IV Senalic Texto Completo O Espaço Autobiográfico e a Experiência Da Morte Em Yukio Mishima

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 Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 1 O ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO E A EXPERIÊNCIA DA MORTE EM YUKIO MISHIMA Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS) O que pode uma obra literária inscrita num espaço autobiográfico? Quais os limites cambiant es desta en tre a hi stória e a memória? É p ossível pensar a experiê nci a da mo rte num entre-lugar destes campos limítrofes? Este artigo busca responder a estas três questões a partir de um salto no turbilhão frenético que é a obra do escrito r japonê s Yukio Mishima, e convida-nos à reflexão , não tão nova, sobre vida e morte. Uma obra, digamos, p rofunda: existencialmente e esteticamente. Para uma tentativa de resposta às indagações propostas, é necessário pôr em movi men to os camp os da lite rat ura e da hist ória a fim de dissolver – mes mo que esta palavra traga o risco da simplicidade con jectural – algu mas f ron tei ras e alme jar afinidades. Cabe-nos, portanto, outra pergunta: pode um encontro entre literatura e histór ia? É lícito observa r que a ponte que vai da obra literária à rea lidade histór ica parece ser mais tênue e complexa do que imaginamos; basta citarmos os invólucros criados pelos formalistas na obra literária, de certo modo “excluindo” o contexto hi st ór ico , “nós” qu e visivelmente p assaram a ser des at ado s desde Geor g Lukács (200 0) em suas teo riza çõe s do assim chamado romance histórico até a sociologia da literatura, com Antonio Candido (2000) como expoente em suas proposições da dimensão social como fator de arte, quando “o externo se torna interno1 (CANDIDO,

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O Espaço Autobiográfico e a Experiência Da Morte Em Yukio Mishima - RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO

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    O ESPAO AUTOBIOGRFICO E A EXPERINCIA DA MORTE EMYUKIO MISHIMA

    Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)

    O que pode uma obra literria inscrita num espao autobiogrfico? Quais oslimites cambiantes desta entre a histria e a memria? possvel pensar aexperincia da morte num entre-lugar destes campos limtrofes? Este artigo buscaresponder a estas trs questes a partir de um salto no turbilho frentico que aobra do escritor japons Yukio Mishima, e convida-nos reflexo, no to nova,sobre vida e morte. Uma obra, digamos, profunda: existencialmente e esteticamente.Para uma tentativa de resposta s indagaes propostas, necessrio pr emmovimento os campos da literatura e da histria a fim de dissolver mesmo que estapalavra traga o risco da simplicidade conjectural algumas fronteiras e almejarafinidades.

    Cabe-nos, portanto, outra pergunta: pode um encontro entre literatura ehistria? lcito observar que a ponte que vai da obra literria realidade histricaparece ser mais tnue e complexa do que imaginamos; basta citarmos os invlucroscriados pelos formalistas na obra literria, de certo modo excluindo o contextohistrico, ns que visivelmente passaram a ser desatados desde Georg Lukcs(2000) em suas teorizaes do assim chamado romance histrico at a sociologia daliteratura, com Antonio Candido (2000) como expoente em suas proposies dadimenso social como fator de arte, quando o externo se torna interno1 (CANDIDO,

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    2000, p. 8) de Plato a Roland Barthes, vale destacar o exmio percurso da aberturada obra literria para as condies histricas feito por Mrcia Gobbi (2004) semesquecermos das contribuies tericas de Mikhail Bakhtin sobre a historicidade doromance e de seu contato direto com o presente (GOBBI, 2004, p.51).

    Se prprio da histria narrar os eventos que aconteceram e, numa cabalsntese, enveredar-se pela busca de vestgios daquilo que foi, de modo objetivo everdadeiro, ao confront-la com a literatura salutar tomarmos a (nova) proposta deLigia Chiappini (2000) de problematizar as fronteiras de ambos os campos edirecionarmos o pensamento para o qual tanto histria quanto literatura podem serficcionais, uma dissoluo entre histria e fico onde a imaginao me tanto dahistria quanto da poesia (CHIAPPINI, 2000, p. 28), j que ambas lidam e leem oreal.

    Historiadores, literatos, cineastas, todos, neste ponto de lidarem com o real ede olharem para o passado, pem em jogo a questo da memria. Se tomarmos amemria como um fenmeno socialmente construdo (POLLAK, 1992), h, pois, umtrabalho de organizao para a estruturao da memria. Tanto historiadores comopoetas, neste caso, compartilham a trade: organizar, selecionar, narrar2. Cria-se,portanto, uma ponte que vai da memria ao passado: no foram os poetas naantiguidade, intrpretes de Mnemosne, deusa da Memria, aqueles que to bemconheciam o passado por terem o poder de estar presente no passado (VERNANT,1990, p. 109)?

