os antropólogos e os

coleccionadores não orientam, nem orientaram, as suas actividades para

a remoção de historicidade aos objectos, destruindo ou apagando os

vestígios do passado das colecções. Pelo contrário: empenham-se em

construir memórias singulares, criando narrativas e outras indexações

retrospectivas que adicionam historicidade às colecções, deste modo, por

exemplo, dotando os objectos de passado colonial. A esse conjunto de

práticas colectivas dirigido para a ligação de „histórias‟ a coisas chamarei

4 Para textos que chamam a atenção para a historicidade emergente dos objectos ver Daston, 2000b;

Latour, 2000; Rheinberger, 2000.

5 Sobra a simbologia dos crânios humanos na tradição Ocidental, veja-se por exemplo: Henschen,

1966.

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

trabalho historiográfico. Este tipo de trabalho concerne a produção de

historicidade e memória individualizadas para objectos ou conjuntos de

objectos em museus, através, por exemplo, da elaboração de novas, ou

da refutação de velhas narrativas sobre as circunstâncias coloniais de

colecção.

A noção de trabalho historiográfico exprime a preocupação em

captar a emergência da historicidade das coisas na prática. O conceito

inspira-se no conceito de trabalho biográfico proposto pelo sociólogo da

medicina, Anselm Strauss, nos seus estudos etnográficos sobre doenças

crónicas e trabalho médico em hospitais (Strauss et al, 1997). Para

Strauss, a trajectória da(s) doença(s) de um paciente num hospital é

construída mediante vários tipos de trabalho. Entre eles, Strauss chamou

a atenção para o “trabalho biográfico”, isto é, as práticas de inquirição,

registo, análise e transmissão de conhecimento acerca dos sintomas do

paciente, do seu passado médico, estilo de vida, ou história social. Este

trabalho pode ser executado por diferentes actores em diferentes

momentos e lugares; ignorá-lo ou fazê-lo mal feito acarreta

consequências maiores para a trajectória da doença. Sem ele, por

exemplo, os médicos podem não ser capazes de produzir um diagnóstico

rigoroso, as tarefas das enfermeiras podem deparar-se com a resistência

dos pacientes, etc. (Strauss et al, 1997: 137-38). Se considerarmos, por

analogia, que as colecções antropológicas, nos seus percursos para o e

no museu podem possuir trajectórias do mesmo género, então podemos

considerar também que a criação de trajectórias de colecções científicas

implica a criação de um conhecimento historiográfico individualizado

para cada coisa coleccionada. Por conseguinte, uma „etnografia de

objectos‟ – em particular de objectos enquadrados em museus e

colecções – deve implicar uma etnografia das histórias que sobre eles se

contam e do trabalho historiográfico investido na produção das

trajectórias dos objectos.

O texto que se segue procura dar conteúdo à noção de trabalho

historiográfico no contexto da minha pesquisa sobre colecções de restos

humanos. Nos museus dos dias de hoje, este trabalho adquire

visibilidade na forma de pequenas histórias individuais, curtos registos,

notas, mini biografias de coisas, que permanecem arquivadas em gavetas

e prateleiras, nos bastidores da instituição. No contacto com estes

registos, a possibilidade de reconstituirmos o traçado da historicidade

emergente de restos humanos adquire consistência. Com efeito, é no

museu que a investigação das trajectórias das colecções começa e é aí

que o pesquisador se apercebe que produzir histórias singulares para as

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

coisas em colecções constitui e constituiu uma actividade colectiva

corrente, cientificamente significativa, politicamente consequente e até

comercialmente valorizada. Tomemos, então, o caminho do museu e

vejamos o que podemos descobrir a partir de um simples registo.

Crânios e „histórias‟ no museu

“MoV X 12917 Restos humanos, não modificados

Data 10-08-1904

Fontes: Foster, F.O.

Armazém: Gab. 713/4

Procedência: Papua Nova Guiné, Província do Golfo, Rio Turama

Grupo: Cultural: Omaidai

Artesão:

Medidas:

Descrição: Crânio de um adulto masculino. (Registo)

Comentários: Num cartão anexo o seguinte: Crânio de um homem da

Tribo Omaidai, Rio Turana [sic]. Este homem era um notável na sua tribo

e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos. Foi salvo da

destruição de todos os crânios, que está a ser levada a cabo por Grupos

do Governo, por ter ficado escondido dentro do vestido de uma mulher e

pendurado numa árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador

alguns dias mais tarde. A sugestão é que o crânio fazia parte de um

cabide de crânios (skull rack) destruído por „grupos do governo‟. Existe

alguma dúvida sobre a „notabilidade‟ do homem, uma vez que estes

cabides de crânios albergam os crânios de inimigos tomados na guerra.

RLV

Índice craniano 76.3, idade estimada 30-40, Masculino.”6

O excerto acima representa o registo individual de um crânio

humano da Papua Nova Guiné nas colecções do Museu Victoria, em

Melbourne, Austrália, actualmente mantido em suporte informático pelo

6 Registo informático das colecções de restos humanos, Museu Victoria, Melbourne. RLV designa as

iniciais de Ron Vanderwal, o actual Curador Sénior (Culturas Indígenas, Oceânia) do Museu Victoria.

Registo informático acedido em Novembro de 2003 por cortesia de Ron Vanderwal. Ao longo deste

trabalho traduzi para português as citações originalmente em língua inglesa.

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

Curador Sénior de Antropologia, Dr. Ron Vanderwal. Este é um dos

muitos crânios de populações não europeias na posse do museu, e um

dos muitos milhares que continuam na posse de outros museus e

instituições. À semelhança de outros objectos, cada um destes crânios é

esperado existir na forma de um campo de registo individual que é

aplicado sistematicamente ao conjunto da colecção. Isto acontece porque

a existência de „colecções científicas‟ no museu baseia-se na paciente

preservação de registos individuais acerca de todos e cada um dos corpos

físicos considerados merecedores de um lugar nas colecções. Em termos

tecnológicos, poder-se-á comparar estas anotações museológicas

orientadas para o registo de objectos, aos “registos clínicos” de pacientes

num hospital, e, em geral, às múltiplas técnicas de registo biográfico

desenvolvidas pelas instituições disciplinares na modernidade para

controlar e ordenar as vidas dos seus sujeitos (cf. Foucault, 1975). Estes

registos podem aparecer em formatos mais ou menos estandardizados,

em velhos rótulos de papel e registos individuais em cartão; em

manuscrito, publicados em catálogo, ou já em suporte informático,

manuseáveis por computador numa base de dados. Nestes locais, os

crânios aparecem invariavelmente numerados, ou de algum modo

codificados. O tipo de entradas e os seus conteúdos podem variar de um

sistema de registo para o outro, mas em geral a informação distribui-se

por um espectro típico de categorias. Assim, é comum encontrar

pormenores e narrativas sobre as circunstâncias de aquisição, doação, ou

compra da colecção; o nome de um doador, vendedor, ou coleccionador;

uma origem geográfica, ou „procedência‟; um código numérico indexando

o item a uma prateleira, uma caixa, uma zona do armazém onde o

objecto está guardado; uma descrição morfológica; medições

craniométricas; usos ou significados culturais na sociedade de origem;

nome, sexo, idade, tribo do sujeito falecido; miscelâneas de comentários

e observações; e até referências eruditas a bibliografia associada ou a

documentos de arquivo relevantes. Nas minhas visitas aos museus, os

curadores e técnicos do museu referiam-se com frequência ao conjunto

formado por entradas de catálogo, correspondência, registos e cartões,

rótulos e etiquetas, como a “documentação” ou a “história” de um

objecto.

Registos individuais como esse, do crânio da Nova Guiné, são

normalmente o ponto de partida das minhas visitas. São a primeira coisa

que os curadores costumam fornecer-me. Por vezes são também o ponto

de chegada, tudo o que o podem dizer-me acerca de um objecto. Na

verdade, estes registos raramente exibem para cada objecto informação

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acerca de todas as entradas disponíveis. Os espaços vazios são

frequentes. Os profissionais dos museus que contactei queixavam-se

amiúde do facto, pedindo desculpa pela problemática “falta de

informação” existente sobre muitos dos espécimes – como se devessem

ter mais para me contar.7 Este interesse local e contemporâneo pelas

„histórias‟ tinha razões concretas. Para os actuais curadores e

antropólogos existem boas razões científicas e éticas para valorizar a

informação histórica associada às colecções; consequentemente, esperam

que „um investigador‟ que lhes bata à porta partilhe dessas expectativas.

O interesse pelas „histórias‟ das colecções articula-se com o

problema da “procedência” (provenance), cujas implicações actuais são

tanto científicas quanto éticas e políticas. Para os antropólogos biológicos

que trabalham com ossadas humanas, a existência de bons registos

individuais, de boas „histórias‟, é fundamental para praticar análises

científicas válidas sobre restos humanos. Isso mesmo me afirmou uma

antropóloga australiana em Sydney, em 2003: “o trabalho feito sobre

colecções com uma procedência mal esclarecida não é boa ciência. Tem-

se o osso, não se tem o contexto. Para se compreender a variação é

necessário possuir uma base de dados, saber-se a ascendência, a idade,

o sexo…”. Os problemas com as „histórias‟ dos crânios podem atrapalhar

a ciência actual. Mas podem também complicar politicamente a vida dos

curadores. A documentação associada aos restos humanos constitui uma

fonte de preocupação para aqueles que lidam com a problemática

contemporânea do repatriamento de ossadas indígenas. “Não podemos

repatriar” os restos humanos, desabafava-me um curador em Camberra,

“sem saber de onde é que eles vêm.” A importância que a determinação

da procedência das ossadas indígenas vem adquirindo no debate sobre

repatriamento mereceu o reconhecimento político. Nesse sentido, o

governo australiano tem promovido o National Skeletal Provenancing

Project (cf. Henchant, 2001); e, no Reino Unido, um Grupo de Trabalho

criado pelo governo britânico para estudar a situação das colecções de

restos humanos em museus ingleses recomendou recentemente a criação

de um painel de aconselhamento com a incumbência (entre outras) de

investigar as “circunstâncias originais de remoção” das ossadas humanas

e “a história de cada aquisição particular” (AA.VV, 2003: 120).

7 Considere-se por exemplo a resposta de um “gestor de colecções” de um museu inglês de história

natural às minhas indagações sobre colecções de restos humanos: “Temos nas nossas Colecções

algum material humano originário da Papua Nova Guiné, mas nada de Timor. Infelizmente, não

possuímos nenhuma documentação de arquivo pertencente a esses espécimes, apenas entradas no

nosso Catálogo de Crânios baseado em informação encontrada num catálogo de cartões

redescoberto na década de 1960.” (Anónimo, email pessoal; itálicos meus).

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Os curadores de museus e os antropólogos biológicos referem-

se, então, às “histórias” que possuem nas colecções atribuindo-lhes

grande importância. Ao passarem-me listas com registos individuais de

crânios humanos, os curadores esperavam que as suas „histórias‟ e a sua

„documentação‟ fossem importantes para mim, tanto mais que me

apresentava como investigador interessado na „história das colecções‟.

Tinham, com efeito, razão. As „histórias‟ eram relevantes. Não só pelos

„dados‟, por assim dizer, que forneciam acerca de cada objecto

específico, mas ainda e sobretudo pela visibilidade que conferiam ao

facto de os objectos serem o produto regular de um cuidado trabalho

historiográfico, cujos vestígios apareciam depositados nos registos, como

em sucessivas camadas geológicas.

As historiografias miniatura e os seus arquivos

O registo do crânio da Nova Guiné em Melbourne permite-nos

escavar alguns desses vestígios e aprender algumas coisas importantes

sobre a ordem do trabalho historiográfico. A partir da leitura do registo,

começamos por saber que o Museu Victoria não possui apenas um crânio

Papua nas suas colecções antropológicas. Aprendemos que o museu

possui crânios com „histórias‟ e „histórias‟ com crânios. Num museu, cada

corpo material se encontra indexado e associado a arquivos e histórias

individuais que definem o próprio objecto. A presença destes arquivos

ensina-nos, assim, em primeiro lugar, que os museus e as colecções são

lugares de produção e de guarda de memórias individuais das coisas,

espaços onde a historicidade se exibe na forma de múltiplas pequenas

histórias sobre objectos. Para mais, estes lugares não são guardiães

passivos de informação; neles, as „histórias‟ não são estáticas, estão em

transformação. Cada „história‟ de um objecto materializa-se em cartões,

arquivos, catálogos, bases de dados e pode ser transmitida, modificada,

re-escrita, re-organizada por sucessivas gerações de intervenientes.

Como melhor veremos, aqueles que trabalham no museu fazem e

refazem as histórias dos objectos, articulando vários tipos de saber e

reflectindo acerca da validade das referências que vão ficando associadas

às coisas.

Os profissionais do museu chamam „histórias‟ a formações

compósitas de vários tipos de suportes e de vários tipos de saber, os

quais, em articulação, produzem a identidade de um objecto. É possível

caracterizar o conhecimento historiográfico que vemos surgir nesses

suportes em três dimensões que, em conjunto, apontam para a marca

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distintiva das „histórias‟ no museu: a sua pequena escala. Em primeiro

lugar, a informação disponibilizada é ao mesmo micro-histórica e

biográfica, referindo-se a características, circunstâncias, incidentes, ou

pessoas que mantêm relação apenas com aquele objecto singular, no seu

percurso para o museu e no museu. Assim, em geral, esta historiografia

não pretende estabelecer o passado de um objecto noutra escala que não

o contexto imediato das circunstâncias e elementos julgados necessários

para determinar a sua identidade e autenticidade. Em segundo lugar, esta

é uma informação de tipo individual cujo arquivo físico é ele próprio de

pequena escala: rótulos manuscritos, registos, cartões mecanografados,

cartas particulares, etc. Por vezes, este arquivo existe literalmente colado

ou „gravado‟ no objecto. Por exemplo, não é invulgar encontrar números

de catálogo, códigos de armazém, categorias raciais, ou até curtos

comentários gravados e pintados a tinta-da-china num crânio. Por estas

razões, podemos designar as „histórias‟ do museu como um género de

historiografia miniatura suportado por um arquivo miniatura. Por fim, em

terceiro lugar, esta historiografia miniatura compreende diferentes tipos

de informação. Pode incluir formas narrativas bem como formas

classificatórias de informação histórica e indexação biográfica. A

biografia do crânio da Papua Nova Guiné em Melbourne, por exemplo, é

constituída por uma dupla indexação das origens dessa ossada humana:

(i) uma indexação classificatória, visível no uso de categorias que, por um

lado, marcam o objecto cronologica e geograficamente (e.g., “data” e

“procedência”) e, por outro, gravam no objecto sinais de autoria humana

(“fontes”, “artesão”, “doador”); e (ii) uma indexação narrativa, uma história

que é contada sobre as circunstâncias coloniais de aquisição. No registo

que estamos a acompanhar, ambas as modalidades – narrativa e

classificatória – são visíveis. Podemos distinguir a tradição técnica da

anatomia e da antropologia física nas notas metrológicas (“medidas”;

“índice craniano”), ou nas estimativas sobre idade e sexo do sujeito. Mas

notamos também que este saber técnico, seco e matemático, existe

combinado com um tipo de conhecimento narrativo: a informação que

encontramos na secção “comentários”. Concentremos então a nossa

atenção na modalidade narrativa desta historiografia, presente na entrada

“comentários”. Esta oferece um bom exemplo do trabalho envolvido na

elaboração destas „histórias‟ e de algumas das complexidades a ele

inerentes.

RLV, Ron Vanderwal, o actual curador, dá a entender que

transcreveu para o seu registo informático uma história que recolheu de

“um cartão anexo” ao crânio. Esta história consiste numa narrativa sobre

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as circunstâncias de aquisição do crânio no território designado, nesse

ano de 1904, como „Nova Guiné Britânica‟, o lado sudeste da ilha da Nova

Guiné então sob a influência colonial do império inglês desde 1884. A

história inclui indicações sobre o contexto colonial em que foi adquirido,

alusões aos propósitos dos coleccionadores, ou à identidade social e

sexual do sujeito a quem a cabeça pertencera em vida. Contudo, a secção

“comentários” apresenta duas versões concorrentes da história colonial

da colecção. Existe a versão do “cartão anexo” e a versão de RLV, o

curador, que exprime as suas dúvidas sobre a veracidade de alguns dos

eventos reportados na história do cartão. Vanderwal contesta, em

particular, a identidade „tribal‟ e a posição social do homem a quem o

crânio foi removido. O curador não se limita, então, a transcrever uma

narrativa de um velho cartão anexo. Vanderwal, enquanto antropólogo,

fez extenso trabalho de campo na Província do Golfo da Papua Nova

Guiné (cf. Vanderwal, 1984) e, na base da sua própria experiência, está

deliberadamente a interferir com a narrativa original, adicionando

elementos que transformam a historiografia e, por conseguinte, a

identidade do crânio. Nessa interferência, Vanderwal tem em mente um

padrão relativo aos usos culturais de crânios humanos, verificado pelos

antropólogos profissionais que trabalharam com as tribos do Golfo da

Nova Guiné: a preservação de “crânios de inimigos tomados na guerra”,

em cabides especialmente preparados para o efeito no interior das

chamadas longhouses, casas grandes das tribos. Na Nova Guiné do

período colonial esta prática era comum. Vanderwal deduziu então que o

crânio masculino existente no Museu Victoria provavelmente nunca teria

pertencido a “um notável da sua tribo”, os Omaidai, mas sim a indivíduo

do sexo masculino desconhecido, um membro de outra tribo, decerto

bem menos „notável‟ – um inimigo do grupo Omaidai. Portanto,

desconfiado da completa veracidade da história, o curador re-contou-a.

Vanderwal estava a fazer trabalho historiográfico, transformando a

historiografia colonial do objecto, interferindo com uma narrativa que

precedia a sua. De facto, antes das reflexões históricas de Vanderwal já o

crânio Papua tinha recebido, „em cartão anexo‟, uma narração biográfica.

Voltarei adiante ao que podemos ainda aprender com este processo de

(re)-contar „histórias‟. Prestemos agora atenção à dinâmica circulatória do

trabalho historiográfico sobre colecções.

A circulação de histórias

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As historiografias miniaturas existem em circulação, enquanto

produto temporalmente emergente nas práticas colectivas. Estas

características tornam estas „histórias‟, para usar uma expressão de

Bruno Latour, num género de “entidade circulante”, móvel, rebelde,

transformativa (Latour, 1999). A redacção da narrativa que consta num

„cartão anexo‟, ao qual o actual curador faz referência, precede a

intervenção de Vanderwal provavelmente em muitos anos. É possível que

remonte, pelo menos, a 1904, data em que o objecto parece ter dado

entrada no museu; ou talvez a alguns anos mais tarde. O registo, porém,

não nos informa sobre quem escreveu essa primeira história, ou quem a

anexou, no cartão, ao crânio. Talvez um curador anterior a tenha escrito;

ou talvez tenha sido relatada e redigida por outros actores que, no

registo, figuram na narrativa como participantes no percurso de colecção

do crânio: “o colector”, “grupos do governo”, “uma mulher”, a “tribo”, ou o

indivíduo designado como “F. O. Foster”, um nome que recebe certo

destaque como a “fonte”. De qualquer modo, seja quem for o autor da

narrativa no „cartão anexo‟, parece certo que a „história‟ desse crânio da

Papua Nova Guiné não é fruto do trabalho de uma só pessoa, de um só

curador, num só momento e lugar determinados. É o resultado de um

trabalho colectivo, que se distribuiu no tempo.

Esta maleabilidade colectiva das historiografias miniatura

constitui uma manifestação da circulação física de coisas de um lado para

o outro, de mão em mão; constitui também, como adiante veremos, uma

manifestação da circulação epistémica das coisas e das suas histórias, a

reinvenção constante de passado para os objectos. Consideremos a

circulação física, no espaço e no tempo. Em 1904, os crânios humanos

das populações indígenas de territórios coloniais „exóticos‟, como a Nova

Guiné, tinham de viajar grandes distâncias até chegar a museus na

Europa ou a cidades coloniais „civilizadas‟ como Melbourne, no sul da

Austrália. Circulavam assim num sentido literalmente físico e geográfico,

cruzando fronteiras territoriais. Ao efectuar este trajecto, o crânio Papua

constituía, assim, um episódio de um fenómeno maior, sobre o qual os

historiadores da antropologia têm escrito – o tráfico, à escala global, de

artefactos etnográficos e de restos humanos indígenas como espécimes

científicos entre 1850 e 1930 (cf. Stocking, 1985: 2; Jackins, 1996: 192).

Os museus eram cruciais nesta “economia política global” (Zimmerman,

2001), formando nós centrais em redes longas e complexas que

interligavam agentes coloniais e comunidades indígenas, intermediários

metropolitanos e cientistas no processo de coleccionar artefactos

etnográficos ou restos humanos. Assim, a viagem desse crânio particular

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dava expressão à institucionalização da antropologia científica nos

museus das metrópoles imperiais e coloniais, bem como à vivacidade das

redes de coleccionadores e intermediários que, no terreno, suportavam

esse tráfico de longa distância.

Mas este tráfico global não punha apenas objectos em circulação.

