J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

263

Transcript of J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Page 1: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf
Page 2: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

MEDITAÇÕES

NO EVANGELHO

DE MATEUS

J.C. RYLE

EDITORA FIEL da

MISSÃO EVANGÉLICA LITERÁRIA

Page 3: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

MEDITAÇÕES NO EVANGELHO DE

MATEUS

Traduzido do Original em Inglês: Expository

Thoughts on the Gospels

MATTHEW

Copyright © (Typesetting) Editora Fiel 1991

Segunda edição em português - 2002

Todos os direitos reservados. E proibida a

reprodução deste livro, no todo ou em parte, sem

a permissão escritas dos Editores.

Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Caixa Postal

81

12201-970 São José dos Campos - SP

Page 4: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Prefácio

As Meditações no Evangelho de Mateus, de J.C.Ryle, têm sido amadas

e compartilhadas por várias gerações de crentes, desde sua primeira edição

em 1879, Elas contêm uma simplicidade e uma espiritualidade que têm

feito delas o comentário devocional clássico sobre os evangelhos, na

opinião de grande número de leitores.

Procurando pôr à disposição do leitor moderno uma forma mais

popular dessa obra, foram removidos os textos bíblicos (antes impressos na

íntegra), embora o leitor seja encorajado a ler cada passagem selecionada

do começo ao fim, antes de iniciar a leitura das próprias meditações de

Ryle. Também omitimos as notas de rodapé, nas quais Ryle tratara a

respeito de questões textuais de uma maneira mais crítica, embora sem

qualquer conexão direta com a exposição propriamente dita. O texto usado

é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do

Brasil.

Os publicadores confiam que esta nova edição das meditações

devocionais de Ryle alcançará os mesmos alvos e propósitos aos quais o

autor se aplicou pessoalmente, a fim de que, “com uma oração fervorosa,

possa promover a religião pura e sem mácula, ampliar o conhecimento de

muitos sobre a pessoa de Jesus Cristo, e ser um humilde instrumento na

gloriosa tarefa de converter e de edificar almas imortais”.

Os Publicadores

Page 5: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

À Genealogia de Cristo Leia Mateus L1-17

É cora estes versículos que tem início o Novo Testamento.

Cumpre-nos lê-los sempre com sérios e solenes sentimentos. O livro à

nossa frente não contém a palavra de homens, e, sim, a própria Palavra de

Deus. Cada versículo foi escrito sob a inspiração do Espírito Santo.

Agradeçamos diariamente a Deus por haver-nos presenteado as

Sagradas Escrituras. O mais pobre brasileiro, que compreenda a sua Bíblia,

sabe mais sobre assuntos religiosos do que os mais sábios filósofos da

Grécia ou de Roma.

Não nos esqueçamos da nossa grande responsabilidade. Seremos

todos julgados, no último dia, de acordo com a luz que tivermos recebido.

Daquele a quem muito foi dado, também muito será requerido. Leiamos

nossas Bíblias com reverência e diligência, com a honesta resolução de dar

crédito e de pôr em prática tudo aquilo que delas aprendermos. Não é coisa

de somenos importância a maneira como estivermos usando esse livro. A

vida ou a morte eterna dependem da atitude com que nos utilizarmos dele.

Acima de tudo oremos, com toda a humildade, rogando pela iluminação

que nos é dada pelo Espírito Santo. Somente Ele é capaz de aplicar a

verdade aos nossos corações, permitindo-nos tirar proveito daquilo que ali

tivermos lido.

O Novo Testamento começa narrando a vida, a morte e a res-

surreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhuma outra porção da Bíblia é

tão importante quanto essa, e nenhuma outra parte dela é tão plena e

completa. Quatro evangelhos distintos contam a história dos feitos de Jesus

Cristo e da sua morte. Por quatro vezes em seguida lemos as preciosas

narrativas de suas realizações e de suas palavras. Quão agradecidos nos

deveríamos mostrar por causa disso! Conhecer a Cristo é ter a vida eterna.

Confiar em Cristo é desfrutar de paz com Deus. Seguir os passos de Cristo é

ser um crente verdadeiro. Estar com Cristo será o próprio céu. Ninguém

pode ouvir falar demais sobre Jesus Cristo.

O evangelho de Mateus principia com uma longa lista de nomes.

Page 6: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

6 Mateus 1.1-17

Dezesseis versículos ocupam-se com a genealogia desde Abraão até Davi, e

desde Davi até à família na qual nasceu o Senhor Jesus. Que ninguém

imagine que estes versículos são inúteis. Em toda a criação de Deus, coisa

alguma é inútil. Tanto o musgo mais insignificante quanto os menores

insetos servem a alguma boa finalidade. Por igual modo, coisa alguma é

inútil na Bíblia Sagrada. Cada palavra dela foi outorgada por inspiração

divina. Os capítulos e versículos que, à primeira vista, parecem destituídos

de proveito, foram todos dados com algum bom propósito. Examine

novamente aqueles dezesseis versículos e encontrará neles muitas lições

úteis e instrutivas.

Com base nesta lista de nomes, aprenda o fato que Deus sempre

cumpre a sua Palavra. Deus havia prometido que na descendência de Abraão

todas as famílias da terra seriam abençoadas. Deus havia prometido

levantar um Salvador, dentre os descendentes de Davi (Gn 12.3; Is 11.1).

Estes dezesseis versículos, por conseguinte, provam que Jesus era o filho de

Davi e o filho de Abraão, e que aquela promessa de Deus teve o seu devido

cumprimento. Pessoas ímpias, que não meditam nas coisas, deveriam

relembrar essa lição, e temer. Sem importar o que elas pensem, Deus haverá

de cumprir a sua Palavra. Se não se arrependerem , certamente perecerão.

Aqueles que são crentes autênticos deveriam relembrar essa lição,

consolando-se nela. Seu Pai celestial mostrar-se-á fiel a todos os seus

compromissos. Ele asseverou que salvará a todos os que confiarem em

Cristo. Ora, se Ele afirmou isso, então certamente cumprirá a sua Palavra.

“Deus não é homem, para que minta“ (Nm 23.19). “Ele permanece fiel, pois

de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo“ (2 Tm 2.13).

Em seguida, com base nesta mesma lista de nomes, podemos

aprender muito sobre a pecaminosidade e a corrupção da natureza humana.

Observemos quantos pais piedosos, nesta lista de nomes, tiveram filhos

ímpios e iníquos. Os nomes de Roboão e Jorão, de Amom e Je- conias,

deveriam ensinar-nos lições humilhantes. Esses quatro tiveram pais

piedosos. No entanto, eles mesmos foram homens malignos. A graça de

Deus não é hereditária. É preciso algo mais do que apenas bom exemplo e

bons conselhos, para que alguém se tome filho de Deus. Aqueles que

nascem do alto não nascem nem * *do sangue, nem da vontade da carne,

nem da vontade do homem, mas de Deus“ (Jo 1.13). Os pais dedicados à

oração deveriam orar, dia e noite, para que os seus filhos nasçam do

Espírito.

Aprenda, fmalmente, com base nesta lista de nomes, quão grande é a

misericórdia e a compaixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Medite sobre quão

contaminada e impura é a nossa natureza; e então pense sobre a

condescendência de Cristo, por haver nascido de mulher e ter-

Page 7: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 1.1-17 7

-se feito “em semelhança de homens‟* (Fp 2.7). Alguns dos nomes sobre os

quais lemos nesta lista fazem-nos lembrar histórias tristes e vergonhosas.

Alguns são de pessoas nunca mencionadas em qualquer outra porção das

Escrituras. Porém, no fim da lista toda figura o nome do Senhor Jesus

Cristo. Embora Ele seja o Deus eterno, humilhou-se ao tomar-se um ser

humano, com a finalidade de prover a salvação aos pecadores. Jesus Cristo

“sendo rico, se fez pobre por amor de vós” (2 Co 8.9).

Deveríamos ler esta relação de nomes com um sentimento de gra-

tidão. Vemos ali que nenhum daqueles que compartilham da natureza

humana pode estar fora do alcance da simpatia e da compaixão de Cristo.

Os nossos pecados talvez tenham sido tão negros e graves como os pecados

de algumas pessoas mencionadas pelo apóstolo Mateus. Entretanto, tais

pecados não podem fechar o céu para nós, se nos arrependermos e

confiarmos no evangelho. Se Jesus não se envergonhou por nascer de uma

mulher cuja árvore genealógica continha nomes como de alguns daqueles

sobre quem pudemos ler hoje, então certamente não devemos pensar que

Ele haveria de envergonhar-se por chamar-nos irmãos e conferir-nos a vida

eterna.

A Encarnação e o No e de Cristo

Leia Mateus 1.18-25

Estes versículos começam revelando-nos duas grandes verdades.

Eles nos informam como o Senhor Jesus Cristo assumiu a nossa natureza

ao tomar-se homem. Também nos informam que o nascimento dEle foi

miraculoso. Sua mãe, Maria, era virgem.

Esses são assuntos extremamente misteriosos. São profundezas

para as quais não há sondagem que as possam medir. São verdades que

nenhuma mente humana é abrangente o bastante para as entender. Não

procuremos explicar coisas que estão acima da nossa débil razão.

Contentemo-nos em crer com reverência, sem especular sobre questões

que não somos capazes de entender. Para nós, crentes, é suficiente saber

que para Aquele que criou o mundo nada é impossível. Antes, devemo-nos

satisfazer com a declaração constante no credo dos apóstolos: “Jesus Cristo

foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da virgem Maria‟ ‟.

Observemos a conduta de José, descrita nestes versículos. Trata- -se

de um belo exemplo de piedosa sabedoria e de tema consideração pelo

próximo. Ele viu “a aparência de mal” naquela que estava com

Page 8: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

8 Mateus 1,18-25

prometida a casar-se com ele. Entretanto, José nada fez de precipitado.

Esperou pacientemente até perceber como lhe convinha agir, de acordo

com seu dever. Com toda a probabilidade, ele deixou a questão aos

cuidados de Deus, em oração. “Aquele que crer, não foge” (Is 28.16).

A paciência de José foi graciosamente recompensada. Ele recebeu

uma mensagem direta, da parte de Deus, sobre a razão da sua ansiedade e,

de uma vez para sempre, foi aliviado de todos os seus temores. Quão bom é

esperar em Deus! Quem, de todo o coração, deixou os seus temores aos

cuidados do Senhor em oração, para então vê-lo falhar? “Reconhece-o em

todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas” (Pv 3.6).

Notemos os dois nomes conferidos a nosso Senhor, nestes versículos.

Um deles é Jesus, o outro é Emanuel. O primeiro desses nomes descreve o

seu ofício, o segundo, a sua natureza. Ambos são profiin- damente

interessantes.

O nome Jesus significa “Salvador”. Trata-se do mesmo nome Josué,

que aparece no Antigo Testamento. Foi dado a nosso Senhor porque “ele

salvará o seu povo dos pecados deles”. Esse é o ofício especial do Senhor

Jesus. Ele nos salva da nossa culpa do pecado, lavando-nos a alma em Seu

próprio sangue expiatório. Ele nos salva do domínio do pecado ao

conferir-nos, no próprio coração, o Espírito santificador. Ele nos salva da

presença do pecado quando nos tira deste mundo, para irmos descansar com

Ele. E, finalmente, Ele nos salva das consequências do pecado ao nos

proporcionar um glorioso corpo ressurreto, no último dia. O povo de Cristo

é bendito e santo! Eles não são salvos das tristezas, da cruz e dos conflitos.

Porém, são salvos do pecado, para todo o sempre. São purificados da culpa,

mediante o sangue de Cristo. São habilitados para o céu mediante o Espírito

de Cristo. Nisso consiste a salvação. Mas, aquele que se apega ao pecado,

ainda não é salvo.

Jesus é um nome que infunde muita coragem aos que vivem so-

brecarregados de pecados. Aquele que é o Rei dos reis e o Senhor dos

senhores, poderia ter-se feito conhecido, com toda a legitimidade, por

algum título mais pomposo. Contudo, não quis fazê-lo. Os dirigentes deste

mundo com freqüência se têm chamado por títulos como “grande‟ ‟, *

„conquistador‟ ‟, „ „herói ”, “ magnífico‟ ‟ e outros semelhantes. Mas o

Filho de Deus contentou-se em chamar-se de “Salvador". As almas que

desejarem a salvação podem achegar-se ao Pai, com ousadia, tendo acesso

por meio de Jesus Cristo, com toda a confiança. Esse é o seu ofício, e nisso

Ele se deleita — mostrar-se misericordioso. “Porquanto Deus enviou o seu

Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo

fosse salvo por ele” (Jo 3.17).

Page 9: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 1.18-25 9

Jesus é um nome peculiarmente doce e precioso para aqueles que são

crentes. Com freqüência, esse nome os tem beneficiado, quando o favor de

reis e de príncipes teria sido ouvido por eles com pouco interesse. Esse

nome tem-lhes dado a paz interior que o dinheiro não pode comprar. Esse

nome lhes tem aliviado as consciências pesadas, conferindo descanso a

seus corações entristecidos. O livro de Cantares de Salomão refere-se à

experiência de muitos crentes, ao asseverar: “como unguento derramado é

o teu nome” (Ct 1.3). Feliz é a pessoa que confia não meramente em vagas

noções a respeito da misericórdia e da bondade de Deus, mas no próprio

“Jesus”.

O outro nome, que aparece nestes versículos, de maneira alguma é

menos interessante do que aquele que já destacamos. Esse é o nome

conferido a nosso Senhor em vista da sua natureza, como “Deus que se

manifestou em carne”. Ele é chamado de Emanuel, ou seja, “Deus

conosco”. Devemos cuidar para que sejam bem claras as noções que

formamos sobre a natureza e a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é

um ponto que se reveste da mais capital importância. Deveríamos ter bem

claro, em nossas mentes, que nosso Senhor é perfeito Deus tanto quanto

perfeito homem. Se chegamos a perder de vista esse fundamento da

verdade, poderemos cair vítimas de temíveis heresias. O nome “Emanuel”,

pois, é que se reveste de todo o mistério que o circunda. Jesus é o “Deus

conosco”. Ele assumiu a natureza humana igual à nossa, em todas as

coisas, excetuando somente a tendência para o pecado. Mas, embora Jesus

estivesse “conosco” em carne e sangue humanos, ao mesmo tempo Ele

nunca deixou de ser o verdadeiro Deus.

Quando lemos os evangelhos, por muitas vezes descobrimos que

nosso Senhor era capaz de ficar cansado, de padecer fome e sede, como

também podia chorar, gemer e sentir dor como qualquer um de nós. Em

tudo isso podemos ver “o homem” Jesus Cristo. Percebemos a natureza

humana que Ele tomou para Si mesmo ao nascer da virgem Maria.

Entretanto, nesses mesmos quatro evangelhos, descobriremos que

nosso Salvador conhecia os corações e os pensamentos dos homens,

exercia autoridade sobre os demônios, podia fazer os mais espantosos

milagres apenas com uma palavra, era servido pelos anjos, permitiu que

um dos seus discípulos O chamasse de “Deus meu” e, igualmente, disse:

“Antes que Abraão existisse, eu sou" (Jo 8.58). E também: “Eu e o Pai

somos um” (Jo 10.30). Em tudo isso, vemos “o Deus eterno”. Vemos aquele

que “é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém” (Rm 9.5).

Você deseja dispor de um seguro fundamento para a sua fé e es-

perança? Nesse caso, jamais perca de vista a divindade do seu Salvador.

Page 10: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

10 Mateus 1.18-25

Aquele em cujo sangue você foi ensinado a confiar é o Deus todo-

-poderoso. Toda a autoridade foi dada a Jesus Cristo, no céu e na terra.

Ninguém poderá arrancar você da mão dEle. Se você é um verdadeiro

crente em Jesus, não permita que o seu coração se perturbe e atemorize.

Você deseja contar com um doce consolo nas ocasiões de sofrimento

e tribulação? Nesse caso, nunca perca de vista a humanidade do seu

Salvador. Ele é o ser humano Jesus Cristo, que se deitou nos braços da

virgem Maria quando era um pequenino infante, e que conhece os corações

humanos. Ele deixa-se sensibilizar pelo senso das nossas fraquezas. Ele

experimentou, pessoalmente, as tentações lançadas por Satanás. Ele

precisou enfrentar a fome. Ele derramou lágrimas. Ele sentiu dor. Confie

nEle o tempo todo, em todas as suas aflições. Ele nunca haverá de

desprezá-lo. Derrame diante dEle, em oração, tudo quanto estiver em seu

ser, e nada Lhe oculte. Ele é capaz de simpatizar profimdamente com o seu

povo.

Que estes pensamentos se aprofundem em nossas mentes. Ben-

digamos a Deus pelas encorajadoras verdades contidas no primeiro capítulo

do Novo Testamento. Esse capítulo nos fala de Alguém que salva “o seu

povo dos pecados deles”. Porém, isso ainda não é tudo. Esse capítulo

revela-nos que o Salvador é o “Emanuel”, o próprio Deus conosco; Deus

manifesto em carne humana, idêntica à nossa. Essas são boas novas, São

autênticas boas novas. Alimentemos os nossos corações com essas

verdades, por meio da fé, juntamente com ações de graças.

Os Sábios do Oriente Leia Mateus 2.1-12

Ninguém sabe dizer quem foram esses “magos”. Os seus nomes e o

seu país de origem nos foram ocultados. Somos informados somente que

eles vieram “do oriente”.

Não sabemos dizer se eles eram caldeus ou árabes. Também não

sabemos dizer se eles aprenderam a esperar o Cristo, informados por

pessoas das dez tribos de Israel que foram para o cativeiro assírio, ou por

causa das profecias de Daniel. Todavia, pouco importa saber quem foram

eles. A questão que nos interessa mais são as riquíssimas instruções que

recebemos através do relato bíblico sobre eles.

Estes versículos demonstram que pode haver verdadeiros servos de

Deus nos lugares onde menos esperamos encontrá-los. O Senhor Jesus conta

com muitos servos “secretos”, como aqueles sábios antigos. A história

deles sobre a terra talvez seja tão pouco conhecida como

Page 11: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 2.1-12 11

a história de Melquisedeque, de Jetro ou de Jó. Não obstante, os seus nomes

estão inscritos no livro da vida, e eles serão encontrados na companhia de

Jesus Cristo, por ocasião de seu glorioso retorno. Faríamos bem em não

esquecer isso. Não devemos olhar ao redor da terra, para então dizermos,

precipitadamente: “Tudo é esterilidade”. A graça divina não se limita a

lugares e a famílias. O Espírito Santo pode conduzir almas aos pés de

Cristo, sem a ajuda de muitos meios externos. Os homens podem nascer em

lugares distantes, como sucedeu àqueles sábios; e, no entanto, eles podem

tomar-se “sábios para a salvação”. Neste exato instante, há alguns que estão

na jornada para o céu, e a respeito dos quais a igreja e o mundo nada sabem.

Eles vicejam em lugares secretos, como os lírios que crescem entre os

espinhos e “desperdiçam a sua fragrância no ar do deserto”. Porém, Cristo

ama-os, e eles amam a Cristo.

Estes versículos também nos ensinam que nem sempre são aqueles

que desfrutem elos maiores privilégios religiosos que mais honram a Cristo.

Poderíamos mesmo pensar que os escribas e os fariseus estariam entre os

primeiros que se apressariam a ir a Belém, assim que se espalhou o rumor

do nascimento do Salvador. Porém, não foi isso que sucedeu. Alguns

poucos estrangeiros, vindos de alguma terra longínqua, foram os primeiros,

se não quisermos mencionar os pastores referidos por Lucas, a se

regozijarem ante o nascimento do menino Jesus. “Veio para o que era seu, e

os seus não o receberam” (Jo 1.11). Quão lamentável retrato da natureza

humana temos aí! Com quanta fre- qüência essa mesma atitude pode ser

vista entre nós mesmos! Com quanta freqüência as próprias pessoas que

vivem mais perto dos meios da graça divina são justamente aquelas que

mais os negligenciam! Há uma profunda verdade, contida naquele antigo

provérbio, que afirma: “Quanto mais perto da igreja, tanto mais longe de

Deus!” A familiaridade com as realidades sagradas reveste-se de uma

horrível tendência que leva os homens a desprezarem-nas. Existem muitas

pessoas que, por razões de residência e de conveniência, deveriam ser as

primeiras e as mais empenhadas na adoração ao Senhor Deus. E, no

entanto, são sempre os últimos a fazê-lo. Por outro lado, há aqueles que

esperaríamos que fossem os últimos, mas que são sempre os primeiros.

Estes versículos ensinam-nos que pode haver um conhecimento

meramente intelectual das Escrituras, sem o acompanhamento da graça divina

no coração. Observe como o rei Herodes indagou dos sacerdotes e dos

anciãos dos judeus acerca de “onde o Cristo deveria nascer”. Note também

com que prontidão eles lhe deram a resposta, mostrando que estavam

perfeitamente familiarizados com o teor das Sagradas Escrituras.

Entretanto, eles mesmos nunca foram a Belém, em busca do

Page 12: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

12 Mateus 2.1-12

Salvador que estava para nascer. Também não quiseram acreditar nEle,

quando Ele começou a ministrar entre o povo. Portanto, seus corações não

estavam tão despertos quanto a sua inteligência. Cuidemos para nunca nos

satisfazermos somente com um conhecimento mental. Esse conhecimento

é excelente, quando usado de forma correta. Não obstante, uma pessoa

pode ser possuidora de um profundo conhecimento intelectual e, no

entanto, perecer para sempre. Qual é o estado dos nossos corações? Essa é a

questão que realmente importa. Um pouco de graça é melhor do que muitos

dotes, que por si só não salvam a ninguém. Mas, a graça divina nos conduz

à glória.

A conduta dos magos, descrita neste capítulo, serve-nos de es-

plêndido exemplo de diligência espiritual. Quantas inconveniências e

canseiras devem ter-lhes custado a viagem, desde a sua pátria distante até a

casa onde o menino Jesus foi encontrado por eles! Quantos quilômetros

cansativos devem ter percorrido! As fadigas das viagens, no antigo Oriente,

eram muito maiores do que nós, da moderna civilização, podemos

compreender. O tempo que se perdia em uma viagem sem dúvida era muito

mais dilatado do que acontece em nossos dias. Os perigos encontrados não

eram poucos e nem pequenos. Nenhuma dessas coisas, entretanto, fez os

magos desistirem. Eles resolveram, em seus corações, que veriam aquele

que nascera para ser o 4„Rei dos judeus‟4. E não descansaram senão quando

O acharam. Assim, demonstraram que aquele adágio popular encerra uma

grande verdade: “Sempre que houver boa vontade, será descoberto o

caminho”.

Quem dera que todos os crentes professos estivessem mais dis-

postos a seguir o bom exemplo dos magos. Onde está a nossa abnegação?

De que maneira nos temos preocupado com as nossas próprias almas?

Quanta diligência temos mostrado em seguirmos a Cristo? O que nos tem

custado a nossa religião? Essas são indagações seríssimas que merecem a

nossa mais séria consideração.

Em último lugar, embora não menos importante, a conduta dos

magos serviu de um notável exemplo de fé. Eles confiaram em Cristo, ainda

que nunca O tivessem visto. Mas, isso não foi tudo. Creram nEle mesmo

depois que os escribas e os fariseus demonstraram a sua incredulidade.

Porém, nem mesmo isso foi tudo. Confiaram nEle quando O viram como

um pequeno menino, nos joelhos de Maria; e adoraram- -No como a um rei.