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    Abertas as afinidades e entrecruzamentos entre histria, literatura e memria,partimos, com os corpus deste trabalho, para aquilo que tencionamos chamar deespao autobiogrfico. Faz-se preciso trazer a teoria do pacto autobiogrfico de PhilippeLejeune (2008). A autobiografia, narrativa essencialmente em primeira pessoa queconta a vida do autor, passa, como mostra Lejeune, por uma srie de pactos, quevo do autobiogrfico ao romanesco. Estabelecendo questes de fidelidade eidentidade entre autor, narrador e personagem, Lejeune entende que um atestado deficcionalidade exclui a possibilidade de autobiografia (LEJEUNE, 2008, p. 29), masaponta para o fato da criao [pelo leitor] de um espao autobiogrfico (LEJEUNE,2008, p. 43). Jogando a responsabilidade para o leitor, cabe a este fazer do espaoautobiogrfico uma arquitetura de textos que estabelecem mtua relao (LEE,2007, p. 37). Deste modo, os romances de Yukio Mishima aqui analisados no fazemparte do pacto autobiogrfico estabelecido por Lejeune, mas buscamos justamentemostrar a construo de um espao onde vida e texto se mesclam, os textos e a vida,o texto como vida e a vida como texto (NASCIMENTO, 1999, p. 308).(Auto)biografia, escritas de si ou, para ser mais preciso, tanatobiografia de um escritor-samurai que soube escrever com a espada na luta pela tradio de um pas abaladopelo ps-guerra. E ainda: autofico que quer parasitar, contaminar, conspurcar afico com a hibridizao de seus procedimentos de atuao (AZEVEDO, 2008, p.46), isto , com a biografia; pr o biogrfico e o ficcional nos limtrofes.

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    Confisses de uma Mscara (1984) e O Templo do Pavilho Dourado (1988) so duasobras que mantm como elo a experincia da morte, a arquidestruio por meio deuma escrita confessional manchada de dor. Com seus personagens, mutuamente emcrises existenciais, prontos para o combate com o outro, mas fundamentalmenteconsigo mesmo Mishima lutou contra a vida. No h niilismo nesta proposio.Tanto Mishima quanto seus personagens, impossibilitados de mudar a realidade aqual desaguava o Japo derrotado pela guerra frente mudanas drsticas eexpondo a ento chamada japonidade ao Outro, partiram para o ato heroico deexperimentar e at desejar a morte. Ato que levou o escritor japons ao limite docdigo tico seppuko ato de cravar a brilhante espada no ventre, criando um palcode crueldade ou uma tica da morte. Convm notar que a morte era em si um pedaoda vida para o guerreiro nipnico, que o guerreiro se confunda com a morte.Outros, camponeses ou citadinos, podem enriquecer, trabalhar, fazer projetos maso guerreiro vive sem amanh, a todo instante atento a ser tudo o que deve ser. Queviva como se j estivesse morto (PINGUET, 1987, p. 200). So, ainda, suas obras umverdadeiro campo de batalha.1. FESTIM DA MORTE

    1.1 CONFISSESPensar os sentidos da morte foi o ofcio de muitos filsofos, desde o

    nascimento da filosofia ocidental at a contemporaneidade, filsofos que levaram amxima de Plato de que a morte seria a boa via para filosofar vale destacar a

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    importncia do pensamento de Michel de Montaigne, para o qual filosofar aprender a morrer (MONTAIGNE, 2010, p. 59) e de Arthur Schopenhauer, pois morte estamos destinados desde o nascimento (SCHOPENHAUER, 2005, p. 401).Mas na filosofia insone e pessimista do filsofo romeno Emil Cioran, hienapessimista (PIVA, 2002), que a morte atinge de modo visceral as estruturas da vida.Na filosofia de Cioran, e aqui tomamos como base o seu primeiro livro em romeno,Sur les cimes du dsespoir (1990), o homem um despedaado que passou peloinconveniente de ter nascido, e a existncia um mau gosto e de um sentidoinacabado. A tragicidade, nietzscheanamente falando, do homem ter sido jogado navida como uma pedra, como pensa Antonin Artaud (1985). A mxima do pensador que sem sofrimento no h existncia e, para ele, tudo ao redor desespero, agonia,dor e tristeza. O homem, para Cioran, ao desejar e viver com a morte, isto , vivermorrendo, tem duas intenes: destruir o mundo e depois, como se no sobrassemais nada, destruir a si mesmo. S assim o homem decado de uma existnciamiservel poder gozar da morte pura e sublime. Com essas premissas, podemosconstruir um espao de afinidade entre a filosofia de Emil Cioran e a escritura deMishima, uma aproximao a partir de concepes como sofrimento, decadncia,angstia.