Nos circuitos dessa mesma „economia política‟ da antropologia, viajavam

também documentos, correspondência, informação. Junto com objectos

antropológicos, seguiam também as suas „histórias‟. Existiam, a um

tempo, histórias e objectos em circulação, pelo que a trajectória de cada

um destes elementos podia tomar caminhos relativamente autónomos – a

ponto de se separarem. Com efeito, o movimento de objectos

antropológicos para os museus necessitava de atender à manutenção

(nem sempre fácil) de uma associação entre corpos físicos de objectos e

documentos que lhes garantiam biografia e indexação histórica. A

associação entre o crânio e a narrativa inserida no „cartão anexo‟ ao

crânio Papua terá, então, sido produzida algures no interior destas redes

de circulação dos objectos. Provavelmente outros actores, fora do museu,

entraram em acção para informar historicamente os crânios e permitir a

sua viagem até à instituição. O registo mantido por Ron Vanderwal em

Melbourne fornece informação insuficiente acerca deste outro trabalho

colectivo. Contudo, deixa algumas pistas que permitem perseguir esse

trabalho, através de outra documentação, noutros locais do mesmo

Museu Victoria.

Quando visitei o museu em 2003, os meus anfitriões

conduziram-me aos locais onde esta outra documentação associada aos

objectos era guardada, em pastas, contendo correspondência trocada

com o museu ao longo dos anos. Numa dessas pastas, encontrei um

ficheiro sob o nome de “Foster, F. O.”. Nele constavam duas cartas

dirigidas por Foster ao director do Museu Victoria, R. Henry Walcott, em

1904. Foster, um dentista residente em Queensland, no norte da

Austrália, apresentava-se como intermediário entre o Museu e um “seu

amigo”, o Sr. Geoffrey W. Jiear, o qual, uns meses atrás, tinha dirigido

duas cartas ao director, oferecendo para venda ao museu alguns crânios

da Papua Nova Guiné (Jiear para Walcott, 26 Janeiro 1904 e 27 Fevereiro

1904). Walcott, o director, aceitou a oferta. O preço foi negociado e os

crânios empacotados e enviados para Melbourne. Mas em viagem não

estiveram unicamente as ossadas. Com os ossos circularam as suas

„histórias‟, relatadas numa carta e rotuladas nos materiais. Foi então na

correspondência enviada por Foster para Walcott em 1904 que pude

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reler, ipsis verbis, a narrativa mais tarde transcrita para a secção

“comentários” no registo individual do crânio:

“Estou a escrever-lhe em nome de um amigo meu, um

Sr. Geoffrey Jiear, que possui alguns espécimes Etnológicos da

Nova Guiné para vender e acerca dos quais creio ele ter já

comunicado consigo e, a pedido seu, anexo agora a história de

cada um consistindo em dois crânios masculinos dois femininos

e um crânio jovem.

N.º 1. Um crânio masculino: o crânio de um homem da

tribo OMAIDAI, rio TURAMA. Este homem era um notável na sua

tribo, e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos.

Foi salvo da destruição de todos os crânios, que está a ser

levada a cabo por Grupos do governo, por ter ficado escondido

dentro do vestido de uma mulher e depois pendurado numa

árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador alguns

dias mais tarde. […]” (Foster para Walcott, 10 Junho 1904;

itálicos meus)

“Aviso-o que enviei por este mesmo correio seis

espécimes etnológicos quatro (4) Papuas e dois (2) Aborígenes

de Queensland que estou em crer chegar-lhe-ão em segurança

e vão revelar-se satisfatórios. Faça o favor de me enviar o

dinheiro por P. O. O., a pagar a F. O. Foster, Rockhampton.

Rotulei cada espécime com os pormenores que existem

disponíveis.”(Foster para Walcott, 28 Julho 1904; itálicos meus)

Estes excertos permitem-nos surpreender a história que

encontrámos fixada na base de dados informática, em circulação, no

momento em que foi passada de Foster, em Queensland, no norte da

Austrália, para Walcott, em Melbourne, no sul. Percebemos por estas

cartas que alguns crânios foram oferecidos ao director para venda, e que

essa transacção envolveu também a venda das suas histórias. Crânios e

histórias eram o objecto que estava a ser trocado por uma certa quantia

de dinheiro. Pois adicionar histórias aos crânios acrescentava valor

económico e valor científico aos objectos, permitindo que a transacção

fosse bem sucedida. Ficamos ainda a saber que o Dr. Foster e o Sr. Jiear

prepararam essas histórias, escrevendo-as em rótulos assim como na

carta, e que o fizeram em resposta a um “pedido” formulado pelo director

do museu. A redacção de histórias surgiu como produto de uma

interacção, na qual histórias foram esperadas juntamente com crânios e

em que tanto ambos eram negociados e transaccionados como

mercadorias. A adição de histórias resultou, então, de uma adequação

dos propósitos dos colectores dos crânios às expectativas e exigências

do cientista no museu. É importante acentuar este ponto, pois, como

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sugerimos ao início, existe na literatura sobre história das colecções

antropológicas uma visão consolidada que pressupõe que os praticantes

da ciência antropológica de museu estão naturalmente „desinteressados‟

das histórias singulares dos objectos. Esta imagem não funciona no caso

do crânio Papua em Melbourne – e dificilmente funcionará noutros

contextos. Na verdade, existem bases para supor que a singularização de

histórias para crânios humanos era considerada crucial pelos

antropólogos de museu do século XIX e inícios do século XX, pois

garantia a „autenticidade‟ das colecções científicas, assim apoiando a

subsequente validade das observações antropológicas (cf. Roque, 2007a).

Os doadores e os colectores de restos humanos no campo eram por isso

encorajados pelos antropólogos profissionais a não desprezarem essa

informação histórica na recolha dos objectos e na sua preparação para

envio ao museu.

O caso do crânio em Melbourne sugere, pois, que as

historiografias miniatura resultavam de um trabalho que decorria em

interacção com os agentes do museu, mas que, em boa medida,

começava por ser executado fora dele, ao longo das redes de

colaboradores. Um curador de colecções, dois intermediários, porventura

ainda outros intervenientes no terreno, na Nova Guiné – participantes

possíveis, mas invisíveis neste ponto da reconstituição do traçado dos

crânios e das suas „histórias‟ – faziam trabalho historiográfico, em

relação, co-produziam uma memória para os crânios. Os „objectos

antropológicos‟ que assim tomavam forma não eram, portanto,

simplesmente crânios, nem simplesmente discursos, mas uma formação

compósita de ambos: crânios-e-histórias. O crânio Papua enviado por

Foster em 1904 não era, pois, apenas uma coisa material. Era algo ao

mesmo tempo relato e materialidade, indexação histórica e ossos

humanos, em conexão. No contacto entre os dois, corpo físico e registo

individual da sua história, encontrava-se a condição do crânio enquanto

objecto integrante de uma colecção científica. Estes princípios, creio,

aplicam-se quer ao trabalho historiográfico realizado por Foster, Jiear e

Walcott em 1904, quer àquele feito por Vanderwal, cerca de cem anos

mais tarde.

Ligações entre histórias e coisas

Esta última observação põe em evidência ainda uma outra lição

que o registo do crânio Papua nos pode ensinar acerca do trabalho

historiográfico sobre objectos. Trata-se da visibilidade que confere aos

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jogos de associação e dissociação entre historiografias miniatura e

objectos. Esta dinâmica de associação, como já notámos, resulta de uma

actividade colectiva. Mas é também colectiva quanto aos seus efeitos. Do

ponto de vista do pessoal que trabalha no museu, o trabalho

historiográfico deve orientar-se para a produção de laços credíveis e

precisos entre palavras e coisas. Os corpos materiais e as suas „histórias‟

devem ser mantidos juntos, unidos, como uma só entidade. A este

respeito, julgo que a sugestão de John Law, para quem “não existe

diferença importante entre histórias e materiais” (Law, 2000: 2), permite

aproximar-nos um pouco mais do significado sociológico das

historiografias miniatura:

“[…] histórias, histórias bem sucedidas, „performam-se‟ elas

próprias no mundo material – sim, na forma de relações sociais, mas

também na forma de máquinas, de arranjos arquitectónicos, corpos, e

tudo o mais. Isto significa que um modo de imaginar o mundo é vê-lo

como um conjunto de histórias (bastante desordenadas) que se

intersectam e interferem umas com as outras. Significa também que

estas histórias, todavia, não são meras narrações no sentido

linguístico habitual do termo.” (Law, 2000: 2)

De modo análogo, o mundo do museu e o mundo das suas redes

pode ser imaginado como formando conjuntos de histórias, mais ou

menos „desordenadas‟. Desta perspectiva, as historiografias miniatura

não devem ser interpretadas de modo culturalista, como „contextos

culturais‟ com que um grupo insufla de „significado‟ coisas físicas vazias

de sentido. Essas são narrativas que realizam, geram efeitos concretos,

palpáveis; histórias que fazem coisas acontecer no mundo material, ou

que, como afirma Law, „performam-se no mundo material‟. Neste

sentido, as „histórias‟ que habitam o museu performam-se nos crânios

humanos, tornando-os entidades imbuídas de identidades e

propriedades biográficas específicas; ou performam-se nos espaços do

museu, por exemplo, afectando a distribuição das coisas por armazéns,

caixas e prateleiras; ou mesmo em regimes éticos, tornando certas

„coisas‟ mais ou menos sensíveis e controversas; ou ainda em taxonomias

científicas, podendo influir decisivamente na validade epistemológica dos

estudos antropológicos sobre raças feitos com base em ossadas

humanas.8

Estas considerações são válidas tanto para a modalidade narrativa

quanto para a modalidade classificatória das „histórias‟ dos objectos.

8 Analiso noutro trabalho o tipo de problemas que, no final do século XIX e inícios do século XX, a

falta de credibilidade da „história‟ de crânios humanos podia provocar na classificação científica de

raças (Roque, 2007b: cap. 7).

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Suponha-se, por exemplo, que, no museu, não é atribuído um número ou

um qualquer código a um crânio humano. Como poderá um curador ou

um investigador encontrá-lo no armazém, no meio de centenas ou

milhares de outras coisas? Suponha-se que um crânio, ou qualquer outro

elemento integrante de uma colecção, não tem procedência atribuída;

não sabemos de onde veio, de que lugar do mundo, de que „tribo‟, ou em

que data. Poderá um antropólogo metodologicamente escrupuloso

utilizar esse material para análise científica? O trabalho historiográfico

por fazer, mal feito, ou rejeitado pode acarretar consequências

problemáticas para a ciência e para a política dos museus. Suponha-se

que a dúvida mantém-se sobre se o crânio actualmente em Melbourne

pertenceu, ou não, a um indivíduo da tribo Omaidai. Poderá este crânio

alguma vez ser repatriado? Que grupo terá legitimidade para reclamá-lo

como seu antepassado? Suponha-se, ainda, que, nesse ano de 1904, os

senhores Foster e Jiear tinham contado ao director Walcott uma história

diferente para os espécimes; ou que não tinham contado história alguma.

Se não tivessem contado uma história que realizava, „performava‟, no

crânio a identidade de um homem socialmente „notável‟ e um contexto,

heróico e romanceado, de aquisição das ossadas („escondido no vestido

de uma mulher‟; „salvo da destruição de crânios‟) será que Foster e Jiear

teriam feito negócio com o cientista e conseguido bom preço pelos

espécimes? Teria esse crânio alguma vez interessado o Dr. Walcott e ido

parar ao Museu Victoria? Em que entidade, afinal, se tornaria esse crânio

humano sem que um contexto colonial lhe tivesse sido associado em

1904?

Se histórias e objectos não se mantiverem ligados, várias

complicações podem acontecer na trajectória das colecções, a ponto de

afectar os colectivos de outros actores e materiais que se encontram em

relação com o objecto. Elaborar histórias para colecções possui uma

dimensão performativa e, por isso, fazer trabalho historiográfico nos

museus era importante no passado e continua a ser importante. Assim,

as propriedades performativas da historiografia miniatura ganham

especial evidência nos momentos em que os corpos materiais são

sujeitos a circulação não só física, como epistémica. Isto é: nos

momentos, em especial, em que as „histórias‟ a que os objectos se unem

são (re)feitas e ajustadas, reinventadas e recompostas em novas

classificações, novas narrações, novas linguagens científicas (e.g.,

estudos de ADN), ou novos suportes materiais e tecnologias. A

construção de historiografias é um processo aberto a modificações

criativas, ao longo dos vários pontos das redes em que se movem os

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objectos – a outra maneira, então, de considerarmos crânios-e-histórias

como „entidades circulantes‟. Observámos até aqui que a ligação entre

crânios e histórias foi sendo elaborada por diferentes actores em

interacção, em vários tempos e lugares. A „história‟ na carta de 1904 e no

registo de 2003 não é a mesma, na forma, no suporte, no estilo, ou no

conteúdo. Foram adicionados elementos novos (por exemplo, as

medições); alguns elementos antigos foram contestados (Vanderwal

desconfiou da narrativa de Foster); e de um cartão anexo passámos a um

registo informático.

Importa notar que o crânio Papua é significativamente

reconfigurado com a intromissão narrativa do curador Vanderwal. Ao

tornar problemática uma história que aparentemente não o era até então,

os comentários de Vanderwal „performavam-se‟ no crânio, com

consequências imprevistas. Re-contar a história afectava a dinâmica

relacional da ligação entre histórias-e-crânios, necessária para posicionar

o crânio como coisa antropológica. Vanderwal interferiu com actividade

historiográfica realizada no passado, mas também com outros trabalhos

que pudessem vir a ser feitos com o crânio no futuro. O curador não

estava, pois, a interferir apenas com uma narração no sentido meramente

linguístico do termo, ou com um „contexto‟ externo ao corpo material do

objecto. Interferia com a natureza do próprio material, com a sua

realidade a um tempo epistémica e física. Multiplicava-lhe a ontologia

bifurcando a sua procedência: um crânio recolhido entre os Omaidai não

era dos Omaidai. Um crânio cuja identidade étnica e geográfica, à partida,

parecia claramente validada por uma narrativa, passava a possuir uma

origem e uma identidade indeterminada, a qual dificilmente poderia ir

além de uma vaga suposição: „um inimigo dos Omaidai‟. A estabilidade

da conexão original entre objecto e contexto colonial é desacreditada.

Ameaça desfazer-se, ou ameaça bifurcar-se… Dividido entre duas

histórias, a versão do colector colonial e a versão do curador pós-

colonial, o crânio Papua nas colecções do museu arrisca converter-se em

objecto múltiplo.

Notas finais

Iniciei este texto com a sugestão de que, nos museus, proliferam

registos que oferecem uma memória para as colecções científicas:

arquivos, rótulos, cartões de registo, bases de dados, cartas… Estes

arquivos de „histórias‟ constituem um facto banal do dia-a-dia dos

curadores e técnicos de museu com quem contactei ao longo da minha

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

pesquisa de campo. Usando o exemplo de colecções antropológicas de

restos humanos, procurei explorar a possibilidade de tomarmos a sério

estas „histórias‟. Argumentei que as colecções antropológicas não são

entidades por natureza orientadas para a subtracção de historicidade.

Constituem, desde a sua génese, trajectórias em construção para as quais

é fundamental a adição de contexto histórico, incluindo de contexto

colonial. Assim, em vez de supor que o trabalho de circulação de

colecções antropológicas no período colonial se orientou para a ocultação

ou negação de historicidade (colonial, ou qualquer outra), propus o

contrário. Os objectos postos em circulação para os museus eram, com

frequência, trabalhados com vista a circularem integrados em redes de

textos e palavras, que os dotavam de histórias próprias, singulares.

Com a noção de trabalho historiográfico tentei dar conta das

actividades colectivas envolvidas na produção de historicidade para os

objectos em colecções. Como vimos, este trabalho podia ser crucial para

fazer com que crânios humanos se tornassem objectos cientificamente

válidos e comercialmente valiosos. O caso do crânio Papua que

analisámos revelou que o „contexto colonial‟ é feito recorrentemente nos

museus e foi produzido – e não suprimido – por práticas historiográficas

realizadas por agentes coloniais e antropólogos do século XIX e inícios do

século XX. O mesmo caso revelou também que as „histórias‟ produzidas

durante e após o período colonial – o que chamei de „historiografia

miniatura‟ – possuem efeitos performativos. São capazes de ordenar ou

desordenar as colecções de restos humanos, afectando-lhes as

trajectórias presentes e futuras. A criação de um singular contexto

histórico e biográfico é importante para a identidade dos restos

humanos. Por isso, ignorar, interferir, ou efectivamente quebrar a ligação

entre crânios e histórias pode resultar em efeitos imprevisíveis e

problemáticos, a vários níveis: na produção de conhecimento científico,

na organização do museu, na decisão sobre repatriamento, etc. A

historiografia miniatura que acompanhámos, portanto, não serve ao

investigador como série de meras narrações pronta a ser denunciada

como errada, mas como um regime de descrições performativas que

expressam trabalho historiográfico e assim revelam os processos

colectivos de constituição de colecções científicas. Por conseguinte,

conceder a primeira palavra sobre a memória dos objectos aos agentes

sociais que os colecciona(ra)m é um passo fundamental para entender a

história de colecções coloniais e perceber o modo como os objectos

tomam a forma e a qualidade de „coisas científicas‟.

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

Conforme terá ficado claro, nem todos os objectos em colecções

são ou foram igualmente associados a histórias singulares. Por vezes, a

uma coisa foi atribuída uma história; outras vezes, essa história nunca foi

criada, ou perdeu-se do objecto, ou foi mais tarde criticada e rejeitada

como falsa… Como me confessaram vários curadores, muitos dos

objectos coleccionados durante a „era do museu‟ permanecem sem

informação associada ou com „histórias‟ incompletas ou mal certificadas.

A historicidade (ou ahistoricidade) das colecções não está decidida à

partida; está em construção. A “realidade histórica” de uma coisa é difícil

de produzir, de manter e de proteger (cf. Latour, 2000: 254-55). Os

objectos podem, assim, surgir-nos dotados de uma história sólida e

durável; outras vezes de uma história volátil, ausente ou desaparecida.

Neste cenário, a ausência ou a presença de um passado singular para

uma colecção ou para um objecto é um dos efeitos possíveis do trabalho

historiográfico efectuado, bem como das contingências e dos acidentes

que a cada passo podem afectar a associação entre coisas e „histórias‟ (cf.

Roque, 2007c). O processo de devolução da historicidade emergente

passa pela descrição das práticas e das circunstâncias que moldam e

moldaram a atribuição de passado para os objectos. Esta postura não

opõe, portanto, à tese substancialista da omissão da história nas

colecções a tese igualmente substancialista da história como propriedade

fixa das colecções. Antes recomenda que se interroguem os processos

práticos que conduziram à presença ou ausência de „história‟, sendo que

o exacto padrão dos laços que associam ou dissociam „histórias‟ e

„coisas‟ deverá ser aprendido através do exame das contingências de

circulação das colecções. Enquanto analistas, pois, devemos equipar-nos

para lidar com a complexidade dessas ligações devolvendo às colecções a

dinâmica histórica da sua história em emergência.

Decerto, também a história que ensaiamos participa da produção

de historicidade para as colecções – mas não performa nos objectos a

mesma historiografia miniaturizada que preocupou ou preocupa os

especialistas do museu. A análise das trajectórias das colecções onde o

trabalho historiográfico é objecto surpreende a colecção como lugar onde

historicidades múltiplas se formam, entrecruzam e transformam, e

expande radicalmente a pequena escala das historiografias a novos

arquivos, objectos, actores, e „contextos‟. Neste sentido, a curta

exploração do registo individual do crânio Papua que aqui

experimentámos está longe de esgotar os circuitos possíveis da pesquisa

da trajectória de uma colecção. Tocámos apenas a ponta do iceberg. Em

qualquer caso, prosseguir esta expedição deverá tomar um ponto como

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ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE

seguro. Se excluirmos do nosso próprio trabalho, hoje, a descrição dos

percursos da historicidade dos objectos, introduzimos na sua história

uma involuntária ocultação. Corremos o risco de arrancar às coisas os

„contextos‟ criados pelos próprios agentes para as distinguir como

„colecções‟.

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Sobre o autor

Ricardo Roque (BA, MA, Univ. Nova de Lisboa; D. Phil., Univ. Cambridge) é

professor do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da

Universidade dos Açores. A sua pesquisa explora a relação entre ciências

humanas, colonialismo e culturas indígenas no contexto da expansão imperial

europeia dos séculos XIX e XX. É autor de Antropologia e Império: Fonseca

Cardoso e a expedição à Índia em 1895 (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,

2001) e co-organizador de Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sobre a

Ciência (Porto, Afrontamento, no prelo).

Email: [email protected]

Enviado para publicação em Fátima Branquinho, Maria Aparecida e Sofia

Bento, orgs., Ciência, Natureza e Sociedade: Etnografia de Objectos, Rio de

Janeiro, Edições da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

Guilherme José da Silva e Sá – UFSM

[email protected]

Neste trabalho procuro refazer alguns dos passos que me

(des)nortearam durante o meu trabalho de campo junto a primatólogos

em uma faixa de Mata Atlântica preservada no interior do estado de

Minas Gerais. Aqui pretendo refletir sobre algumas possibilidades de

etnografar relações sociais mediadas por humanos e não-humanos,

sujeitos-objetos e objetos-sujeitos, dentro de um contexto de produção

científica. E foi tropeçando na tendência viciada de procurar

representações sociais que elucidassem as práticas nativas que caí em

uma “teia de significados” (Geertz,1978), da qual só consegui me

desvencilhar abandonando o paradigma interpretativo e operando

traduções que clareavam a dinâmica das transformações a que estava

sendo exposto.