Esse foi o ponto culminante da sua fé. Não contemplaram a qualquer

milagre que pudesse convencê-los. Não ouviram a qualquer ensino que

tentasse persuadi-los. Não foram testemunhas de algum sinal de divindade

ou de grandiosidade que os deixasse atônitos. A ninguém mais viram senão

a um menino ainda pequeno, fraco e impotente, necessitado dos cuidados

maternos como

Page 13: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 2.1-12 13

qualquer um de nós. A despeito disso, quando viram aquele Menino, creram

estar diante do divino Salvador do mundo. E, “prostrando-se, o adoraram”.

Em todas as Escrituras, não encontramos fé mais robusta do que a

dos magos. A sua fé merece ser considerada no mesmo nível de fé do ladrão

penitente. Este viu a morte de alguém que fora crucificado como se fosse

um malfeitor; mas, a despeito disso, dirigiu-lhe o seu apelo, chamando-O de

“Senhor”. Os magos viram um menino ainda pequeno, no colo de uma

mulher pobre; mas, não obstante, O adoraram, confessando ser Ele o Cristo.

Verdadeiramente bem-aventurados são aqueles que podem confiar dessa

maneira!

Lembremo-nos de que essa é a espécie de fé que Deus deleita-se em

honrar. Podemos encontrar provas disso todos os dias. Onde quer que a

Bíblia Sagrada seja lida, a conduta daqueles magos toma-se conhecida,

sendo relatada em memória deles. Sigamos as suas pegadas de fé. Não nos

envergonhemos de confiar em Jesus e de confessar-nos seus seguidores,

mesmo que todas as pessoas ao nosso redor permaneçam na indiferença e na

incredulidade. Não dispomos nós de mil evidências mais do que os magos

dispuseram, para que creiamos que Jesus é o Cristo? Não há dúvida que

temos. No entanto, onde está a nossa fé?

A Fuga Para o Egito

e a Residência em Nazaré Leia Mateus 2.13-23

Observe, nesta passagem da Bíblia, quão verdadeiro é o fato que os

governantes deste mundo raramente mostram-se amigáveis para com a causa de

Deus. O Senhor Jesus desceu do céu a fim de salvar os pecadores e, logo em

seguida, conforme somos informados, o rei Herodes pôs-se a “procurar o

menino para o matar”.

A grandeza pessoal e as riquezas materiais servem de perigosa

possessão para a alma. Aqueles que as buscam não sabem o que estão

procurando. Essas coisas precipitam os homens em muitas tentações. Elas

são favoráveis para encher o coração humano de orgulho, agrilhoando as

afeições dos homens às coisas terrenas. “Não foram chamados muitos

sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre

nascimento” (1 Co 1.26). “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os

que têm riquezas” (Lc 18.24). Você tem invejado aos ricos e aos importantes? Você tem dito

Page 14: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

14 Mateus 2.13-23

em seu coração; “Oxalá eu estivesse no lugar deles, com a posição e as

riquezas que eles possuem? ‟" Cuidado para não ceder diante desse tipo de

sentimento. As próprias riquezas materiais que você tanto admira podem

estar fazendo afundar no inferno, gradualmente, aos seus possuidores. Um

pouco mais de dinheiro poderia decretar a sua ruína. Você poderia acabar

caindo em todo excesso de crueldade e de iniqüi- dades, à semelhança de

Herodes. Por isso, “tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer

avareza” (Lc 12.15). “Contentai-vos com as cousas que tendes” (Hb 13.5).

Pensa você, por acaso, que a causa de Cristo depende do poder e do

patrocínio dos príncipes? Você está enganado. Eles raramente têm feito

qualquer coisa que realmente contribua para o avanço do cristianismo. Com

muito maior freqüência, eles têm-se mostrado inimigos da verdade. “Não

confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há

salvação” (SI 146.3). Muitas pessoas existem cujas atitudes parecem-se

com as de Herodes. São poucos como o rei Josias, ou como Eduardo VI da

Inglaterra, os quais procuraram fomentar a causa da religião.

Observemos como o Senhor Jesus foi um ' *homem de dores ’ \ desde a

mais tenra infância. As tribulações vinham ao seu encontro, desde que Ele

entrou neste mundo. Sua vida correu perigo, devido ao medo e à ira de

Herodes. José e a mãe de Jesus tiveram de levá-Lo para bem longe, à noite.

Foi assim que eles fugiram “para o Egito”. Porém, isso serviu somente de

tipo e figura simbólica de toda a experiência de Jesus neste mundo. As

ondas da humilhação começaram a bater contra Ele, desde que ainda era um

nenê que se amamentava.

O Senhor Jesus é precisamente o Salvador de que necessitam aque-

les que padecem e vivem na tristeza. Ele sabe muito bem o que queremos

dizer, quando Lhe contamos, em oração, as nossas tribulações. Ele é

perfeitamente capaz de simpatizar conosco quando, sofrendo debaixo de

alguma cruel perseguição, clamamos a Ele. Não devemos esconder dBle

coisa alguma. Devemos fazer dEle um amigo íntimo. Derramemos diante

de Jesus os gemidos de nossos corações. Ele tem grande experiência pessoal

com as aflições.

Observemos como a morte pode remover deste mundo os reis, como a

quaisquer outros homens. Quando soa a hora de sua partida, os dirigentes de

milhões de criaturas humanas não são capazes de permanecer em vida. O

assassino de crianças impotentes precisa enfrentar a morte. Portanto, José e

Maria acabaram recebendo a notícia de que Herodes já havia falecido.

Imediatamente regressaram com toda a segurança para a sua terra natal.

Os crentes verdadeiros nunca deveriam deixar-se perturbar em

Page 15: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 2.13-23 15

demasia, diante das perseguições que lhes movem os homens. Os crentes

podem ser fracos, e seus inimigos poderosos; mas, apesar disso, não

deveriam mostrar-se medrosos. Antes, deveriam relembrar o fato que “o

júbilo dos perversos é breve, e a alegria dos ímpios momentânea” (Jó 20.5).

Que sucedeu aos Faraós, aos Neros e aos Dioclecianos que em sua época

perseguiram ferozmente aos servos de Deus? Onde estão alguns

perseguidores mais recentes, como a sanguinária Maria da Inglaterra ou

como Carlos IX da França? Esses fizeram o máximo ao seu alcance para

lançar a divina verdade por terra. Mas a verdade tomou a brotar, e continua

vivendo; enquanto que os perseguidores estão mortos e os seus corpos já se

dissolveram no solo. Por conseguinte, que não desmaie nenhum coração

crente. A morte é uma poderosa niveladora de todos os homens, podendo

retirar qualquer montanha do caminho da igreja de Cristo. “O Senhor vive

para sempre.” Os seus inimigos são meros homens. A verdade sempre

haverá de prevalecer.

Notemos, em último lugar, quão grande lição de humildade nos é

ensinada por meio do lugar onde residiu o Filho de Deus, quando Ele esteve

neste mundo. Ele vivia com sua mãe e com José, em uma cidade chamada „

„Nazaré‟ ‟. Nazaré era uma pequena aldeia da Galiléia. Uma localidade

obscura e remota, que não é mencionada no Antigo Testamento nem por

uma única vez. Hebrom, Silo, Gibeom e Betei eram cidades muito mais

importantes. Não obstante, o Senhor Jesus preteriu a todas elas, preferindo

viver em Nazaré. Ele fez isso por humildade.

Em Nazaré, o Senhor Jesus habitou pelo espaço de trinta anos. Foi

ali que passou da infância para a meninice, da meninice para a adoles-

cência, até atingir a idade adulta. Pouco sabemos acerca de como Jesus

passou aqueles trinta anos. Somos expressamente informados, entretanto,

de que Jesus, ao descer para Nazaré em companhia de Maria e de José,

“era-lhes submisso”. Que Ele trabalhava em companhia de José, na

carpintaria, também é algo altamente provável. Tão somente podemos

adiantar que cerca de cinco-sextos dos anos que nosso Salvador esteve na

terra foram passados entre os pobres deste mundo, em um retiro quase

absoluto. Na verdade, isso Ele fez por pura humildade.

Aprendamos a ser sábios, por intermédio do exemplo deixado por

nosso Salvador. Sempre nos mostramos por demais inclinados a buscar

coisas grandiosas neste mundo. Descontinuemos essa prática. Obter uma

boa posição profissional, um título e uma elevada posição social não são

coisas tão importantes como pensa a maioria das pessoas. De fato, constitui

um grave pecado ser cobiçoso, mundano, orgulhoso e dotado de

mentalidade carnal. Todavia, não é pecado ser pobre. Não importa tanto

onde residimos, e, sim, o que somos aos olhos do Se-

Page 16: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

16 Mateus 2.13-23

nhor. Para onde estaremos indo, quando morrermos? Viveremos para

sempre nos céus? Essas são as coisas dotadas de peso real, às quais

deveríamos dar atenção.

Acima de tudo, porém, esforcemo-nos por imitar a humildade

demonstrada por nosso Salvador. O orgulho é o mais antigo e o mais

disseminado dos pecados. A humildade é a mais rara e bela de todas as

virtudes. Esforcemo-nos por ser humildes. O nosso conhecimento pode ser

insuficiente. A nossa fé pode ser fraca. As nossas forças podem ser

pequenas. Entretanto, se formos bons discípulos d Aquele que veio residir

em Nazaré, então, seja como for, seremos humildes.

O Ministério de João Batista Leia Mateus 3.1-12

Estes doze versículos descrevem o ministério de João Batista, o

precursor de nosso Senhor Jesus Cristo. Este é um ministério que merece a

nossa cuidadosa atenção. Poucos pregadores têm obtido tão notáveis

resultados quanto ele. “Saíam a ter com ele Jerusalém, toda a Judéia e toda a

circunvizinhança do Jordão‟ ‟, conforme lemos em Mateus 3.5. Nenhum

outro pregador jamais recebeu tão grandes elogios da parte do Cabeça da

igreja. Jesus chamou João Batista de “a lâmpada que ardia e alumiava” (Jo

5.35). O grande Supervisor das nossas almas declarou pessoalmente: “Entre

os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do que João Batista” (Mt

11.11). Por conseguinte, estudemos as principais características do

ministério dele.

João Batista falava com clareza a respeito do pecado. Ensinava a

absoluta necessidade de “arrependimento”, antes que alguém possa ser

salvo. Ele anunciava que o arrependimento precisa ser comprovado através

dos seus “frutos”. Advertia aos homens que nunca dependessem de meros

privilégios externos ou da união externa com alguma igreja ou religião.

E precisamente esse o ensinamento de que todos carecemos. Es-

tamos naturalmente mortos, somos cegos e dormimos no tocante às

realidades espirituais. Contentamo-nos com uma religião meramente

formal, lisonjeando-nos a nós mesmos com a idéia de que, se freqüen-

tarmos alguma igreja seremos salvos. E mister que alguém nos diga que, a

menos que nos arrependamos e nos convertamos, todos pereceremos.

João Batista também falou com clareza a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele ensinou ao povo que Alguém “mais poderoso”

Page 17: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 3.1-12 17

do que ele apareceria em breve, entre eles. João Batista não passava de um

servo; mas Aquele que viria era o próprio Rei. João Batista só podia batizar

“em água”; porém, Aquele que viria após João batizaria “no Espírito Santo

e no fogo”, além disso tiraria pecados e, algum dia, haveria de voltar para

julgar ao mundo.

Novamente, esse é um ensinamento do qual a natureza humana tanto

precisa. Precisamos ser enviados diretamente a Jesus Cristo. No entanto,

estamos sempre inclinados a parar muito aquém desse alvo. Queremos

descansar nos vínculos com as nossas igrejas locais, gozando regularmente

os benefícios do ministério oficial. No entanto, deveríamos entender a

absoluta necessidade de estarmos unidos ao próprio Cristo, mediante a fé.

Ele é a fonte designada por Deus, onde encontramos a misericórdia, a graça,

a vida e a paz. Cada um de nós precisa estabelecer um relacionamento

pessoal com Ele a respeito de nossa alma. O que sabemos acerca do Senhor

Jesus? O que j á obtivemos da parte dEle? É de questões dessa ordem que

depende a nossa salvação eterna.

João Batista manifestou-se claramente a respeito do Espírito Santo.

Ele pregou, asseverando que existe tal coisa como o batismo no Espírito

Santo. E ensinou que o ofício especial do Senhor Jesus é conferir o Espírito

aos homens.

Uma vez mais, esse é um ensinamento de que muito precisamos.

Devemos compreender que o perdão dos pecados não é a única coisa

necessária à salvação da alma. Ainda há uma outra coisa, a saber, o batismo

de nossos corações por parte do Espírito Santo. Não somente precisa haver

a operação de Cristo em nosso favor, mas também deve haver a atuação do

Espírito Santo em nós. Não somente devemos ter o direito de entrar no céu,

mediante o sangue vertido por Cristo, mas também devemos ser preparados

para o céu, por intermédio da atuação do Espírito de Cristo. Jamais

devemos descansar, enquanto não tivermos experimentado algo da

experiência do batismo no Espírito Santo. O batismo em água é um grande

privilégio nosso. Contudo, também devemos procurar desfrutar do batismo

no Espírito Santo.

João Batista falou claramente sobre o tremendo perigo que correm os

impenitentes e os Incrédulos. Advertiu aos que o ouviam que todos deveriam

aguardar a “ira vindoura”. Pregou sobre um “fogo inextinguível”, onde a

palha, algum dia, ficará queimando eternamente.

Novamente, esse é um ensino bíblico tremendamente importante.

Todos precisamos ser claramente advertidos de que essa não é uma questão

destituída de importância, como se nos pudéssemos arrepender ou não. Pelo

contrário, precisamos relembrar que existem tanto o inferno quanto o céu, e

que a punição eterna espera pelos ímpios, da mesma maneira que a vida

eterna destina-se aos piedosos. Somos incrivelmente

Page 18: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

18 Mateus 3.1-12

inclinados a nos esquecer disso. Falamos sobre o amor e sobre a mi-

sericórdia de Deus, mas não destacamos de maneira suficiente a sua justiça

e a sua santidade. Devemos usar de grande cautela quanto a esse particular.

Não constitui gentileza autêntica disfarçar, diante das outras pessoas, os

terrores do Senhor. É bom que todos nós saibamos que é possível às

pessoas perderem-se eternamente, e que todos os que não querem

converter-se estão à beira do abismo.

Em último lugar, João Batista referiu-se claramente à segurança de

que desfrutam os crentes autênticos. Ele ensinou que existe um celeiro onde

serão recolhidos todos aqueles que pertencem a Jesus Cristo, como o seu

trigo, e que esses serão reunidos ali, quando o Senhor Jesus vier pela

segunda vez.

De novo, esse é um ensino de que a natureza humana precisa

desesperadamente. Os melhores crentes carecem de muito encorajamento.

Eles continuam vivendo em seu corpo. Vivem em um mundo caracterizado

pela impiedade. Com frequência, são tentados pelo diabo. De vez em

quando, é mister que a memória deles seja despertada para o fato que Jesus

nunca os deixará e nem os abandonará. Ele haverá de conduzi-los, com toda

a segurança, nesta vida, e, finalmente, haverá de encaminhá-los à glória

eterna. Eles serão protegidos no dia da ira do Senhor. Estarão tão seguros

quanto Noé esteve na arca.

Que todas essas verdades lancem profundas raízes em nossos

corações. Vivemos em uma época em que os falsos ensinos vêm à tona por

todos os lados. Nunca nos deveríamos esquecer das principais ca-

racterísticas de um ministério evangélico fiel. Quão grande seria a

felicidade da igreja de Cristo se todos os seus ministros se parecessem mais

com João Batista!

O Batismo de Cristo Leia Mateus 3.13-17

Temos aqui a narrativa do batismo de nosso Senhor Jesus Cristo.

Esse foi o primeiro passo, dado por Jesus, quando deu início ao seu

ministério terreno. Quando um sacerdote judeu começava a oficiar nessa

capacidade, com a idade de trinta anos, lavava-se com água. Quando o

nosso grande Sumo Sacerdote iniciou a grandiosa obra que veio realizar

neste mundo, foi publicamente batizado.

Nestes versículos, aprendamos a considerar com reverência a

ordenança cristã do batismo. Uma ordenança da qual o próprio Senhor Jesus

participou não pode ser tida como algo de somenos importância.

Page 19: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 3.13-17 19

Uma ordenança à qual o grande Cabeça da igreja se submeteu, sempre

deveria ser honorável aos olhos dos verdadeiros crentes.

Poucos pormenores da religião cristã têm sido alvo de tantas in-

terpretações distorcidas quanto o batismo. Poucos desses detalhes têm

requerido tanta defesa e esclarecimento. Armemo-nos, portanto, com duas

precauções de natureza geral.

Por uma parte, tenhamos o cuidado de não atribuir à água do batismo

qualquer valor supersticioso. Não podemos supor que a água do batismo

opere como se fora um encantamento. Não podemos esperar que todas as

pessoas que são batizadas recebam automaticamente a graça de Deus, no

momento do seu batismo. Afirmar que todos quantos recebem o batismo

obtêm um benefício idêntico e do mesmo nível, não importando nem um

pouco se recebem a cerimônia com fé e oração, ou no mais completo

desinteresse — sim, afirmar tais coisas é contradizer as mais evidentes

lições das Escrituras.

Por outra parte, devemos ter o cuidado de não desonrar a ordenança

do batismo. O batismo cristão é desonrado quando o tiramos de cena, não

permitindo que se evidencie na congregação local. Uma ordenança que foi

determinada pelo próprio Cristo não pode ser tratada dessa maneira. A

admissão de todos os novos membros à igreja visível, quer jovens quer

adultos, é um acontecimento que deveria suscitar um vívido interesse em

qualquer assembléia evangélica. Esse é um evento que deveria invocar as

mais fervorosas orações da parte de todos os crentes dedicados à oração.

Quanto mais profundamente convictos ficarmos de que o batismo e a graça

divina não estão sempre ligados um ao outro, tanto mais nos sentiremos

impulsionados a orar coletivamente em favor de todos aqueles que forem

batizados.

O ato do batismo de nosso Senhor Jesus Cristo foi acompanhado

por circunstâncias que se revestiram de uma solenidade toda peculiar. Um

batismo como o dEle jamais ocorrerá novamente, por mais que dure este

mundo.

Lemos nas Escrituras acerca da presença de todas as três Pessoas da

bendita Trindade. Deus Filho, tendo-se manifestado em carne humana, foi

batizado. Deus Espírito Santo desceu sobre a cena sob a forma corpórea de

uma pomba, adejando sobre Jesus. E Deus Pai falou do céu, com voz

audível. Em suma, encontramos aíi a manifestação ou presença do Pai, do

Filho e do Espírito Santo. Sem dúvida, deveríamos considerar esse fato

como um anúncio público de que a obra de Jesus Cristo era o resultado do

conselho eterno de todas as três Pessoas divinas. Foram essas três Pessoas

que, no começo da criação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem,

conforme a nossa semelhança‟‟ (Gn 1.26). Novamente, foi a Trindade

inteira que, quando

Page 20: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

20 Mateus 3:13-17

do início do evangelho, pareceu dizer: „„Salvemos ao homem”.

Lemos que se fez ouvir "uma voz dos céus”, por ocasião do batismo

de nosso Senhor. Essa foi uma circunstância que se revestiu de singular

solenidade. Nenhuma outra voz do céu jamais se fizera ouvir antes disso,

exceto por ocasião da transmissão da lei mosaica, no monte Sinai. Ambas

essas ocasiões foram marcadas por uma importância ímpar. Por

conseguinte, pareceu conveniente, para o nosso Pai celestial, assinalar

ambas essas oportunidades com uma honra toda peculiar. Tanto na

introdução da lei quanto do evangelho o próprio Deus Pai falou.

Quão notáveis e profundamente instrutivas são as palavras de Deus

Pai! “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. Por meio dessas

palavras, Ele declarou que Jesus é o divino Salvador, selado e nomeado

para isso desde toda a eternidade, a fim de realizar a obra da redenção. Ele

proclamou que aceitava a Jesus como o único Mediador entre Deus e os

homens. O Pai parecia estar publicando ao mundo que estava satisfeito

com Cristo como a propiciação pelos nossos pecados, como o nosso

Substituto, como Aquele que pagaria o preço do resgate pela família

condenada de Adão, e como o Cabeça de um povo remido. Em Cristo,

Deus Pai via a sua santa lei magnificada e honrada. Através dEle Deus

pode ser “justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).

Convém que ponderemos cuidadosamente essas palavras! Elas nos

podem enriquecer extraordinariamente os pensamentos. São palavras que

transbordam de paz, de alegria, de consolo e de encorajamento para todos

aqueles que se refugiam no Senhor Jesus Cristo, entregando- -Lhe as suas

almas para serem salvos. Esses podem regozijar-se no pensamento que,

embora continuem pecadores em si mesmos, contudo, aos olhos de Deus,

são considerados justos. Deus Pai considera todos eles membros de seu

Filho amado. Não percebe neles qualquer mácula, e, por causa de seu

Filho, fica satisfeito (2 Pe 1.17).

A Tentação Leia Mateus 4.1-11

Após o batismo de Jesus, o primeiro acontecimento a ser registrado

pelo apóstolo Mateus, na vida do Senhor, foi a tentação. Trata-se de um

assunto profundo e circundado de mistérios. Há muita coisa, no relato

bíblico a esse respeito, que não sabemos esclarecer. No entanto, â

superfície da narrativa há lições práticas perfeitamente claras, que faríamos

bem em dar atenção.

Page 21: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 4.1-1] 21

Em primeiro lugar aprendamos que temos, no diabo, um inimigo real e

poderoso. Ele não temeu desfechar os seus ataques nem mesmo contra o

próprio Senhor Jesus. Por três vezes em seguida, ele tentou ao próprio Filho de Deus. Nosso Salvador foi conduzido ao deserto com o propósito de ser “tentado pelo diabo”.

Foi por intermédio do diabo que o pecado entrou no mundo, no

começo da história da humanidade. Foi o diabo que oprimiu Jó, enganou

Davi e fez Pedro cair em perigoso pecado. A Bíblia intitula o diabo de

“homicida”, “mentiroso” e “leão que ruge”. Aquele que é o adversário das

nossas almas, nunca dorme e nem cochila. É ele que, por cerca de seis mil

anos, vem realizando uma única obra nefanda — arruinar a homens e

mulheres, atirando-os no inferno. Ele é um ser cuja sutileza e astúcia

ultrapassam a toda a compreensão humana, de ta] maneira que, com

freqüência, ele parece ser um * 'anjo de luz” (2 Co 11.14).

Cumpre-nos vigiar e orar diariamente, acerca dos perversos es-

tratagemas do diabo. Não existe inimigo pior do que aquele que nunca pode

ser visto e que nunca morre; que está sempre perto de nós, onde quer que

nos encontremos, e que vai conosco onde quer que formos. Também não é

coisa de somenos a maneira leviana e até humorística com que os homens se

referem ao diabo, de uma maneira tão generalizada. Lembremo-nos a cada

dia que, se quisermos ser salvos, nan somente teremos de crucificar a carne

e vencer o mundo, mas também teremos de fazer conforme as Escrituras nos recomendam: “resisti ao diabo” (Tg 4.7).

Em seguida, devemos aprender que todos nós não devemos enfrentar

a tentação como se fosse uma coisa estranha. “Não é o servo maior do que seu

senhor” (Jo 15.20). Se Satanás atacou ao próprio Jesus Cristo, então, sem

dúvida alguma, também atacará aos crentes.