    O romance Confisses de uma Mscara um crrego de sangue, sofrimento eorgasmos, um palco de crueldade onde a morte chega at a ser posta comopersonagem na narrativa. Koo-chan, protagonista da diegese, a deseja como se esta

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    assumisse um corpo desejante, como a morte em corpo de uma mulher vestida debranco e com os seios mostra representada no filme de Ingmar Bergman, Napresena de um palhao (1997). Aflies, medos, delrios, frenesis, tudo em doses altas,onde viver um dever, desagradvel dever, para pensar como Cioran.

    Nascido numa manh de janeiro de 1925, Koo-chan passou a infncia sendocriado pela av, entre os odores da doena e da velhice. A ausncia do belo escorre jpelas primeiras linhas ausncia que pode ser evidenciada tambm nas outras obras quando se depara com um jovem sujo e abate-lhe o desejo de se transformarnaquele moribundo, de ser ele. Logo cedo percebera que a vida no era contos defadas, comeando a mergulhar em fantasias e lutas consigo mesmo, despertava, aomesmo tempo, o desejo carnal, embora sem compreender primeiro, a atrao pelascalas apertadas do homem sujo transeunte, depois a atrao pela figura heroica deum homem montado num cavalo como quem enfrentasse a morte, que depois iriadescobrir ser Joana dArc. Das memrias da infncia, podemos aproximar oprotagonista, submerso s deficincias do mundo, quilo que chamou Emil Ciorande origens do mal, ou princpios satnicos do sofrimento: Como lutar contra adesgraa? Lutando contra ns mesmos: compreendendo que a origem da desgraa seencontra em nosso interior3 (CIORAN, 1990, p. 119). Carrega, pois, em seu interiortodos os sofrimentos do mundo, um combate consigo mesmo e alm: combate comos sentidos da vida.

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    Da transio da infncia para a fase adulta, podemos chamar de movimento dextase: de morte e de erotismo. Do sexo morte, do sangue carnificina, nestemovimento Koo-chan puro impulso. E o xtase atinge os cumes quando osmundos, exterior e interior, se mesclam neste movimento o que aproxima asaturao do protagonista da insatisfao cioraniana. E s mesmo nos cumes destemovimento que podemos extrair a mxima apontada por Darci Kusano (2006, p.424): xtase da morte com a consumao do xtase ertico.

    O Japo ameaado comeava a provocar mudanas na sociedade. Se o amanhera mesmo incerto, a luz se direcionava para o palco do presente absoluto. Uma casafechada sob ameaa de ter as portas forjadas, um ovo prestes a quebrar; a vidapassou, ento, a ser questionada e repensada, inquietaes nipnicas derramadaspelas pginas do romance ou, para recorrer a uma concepo antropolgica,inquietaes documentadas no romance (GEERTZ, 1978) , e evidenciada no seguintetrecho:

    Nessa poca aprendi a beber e a fumar. Isso quer dizer que aprendi a fazerde conta que fumava e bebia. A guerra produzira uma maturidadeestranhamente sentimental em ns. Fez que pensssemos na vida como algoque terminaria abruptamente pelos vinte anos; jamais considervamossequer a possibilidade de haver alguma coisa alm daqueles poucos anosremanescentes. A vida nos surpreendeu como sendo uma coisaestranhamente voltil (MISHIMA, 1984, p. 86).

    Neste perodo em que o protagonista j se inseria nos bancos da universidade,um ano antes do final da guerra, isto , 1944, lhe aflorado o sentimento eexperincia da morte, ou, de acordo com o personagem, finalidade da morte. Koo-chanespera pela morte, ansiava impacientemente pela morte com uma doce expectativa

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    (MISHIMA, 1984, p. 93), deseja-a assim como Cioran a admirava num movimento dextase. Esperava o cair das bombas prontas a incendiarem tudo, para que restassenada mais que runas. Eu suspirava pela grande sensao de alvio que a mortecertamente traria se apenas, como um lutador, eu pudesse arrancar o pesado fardoda vida sobre os ombros (MISHIMA, 1984, p. 93). Eis sua doutrina da morte: o queeu queria era morrer entre estranhos, tranquilo, sob um cu sem nuvens(MISHIMA, 1984, p. 100).