Alegorias

Iniciei minha experiência de campo justamente durante o período

de festas carnavalescas. Saindo do Rio de Janeiro, onde eu residia e

cursava o doutorado, viajei para o interior de Minas Gerais fugindo da

agitação momesca e intimamente pensando que esta experiência de

isolamento, característica do trabalho de campo, não encontraria ocasião

mais adequada para ter início que não fosse o carnaval. Se DaMatta

(1980), em texto clássico, caracterizou o carnaval como um ritual

marcado por inversões, para mim, a folia de todo antropólogo só teria

sentido na reclusão do trabalho de campo.

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

Recém chegado, ainda me lembro de ir para o quarto após o

jantar - em plena segunda-feira de carnaval -, ligar o rádio e sintonizá-lo

em uma emissora AM. Fiquei deitado na cama enquanto ouvia a

transmissão do desfile das escolas de samba do grupo especial do Rio de

Janeiro. Imaginei os adereços descritos pelo locutor e os foliões com suas

fantasias pulando na Marquês de Sapucaí. A narração descrevia com

detalhes os carros alegóricos e tudo aquilo que se passava na avenida. Ao

fundo era possível ouvir os sons da bateria e o samba-enredo já

atravessado, sem nenhuma harmonia. Em minha cabeça representava

tudo o que acabara de ouvir e que imaginava conhecer bem de outros

carnavais.

Se por um lado, o caráter insólito daquela situação contrastava

com todas as outras experiências normativas que eu já havia vivido, por

outro, inadvertidamente eu me preparava para o normativo de

experiências insólitas que eu iria acompanhar seguindo primatólogos

atrás de seus primatas.

Harmonia

Quando primatólogos estão na mata, observando os macacos,

têm por princípio não interagir com seus objetos de pesquisa.

Preservando a invisibilidade dos pesquisadores pretende-se deixar os

macacos inteiramente à vontade em seu habitat natural. Esta idéia alia a

eficácia dos dados científicos coletados a uma “performance natural” dos

macacos. Dentro dos padrões cientificamente aceitos, macacos-sujeito

devem ser tratados como macacos-objeto, como se estes estivessem

sozinhos na mata, ainda que esta idéia possa ser contestada se

considerarmos o acompanhamento na mata como um encontro

mutuamente percebido e que torna o próprio ato de observar e ser

observado em um sistema relacional.

Inicialmente, quando os primatas ainda não haviam sido

contactados, o trabalho de primatólogos consistia em “correr atrás dos

macacos” – visto que eles fogem da presença humana – até habituá-los à

companhia do pesquisador. Esta fase do trabalho é extremamente

cansativa para os primatólogos, que têm que seguir por terra (em geral

através de mata fechada) os macacos (muito mais ágeis e velozes) se

locomovendo pela copa das árvores. Estima-se que esse momento

também seja bastante estressante para os macacos, que constantemente

ameaçam seus perseguidores bípedes. Esta reação dos primatas à ação

dos primatólogos tem fim quando os animais se acostumam com a

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presença dos cientistas1. E, a partir da não-reação dos macacos tem

início um novo momento no trabalho. Assumindo uma postura de não-

ação, os primatólogos observam os macacos agindo “naturalmente”,

como se fosse possível agora cada ação dos primatas não conter uma

reação que contaminasse os dados. Do ponto de vista dos primatólogos

este seria o modelo ideal: observar, sem serem percebidos, os primatas

agindo como se nunca tivessem sido contactados. Do ponto de vista dos

que estão em cima das árvores, se é que é possível inferir sobre ele, toda

ação, após o contato, torna-se uma reação, visto que se faz tudo aquilo

se fazia antes, mas agora com alguém olhando. Dentro que foi exposto,

tratarei aqui justamente de algumas associações controversas entre

contato, contágio e contaminação. E esta tríade encontra-se intimamente

ligada ao que denominei como “predação científica”, uma relação que

emerge mediante as circunstâncias específicas da aproximação entre

pesquisador e pesquisado e deduz um nível de apropriação de um em

função do outro. Tratando-se da primatologia, este é o momento em que

o macaco é “predado” pelo primatólogo, ou ainda, é o processo em que o

primata-sujeito transforma-se em primata-objeto. Esta idéia aproxima-

se, portanto, da noção de purificação científica (Latour, 2001) quando

incute diretamente na transubstanciação do macaco-sujeito-floresta em

macaco-objeto-laboratório. Todavia, a “predação” acontece em função de

uma relação de experiência íntima no interior das dinâmicas dos coletivos

e não por contingência genérica de um macro-processo que se consolida

nas esferas epistêmicas, históricas e políticas de uma cadeia de

transcrições. Ou seja, é atuando na arena da Ciência, que o primatólogo

transforma o seu interlocutor primata-sujeito em objeto, para que este se

torne um ser de outra natureza que não a sua, formalizando assim uma

lógica de predação científica.

Neste trabalho exploro algumas implicações deste processo,

analisando duas controvérsias de campo e finalizando com uma reflexão

acerca da ênfase dada pelos primatólogos ao compromisso com o

sujeito-objeto pesquisado e seus cuidados anti-representacionalistas.

O “vôo” de Ícaro

Uma das especificidades que tornam as práticas dos primatólogos

sociologicamente atraentes está no fato de alguns lidam com a

1 Ora, aqui é possível ponderar que os macacos continuam observando os primatólogos,

já que o processo de habituação dos animais pressupõe que estes percebam e

reconheçam aqueles que não lhe ofereçam perigo.

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

possibilidade de nomear cada indivíduo de seu grupo de pesquisa. Os

nomes atribuídos aos macacos podem variar de acordo com cada local de

trabalho, grupo de pesquisadores ou região geográfica. No local onde

empreendi minha pesquisa de campo costumava-se nomear os macacos

(muriquis) batizando-os com nomes humanos, e em muitos casos

dando-lhes o nome de humanos conhecidos entre o grupo de

primatólogos. Este era o primeiro passo de um longo processo de

subjetivação dos macacos dentro do contexto das relações estabelecidas

entre primatólogos e primatas no campo de pesquisa, na mata (Sá, 2006).

Se, principiava-se com esta construção do sujeito-primata pautando-se

em nomes, indivíduos, narrativas, personalidades e imagens específicas

atribuídas aos muriquis, a continuação no histórico destas relações nos

levará ao pólo oposto: o ocaso da subjetivação e a ascensão do objeto-

primata. A apreensão da “realidade” em campo está fortemente

ligada à capacidade de sistematizar as observações feitas a respeito dos

mais variados eventos ocorridos na mata. Infiltramos-nos agora no

domínio da técnica, ou seja, de como enxergamos o que vemos e como

descrevemos aquilo que outros não podem ver.

Encontrei a primeira controvérsia inserida no contexto deste

processo de transformação do macaco-sujeito em macaco-objeto a partir

da observação de um jovem primatólogo: Ícaro. Por mais de dois anos em

que residiu na reserva, Ícaro pesquisou um dos grupos que compunham a

população local de primatas, tendo acumulado neste período um número

bastante expressivo de scans2, feitos na mata, e angariando um notável

conhecimento acerca do comportamento dos muriquis.

Este sistema de coleta de dados serve para determinar a

localização, o tipo de atividade e os indivíduos situados mais próximos

dos animais (neste caso os muriquis) à vista do pesquisador. Os tipos de

atividade exercida pelo primata naquele instante, como descanso, toque,

movimento, são registrados pelo primatólogo em um etograma, que é um

catálogo de comportamentos disponíveis à aferição do observador. Em

ciclos com intervalos de quinze minutos é registrado nas cadernetas de

campo tudo aquilo que estão fazendo os animais. Descrever o

comportamento dos primatas confunde-se, portanto, com a aplicação

deste formulário, que ao mesmo tempo em que viabiliza padronizando as

ações também as restringe a um rol de possibilidades e padrões pré-

definidos. A técnica dos scans, adaptada por Strier originalmente dos

babuínos à realidade dos muriquis, vem sendo utilizada nas pesquisas

2 Um método de coleta de dados por amostragem muito comum desde que foi sistematizado por

Altmann (1974)

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locais há anos, tendo sido tarefa de Strier definir os principais padrões

comportamentais a ser visualizados. Pode-se dizer que este se trata de

um dos primeiros estágios na transformação de gestos e ações de um

sujeito-primata em números e códigos de registro de um objeto-primata,

como fica patente na explicação da autora:

Their activities were divided into general categories and

assigned a single-digit numerical code which could be appended with

more specific information. For example, if an individual was feeding

during a scan sample, it was recorded as “3”. The second digit

indicated the food type, so feeding on immature fruit was 31, mature

fruit was 32, fruit of unknown maturity was 33, flower buds were 34,

mature flowers were 35, immature leaves were 36, mature leaves were

37, leaves of unknown maturity were 38, seeds were 39, mature fruit

and seeds were 329, and so on. This system, adapted to each broad

category as new observations required new distinctions, enabled me to

expand the original categories without modifying or losing any

information, and to analyze my results in various ways depending on

the questions being adressed. To determine the proportion of feeding

individuals observed, all activities beginning with a “3” could be

grouped and compared to other activity categories; to determine the

distribution of food types eaten, all feeding observations on fruits and

seeds (31, 32, 33, 329), flowers (34, 35), and leaves (36, 37, 38),

could be analyzed.

Interindividual distances were important to understanding

muriqui spatial relationships as well as social relationships. The

distances between “ nearest neighbors“ were divided into five

categories, which were also numerically coded : 0 – in contact ; 1 –

within a 1 meter radius ; 2 – within a 5 meter radius ; 3 – within a 10

meter radius ; and 4 – greater than 10 meters. The individual or

individuals closest to the muriqui I was sampling at that moment could

be recorded by name once I could recognize them, and I soon found

nearest neighbors were not always reciprocal. Irv and Mark might be

within 1 meter of one another, while Scruff was within 5 meters of

both Irv and Mark. In this case, Irv was scored as Mark´s nearest

neighbor, Mark as Irv´s nearest neighbor, and both Irv and Mark as

Scruff´s nearest neighbors. It was not clear to me at the time whether

a distance of 1 or 5 meters meant anything to the muriquis

themselves, but they were categories that could be reliably

distinguished with ease. By analyzing the data separately, it would be

possible to determine whether spatial relationships differed between

individuals, and how their spacing related to their various activities.

(Strier, 1992:30-1)

Entretanto, a experiência com a coleta de scans forneceu à Ícaro a

oportunidade de observar algo que ainda não havia sido relatado como

padrão comportamental pré-definido dos muriquis. Ele observou que em

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

determinadas circunstâncias um muriqui - geralmente uma fêmea adulta

estando próximo a outro indivíduo - cruzava os braços em torno do

próprio corpo (como se em um abraço dado em si próprio). Ícaro verificou

ainda que este gesto sistematicamente precedia a um abraço (padrão

comportamental já relatado) em outro indivíduo. Este gestual foi

denominado por Ícaro de auto-abraço e, por se tratar de um gesto

direcionado a outro indivíduo próximo, “indicaria” uma “requisição de

abraço ou toque”. Percebendo que este auto-abraço vinha ocorrendo

regularmente, Ícaro procurou outros primatólogos que haviam trabalhado

na reserva em diferentes épocas a fim de averiguar se haviam observado

comportamento semelhante. Surpreendentemente descobriu que alguns

diziam ter visto este gesto, mas que não o haviam relatado3.

Tendo levado sua descoberta até Solange, a quem se encontrava

subordinado, Ícaro foi desacreditado com uma resposta negativa.

Argumentando que o número de observações do evento seria insuficiente

para caracterizá-lo como um novo tipo de comportamento, ela o

desaconselhava a publicá-lo, até mesmo sob o formato de nota. Para

Ícaro esta limitação apresentava-se como um contra-senso já que

algumas notas sobre o comportamento dos muriquis já haviam sido

publicadas a partir de poucas observações, como assegura Strier:

The systematic behavioral observations were also

supplemented with opportunistic recordings of rare events. Sexual

inspections, copulations, embraces, aggressive interactions, and

intergroup encounters were defined and scored whenever they were

observed. (Strier, 1992:31)

Mais tarde, a hipótese do auto-abraço passaria a ser creditada

por Solange como uma variação de um padrão comportamental já

relatado – o abraço -, portanto, já existente. Por isso, deveria ser

descartada, pois supostamente já se encontrava compartimentalizada na

lista dos comportamentos “possíveis” verificados ao longo de vinte anos

de pesquisas.

3 Esta escontinuidade entre o ato de ver e perceber encontra um interessante paralelo com a

experiência inusitada elaborada por pesquisadores do Laboratório de Cognição Visual de Harvard em

que um grupo de pessoas em uma sala era orientado a concentrar-se em determinada tarefa. Em

determinado momento um elemento externo adentra a sala vestindo uma fantasia de gorila passando

entre os participantes. Ao término da atividade os pesquisados eram arguidos acerca do que se

passou durante a atividade. As descrições dos fatos, em sua grande maioria, ignoravam a presença

bizarra do gorila. Esta experiência, sugestivamente congratulada com o “Prêmio Ignóbil”, pretendia

atentar para um tipo de “cegueira” por excesso de atenção. Observação que também poderia ser

verificada pela ânsia de reproduzir tarefas anulando a percepção periférica de novos eventos

(Calligaris, 2004).

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Ainda que fosse proclamado que “As my contact with the animals

increased, they introduced me to new species of food that they ate, and

allowed me to witness new behaviors” (Strier, 1992: 43), o caso do auto-

abraço parecia indicar uma indisponibilidade de receber aquilo que os

muriquis estavam oferecendo aos seus observadores naquele momento.

Onde estaria o grande empecilho para a formulação do auto-abraço?

Minha primeira hipótese dava conta de uma reação adversa em

função do incômodo acarretado pela descoberta do jovem primatólogo,

que não havia sido contemplada nos anos de pesquisa da veterana. No

entanto, aqui distanciarei minha análise desta opção que envolve

hierarquia de saber e autoridade científica. Prefiro me ater aos

argumentos intrínsecos, ou seja, internos à relação entre pesquisador e

objeto, que foram alegados na controvérsia.

Neste caso, retorna-se ao contexto de campo da descoberta.

Indubitavelmente sua abertura para perceber algo diferente daquilo que

vinha sendo observado regularmente concedia a Ícaro um diferencial: não

apenas reproduzir conhecimento mas também apreender novas

informações. Entretanto, o mérito de perceber algo que os próprios

macacos lhe oferecem - e que neste sentido poderia não ser “novo” entre

os muriquis, mas sim recente na relação entre muriquis e primatólogos –

não significa que Ícaro tenha rompido com o andamento de ciência

normal. O impasse é iniciado logo em seguida com a proposição em

relatar o que foi visto. A controvérsia deixa clara a distância entre o que

se observa e o que será relatado. Exploremos agora porque nem tudo que

se vê é passível de ser publicado. Ou porque, nesses termos, nem toda

relação intersubjetiva consiste em uma relação de “predação científica”.

Entendo que, ao observar os macacos-sujeitos na mata em seu

gestual do auto-abraço, Ícaro relacionava-se intersubjetivamente com

eles, já que sua própria percepção construía-se naquela relação. Todavia,

quando tenta dar o próximo passo em direção à purificação do macaco-

sujeito em macaco-objeto – “predando-o” – Ícaro sofre retaliações. Antes

de prosseguir é preciso esclarecer que em nenhum momento deste

processo questiona-se o estatuto real tanto de sujeitos como de objetos,

bem como de suas relações.

O problema suscitado por Solange está, portanto, na

transformação de um evento intersubjetivo em um dado objetivo: a

transubstanciação da ação de um macaco-sujeito (o auto-abraço) em um

numeral, letra ou símbolo como na citação de casos descritos acima.

Inseridas na mesma cultura-relação entre humanos e não-humanos, a

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passagem deste sujeito a objeto dá-se através de uma mudança de

natureza. Trata-se, portanto de um processo de transformação e não de

representação na medida em que os números, letras e símbolos não

representam os macacos de outrora, mas constituem entidades distintas.

Estas entidades inspiram novas formas de se relacionar e de relatos

diferentes daquelas outrora referidas aos macacos em sua condição de

sujeitos.

A postura reticente de Solange demonstra uma característica

necessária deste procedimento de purificação científica: o compromisso

com o objeto. Por serem de naturezas diferentes, me parece plausível que

os cuidados com o objeto também sejam distintos daqueles tomados em

relação aos sujeitos. O auto-abraço seria ainda fruto de percepções

intersubjetivas, um evento não-purificado, de uma natureza não-

domesticada, ao contrário de outros padrões de comportamento com os

quais os primatólogos já vinham lidando. A controvérsia entre Solange e

Ícaro situava-se menos no campo dos desconfortos hierárquicos e mais

nos imperativos deste tipo de “predação”. Para poder “predar”

cientificamente um muriqui era preciso ter certeza de que sua natureza

havia sido alterada transformando-o em objeto (pressuposto

fundamental na relação de alteridade).

Dito desta forma, o desfecho parece obedecer a uma simples

lógica retórica. Entretanto, são esses cuidados em assegurar a

transformação que está em jogo que podem evitar os mal entendidos

vinculados às possíveis argumentações representacionalistas. Assim,

objetos são outra coisa que não representações de sujeitos, números em

artigos científicos são outra coisa que não representações de macacos -

mas igualmente reais.

É precisamente sobre o temor acerca da crítica construtivista,

associada à idéia de que o que os cientistas fazem são apenas

representações, que tratarei na próxima controvérsia, em me envolvi

diretamente.

Sob fogo cruzado

Quando vislumbrei pela primeira vez os montes cobertos pelo

pasto e entremeados por fragmentos da Mata Atlântica de Minas Gerais,

não imaginava que por trás deles fosse cair numa trincheira aberta pelas

chamadas “guerras da ciência”. Havia chegado até ali graças à

compreensão e uma boa dose de boa vontade daquele que veio a se

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tornar o meu primeiro interlocutor de campo. Sobre uma relação prévia

de amizade e confiança entre antropólogo e nativo erigiam-se as bases

da minha pesquisa de campo. Uma situação bastante comum no contexto

dos estudos etnográficos em Antropologia da Ciência, ainda que,

ocasionalmente, esta harmonia se mostre abalada com a publicação dos

resultados da pesquisa do observador. Como não tinha a menor intenção

de perder sua amizade - felizmente até hoje duradoura – me dei conta de

que deveria relativizar também meu distanciamento, que se não era

crítico, tampouco seria neutro.

Meu projeto de pesquisa de doutorado, submetido e aprovado em

todas as instâncias cabíveis referentes ao trabalho com os cientistas,

havia sido rejeitado, e, segundo informações oficiosas, sequer lido por

uma das coordenadoras das pesquisas em primatologia no local. Ainda

que dispusesse do aval do outro pesquisador-chefe, fiquei bastante

preocupado e me questionei acerca da viabilidade de empreender um

estudo de caso com somente um dos grupos de primatólogos locais.

Atordoado, segui em frente partindo do pressuposto de que aquele

impedimento seria bom para pensar a natureza da pesquisa a que me

propunha: observar observadores.

Após um tempo residindo no alojamento junto aos cientistas,

finalmente conheci pessoalmente a pesquisadora que havia se

posicionado contra o meu trabalho. A conversa, em princípio tensa, entre

um jovem antropólogo brasileiro e uma renomada

primatóloga/antropóloga logo revelou nossa distinta formação. Ela

advinda de um modelo de graduação four fields, composto por cadeiras

de Antropologia Cultural, Lingüística, Antropologia Biológica e

Arqueologia; e eu, formado nas Ciências Sociais, seguindo as trilhas da

Antropologia Social.

A troca de olhares curiosos durante nossos primeiros dias de

contato, mal sabia eu, traria evidências de um belo desfecho para nossa

conversa, que naquela altura já estendia-se por temas variados. Em

determinado momento tornou-se patente o temor sentido pela

pesquisadora de que eu atrapalharia o andamento do trabalho,

atormentando os que lá estavam com questionários, entrevistas e

perguntas. Desfeita essa impressão equivocada acerca da metodologia

adotada, fiz uma longa digressão acerca dos benefícios da observação

participante e da descrição etnográfica. Porém, ao me afirmar enquanto

antropólogo social, deparei-me com um novo questionamento de minha

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colega: afinal, eu pertencia aquela linha de “antropólogos pós-modernos”

que se notabilizaram por seus estudos sobre as ciências?

O receio da primatóloga fazia menção a dois corpos clânicos,

uma fissão da academia norte-americana expunha o debate acalorado

entre “antropólogos teoréticos” e “antropólogos pós-modernos”. Mais do

que uma disputa no campo intelectual antropológico contemporâneo, o

cenário apontava para um embate entre concepções realistas e

construtivistas. E, no que concerne a primatologia, o nome de Donna

Haraway aparecia como o primeiro guerreiro a ser combatido pelos

cientistas realistas. A antropóloga feminista que como resultado de sua

tese de doutorado publicou Primate Visions (1989), um estudo sobre a

construção social da primatologia, tornou-se um dos principais

expoentes da chamada “vertente pós-moderna”, demonstrando em seu

trabalho as coerções sociais e políticas a que estavam submetidas a

produção de ciência. Seu olhar externalista sobre a ciência angariou

diversos opositores, mesmo no campo dos estudos sociais da ciência,

rotulando-a construtivista social.

O temor agora tinha nome e sobrenome: seria eu um

“antropólogo pós-moderno construtivista”? Longe dos embates travados

desde o final dos anos 80 no hemisfério norte, eu me encontrava naquele

momento na constrangedora situação de estar desarmado e

circunstancialmente rendido por meus nativos em meio a uma guerra que

eu não havia escolhido lutar.