Como seria bom, para todos os crentes, se eles se lembrassem dessa

realidade. No entanto, tendemos muito por esquecer tal coisa. Com

freqüência, os crentes detectam maus pensamentos em suas mentes que eles

poderiam afirmar que odeiam. Dúvidas, indagações e uma pecaminosa

imaginação são coisas que lhes são sugeridas, contra o que se revolta todo o

seu homem interior. Não devem permitir, no entanto, <|ue essas coisas

destruam a sua paz e os furtem de suas consolações. E necessário lembrar

que o diabo existe, e não deveriam surpreender-se ao descobrir que ele está

sempre bem perto deles. Ser vítima das tentações ainda não é incorrer em

pecado. Pecamos somente quando cedemos diante das tentações, dando

lugar ao pecado em nossos corações, algo que muito deveríamos temer.

Convém que aprendamos, em seguida, que a principal arma que

devemos usar para resistir a Satanás é a Bíblia. Por nada menos de

Page 22: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

22 Mateus 4.1-11

três vezes o grande adversário das nossas almas apresentou tentações

diante de nosso Senhor. Por três vezes o oferecimento diabólico foi re-

pelido, sempre mediante o emprego de algum texto bíblico como

motivação: “Está escrito”.

Essa é apenas uma, dentre muitas razões, pelas quais devemos ser

leitores diligentes das Sagradas Escrituras. A Palavra de Deus é a espada

do Espírito (Ef 6.17). Jamais estaremos combatendo, como convém ao

crente, enquanto não estivermos usando a Bíblia como a nossa principal

arma de ataque e defesa. A Palavra de Deus também é lâmpada para os

nossos pés. Jamais nos conservaremos no elevado caminho do Rei, que

leva ao céu, se não estivermos jornadeando iluminados por essa luz. Com

toda a razão podemos temer que, entre os crentes, a Bíblia não é lida de

maneira suficiente. Não basta possuirmos a$ Escrituras. É necessário lê-las

e orar a respeito de nós mesmos. A Bíblia não nos fará nenhum bem se,

tão-somente, ficar guardada em nossos lares. Antes, precisamos estar

familiarizados com o conteúdo das Escrituras, com o seu texto armazenado

em nossa mente e em nossa memória. O conhecimento bíblico nunca pode

ser adquirido por mera intuição. Tal conhecimento só pode ser adquirido

mediante a leitura regular, trabalhosa, diária, atenta e desperta.

Queixamo-nos do tempo e do trabalho que isso nos custa? Se assim

estivermos fazendo, então isso será sinal de que ainda não estamos aptos

para o reino de Deus.

Em último lugar, devemos aprender o quanto nosso Senhor Jesus

Cristo é um Salvador que simpatiza conosco. “Pois naquilo que ele mesmo

sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados”

(Hb 2.18).

A simpatia de Jesus por nós é uma verdade que deveria ser par-

ticularmente valorizada por todos os crentes. Eles poderão descobrir que

essa é uma verdade que serve de mina de poderosas consolações. Nunca

deveriam esquecer-se de que eles contam com um poderoso Amigo nos

céus, o qual simpatiza com eles em todas as tentações e provações por que

tiverem de passar. Ele sente, juntamente com eles, as suas ansiedades

espirituais. São os crentes tentados, por Satanás, a desconfiarem da

bondade e dos cuidados de Deus por eles? Jesus também foi tentado desse

modo. São eles tentados à presunção, em relação à misericórdia divina,

arriscando-se desnecessariamente e sem garantias? Assim também Jesus

foi tentado. Eles são tentados a cometer algum grande pecado particular,

como se isso lhes oferecesse alguma vantagem? Essa também foi uma das

tentações que assaltou a Jesus Cristo. São eles tentados a fazer alguma

errônea aplicação das Escrituras, como justificativa para a prática do mal?

Outro tanto sucedeu a Jesus. Ele é exatamente o Salvador de que precisam

aqueles que são tentados. Por conseguinte, que

Page 23: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 4,1-11 23

os crentes se refugiem no Senhor, pedindo-Lhe ajuda e expondo diante

dEle todas as suas dificuldades. E então haverão de descobrir que Ele

está sempre preparado a simpatizar com eles. Jesus pode entender todas as suas tristezas.

Oxalá todos nós reconhecêssemos, em nossa própria experiência

diária, o quanto vale um Salvador cheio de simpatia! Nio há nada que se

lhe possa comparar, neste nosso mundo frio e enganador. Aqueles que

buscam encontrar a felicidade neste mundo e desprezam a religião

revelada nas Escrituras, não fazem a mínima idéia do verdadeiro consolo

que estão perdendo.

Começo do Ministério de Cristo

e a Chamada dos Primeiros Discípulos Leia Mateus 4,12-25

Nestes versículos encontramos o começo do ministério de nosso

Senhor entre os homens. Ele dá início aos seus labores entre uma po-

pulação ignorante e obscurecida. Ele escolhe os homens que serão seus

companheiros e discípulos e confirma o seu ministério através de mi-

lagres, os quais chamam a atenção de “toda a Síria” e atraem grandes

multidões para ouvi-lo.

Observemos a maneira peia qual nosso Senhor deu início à sua

poderosa realização: “passou Jesus a pregar”. Não existe outra atividade tão

honrada como a de um pregador. Não há trabalho humano tão importante

para as almas dos homens. Esse é um ofício do qual o próprio Filho de

Deus não se envergonhou. Através desse ofício Ele selecionou os seus

doze apóstolos. Foi um ofício que o apóstolo Paulo, já idoso, recomendou

de maneira especial a Timóteo, quase que em seu último alento: “prega a

palavra, insta, quer seja oportuno, quer não (2 Tm 4.2). Acima de qualquer

outro, esse é o instrumento que Deus se agrada em usar na conversão e

edificação das almas humanas. Os dias mais resplandecentes da igreja de

Cristo sempre foram aqueles em que a pregação do evangelho foi mais

honrada. Enquanto que os dias mais negros da igreja sempre têm sido

aqueles em que a prédica foi desvalorizada. Honremos as ordenanças e as

orações públicas, nas igrejas locais, e utilizemo-nos reverentemente desses

meios da graça divina. Porém, cuidemos em nunca permitir que essas

práticas venham a tomar o lugar que pertence à pregação do evangelho.

Prestemos atenção à primeira doutrina que o Senhor Jesus proclamou ao mundo. Ele começou, afirmando: “Arrependei-vos”. A

Page 24: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

24 Mateus 4.12-25

necessidade de arrependimento é um dos grandes fundamentos que estão à

base do cristianismo. É mister pregarmos que toda a humanidade, sem

exceção, se arrependa. Importantes ou não, ricos ou pobres, todos os

homens têm caído no pecado e são culpados diante de Deus. Todos

precisam arrepender-se e converter-se, se porventura quiserem ser salvos.

O verdadeiro arrependimento não é alguma questão superficial. Antes,

envolve uma completa mudança do coração no que concerne ao pecado,

uma transformação que se demonstra mediante uma santa contrição e

humilhação, com uma sincera confissão dos pecados, diante do trono da

graça, e uma quebra total de hábitos pecaminosos, bem como um ódio

permanente a todo pecado. Tal arrependimento é o acompanhante

inseparável da fé salvadora em Jesus Cristo. Devemos valorizar

grandemente essa doutrina. Gla se reveste da maior importância. Nenhum

ensino cristão pode ser considerado sadio se não puser sempre em

evidência “o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus

Cristo” (At 20.21).

Observemos também a classe de homens a quem o Senhor Jesus

escolheu para serem seus discípulos. Eles pertenciam às camadas mais pobres

e humildes da sociedade. Pedro, André, Tiago e João eram todos

“pescadores”. A religião de nosso Senhor Jesus Cristo não visava somente

aos ricos e cultos; destinava-se ao mundo todo, e a maior parte da

humanidade sempre será pobre. A pobreza e a ignorância literária

excluíam milhares de pessoas da atenção dos orgulhosos filósofos do

mundo pagão. Mas isso não impede a ninguém de ocupar mesmo os mais

altos escalões do ministério cristão. Um certo homem é humilde? Ele sente

o peso dos seus pecados? Ele está disposto a ouvir a voz de Cristo e a

segui-Lo? Nesse caso, ele pode ser o mais pobre dos pobres, mas, no reino

dos céus haverá de ocupar uma posição tão importante quanto qualquer

outra pessoa. O intelecto e o dinheiro de nada valem, sem a graça de Deus.

A religião de Cristo deve ter tido a sua origem no céu. Do contrário,

nunca teria prosperado e se propagado por toda a terra, conforme tem

sucedido. É inútil aos incrédulos tentarem dar resposta a esse argumento.

Ele não pode ser retorquido. Uma religião que não lisonjeia aos ricos, aos

grandes e aos bem instruídos, uma religião que não dá margem às

inclinações carnais do coração humano, uma religião cujos primeiros

mestres foram pobres pescadores, destituídos de riquezas materiais,

posição social ou poder, uma religião como essa jamais teria transtornado

o mundo, se não procedesse de Deus. Por um lado, contemplamos os

imperadores romanos e os sacerdotes do paganismo, com os seus

esplêndidos santuários! Por outro lado, vemos alguns poucos trabalhadores

braçais, cristãos, sem grande instrução formal, mas anun

Page 25: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 4.12-25 25

ciando o evangelho! Acaso, já houve outros dois grupos tão diferentes um

do outro? Os que eram fracos mostraram-se fortes; e os que eram fortes

mostraram-se fracos. O paganismo ruiu, e o cristianismo tomou o seu

lugar. Portanto, o cristianismo deve proceder de Deus.

Em último lugar, observemos o caráter geral dos milagres por meio

dos quais nosso Senhor confirmou a sua missão. Nesta passagem bíblica, esses

milagres são vistos em geral. Porém, um pouco mais adiante, haveremos de

vê-los descritos em particular. Mas, qual é o caráter desses milagres? Eles

foram alicerçados sobre a misericórdia e a bondade. Nosso Senhor

“percorria... toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, pregando o

evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o

povo”.

Esses milagres tiveram por propósito ensinar-nos quão poderoso é

nosso Senhor. Aquele que era capaz de curar enfermos com um simples

toque de mão e expelir demônios com uma palavra, também é poderoso

para “salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus“ (Hb 7.25). Sim,

Ele é o Todo-poderoso.

Esses milagres têm, igualmente, a finalidade de servir de símbolos

ou emblemas da habilidade de nosso Senhor como médico espiritual.

Aquele, diante de quem nenhuma enfermidade física mostrou ser incurável,

é poderoso para curar cada um dos males que afligem as nossas almas. Não

há coração partido que Ele não saiba sarar. Não há ferida de consciência que

Ele não possa fazer cicatrizar. Todos nós somos indivíduos caídos,

esmagados, despedaçados e atingidos por alguma praga, por causa do

pecado. Mas Jesus, por meio de seu sangue e Espírito, pode curar-nos

inteiramente. Tão-somente devemos ir até Ele.

Esses milagres têm também o propósito de mostrar-nos o coração de

Jesus — o Salvador extremamente compassivo. Ele não rejeitava a ninguém

que viesse até Ele. Ele nunca rejeitou a quem quer que fosse, por mais

enfermo ou repugnante que estivesse. Os seus ouvidos estavam dispostos a

dar atenção a todos, e Ele estava sempre pronto a ajudar a todos com um

coração terno para com todos. Não existe bondade que se possa comparar à

sua. A compaixão de Jesus jamais falhará.

Nunca nos deveríamos esquecer de que Jesus Cristo * „ontem e hoje

é o mesmo, e o será para sempre” (Hb 13.8)! Exaltado nos céus, à mão

direita de Deus Pai, em coisa alguma Ele se modificou. Ele continua

perfeitamente capaz de salvar, igualmente disposto a acolher-nos, e da

mesma maneira preparado para ajudar-nos, tal e qual fazia há quase vinte

séculos passados. Teríamos nós colocado diante dEle as nossas petições

naqueles dias? Façamos a mesma coisa hoje. Ele pode curar “toda sorte de

doenças e enfermidades”.

Page 26: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

26 Mateus 5.1-12

As Be -aventuranças

Leia Mateus 5.1-12

Os três capítulos que têm início com estes versículos merecem

atenção especial da parte de todos os estudiosos da Bíblia. Esses capítulos

contêm o que usualmente se chama de “Sermão da Montanha”.

Cada palavra do Senhor Jesus deveria ser reputada como preciosa

pelos que se dizem crentes. É a voz do nosso supremo Pastor, a palavra do

grande Superintendente e Cabeça da igreja. É o Senhor quem está falando. É

a palavra dAquele que falava como ninguém jamais falou, a voz dAquele

por meio de quem seremos julgados no último dia.

Gostaríamos de saber que tipo de pessoa deveria ser o crente?

Gostaríamos de saber que caráter cristão deveria ser o nosso alvo? Gos-

taríamos de saber qual a conduta e os hábitos mentais que deveríamos

cultivar como seguidores de Jesus? Nesse caso, estudemos com freqüência

o Sermão da Montanha. Meditemos constantemente sobre as sentenças de

Cristo, e submetamo-nos à prova de acordo com elas. Não devemos deixar

de considerar a quem o Senhor Jesus chamou de “bem-aventurados” no

começo do sermão. Aqueles que são abençoados pelo nosso Sumo

Sacerdote são verdadeiramente benditos.

Jesus chamou de bem-aventurados aos humildes de espírito.

Referia-se aos humildes, modestos quanto a seu auto-conceito, auto-

-rebaixados. Apontava para os que estão profundamente convictos de sua

própria pecaminosidade diante de Deus. Aqueles que não “são sábios aos

seus próprios olhos, e prudentes em seu próprio conceito” (Is 5.21). Esses

não se consideram “ricos e abastados” (Ap 3.17); não ficam fantasiando de

que nada precisam. Antes, consideram-se infelizes, miseráveis, pobres,

cegos e nus. Todos esses são bem-aventurados! No alfabeto do cristianismo,

a humildade é a primeira letra. Devemos começar bem por baixo, se

quisermos atingir grandes alturas espirituais.

O Senhor Jesus também chamou de bem-aventurados àqueles que

choram. Com isso Ele quis dar a entender aqueles que se entristecem por

causa do pecado, e que também se lamentam diariamente por causa das suas

próprias falhas. São esses os que se preocupam mais por causa do pecado do

que por qualquer outra coisa na face da terra. A memória dessas coisas

deixa-os profundamente tristes. Tal carga lhes parece intolerável,

Bem-aventurados são todos os tais. “Sacrifícios agradáveis a Deus são o

espírito quebrantado; coração compungido e contrito não o desprezarás, ó

Deus” (SI 51.17). Algum dia, eles não mais derramarão lágrimas, “porque

serão consolados”.

Page 27: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 5.1-12 27

O Senhor Jesus também chama de bem-aventurados aos mansos. Ele

tinha em mente aqueles cujo espírito é paciente e satisfeito. Os que se

dispõem a serem com pouca honra neste mundo, capazes de sofrer

injustiças sem guardar ressentimentos. Os que dificilmente se deixam

irritar. Como Lázaro na parábola, eles estão contentes em esperar pelas

boas coisas que Deus tem para dar. Bem-aventurados são todos esses! A

longo prazo, eles nunca são os perdedores. Chegará o dia quando eles

“reinarão sobre a terra“ (Ap 5.10).

O Senhor Jesus chama de bem-aventurados os que têm fome e sede de

justiça, os que desejam acima de tudo ajustar-se à mente do Senhor. Eles

anelam não tanto por se tomarem ricos ou poderosos ou eruditos, mas por

serem santos. Bem-aventurados são todos os tais! Um dia terão o suficiente

do que desejam. Um dia acordarão revestidos à semelhança de Deus e serão

satisfeitos (SI 17.15).

Jesus chama de bem-aventurados aos misericordiosos, os que se

mostram compassivos para com os seus semelhantes. Eles têm compaixão

de todos quantos sofrem, seja por causa do pecado ou de adversidades, e

desejam ternamente suavizar tais sofrimentos. Praticam boas obras e

esforçam-se por fazer o bem. Bem-aventurados são todos os tais! Tanto

nesta vida quanto na vindoura, terão uma rica colheita.

O Senhor Jesus também considerou bem-aventurados os que são

limpos de coração. Ao assim dizer, Ele pensava naqueles que não almejam

apenas uma conduta externa correta, e, sim, a santidade interior. Esses tais

não se satisfazem com uma mera exibição externa de religiosidade. Antes,

esforçam-se por manter o coração e a consciência isentos de ofensa,

desejando servir a Deus com o espírito e com o homem interior.

Bem-aventurados são todos esses! O coração é o próprio homem. “O

homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1 Sm 16.7). Quanto

mais a mente estiver voltada para as coisas espirituais, maior comunhão

terá o homem com Deus.

O Senhor Jesus chama de bem-aventurados aos pacificadores, isto é,

os que exercem a sua influência pessoal a fim de promoverem a paz e o

amor; tanto em particular como em público, em casa ou no estrangeiro. São

os que se esforçam para que todos os homens se amem mutuamente,

ensinando aquele evangelho que diz: “o cumprimento da lei é o amor” (Rm

13.10). Bem-aventurados são todos esses, pois, estão realizando a mesma

obra que o Filho de Deus iniciou, quando veio à terra pela primeira vez, e

que Ele terminará ém sua segunda vinda.

Por fim, o Senhor Jesus chama de bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, os que são alvos de zombarias e risos, os desprezados e que sofrem abusos somente porque se esforçam por viver como

verdadeiros crentes. Bem-aventurados são todos os tais! Esses

Page 28: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

28 Mateus 5.1-12

bebem do mesmo cálice de que o Mestre bebeu. Eles O estão confessando

perante os homens, e Ele, por sua vez, haverá de confessá-los perante Deus

Pai e os anjos no último dia. “É grande o vosso galardão nos céus.”

Estas são as oito pedras fundamentais que o Senhor Jesus lançou,

logo no começo do seu Sermão da Montanha. Oito grandes verdades, oito

grandes testes foram colocados diante de nós. Marquemos bem cada uma

delas, e assim aprenderemos a sabedoria!

Aprendamos quão inteiramente contrários aos princípios deste mundo

são os princípios ensinados por Cristo. É inútil tentar negar esse fato. São

princípios diametralmente opostos entre si. O mundo menospreza as

próprias virtudes que nosso Senhor Jesus exaltou. Orgulho, falta de

consideração, espírito de exaltação, mundanismo, formalismo, egoísmo e

falta de amor, que proliferam neste mundo por toda a parte, são coisas que

o Senhor Jesus condenou.

Aprendamos, da mesma forma, quão tristemente diferentes da vida

prática de muitos professos ’ ‘cristãos' ‟ são os ensinos de Jesus Cristo. Onde

encontraremos, entre os que frequentam os cultos nas igrejas locais,

homens e mulheres que se esforçam por viver segundo os padrões acerca

dos quais acabamos de ler? Infelizmente, há muitas razões para temer que

um grande número de pessoas batizadas são totalmente ignorantes acerca

do que o Novo Testamento contém!

Acima de tudo, aprendamos quão santos e espirituais todos os

crentes deveriam ser. Jamais deveriam ter como alvo qualquer padrão

inferior ao do Sermão da Montanha. O cristianismo é eminentemente uma

religião prática. A sã doutrina é a sua raiz e fundamento, mas o seu fluxo

deveria sempre ser uma vida santa. E, se quisermos saber o que é uma vida

santa, consideremos então, com freqüência, quem são aqueles a quem Jesus

chamou de “bem-aventurados”.

O Caráter dos Verdadeiros Crentes

O Ensino de Cristo e o Antigo Testamento Leia Mateus 5.13-20

Nestes versículos, o Senhor Jesus trata de dois assuntos. Um deles é

o caráter que os verdadeiros crentes precisam defender e manter neste

mundo. O outro é a relação entre as doutrinas que Ele ensinava e os ensinos

do Antigo Testamento. É muito importante termos uma visão bem clara

sobre ambos os assuntos. Os verdadeiros cristãos devem ser neste mundo como o sal. Ora,

Page 29: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 5.13-20 29

o sal tem um sabor todo peculiar, diferente de qualquer outra coisa. Quando

misturado com outras substâncias, preserva da corrupção. O sal transmite

um pouco do seu sabor a tudo com o que é misturado. Só é útil enquanto

preserva o sabor, do contrário para nada mais presta. Somos crentes

verdadeiros? Atentemos para a nossa posição e nossos deveres neste

mundo!

Os verdadeiros crentes devem viver como luzes neste mundo. A

propriedade da luz é ser totalmente diferente das trevas. A menor centelha

em uma sala escura pode ser vista prontamente. Dentre todas as coisas

criadas, a luz é a mais útil. A luz fertiliza o solo. A luz guia. A luz reanima.

A luz foi a primeira coisa que Deus trouxe à existência. Sem a luz, este

mundo seria um vazio obscuro. Somos crentes verdadeiros? Nesse caso,

consideremos novamente a nossa posição e as nossas responsab ilidades!

Se estas palavras têm algum significado, então, certamente, Jesus

intenciona nos ensinar, com estas duas figuras, sal e luz, que precisa haver

algo notório, distintivo e peculiar a respeito do nosso caráter, se somos

verdadeiros cristãos. Se desejamos ser reconhecidos como pertencentes a

Cristo, como o povo de Deus, jamais poderemos passar a vida desocupados,

pensando e vivendo como fazem as demais pessoas neste mundo. Temos a

graça divina? Então ela precisa ser vista. Temos o Espírito Santo? Então

deve haver o fruto. Temos uma religião salvadora? Então deve haver uma

diferença de hábitos e preferências e também uma mentalidade diferente

entre nós e aqueles que pensam segundo o mundo. É perfeitamente claro

que o cristianismo verdadeiro envolve algo mais do que ser batizado e ir à

igreja. “Sal“ e “luz”, evidentemente, implicam numa peculiaridade, tanto no

coração quanto na vida diária, tanto na fé quanto na prática. Se nos

consideramos salvos, devemos ousar ser singulares e diferentes da

humanidade em geral.

A relação entre o ensino de nosso Senhor e o ensino do Velho

Testamento foi esclarecida por Jesus mediante uma sentença incisiva: “Não

penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para

cumprir“. Estas são palavras dignas de nota. Elas foram profíindamente

importantes quando proferidas, porquanto davam resposta à ansiedade

natural dos judeus quanto a este assunto. São palavras que continuarão

sendo tremendamente importantes, enquanto este mundo continuar, como

um testemunho de que a religião do Antigo e Novo Testamento forma um

todo harmônico.

O Senhor Jesus veio a este mundo a fim de cumprir as predições dos

profetas, os quais desde os tempos antigos haviam profetizado que, um dia,

viría ao mundo um Salvador. E Ele veio para cumprir a lei cerimonial,

tomando-se o grande sacrifício pelo pecado, para o qual

Page 30: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

30 Mateus 5.13-20

todas as oferendas da lei mosaica tinham sempre apontado. Ele veio para

cumprir a lei moral, prestando-lhe obediência perfeita, o que nós mesmos

jamais poderíamos ter feito. Ele também cumpriu a lei pagando com o seu

sangue reconciliador a penalidade pela nossa quebra da lei, uma penalidade

que nós jamais poderíamos ter pago. De todas essas maneiras, Ele exaltou a

lei de Deus, e fez a sua importância ainda mais evidente. Em suma, Ele

engrandeceu a lei e a fez gloriosa (Is 42.21).