    Como nenhuma bomba foi capaz de realizar seu desejo de nulidade e negao de si e da vida Koo-chan assaltado pelo fracasso. O romance termina com umacena de valsa4 um final aberto que deixa muitas interrogaes (acerca destesaspectos, cf. ECO, 1991). O leitor, no jogo do texto em que ele prprio joga paraocupar os vazios do texto (cf. ISER, 1979), poderia questionar: seria o seppuko o ltimoato de Koo-chan, assim como fez Mishima no quartel do Exrcito cravando a espadano ventre? seria o protagonista o samurai que cometeu o harakiri diante da derrota?Estas perguntas nos direcionam a confisses no apenas de uma mscara, mastambm confisses de uma filosofia negativa. Portanto, um personagem que carregao peso do sofrimento, um romance que roa com a filosofia do pessimismo.

    1.2 O TEMPLOO desejo da morte, flatter la mort, tambm tem lugar privilegiado na narrativa

    do outro expressivo romance de Yukio Mishima, O Templo do Pavilho Dourado (1988),

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    que, tambm tendo a guerra como pano de fundo, apresenta um dos maisenigmticos personagens da biografia do escritor: Mizoguchi. A narrativaautodiegtica penetra no descontentamento da realidade e fuga, que s se dar com oque chamaremos de arquitetura da destruio. Poderemos, assim, ler o romance pordois aspectos: antes e depois da presena do Templo Dourado na vida doprotagonista.

    Nascido em uma cidade litornea do Japo, Mizoguchi narra, como Koo-chan,suas memrias da infncia, que compreendem o perodo antes de entrar para a vidamonstica. Na infncia, sempre ouvira do pai sobre o Templo Dourado como umaespcie de paraso, isto , neste perodo se d a ideia que o protagonista cria doTemplo, um ideal de belo e sublime. A me era o oposto da ideia que fazia doTemplo: tresloucada, maltrapilha, ausente de beleza e de baixa condio social, mas,como gerado de um farrapo humano, o prprio Mizoguchi tinha sua deficincia nomundo: ser gago. Sua gagueira representa no s a dicotomia feio-belo comoapresenta a atmosfera da monstruosidade que sua vida j desde a infncia. lcitoobservar que, para o protagonista, constituem o belo o mundo exterior e o TemploDourado, ou a ideia que tinha, como se a beleza fosse um objeto que se pudessetocar; o feio era representado por ele e pela me, e mais: como se o TemploDourado fosse a mediao entre o belo e o feio. A tica turva do personagem assimexpe os pares antagnicos:

    O que to horrvel em vsceras expostas? Por que cobrimos os olhos,aterrorizados, quando vemos as tripas de um ser humano? Por que aspessoas ficam to chocadas ao ver o sangue jorrando? Por que os intestinos

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    10de um homem so feios? No , exatamente, da mesma qualidade da belezade uma pele jovem e brilhante? (MISHIMA, 1988, p. 57).

    Aps a morte do pai, decide ingressar na vida monstica, o que chamamosaqui de segunda fase do personagem; nesta fase pode-se observar em Mizoguchiuma mescla de amargura e obsesso de morte. O mesmo desejo de nulidade presenteem Koo-chan pode ser observado em Mizoguchi, digamos, de modo mais visceral:Tornou-se meu sonho secreto que toda Kioto fosse envolvida em chamas(MISHIMA, 1988, p.46). O ingresso na universidade tem papel fundamental, assimcomo para Koo-chan, para elaborar sua tese da arquitetura da destruio, onde viver edestruir eram a mesma coisa (MISHIMA, 1988, p.107): se o Templo Dourado lheaparecia como uma mediao entre ele e o mundo, entre ele e a vida, era precisodestru-lo. Destruir o Templo para poder viver ser sua tese.

    A ideia de incendiar o Templo, uma tese incendiria, est muito prxima daconcepo apocalptica de Cioran sobre, a partir da concepo de solido csmica,incendiar o mundo; eliminar o Templo , com um golpe cioraniano, eliminar aexistncia. Mizoguchi, aqui, pode concordar com a concepo de Cioran de que s sealcana o nada pela morte. Nadificar-se, de acordo com a mxima de Cioran (1990, p.63): quereria eu explodir, afundar, me decompor5. Como Kioto parecia intacta aosbombardeios, e como nenhuma bomba no iria cair sobre o Templo, como desejavaMizoguchi, o plano era incendi-lo. Coisas mortas como seres humanos no podemser erradicados; coisas indestrutveis como o Templo Dourado podem serdestrudas (MISHIMA, 1988, p. 181).