Belicosidades

O que se chamou de “guerras da ciência” tem sua origem no

debate entre o crítico literário F. R. Leavis e o físico C. P. Snow, quando

foi cunhada a expressão “duas culturas” para dimensionar a grande

distinção entre as ciências e as humanidades (Lee, 2004:86). Esta

dicotomização tornava clara a existência de uma primeira batalha que já

vinha sendo travada e que preparava o campo para uma guerra ainda

maior. A fundação do campo da História e Sociologia da Ciência por

Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Stephen Toulmin, orientava-se pela

disposição em aplicar o método científico à própria ciência e originou em

seu seio intelectual diversas correntes e tendências analíticas. Dentre elas

o chamado “programa forte” da Sociologia do conhecimento científico, de

David Bloor, o programa empírico de relativismo, de Harry Collins, e a

teoria dos atores-rede, idealizada por Bruno Latour, sendo essa última

fortemente norteada pela intenção de empreender estudos etnográficos

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sobre como efetivamente se produz o conhecimento científico, ou seja, a

ciência em ação4.

No entanto, foi somente nos anos 90, já com os STS (Science and

Tecnology Studies) já consolidados, que deflagrou-se as “guerras da

ciência”. Tornava-se notório “que alguns cientistas se sentiam ameaçados

ao ponto de serem impelidos a vir a público em defesa da racionalidade e

da bondade da ciência e a atacar o que consideravam ser uma crítica

não-informada, enviesada e sem fundamento” (Trachman & Perrucci,

2000:24) proveniente dos sociólogos das ciências. Os primeiros ataques

públicos dirigidos a esta tendência ao construtivismo social e ao

relativismo, incorporada por boa parte da Sociologia do conhecimento

científico, ocorreram em 1992 com a publicação de duas obras, uma do

físico Steven Weinberg (Dreams of a Final Theory: The Search for the

Fundamental Laws of Nature) e a outra do biólogo Lewis Wolpert (The

Unnatural Nature of Science: Why Science Does Not Make (Common)

Sense). Os dois livros constituíam uma firme defesa do realismo e da

universalidade da Ciências contra o que consideravam uma visão

“obscurantista” propagada pela construção e pelo relativismo nos estudos

sociais da ciência. Contudo, um novo golpe ainda seria aplicado em 1994

através do livro Higher Superstition: The Academic Left and its Quarrels

with Science, escrito em coautoria entre o biólogo Paul Gross e o

matemático Norman Levitt. Ali acusava-se uma diversificada gama de

correntes ligadas a uma “esquerda acadêmica” como a teoria feminista, a

filosofia pós-moderna, a desconstrução e a ecologia profunda (Lee,

2004:88-9). Todas eram taxadas como inimigos hostis à universalidade,

metodologia e confiabilidade científica.

Com a guerra declarada, algumas iniciativas foram tomadas por

instituições e associações, como a Society for Social Studies of Science

(4S), no sentido de apaziguar os ânimos de seus partidários e

contemporizar os termos dicotômicos que a discussão assumia:

supostamente um discurso pró e outro anti-ciência. Entretanto, foi

justamente neste contexto que as polarizações tornaram-se mais

severas, como foi o caso do debate entre Harry Collins e Lewis Wolpert,

em 1994, e entre Tom Gieryn e Paul Gross, em 1996.

A “reação sociológica” veio por meio de uma edição especial da

revista Social Text, que versava sobre as guerras da ciência. Mas o que os

4 Apesar de não se identificarem com a teoria ator-rede, Knorr Cetina (The Manufacture of

Knowledge) e Lynch (Art and Artifact in Laboratory Science) também empenharam-se na execução de

etnografias da ciência.

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responsáveis da revista desconheciam era que o físico Alan Sokal,

inspirado pela leitura de Higher Superstition, estava envolvido numa

conspiração ´ativamente apoiada´ para enganar a revista e levá-la a

publicar o seu artigo Transgressing the Boundaries: Toward a

Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity. Nesse artigo, Sokal

´fez uma paródia das convenções de estilo pós-modernas e retirou

conclusões politicamente corretas de um subcampo esotérico da

ciência´(Segerstrale, 2000b). Sokal expôs o embuste em outro artigo, A

Physicist Experiments with Cultural Studies, que apareceu quase ao

mesmo tempo na revista Lingua Franca, e no qual caracterizava o artigo

publicado em Social Text como sendo uma combinação de ´disparate´ e

´parvoíce´. Para aqueles que foram enganados por Sokal e os que eles

representavam, tratava-se de uma extrordinária quebra da ética

intelectual e da integridade academica; para os que se identificavam com

Sokal, ficava demonstrada com todo o vigor a tese deste acerca do

declínio dos ´padrões de rigor na comunidade acadêmica´, e mais

especificamente, o laxismo intelectual àqueles que Sokal pretendia

atacar.” (Lee, 2004:90-1)

Complementado com a publicação de Impostures Intellectuelles

(Sokal & Bricmont, 1997), o “caso Sokal”, como ficou conhecido o evento,

tornou-se a mais famosa batalha travada neste período de guerra. A

disposição em proteger a ´verdadeira´ ciência contra aquilo que

acreditavam ser apenas representações ´falsas´ tornava claro que os

partidários desta idéia não reconheciam “o direito de outros universitários

de fazerem suas próprias interpretações de ciência no âmbito do

enquadramento de suas disciplinas” (Segerstrale, 2000a: 21). A questão

em jogo agora era o direito dos não-cientistas de participar das

instâncias gerais de compreensão pública da ciência.

Enquanto isso...

Também no início da década de 1990 ganhava destaque nos

círculos acadêmicos antropológicos a controvérsia entre os antropólogos

Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere em torno da percepção

havaiana sobre a divindade do capitão Cook. Obeyesekere, respaldado

pela condição conjuntiva antropólogo-nativo, acusava Sahlins de

perpetuar o mito europeu da irracionalidade indígena.

Ainda que não tenha nenhuma relação direta com as

animosidades que vinham ocorrendo nas trincheiras da ciência, ambos

os debates nos aportam elementos em comum. O forte teor nativista,

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pressuposto da autoridade discursiva sobre determinado sujeito-objeto -

as ciências ou os havaianos -, fundamentava a argumentação de

Obeyesekere em nome de abordagens racionalistas práticas. Como diz

Sahlins, a experiência nativa é invocada “tanto como prática teórica

quanto como virtude moral, afirmando levar vantagem, em ambos os

casos, sobre o „antropólogo-outsider‟”(2001:19). Se no caso de

Obeyesekere o exercício relativista conduziria ao entendimento lógico de

uma racionalidade prática universal impeditiva de qualquer formulação

acerca da deidade de Cook, no caso dos guerreiros da ciência era a

racionalidade universalista da ciência que também deveria ser defendida,

mas, desta vez, dos próprios questionamentos do relativismo. A resposta

de Sahlins em função de como pensam os nativos ao suposto

antietnocentrismo de Obeyesekere [tornado um “etnocentrismo simétrico

e inverso” (2001: 23)] nos serve também ao caso apresentado pelos

cientistas. Não há como combater uma formulação etnocêntrica

apegando-se a representações universalistas como realidade e

racionalidade, previamente associadas a uma ontologia particular

introjetada. Mais do que relativizar as representações que temos acerca

dos havaianos ou da ciência é preciso relacioná-las às suas próprias

ontologias. Pois, “o senso de realidade que brota do processo perceptivo

não se refere somente a objetos, mas às relações entre os atributos dos

objetos e as satisfações do sujeito. A objetividade implica uma certa

subjetividade.” (Sahlins, 2001:23)

De volta ao campo (de batalha)

Se eu ainda não estava totalmente convencido de que a postura

reticente da primatóloga ao trabalho etnográfico se devesse a alguma

dessas filiações teóricas apresentadas neste breve histórico belicista, era

possível que existisse alguma preocupação no domínio da prática e dos

fluxos concernentes à produção científica.

***

Após a publicação de algumas etnografias, hoje clássicos do

campo da Antropologia da Ciência, como A Vida de Laboratório de Bruno

Latour e Steve Woolgar, originalmente publicada em 1979, sugeriu-se

que tais obras serviram como um agente redutor de financiamentos para

pesquisa dos grupos nelas enfocados. O texto etnográfico aparecia agora

como potencializador de cortes de verbas, perda de credibilidade e

disseminador de discórdia entre a classe. Tudo isso com base em

narrativas onde a construção social revelaria os meandros da produção

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científica, questionando a sua objetividade e atestando a existência de

interesses implícitos na cadeia produtiva. A apreensão de que as

etnografias da ciência representavam uma ameaça real aos próprios

nativos fez com que se tornasse cada vez mais difícil a inserção do

antropólogo da ciência em campo5.

Esta proposição relacionando etnografia à redução de verbas foi

desacreditada por explicações conjunturais que situavam num mesmo

curto prazo a diminuição do apoio do governo norte-americano aos

projetos de big science, e ao corte de financiamentos ao organismo

público dedicado à avaliação de tecnologias (Ross, 1996). Além do que,

segundo Trachtman & Perrucci (2000), a batalha travada entre cientistas e

sociólogos nesta arena “não é seguida pelo público, sendo provável que

tenha pouco impacto na compreensão pública, apreciação pública e

financiamento público da ciência”.

De qualquer forma, por um golpe do destino a antropologia da

ciência viu-se enredada em um mito construído contra ela que nem

mesmo as elucidações causais mais pragmáticas conseguiram dissipar.

***

Tendo isolado as primeiras hipóteses, restava-me o derradeiro

argumento contrário a minha presença: o fato de que eu representava um

“indivíduo estranho na mata” e que os muriquis não iriam me reconhecer.

Logo, esta interferência influiria no comportamento dos animais afetando

a coleta de dados dos primatólogos e, conseqüentemente, gerando um

viés na minha própria pesquisa.

A despeito da retórica circular que me colocava como refém de

minha própria pesquisa, o que estaria subliminarmente incutido nesta

afirmação? A mensagem fluía no sentido de que eu poderia até ser aceito

por meu “objeto antropológico”, mas não passaria pelo crivo de seus

“objetos científicos”. Associada a esta idéia residia a crítica sobre a

recorrente dificuldade dos antropólogos da ciência em adentrar no

argumento científico da mesma forma que o fazem os etnólogos quando

tratam de cosmologias indígenas. Quando pisam em campo científico os

antropólogos parecem ser acometidos por um sentimento cientificista

que os faz distanciar os discursos “oficiais” dos “oficiosos”, uma

fragmentação despropositada caso pisassem em solo não-ocidental. De

forma semelhante, na ciência em ação este distanciamento discursivo

também é pouco produtivo. Era isso que minha colega primatóloga

5 Panorama que persiste até os dias de hoje.

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inadvertidamente me apontava: eu só entraria em campo a partir do

momento em que fosse aceito pelos objetos deles e por sua lógica. E para

minha surpresa, deixar-me afetar pela lógica nativa (Favret-Saada, 1990)

não despertou nenhum tipo de cientificismo em mim, mas sim a fuga

dele.

Portanto, duas acusações aparentemente paradoxais sobrecaem

nos ombros dos sociólogos da ciência: por um lado são questionados por

sua falta de neutralidade analítica ao assumir que as ciências são

socialmente construídas e politicamente orientadas, e neste sentido são

vistos como irracionalistas e mesmo “fetichistas” pelos colegas das

“ciências duras”; por outro lado também são caracterizados pelo

ceticismo já referido em relação às descobertas das ciências “puras”,

quando são entendidos como desconstrucionistas beirando o niilismo.

Se a marca por excelência da ciência e da prática científica era um

ceticismo organizado, o que dizer dos antropólogos da ciência? São

menos cientistas por acreditarem em muitas realidades, ou são menos

realistas por não acreditarem nas ciências? Nesse discurso de tipo duplo

vínculo (Bateson, 2000) sobressai a forma como nossos nativos

compreendem nossa abordagem. Para estes cientistas, o nosso

relativismo soa como uma visão cética acerca do que fazem e de como

fazem. Ora, se nossa disponibilidade em ir a campo está associada a

hipóteses que predispõem certo tipo de desconstrução do discurso nativo

ou mesmo de seu aparelhamento ideológico ou político, talvez essa

percepção nativa acerca do antropólogo não esteja tão equivocada. Será

que nosso distanciamento não oculta uma boa dose de pretensão

cientificista? Ou, como costuma dizer Otavio Velho (2003), não

estaríamos sendo “mais realistas do que o rei”?

Na novela em que me envolvi diretamente, entre os primatólogos,

este ponto era claro. A diferença entre um olhar crítico e outro cético era

uma linha tênue, às vezes difícil de ser diagnosticada por meus

pesquisados. Percebendo que era esse o seu temor, que meu

distanciamento (ceticismo para eles) poderia ser mais tarde confundido

como falta de compromisso – a um passo de desconfortos éticos - optei

por uma abordagem aproximativa. Ironicamente, eram os próprios

cientistas que “solicitavam” que eu fosse menos cientificista, o que me

esforcei em atendê-los prontamente.

Assim, em concordância com Velho (2005):

Eu sugeriria que o reconhecimento do outro não pode ser

apenas intelectualista e que se assim o for, corremos o risco de a

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nossa atividade ser atingida no que ela tem de mais precioso. Até por

se deixar aprisionar por teorias ou mesmo epistemologias já prontas,

como no caso talvez o seja a redução do “outro” a variantes dentro do

círculo de giz do nation-building.

Mesmo fórmulas prontas como a do “estranhamento do familiar”

podem ser na prática reduzidas a expressões retóricas referindo-se

disfarçada e paradoxalmente ao velho fetiche objetivista. Diz-se um

recurso necessário, mas que ao final não nos distingue, pelo contrário,

nos distancia de toda benéfica possibilidade de sermos afetados. E como

segue Velho (2005:08),

Talvez fosse melhor, na direção contrária, falar em alcançar

graus crescentes de familiaridade, para isso desconstruindo, inclusive,

o superficialmente familiar presente em nossas próprias práticas. Uma

espécie de exotização provisória, mas generalizada. Até para que as

“antropologias em casa” não se transformem em exercícios narcisistas.

Afinal, todos nós, de certa forma vivemos (e cada vez mais, ao que

parece) num mundo estranho.

O cético e o ético

Felizmente, ao término de minha conversa com a primatóloga,

esta aproximação entre antropólogo e nativo parece ter sido bem

sucedida. Mostrando-se surpresa diante do que vinha verificando, minha

colega dizia que ao contrário do que ela imaginava6, eu “trabalhava como

eles”: observando.

Partindo do mote de não se deixar levar pelo mesmo mal

entendido que acometeu Obeyesekere em relação aos havaianos,

“metamorfoseando o ponto de vista dos nativos em folclore europeu, (...)

substituindo a cultura havaiana pela nossa racionalidade” (Sahlins,

2001:24), creio que os antropólogos da ciência não devem intencionar

agir da forma como pressupõem os guerreiros da ciência:

metamorfoseando o ponto de vista dos cientistas em senso comum

filosófico, nem tampouco substituindo as culturas científicas pela nossa

6 “Just as some people are timid and others outgoing, muriquis, like many other primates,

exhibit distinct personalities that are difficult to explain with mechanistic analyses of their social

environment.”

It is the unpredictable individual differences that make nonhuman primates such intriguing

subjects, but sorting out these nuances from more general patterns of behavior takes many years.

Unlike cultural anthropologists, who can interview their human subjects about their personal

histories, primatologists must rely on observations, which accumulate only as fast as the animals

develop. And muriquis, as I have discovered, are very slow to grow up.” (Strier, 1992: 83 – grifo meu)

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relativista. Se diferentes culturas pressupõem diferentes racionalidades,

são a elas que devemos dedicar o nosso esforço de compreensão.

É justamente aqui que se situa o equívoco de tradução

etnográfica: lidar com analogias sem considerar sua diversidade

ontológica (Viveiros de Castro, 2004). Assim, ao promover uma tradução

análoga do conceito de cientificidade extraído de uma “cultura de

laboratório” para o contexto da racionalidade sociológica somos passíveis

de cair em um ceticismo facilmente entendido como falta de ética pelos

nativos ou imprecisão na captação das categorias nativas.

Tradicionalmente, oscilando gradações entre o certo e errado, o

legítimo e ilegítimo, o legal e ilegal, um marcador neutro e verdadeiro

determina o valor ótimo e ético almejado para a relação entre

antropólogo e nativo. Entendo que este modelo não contempla boa parte

dos estudos sobre produção de conhecimento em que noções absolutas

de verdade, realidade e racionalidade são constantemente colocadas a

prova. Nestes casos, as precauções que já fazem parte do métier

antropológico deveriam estar acompanhadas de uma reelaboração

conceitual sobre o significado da ética na pesquisa. Como qualquer

representação valorativa com as quais nos deparamos no contexto de

nosso trabalho, a ética deveria emergir do caráter localizado e particular

de cada relação estabelecida entre antropólogo e nativo. Abandonando de

vez a noção de que este é um marcador externo às micro-relações

humanas e neutro aos interesses de ambas as partes, estaremos

concorrendo para entender a ética como mais um elemento de mediação

negociado entre os atores, fruto de uma tradução mútua entre

antropólogo e nativo. Agindo desta forma, traremos para dentro das

reflexões epistemológicas e metodológicas a participação ativa de nossos

principais interlocutores em campo, os nativos, sem excluí-los de

nenhuma parte do processo.

Assim como com os demais dados etnográficos, a discussão

sobre a ética deve emergir da relação aproximativa e simétrica entre

antropólogos e pensamentos nativos. Desta forma assumir o ponto de

vista do nativo é também nos arriscar ao contágio mais íntimo (Velho,

2005) que nos faça florescer a necessidade de uma ética em comum.

Lembrando que isso só é possível quando há a disponibilidade do

antropólogo em ser “duplamente aprendiz: dos seus mestres acadêmicos,

mas também dos seus mestres no campo” (Velho, 2005), e em função da

vocação para a transcendência ontológica que nos permite transitar por

vários mundos. No final, o conjunto de todos estes sujeitos e sujeições,

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

disposições e disponibilidades refletirá numa ética ontologicamente

nativa e antropologicamente participativa virtualmente capaz de

ultrapassar a dicotomia entre construtivismo e realismo, ou de diminuir a

distância entre nós e eles.

Ambos os casos analisados neste capítulo – o primeiro tratando

do auto-abraço e o segundo envolvendo a participação do etnógrafo –

chamam atenção para o cuidado com o objeto, condição fundamental

para a manutenção da cadeia produtora de ciência. Se na primeira

controvérsia esta precaução se dava no momento em que as observações

envolvendo sujeitos-primatas deveriam ser objetivadas, e, portanto,

“predadas” segundo o processo de purificação científica; no segundo

relato este zelo pelo objeto de pesquisa aparece em uma dimensão

extra-campo. Seguir primatólogos pouco tem a ver com aprender suas

representações de sujeitos e objetos, mas fundamentalmente em

perceber as transformações pelas quais passam os primatas durante este

processo.

Para concluir, retorno à insólita situação narrada em meu diário

de campo e transcrita no início deste artigo, e que se mostrou uma

metáfora tão inadequada em relação ao acompanhamento que fiz junto

aos primatólogos, quanto à observação que estes faziam acerca dos

primatas. Mais do que construir a narrativa de uma realidade fora de si,

como no caso do locutor da folia momesca, os primatólogos em si

transformam as naturezas sem torná-las menos reais. Fui repreendido ao

me equivocar confundindo as transformações a que estão sujeitas

humanos e não-humanos, com uma simples representação de uns pelos

outros – sob a mesma lógica reside a crítica feita a um jovem primatólogo

sensível às novas variações de um diálogo intersubjetivo. Ambos reais,

porém, afoitos ao purificá-los alegorias.

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ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ

VIVEIROS DE CASTRO, E. B. Perspectival Anthropology and the Method of

Controlled Equivocation. Meeting of the Society for the Anthropology of Lowland

South America (SALSA), Miami, January 17-18. 2004.

Sobre o autor

Guilherme José da Silva e Sá é doutor em Antropologia Social pelo Programa de

Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / Universidade Federal

do Rio de Janeiro. Atualmente é professor substituto do Departamento de

Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, e tem como linhas de

pesquisa a antropologia da ciência e tecnologia e o estudo das relações entre

humanos e não-humanos.

[email protected]

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ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO

Carlos José Saldanha Machado

Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Professor do Programa de

Pós-Graduação em Meio Ambiente

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

1.0 Introdução

Durante muito tempo, a prática da antropologia foi concebida a

partir do olhar exterior que o pesquisador lançava sobre a cultura que ele

tentava decodificar, olhar considerado como a garantia de uma certa

objetividade, porque se acreditava que indo ao encontro do “Outro” o

antropólogo podia se livrar de seus preconceitos e sair de seu próprio

universo mental para se abrir aos universos culturais os mais diversos1

(Machado, 1998).

Mas hoje a distância existencial e intelectual da antropologia em

relação a seus objetos de estudo não é mais tão evidente. Mesmo quando

o antropólogo continua a trabalhar em sociedades industrializadas

diferentes da sua (Machado, 2003), estas se assemelham, em maior ou

menor grau, a sua sociedade de origem, com aspectos cada vez mais

conhecidos da sua cultura2. Este é o caso, por exemplo, quando se

trabalha com os problemas ambientais que vêem ameaçando ou já

comprometeram a qualidade de vida de parcelas expressivas das

populações urbanas e rurais (Lopes, 2004).