Há profundas lições de sabedoria a serem aprendidas por meio

destas palavras de nosso Senhor. Portanto, meditemos cuidadosamente

sobre elas, entesourando-as em nosso coração.

Tomemos cuidado para não desprezar o Antigo Testamento, sob

nenhum pretexto. Nunca demos ouvidos àqueles que recomendam pôr de

lado o Antigo Testamento, como se fosse um livro antiquado, obsoleto e

inútil. A religião do Antigo Testamento é embrião do cristianismo. O

Antigo Testamento é o evangelho em botão; o Novo Testamento é

evangelho aberto em flor. O Antigo Testamento é o evangelho brotando; o

Novo Testamento é o evangelho já em espiga formada. Os santos do Antigo

Testamento enxergaram muitas coisas como que por um espelho,

obscuramente. Porém, todos contemplavam pela fé o mesmo Salvador, e

foram guiados pelo mesmo Espírito Santo que hoje nos guia. Estas não são

questões de pouca importância. O ignorante desprezo pelo Antigo

Testamento dá origem a muita infidelidade.

Também devemos acautelar-nos em não desprezar a lei dos dez

mandamentos. Nem por um momento suponhamos que essa lei tenha sido

posta de lado pelo evangelho, ou que os crentes não têm nada a ver com ela.

A vinda de Cristo em nada alterou a posição dos dez mandamentos, nem

mesmo a largura de um fio de cabelo. O que ela fez foi exaltar e destacar a

sua autoridade (Rm 3.31). A lei dos dez mandamentos é a medida eterna de

Deus para o que é certo e o que é errado. Através da lei é que vem o pleno

conhecimento do pecado. Pela lei é que o Espírito mostra aos homens a sua

necessidade de Cristo e os leva a Ele. Cristo deixou ao seu povo a lei dos dez

mandamentos como norma e guia para uma vida santa. Em seu devido

lugar, a lei dos dez mandamentos é tão importante quanto o “glorioso

evangelho“. A lei não pode nos salvar. Não podemos ser justificados por

ela. Porém, nunca jamais a desprezemos. O menosprezo pela lei dos dez

mandamentos é um sintoma de ignorância e insanidade em nossa religião. O

verdadeiro crente autêntico tem “prazer na lei de Deus” (Rm 7.22).

Em último lugar, cuidemos em não supor que o evangelho tenha

rebaixado o padrão de santidade pessoal, ou que o cristão não deva ser tão

estrito e cuidadoso em sua conduta diária quanto o eram os judeus. Este é

um terrível engano, mas que, infelizmente, é muito comum.

Page 31: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 5.13-20 31

Bem ao contrário, os santos do Novo Testamento deveriam exceder em

santidade aos santos dos tempos antigos, pois estes só tinham o Velho

Testamento para lhes servir de orientação. Quanto mais luz temos, maior o

nosso amor a Deus. Quanto mais claramente enxergamos nosso pleno

perdão em Cristo, tanto mais devemos trabalhar de coração para a sua

glória. Sabemos o quanto custou a nossa redenção, melhor do que os santos

do Antigo Testamento souberam. Já lemos o que aconteceu no Getsêmani e

no Calvário, mas eles só viram estas coisas indistinta e obscuramente,

como algo que ainda estava por acontecer. Que jamais nos esqueçamos das

nossas obrigações! O crente que se satisfaz com um baixo padrão de

santidade pessoal ainda tem muito a aprender.

A Espiritualidade da Lei

Comprovada por Três Exemplos Leia Mateus 5.21-37

Estes versículos merecem a mais cuidadosa atenção por parte de

todos os leitores da Bíblia. Um correto entendimento das doutrinas que eles

contêm é fundamental ao cristianismo. O Senhor Jesus aqui explica mais

completamente o significado das suas palavras, “não vim para revogar a

lei, vim para cumprir”. Ele nos ensina que o evangelho magnifica a lei e

exalta a sua autoridade. Ele nos mostra que a lei, conforme Ele a tinha

apresentado, era uma regra muito mais espiritual e capaz de perscrutar o

coração do que a maioria dos judeus imaginava. E isto Ele comprovava

selecionando três dos dez mandamentos, como exemplos para o que queria

dizer.

Jesus expôs o sexto mandamento. Muitos israelitas pensavam estar

cumprindo esta parte da lei de Deus, simplesmente por não cometerem

homicídio na prática. O Senhor Jesus, entretanto, mostra que as exigências

desse mandamento vão muito além. Tal mandamento condena até mesmo a

linguagem iracunda e repleta de rancor, especialmente quando utilizada

sem motivo justificado. Salientemos bem esse ponto. Podemos ser

perfeitamente inocentes no que tange a tirar a vida de outrem e, no entanto,

podemos tornar-nos culpados de transgredir o sexto mandamento.

Jesus apresenta o sétimo mandamento. Muitos supunham estar

cumprindo esta parte da lei de Deus, apenas por não praticarem adultério.

Mas, o Senhor Jesus nos ensina que podemos quebrar esse mandamento

em nossos pensamentos, em nosso coração e em nossa imaginação,

Page 32: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

32 Mateus 5.21-37

mesmo quando a nossa conduta exterior é moral e correta. O Deus com

quem tratamos vê muito além de nossas ações. Para ele, até mesmo um

rápido lançar de olhos pode ser pecado.

Jesus, apresenta o terceiro mandamento. Muitos se iludiam pensando

estar cumprindo esta parte da lei de Deus, contanto que não jurassem

falsamente e cumprissem os seus votos. Mas o Senhor Jesus proibe toda e

qualquer espécie de juramento vão. Todo o juramento em nome de coisas

criadas, mesmo quando o nome de Deus não está envolvido — todo

juramento que tome a Deus como testemunha, exceto nas ocasiões mais

solenes, é um grande pecado.

Tudo isso é muito instrutivo. Este ensinamento deveria fazer-nos

refletir com grande seriedade. Ele nos diz em alta voz, que sondemos

cuidadosamente os nossos corações. Mas, o que nos ensina?

Ele nos ensina a tremenda santidade de Deus. Deus é um Ser

puríssimo e perfeitíssimo, que percebe falhas e imperfeições onde os

homens não vêem coisa alguma. Deus lê os motivos dos nossos corações.

Ele observa não somente os nossos atos, mas também as nossas palavras e

os nossos pensamentos. “Eis que te comprazes na verdade no íntimo” (SI

51.6). Oxalá os homens considerassem esse aspecto do caráter de Deus

muito mais do que costumam fazer! Então não haveria lugar para o

orgulho, para a justiça-própria e para a indiferença, se ao menos os homens

vissem a Deus “conforme Ele é”.

Ele nos ensina a excessiva ignorância dos homens quanto às realidades

espirituais. Existem milhares e milhares de professos cristãos, como é de

temer, que não sabem mais a respeito dos requisitos da lei de Deus do que

os mais ignorantes judeus. Conhecem a letra dos dez mandamentos

suficientemente bem. Mas, à semelhança do jovem rico, julgam-se

guardadores da lei: “tudo isso tenho observado, desde a minha juventude”

(Mc 10.20). Para eles é inconcebível que se possa quebrar o sexto e sétimo

mandamentos mesmo sem praticar qualquer ato exterior ou pecado

explícito. E assim vão vivendo, satisfeitos consigo mesmos e plenamente

contentes com a sua mini religião. Felizes mesmo são os que real mente

compreendem a lei de Deus.

O sexto mandamento nos ensina a enorme necessidade do sangue

expiatório de Jesus Cristo para nos salvar. Qual o homem ou mulher neste

mundo que poderia apresentar-se diante de Deus e declarar-se1 „ inocente”?

Há alguém que tenha atingido a idade da razão sem haver quebrado os

mandamentos milhares de vezes? “Não há justo, nem sequer um” (Rm

3.10). Sem um Mediador poderoso, todos nós seríamos condenados no dia

do juízo. A ignorância do real significado da lei é uma razão evidente por

que tantas pessoas não dão valor ao evangelho, contentando-se em viver

um cristianismo mesquinho e formal. Eles não

Page 33: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 5.21-37 33

percebem o rigor e a santidade dos dez mandamentos da lei de Deus. Se

percebessem esse fato, não descansariam enquanto não estivessem seguras

em Jesus Cristo.

Em último lugar, esta passagem nos ensina a enorme importância de

se evitar tudo que possa dar ocasião ao pecado. Se nós realmente desejamos ser

santos, diremos como o salmista: “Guardarei os meus caminhos, para não

pecar com a língua“ (SI 39.1). Precisamos estar prontos a resolver querelas

e desacordos, para que tais coisas não nos conduzam a pecados ainda mais

graves: “Como o abrir-se da represa assim é o começo da contenda; desiste,

pois, antes que haja rixas” (Pv 17.14). Precisamos nos empenhar em

crucificar a nossa carne e mortificar os nossos membros. Devemos estar

dispostos a fazer qualquer sacrifício, e até mesmo trazer sobre o corpo a

incomodidade física, antes do que dar lugar ao pecado. Devemos guardar os

nossos lábios, como que por um freio, e exercitar uma constante vigilância

sobre nossas palavras. Que os homens nos chamem de “muito restritos ”, se

assim desejarem. Que eles digam que somos “por demais meticulosos”, se

isso lhes agrada. Não nos deixemos abalar com isso. Estamos apenas

fazendo aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo nos manda, e, sendo assim,

não temos de que nos envergonhar.

A Lei Cristã do Amor Leia Mateus 5.38-48

Encontramos neste trecho as normas de nosso Senhor Jesus Cristo

quanto à nossa conduta de uns para com outros. Os que desejarem saber

como deveriam agir e sentir, no tocante ao próximo, devem estudar com

freqüência estes versículos. Eles merecem ser escritos em letras de ouro.

Estes versículos têm sido elogiados até mesmo pelos adversários do

cristianismo. Observemos atentamente o que eles contêm.

O Senhor Jesus proíbe qualquer coisa parecida com um espírito

vingativo, que não esteja disposto a perdoar. A inclinação por ressentir- -se

diante das ofensas, a prontidão em ficar ofendido, uma disposição

contenciosa e briguenta, a insistência em reinvidicar nossos direitos — tudo

isto é contrário à mente de Cristo. O mundo pode não perceber nada de

errado nestes hábitos da mente. Tais coisas, porém, não fazem parte do

caráter do verdadeiro cristão. Nosso Mestre disse: “Não resistais ao

perverso”.

O Senhor Jesus nos manda cultivar um espírito de amor e benevolência

para com todos os homens. Devemos pôr de lado toda malícia.

Page 34: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

34 Mateus 5.38-48

Devemos pagar o mal com o bem e a maldição com bênçãos. Jesus nos

disse: “amai os vossos inimigos”. Outrossim, não devemos amar somente

de palavra, mas em verdade e de fato. Devemos negar a nós mesmos e nos

esforçar por sermos gentis e corteses, “Se alguém te obrigar a andar uma

milha, vai com ele duas.” Compete-nos tolerar muita coisa, suportar muita

coisa, ao invés de ofendermos ou prejudicarmos a outras pessoas. Em todas

as coisas, devemos nos mostrar altruístas. Nosso pensamento nunca deveria

ser: “Como é que as outras pessoas se comportam para comigo?“ Pelo

contrário, deveria ser: “O que Cristo gostaria que eu fizesse?”.

Um padrão de conduta como esse poderia à primeira vista parecer

demasiadamente alto. Porém, nunca nos deveríamos contentar com um

padrão inferior. Precisamos observar os dois fortes argumentos com que

nosso Senhor reforça esta parte de seu ensino. Estes argumentos merecem

séria atenção.

Primeiramente porque, se não tivermos por alvo o espírito e a

atitude aqui recomendados, então não somos ainda filhos de Deus. O nosso

“Pai que está nos céus” é bom para com todos. Ele envia chuvas sobre bons

e maus, igualmente. Ele faz o sol brilhar sobre todos os homens, sem

distinção. Ora, um filho deve ser como seu pai. Porém, em que somos

semelhantes a nosso Pai celeste, se não somos capazes de demonstrar

misericórdia e bondade para com todos? Onde estão as evidências de que

somos novas criaturas, se não temos amor? Estão todas em falta. Isto é um

sinal de que ainda precisamos „ „nascer de novo” (Jo 3.7).

Se não almejamos ter o espírito e a atitude aqui recomendados,

então, manifestamente ainda somos do mundo. Até mesmo os que não têm

nenhuma religião podem “amar aos que os amam”. Eles podem fazer o bem

e mostrar gentileza, quando seus afetos e interesses os movem a tanto.

Porém, o crente deveria ser dirigido por princípios mais altos do que o

interesse próprio. Estamos procurando evitar esse teste? Achamos

impossível praticar o bem em favor dos nossos inimigos? Se esse é o caso,

então podemos ter a certeza de que ainda não nos convertemos. Enquanto

isso prevalecer, ainda não teremos recebido “o Espírito que vem de Deus”

(1 Co 2.12).

Em tudo o que já vimos, há muitas coisas que clamam em alta voz

pela nossa solene reflexão. Há poucas passagens nas Escrituras que tão bem

se prestam para despertar em nossas mentes tais pensamentos de contrição.

Temos aqui um amorável quadro do cristão, tal como ele deveria ser.

Observando-o, não podemos deixar de sentir alguma dor. Todos devemos

admitir que esse quadro difere largamente daquilo que o crente geralmente

é. Podemos depreender daí duas lições gerais.

Page 35: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 5.38-48 35

Em primeiro lugar, se o espírito destes onze versículos fosse mais

continuamente relembrado pelos verdadeiros crentes, eles recomendariam o

cristianismo ao mundo de maneira muito mais eficiente. Não podemos nos

permitir supor que as palavras desta passagem sejam superficiais e de

pouca importância, nem mesmo as mínimas coisas afirmadas. A realidade

é outra. A devida atenção ao espírito deste texto bíblico é que faz tão

atrativa a nossa religião cristã. A negligência quanto às verdades aii

contidas leva à deformação do cristianismo. Cortesia, gentileza, ternura e

consideração pelas outras pessoas são alguns dos melhores ornamentos do

caráter dos filhos de Deus. O mundo pode compreender estas coisas,

mesmo quando não são capazes de compreender as doutrinas do

cristianismo. Não existe religião cristã na grosseria, na aspereza, na

indelicadeza ou na falta de civilidade. A perfeição do cristianismo prático

consiste na atenção que damos tanto aos pequenos quanto aos grandes

deveres da santidade.

Em segundo lugar, se o espírito destes onze versículos tivesse maior

domínio e poder sobre o mundo, quão mais feliz o mundo seria do que

realmente é\ Quem não sabe que as discussões, as desavenças, o egoísmo e a

indelicadeza causam metade das misérias que afligem a humanidade?

Quem não percebe que coisa alguma tenderia mais por aumentar a

felicidade entre os homens do que a propagação do amor cristão, tal como é

aqui recomendado por nosso Senhor? Que todos nos lembremos disto. Os

que se iludem pensando que a verdadeira religião tem alguma tendência em

fazer os homens infelizes, estão grandemente enganados. A ausência da

verdadeira religião é a causa de tal infelicidade, e não a sua prevalência. A

verdadeira religião exerce o efeito diametralmente contrário. Ela tende por

promover a paz e o amor ao próximo, a gentileza e a boa vontade entre as

pessoas. Quanto mais os homens seguirem os ensinos do Espírito Santo,

tanto mais eles se amarão mutuamente, e mais felizes serão.

Ostentação nas Esi olas e na Oração Leia Mateus 6.1-8

Neste segmento do Sermão da Montanha, o Senhor Jesus nos

instruiu sobre duas questões. A primeira delas quanto a dar esmolas, a outra

quanto à oração. Ambas eram questões às quais os judeus atribuíam grande

importância, Ambas, por si mesmas, merecem séria atenção de todos os

que professam o cristianismo.

Observe que nosso Senhor toma como um ponto pacífico que

Page 36: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

36 Mateus 6.1-8

todos os que se intitulam seus discípulos darão esmolas. Ele assume como

natural que eles pensarão ser um dever solene dar esmolas de acordo com as

suas possibilidades, a fim de aliviarem as necessidades dos outros. O único

ponto de que Cristo aqui trata é a maneira como deveria ser cumprido esse

dever. Esta é uma importante lição. Ele condena a atitude de egoísmo

mesquinho de tantas pessoas, quanto à questão de dar dinheiro. Quantos são

"ricos para consigo mesmos‟*, mas são pobres para com Deus! Muitos

jamais dão um centavo para fazer o bem ao corpo e a alma de outrem! Será

que os tais, com esta mentalidade, têm algum direito de serem chamados

cristãos? Bem poderíamos duvidar desse direito. Um Salvador sempre

disposto a dar, deveria ter discípulos igualmente dispostos a contribuir.

Observe, uma vez mais, que nosso Senhor toma por certo que todos

quantos se intitulam seus discípulos serão pessoas de oração. Ele assume que

isto também é um ponto pacífico. Tão somente Ele nos dá orientações

quanto à melhor maneira de orar. Esta é outra lição que merece ser

continuamente lembrada. Está claramente ensinado que pessoas que não

oram não são cristãos genuínos. Não basta apenas participar nas orações da

igreja, aos domingos, ou freqüéntar os cultos de oração durante a semana, na

igreja ou em família, É preciso haver também a oração particular, a sós com

Deus. Sem isso, podemos até estar arrolados como membros de alguma

igreja cristã, mas não somos membros vivos de Cristo.

Entretanto, quais são as normas deixadas para nossa orientação a

respeito de esmolas e oração? As regras são poucas e simples, mas contêm

muito material para a nossa meditação.

Ao dar esmolas, tudo quanto seja ostentação deveria ser abominado e

evitado. Não devemos dar como se desejássemos que todos vissem quão

caridosos e liberais nós somos, como se quiséssemos receber os elogios de

nossos semelhantes. Tudo quanto pareça exibicionismo deve ser evitado.

Devemos dar quietamente, fazendo tanto menos ruído quanto possível a

respeito de nossa caridade. O nosso propósito deveria acompanhar o espírito

daquele versículo: “Ignore a tua mão esquerda o que faz a tua direita".

Ao orar, o nosso objetivo principal deveria ser o de estarmos a sós com

Deus. Deveríamos procurar algum lugar onde nenhum olho mortal nos

pudesse ver, para que então pudéssemos derramar o coração diante de Deus,

com o sentimento de que ninguém nos está vendo, senão Deus. Entretanto,

esta é uma regra que muitas pessoas acham difícil seguir. Para os irmãos de

condição mais humilde, e para os que trabalham para outrem, é quase

impossível estar realmente sozinhos. Porém, esta é norma que todos nós

precisamos fazer um grande esforço para

Page 37: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 6.1-8 37

obedecer. A necessidade, em tais casos, com freqüência é a mãe da

invenção. Quando uma pessoa tem o real desejo de encontrar um lugar

onde possa estar em secreto com Deus, geral mente acabará por encontrar

tal lugar.

Em todos os nossos deveres, seja dar ou orar, a questão fundamental

que nunca deveríamos esquecer, é que estamos tratando com um Deus que

perscruta o coração e sabe todas as coisas. Tudo quanto seja mera

formalidade, afetação ou que não provenha do coração, é abominável e sem

valor aos olhos de Deus. Ele não leva em conta a quantidade de dinheiro

com que contribuímos, ou o número de palavras que usamos. O que

realmente é importante aos olhos de Deus é a natureza dos motivos e o

estado do coração. Nosso Pai celeste “vê em secreto”.

Que todos nós lembremos destas coisas. Eis aqui uma pedra que é a

causa de naufrágio espiritual de muitas pessoas. Eles bajulam a si mesmos

com o pensamento de que tudo deve estar certo com as suas almas, se ao

menos desempenharem uma certa quantidade de deveres religiosos.

Esquecem-se de que Deus não presta atenção na quantidade, e, sim, na

qualidade do nosso serviço. O favor divino não pode ser comprado,

conforme alguns parecem supor, pela repetição formal de um certo número

de palavras, ou por justiça própria, pagando alguma quantia em dinheiro

para uma instituição de caridade. Em que temos posto o coração? Estamos

fazendo tudo, seja dar ou orar, “como ao Senhor, e não como a homens” (Ef

6.7)? Será que compreendemos o que realmente importa aos olhos do

Senhor? Será que apenas e simplesmente desejamos agradar Àquele que

“vê em secreto”, Àquele que “pesa todos os feitos na balança” (1 Sm 2.3)?

Estaremos agindo com sinceridade? Com perguntas deste tipo é que

deveríamos sondar diariamente as nossas almas.

A Oração do Pai Nosso

e o Perdão Mútuo Leia Mateus 6.9-15

Estes versículos são poucos era número e podem ser lidos com

facilidade; no entanto, são de imensa importância. Eles contêm o ma-

ravilhoso modelo de oração com o qual o Senhor Jesus supriu o seu povo, e

que comumente é chamado de “oração do Pai Nosso”.

Talvez nenhuma outra porção das Escrituras seja tão bem conhecida

quanto esta. As suas palavras são conhecidas onde quer que exista

Page 38: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

38 Mateus 6.9-15

o cristianismo. Milhares e milhares de pessoas, que nunca viram uma Bíblia

ou que nunca tiveram oportunidade de ouvir o evangelho puro estão

familiarizadas com o “Pai Nosso”. Quão mais feliz seria o mundo se o

espírito e o intuito desta oração fossem tão bem conhecidos quanto o são as

suas palavras!

Talvez nenhuma outra porção das Escrituras seja ao mesmo tempo

tão simples e tão completa como esta. Ela é a primeira oração que apren-

demos, quando crianças. Nisto consiste a sua simplicidade: ela contém o

princípio de tudo quanto o mais desenvolvido filho de Deus possa desejar.

Nisto consiste a sua plenitude: quanto mais ponderamos as suas palavras,

tanto mais sentimos que esta oração procede de Deus.

A oração do Pai Nosso consiste em dez partes ou sentenças. Há uma

declaração que diz respeito ao Ser a quem oramos. Há três petições

referentes ao nome de Deus, ao seu reino e à sua vontade. Há quatro

petições a respeito de nossas necessidades diárias, nossos pecados, nossas

debilidades e perigos. Há uma declaração dos nossos sentimentos a respeito

do próximo. Há uma atribuição final de louvor. Em todas estas partes da

oração somos ensinados a dizer * „nós” ou „ „nosso‟ ‟. Devemos nos

lembrar das outras pessoas, tanto quanto de nós mesmos. Um livro poderia

ser escrito a respeito de cada uma das partes dessa oração, mas, no

momento, precisamos nos contentar em observar sentença após sentença,

assinalando em que direção aponta cada uma delas.

A primeira sentença declara a quem devemos orar: “Pai nosso que

estás nos céus”. Não devemos clamar a santos ou a anjos, mas

exclusivamente ao Pai, o Pai eterno, o Pai dos espíritos, o Senhor dos céus e

da terra. Podemos chamá-Lo de Pai no sentido de que Ele é o nosso criador,

conforme fez o apóstolo Paulo, perante os atenienses: “Pois nele vivemos, e

nos movemos, e existimos... dele também somos geração” (At 17.28). Nós

também O chamamos de Pai no sentido mais elevado da Palavra, como o

Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, porquanto Deus nos reconciliou consigo

mesmo por meio da morte de seu Filho, Jesus Cristo (Cl 1.20-22).

Nós professamos aquilo que os santos do Antigo Testamento, se

viam, viam-no como que por um espelho, isto é, professamos ser filhos de

Deus, mediante a fé em Cristo, e professamos ter o “espírito de adoção,

baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15). Isto é algo que jamais

devemos esquecer; se desejamos ser salvos, devemos almejar esta filiação

com Deus. Sem a fé no sangue de Jesus Cristo, e sem a nossa união com

Ele, é inútil falarmos em confiança na paternidade de Deus.