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    Depois de derrubar o Templo, cogitava o nadificar-se, e isto se daria pelas viasdo suicdio, tendo comprado veneno e um canivete: fiquei to contente com eles queno pude deixar de me perguntar se no era assim que se sentia um homem quecomprou uma casa nova e faz planos para o futuro (MISHIMA, 1988, p. 222). Erapreciso correr para a morte, correr leva ao fim e descansar tambm leva ao fim. Amorte parece ser o descanso definitivo (MISHIMA, 1988, p. 228). Empilhando unsfardos de palha por cima de um colcho e um mosquiteiro diante de uma esttua doTemplo, Mizoguchi executa seu plano incendiando aquele templo de uma beleza quelhe parecia insupervel, restava-lhe agora (re)nascer pelas chamas. Sentado,observando a dana de chamas, ironicamente acende um cigarro, confirmando suadoutrina de chamas. Sentia-me como um homem que se senta para fumar depois determinar um trabalho. Eu queria viver (MISHIMA, 1988, p. 242). Os verbos sentir equerer, no pretrito perfeito, denunciam a nsia do personagem pela realizao doseu plano, de desmanchar-se pela destruio e pelo fogo. O final aberto, assim comoem Confisses, joga a dvida para o leitor: ser que Mizoguchi, assim como observadono desfecho de Koo-chan, tambm levou o harakiri ao limite?

    Conclui-se, assim, que Confisses e Templo so dois romances em que a mortefigura na vida, tanatobiografias que se edificam sobre runas, para lembrar a tese deMaurice Blanchot de que a literatura se edifica sobre suas runas (BLANCHOT,1997, p. 297). Se o prprio Blanchot que diz que nas palavras, ela [a morte] a

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    nica possibilidade de seus sentidos (BLANCHOT, 1997, p. 312), pondo, assim,morte e literatura em dilogo, a literatura seria, ento, um direito morte.

    CONSIDERAES FINAISOs romances selecionados como corpus deste trabalho, ao recorrerem

    memria, organizando os acontecimentos a serem narrados, documentam umacultura salientando a tese de Roy Wagner (2010) de que todo artista um etngrafo na apropriao do passado como experincia nica (GOBBI, 2004, p. 55); aoescreverem o Japo derrubado pela Segunda Guerra Mundial, assim como o impactosocial pelas mudanas socioeconmicas ps-1945, que marcaram a ocidentalizaojaponesa, a escritura mishimiana flerta com a histria. Autofico que pode servir defonte, documento e alm. Escritas do eu criture du moi, segundo a teoria de GeorgesGusdorf (1991) resultando na construo de uma imagem de si mesmo(ALBERTI, 1991, p. 12), que querem confessar e dizer tudo, dizer tudo sobre siprprio, tentando esgotar o texto finito e inexaurvel do corpo singular6

    (NASCIMENTO, 1999, p. 310).Se a experincia da morte nas pginas dos dois romances so frutos do horror

    da guerra e da incapacidade de viver em uma realidade em runas, poderamosatribuir-lhes o estatuto de literatura de testemunho, to solidificado na literatura doholocausto? Diante do horror, Mishima, o escritor-samurai, preparou seuspersonagens (como a si prprio), para uma morte-protesto cheia de gritos dedesespero ou, de certo modo, um exerccio de admirao da morte na tentativa de

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    dizer: basta! Se a espada o instrumento de libertao para o samurai japons quepratica o seppuko, a palavra o instrumento de Mishima para a revoluo, que se dna e pela cultura.

    NOTAS FINAIS1 Grifos do autor.2 Selecionar os fragmentos para narrar requer uma discusso sobre o esquecimento, que pode seramplamente vista em POLLAK (1989; 1992), SELIGMANN-SILVA (2003), RICOEUR (2008)3 Comment combattre le malheur? En nous combattrant nous-mmes: en comprenant que la sourcedu malheur se trouve en nous.4 Na adaptao flmica de quatro obras de Mishima, Mishima: uma vida em quatro captulos (1985), dePaul Schrader, com produo de Coppola e George Lucas, trechos do romance so contados lado alado de momentos da vida de Yukio Mishima para ilustrar o carter autobiogrfico do romance.5 Je voudrais exploser, couler, me dcomposer.6Grifos do autor.

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