Ao longo das últimas quatro décadas ocorreu uma profusão de

eventos os mais diversos relacionados ao meio ambiente, todos voltados

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ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO

para o entendimento e/ou formulação de propostas para a resolução dos

problemas associados ao que se convencionou chamar de “crise

ambiental”. Nesse sentido, a partir de meados dos anos 60 do Século

passado a produção científica sobre o colapso ecológico do planeta se

multiplicou, em taxas exponenciais, bem como o número de tratados e

protocolos internacionais relacionados ao meio ambiente. Desde então, a

população da Terra aumentou em mais de 50 por cento; ocorreram

acidentes nucleares espetaculares em Bhopal na Índia e em Chernobil na

Ucrânia, uma das repúblicas da ex-União Soviética; os acidentes com

petróleo e derivados no mundo e no Brasil ganharam em intensidade,

com a poluição de mares, oceanos, baias e rios; os partidos verdes

emergiram como uma força eleitoral significativa em vários países;

grupos ambientalistas locais se tornaram organizações nacionais e/ou

transnacionais adotando estratégias de recrutamento em massa de

militantes e simpatizantes; as ações populistas de políticos profissionais

contra os ambientalistas floresceram e os problemas ambientais globais

que se relacionam com alterações climáticas e à degradação da camada

de ozônio ganharam força. Ainda nesse período, tivemos a proliferação

de discursos ambientalistas; Encontros, Reuniões e Conferências

Mundiais; Dias Internacionais da Terra, do Oceano e da Água; a conquista

de uma posição de destaque, nos meio de comunicação de massa, dos

relatórios sobre meio ambiente produzidos pelas Nações Unidas3; a

atribuição do Prêmio Nobel 2007 de Meio Ambiente a um painel

intergovernamental de cientistas e a um Ex-Vice-Presidente ambientalista

dos Estados Unidos; a emergência da prática de sabotagem ecológica;

desobediência civil; movimentos de justiça ambiental; a construção do

conceito de desenvolvimento sustentável; o nascimento do movimento

filosófico de defesa de uma ecologia profunda; a intensificação dos

movimentos do bem-estar e dos direitos dos animais; movimentos

antiglobalização e reformas administrativas de Estados nacionais, tudo

isso relacionado, cada vez mais, às transformações da sociedade

brasileira, sobretudo quando se observa a evolução da política ambiental

praticada pelo Estado e pela Sociedade Civil.

Desde então, o conceito de meio ambiente vem sendo

construído4 através de uma polifonia de vozes, em escala planetária,

inaugurando de forma intensa uma perspectiva crítica sobre as fronteiras

criadas para separar o mundo humano do mundo natural. Sua adoção

como preocupação científica, política, jurídica, social, e até religiosa, é o

produto de um longo debate internacional, com traduções nacionais

variadas, refletindo um momento particular da relação do Homem

ocidental com a natureza, com a economia e com os outros Homens.

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Vemos a instauração gradativa de uma visão processual de co-

evolução entre sociedade e meio ambiente, visão que recupera a trama de

relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que

desempenham um papel pouco conhecido no próprio desenvolvimento

econômico. Observa-se também a emergência de novas modalidades de

estruturação da esfera pública, ultrapassando seus limites estritamente

estatais para incorporar um conjunto amplo e diversificado de atores

sociais, os quais expressam a crescente complexidade das sociedades

contemporâneas.

O objetivo deste capítulo é analisar a dinâmica do processo

descrito anteriormente de forma esquemática, tomando com objeto de

pesquisa a gestão dos recursos hídricos, situada geograficamente no

Brasil ao longo dos últimos dez anos. A escolha deste objeto e do período

referido de análise, deve-se ao fato do autor desse texto ter pesquisado e

se envolvido profissionalmente nas ações de implementação da Política

Nacional de Recursos Hidricos (Lei 9.433/97) no Estado do Rio de

Janeiro5. O plano de estruturação do texto está dividido em três seções

que consideram a interseção entre o global e o local numa perspectiva

institucional. Inicialmente, apresento uma descrição suscinta das

mudanças conceituais operadas no cenário internacional em relação à

administração pública do meio ambiente e sua incorporação no

arcabouço institucional-legal tendo a noção de “gestão integrada” como

conceito-chave. Ainda nesta seção, aprofundo minhas análises sobre as

mudanças conceituais sugerindo uma forma de aprimoramento através

da introdução do conceito de “gestão integrada com negociação

sociotécnica”. Como decorrência das análises empreendidas nesta seção,

passo a destacar, em seguida, um conjunto de conceitos e perspectivas

teóricas interligadas que se tornaram os referenciais comuns a

praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre

Estado e Sociedade no mundo contemporâneo. São fundamentos que

sustentam as propostas de ampliação da participação dos diversos

segmentos sociais na gestão das políticas públicas. Finalmente, diante de

um fenômeno que é ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto

da vida social de uma dada sociedade, enfatizo, à guisa de conclusão, a

necessidade de contextualização e de adoção de um olhar globalizante ao

se estudar, à luz de uma leitura sócio-antropológica, objetos complexos

com o da gestão dos recursos hídricos.

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2.0 Usos humanos dos recursos naturais com gestão integrada

As mudanças conceituais operadas ou incorporadas pela nova

legislação brasileira de gestão das águas expressam as grandes

mudanças de atitudes frente à regulamentação e à administração dos

usos humanos dos recursos naturais que vêm ocorrendo na história

contemporânea dos países ocidentais. A preocupação com o que passou

a ser denominado meio ambiente é a manifestação de novas práticas e

relações do homem com a natureza (Diegues, 2000; Machado et ali.

2003; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990). A mudança na forma

de encarar os efeitos das atividades humanas sobre o meio natural é

produto do fim gradual da crença na capacidade infinita do meio

ambiente em suportá-las. Esta mudança passa a creditar às políticas

públicas - entendidas como o conjunto de orientações e ações de um

governo com vistas ao alcance de determinados objetivos, com

interferência na atividade econômica, através de instrumentos de controle

econômico - a expectativa de reversão do atual quadro de degradação

dos recursos naturais. Não se trata mais apenas de estabelecer padrões

para emissões de poluentes ou de fiscalizar o cumprimento de normas

técnicas e punir aqueles que, infringindo-as, poluem o meio ambiente,

embora não se possa prescindir dessas medidas. Aos governos, em

especial, mas também às sociedades, de forma ampla, é atribuída a

responsabilidade pela promoção de uma atitude nova frente aos recursos

naturais e problemas ambientais.

Doravante, as soluções propostas para a resolução dos problemas

ambientais passaram a ser colocadas não somente em termos de

proteção, mas também, e cada vez mais, em termos de gestão para que

as relações dos homens com a natureza possam ser estabelecidas de tal

modo que os recursos oferecidos por ela permaneçam renováveis (United

Nations, 2006; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990).

A gestão passou a ser o operador conceitual através do qual se

confrontam os objetivos de desenvolvimento econômico e de organização

territorial, bem como aqueles relacionados à conservação da natureza ou

à manutenção ou recuperação da qualidade ambiental. Essa noção de

gestão passou a ser aplicada de forma ampla e por vezes generalizada:

gestão ambiental integrada, gestão dos recursos naturais, gestão do

equilíbrio natural, gestão do espaço, gestão dos recursos genéticos,

gestão integrada dos recursos naturais, gestão integrada das águas,etc.

Os poderes públicos consagraram essa evolução da gestão em

numerosos textos legislativos a partir dos anos 80.

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Desde então, emergiu internacionalmente uma perspectiva

teórica sobre a necessidade de se praticar a gestão dos recursos naturais,

particularmente da água doce, numa perspectiva integrada (Dzurik, 2002;

Giupponi et ali. 2006; Heathcote, 1998; Kemper et ali. 2007; Pompeu,

2006; Sconcini-Sessa et ali. 2007). A noção de gestão integrada passou a

assumir várias dimensões, envolvendo conotações diversas que passaram

a contar com o apoio gradual e consensual de cientistas, administradores

públicos, industriais e associações técnico-científicas. Trata-se de uma

integração, primeiro, no sentido de abranger os processos de transportes

de massa de água que têm lugar na atmosfera, em terra e nos oceanos,

ou seja, o ciclo hidrológico; segundo, quanto aos usos múltiplas de um

curso d‟água, de um reservatório artificial ou natural, de um lago, de uma

lagoa ou de um aqüífero, ou seja, de um corpo hídrico; terceiro, no que

diz respeito ao inter-relacionamento dos corpos hídricos com os demais

elementos dos mosaicos de ecossistemas (solo, fauna e flora); quarto, em

termos de co-participação entre gestores, usuários e populações locais

no planejamento e na administração dos recursos hídricos; e finalmente,

em relação aos anseios da sociedade de desenvolvimento socioeconômico

com preservação ambiental, na perspectiva de um desenvolvimento

sustentável.

Em função da constatação empírica de que os usos da água

envolvem por vezes uma interação conflituosa entre um conjunto

significativo de interesses sociais diversos, a Lei 9.433/97, mais

conhecida como a Lei das Águas, determina, portanto, que sua gestão

deve contemplar seu uso múltiplo, não favorecendo determinada

atividade ou determinado grupo social, devendo por isso ser integrada,

descentralizada e contar com ampla participação social, de forma a

incorporar representantes do poder público, dos usuários (aqueles que

fazem uso econômico da água) e das diversas comunidades, através de

um ente colegiado, o Comitê de Bacia Hidrográfica, cujo objetivo seria

garantir a pluralidade de interesses na definição final do destino a ser

dado aos recursos hídricos no âmbito de cada bacia hidrográfica,

possibilitar a mais ampla fiscalização das ações desde sua definição, a

elaboração de projetos e o controle da eficácia e da destinação dos

recursos, assim como a universalização das informações existentes e

produzidas sobre recursos hídricos.

2.1 Gestão integrada dos recursos hídricos com negociação

sociotécnica

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A Lei das Águas consignou os vários sentidos da noção de gestão

integrada descritos anteriormente nos oito incisos do art. 7o, que

estabelece o conteúdo mínimo do plano diretor, cujo objetivo é

fundamentar e orientar a implementação da política nacional e estadual

de recursos hídricos e seu gerenciamento: o Plano de Recursos Hídricos.

O conteúdo mínimo desse Plano é constituído por: I - diagnóstico da

situação atual dos recursos hídricos; II - análise de alternativas de

crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de

modificações dos padrões de ocupação do solo; III - balanço entre

disponibilidades e demandas futuras dos recursos hídricos, em

quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais; IV -

metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da

qualidade dos recursos hídricos disponíveis; V - medidas a serem

tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem

implantados, para o atendimento das metas previstas; VI - prioridades

para outorga de direitos de uso de recursos hídricos; VII - diretrizes e

critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; VIII - propostas

para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção

dos recursos hídricos. Contudo, convém assinalar que essas

características do conceito de gestão integrada já haviam sido

incorporadas ao Código de Águas de 1934 (Decreto no 24.643, de

10.7.34) de forma esparsa, mas tendo em vista o predomínio do setor de

geração de energia hidroelétrica, elas levaram mais de meio século para

serem regulamentadas nos termos da lei 9.433/97.

O instrumental para promover a gestão integrada dos recursos

hídricos, nos moldes descritos anteriormente, deixa de ser tão-somente

técnico-científico, pela simples razão de se tratar de um recurso repleto

de interesses políticos, econômicos e culturais no seu uso e apropriação.

Cabe desvelar esses interesses para que a democracia participativa ou

direta seja um componente da administração da coisa pública (res

publica). Isto significa que, para a efetiva sustentabilidade político-

institucional da gestão, o estilo de ação orientada pela imposição de uma

ordem técnico-científica ao território, mais conhecido como tecnocrático,

deve ser substituído pelo estilo de ação orientada pela negociação

sociotécnica6, pois quem vive e molda o território de uma bacia

hidrográfica, tem acesso a este, ao direito de sustento e abrigo, é a

comunidade, a mesma que tem de arcar com as conseqüências diretas de

suas ações. Além do mais, como nos tem ensinado as Ciência Sociais em

geral, a Antropologia e a Sociologia, em particular, toda e qualquer

decisão tomada com base em critérios técnicos serve a algum propósito

político, quer se tenha ou não consciência disso (Hackett et ali. 2008;

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Machado, 1998; Wyer, 2000). Tal característica deve-se ao fato de que

todo e qualquer técnico, na condição de pessoa humana, traz dentro de

si os valores políticos, éticos, morais, hábitos profissionais da sociedade

e da cultura da qual faz parte, valores esses que norteiam suas ações

individuais. Uma pessoa habitua-se a tal ponto com certas identidades

que, mesmo quando sua situação social muda, ela encontra dificuldade

para acompanhar as novas exigências.

A prática efetiva de uma gestão pública colegiada, integrada,

orientada pela lógica da negociação sociotécnica, significa agir, visando

ao ajuste de interesses entre as propostas resultantes do diagnóstico

técnico-científico e das legítimas aspirações e conhecimentos da

população que habita o território de uma bacia hidrográfica, ou seja,

entre os diversos atores da dinâmica territorial, envolvidos em sua

organização (os agricultores, os industriais, as coletividades locais etc.) e

os entes do aparelho de Estado. No entanto, como é o caso nas mais

simples situações de emergência, não existe obrigatoriamente entre os

diversos atores a unanimidade inicial quanto às medidas a serem

tomadas. Existe sim, uma tendência natural, que consiste em propor

opções, cujo ônus recairá sobre os outros. Cada um quer que medidas

sejam tomadas, mas tenta transferir para os outros, os seus custos. Eis

porque as medidas devem ser negociadas, através de um ente colegiado

de base do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,

como o Comitê de Bacia Hidrográfica, de tal maneira que se chegue a

decisões que resultem em medidas úteis, bem como a uma divisão

eqüitativa dos esforços e das responsabilidades. Comparada à simples

possibilidade de impor, a negociação sociotécnica é, de modo geral, um

procedimento dispendioso do ponto de vista político, financeiro,

emocional e incerto. É um tipo de interação, onde as partes procuram

resolver dificuldades, através da obtenção de um acordo. Portanto,

obviamente, envolve riscos. Todos o admitem. Não se tem a priori a

segurança de que os resultados almejados se situem na perfeita

interseção de todos os interesses. Ela é, pois, um jogo, na medida em que

os parceiros não são iguais. Uns possuem mais recursos econômicos,

conhecimentos e habilidades técnico-científicas do que outros. Os

participantes realizam manobras; utilizam astúcias; reorganizam seus

meios para chegar a conduzir os outros a tomar decisões através de um

conjunto de movimentos. Esse tipo de recurso tem a vantagem de ajustar

melhor as partes entre si, de ser capaz de aprofundar laços; de produzir

novas situações e oportunidades, através de um processo de barganha

entre argumentos de troca, de firmar, em suma, um pacto.

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Por se tratar, contudo, como já dissemos, de um exercício político

arriscado, caso o que tenha sido acordado numa negociação sociotécnica,

bem como o que foi estabelecido em lei não sejam cumpridos por uma

das partes, sempre haverá, inclusive com garantia constitucional, o

recurso à apreciação do Poder Judiciário, havendo para tanto algumas

modalidades de ações judiciais, dirigidas cada uma delas a situações

específicas, que permitam o exercício da cidadania ambiental. Sob a

designação de cidadania ambiental estão compreendidos o conjunto de

direitos e garantias das responsabilidades conferidas ou atribuídas, tanto

ao poder público, como à sociedade, através de seus órgãos ou

representantes; dos próprios cidadãos organizados ou não, capazes de

perseguir seus direitos ambientais, fazê-los valer, assim entendidos,

todos aqueles inscritos e garantidos pelos diversos diplomas normativos,

desde a constituição, leis, portarias, resoluções e outros. O ordenamento

constitucional prescreveu como mecanismos capazes de assegurar à

cidadania, a defesa judicial do meio ambiente as seguintes ações

judiciais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; a

ação civil pública; a ação popular constitucional; o mandado de segurança

coletivo e o mandado de injunção, além, é claro, das ações de

procedimento comum e das medidas ou ações cautelares respectivas. É,

dessa forma, importante o papel reservado ao Poder Judiciário na tutela

ambiental, pois é através dele que se exercerão os direitos da cidadania,

uma vez que a ele serão submetidas as ameaças e lesões de direito

perpetradas. Mesmo assim, como alertam os especialistas em Direito

Ambiental (Aguiar, 1996), o ator que decidir fazer uso dos instrumentos

jurisdicionais deve avaliar cautelosamente, a sua escolha, a fim de que o

resultado esperado tenha um mínimo de possibilidade eficaz. A

complexidade das causas, envolvendo aspectos científicos, técnicos, de

pesquisa de campo e mesmo de laboratórios pode tornar os processos

judiciais lentos, no caso de isenção de custas, ou caros, no caso da

necessidade de uma pronta resposta.

2.2 Participação, história do indivíduo, da família e da comunidade

Antes de prosseguirmos, convém atentar para o fato de que a

lógica da gestão territorial participativa e descentralizada contida na Lei

de Águas, não pode esconder o fato de que o termo „participação‟

acomoda-se a diferentes interpretações, já que se pode participar ou

tomar parte em alguma coisa, de formas diferentes, que podem variar da

condição de simples espectador, mais ou menos marginal, à de

protagonista de destaque. Assim, a pretendida e esperada participação da

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ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO

sociedade, dos usuários e das comunidades em geral, estão formalmente

incluída na Lei, garantida por meio de sua representação eqüitativa nos

Comitês e demais organismos de bacia hidrográfica, assim como nos

Conselhos estaduais e, nacional.

Mas a participação efetiva e material da sociedade também deve

ser garantida através de outros mecanismos, que valorizem as histórias

particulares de cada localidade e as diversas contribuições das

populações envolvidas, incorporando-as aos planos de recurso hídricos e

ao enquadramento dos cursos de água. Não se trata apenas de

apresentar à população um plano diretor de bacia, elaborado no espaço

de trabalho fechado do corpo técnico-científico do Poder Público,

objetivando validá-lo, mas de garantir a efetiva participação da população

local na consolidação e materialização de um pacto através da prática

política da gestão colegiada e integrada com negociação sociotécnica. A

base empírica do conhecimento local da população sobre os corpos

d‟água de uma bacia hidrográfica deve ser valorizada, pois possui um

valor socioambiental inigualável. Além disso, os cursos d‟água fazem

parte da história do indivíduo, da família e da comunidade que integram

essa população, ganhando sentidos simbólicos que ocupam uma parte

importante de seu patrimônio cultural.

A defesa, portanto, da participação não envolve apenas princípio

democrático de sentido humanista, filosófico (quando não degenera para

o demagógico ou puramente retórico), mas é também parte importante

na construção de uma nova forma de encarar a gestão de recursos

públicos caros e escassos. Envolve o pressuposto de que uma pessoa

envolvida na tomada de uma decisão sentir-se-á comprometida e

procurará vê-la cumprida, será agente da implantação e não paciente. De

fato, a aceitação é maior quando existe participação em todo o processo

de gestão de um projeto ou de uma política, e quando o participante faz

sua própria escolha. Nos Comitês de Bacias Hidrográficas, a população

envolvida é gestora e deve poder reconhecer como propriamente suas as

decisões tomadas, que resultam num plano diretor ou no enquadramento

de um rio, ou pelo menos deve estar convicta de que elas são a

expressão de um consenso possível, resultando de uma negociação

sociotécnica em que suas aspirações foram consideradas.

3.0 As novas modalidades de estruturação da esfera pública e a

incorporação de atores sociais diversos

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Na medida em que se tornaram os referenciais comuns a

praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre

Estado e Sociedade no mundo contemporâneo, importa aqui destacar um

certo conjunto interligado de conceitos e perspectivas que sustentam as

propostas de ampliação da participação dos diversos segmentos sociais

na gestão das políticas públicas em geral, e de recursos hídricos em

particular. Como veremos a seguir, esse conjunto aponta para novas

modalidades de estruturação da esfera pública, ultrapassando seus

limites estritamente estatais para incorporar um conjunto amplo e diverso

de atores sociais, os quais expressam a crescente complexidade das

sociedades contemporâneas (Arato e Cohen, 1992; Dahl, Shapiro e

Cheibub, 2003; Habermas, 1998, 2000; Smismans, 2006).

O primeiro elemento a ser considerado refere-se, portanto, à

centralidade que a democracia assume como condição para o êxito da

implementação de políticas públicas mais participativas. Com efeito, ela

pressupõe que os diversos atores sociais tenham a possibilidade de

participar efetivamente do processo de identificação dos problemas e de

formulação das políticas públicas pertinentes à sua resolução. Para isso, é

fundamental a existência de condições institucionais que viabilizem esta

participação, sem exclusão a priori de nenhum segmento social. Portanto,

é preciso que o ambiente social, político e institucional em que estes

atores se encontram para exercer sua participação tenha um caráter

democrático, que reconheça e respeite a legitimidade de suas

intervenções, interesses e perspectivas particulares. Neste sentido,

acompanhando transformações recentes e profundas na lógica de

estruturação da esfera pública em grande parte das sociedades

contemporâneas, a noção de democracia também sofreu algumas

mudanças importantes. Uma das mais significativas foi que a concepção

tradicional da democracia liberal, de cunho essencialmente representativo

- isto é, voltada para a criação das condições para garantir a legitimidade

dos representantes eleitos através dos partidos políticos e das decisões

que tomam nos diversos níveis em nome dos seus eleitores -, evoluiu

para uma concepção de democracia participativa, ou democracia direta,

na qual a participação direta dos diferentes atores sociais em decisões

que afetam a vida dos grupos e das comunidades, por fora das

instituições representativas tradicionais (partidos políticos, parlamentos

em seus diversos níveis), mas não necessariamente contra elas, é a

principal característica (Dahl, Shapiro e Cheibub, 2003; Gastil e Levine,

2005; Gutmann e Thompson, 1998; Munch, 2000; Smismans, 2006).