A segunda sentença consiste em uma petição concernente ao nome de

Deus: “santificado seja o teu nome”. Quando falamos no “nome”

Page 39: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 6.9-15 39

de Deus, entendemos todos aqueles atributos divinos através dos quais Ele

se tem revelado a nós — o seu poder, sabedoria, santidade, justiça,

misericórdia e verdade. Quando rogamos que esses atributos sejam “san-

tificados”, pedimos que eles sejam feitos conhecidos e glorificados. A

glória de Deus é a primeira coisa que os filhos de Deus deveriam almejar.

Esse foi o assunto de uma das orações do próprio Senhor Jesus: “Pai,

glorifica o teu nome” (Jo 12.28). Este é o propósito para o qual o mundo

foi criado. Esta é a finalidade pela qual os santos são chamados e

convertidos. A principal coisa que deveríamos buscar nesta vida é que “em

todas as cousas seja Deus glorificado” (1 Pe 4.11).

A terceira sentença envolve uma petição acerca do reino de Deus:

“venha o teu reino”. Por “teu reino” entendemos, primeiramente, o reino

da graça que Deus estabelece e mantém no coração de todos os membros

vivos do corpo de Cristo, por meio de seu Espírito e de sua Palavra. Mas,

principalmente, entendemos tratar-se daquele reino de glória que um dia

será estabelecido, quando o Senhor Jesus vier pela segunda vez. Então

todos conhecerão ao Senhor, “desde o menor deles até ao maior” (Hb

8.11). Nessa ocasião o pecado, a tristeza e Satanás serão expulsos do

mundo. O judeus serão convertidos e virá a plenitude dos gentios (Rm

11.25), e será o tempo mais desejável que jamais existiu. Esta petição,

portanto, tem um lugar de proeminência dentro da oração do Pai Nosso.

A quarta sentença é uma petição concernente à vontade de Deus:

faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu‟ ‟. Neste ponto, oramos

no sentido de que as leis de Deus possam ser obedecidas pelos homens tão

perfeita, pronta e incessantemente como o são pelos anjos, no céu.

Rogamos que aqueles que agora não obedecem às leis de Deus, sejam

ensinados a obedecê-las, e que aqueles que obedecem o façam ainda com

maior empenho. A nossa mais autêntica felicidade consiste em perfeita

submissão à vontade de Deus; é demonstração do mais alto amor cristão

orar no sentido de que toda a humanidade possa conhecer a vontade de

Deus, obedecê-la e submeter-se a ela.

A quinta sentença é uma petição referente às nossas próprias

necessidades diárias: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Somos aqui

ensinados a reconhecer a nossa inteira dependência de Deus para o

suprimento das nossas necessidades diárias. Tal como Israel precisava do

maná diariamente, assim também precisamos diariamente do nosso pão.

Nós confessamos que somos pobres, fracos, criaturas necessitadas, e

suplicamos a Deus, nosso Criador, que tome conta de nós. Pedimos pão

como a mais simples das nossas necessidades materiais; mas, nessa

palavra, incluímos todas as necessidades do nosso corpo.

A sexta sentença é uma petição a respeito dos nossos pecados:

Page 40: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

40 Mateus 6.9-15

“perdoa-nos as nossas dívidas“. Confessamos que somos pecadores e que

precisamos receber diariamente o perdão de nossas transgressões. Esta é

uma parte da oração do Pai Nosso que merece ser especialmente

relembrada. Ela condena toda justiça-própria e auto-justificação. Somos

aqui instruídos a manter um hábito contínuo de confissão junto ao trono da

graça; e um hábito contínuo de buscar misericórdia e remissão. Que isto

jamais seja esquecido. Precisamos “lavar os pés” diariamente (Jo 13.10).

A sétima sentença é uma declaração atinente aos nossos sentimentos

para com o próximo: rogamos ao Pai que nos perdoe “as nossas dívidas

assim como nós temos perdoado aos nossos devedores”. Esta é a única

declaração de um compromisso nosso para com Deus que aparece em toda

a oração, e a única parte da oração na qual Jesus se detém para fazer um

comentário posterior. Jesus nos relembra que não devemos esperar receber

o perdão, quando oramos, se o fizermos com malícia ou rancor no coração,

para com os outros. Orar com tal atitude mental é mero formalismo e

hipocrisia. É ainda pior do que hipocrisia. E como dizer: “Não me perdoe”.

Nossa oração nada vale sem amor. Não devemos esperar ser perdoados, se

nós não conseguimos perdoar.

A oitava sentença é uma petição a respeito de nossas fraquezas: “não

nos deixes cair em tentação”. Ela nos ensina que a todo momento podemos

ser enganados e cair em transgressão. Ela nos instrui a confessar nossas

debilidades, e a buscar a Deus para nos sustentar e não nos deixar andar em

pecado. Rogamos que ele, que ordena todas as coisas no céu e na terra, não

nos deixe incorrer naquilo que é prejudicial às nossas almas, e que jamais

permita que sejamos tentados acima do que somos capazes de suportar (1

Co 10.13).

A nona sentença é uma petição acerca dos perigos que nos ameaçam:

“livra-nos do mal”. Somos aqui ensinados a pedir que Deus nos livre do

mal existente neste mundo, do mal que está dentro dos nossos próprios

corações, e, não menos importante, do maligno, que é o diabo.

Confessamos que, enquanto estamos no corpo, estamos constantemente

vendo, ouvindo e sentindo a presença do mal. Ele está do nosso lado,

dentro de nós e ao nosso redor, por todos os lados. Assim rogamos a Deus,

que é o único que pode nos preservar, para que sejamos continuamente

libertos do poder do mal (Jo 17.15).

A última sentença é uma atribuição de louvor: “teu é o reino, o poder

e a glória”. Com tais palavras, declaramos a nossa crença de que os reinos

deste mundo são legítima propriedade de nosso Pai celestial, que a Ele

pertence todo o poder, e que só Ele merece receber toda glória.

Concluímos a grande oração oferecendo ao Senhor a profissão dos nossos

corações, de que Lhe conferimos toda honra e louvor,

Page 41: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 6.9-15 41

e nos regozijamos no fato de que Ele é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores.

Agora, examinemos a nós mesmos, para saber se realmente de-

sejamos ter as coisas que somos ensinados a pedir, nesta oração. É de temer

que milhares de pessoas repitam formalmente estas palavras, dia após dia,

sem jamais considerarem o que estão dizendo. Eles não têm a menor

preocupação com a glória, o reino ou a vontade do Senhor. Não têm nenhum

senso de dependência, de pecaminosidade, de fraqueza pessoal ou de

perigo. Não têm amor nem compaixão para com os seus inimigos. E, ainda

assim, repetem a oração do Pai Nosso! As coisas não deveriam ser assim.

Que nós possamos tomar uma decisão e, com a ajuda de Deus, fazer com

que nossos lábios e nossos corações caminhem juntos! Bem-aventurado é

quem verdadeiramente pode chamar Deus de Pai celestial, por intermédio

de Jesus Cristo, seu Salvador, e que, portanto, pode sinceramente dizer

“Amém”, de todo o coração, a tudo quanto a oração do Pai Nosso contém.

A Maneira Correta de Jejuar; O Tesouro

no Céu, e Exortações Leia Mateus 6.16-24

Nesta parte do Sermão da Montanha, nosso Senhor nos fala de três

assuntos. Estes são o jejum, o mundanismo e a importância de se ter um

propósito bem definido em se tratando de religião.

O jejum, ou a abstinência ocasional de alimentos, a fim de trazer o

corpo em sujeição ao espirito, é uma prática frequentemente mencionada na

Bíblia, e geralmente vinculada à oração. Davi jejuou quando seu filho

recém-nascido adoeceu gravemente. Daniel jejuava quando buscava uma

orientação especial da parte de Deus. Paulo e Barnabé jejuavam quando

apontavam os anciãos para as igrejas locais. Ester jejuou antes de

apresentar-se ao rei Assuero. O jejum é um assunto sobre o qual não

encontramos nenhum mandamento direto no Novo Testamento. Parece ser

deixado a critério de cada um, se vai jejuar ou não. Nisto há grande

sabedoria. Muitos homens pobres nunca têm o suficiente para comer, e seria

um insulto ordenar-lhes o jejum. Muitos enfermos têm dificuldade em se

alimentar bem, mesmo dando toda atenção à dieta, e o jejum contribuiria

para agravar ainda mais a doença. Esta é uma questão em que cada um

precisa estar persuadido em sua própria mente, e não ser precipitado em

condenar os que não concordem com ele. Somente um ponto jamais deve

ser esquecido. Quem

Page 42: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

42 Mateus 6.16-24

jejua, deve fazê-lo quietamente, em segredo e sem ostentação. Deve fazê-lo

de maneira a não parecer aos homens que jejua. Que não jejue para os

homens, mas para Deus.

O mundanismo é um dos maiores perigos que ameaça a alma do ser

humano. Não é para admirar, portanto, encontrarmos nosso Senhor falando

decididamente contra isso. Trata-se de um inimigo insidioso, astuto e muito

enganador. Parece tão inocente dar atenção especial aos nossos negócios!

Parece tão inofensivo procurar a felicidade neste mundo, desde que

estejamos limpos de pecados mais visíveis! No entanto, esta é uma pedra

contra a qual muitos podem naufragar para toda a eternidade. Eles

acumulam “tesouros sobre a terra” e esquecem de ajuntar “tesouros nos

céus”. Que todos nos lembremos disto! Onde está posto o meu coração? O

que amo acima de tudo o mais? Os meus maiores afetos estão ligados às

coisas deste mundo, ou às realidades celestiais? A morte e a vida dependem

da resposta que formos capazes de dar a estas indagações. Se o nosso

tesouro está sobre a terra, nossos corações serão terrenos — “porque onde

está o teu tesouro, aí estará também o teu coração”.

Ter um propósito bem definido é um dos maiores segredos da

prosperidade espiritual. Se os nossos olhos não vêem distintamente, não

podemos caminhar sem tropeçar e cair. Se tentarmos trabalhar para dois

mestres diferentes, poderemos ter a certeza de não satisfazer nem a um nem

a outro. Acontece o mesmo a respeito de nossas almas. Não podemos servir

a Cristo e ao mundo ao mesmo tempo. Isto simplesmente não pode ser feito.

A arca da aliança e a estátua de Dagom jamais permanecerão juntas. Deus

deve ser Rei sobre os nossos corações. A Lei de Deus, a sua vontade e os

seus preceitos devem receber a nossa primeira atenção. Então, e somente

então, todas as coisas se ajustarão em seus devidos lugares em nosso

homem interior. A menos que os nossos corações estejam assim, tão bem

ordenados, tudo mais estará em confusão: “Todo o teu corpo estará em

trevas”.

Com a instrução do Senhor acerca do jejum, aprendamos a grande

importância do contentamento, em nossa religião. As palavras, “unge a

cabeça e lava o rosto”, são repletas de profundo significado. Elas deveriam

nos ensinar a ter por alvo permitir que os homens vejam que o cristianismo

nos faz estar contentes. Jamais nos esqueçamos de que não existe religião

alguma em parecermos melancólicos e tristes. Estamos insatisfeitos com

Cristo e o serviço do seu reino? Certamente que não! Então não tenhamos a

aparência de quem está insatisfeito.

Aprendamos, com base na advertência do Senhor acerca do mun-

danismo, como é grande a necessidade que todos nós temos de vigiar e orar

contra um espírito mundano, O que está fazendo a vasta maioria

Page 43: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 6.16-24 43

de professos “cristãos” ao nosso redor? Estão acumulando “tesouros na

terra”. Quanto a isso não há dúvida. Os seus gostos, hábitos e pro-

cedimentos nos contam uma temível história: eles não estão ajuntando

“tesouros no céu”. Oh, cuidemos, todos, de não cairmos no inferno,

somente porque damos atenção excessiva a coisas que são perfeitamente

legítimas! A transgressão notória da lei de Deus mata os seus milhares, e o

mundanismo os seus dez milhares!

Aprendamos, com base no que nosso Senhor disse acerca dos

“olhos bons”, o verdadeiro segredo das falhas que tantos cristãos parecem

cometer, em sua religião. Há fracassos por toda parte. Existem milhares de

pessoas, em nossas igrejas, que se sentem desconfortáveis, irrequietas e

insatisfeitas consigo mesmas, sem mesmo saber por quê. A razão disso está

aqui revelada: eles querem estar de bem com Deus e com o mundo. Estão

tentando agradar a Deus e aos homens, servir a Cristo e ao mundo, ao

mesmo tempo. Não incorramos nesse erro. Que nós sejamos decididos e

radicais, inflexíveis seguidores de Cristo. Que o nosso lema seja o mesmo

do apóstolo Paulo: “Uma cousa faço” (Fp 3.13). Então seremos cristãos

felizes. Sentiremos o sol brilhando sobre as nossas faces! Coração, mente e

consciência, estarão todos cheios de luz. Determinação é o segredo da

felicidade na religião cristã. Seja crente decidido, e então, “todo o teu corpo

será luminoso”.

A Proibida Preocupação Com Este Mundo Leia Mateus 6.25-34

Estes versículos revelam o misto da sabedoria e compaixão do

Senhor Jesus Cristo em seus ensinos. Ele conhece o coração humano. Ele

sabe que todos nós estamos prontos a desconsiderar as suas advertências

contra o mundanismo, com o argumento de não poder evitar estarmos

ansiosos acerca das coisas desta vida. * „Acaso não precisamos suprir o

necessário para nossas famílias? Será que não precisamos atender às nossas

necessidades materiais? Como poderemos vencer na vida, se dermos

atenção principal às nossas almas?” O Senhor Jesus previu tais

pensamentos e nos forneceu uma resposta.

Ele nos proíbe de manter um espírito de ansiedade e solicitude quanto

às coisas deste mundo. Por quatro vezes Ele nos diz: “Não andeis

ansiosos...” com a vida, com a alimentação, com o vestuário e com o

amanha. “Não andeis ansiosos.” Não se preocupe demais; não esteja

demasiadamente aflito. É correto fazer uma provisão cautelosa para o

futuro; mas a fadiga excessiva, a preocupação desgastante, a ansiedade que

atormenta — tudo isso está errado.

Page 44: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

44 Mateus 6.25-34

Jesus nos lembra do cuidado providencial que Deus continuamente tem

para com tudo quanto Ele criou. Ele nos deu “vida”? Então, certamente não

permitirá que coisa alguma nos falte para a manutenção dessa vida. Ele nos

deu um corpo? Então, certamente não nos deixará morrer por falta de

agasalho. Ele que nos deu o ser, sem dúvida encontrará alimentos para nos

sustentar.

Jesus mostra a inutilidade da ansiedade excessiva. A nossa vida está

inteiramente nas mãos de Deus. Nem mesmo toda a ansiedade do mundo

nos fará viver um minuto além do tempo que Deus determinou para nós.

Não morreremos enquanto a nossa obra não estiver terminada.

Ele nos manda observar as “aves do céu”, para recebermos ins-

trução. Elas não fazem qualquer provisão para o futuro: * „não semeiam,

nem colhem ...” Elas não “ajuntam em celeiros” para prevenir o futuro.

Literalmente, as aves vivem, dia após dia, daquilo que conseguem

encontrar usando o instinto que Deus lhes deu. Devemos aprender, com as

aves, que Deus jamais permitirá cair em miséria quem estiver cumprindo

seu dever, no lugar em que Deus o colocou.

Jesus também nos manda observar “os lírios do campo”. Ano após

ano, eles se adornam com as mais alegres cores, sem o menor trabalho ou

esforço. “Eles não trabalham nem fiam.” Deus, pelo seu infinito poder, os

veste de beleza sem par, a cada estação. Este mesmo Deus é o Pai de todos

os crentes. Por que deveriam duvidar de que Ele é capaz de lhes prover as

vestes necessárias, tal como o faz para os lírios do campo? Ele que toma

cuidado das flores do campo, que são passageiras, certamente não

negligenciará os corpos nos quais habitam almas imortais.

Jesus nos dá a entender que a excessiva preocupação com as coisas

deste mundo é algo extremamente indigno de um cristão. Uma grande

característica do paganismo é viver para o presente. Deixe que os pagãos

estejam ansiosos, se assim desejarem. Eles nada sabem a respeito de um Pai

celestial. Mas os cristãos, que têm um maior conhecimento e uma visão

clara da realidade, devem dar prova disso, pela sua fé e contentamento.

Quando perdemos alguém que amamos, não devemos nos entristecer

“como os demais, que não têm esperança” (1 Ts 4.13). Quando tentados

pelas ansiedades desta vida, não devemos estar por demais preocupados,

como se não tivéssemos nem Deus e nem Cristo.

Cristo nos ofereceu uma graciosa promessa, como um remédio contra

a ansiedade de espírito. Ele nos garante que, se buscarmos primeiro, e

acima de tudo, um lugar no reino de graça e glória, então todas as coisas de

que realmente precisamos nos serão dadas. Todas estas coisas vos serão

“acrescentadas”, acima e além da herança celestial. “Todas as cousas

cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”

Page 45: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 6.25-34 45

(Rm 8,28). “O Senhor dá graça e glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente” (Sí 84.11).

Por fim, Jesus sela a sua instrução sobre este assunto com uma das

mais sábias afirmações: "o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu

próprio mal”. Não devemos carregar preocupações antes do tempo próprio.

Devemos atender às ocupações do dia de hoje e deixar as preocupações do

amanhã para quando raiar o novo dia. Podemos morrer antes do amanhecer!

A única coisa de que podemos ter certeza é que, se o dia de amanhã nos

trouxer uma cruz, Aquele que a envia pode, e irá, nos enviar a graça

necessária para carregá-la.

Em toda essa passagem existe um tesouro de lições de ouro. Pro-

curemos usá-las na nossa vida diária. Que não apenas leiamos essas lições,

mas que as ponhamos em prática. Vigiemos e oremos contra um espírito

ansioso e excessivamente preocupado. Isto afeta profundamente a nossa

felicidade. Metade das nossas misérias são causadas pela ilusão de coisas

que nós pensamos estarem vindo sobre nós. Metade das coisas que

imaginamos estarem vindo sobre nós, na verdade jamais acontecem. Onde

está a nossa fé? Onde está a confiança que temos nas palavras de nosso

Salvador? Lendo estes versículos bem podemos nos envergonhar de nós

mesmos, para então examinarmos os nossos corações. Contudo, podemos

ter certeza de que as palavras de Davi expressam uma grande verdade: „„Fui

moço, e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a

sua descendência a mendigar o pão” (SI 37.25).

A Censura é Proibida;

À Oração é Encorajada

Leia Mateus 7.1-12

A primeira parte destes versículos é uma das passagens bíblicas que

precisamos ter o cuidado de não forçar para além do seu devido significado.

Esta parte é freqüentemente corrompida e aplicada de modo errôneo pelos

inimigos da verdadeira religião. É possível pressionar de tal maneira as

palavras da Bíblia que elas acabam produzindo não o remédio espiritual, e,

sim, veneno.

Nosso Senhor não intencionava de modo algum dizer que é errado

proferir um juízo desfavorável sobre a conduta e a opinião de outras

pessoas. Precisamos ter opiniões bem formadas e decididas. Devemos

julgar todas as cousas” (1 Ts 5.21), Devemos provar „„os espíritos” (1 Jo

4.1). Nem, tampouco, Cristo quis dizer que seja errado reprovar

Page 46: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

46 Mateus 7.1-12

os pecados e as faltas de outras pessoas, enquanto nós mesmos não te-

nhamos atingido a perfeição e não estejamos destituídos de falta. Tal

interpretação seria uma contradição a outras passagens da Escritura. Isso

tomaria impossível condenar o erro e as falsas doutrinas. Seria um

impedimento para qualquer um que desejasse ser ministro do evangelho ou

juiz. A terra estaria nas mãos dos perversos (Jó 9.24). As heresias se

espalhariam. Os malfeitores se multiplicariam por toda a parte.

O que nosso Senhor condena é um espírito crítico que em tudo

encontra alguma falta. A prontidão em condenar as pessoas por causa de

pequenas coisas ou questões de pouca importância, o hábito de fazer

julgamentos duros e precipitados, a disposição em exagerar os erros e

fraquezas do próximo, e de sempre pensar o pior — isso tudo nosso Senhor

nos proíbe. Essas coisas eram comuns entre os fariseus, e continuam sendo

comuns desde aquela época, até hoje. Todos precisamos vigiar para não

cairmos em tal erro. O amor “tudo crê, tudo espera” das outras pessoas, e

nós deveríamos ser muito vagarosos em procurar defeitos no nosso

próximo. Esse é o verdadeiro amor cristão (1 Co 13).

A segunda lição contida nesta passagem é a importância de se ter

discrição quanto à pessoa com quem falamos sobre os assuntos de religião.

Tudo é maravilhoso no seu devido tempo e lugar. Nosso zelo deve ser

temperado por uma prudente consideração acerca da ocasião, do lugar e

das pessoas a quem nos dirigimos. Salomão disse: “Não repreendas o

escarnecedor, para que te não aborreça” (Pv 9.8). Não é sábio abrir o

coração com todo mundo, a respeito das coisas espirituais. Há muitos que

por causa de um temperamento violento, ou de hábitos abertamente

pervertidos, são totalmente incapazes de dar valor às verdades do

evangelho. Podem mesmo explodir de ira e cair em maiores pecados, se

você tentar fazer bem às suas almas. Mencionar o nome de Cristo a tais

pessoas é como lançar pérolas aos porcos. Isso não lhes faz bem, e, sim,

mal. A tentativa só fará despertar nessas pessoas toda a sua corrupção, e as

deixa furiosas. Em suma, eles são como os judeus de Corinto (At 18.6), ou

como Nabal, acerca de quem ficou registrado: “ele é filho de Belial, e não

há quem lhe possa talar” (1 Sm 25.17).

Esta é uma lição particularmente difícil de se usar de maneira

adequada. É preciso muita sabedoria para aplicá-la corretamente. A ma-

ioria de nós inclina-se muito mais a errar por excesso de cautela do que por

excesso de entusiasmo. Geralmente tendemos muito mais por lembrar “o

tempo de estar calado” do que “o tempo de falar”. Não obstante, esta é uma

lição que deveria despertar em nós um espírito de auto-inquirição. Acaso,

nós mesmos, às vezes, não desencorajamos os nossos amigos quando eles

tentam nos dar bons conselhos, pela nossa

Page 47: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 7.1-12 47

morosidade ou irritabilidade de temperamento? Nunca obrigamos outras

pessoas a se manterem em silêncio e a nada dizerem, por causa do nosso

orgulho ou impaciente desprezo pelos conselhos que recebemos? Será que

nunca nos voltamos contra os nossos gentis conselheiros, e os silenciamos

pela nossa violência e ira? Infelizmente, com razão podemos temer que

nós também temos errado quanto a essa questão!