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Neste contexto, as decisões não são mais tomadas

exclusivamente pelos representantes formalmente eleitos e, portanto,

com legitimidade institucional para fazê-lo, mas também são

compartilhadas com um conjunto cada vez mais diversificado de

entidades e organizações da sociedade civil, as quais têm um tipo de

representatividade diferenciada em relação àquela que caracteriza a

formalidade democrática. Nessa nova perspectiva, a esfera da ação social

representada pela sociedade civil, base da democracia participativa,

assume um lugar cada vez mais relevante na dinâmica da esfera pública e

na construção, gestão, implementação e avaliação dos diversos temas da

agenda pública. A base desta transformação do sentido e da prática da

democracia encontra-se não somente no âmbito das relações entre o

Estado e o sistema político - relações estas normalmente mais resistentes

a mudanças substantivas, em função do conjunto de interesses políticos

envolvidos -, mas, em especial, nas mudanças de atitudes no

comportamento dos atores sociais. Se tomarmos este último critério (a

relação do Estado com o sistema político) como parâmetro, a democracia

é vista apenas como regime político, como estrutura institucional de

relação entre as elites e o Estado. Pensar a democracia como nova relação

entre Estado e Sociedade, a partir da perspectiva societária, exigirá,

enfrentar o desafio de buscar um desenho institucional adequado. Trata-

se, portanto, não somente de mudanças que ocorreram nos elementos

formais da institucionalidade democrática – necessários, porém, com

freqüência, insuficientes – mas também, essencialmente, nos fatores

substantivos que definem as relações entre o conjunto de atores sociais e

o aparato de poder representado pelo Estado.

O segundo elemento, diretamente relacionado ao anterior, é o

destaque dado ao exercício permanente da cidadania como fator

essencial para a conformação da nova esfera pública no mundo

contemporâneo (Habermas, 1998). Ainda que na tradição do pensamento

político e na prática política das diversas sociedades ocidentais, a

cidadania tenha sido um objeto de análise privilegiado e tema de

freqüentes reivindicações, é inegável que, em especial a partir dos anos

oitenta do Século XX, ela passou a ocupar um lugar absolutamente

central na dinâmica das relações Estado/Sociedade, coincidindo com a

onda de redemocratização que marcou o mundo ocidental, com destaque

para a América Latina e alguns países da Europa.

Dessa forma, a cidadania, entendida como o exercício concreto

de um conjunto definido de direitos diversos, dentre eles o ambiental,

pressupõe, para que seja plena, o concurso de alguns fatores capazes de

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garantir o usufruto destes direitos. Ou seja, é fundamental que os

diferentes atores sociais, em especial aqueles organizados, encontrem

condições propícias para sua atuação com vistas à resolução de

problemas e à verbalização de seus interesses particulares. Neste sentido,

embora muito importante, não basta que estes atores tenham, entre

outros, o direito formal de se organizar, de expressar livremente suas

opiniões e interesses, de participar das decisões, se, por exemplo, os

diversos órgãos públicos não disponibilizam informações adequadas para

estimular e permitir a participação, ou se, mesmo participando, suas

contribuições não são levadas em conta, seus interesses não são

contemplados, e se suas perspectivas não são consideradas na

formulação final das políticas públicas implementadas pelo Estado. A

cidadania não se exerce no vazio, ou abstratamente; é fundamental que

existam condições adequadas para que ela se dê e para que produza os

frutos esperados pelos diferentes segmentos sociais através do que

chamamos anteriormente de gestão integrada com negociação

sociotécnica.

Uma das principais condições exigidas para o pleno exercício da

cidadania é a instauração de um Estado de Direito, fundado no

reconhecimento formal dos direitos dos cidadãos, na implementação de

estruturas institucionais capazes de fazer valer de forma efetiva estes

direitos, na existência da liberdade de imprensa, e na autonomia dos

poderes, de maneira a garantir a autonomia do indivíduo frente ao Estado

e frente aos demais membros da sociedade na luta por fazer prevalecer

seus direitos.

A contribuição do Direito como componente fundamental das

transformações mencionadas anteriormente é, portanto, decisiva.

Compreende-se, dessa forma, o esforço feito por um sem número de

movimentos sociais, de organizações não-governamentais e de outros

atores da sociedade civil, no sentido de incorporar ao texto da Lei um

conjunto de direitos que visam dar caráter legal às suas reivindicações,

obrigando, dessa maneira, tanto o Poder Público quanto os demais atores

sociais a respeitá-los e a pautar suas próprias ações por eles (Gastil e

Levine, 2005; Munch, 2000; Smismans, 2006). Nesse sentido, o disposto

no artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de 1988 e seus

parágrafos trazem uma série de diretivas e de pautas fundamentais

defendidas pelo movimento ambientalista para nortear a conduta de

indivíduos, grupos e associações, tendo em vista assegurar a sadia

qualidade de vida, a preservação, a conservação e a melhoria do meio

ambiente. Com isso, tanto a presente quanto as futuras gerações passam

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a ter direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

O exercício da cidadania se beneficia, por outro lado, da

importância que o plano local vem assumindo para a condução dos

processos de participação social (Smismans, 2006; United Nations, 2006;

Ostron, 1990; Young, 2002). É, efetivamente, no nível local onde se

sentem os efeitos das inumeráveis decisões econômicas, políticas e

sociais que incidem sobre a vida da sociedade e seus membros, afetando

a sua qualidade de vida, o meio ambiente, e a distribuição dos benefícios

do desenvolvimento entre os distintos grupos sociais. Frente a isso, as

comunidades são particularmente estimuladas a desenvolver planos de

ação que tenham enraizamento na própria localidade, como forma de

melhor enfrentar e resolver os problemas que se apresentam

concretamente para cada uma delas. Ainda que ações que possam

congregar outros atores sociais possam e devam ser levadas a cabo tanto

em nível estadual quanto em nível federal, é no plano local que estes

problemas podem ser efetivamente superados. Por esta razão, a

mobilização social no contexto da ampliação dos direitos de cidadania e

de radicalização da democracia, tem no plano local um de seus principais

pontos de partida e uma referencia de importância central.

A valorização do plano local, por outro lado, implica também o

resgate de formas de participação social que se estruturam em torno de

valores e mecanismos de sociabilidade, que contribuem para a

constituição de um ethos comunitário, distinto daqueles vínculos que

ligam o indivíduo à sociedade mais ampla, via de regra uma referência

abstrata para seus membros. Esta ênfase no local serve, portanto, de

estímulo para que o indivíduo e as comunidades, ao mesmo tempo que

desenvolvem seu capital social, , isto é, as características de organização

social como confiança, normas e sistemas que contribuem para aumentar

a eficiência da sociedade, potencializando sua capacidade de intervir de

forma qualificada no processo de planejamento e gestão de políticas

públicas, se aproximem de maneira mais permanente do poder público,

afiançando sua capacidade de exercer controle sobre suas ações e

ampliando sua responsabilidade sobre o êxito ou o fracasso destas ações.

Outro fator determinante do exercício da cidadania é a existência

de uma esfera pública centrada não mais em torno do aparato estatal e

da institucionalidade nele implicada, mas sim pautada na incorporação e

no diálogo com um leque cada vez mais diversificado de atores sociais,

articulando interesses e perspectivas distintos e conflitantes, porém

considerados legítimos no contexto da crescente complexificação das

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sociedades contemporâneas. Por esfera pública, compreende-se aqui o

espaço do debate público, do confronto entre os diferentes atores

sociais, sejam eles vinculados às esferas do Estado, do Mercado ou da

Sociedade Civil (Habermas, 1998). Trata-se, portanto, da formação de

uma esfera pública não-estatal, que ultrapassa o âmbito da ação no qual

se movem o Estado e seus representantes, tornando-se, por essa razão, o

espaço adequado para as ações dos diversos componentes da sociedade

civil, com certeza seu componente mais destacado nos tempos atuais.

4.0 À guisa de conclusão

Vimos anteriormente, de forma esquemática, que as políticas

públicas em discussão no Brasil têm se encaminhado para a implantação

de instituições que contam com a participação da sociedade, pois se

encontra superado o modelo anteriormente utilizado que concentrava

responsabilidades unicamente nas mãos do Estado. Daí a necessidade de

mudanças que observamos na implantação de políticas específicas como

a de recursos hídricos.

Contudo, para instrumentalizar as políticas públicas voltadas para

a gestão das águas, é necessário entendê-la em toda sua diversidade,

dinâmica e expressão. É justamente neste aspecto que o papel do

antropólogo se torna fundamental, posto que a antropologia esta

permanentemente desconstruindo a realidade para remontá-la sob outra

perspectiva. A realidade empírica é algo complexo e polissêmico e,

portanto, difícil de ser encapsulada em fórmulas prontas. Na maior parte

do tempo estamos diante de fenômenos ou objetos complexos de

pesquisa que são ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto da

vida social de nossa sociedade. A gestão dos recursos hídricos é um

desses objetos.

A antropologia, ao menos a que pratico, é uma ciência engajada

no resgate da cidadania brasileira e na melhoria da qualidade de vida das

coletividades humanas, possuindo instrumentos teóricos e metodológicos

que possibilitam a análise holística de objetos complexos, isto é,

sintetizando e integrando as diversas dimensões que constituem a vida

humana e suas manifestações materiais, intelectuais, históricas e

ambientais. Através de uma observação das práticas, das ações e das

inter-relações dos diversos atores da dinâmica territorial durante o

processo de implementação dos organismos de bacia, pode-se, por

exemplo, identificar a discordância na aplicação dos princípios políticos

de descentralização e participação, e as peculiaridades da formação

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social, cultural e político-administrativa presentes nos municípios

brasileiros. Nestes, questões como clientelismo, falta de tradição

associativa e carência de profissionais qualificados nas pequenas

localidades, interferem na prática política da gestão integrada dos

recursos hídricos.

Contudo, se o objetivo da antropologia é a reconstrução da

complexidade de realidades empíricas, como a da gestão dos recursos

hídricos, é preciso ser prudente e lembrar que os processos de mudanças

sociais como aqueles introduzidos pela nova política de recursos

hídricos, isto é, as águas destinadas a usos determinados, ocorrem de

forma extremamente variada e, embora reflitam grandes questões globais

com forte penetração nas sociedades, são localmente apropriados e

recriados com nuanças infindáveis. Por mais que haja manifestações

públicas de consenso entre ONGs, Movimentos Sociais e órgãos oficiais

sobre as virtudes dos princípios e instrumentos contemplados na nova lei

de recursos hídricos do Brasil, sua aplicação em contextos sócio-

geográficos específicos gera uma dinâmica própria onde princípios da lei

e instrumentos de gestão são apropriados de diferentes maneiras,

desencadeando situações novas ou potencialmente indutoras de conflitos

e mudanças.

NOTAS

1. Pode-se afirmar que até a publicação de The Interpretation of

Culture de Clifford Geertz, em 1973, o conhecimento antropológico era

concebido como reprodução do mundo observado, descrevendo a

realidade sócio-cultural enquanto tal. Com a emergência da corrente

interpretativa instaura-se o cepticismo quanto à possibilidade de

descrever a realidade enquanto tal. Qualquer descrição sócio-cultural,

ainda que proveniente da observação participante, não é senão uma

representação/interpretação da realidade, enquadrada pelo ponto de

vista do antropólogo e pela tradição teórica em que ele se insere.

2. Em função desta constatação, Tim Ingold (2000) ao buscar o

entendimento de como os seres humanos percebem o seu meio, nos

oferece uma abordagem persuasiva argumentando que o que estamos

acostumados a chamar de variação cultural consiste, em primeiro lugar,

de variações de habilidade. Nem inata nem adquirida, as habilidades são

cultivadas, incorporadas no organismo humano através de prática e de

treinamento num dado meio ambiente; são tão biológicos como culturais.

E para abordar a geração de habilidades temos, segundo Ingold, de

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entender a dinâmica do seu desenvolvimento, o que requer uma

abordagem ecológica que situa os praticantes no contexto de um

compromisso ativo com os constituintes de seus meios ambiente.

3. No maior relatório ambiental já realizado pelas Nações Unidas

nos últimos 20 anos, quando a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento publicou o estudo "Nosso Futuro Comum", também

conhecido como Relatório Brundtland, são analisados o uso dos recursos

naturais em 572 páginas intituladas "Perspectivas do Meio Ambiente

Mundial". Também chamado de 4º Panorama Global do Meio Ambiente

(GEO-4, na sigla em inglês), o documento divulgado em 25 outubro de

2007 foi elaborado por 390 especialistas de todo o mundo, avaliando-se

os estados atuais da atmosfera, da terra, da água e da biodiversidade em

nível global. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

(PNUMA) afirma que as maiores ameaças ao planeta, como as mudanças

climáticas, a taxa de extinção das espécies e o desafio de alimentar a

crescente população, estão entre os muitos que permanecem sem

solução e colocam a humanidade em risco. Ele reconhece o progresso

mundial em solucionar alguns problemas mais diretos, já que o tema de

meio ambiente está agora muito mais próximo da política em todo lugar.

Porém, apesar dos avanços, ainda restam questões difíceis de serem

tratadas, os chamados problemas “persistentes”. Neste caso, o GEO-4

afirma: “não há nenhuma grande questão levantada em Nosso Futuro

Comum cujas tendências previstas sejam favoráveis”. O fracasso em

resolver esses problemas persistentes, afirma o PNUMA, pode causar um

retrocesso em todos os avanços alcançados até agora em questões mais

simples, além de ameaçar a sobrevivência da humanidade. Mas insiste: “o

objetivo não é apresentar um cenário trágico e sombrio, mas um

chamado urgente à ação”. Quanto às mudanças climáticas, o relatório

afirma que o tema é de urgência tal que grandes cortes na emissão de

gases do efeito estufa se fazem necessários até a metade do século. As

negociações para tal devem se iniciar em dezembro, com vistas a um

tratado que substituirá o Protocolo de Kioto, acordo internacional sobre

clima que obriga os países a controlar as emissões antropogênicas de

gases do efeito estufa. Embora ele exima todos os países em

desenvolvimento do compromisso em reduzir tais emissões, há uma

pressão crescente para que países em rápida industrialização, hoje

emissores susbstanciais, aceitem promover a redução de suas próprias

emissões. O GEO-4 também alerta para o fato de que vivemos além dos

nossos recursos. A população mundial hoje é tão numerosa que “a

quantidade de recursos necessários para mantê-la excede os recursos

disponíveis... a „pegada‟ da humanidade, ou seja, sua demanda

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ambiental, é de 21,9 hectares por pessoa, enquanto a capacidade

biológica da Terra é, em média, somente 15,7 hectares por pessoa...”. O

relatório afirma que o bem-estar de bilhões de pessoas no mundo em

desenvolvimento está ameaçado pelo fracasso em remediar problemas

relativamente simples que foram solucionados com sucesso em outros

lugares. O GEO-4 recorda a declaração da Comissão Brundtland de que o

mundo não enfrenta crises separadas – as crises ambiental, de energia e

de desenvolvimento são uma só. Essa crise envolve não apenas mudanças

climáticas e fome, mas outros problemas gerados por números humanos

crescentes, o aumento do consumo dos ricos e o desespero dos pobres.

São exemplos: diminuição dos cardumes para pesca; perda de terra fértil

pela degradação; pressão insustentável sobre os recursos naturais;

redução da quantidade de água doce disponível para humanos e outras

espécies; e risco de que o dano ambiental atinja uma situação irreversível

e desconhecida. O GEO-4 afirma que as mudanças climáticas são uma

“prioridade global” que requer vontade política e liderança. Mesmo assim,

ele identifica “uma notável falta de urgência” e uma resposta global

“inconseqüentemente inadequada”.

4. Sobre esse processo de construção ver, por exemplo, numa

perpectiva antropológica, Crumley (2001), Haenn e Wilk (2006), Ingold

(2000), Lopes (2004), Milton (1993) e o número temático sobre

antropologia e meio ambiente da Revista Horizontes Antropológicos

(volume 12, número 25 de 2006).

5. Para um visão de conjunto dos resultados alcançados com

essas pesquisas, bem como das críticas relacionadas ao processo de

implementação da política de recursos hídricos brasileira e no Estado do

Rio de Janeiro, ver Machado (2004, 2006).

6. O uso que faço do termo sociotécnico, criado nos anos 1960

por um grupo de sociólogos britânicoa que estudavam as organizações

empresariais (cf. Trist e Murray, 1993) e apropriado posteriormente pelos

Estudos de Ciência e Tecnologia (cf. Hsckett et ali. 2008), tem por

objetivo enfatizar a necessidade de fazer dialogar o social e o técnico,

face à complexidade, à heterogeneidade e à diversidade os elementos

que se combinam e se misturam num dado espaço geográfico de uma

sociedade mais ampla, formando um emaranhado de relações

constitutivas das práticas e ações cotidianas dos atores da dinâmica

territorial de uma bacia hidrográfica.

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Sobre o autor

Carlos José Saldanha Machado concluiu o doutorado em Antropologia Social pela

Sorbonne (Université Paris V - Rene Descartes) em 1998 e o mestrado em

Ciências da Engenharia de Produção, área de Política de C&T, pela COPPE/UFRJ

em 1991. Atualmente, (1) na Fundação Oswaldo Cruz, i) é Pesquisador em C&T

em Saúde, ii) Chefe do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde

(LabCiTIeS) e iii) Editor Científico da RECIIS - Revista Eletrônica de Comunicação,

Informação e Inovação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação

Científica e Tecnológica (ICICT) ; (2) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

é Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (Doutorado)

responsável pela disciplina "Política Ambiental Brasileira" ; (3) no Ministério da

Educação, é avaliador institucional e de cursos do Sistema Nacional de Avaliação

da Educação Superior (SINAES). Atualmente coordena 2 projetos de pesquisa, um

financiado pelo CNPq e outro pela FAPERJ. Atua na área de Sociologia e

Antropologia, com ênfase nos Estudos Sociais das Ciências, das Tecnologias e da

Inovação em Saúde e em Políticas Públicas e Gestão de Recursos Hídricos. É

membro do Conselho Editorial das revistas "Medicina y Seguridad del Trabajo" e

"Rio de Janeiro" e parecerista ad-hoc da "Editora Fiocruz" e das revistas "História,

Ciências, Saúde - Manguinhos", "Cadernos de Saúde Pública", "Gestão &

Produção" e "Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais".

[email protected]

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ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE

CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN

Lilian Krakowski Chazan* - UERJ

[email protected]; [email protected]

RESUMO

A partir dos anos 1990, no Brasil, o ultra-som obstétrico

expandiu-se como prática de acompanhamento pré-natal, tornando-se

um exame considerado essencial para o acompanhamento da gravidez

nas sociedades urbanas. Esta prática apresentou – e apresenta – uma

série de desdobramentos inusitados, que exploramos em tese de

doutorado já finalizada. A metodologia – qualitativa – utilizada foi a de

observação participante, desenvolvida em três clínicas privadas de

1 Artigo publico em:

IV Congresso Brasileiro de Ciencias Sociais e Humanas em Saude

XIV Congresso da Associacao Internacional de Politicas em Saude

X Congresso Latino-Americano em Medicina Social

* Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro

Pós-doutoranda no Departamento de Políticas Públicas e Planejamento em Saúde do Instituto de

Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro

SALVADOR, BA, 13-18 DE JULHO 2007

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CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN

imagem, no decorrer de 2003, no Rio de Janeiro. A partir da etnografia

realizada, discute-se neste trabalho como são produzidos, em um

processo interativo durante as sessões de ultra-som, uma série de

reconfigurações na construção social da gravidez e do feto como Pessoa

por meio de narrativas discursivas e visuais. A pesquisa evidenciou, entre

outras questões, que os aspectos lúdico e de consumo da imagem,

mesclados à produção de diversas „verdades‟ sobre a gravidez e o feto

são elementos centrais para a produção, manutenção e expansão que

resultam na estabilização do ultra-som obstétrico no universo observado.

Por estabilização entende-se um momento – provisório – na trajetória de

uma tecnologia no qual o significado desta é compartilhado pelos grupos

sociais envolvidos em sua produção e consumo. Em um mesmo

movimento, a tecnologia é reafirmada como produtora de verdades

médicas sobre a gravidez e o feto, e este é constituído como indivíduo

subjetivado e „inserido‟ socialmente. Nesse processo mesclam-se

diversos aspectos heterogêneos que, em uma interação dinâmica,

reafirmam a posição hierárquica da biomedicina no manejo da gestação.

Palavras-chave: Cultura, saúde e doença: corpo, subjetividade e

práticas em Saúde Coletiva.

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INTRODUÇÃO

A ciência e a tecnologia são práticas humanas que não se dão no

vazio, nem se desenvolvem por si mesmas. Pelo contrário, como toda e

qualquer prática humana encontram-se profundamente enredadas nos/ e

são determinadas pelos/ aspectos e fatores mais variados e

heterogêneos. Nos últimos 50 anos, diversos historiadores vêm

abordando essa questão por vários ângulos, assim como sociólogos e

antropólogos, estes em especial nos últimos 30 anos. O ponto que me

interessa discutir aqui refere-se a um aspecto particular, que diz respeito

a uma determinada tecnologia utilizada no campo da medicina. Trata-se

de um work in progress, pois estou iniciando uma nova pesquisa, apoiada

em um referencial teórico que busca desvendar por meio de quais

processos uma determinada tecnologia ou artefato ganha espaço e

credibilidade, enfim, se estabiliza, como produtor de conhecimento

confiável. Vou explicar um pouco cada um destes conceitos

[estabilização, conhecimento confiável, aspectos heterogêneos etc.], mas

o ponto que me parece mais importante deixar claro desde o início é que

esta abordagem encerra uma questão profundamente política, no sentido

amplo do termo.

Ao se desvendar esses processos ou, nos termos de Latour, ao se

“abrir a caixa-preta” da construção de conhecimentos e também de

artefatos técnicos, abre-se a possibilidade de interferir – nos países

produtores de aparelhagem tecnológica –, no desenvolvimento e pesquisa

dos artefatos, e – nos países „periféricos‟ –, nos processos de tomada de

decisão sobre a aplicação e utilização ampla e pública de uma

determinada aparelhagem ou tecnologia, em qualquer área.

Estabilização é um conceito desenvolvido por Pinch e Bijker

(1987), em um estudo hoje já clássico sobre bicicletas, que pode ser

tomado como modelo para qualquer outro objeto. O que eles discutem é

que, ao surgir um determinado artefato, ele encontra-se em um

momento conceituado por eles como de „flexibilidade interpretativa‟, ou

seja, dependendo do ponto de vista de cada grupo social, aquele

determinado artefato apresentará uma certa gama de problemas, que

para outro grupo diferente pode até ser uma vantagem. Isto equivale a

dizer que há uma flexibilidade e variabilidade muito amplas na

compreensão e aceitação de um determinado objeto, aparelho, tecnologia

etc. Dependendo das relações de poder entre os diversos grupos sociais

relevantes para o desenvolvimento daquele artefato [ou tecnologia], este

vai se estabilizar e ganhar uma forma, digamos, mais definitiva, ou pode

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desaparecer. Quando há a estabilização e um artefato ou tecnologia se

difundem [ou o contrário, se difundem e se estabilizam], pelo fato de ser

uma situação sempre histórica e socialmente determinada, considera-se

também que as estabilizações são, por definição, temporárias e

provisórias: os aparelhos podem ser adiante substituídos por outros e

desaparecerem ou serem modificados, aperfeiçoados. Existe uma

infinidade de exemplos de todas essas situações na história da

tecnologia. A rigor, aqui já estamos no campo da sociologia da

tecnologia.

Mas qual é o meu ponto, e o que isso tem a ver com corpo,

saúde? Na minha tese de doutorado, estudei de que modo o ultra-som

obstétrico mediava a construção do feto como pessoa antes do

nascimento (Chazan, 2005, 2007). Para isso, desenvolvi uma etnografia

observando clínicas de ultra-som no Rio de Janeiro [momento comercial –

lançamento do livro mais tarde]. Minha abordagem na tese visava

compreender os processos por meio dos quais imagens cinzentas e

borradas eram transformadas em objeto de desejo e consumo, algum

tempo depois de terem se tornado produtoras de conhecimento

considerado confiável no campo do diagnóstico pré-natal. Conhecimento

confiável é outro conceito, desenvolvido por Brigitte Jordan, “O

conhecimento que os participantes de um determinado grupo concordam

que seja importante em uma situação particular, que eles percebem como

trazendo resultados significativos, e baseado no qual tomam decisões e

encontram justificativa para suas formas de agir” (Jordan, 1993: 154)

(grifo original).

Terminada a tese, várias perguntas haviam ficado na minha

cabeça, entre elas, porque essa tecnologia, que produzia no princípio

“imagens horríveis”, havia encontrado campo para se desenvolver,

principalmente considerando que de início nem eram consideradas

produtoras de conhecimento algum no campo da medicina. [Depoimento

de Paulo Costa, desconfiança e resistência do início, no Brasil]. E essa é a

minha pesquisa atual, que está em processo. Estou fazendo um

levantamento do início da história do ultra-som obstétrico no Brasil nos

anos 1970-80, por meio do depoimento dos precursores do uso dessa

técnica, que ainda estão vivos e em atividade. Pesquisar a história da

tecnologia em geral me abriu um novo campo de conhecimento, o dos

estudos sociotécnicos [STS ou CTS, no Brasil], e ao ler esses novos

autores [Law (1987), Pinch e Bijker (1987), Hughes (1987), Cowan (1987),

Latour (2000), Latour & Woolgar (1997) e, mais recentemente Mol (2002)]

percebi que poderia lançar um outro olhar sobre o meu material

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etnográfico, que poderia perfeitamente ser justaposto ao que eu já havia

feito.

Portanto, é essa a reflexão que vou esboçar aqui para vocês

TECNOLOGIA MÉDICA COMO OBJETO DE CONSUMO

Uma das conclusões surpreendentes da tese foi a de que, mais do

que a construção da pessoa fetal que eu estava pesquisando, eu havia

observado a construção do prazer de ver as imagens fetais [estou já

contando o final do livro em que o assassino é o mordomo]. O ultra-som,

dentre todas as tecnologias de imagem, tem uma característica peculiar,

que é a de permitir uma interação entre o médico e o cliente que não

acontece com as outras tecnologias [RX, MRI, CT etc.]. A outra exceção é

o cateterismo cardíaco, mas não cabe aqui discutir porque tem outras

características. Nos termos do próprio campo, o ultra-som é uma

tecnologia „operador-dependente‟, o que significa que as imagens vão

sendo obtidas e selecionadas à medida que o exame transcorre, e em

tempo real. O médico [em outros países são técnicos] ao mesmo tempo

obtém as incidências, diagnostica, produz medições que serão

processadas pela aparelhagem, focaliza mais determinadas partes que

considere relevantes para a obtenção de um diagnóstico, sempre em

tempo real. Nesse conjunto heterogêneos de atividades, chamava-me

muito a atenção o quanto de conversa acontecia em cada exame

[observei uns 200, ao longo de um ano] e, principalmente, como os

médicos gastavam um bom tempo se dedicando a explicar as imagens

para as gestantes que, a rigor, já vinham para o exame com essa

expectativa. E isso era uma constante. [Compare-se com um US de

fígado, mama – ninguém espera que o médico explique o que está

vendo]. Vale dizer que os profissionais das clínicas que observei eram

remunerados por produtividade e, portanto, estender o exame tinha

conseqüências óbvias nesse índice e consequentemente em seus bolsos.

Este detalhe ilumina a importância desta atividade explicativa no

desenrolar dessa prática médica. Refletindo agora, em termos

sociotécnicos, compreendi que esse empreendimento interativo, didático,

era em grande parte o responsável pela difusão e estabilização da

tecnologia de ultra-som no Brasil, e em um processo de realimentação

com o desenvolvimento dessa tecnologia e melhoria das imagens,

produzia uma série de outros efeitos para além dos diagnósticos

obstétricos.

Existem também diversos outros fatores, como não podia deixar

de ser, que justamente pretendo levantar nessa minha nova pesquisa,

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que considero relevantes nesse processo de difusão e estabilização. Por

exemplo, o ultra-som teve seu primeiro aparelho instalado no Brasil em

1972, em plena ditadura militar. Nesse período aconteceu também a

eletrificação do país e uma expansão significativa da televisão,

especialmente da TV Globo, que a apoiava aberta e fortemente. Uma

tecnologia como o ultra-som pode ser simbolicamente associada a

diversos aspectos, tais como modernidade, progresso do país [lembram

do Brasil grande?], milagre, controle de corpos etc. Isso só para início de

conversa. Daqui a uns dois anos voltamos a conversar sobre isso, quando

eu terminar essa pesquisa.

Voltando à questão da interatividade, revendo e relendo o

material etnográfico, percebi que por meio desta, associada ao didatismo

dos médicos e ao aperfeiçoamento da tecnologia, ao se construir o prazer

de ver as imagens fetais era simultaneamente instigado o consumo delas,

a credibilidade dos médicos, a formação e a fidelização de uma clientela –

um aspecto importante, já que na época da etnografia [2003], no Rio,

existiam cerca de 500 clínicas de ultra-som – e principalmente o reforço

da estabilização da tecnologia do ultra-som. Esta passou a ser

considerada não apenas uma ferramenta indispensável para o

acompanhamento pré-natal nas sociedades urbanas industrializadas,

como tornou-se parte de um imaginário poderoso relacionado à

reconfiguração dos corpos grávidos e fetais. Nesse mesmo processo,

constrói-se uma nova cultura visual médica, „ensinada‟ pelos médicos às

gestantes, que aprendem a ver e a gostar das imagens cinzentas e

esfumaçadas, traduzidas como „meu bebê‟. Fora isso, não se pode

esquecer que há um contexto mais amplo, no qual a visualidade e

especialmente as imagens técnicas desfrutam de um status de produtores

de verdades incontestáveis.

A mídia desempenha um papel significativo nessa construção,

produzindo a idéia de que pode-se saber tudo sobre o ser em gestação.

Houve casos extremos – e justamente por isso densos e significativos de

um ponto de vista analítico – como o de uma atriz em ascensão que

realizou um exame de ultra-som ao vivo, em um canal de TV aberta

[programa do Leão ou do Ratinho, não me lembro], conversando em off

com o pai do feto, que pelo telefone ia comentando o que ele via pela TV.

Ou seja, produzem-se híbridos com diversos níveis de mediação, esse

caso é ilustrativo na medida em que há a mediação do aparelho de ultra-

som, a TV e o telefone, que supostamente produziriam uma aproximação

do pai com o seu futuro filho. Aliás, é comum os médicos comentarem

que acham que o ultra-som „aproxima a mãe do bebê‟, o que é no

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mínimo curioso para pensar. Aproxima???? Outro aspecto interessante é

uma espécie de atalho no tempo, pois os fetos são tratados como

crianças já nascidas, o termo „feto‟ só aparece entre médicos; com a

clientela sempre são referidos como „bebê‟, „neném‟, ou pelo prenome,

quando já se sabe o sexo e tem o prenome escolhido.

Em toda essa gama de processos que se entrelaçam, misturando

aspectos tão completamente heterogêneos quanto medicalização da

gravidez, afetos, tecnologia, a física do ultra-som, mercado, mídia,

corpos, credibilidade e prestígio profissional, cultura visual, consumo e

„n‟ outros que podem ser arrolados, existe um aspecto que se renova e se

reforça constantemente, que diz respeito justamente à estabilização do

uso dessa tecnologia na gravidez. Não pretendo dizer de modo algum

que há uma intencionalidade nesse processo, nem que ele é dirigido de

cima para baixo, por alguma instância poderosa e/ou demonizada. Não é

nem a indústria, nem a biomedicina ou os médicos que produzem esse

estado de coisas. Parece-me que essa estabilização – vale lembrar e

sublinhar, uma estabilização é sempre provisória e histórica e

socialmente determinada – é a resultante da conjugação de vários fatores

que me parecem em boa parte serem diversas facetas do biopoder

conceituado por Foucault (1984, 1999), na medida em que se gera e é

internalizada uma „necessidade‟ de controle dos corpos grávidos e fetais.

Outro ponto digno de nota diante dessa difusão,

espetacularização e consumo de ultra-som é o paradoxo levantado por

esse fenômeno no contexto da proibição do aborto. Se tomarmos por um

prisma estritamente biomédico, a finalidade primeira do exame é a

detecção de anomalias fetais. A cirurgia fetal dispõe de possibilidades

ainda bastante reduzidas. Se não é dado à mulher o direito de escolha, o

que fazer diante de uma anomalia por exemplo incompatível com a vida,

ou com uma qualidade de vida [conceito complicado] minimamente

razoável? A gente sabe que o que acontece, a rigor, tem um diferencial de

classe muito marcado: mulheres com algum recurso realizam abortos em

condições razoáveis de higiene – aliás, mesmo sem haver anomalia

exercem o real direito de escolha – e as das camadas desfavorecidas, ou

não abortam, e eventualmente enfrentam problemas da maior gravidade,

sem recursos para atender às crianças nascidas com „necessidades

especiais‟, ou abortam em condições extremamente precárias (Ramírez-

Gálvez, 1999, 2003). Os médicos que se manifestam quando

questionados publicamente a respeito desse paradoxo, usam como

racionalidade a argumentação de que „o ultra-som é útil para preparar a

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gestante para as dificuldades que ela vai enfrentar‟.2 [Isso tudo é uma

outra grande discussão fora desse meu assunto estrito, mas faz parte do

quadro no qual o ultra-som está inserido]. Entretanto, deixando-se de

lado o aspecto biomédico do exame, pode-se pensar que o paradoxo da

espetacularização e consumo do ultra-som nesse contexto seja apenas

aparente. Eu diria que, tomando-se como pano de fundo a questão do

aborto, esses fenômenos entram como se fossem uma cortina de fumaça

– não proposital nem planejada, mas nem por isso menos eficaz e útil –

ocultando ou deixando de lado a discussão, pela sociedade, sobre o

direito de escolha da mulher. Tomando-se como pano de fundo a

estabilização e difusão do ultra-som, a espetacularização e instigação ao

consumo são parte integrante e necessária do processo.

CONCLUSÃO

À guisa de uma breve e provisória conclusão, eu diria que por

meio desse conjunto de fatores articulados constrói-se um consenso

coletivo acerca da confiabilidade e da indispensabilidade do ultra-som no

acompanhamento pré-natal, que reforça e renova a estabilização dessa

tecnologia. O ultra-som mescla e responde de modo dinâmico aos mais

diversos aspectos circulantes na cultura, que vão desde o Individualismo,

o biopoder, com o controle e medicalização dos corpos, à visualidade,

passando pela cultura do consumo e do culto ao corpo e, por seu turno,

produz novos valores, sensibilidades e mercados. A meu ver, deve à sua

possibilidade de conjugar o atendimento a demandas tão heterogêneas o

seu retumbante sucesso nos dias atuais.

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construção da Pessoa fetal mediada pela ultra-sonografia: um estudo

2 Recentemente, quando questionado sobre a utilidade de uma bateria de testes bioquímicos para

rastreamento de anomalias genéticas e cromossomiais, o PRATIC®, Dr. Laudelino Marques Lopes

referiu-se à criação de um centro multidisciplinar para “conscientizar os pais sobre os problemas que

vão enfrentar e orientá-los de forma integral e objetiva, tentando minimizar essas dificuldades”, e

que o teste “não objetiva indicações para interrupções, ainda mais em se tratando de uma questão

tão polêmica como essa. Ao contrário, ele pretende esclarecer, elucidar, rastrear e dar maiores

subsídios para casais e médicos assistentes”. Capturado em

http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3707, em 12/07/2007.

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Por Maria das Graças Vanderlei da Costa.

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 99 - 102

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA

LE BRETON, David. (2007), A Sociologia do Corpo. 2.ed. Tradução de

Sonia M.S Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes.

Maria das Graças Vanderlei da Costa.

O tema abordado nesta publicação vem sendo alvo de muitos estudos

antropológicos, ligados a diversas áreas de interesse. Pesquisas

envolvendo religião, gênero, etnicidade, imaginário, contemporaneidade,

saúde, dentre outras, vêem no campo da corporeidade perspectivas de

indagações e descobertas. Nesta obra de referência, o antropólogo

francês David Le Breton, consagrado especialista em estudos do corpo,

destaca a corporeidade como um novo campo da sociologia.

É objetivo do autor perceber o corpo como um importante

elemento da expressão humana, revelando-se primordial para a

compreensão do homem e de sua relação com o mundo. Como um

produtor de sentidos e um propagador de significações, ele permite a

inserção no interior dos espaços social e cultural. Assim, o processo de

socialização da experiência corporal acompanha as diversas etapas do

desenvolvimento dos indivíduos e a construção corpórea, pautada nas

características de cada grupo social torna-se socialmente modelável.

Numa perspectiva introdutória, e de forma bastante didática, o

autor destaca as primeiras décadas do século XX, momento de

descobertas sobre o valor do corpo para a sociologia. De modo

esquemático, discorre sobre as principais etapas da abordagem do corpo

pelas Ciências Sociais, desde aos seus primórdios, no Século XIX. Em um

primeiro momento, denominado pelo autor de sociologia implícita do

corpo, este, embora não seja esquecido, ainda ocupa uma posição

secundária para a análise sociológica. Com objetivos voltados à denúncia

de questões de miséria, insalubridade, e carência das classes

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 99 - 102

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA

trabalhadoras dentro do contexto da Revolução Industrial, Villermé,

Buret, Engels e Marx desenvolvem estudos sobre o corpo, moldado pela

interação social: corpo enquanto fato de cultura. Paralelamente, uma

outra abordagem dá primazia ao biológico, como elemento determinante

para a definição social e cultural do homem, observando a determinação

das raças e hierarquia evolutiva dos grupos humanos. Em destaque, as

posições de clássicos autores da Sociologia, como Durkheim, Mauss,

Hertz, Weber, Simmel. No âmbito da psicanálise, a importância do

trabalho de Freud, introduzindo o elemento relacional na corporeidade.

Numa segunda etapa, há o que o ator chama de sociologia em

pontilhado. É uma passagem progressiva que desloca o olhar do corpo

numa visão biológica e morfológica para uma imersão no campo social e

simbólico: uma corporeidade socialmente construída. Aqui estão em

destaque os trabalhos de Simmel, Hertz, Mauss, componentes da Escola

de Chicago, Elias e Efron.

Observo que nessas duas primeiras etapas enunciadas, seguimos

um itinerário dentro da própria história da Sociologia, recordando

clássicos estudos e autores que marcaram a história da disciplina e

influenciaram o nascimento da Antropologia. Por fim chega-se a

sociologia do corpo, a qual estabelece as lógicas sociais e culturais

propagadas através da corporeidade.

A obra nos convida a uma caminhada em direção às variadas

definições de corpo, observando as ambigüidades deste referente, as

distintas concepções nas diversas sociedades e plurais abordagens

epistemológicas: o corpo e sua relação com o cosmo, o social, o

individual e a natureza. Nesse sentido, Le Breton reitera a importância da

Sociologia e Antropologia para a compreensão da corporeidade enquanto

estrutura simbólica, ressaltando as representações, os desempenhos, o

universo imaginário e os limites que envolvem as diferentes concepções

envolvidas nessa dinâmica.

É de suma importância as colocações da obra destacando o corpo

como valioso campo de pesquisa. O texto continua, a cada momento, nos

lembrando da tarefa de investigarmos as raízes sociais e culturais que

envolvem a condição humana.

Para o autor duas importantes questões devem marcar a Sociologia

do corpo: o entendimento da diversidade entre grupos e culturas,

percebendo-se as questões históricas; o estudo da relação entre os

atores e o mundo. A não compreensão desses elementos gera

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 99 - 102

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA

ambigüidades. Argumenta também que a pluridisciplinaridade que

envolve o estudo do corpo pode ser uma fonte de riqueza.

Tecendo uma teia sobre os campos de pesquisa da corporeidade

Le Breton utiliza-se de uma minuciosa abordagem destacando trabalhos

de relevantes estudiosos que o ajudam a revelar a grandiosidade desse

universo. Em relação às práticas relacionadas com as lógicas sociais e

culturais da corporeidade, destaca o trabalho de Mauss e seus estudos

sobre as técnicas do corpo. Em relação à gestualidade o autor faz

referência a cotidianas ações desenvolvidas pelos indivíduos. Destaca os

estudos comparativos desenvolvidos por Efron e o trabalho de

Birdwhistell. Numa abordagem sobre a etiqueta corporal, revela este

importante elemento presente na interação cotidiana, determinado e

autorizado a partir dos padrões dos grupos e traz exemplos de Goffman,

Hall, e Firth.

Le Breton reitera a importância de percebermos a expressão dos

sentimentos e o campo das percepções sensoriais. Aqui os estudos de

Simmel e Becker. Fazendo referência às técnicas de tratamento

dispensadas ao corpo, observa também a influência de cada grupo e

classes sociais, em relação às condutas de higiene, purificação,

prevenção. No tópico inscrições corporais percebemos as inúmeras

marcas corporais que têm diferentes funções para cada comunidade. Em

relação a má conduta corporal destaca os debates em torno da doença,

desespero e loucura.

Ressalto que todo esse conjunto enunciado sobre as técnicas que

envolvem a corporeidade nos permite ter uma ampla visão das possíveis

pesquisas sociológicas relativas a esse campo, ampliando nosso

entendimento sobre a riqueza desse universo.

Observa que diversas teorias tentam identificar o corpo, defini-lo,

determinar sua ligação com o ator por ele personificado, a partir de

noções que fazem parte do contexto social e cultural de cada sociedade.

As abordagens biológicas buscam na Sociobiologia a base para suas

teorias afastadas do campo epistemológico das Ciências Sociais. Através

de alguns relatos etnográficos e dos estudos de Goffman, aspectos sobre

a diferença entre os sexos. Questionando sobre a representação e valores

associados ao corpo ou a parte deles, tece um diálogo com Hertz e

Douglas. Em relação ao corpo, enquanto lugar de imaginários, o autor

aborda sobre o racismo. Uma última dimensão apontada pelo autor é a

do corpo deficiente e as limitações sociais de se lidar com um corpo

marcado pela diferença, a qual suscita atenção e mal-estar.

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RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA

A partir do momento que vamos percorrendo o texto, somos

convidados a prosseguir nessa viagem em direção aos campos de

pesquisa, que envolvem os estudos da corporeidade. Nesse sentido, Le

Breton aponta para a significação do corpo na contemporaneidade.