A última lição contida nesta passagem é o dever de orar, e os ricos

encorajamentos à oração. Existe uma maravilhosa conexão entre esta lição

e aquela que lhe antecede. Queremos saber quando estar em silêncio‟ ‟ e

quando “falar”? quando devemos apresentar as coisas “santas” e quando

expor as nossas “pérolas”? Então devemos orar. Este é um assunto ao qual

o Senhor Jesus evidentemente atribui grande importância. A linguagem

que Ele usa é uma prova clara. Ele emprega três vocábulos diferentes para

exprimir a idéia de oração: “Pedi... buscai... batei... ‟ Jesus reserva as

maiores e mais ricas promessas para os que oram. “Pois todo o que pede,

recebe.” Ele ilustra a disposição de Deus em ouvir as nossas orações,

mediante um argumento extraído da prática corriqueira dos pais para com

seus filhos. Ainda que os pais sejam maus e egoístas por natureza, não

negligenciam as necessidades de seus filhos segundo a carne. Muito mais

um Deus de amor e misericórdia atenderá aos clamores daqueles que são

seus filhos, mediante a graça.

Devemos dar atenção especial a estas palavras de nosso Senhor a

respeito da oração. Bem poucos dos seus ensinamentos, talvez, sejam tão

bem conhecidos e tão frequentemente repetidos quanto estes. Mesmo os

mais pobres e ignorantes sao capazes de dizer que “quem procura, acha .

Mas, de que adianta saber estas cousas, se não fazemos uso delas? O

conhecimento não aprimorado e não bem empregado, servirá apenas para

agravar a nossa condenação no dia do juízo.

Será que sabemos como pedir, buscar e bater? Por que razão não

saberíamos? Nada existe tão simples e claro quanto a oração, se o homem

realmente tem o desejo de orar. Mas, infelizmente, não existe nada que os

homens menos se disponham a fazer. Eles fazem uso de muitas formas de

religiosidade, cumprem muitas ordenanças e fazem muitas coisas que

estão certas, mas não estão dispostos a orar. Todavia, sem oração,

nenhuma alma jamais se salvará.

Será que realmente oramos? Em caso contrário, quando chegarmos

na presença de Deus, ficaremos sem desculpa, a menos que nos

arrependamos em tempo. Não seremos condenados por não fazer aquilo

que não poderíamos ter feito, ou por não saber aquilo que não poderíamos

ter conhecido. Entretanto, descobriremos que uma das principais razões

porque estamos perdidos é porque nunca pedimos para ser salvos.

Page 48: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

48 Mateus 7.1-12

Será que de fato oramos? Então oremos ainda mais, sem nunca

desanimar. Orar nunca é trabalho perdido, nem em vão. Haverá um dia de

produzir fruto, mesmo que se passe muito tempo. Esta palavra de Jesus

nunca falhou: “Pois todo o que pede, recebe”.

A Regra de Dever Para Com o Próximo; As Duas Portas;

Advertências Contra os Falsos Profetas Leia Mateus 7.13-20

Neste segmento do Sermão da Montanha, nosso Senhor direciona o

seu discurso para uma conclusão. As lições que Ele aqui enfatiza são

gerais, amplas e repletas da mais profunda sabedoria. Observemos tais

lições, uma por uma.

Jesus lançou um princípio geral para nossa orientação, para todas as

questões duvidosas que surgem entre uma pessoa e outra. Devemos fazer

aos outros conforme desejamos que eles nos façam. Não devemos tratar as

outras pessoas à maneira como elas nos tratam. Isto é mero egoísmo e

paganismo. Devemos tratar com as outras pessoas conforme gostaríamos

que elas tratassem conosco. O verdadeiro cristianismo é isso.

Esta de fato é uma regra de ouro! Ela não somente nos proíbe toda

malícia e vingança, todo exagero e falsidade; ela vai muito além, e resolve

uma centena de pontos difíceis que surgem continuamente entre um

homem e seu próximo, num mundo como este. Ela toma desnecessário

estabelecer uma série interminável de pequenas regras para nossa conduta

quanto a casos específicos. Ela abrange todos os possíveis argumentos com

um único e poderoso princípio. Mostra-nos um padrão bem equilibrado e

uma medida pela qual todos podemos perceber, de imediato, o nosso dever.

Existe algo que não gostaríamos que alguém fizesse contra nós? Então,

jamais nos esqueçamos de que é exatamente isso que não devemos fazer às

outras pessoas. Haverá alguma coisa que gostaríamos que outras pessoas

fizessem por nós? Então é precisamente isso que devemos fazer em favor

de outras pessoas. Quantas questões intrincadas seriam decididas

prontamente, se esta regra fosse honestamente praticada!

Em segundo lugar, nosso Senhor nos dá uma advertência geral contra

a maneira como muitos agem quanto à religião. Não podemos ficar satisfeitos

em seguir a moda e nadar na corrente daqueles entre os quais vivemos.

Jesus nos diz que o caminho que conduz à vida eterna é apertado, e poucos

são os que por ele caminham. Ele nos diz que

Page 49: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 7.13-20 49

o caminho que conduz à perdição é espaçoso e está repleto de viajantes. São muitos os que entram peio caminho largo.

Estas são verdades terríveis! Elas deveriam suscitar, em todos os

que as ouvem, um profundo auto-exame no coração. "Em que caminho

estou seguindo? Em qual estrada estou viajando?" Todos nós seguimos por

um ou outro desses dois caminhos. Que Deus nos dê um espírito honesto e

inquisitivo, e nos mostre o que realmente somos!

Deveríamos estar preocupados e temerosos se a nossa religião é a

mesma das multidões. Se o que de melhor poderíamos afirmar é que nós

„„vamos onde outros estão indo, freqüentamos a mesma igreja e esperamos

que, no final, seremos tão bem sucedidos quanto os outros", estaremos

literalmente pronunciando a nossa própria condenação. O que isto significa

senão que estamos seguindo pelo caminho largo? O que significa isso,

senão que estamos seguindo no' 'caminho que conduz para a perdição"?

Nessa altura, a nossa religião não é a religião que salva.

Não temos motivo algum para nos sentirmos desencorajados e

abatidos, se a religião que professamos não é popular, e se poucos con-

cordam conosco. Devemos lembrar as palavras de nosso Senhor Jesus

Cristo, nesta passagem: "estreita é a porta". O arrependimento, a fé em

Cristo e a santidade na vida nunca estiveram na moda. O verdadeiro rebanho

de Cristo sempre tem sido pequeno. Não devemos estranhar se descobrimos

que somos reputados como pessoas estranhas, esquisitas, fanáticas e de

mente estreita. Este é o "caminho apertado". Certamente é melhor alguém

entrar na vida eterna na companhia de uns poucos do que ir para a perdição

em companhia de muitos.

Em último lugar, o Senhor Jesus nos dá uma advertência geral contra

os falsos mestres na igreja. Devemos nos acautelar dos falsos profetas. A

conexão entre esta passagem e a anterior é impressionante. Queremos ficar

bem longe do "caminho largo”? Então, devemos estar precavidos contra

falsos profetas, pois haverão de surgir. Eles começaram a aparecer já nos

dias dos apóstolos. Desde aquele tempo as sementes do erro têm sido

lançadas. Desde então, eles tem aparecido continuamente. Precisamos estar

preparados contra eles, mantendo-nos sempre em guarda.

Esta é uma advertência de que muito precisamos. Há milhares de

pessoas que parecem estar sempre prontas a crer em qualquer coisa que

ouvirem, desde que venha dos lábios de alguém que tenha o título de

ministro religioso. Esquecem-se que um clérigo pode errar, tanto quanto ura

leigo. Eles não são infalíveis. O que eles ensinam precisa ser confrontado

com os ensinamentos das Sagradas Escrituras. Só devemos seguir tais

ministros, e crer no que ensinam enquanto as doutrinas

Page 50: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

50 Mateus 7.13-20

por eles ensinadas concordarem com a Bíblia, e nem um minuto a mais.

Devemos fazer prova deles, pelos “seus frutos”. Sã doutrina e vida santa

são sinais característicos dos verdadeiros profetas. Lembremo- -nos disto.

Os erros dos nossos ministros não justificam os nossos próprios erros. “Se

um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco” (Mt 15.14).

Qual a melhor salvaguarda contra falsos ensinamentos? Sem sombra

de dúvida, a resposta é o estudo regular da Palavra de Deus, sempre

acompanhado de uma oração que rogue a iluminação do Espírito Santo. A

Bíblia foi-nos outorgada para ser uma lâmpada para os nossos pés e luz para

os nossos caminhos (SI 119.105). Deus não permitirá que quem a ler

corretamente caia em algum erro irremediável. A negligência para com a

Bíblia é que faz tantas pessoas se tornarem presas fáceis do primeiro falso

mestre que aparecer. Tais pessoas querem nos fazer acreditar que não são

“estudados”, e nem têm a “pretensão” de terem opiniões bem formadas. A

verdade é que são preguiçosos, negligenciam a leitura da Bíblia, e não

querem ter o trabalho de pensar por si mesmos. Não existe nada que forneça

tantos seguidores para os falsos profetas do que a preguiça espiritual,

disfarçada sob uma capa de humildade.

Que todos nós possamos sempre ter em mente a advertência do

Senhor! O mundo, o diabo e a carne não são os únicos perigos no caminho

do cristão. Há ainda um outro: o “falso profeta”, o lobo disfarçado em pele

de ovelha. Feliz é quem estuda a Bíblia e ora, e sabe a diferença entre a

verdade e o engodo, na religião! Existe uma diferença, e nós deveríamos

reconhecê-la muito bem, fazendo uso do conhecimento que nos foi

outorgado.

Á Inutilidade da Profissão Religiosa Sem a

Prática; Os Dois Construtores Leia Mateus 7.21-29

O Senhor Jesus encerra o Sermão da Montanha com uma aplicação

penetrante. A sua admoestação abrange desde os falsos profetas até os

“professos” cristãos, desde falsos mestres até ouvintes negligentes. Eis aqui

uma palavra para todos. Que nós possamos aplicá-la aos nossos próprios

corações!

A primeira lição aqui, é a inutilidade de uma profissão meramente

externa do cristianismo. Nem todos os que dizem “Senhor, Senhor” entrarão

no reino dos céus. Nem todos os que professam o cristinianismo, ou se

dizem cristãos, serão salvos.

Page 51: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 7.21-29 51

Prestemos atenção a este fato: para salvar uma alma é preciso muito

mais do que a maioria das pessoas parece julgar necessário. Podemos até

ter sido batizados em nome de Cristo, e nos orgulbar presunçosamente em

nossos privilégios eclesiásticos. Podemos ser donos de grande

conhecimento intelectual, e estar bem satisfeitos com a nossa condição.

Podemos até mesmo ser pregadores e mestres sobre outrem, e fazer 'muitas

obras maravilhosas” em conexão com a igreja a que pertencemos. Mas,

durante todo esse tempo, temos praticado a vontade do Pai celeste? Temos

verdadeiramente nos arrependido? Temos realmente confiado em Cristo e

vivido vidas santas e humildes? Se assim não for, a despeito de todos os

nossos privilégios, e do nosso professo cristianismo, perderemos o céu

afinal, e seremos rejeitados para todo o sempre. Ouviremos aquelas

terríveis palavras: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que

praticais a iniqüidade”.

O dia do juízo final haverá de revelar coisas muito estranhas. As

esperanças de muitos dos que foram considerados grandes cristãos, quando

em vida, serão totalmente vãs. A corrupção de sua religião será

desmascarada e lançada ao opróbrio, perante os olhos do mundo inteiro. E

então ficará provado que, para ser salvo, é necessário muito mais do que

apenas “uma profissão de fé”. Devemos praticar o nosso cristianismo,

tanto quanto professá-lo. Que nós com frequência nos lembremos desse

grande dia do juízo, e nos julguemos a nós mesmos, para não sermos

julgados e condenados (1 Co 11.31) pelo Senhor. Sem importar o que mais

sejamos, que o nosso alvo consista em sermos reais, verdadeiros e

sinceros.

A segunda lição, nesta passagem, é um impressionante quadro das

duas classes de ouvintes — os que ouvem, mas não praticam; e os que não

apenas ouvem, mas põem em prática o que ouvem, com os seus respectivos

destinos traçados até o fim.

Quem ouve o ensino cristão e põe em prática o que ouve, é como o

“homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha”. Ele não se

contenta em apenas ouvir exortações ao arrependimento, exortações a

confiar em Cristo e a viver uma vida santa. Ele de fato se arrepende. Ele

realmente crê. Ele realmente abandona a prática do mal, aprende a fazer o

bem, abomina tudo que é pecaminoso e apega-se ao que é bom. Ele não só

é um ouvinte, mas também é um praticante (Tg 1.22).

E qual é o resultado de tudo isso? Em tempos de provação, a sua

religião não o desampara. Os dilúvios de enfermidade, tristeza, pobreza,

desapontamento e desolações desabam sobre ele, mas em vão. A sua alma

permanece inabalável. A sua fé não cede terreno. Nunca é destituída de

conforto. A sua religião talvez lhe tenha custado tribulações, em tempos

passados. Os seus alicerces podem ter sido obtidos

Page 52: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

52 Mateus 7.21-29

com muito esforço e lágrimas. Para descobrir o seu interesse pessoal na

pessoa de Cristo, talvez ele tenha passado muitos dias de buscas in-

cessantes, muitas horas de luta em oração. Porém, os seus labores não

foram em vão. Agora ele colhe uma rica recompensa. A religião verdadeira

é aquela que é capaz de resistir à provação.

O homem que ouve o ensino cristão, mas nunca passa da mera fase

do ouvir, assemelha-se a “um homem insensato, que edificou a sua casa

sobre a areia”. Contenta-se unicamente em ouvir e aprovar; porém, não vai

além disso. Por ter alguns sentimentos, convicções e desejos^ de natureza

espiritual ele imagina que vai tudo bem com sua alma. E nessas coisas que

ele confia. Ele nunca rompe, de fato, com o pecado ou põe de lado o

espírito mundano. Ele, na verdade, nunca se apropria de Cristo. Nunca

toma realmente a sua cruz. É ouvinte da verdade, mas nada mais.

E qual é o fim da religiosidade desse homem? Ela é demolida

inteiramente, sob a primeira torrente de tribulações. Na hora de maior

necessidade, a sua religião o desampara completamente, como uma fonte

que seca durante o verão. Ela o deixa em seco, como um barco naufragado

sobre um banco de areia — um escândalo para a igreja, uma zombaria na

boca do incrédulo e uma miséria para si mesmo. A grande verdade é que, o

que custa pouco, vale pouco! Uma religião que nada nos custa, e que não

consista em outra coisa, senão em ouvir sermões, sempre provará ser uma

atividade inútil, por fim.

E assim que termina o Sermão do Monte. Jamais se tinha pregado

um sermão como este anteriormente. Talvez jamais se pregou outro igual

desde então. Cuidemos para que ele tenha uma influência duradoura e

permanente sobre nossa alma. Ele foi dirigido tanto a nós como àqueles

que primeiro o ouviram. Nós somos os que terão de prestar contas pelas

lições deste sermão, lições que nos sondam o coração. O que pensamos a

respeito destas lições não é questão de pouca importância. A palavra que

Jesus tem proferido, essa mesma palavra nos julgará no último dia (Jo

12.48).

Curas de Lepra, de Paralisia e de Febre Leia Mateus 8.1-15

No oitavo capítulo do evangelho de Mateus são descritos nada

menos do que cinco milagres efetuados por nosso Senhor. Nisto há uma

maravilhosa concordância. Convinha que o maior sermão jamais pregado,

fosse imediatamente seguido por uma forte prova de que o pregador

Page 53: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 8.1-15 53

era o Filho de Deus. Aqueles que ouviram o Sermão do Monte foram

forçados a confessar que, assim como „ „jamais alguém falou como este

homem , assim, também, ninguém jamais fez tais prodígios.

Nos versículos que acabamos de ler encontramos três grandes

milagres. Um leproso é curado com um toque da mão de Jesus. Um

paralítico é curado por uma palavra. E uma mulher, doente com febre,

recebe de volta, em um instante, a saúde e o vigor. Em face destes três milagres, podemos perceber três notáveis lições. Examinemos estas lições, guardando-as no coração.

Antes de tudo, aprendamos quão grande é o poder de nosso Senhor

Jesus Cristo. A lepra é uma das mais temíveis entre as enfermidades que

podem afetar o corpo de uma pessoa. O portador dessa doença

assemelhava-se a um morto-vivo. Era uma doença que os médicos con-

sideravam incurável (2 Rs 5.7). Mesmo assim, Jesus disse: “Fica limpo! E

imediatamente ele ficou limpo da sua lepra“. Curar uma pessoa da paralisia,

sem ao menos tê-la visto, apenas dizendo uma palavra, é fazer algo que as

nossas mentes nem mesmo podem conceber. Ainda assim, Jesus ordenou, e

a cura se deu imediatamente. Dar a uma mulher acamada pela febre, não

apenas o alívio da febre, mas, também, o imediato restabelecimento de suas

forças para trabalhar, é algo que ultrapassa as habilidades de qualquer

médico. No entanto, Jesus “tomou pela mão“ a sogra de Pedro e a febre a

deixou“. “Ela se levantou e passou a servi-lo.“ Estas são obras de quem é

todo-poderoso. Não há como escapar à conclusão lógica: “Isto é o dedo de

Deus“ (Êx 8.19).

Encontramos aqui uma base bem ampla para a fé cristã! No evan-

gelho somos instruídos a vir a Jesus, a confiar nBIe, a viver a vida de fé em

Jesus. Somos encorajados a depender de Jesus, a lançar sobre Ele todos os

nossos cuidados, a apoiar nEle todo o peso de nossas almas. Podemos

fazê-lo sem qualquer dúvida ou temor. Jesus pode suportar tudo. Ele é uma

rocha inabalável. Ele é o Todo-poderoso. Um antigo santo do Senhor

declarou: “A minha fé pode repousar com segurança sobre nenhum outro

apoio, senão a onipotência de Cristo“. Ele pode dar vida aos mortos, poder

aos fracos e multiplicar “as forças ao que não tem nenhum vigor“ (Is 40.29).

Confiemos nEle e não toleremos qualquer receio. O mundo está repleto de

armadilhas. Nossos corações são fracos, mas com Jesus nada é impossível.

Ademais, aprendamos quão misericordioso e compassivo é nosso

Senhor Jesus Cristo. As circunstâncias dos três casos que ora consideramos

eram todas diferentes. Ele ouviu a triste petição do leproso: “Senhor, se

quiseres, podes purificar-me”. Falaram-Lhe do servo do centurião, mas

Jesus nunca o viu pessoalmente. Ele viu a sogra de Pedro acamada e

ardendo em febre“, porém, não lemos que ela tenha

Page 54: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

54 Mateus 8J-J5

dito uma única palavra. Não obstante, em cada caso o coração de nosso

Senhor Jesus Cristo mostra-se o mesmo. Ele prontamente demonstrou

misericórdia e a disposição de curar. Cada uma dessas pessoas recebeu a

sua tema compaixão, e cada uma recebeu a cura efetiva.

Eis aqui um outro fortíssimo fundamento para a nossa fé! O nosso

grande Sumo Sacerdote é extremamente gracioso. Ele pode

“compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb 4.15). Ele jamais se cansa de

nos fazer o bem. Ele sabe que nós somos um povo fraco e débil, em meio a

um mundo atribulado e cansado. Ele está tão pronto a ser

paciente conosco e a nos ajudar, como estava a 2000 anos atrás. Hoje

continua sendo uma verdade, tanto quanto nos tempos antigos, que Ele “a

ninguém despreza” (Jó 36.5). Nenhum coração pode sensibilizar-se tanto por nós quanto o coração de Cristo.

Em último lugar, aprendamos quão preciosa é a graça divina da fé.

Pouco sabemos a respeito do centurião descrito nestes versículos. O nome

dele, sua nacionalidade, sua história passada, nada disso nos é informado.

Entretanto, sabemos de uma coisa — que ele creu era Jesus. Declarou ele:

“Senhor, não sou digno de que entres em minha casa; mas apenas manda

com uma palavra, e o meu rapaz será curado”. Lembremo-nos de que ele

creu, enquanto os escribas e os fariseus eram incrédulos. Embora nascido

gentio, ele creu, enquanto o povo de Israel estava espiritualmente cego. A

respeito dele, nosso Senhor proferiu uma palavra de elogio que tem sido

lida por todo o mundo, desde aqueles dias até hoje: “Nem mesmo em Israel

achei fé como esta”.

Apeguemo-nos com firmeza a esta lição. Eia merece ser relem-

brada. Crer no poder de Cristo e na sua boa vontade em ajudar, e fazer uso

prático dessa nossa crença, é um dom raro e precioso. Devemos sempre

estar agradecidos por termos este dom. Estarmos dispostos a vir a Jesus não

tendo outra esperança, e reconhecendo a nossa condição de pecadores

perdidos, e entregar as nossas almas às mãos dEle, é um grande privilégio.

Que nós sempre demos graças ao Senhor se temos essa disposição, pois é

um dom de Deus. Essa fé é melhor do que todos os demais dons ou

conhecimentos neste mundo. Muitos humildes pagãos

agora convertidos, que de nada sabem senão da doença do pecado na alma,

mas que confiam em Jesus, haverão de assentar-se no céu, enquanto que

muitos doutores em teologia serão rejeitados para sempre.

Verdadeiramente abençoados são os que creemI

O que cada um de nós sabe a respeito dessa fé? Esta é uma grande

questão. O nosso conhecimento pode ser pequeno; mas, será que realmente

cremos? Nossas oportunidades para contribuir e trabalhar pela causa de

Cristo podem ser poucas; mas, cremos? Talvez não possamos pregar, nem

escrever um livro, e nem mesmo argumentar em favor do

Page 55: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 8.1-15 55

evangelho; mas, cremos? Que jamais descansemos enquanto não pu-

dermos responder afirmativamente a essa pergunta! A fé em Jesus Cristo,

para os filhos deste mundo, parece ser algo tão simples e insignificante.

Eles não vêem na fé nada de grande ou importante. Entretanto, a fé em

Cristo é preciosíssima aos olhos de Deus, e tal como tudo que é precioso, é

rara. É pela fé que vive o cristão verdadeiro. Ele permanece na fé. É pela fé

que o cristão vence o mundo. Sem essa fé, ninguém pode ser salvo.

Cristo e os Professos Cristãos;

À Tempestade Acalmada Leia Mateus 8.16-27

Na primeira parte destes versículos, encontramos um notável

exemplo da sabedoria de nosso Senhor ao tratar com os que manifestam a

disposição de se tomarem seus discípulos. Este trecho lança tanta luz sobre

um assunto freqüentemente mal compreendido em nossos dias, que

merece consideração especial.

Um certo escriba ofereceu-se para seguir nosso Senhor por onde

quer que Ele fosse. E uma proposta admirável, quando consideramos a

classe social que aquele homem pertencia e a ocasião em que foi proferida.

Mas, a proposição recebe uma resposta igualmente admirável, que não foi

diretamente aceita, embora também não fosse manifestamente rejeitada.

Nosso Senhor tao somente faz uma réplica solene: “as raposas têm seus

covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde

reclinar a cabeça”.

Um outro discípulo de nosso Senhor se apresenta em seguida,

pedindo que lhe fosse permitido sepultar o pai, antes de assumir total-

mente os deveres de discípulo. A primeira vista, tal pedido parece natural e

legítimo. Entretanto, a resposta dos lábios de nosso Senhor não foi menos

solene do que a primeira: „„Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar os

seus próprios mortos”.

Há algo de profundamente impressionante em ambas as respostas,

Elas deveriam ser devidamente consideradas por todos os que se

professam cristãos. O ensinamento é bem claro: as pessoas que mani-

festam o desejo de vir a frente, e se professam verdadeiros discípulos de

Cristo, deveriam ser claramente advertidas a “calcular o custo” antes de

começarem. Será que estão preparados para suportar as dificuldades?