Relacionado às questões de pertencimento social e cultural de cada

indivíduo, a preocupação com a aparência do corpo que se apresenta e se

representa. Analisa também a ação política sobre a corporeidade, a partir

do trabalho de Brohm, M. Foucault, Bourdieu, e Boltanski. Sob a égide da

moral do consumo, Baudrillard destaca o corpo, objeto da modernidade.

Perrin, por sua vez, observa as terapias corporais no espaço terapêutico

como forma de mudança espiritual. Le Breton observa a concepção

contemporânea que opõe sutilmente o homem ao corpo, objeto a ser

moldado e que o revela como parceiro, um espelho fraternal que deve ser

explorado. Observa a crescente paixão moderna pelo risco e aventura e a

visão biomédica própria da modernidade, onde o corpo serve a

experimentos e transplantes, visto pelo autor como membro

supranumerário do homem.

Concluindo sua obra o autor tece importantes considerações sobre

a difícil tarefa de se fazer uma sociologia do corpo. Esta deve fazer um

percurso transversal em relação a outros campos de estudo, como

história, psicologia, etnologia, medicina, biomédica, dentre outros.

Precisamos perceber a complexidade do campo e do objeto,

reconhecidamente interface entre o social e o individual, entre natureza e

cultura, entre o fisiológico e o simbólico. Embora sendo um campo ainda

em construção, conta com investigadores relevantes, como tantos citados

nessa obra. Numa perspectiva dialógica imprimir uma tarefa pautada na

prudência, humildade, reflexão, mas repleta de imaginação e busca, na

tentativa de elucidar as lógicas sociais e culturas que envolvem ao estudo

da corporeidade.

A obra alerta para os importantes campos que se abrem que

servem para pensarmos sobre o universo do gestual, as práticas físicas,

as representações associadas aos segmentos corporais, a remodelação do

imaginário coletivo impostos pela modernidade e dos sistemas

simbólicos presentes nas lógicas sociais e culturais.

Em todo o texto o autor nos faz perceber a complexidade da

Sociologia do corpo e a possibilidade que temos, através dela, de

descobrir a amplitude de nossas próprias relações com o mundo. Essa é

uma Sociologia do “[...] enraizamento físico do ator no universo social e

cultural” (Le Breton, 2007, p.94).

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Texto de apresentação de Carlos Newton

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LITERATURA – POEMAS DE ARIANO SUASSUNA | TEXTO DE APRESENTAÇÃO POR CARLOS NEWTON JR.

Em seu número de estréia, em homenagem aos 40 anos do Movimento

Armorial, a revista Itacoatiara publica três poemas de Ariano Suassuna. São

poemas das décadas de 1950 e 60, nos quais Suassuna utiliza o termo

“armorial” enquanto adjetivo, antes mesmo do lançamento oficial do

Movimento, ocorrido a 18 de outubro de 1970, no Recife.

Carlos Newton - UFPE

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

Dedicado a um certo Menezes, entalhador barroco

nordestino do século XVIII e autor de uma escultura

em madeira chamada "São Miguel e o Demônio".

Esse cedro, esse Tronco, a tempestade,

que da Noite vermelha foi gerado,

não me permite o Sono sossegado,

exigindo, em meu Sangue, a liberdade.

Preciso exorcismá-lo nesta Grade,

afogá-lo na tenda deste Pouso,

pois o Escopro me tenta e, desejoso

de afirmar a soberba Forma escura,

atenderei à Voz que me conjura,

entregando-me ao Sopro poderoso.

Não sei por que razão, Remoto e estranho,

me encontro desterrado no Deserto,

onde o Vento levanta, mal-desperto,

ondas de Pó maldito em que me banho.

Sinto-me triste e só, e mal tamanho

não me veio, decerto, impunemente.

Perto, o mar: Sol nas águas, claro e quente.

Mas cala-se às perguntas que lhe faço

e espero que na paz de seu Regaço

a Noite me liberte novamente.

Sempre fechada, ali, a Fortaleza:

será, também, um Muro irrecusável?

Talvez, se sua Face impenetrável

escondesse os sinais da Luta acesa.

Mas, extinta no Sol, é-me defesa,

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

exige a Obra, o Anjo, a luz da aurora,

o capacete, as Asas, as esporas

e hei de transpor seus Muros opulentos,

transfigurando os Êxtases sangrentos,

negra Fonte de sonho e água Sonora.

Essas terras de Fogo, poderosas,

as Areias, no vento ensandecido,

batidas contra o Forte mal-ferido

desenham-se em Figuras ominosas.

Em que Lodo emprenharam-se, nojosas,

criando a Cobra negra, essa Visão?

Não sei. Como não sei por que razão,

ó Forma dessa cobra, me dominas,

enquanto invoco todas as Matinas

de um Reinado de fogo e solidão.

Não fosse chamejante essa Ribeira,

a que fui pelo Acaso arremessado,

e o Dragão fugiria, derrotado,

de volta à sua Escura ribanceira.

A Fé raivosa e turva da Cegueira:

os mais fortes são sempre os mais visados.

Mas a Morte e seus raios macerados

não me deixam Revolta nem tristeza

e, exposto ao sonho Mau da fortaleza,

no Tronco prego os olhos fascinados.

Vencerei finalmente este combate,

ou, perdido na Noite dessa cobra

começarei por Baixo a nova obra,

no Diabo que me tenta e que me abate?

Chega o fim do meu sono e do Resgate:

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

surde a morte, no tronco Avermelhado.

E, possesso do Sol, alucinado,

começo pela Fera, que, luzindo,

na Luz a fortaleza vai cobrindo

de sombra e de Desejo mal gerado.

Ei-lo enfim começado, o diabo Mouro.

De onde me veio o Ferro, o escopro forte,

este Cedro, escarvado pela morte,

o Pedestal de chama, os cravos de Ouro?

De onde chega esse canto em negro Coro?

E esta Voz, maltratada pelo vento?

Sinto que ela me incende o Pensamento,

incita as mãos, flameja na Escultura,

deleitando-se em criar a Besta escura

que (agora o sei) desejo e é meu tormento.

As dobras, musculosas e retesas,

sustentam Presas bífidas e sonhos.

Sete Chifres, firmando-se medonhos,

ameaçam as Frontes indefesas.

Nasceram de passadas Fortalezas

ou nascem de minha Alma mal-completa?

Ninguém responde à Dúvida inquieta

e a morte vai parindo a escura Fronde

no mauro Olhar que quase tudo esconde,

emprenhado de noite e Dor secreta.

Sopra o vento, o Sertão incendiário:

a morte ronda agora o Matadouro.

Crescem frechas, Punhais, vozes do coro,

que agora mostram novo Itinerário.

Já nasceu meu Dragão, tão solitário,

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

o áspero Diabo um dia entressonhado.

Que estranho Sol de cobre flamejado

me oculta a fortaleza e seu Combate?

Ouço tocarem Sinos a rebate:

é a vez do Arcanjo, o Santo, o santo Alado.

Ele agora é o Possível do outro, embaixo,

e chega com o Clarim de suas notas:

a Armadura, a Bandeira, as duas botas,

as Asas, o que busco e o que não acho.

O Resplendor, a Espada desse Facho,

a luz amiga, os olhos Descansados,

a gola em Cedro, cheia de rendados,

o firme Cinturão que tudo explica,

a força, a mansidão, Fogo e pelica,

saltando de seu peito e dos Bordados.

Vamos enfim vencendo os Areais,

num Êxodo de sonho não sagrado:

como saber se guio ou sou guiado

por esse alado ser, Aspa da paz?

Corto a moldura: arcadas e florais,

abandonando as últimas lembranças.

Rompo as Arcas, reato as alianças,

levado pelo Som da desfilada

e atinjo o fim da Obra projetada

num concerto de Fogo e de esquivança.

Agora, entre meu Santo e seu destino,

o Mato, os areais e a soledade.

A Escolha já foi feita e a mejestade

envolve os Ombros deste Peregrino.

Conquistei a Coroa: o claro sino

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

me espera no Fim mesmo dessa Estrada.

Por ela vim: ó Rota procurada,

é preciso voltar ao Julgamento!

Que lembranças me traz a Voz do vento,

mandando-me apressar a caminhada?

Passei por três Engenhos e caminhos,

por Bandeiras, nas Hastes drapejando,

e, apesar de uma Igreja ir demandando,

evitei Sacerdotes e adivinhos.

Decifraram-se velhos pergaminhos

enquanto estive ausente tantos Dias.

Ruiu a Torre, a velha sacristia,

os Frades outras duas vão tecendo

e ao meu Anjo o meu passo vou cedendo,

cumprindo meu desejo e a Profecia.

É preciso chegar. Mas Onde e Quando?

O fim da caminhada se aproxima:

sinto que chega o tempo da Vindima,

pois o temor da Volta está chegando.

Ao longe, vou aos poucos avistando

a Vila e suas casas sobradadas.

São para Nós as áureas badaladas

que pousam sobre as asas de meu Santo?

Ó vinde, Aves de Prata! Eis meu Encanto

que Eu entalhei, cravando-me de espadas!

Cumpridos eram pois Quarenta dias

desde que eu fora, Só, com passo incerto,

para o fogo e as Areias do deserto,

a talhar na Madeira a jerarquia.

Agora volto: e o som da Litania?

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA

Aqui é a Porta, a vila, a Babilônia:

o Jaspe, a pedra, a telha, a Calcedônia,

o odor do incenso, os Sinos, a turqueza.

E abrem sulcos, meus passos, na dureza

das ruas de Granito e eterna insônia.

Ninguém me olha: há Tédio, sesta imensa.

Clamo sozinho: "Ó cidadãos errantes!

Parti daqui, com passos vacilantes,

atendendo à encomenda sem Dispensa!

Não desejo Coroa ou recompensa,

vossa mesa, a Moeda ou mesmo a glória!".

Mas ninguém liga ao grito de vitória

e eu caio, triste e só, cansado e vão:

é melhor procurar um outro Chão

onde se exalte o Fogo da Memória.

Aqui só resta mesmo ir para a Igreja:

subo a ladeira. A Porta. A clara Nave.

Com o Santo aos ombros, vou como uma Ave

de Madeira vermelha que esvoeja.

Vazio, o Nicho de ouro ali chameja.

Subo ao Altar: no vão, perto da Grade,

deposito a futura raridade,

vou ao Padre, recebo minha Tença,

e, em meio da geral indiferença,

abandono – mais uma – esta Cidade.

[1950]

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

Composto por Ariano Suassuna no "martelo gabinete" dos

Cantadores, seguindo a "Visão do Nordeste" de Alceu Amoroso

Lima e com ecos de outros grandes brasileiros, do século XVI

até os dias de hoje.

I

Eram sete as Coroas deste Reino,

sete as Torres sagradas da Cidade,

sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre,

sete Clarins de calcedônia e jaspe,

e o meu Reino-sagrado do Nordeste

luzia, do Recife à claridade.

Eu velava na pedra do Arrecife

e vi, nesse repente, uma Visagem:

a esmeralda do Mar se alumiava

e o Sertão lhe infundiu sua coragem.

O rubi resplandece na turquesa:

Mar e Sol, água e pedras da Pastagem.

A Coroa-de-ferro de Canudos

resplende sobre a Torre-quadrejada.

O "Sertão da Acauhan", da casa-forte,

na do "Engenho Pombal", limpa e sagrada.

Os clarins de "Princesa" e "Piancó"

reluzem na da torre-ameaçada.

E a colina-sagrada da Batalha

brilha na "Conceição-dos-Militares":

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

as quilhas afundadas dos navios

são púlpitos, Cariátides e altares.

Estalam tiros secos de mosquetes,

as Espadas rebrilham pelos ares.

Duas torres iguais de Santo-Antônio

são as "pedras do Reino", as Encantadas,

incrustadas de prata e diamantes,

ungidas pelo Sangue e consagradas:

torres da Catedral dos sertanejos,

proibida, luzente e soterrada.

O Castelo-roqueiro, em "Cinco-Pontas",

é a "Casa da Pólvora" também:

os Fortes do meu Reino, reluzindo,

pelas pontas da estrela se detêm,

como, na esfera-de-ouro do Brasil,

as moedas de Ourique e Santarém.

Sim! Porque na Colina-consagrada

onde o leão do Coelho pôs a pata

(Ouro-Velho, Ouro-Preto, Pombo-Verde

do Salvador, das águas e das arcas)

se funde todo o Império do Brasil,

o ouro das Minas e o torçal-de-prata.

Por isso aqui brilham também, fundidos,

o clarim do Sertão e o dos Engenhos,

a Lua-moura, a Estrela-da-Judéia,

a Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho,

– a corneta das Quinas e padrões

encravados de estrelas e desenhos.

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

E por isso o Recife era a Esmeralda

e a Muralha-de-pedra, a Vastidão:

Pedra-angular do Reino-esverdeado,

Rosa-vermelha-e-bruna do Brasão,

Porta-azul dos Engenhos e do Mar,

Porta-rubra-e-castanha do Sertão.

II

Lá vem a frota-ibérica das Naus:

brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!

São Cavalos-marinhos, Bois-azuis,

Hipocampos-vermelhos de madeira

ferrados com a Cruz-do-Leopardo,

do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!

Vem nelas o Assassino, o Mau-Poeta,

o Fidalgo-judeu blasfemador:

canta o Leão e as quinas-da-nobreza,

os castelos e o preço do Senhor,

– Voz dos autos, das trovas e sonetos

que, para nós, é o Sol-começador!

Pois o Recife é um Cisne sacro e branco,

um Búzio desigual e retorcido

que se sentou na Pedra-cavernosa,

de pérolas e aljôfar guarnecido,

de Coral fino, crespo e marchetado,

depois de o Mar azul ter dividido.

III

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

E a Voz forja a Sereia-nordestina,

a Anfitrite de penas-coloradas:

as casas são Guarazes-escarlates,

são penas de Saíra recamadas;

estrelas e topázios das Jandaias

são cachos-de-ouro em Campo de esmeralda.

E as heráldicas Flores do meu Reino:

o flamejante, o cravo, o girassol,

a acácia-de-ouro, e a rainha, a Rosa,

e a rosa da Paixão-do-Rouxinol,

o emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas,

a lança, o sangue e espinhos do meu Sol!

E assim moldou-se o sangue da Cidade,

essa fêmea e pantera dos Bruxedos.

Ela entreabre seu Manto e nos revela

seus encantos musgosos e secretos,

seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,

seus embruxos, e filtros, e segredos.

Sua tigre-bravura se admira,

seus encantos de Fêmea se deseja,

a finura da Faca e da coragem,

a nobreza e a Faminta-malfazeja,

essa Gata de graça-florentina

e o Sol dessa muralha-sertaneja.

IV

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

Canta, ó clarim do Teuto-sergipano,

a onça-da-pobreza, a Desumana.

Não te enganes: o cheiro desse Mel

(mesmo de prata, mesmo em Massangana)

é forjado no sangue que bebeu

a leoa-dos-nobres, a Tirana.

Vai! Chama teu irmão desabusado,

teu irmão sertanejo e brasileiro,

Lagarto alumiado pelo sol,

escorpião da Raça e do braseiro,

gila-do-sangue, Povo-coroado,

Arauto-inicial do Romanceiro.

Que o Nordeste é uma Onça e estão seus ombros

queimados pelo Sol e pelo sal:

as garras de arrecifes, os Lajedos,

são seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.

A Liberdade e o sangue da Inumana

precisam de teu Gládio e do Punhal!

V

Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,

que esse Golfim de corpo bronzeado

que sai da espuma branca-e-azul do Mar

(esse sangue-estanhoso do Sagrado)

é o mesmo da Batalha, ali gravada

nesse painel castanho e esbraseado!

Canta as Flechas no campo de Ouro-verde,

as bandeiras, a espada do Latino.

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

Não cantaste a Onça-negra veludosa,

nem a Parda-castanha, meu destino,

mas o urucu-vermelho, as áureas-penas,

como escudos, brasões de Paladinos!

Tu viste teus "fidalgos" em Castelos,

e Peri com a cor de sua Dama.

Viste a Loura-fidalga (azul e ouro)

e a Morena-bastarda em sua cama.

Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,

a corneta-de-tíbia é nossa Fama.

Passa o Capitão-mor das "Oiticicas"

com seu Gibão dourado de fidalgo.

É falso? É sertanejo e Cavaleiro:

vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo!

Que é preciso, também, nesta Insensata,

cantar a prata e o Sonho do sonhado!

VI

Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue,

canta os Campos, de sangue já laivados,

a arena-rubra, a terra-bem-fadada,

sol dos pulsos-de-ferro venerados

que, em perpétua Aliança, reluziram

o Reino, o território-consagrado.

E a Rota da cruzada-sertaneja,

teu "Reino da Acauhan", o gado-crioulo

com seus tipos de Raça e de nobreza,

na Malhada-da-Onça cor de ouro,

onde o Sol e o brasido das Estrelas

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

são esporas-do-céu – Gibão de couro!

VII

Soa o quinto Clarim, Cunha de fogo,

e a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.

A faca. A lazarina de Canudos

no Pajeú-da-raiva cresce e estala.

O fogo é um tabocal se incendiando

ao som das Ladainhas e das balas.

E a Catedral – o antro, o doido templo,

reduto, fortaleza e Santuário,

de fachada sem módulos e regras,

vasto, retangular, desafrontado,

cortado e esburacado de troneiras,

– o brutal Hipogeu desenterrado!

VIII

Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro),

junto a ti (que és mortal e ensolarado),

sopra o Clarim-augusto-dos-engenhos,

o noturno Duende enferrujado:

canta as asas do Corvo e canta a Morte,

o Sangue e as coisas podres do "Paudarco".

As canas, o homem-sem-conchego-nobre,

o musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,

as lagartixas-dos-esconderijos,

o doido Sol-ignívomo da Ponte...

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

E a Máquina-do-mundo queima tudo

na sua pele-de-rinoceronte!

Se ele cantou o mel de seus Engenhos,

pressentiu meu Sertão com seus segredos:

os Rifles pipocando o som das quedas

de mil lajedos sobre mil lajedos

e os Capitães-de-couro se matando

nas pontas escarpadas dos Rochedos!

Ouço na Voz-noturna desse Engenho

os jambeiros verdosos do "Paudarco"

chovendo roxa-púrpura no chão

do Recife do "signo-estrelado",

e o Dono dos escudos-da-bandeira

no Cais-da-aurora canta seu passado.

IX

Ó paudarco, flor-de-ouro! O "Corredor",

com seu búzio-de-sonho, sonha e passa:

no açafrão, nos vestidos das meninas,

no cheiro de jasmins que ali perpassa,

na argamassa do Tempo impiedoso,

pedra e cal dos bueiros sem fumaça.

Salvou, assim, o verde de seu Reino

e o Pajeú-de-pedra do Sertão:

gemem os Catolés, estrala a bala,

e passa, doido, El-Rei Sebastião,

suja de sangue e pó a real Fronte,

mas vivo no chapéu do Capitão!

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LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

E o búzio-decadente troa a Raça

e forja o Cavaleiro-destroçado,

o de esporas-quebradas, mas sem freio

na Burra que é castanha e que é sem rabo!

E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos

no "Pombal" que é meu Reino-conquistado!

X

E todo o Reino canta nesse nome,

pela Dama-de-sangue-coroado:

o Sínople, os Pescoços-de-serpente,

a Banda-sanguinosa do Enforcado:

quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue

tinha visto nos campos do Sagrado!

Ela era leve, e tinha os olhos garços

como o paudarco-âmbar da "Acauhan",

e os ouros das acácias do Recife

nos cabelos de sol-pela-manhã:

olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,

boca, vermelha flor de flamboiã!

E, misturando tudo, o mel do Engenho

mais o mel das abelhas do Sertão.

Cana-caiana doce, olhos-estranjas,

tão bonita, tão boa e tão do-chão!

Era mesmo a Leoa-coroada,

flecha em meu sangue, anel da solidão!

E eu vi que a minha Dama era o Recife,

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 110 - 119

LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA

o engenho e o sertão do meu Sagrado.

Os clarins já se calam e as Coroas

fulgiam pelo Reino-do-Escampado.

O Sol comia o cobre do horizonte:

terminava a Viagem do sonhado!

Soltou-se a Onça-negra da Estrelada

e o meu Recife, ali, na escuridão,

era, agora, o Fortim-iluminado,

o baluarte, a Nau, o bastião,

colocado entre o Reino-azul do Mar

e o meu Reino-castanho do Sertão!

[Recife, 19.VII.61]

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 120

LITERATURA – POEMA DE ARTE VELHA | ARIANO SUASSUNA

Enviado por Suassuna a Francisco Bandeira de Mello, por seu

livro "A Máquina de Orfeu".

Bandeira, Poeta-cortesão,

Bandeira, poeta Armorial!

Ó claro bardo provençal,

de galo, Peixe e hierofante,

de Fauno bêbado e bacante,

do sal do Mar, do Sol do mal.

Bandeira, cantas como Moço,

e à Morte falas como velho

– mago Bandeira, áugur do Só!

Do Espinho – sol quase-vermelho,

do Condenado ao pé do Espelho,

do solo-amargo ao Negro-pó!

Sol da demência, é vão teu Fogo:

Bandeira fiel à sua Amada,

Bandeira fiel a seu Amigo

(áureo Cantar-de-amor, de-amigo).

E a Morte, sempre desejada,

Chama-amarela do Perigo!

Foge, Bandeira, que o vento queima,

que estás (e estamos nós) na Ponte

do velho Diabo, nosso inimigo!

Já chega a barca de Caronte:

Bandeira – arqueiro, Poeta, fonte –,

quero salvar-me, mas não consigo!

[Abril de 1963]

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