Estão prontos a carregar a cruz? Se assim não é , tais pessoas ainda não

estão aptas para começar. As respostas de Jesus nos ensinam

Page 56: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

56 Mateus 8.16-27

claramente que há ocasiões em que o cristão precisa Hteralmente desistir

de tudo por amor a Cristo e, se necessário, mesmo deveres tão importantes,

como o sepultamento de pai ou mãe, devem ser deixados ao encargo de

outras pessoas. Sempre haverá quem esteja pronto a comparecer em nosso

lugar; mas tais deveres em tempo nenhum podem ser comparados ao dever

maior, que é o de pregar o evangelho e trabalhar pela causa de Cristo no

mundo.

Seria bom se estas palavras fossem mais constantemente relem-

bradas nas igrejas. Bem podemos temer que esta lição esteja sendo por

demais negligenciada pelos ministros do evangelho, e que muitas pessoas

estejam sendo admitidas à plena comunhão na igreja, sem jamais serem

advertidas a “calcular o custo”. De fato, nada tem feito maior dano ao

cristianismo do que a prática de encher as fileiras do exército de Cristo

com qualquer voluntário que esteja disposto a fazer uma pequena

profissão de fé, e que possa falar fiuentemente de sua experiência

religiosa. Infelizmente se tem esquecido que os números apenas não

significam poder. Pode haver uma grande quantidade de mera religio-

sidade externa, enquanto há muito pouco da verdadeira graça. Nunca nos

esqueçamos disto. Cuidemos para nada esconder aos recém- -convertidos

e às pessoas que agora estão começando a buscar a Deus. Não deixemos

que se enganem com falsas expectativas. Podemos dizer- -lhe que

receberão uma coroa de glória no fim, mas que nós também digamos, não

menos claramente, que existe uma cruz para ser carregada dia após dia.

Na última parte destes versículos, aprendemos que a fé salvadora

com freqtiência está permeada de multa fraqueza e instabilidade. Esta é uma

lição que nos deixa humilhados, mas que é deveras salutar.

O texto nos apresenta Jesus e os discípulos atravessando o mar da

Galiléia em uma embarcação. Surge uma tempestade, e o barco está em

perigo de se encher de água pela violência das ondas. Enquanto isso, nosso

Senhor está dormindo. Os discípulos atemorizados acordam Jesus e

clamam por socorro. Ele atende ao pedido e faz acalmar as águas com uma

palavra, de modo que "fez-se grande bonança”. Ao mesmo tempo, Ele

gentilmente censura a ansiedade de seus discípulos: “Por que sois tímidos,

homens de pequena fé?”

Temos aqui um retrato muito nítido do coração de milhares de

crentes! Há tantos que, mesmo possuindo suficiente fé e amor para aban-

donar tudo por causa de Cristo, e segui-Lo para onde quer que vá, ainda

assim, estão cheios de temores na hora da provação! Quantos têm graça

suficiente para se voltarem a Jesus em cada dificuldade, clamando:4 „Se-

nhor, salva-nos”, e ainda não têm graça suficiente para ficarem quietos na

hora difícil e confiarem que tudo está bem? Verdadeiramente, o crente

Page 57: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 8.16-27 57

tem razão de estar sempre cingido de humildade (1 Pe 5.5).

Que a oração: “Senhor, aumenta-nos a fé”, sempre faça parte das

nossas petições diárias. Talvez nunca conheceremos a fraqueza da nossa fé,

enquanto não formos postos na fornalha da tribulação e da ansiedade.

Felizes os que descobrem, por experiência, que a sua fé é capaz de resistir ao

fogo, e que podem, como Jó, dizer:“Ainda que ele me mate, nele esperarei”

(Jó 13.15).

Temos grandes razões para agradecer a Deus por Jesus, o nosso

grande Sumo Sacerdote, pois Ele é muito compassivo e temo de coração.

Ele conhece a nossa estrutura. Ele leva em conta as nossas enfermidades.

Ele não lança fora o seu povo por causa de defeitos. Ele se compadece

mesmo dos que repreende. A oração, mesmo de “pequena fé”, é ouvida e

obtém resposta.

Expulsão de Demônios na Terra dos Gadarenos Leia Mateus 8.28-34

O assunto destes sete versículos é profundo e misterioso. A expulsão

do demônio é aqui descrita com especial abundância de detalhes. Esta é uma

das passagens que lançam uma forte luz sobre um assunto difícil e obscuro.

Vamos deixar bem estabelecido em nossa mente que o diabo existe.

Esta é uma terrível verdade, mas que é muito desconsiderada. Existe um

espírito invisível sempre próximo a nós, poderoso e cheio de malícia

interminável contra as nossas almas. Desde o princípio da criação ele tem-se

esforçado por prejudicar o homem. Até que o Senhor Jesus venha pela

segunda vez e o prenda, o diabo jamais cessará de tentar e fazer dano. Nos

dias em que nosso Senhor estava sobre a terra, é evidente que o diabo tinha

um poder peculiar sobre os corpos de certos homens e mulheres, como

também sobre suas almas. Mesmo em nossos dias existe mais dessa

possessão demoníaca corporal do que alguns

supõem existir, embora em um grau evidentemente menor do que quando

Cristo veio na carne. Porém, nunca nos deveríamos esquecer que o diabo

está sempre bem perto de nós em espírito, e sempre pronto a nos assaltar o

coração com tentações.

Em seguida, que nós nos conscientizemos de que o poder do diabo é

limitado. Embora ele seja tão poderoso, existe Alguém ainda mais poderoso.

Embora seja tão perspicaz e tão determinado em seu intuito de prejudicar a

humanidade, ele só pode agir com permissão. Estes mesmos versículos nos

mostram que os espíritos malignos só podem ir de

Page 58: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

58 Mateus 8.28-34

um lugar para outro e causar destruição até ao tempo que lhes foi permitido

pelo Senhor dos Senhores: “Viestes aqui atormentar-nos antes do tempo?”,

eles disseram. Mesmo a petição que fizeram a Jesus nos mostra que eles não

podiam causar dano nem mesmo aos porcos, a menos que Jesus, o Filho de

Deus, lhes desse permissão. * „Manda-nos para a manada dos porcos”, eles

disseram.

Assim, deixemos firmemente estabelecido em nossas mentes que

nosso Senhor Jesus Cristo é o grande Libertador do homem do poder do diabo.

Ele não somente pode “remir-nos de toda iniqüidade”, mas também deste

“presente mundo mau” e do diabo. Desde a muito foi profetizado que Ele

haveria de esmagar a cabeça da serpente. Jesus começou a esmagar a cabeça

da serpente quando nasceu da virgem Maria. Ele triunfou sobre a cabeça da

serpente quando morreu na cruz. Ele mostrou o seu total domínio sobre

Satanás “curando a todos os oprimidos do diabo”, quando estava sobre a

terra (At 10.38). O nosso grande recurso, em todos os ataques do diabo, é

clamarmos ao Senhor Jesus e buscarmos a sua ajuda. Ele pode romper as

cadeias que Satanás lança à nossa volta, e nos libertar. Ele pode expulsar

qualquer demônio que nos atormente o coração, tão certo como nos dias da

antigüidade. Seria realmente uma lástima saber que o diabo existe e está

sempre perto de nós, se não soubéssemos que Cristo “pode salvar

totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder

por eles” (Hb 7.25).

Que nós não deixemos esta passagem sem observar o doloroso

mundanismo dos gadarenos, entre os quais foi operado o milagre da expulsão

de demônios. Os gadarenos rogaram ao Senhor Jesus “que se retirasse da

terra deles”. Eles não se sensibilizavam com nada, a não ser com a perda de

seus porcos. Pouco importava que duas pobres criaturas, com duas almas

imortais, tivessem sido libertadas da escravidão de Satanás. Para eles

também não importava que estivesse ali entre eles Alguém muito superior

ao diabo, a saber, Jesus Cristo, o Filho de Deus. Não se importaram com

nada, senão que a manada de porcos tinha se afogado, e “que se lhes

desfizera a esperança do lucro”. Na ignorância, os gadarenos consideraram

a Jesus como alguém que se colocava entre eles e os seus lucros, e só desejavam ficar livres dEle.

Existe um número demasiadamente grande de pessoas como os

gadarenos. Há milhares de pessoas que não dão a mínima importância a

Cristo ou a Satanás, desde que possam ganhar mais dinheiro, e desfrutar um

pouco mais das coisas deste mundo. Que nós possamos estar livres desse

espírito! Contra ele, que nós possamos sempre vigiar e orar! Ele é muito

comum e terrivelmente contagioso. A cada nova manhã

Page 59: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 8.28-34 59

relembremo-nos de que temos almas a serem salvas, e que um dia mor-

reremos e teremos de enfrentar o julgamento divino. Cuidemos em não

amar o mundo mais do que a Cristo. Que nós tomemos cuidado de não

estorvar a salvação de outras pessoas, por temor de que o processo da

religião verdadeira possa diminuir nossos ganhos ou nos trazer problemas.

A Cura do Paralítico;

A Chamada de Mateus, o Publicano Leia Mateus 9.1-13

Observemos, na primeira parte desta passagem, o conhecimento que

nosso Senhor tem dos pensamentos dos homem. Alguns dos escribas acharam

defeito nas palavras de Jesus ao paralítico. Diziam secretamente, consigo:

“Este blasfema“. Provavelmente imaginavam que ninguém soubesse o que

se passava em suas mentes. Ainda precisavam aprender o fato que o Filho

de Deus pode ler os corações e discernir os espíritos. O seu pensamento

malicioso foi publicamente desmascarado. Eles foram abertamente

expostos à vergonha.

Nisto há uma importante lição para nós: “Todas as cousas estão

descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas“

(Hb 4.13). Nada pode ser ocultado de Jesus Cristo. O que pensamos às

ocultas, quando ninguém nos vê? O que pensamos quando estamos na

igreja, parecendo tão sérios e respeitosos? Sobre o que estamos pensando

neste exato momento, enquanto estas palavras passam diante de nossos

olhos? Jesus sabe. Jesus vê. Jesus registra tudo. Jesus um dia nos chamará

para a prestação de contas. Está escrito que Deus, por meio de Cristo Jesus,

julgará os segredos dos homens, de acordo com o evangelho (Rm 2.16).

Sem ddvida alguma, devemos ser muito humildes quando consideramos

estas coisas. Deveríamos cada dia agradecer a Deus que o sangue de Cristo

pode purificar de todo pecado. Deveríamos sempre clamar: „ „As palavras

dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua

presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!” (SI 19.14).

Em segundo lugar, observemos a maravilhosa chamada do apóstolo

Mateus para ser um discípulo de Cristo. Encontramos sentado na coletoria de

impostos o homem que mais tarde escreveria o primeiro evangelho.

Vemo-lo absorvido em sua ocupação secular, talvez não pensando em outra

coisa senão em dinheiro e lucro. Subitamente, entretanto, recebe o chamado

para seguir a Jesus e tornar-se seu discípulo. Mateus

Page 60: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

60 Mateus 9.1-13

obedece imediatamente; apressa-se, não se detém (SI 119.60) e obedece a ordem de Cristo. Ele se levanta e segue a Jesus.

Que seja um princípio bem estabelecido em nossa religião que para

Cristo nada é impossível. Ele pode tomar um coletor de impostos e

transformá-lo em apóstolo. Ele pode mudar qualquer coração humano e

fazer novas todas as coisas, Que nós nunca desesperemos da salvação de

quem quer que seja. Continuemos orando, testemunhando e trabalhando

para o bem das almas dos piores homens. “A voz do Senhor é poderosa‟ *

(S129.4). Quando Ele diz, pelo poder do Espírito, “segue- -me”, Ele pode fazer os mais endurecidos e os mais pecaminosos obedecerem.

Observemos a decisão de Mateus. Ele não esperou por uma ocasião

mais oportuna (At 24.25). Em conseqüência obteve uma grande

recompensa. Ele escreveu um livro que se tornou conhecido em todo o

mundo. Tomou-se uma bênção para outras pessoas, além de ser abençoado

na sua própria alma. Ele deixou atrás de si um nome que é mais conhecido

do que o nome de príncipes e reis. O homem mais rico do mundo ao morrer

é logo esquecido. Porém, enquanto durar o mundo, milhões de pessoas

conhecerão o nome de Mateus, o publicano.

Em último lugar, notemos a preciosa declaração de nosso Senhor a

respeito de sua própria missão. Os fariseus acharam falta nEle, porquanto

permitia que publicanos e pecadores estivessem em sua companhia. Em

sua cegueira orgulhosa, eles imaginavam que um mestre enviado do céu

jamais deveria entrar em contato com tais pessoas. Eles ignoravam

totalmente o grandioso desígnio pelo qual o Messias viera a este mundo —

para ser Salvador, médico; para curar as almas enfermas pelo pecado. Eles

receberam dos lábios de nosso Senhor uma reprimenda, seguida de

palavras abençoadas: “não vim chamar justos, e, sim, pecadores ao

arrependimento”.

Certifiquemo-nos de que compreendemos perfeitamente a doutrina

contida nestas palavras. O que é primariamente necessário para se ter

interesse em Cristo é sentirmos profundamente a nossa própria corrupção,

e estarmos dispostos a ir a Jesus para sermos libertos. Não devemos ficar

longe de Cristo, como muitos ignorantemente o fazem, somente porque nos

sentimos maus, ímpios e indignos. Devemos lembrar que Ele veio ao

mundo para salvar pecadores; e, se nos reconhecemos como tais, isto é

bom. Feliz é quem realmente entende que a principal qualificação para ir a

Cristo é um profundo senso de pecado!

Finalmente, se, pela graça de Deus, realmente entendemos a glo-

riosa verdade de que Jesus Cristo veio para chamar pecadores, então, qut

jamais nos esqueçamos disso. Não cultivemos a ilusão de que crentes

verdadeiros possam atingir um tal estado de perfeição neste mundo,

Page 61: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 9.I-J3 61

ao ponto de não mais precisarem da mediação e intercessão de Cristo.

Éramos pecadores quando viemos a Cristo; e pobres e necessitados pe-

cadores continuaremos sendo, enquanto vivermos, recebendo toda a graça

de que dispomos, a cada momento, da plenitude de Cristo. Mesmo na hora

da nossa morte, veremos que ainda somos pecadores, e estaremos tão

dependentes do sangue de Cristo, quanto no primeiro dia em que cremos.

Vinho Novo e Odres Novos;

A Ressurreição da Filha de Jairo Leia Mateus 9.14-26

Observemos, nesta passagem, o gracioso nome pelo qual o Senhor

Jesus fala de si mesmo. Ele chama a si mesmo de “o noivo”.

O que o noivo representa para a sua noiva, o Senhor Jesus representa

para as almas de todos os que nEle crêem. Ele os ama com amor profundo e

eterno. Ele os toma para que vivam em união consigo mesmo. Eles são um

em Cristo, e Cristo une-se a eles. Ele paga todos os débitos deíes para com

Deus. Ele lhes supre todas as necessidades diárias. Ele simpatiza com eles

em todas as dificuldades. Ele suporta com paciência todas as infirmezas

deles, e não os rejeita por causa de algumas poucas fraquezas, Ele os

considera parte de si mesmo. Os que perseguem e prejudicam os discípulos

de Cristo, estão perseguindo a Ele mesmo. A glória que recebeu da parte do

Pai, um dia Ele haverá de compartilhar com seus remidos e, onde Ele

estiver, ali estarão também eles. Tais são os privilégios de todos os

verdadeiros cristãos. Eles são a noiva do Cordeiro (Ap 19.7). Essa é a

porção à qual a fé dá acesso. Por meio desta fé, Deus une as nossas pobres

almas pecaminosas a um precioso Noivo e, aqueles a quem Deus assim une,

jamais serão separados. Verdadeiramente abençoados são os que crêem!

Em segundo lugar, observemos como é sábio o princípio que o Senhor

estabelece para o tratamento de seus novos discípulos. Houve alguns que

acharam errado o fato de os seguidores de Nosso Senhor não jejuarem,

como faziam os discípulos de João Batista. Nosso Senhor defende seus

discípulos com um argumento cheio de profunda sabedoria. Ele mostra que

o jejum não seria apropriado, enquanto Ele, que era o Noivo, estivesse em

companhia deles. Mas isso não é tudo. Jesus vai mais além, a fim de

mostrar, mediante duas parábolas, que os jovens principiantes na escola do

cristianismo, devem ser tratados com gentileza. Eles precisam ser ensinados

gradativamente, conforme o pos

Page 62: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

62 Mateus 9.14-26

sam suportar. Não podemos esperar que possam receber tudo de uma vez.

Negligenciar esta regra seria uma tolice tão grande quanto guardar “vinho

novo em odres velhos”, ou pôr “remendo de pano novo em vestido velho”.

Nisto há uma fonte de profunda sabedoria, que todos faríamos bem

em relembrar, para o ensino espiritual dos que têm pouca experiência.

Devemos ter o cuidado de não pôr excessiva importância às questões

secundárias da religião. Não devemos nos apressar em exigir imediata

conformidade a uma norma rígida quanto a coisas indiferentes, enquanto os

princípios elementares do arrependimento e da fé não tiverem sido

devidamente apreendidos. Devemos orar por graça e bom senso cristão

para nos guiarem neste assunto. O tato no relacionamento com os novos

discípulos de Cristo é um dom raro, mas muito proveitoso. Saber sobre o

que devemos insistir desde o princípio, como absolutamente necessário, e o

que reservar para o futuro, qúando o discípulo tiver alcançado um

conhecimento mais perfeito, é uma das maiores qualificações de um

instrutor de almas.

Em seguida, observemos quanto encorajamento nosso Senhor dá,

mesmo à fé mais humilde. Nesta passagem, lemos que certa mulher, afligida

por uma grave enfermidade, veio por detrás do Senhor Jesus, em meio à

multidão, e Lhe tocou “na orla da veste”, na esperança de que, se assim o

fizesse, seria curada do seu flagelo. A mulher não proferiu uma palavra,

pedindo auxílio. Ela não fez qualquer pública confissão de fé. E, no entanto,

confiava que, se ao menos tocasse nas vestes de Jesus, ficaria curada. Foi o

que sucedeu. Oculta naquele seu ato havia uma preciosa semente de fé em

Jesus, elogiada por nosso Senhor. A mulher foi curada instantaneamente, e

voltou para casa em paz. Nas palavras de um antigo escritor: “Veio em

tremores, mas saiu em triunfo”.

Guardemos na mente esta história. Ela pode nos ajudar podero-

samente em alguma hora de necessidade. Nossa fé talvez seja fraca. Nossa

coragem pode ser pequena. A nossa apreensão do evangelho e de suas

promessas talvez seja frágil e estremecida. Porém, a grande pergunta,

afinal, é esta: “Na realidade confiamos somente em Cristo? Olhamos para

Jesus, e somente para Jesus para receber perdão e paz?” Se assim acontece

conosco, isso é bom sinal. Embora não possamos tocar nas suas vestes,

podemos tocar no coração de Jesus. Uma fé assim salva a alma. A fé fraca é

menos consoladora do que a fé vigorosa. A fé fraca irá nos levar para o céu

com muito menos regozijo do que teríamos se tivéssemos a total confiança.

Mas a fé, embora fraca, dá- -nos os benefícios de Cristo, tanto quanto a fé

mais vigorosa. Quem ao menos tocar nas vestes de Jesus, sob hipótese

nenhuma perecerá.

Page 63: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 9 J 4-26 63

Em último lugar, observemos nesta passagem o poder infinito de

nosso Senhor. Ele devolve a vida a uma pessoa morta. Quão admirável deve

ter sido aquela cena! Quem, ao ter visto uma pessoa morrer, poderá

esquecer-se da imobilidade, do silêncio e da frieza, quando o fôlego da vida

abandona o corpo? Quem pode esquecer o horrível sentimento de que uma

coisa terrível aconteceu e que um enorme abismo foi aberto entre nós e a

pessoa falecida? Eis, porém, que nosso Senhor entra no quarto onde jaz o

corpo da menina, e chama de volta o espírito ao seu tabernáculo terrestre. O

pulso começa a bater novamente. Os olhos vêem outra vez. A respiração

novamente vem e vai. A filha do chefe da sinagoga está viva novamente,

restituída a seu pai e mãe. Manifestara-se ali a verdadeira onipotência!

Ninguém poderia ter realizado tal feito, senão Aquele que no princípio

criou o homem, e que tem todo o poder no céu e na terra.

Este é um aspecto da verdade que nunca poderemos conhecer bem

demais. Quanto mais claramente vemos o poder de Cristo, tanto mais aptos

estamos para experimentar a paz do evangelho. Nossa condição poderá ser

penosa. Nosso coração pode ser fraco. Talvez sintamos grande dificuldade

em prosseguir a jornada, neste mundo. Nossa fé pode parecer-nos

demasiado fraca para nos conduzir até o céu. Porém, meditando a respeito

de Jesus tomemos coragem, e não nos deixemos arrastar pelo desânimo.

Maior é Aquele que é por nós do que todos quantos são contra nós. Nosso

Salvador pode ressuscitar os mortos. Nosso Salvador é Todo-poderoso.

A Cura de Dois Cegos; Jesus Se Compadece da Multidão; O Dever dos Discípulos

Leia Mateus 9.27-38

Neste texto há quatro lições que merecem atenção especial. Vamos

examiná-las sucessivamente.

Antes de tudo, marquemos bem que, algumas vezes, uma fé poderosa

em Cristo pode ser encontrada onde menos se suspeitaria. Quem poderia

imaginar que dois cegos pudessem chamar nosso Senhor de “Filho de

Davi”? Naturalmente, eles não podem ter visto os milagres realizados por

Jesus. Só podem ter tomado conhecimento dEle mediante o que outras

pessoas lhes diziam. Porém, os olhos de seu entendimento foram

iluminados, embora seus olhos físicos continuassem em trevas. E assim

perceberam a verdade que os escribas e os fariseus não foram capazes de

perceber. Compreenderam que Jesus de Nazaré era o Messias. Creram que

Ele podia curá-los.

Page 64: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

64 Mateus 9.27-38

Um exemplo assim mostra-nos que jamais deveríamos desesperar

da salvação eterna de qualquer pessoa, somente porque tal pessoa vive em

circunstâncias que são desfavoráveis à sua conversão. A graça divina é

mais forte do que as circunstâncias. A vida piedosa não depende

meramente de condições vantajosas aparentes. O Espírito Santo pode

proporcionar fé e mantê-la em ativo exercício, sem dinheiro ou educação

formal, mas apenas utilizando-se de escassos meios de graça. Sem o

Espírito Santo, um homem pode conhecer todos os mistérios, e viver sob a

plena influência do evangelho, e, ainda assim, estar perdido. Veremos

cenas muito estranhas no último dia. Pessoas de condição humilde

mostrarão terem crido no Filho de Davi, ao passo que homens ricos, cheios

de erudição universitária, mostrarão ter vivido e morrido como os fariseus,

na mais dura incredulidade. Muitos dos que agora são últimos, serão

primeiros, e muitos dos que agora são primeiros, serão últimos (Mt 20.16).

A seguir destaquemos o fato que nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma

grande experiência com enfermidades e doenças. * „Percorria Jesus todas as

cidades e povoados”, fazendo o bem. Ele foi testemunha ocular de todos

os males herdados pela carne. Ele viu doenças de todo tipo, variedade e

descrição. Entrou em contato com toda sorte de doenças e sofrimentos

físicos. E, por mais repugnantes que fossem, não se sentiu repelido por ter

que tratar com qualquer das pobres vítimas desses sofrimentos. Nenhuma

doença era por demais repelente para Ele a curar. Ele curava “toda sorte de

doenças e enfermidades”.

Podemos obter grande consolo desse fato. Cada um de nós habita

em um corpo débil e frágil. Nunca sabemos quanto sofrimento ainda

precisaremos contemplar, enquanto nos assentamos à beira do leito de

enfermidades de amigos e parentes queridos. Nunca sabemos quantos

sofrimentos teremos nós mesmos de passar, antes de morrermos. No

entanto, armemo-nos, a todo instante, com o precioso pensamento que

Jesus é especial mente apto para ser o Amigo dos doentes. Este nosso

grande Sumo Sacerdote, a quem devemos recorrer para termos perdão e

paz com Deus, está tão eminentemente qualificado para se compadecer de

um corpo dolorido, como também para sarar uma consciência culpada. Os

olhos d Aquele que é o Rei dos reis muitas vezes se compadeceram dos

enfermos. Este mundo pouco ou nada se importa com os doentes, e

geralmente procura manter-se afastado. Mas o Senhor Jesus tem cuidado

especial pelos enfermos. Ele é o primeiro a visitá-los e a dizer-lhes: “Eis

que estou à porta e bato”. Felizes são aqueles que Lhe ouvem a voz e

deixam-No entrar!

Assinalamos, em seguida, a tema preocupação de nosso Senhor pelas almas negligenciadas. Quando estava neste mundo, Jesus viu “mui-

Page 65: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 9.27-38 65

tidões1 que vagavam, como “ovelhas que não têm pastor“, e o seu coração

moveu-se de compaixão. Ele as via negligenciadas por aqueles que, na

época, deveriam ter sido seus mestres. Ele via a uma multidão de pessoas

ignorantes, sem esperança, desamparadas, morrendo sem estarem

preparadas para morrer. Esta visão levou Jesus à profunda compaixão.

Aquele coração amoroso não podia ver essas coisas sem comover-se.

Quais são os nossos sentimentos, quando vemos pessoas nessa

mesma condição? Esta é a pergunta que deveria surgir em nossa mente. Há

um grande número de pessoas nessas condições, que podemos ver por toda

a parte. Há milhões de idólatras e pagãos na terra, milhões de iludidos

islamitas, milhões de católicos supersticiosos romanos. Há também

milhares de protestantes ignorantes, vivendo bem junto a nós. Sentimo-nos

grandemente preocupados com tais almas? Sentimos profundamente a

carência espiritual dessas pessoas? Ansiamos por vê-las aliviadas dessas

carências? Estas são perguntas sérias e que exigem resposta. E fácil

desprezar as missões aos pagãos, bem como aqueles que trabalham em

favor dos incrédulos. Porém, quem não sente profunda- mente pela alma

dos não convertidos, certamente não pode ter a mente de Cristo (1 Co 2.16).

Destaquemos, em último lugar, que há um solene dever para todos os

crentes, que desejam fazer o bem à porção ainda não-convertida da

humanidade. Eles são incumbidos de sempre orar para que o Senhor levante

mais homens para o trabalho da conversão das almas. Parece mesmo que

essa petição deve fazer parte das nossas orações diárias: “Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara”.

Se sabemos orar, tomemos como uma questão da consciência jamais

nos esquecermos dessa solene incumbência que nos foi dada por nosso

Senhor. Fixemos bem em nossa mente que esta é uma das mais seguras

maneiras de se praticar o bem e refrear o mal. O trabalho pessoal, em favor

de almas, é bom. Contribuir com a obra missionária é bom. Mas o melhor de

tudo é orar. Pela oração alcançamos Aquele, sem o qual todo o trabalho e o

dinheiro disponível são em vão. Mediante a oração obtemos a ajuda do

Espírito Santo. O dinheiro pode financiar. As universidades podem conferir

erudição. As congregações podem eleger obreiros, e as autoridades

eclesiásticas ordená-los. Porém, somente o Espírito Santo pode fazer os

verdadeiros ministros do evangelho ou levantar obreiros leigos para a seara

espiritual, obreiros que não têm de que se envergonhar. Nunca, jamais nos

esqueçamos de que, se desejamos fazer o bem à humanidade, nosso primeiro dever é orar!

Page 66: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

66 Mateus 10.1-15

O Envio dos Primeiros Pregadores Cristãos Leia Mateus 10,1-15

Este capítulo é particularmente solene. Temos aqui a primeira

ordenação que teve lugar na igreja de Cristo. O Senhor Jesus escolhe e

envia os seus doze apóstolos. Temos aqui a primeira incumbência

conferida a ministros cristãos recém-consagrados. O Senhor Jesus mesmo

foi quem os ordenou. Nunca houve uma ordenação tão importante!

Há três lições que se salientam com proeminência nos primeiros

quinze versículos deste capítulo. Vamos examiná-las pela ordem.

Em primeiro lugar, somos ensinados que nem todos os ministros do

evangelho são, necessariamente, homens bons. Vemos nosso Senhor

escolhendo a Judas Iscariotes para ser um dos seus apóstolos. Não podemos

duvidar de que Aquele que conhecia tão bem o$ corações, conhecia

também o caráter de cada um dos homens a quem escolheu. No entanto, Ele

incluiu na lista dos apóstolos um homem que era um traidor!

Faremos bem em sempre lembrar este fato. A ordenação para o

ministério não confere a graça salvadora do Espírito Santo. Homens

ordenados não são necessariamente convertidos. Não devemos considerá-

-los infalíveis, seja na doutrina ou na prática. Não podemos fazer deles

papas ou ídolos, e, insensatamente, fazê-los ocupar o lugar de Jesus Cristo.

Antes, devemos considerá-los como homens “sujeitos às mesmas paixões

que nós”, sujeitos às mesmas fraquezas, e que diariamente necessitam da

mesma graça divina. Não devemos pensar que é impossível que eles

pratiquem coisas muito ruins, e nem devemos esperar que estejam acima

dos danos causados pela bajulação, cobiça e atrativos deste mundo.

Devemos testar os ensinamentos desses homens por meio da Palavra de

Deus, e imitá-los à medida em que eles seguem a Cristo, nunca mais do que

isto. Acima de tudo, porém, devemos orar por eles, para que sejam

sucessores, não de Judas Iscariotes, e, sim, de Tiago e de João. É coisa

seríssima ser um ministro do evangelho! Os ministros precisam de muita

oração a seu favor.

Em seguida, somos ensinados que a grande obra de um ministro de

Jesus Cristo é fazer o bem. Ele é enviado para buscar as “ovelhas perdidas“,

para proclamar as boas novas, para aliviar os que estão em sofrimento, para

diminuir a tristeza e aumentar o regozijo. A vida de um ministro deve

caracterizar-se pelo dar, mais do que pelo receber.

Este é um padrão de vida elevado, e muito peculiar ao ministério

cristão. Portanto, que seja bem sopesado e cuidadosamente examinado.

Antes de tudo, é evidente que a vida de um fiel ministro de Cristo não

Page 67: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 10.1-15 67

pode ser uma vida fácil. Todo ministro de Cristo deve dispor-se a gastar seu

corpo e mente, seu tempo e energias na tarefa para a qual foi chamado. A

preguiça e a frivolidade são intoleráveis em qualquer profissão; mas são

piores ainda, no ofício da sentinela de almas. É também claro que a posição

dos ministros de Cristo não coincide com aquilo que, muitas vezes, pessoas

ignorantes lhes atribuem e que, infelizmente, certos ministros reivindicam

para si. Eles não são ordenados para dominar, mas para servir. Não lhes

compete tanto exercer domínio sobre a igreja, quanto suprir as

necessidades dos seus membros e servi-los (2 Co 1.24). Bom seria para a

causa da verdadeira religião, se tais coisas fossem melhor compreendidas!

Metade dos males do cristianismo têm surgido de noções equivocadas a

respeito do ofício do ministro.

Em último lugar, somos ensinados que é muito perigoso negligenciar

os oferecimentos do evangelho. "Menos rigor haverá para Sodoma e

Gomorra, no dia do juízo", do que para aqueles que já ouviram a verdade

acerca de Cristo, mas não a receberam.

Esta é uma doutrina que tem sido temivelmente negligenciada,

embora mereça a mais séria consideração de nossa parte. Os homens

inclinam-se, mui lamentavelmente, por esquecer-se de que não é necessário

cometer pecados gravíssimos para que uma alma fique arruinada para todo

o sempre. Basta que a pessoa continue ouvindo o evangelho mas não

crendo, escutando mas não arrependendo-se, vindo à igreja mas não vindo

a Cristo; assim, pouco a pouco acabará no inferno! Todos seremos julgados

de acordo com a luz que recebemos. Ouvir as boas novas da "grande

salvação" e, no entanto, negligenciá-las, é um dos piores pecados que se

pode cometer (Jo 16.9).

O que estamos fazendo com o evangelho? Esta é a indagação que

cada um que lê esta passagem bíblica deve pôr, diante de sua própria

consciência. Suponhamos que nós mesmos sejamos pessoas decentes e

respeitáveis, corretas e morais em todas as relações da vida, e constantes na

nossa aproximação formal aos meios de graça. Quanto a essas coisas, tudo

está muito bem. Entretanto, seria isso tudo quanto pode ser dito a nosso

respeito? Estamos, realmente acolhendo o amor à verdade? Está Cristo

habitando em nossos corações, pela fé? Em caso contrário, estamos

correndo um terrível perigo. Estamos sendo muito mais culpados do que os

homens de Sodoma, os quais jamais ouviram o evangelho. Podemos um dia

descobrir que, a despeito de toda a nossa regularidade, moralidade e

correção, estamos perdidos para sempre. O fato de termos vivido sob a

plena luz dos privilégios cristãos, e termos ouvido a pregação fiel do

evangelho, semana após semana, só isto, apenas, não nos livrará da

condenação. Tem que haver a experiência pessoal com Cristo. Precisamos

receber pessoalmente a verdade de

Page 68: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

68 Mateus 10.1-15

Cristo. É preciso existir uma união vital com Ele. Devemos nos tomar seus

servos e discípulos. Sem isto, a pregação do evangelho só faz aumentar a

nossa responsabilidade, toma-nos ainda mais culpados, e por fim nos fará

afundar ainda mais profundamente no inferno. Estas são declarações

difíceis de se ouvir. Porém, as palavras das Escrituras que temos acabado

de ler são claras e inequívocas. Elas são todas verdadeiras.

Instruções aos Primeiros Pregadores Cristãos

Leia Matem 10.16-23

As verdades contidas nestes versículos deveriam ser ponderadas por

todos os que procuram fazer o que é direito neste mundo. Para o egoísta,

que com nada mais se importa senão com o seu próprio bem- -estar e

conforto, talvez pareça haver bem pouca coisa nestes versículos. Para o

ministro do evangelho, bem como para todos quantos buscam salvar

almas, estes versículos deveríam estar repletos de interesse. Não há dúvida

que neles há muita coisa que se aplicava de modo especial aos dias dos

apóstolos. Mas há também muita coisa que tem aplicação para todas as

épocas.

Antes de mais nada, aprendemos que os que quiserem trabalhar na

obra do Senhor devem ser moderados quanto às suas expectativas. Não devem

pensar que um sucesso universal acompanhará os seus esforços. Pelo

contrário, devem esperar encontrar muita oposição. Devem ter em mente o

fato que serão odiados, perseguidos e maltratados, e isso até mesmo da

parte de seus parentes mais chegados. Freqüente- mente, sentir-se-ão como

ovelhas entre os lobos.

Tenhamos isto sempre em mente. Sem importar se estivermos

pregando, ensinando ou visitando de casa em casa, sem importar se

estivermos escrevendo ou dando conselhos, ou qualquer outra coisa que

estejamos fazendo, que seja um pensamento constante não esperarmos

mais do que as Escrituras e a experiência garantem. A natureza humana é

muito mais iníqua e corrupta do que pensamos. O poder do mal é maior do

que supomos. É inútil imaginar que todos perceberão o que é melhor para

eles, e que acreditarão no que lhes dissermos. Isto seria uma expectativa

muito alta, e ficaríamos desapontados. Feliz é o obreiro de Cristo que

compreende essas coisas desde o início, e que não tem necessidade de

aprendê-las mediante amarga experiência. Aqui está a razão secreta porque

muitos têm dado as costas para a boa causa, depois de terem parecido tão

cheios de zelo no princípio. Começaram com

Page 69: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Matem 10.16-23 69

expectativas muito altas. Não calcularam o preço. Caíram no mesmo

equívoco do grande reformador alemão, que confessou ter-se esquecido do

fato que “o velho Adão era forte demais para o jovem Melancthon‟ ‟.

Por outra parte, compreendemos que os que desejam fazer o bem têm

necessidade de orar por sabedoria, bom senso e uma mente sadia. Nosso Senhor

diz aos seus discípulos: para serem “prudentes como as serpentes e

símplices como as pombas”. Também disse que, se fossem perseguidos em

alguma cidade, era legítimo “fugir para outra”.

Poucas foram as instruções dadas por nosso Senhor tão difíceis de

praticar corretamente como esta. Jesus demarcou uma linha entre dois

extremos, mas é necessário grande discernimento para que a possamos

definir. Um desses extremos é evitar a perseguição, mantendo-nos calados e

conservando a nossa religião inteiramente para nós mesmos. Não devemos

errar nessa direção. O outro extremo é cortejar a perseguição, forçar a nossa

religião sobre todas as pessoas que encontramos, sem levar em conta o

lugar, a hora ou as circunstâncias. Também somos advertidos a não errar

nessa direção. Bem podemos questionar: “Quem, porém, é suficiente para

estas cousas?” Temos a necessidade de clamar ao único e sábio Deus,

rogando-lhe sabedoria.

O extremo para o qual a maioria dos homens se inclina nos dias

atuais é o silêncio, a covardia, deixando os demais imperturbados. Essa

suposta prudência tende por degenerar em uma conduta caracterizada pela

negligência, ou mesmo pela mais franca infidelidade. Com demasiada

ffeqüência estamos dispostos a assumir que, para determinadas pessoas, é

inútil tentar fazer o bem. Justificamo-nos em não envidar esforços para o

bem das almas dessas pessoas, dizendo que seria indiscrição,

inconveniência, ou que seria uma ofensa desnecessária, ou que isso seria

uma agressão contra as pessoas. Vigiemos e ponhamo- -nos em guarda

contra essa atitude. A preguiça e o diabo são geralmente a verdadeira

explicação para tal atitude. Sem dúvida é agradável para a carne e o sangue

ceder a essa atitude, pois ela nos poupa de muitas dificuldades. Entretanto,

aqueles que cedem diante dela geralmente desperdiçam grandes

oportunidades de serviço.

Por outro lado, é impossível negarmos que existe um zelo santo e

justo, porém não com entendimento” (Rm 10.2). É perfeitamente possível

ofender desnecessariamente as pessoas, cometer grandes equívocos e

despertar intensa oposição, que podería ter sido evitada com um pouco de

prudência, um procedimento sábio e o exercício de bom senso. Tenhamos

cuidado para não nos tornarmos culpados a esse respeito. Podemos ter

certeza de que a sabedoria cristã existe e que é inteiramente distinta das

sutilezas jesuíticas e do procedimento carnal. Que todos nós procuremos

obter essa sabedoria. Nosso Senhor Jesus Cristo

Page 70: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

70 Mateus 10.16-23

não requer de nós que nos desfaçamos do nosso bom senso quando pro-

curamos trabalhar para Ele. Sempre haverá bastante ofensa na nossa reli-

gião cristã, não importa o que façamos; porém, não devemos aumentar as

possibilidades disso desnecessariamente. “Portanto, vede prudentemente

como andais, não como néscios, e, sim, como sábios*‟ (Ef 5.15).

É de temer que os crentes no Senhor Jesus não oram o suficiente por

um espírito de sabedoria, juízo e bom senso. Eles tendem a pensar que, se

já receberam a graça divina, então já têm tudo quanto precisam.

Esquecem-se de que um coração agraciado deveria orar para ser pleno de

sabedoria, assim como do Espírito Santo (At 6.3). Lembremos que muita

graça e bom senso talvez seja uma das mais raras combinações que existe.

A vida de Davi e o ministério do apóstolo Paulo, contudo, são provas

notáveis de que essa combinação é possível. Nisto, como em todas as

demais coisas, nosso Senhor Jesus Cristo, pessoalmente, é o nosso mais

perfeito exemplo. Ninguém jamais se mostrou tão fiel quanto Ele. E, no

entanto, ninguém jamais foi tão verdadeiramente sábio. Façamos de Cristo

o nosso modelo, e andemos nos passos dEle.

Advertências aos Primeiros Pregadores Cristãos Leia Mateus 10.24-33

Fazer a obra de Deus neste mundo é uma tarefa muito difícil! Todos

quantos a empreendem descobrem isto por experiência. É preciso muita

coragem, fé, paciência e perseverança. Satanás lutará vigorosamente para

manter o seu reino. A natureza humana é desesperadamente corrupta.

Praticar o mal é fácil. O difícil é fazer o bem.

O Senhor Jesus sabia disso muito bem quando enviou os seus

discípulos para pregarem o evangelho pela primeira vez. Mesmo que eles

não soubessem o que os esperava, Ele o sabia. Ele teve o cuidado de lhes

dar uma lista de palavras de encorajamento, para animá-los quando se

sentissem abatidos. Missionários exaustos no país distante, ou ministros

que se sentem esgotados, mesmo trabalhando no seu próprio país,

professores desalentados e evangelistas desanimados, todos fariam bem

em estudar com freqüência os nove versículos desta passagem.

Observemos o que eles contêm.

Os que trabalham na obra de Deus não devem esperar ser melhor

sucedidos. “O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima do

seu senhor”. O Senhor Jesus foi caluniado e rejeitado por aqueles a quem

viera beneficiar. Não havia erros em sua doutrina. Não havia defeitos em

seu método de transmitir a instrução. Mesmo assim

Page 71: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 10.24-33 11

Ele foi odiado e chamado de Belzebu. Poucos creram nEle e se importaram

com o que Ele dizia. Nao temos o direito de ficar surpresos se nós, cujos

melhores esforços são permeados de tantas imperfeições, somos tratados

da mesma maneira que Jesus Cristo o foi. Se não nos importarmos com o

mundo, eles também não se importarão conosco. Mas, se intentarmos o

bem-estar espiritual dos homens, então nos odiarão, como fizeram ao

nosso grande Mestre.

Os que procuram fazer o bem, devem esperar com paciência pelo dia

do juízo. Nada há encoberto, que não venha a ser revelado; nem oculto, que

não venha a ser conhecido”. Precisam contentar-se em serem mal

compreendidos, difamados, vilipendiados, caluniados e maltratados neste

mundo. Não devem deixar de trabalhar, somente porque os seus motivos

são mal interpretados e o caráter deles é ferozmente atacado. Devem

lembrar-se continuamente de que todas essas injustiças serão devidamente

corrigidas, no ultimo dia. Os segredos do coração de todos os homens

serão então desvendados. Ele „„fará sobressair a tua justiça como a luz, e o

teu direito como o sol ao meio-dia” (SI 37.6). A pureza das intenções dos

crentes, a sabedoria dos labores deles e a retidão da causa que defendem

serão, finalmente, manisfestos diante do mundo inteiro. Por conseguinte,

continuemos trabalhando constante e tranqüilamente. Talvez os homens

não nos compreendam, opondo-se com veemencia a nós. Porém, o dia do

juízo já se aproxima velozmente. Afinal, a justiça nos será feita. O Senhor,

quando voltar ao mundo, “não somente trará à plena luz as cousas ocultas

das trevas, mas também manifestará os desígnos dos corações; e então

cada um receberá o seu louvor da parte de Deus” (1 Co 4.5).

Os que procuram fazer o bem devem temer mais a Deus do que aos

homens. Os homens podem ferir-nos o corpo, mas isso é o máximo que

podem fazer. Não podem ir mais longe. Mas Deus “pode fazer perecer no

inferno tanto a alma como o corpo”. Se andamos pelo caminho do nosso

dever religioso, podemos ser ameaçados com a perda de nossa reputação,

propriedades e tudo o que torna a vida agradável. Se andamos

corretamente, nao devemos temer tais ameaças. Assim como Daniel e seus

três amigos, devemos nos submeter a qualquer coisa necessária para não

desagradar a Deus e ferir a consciência. Talvez seja difícil suportar a ira

dos homens, mas a ira de Deus é muitíssimo pior. O temor ao homem pode

fazer-nos cair em alguma armadilha. Mas, precisamos repelir esse temor

com um princípio muito poderoso, a saber, o temor a Deus. O bondoso

Coronel Gardiner disse: “Temo a Deus, portanto, não preciso temer a mais

ninguém”.

Os que procuram fazer o bem devem trazer na mente o cuidado providencial que

Deus tem por seus filhos. Coisa alguma pode aconte-

Page 72: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

72 Mateus 10.24-33

cer neste mundo sem a permissão de Deus. Na verdade, nada acontece

por acaso, acidente ou sorte. “Quanto a vós outros, até os cabelos to-

dos da cabeça estão contados”. O caminho do dever pode às vezes nos

conduzir a grandes perigos. Nossa saúde e a própria vida podem ser

ameaçadas, se avançamos no cumprimento do dever. Portanto, que nos

consolemos mediante o pensamento de que tudo quanto nos circunda

está nas mãos de Deus. Corpo, alma e caráter, tudo está entregue aos

cuidados do Senhor. Nenhuma enfermidade nos poderá atingir, ninguém

ierá ferir, a menos que Ele o permita. Podemos dizer confia- nos II*H

damente a tudo quanto nos ameace: “Nenhuma autoridade terias sobre

mim, se de cima não te fosse dada” (Jo 19.11).

Finalmente, os que procurara fazer o bem devem relembrar con-

tinuamente o dia em que se encontrarão com o Senhor para receberem a parte

que lhes cabe. Se desejara que Cristo os reconheça e os confesse diante do

trono de seu Pai, precisam confessar diante dos homens o seu nome, e não

estar envergonhados dEle. Fazer isso poderá nos custar muita coisa. Pode

trazer contra nós riso, escárnio, perseguição e zombarias. Porém, mesmo

que zombem de nós, lembremo-nos de que temos um galardão no céu. Não

nos esqueçamos do grande e temível dia da prestação de contas, e não

tenhamos receio de mostrar aos homens que amamos a Cristo e que

desejamos que eles também O amem.

Que estes encorajamentos fiquem entesourados nos corações de

todos os que trabalham na causa de Cristo, qualquer que seja o ofício. O

Senhor conhece as dificuldades de seus servos, e disse estas palavras a fim

de consolá-los. Ele cuida de todos os que nEIe crêem, mais especialmente

daqueles que trabalham na sua causa e se esforçam por fazer o bem. Que

nós todos possamos ser contados entre os obreiros de Cristo. Todo crente

pode fazer alguma coisa, se tentar fazê-lo. Sempre há algo que cada um

pode fazer. Que cada um de nós tenha a visão e a vontade de fazer a obra do

Senhor.

Palavras de Encorajamento aos Primeiros Pregadores Cristãos

Leia Mateus 10.34-42

Nestes versículos, o grande Cabeça da igreja conclui a primeira

incumbência que determinou àqueles que estava enviando para divulgar o

seu evangelho. Jesus declarou três grandiosas verdades, que formam uma

apropriada conclusão para o seu discurso. Em primeiro lugar, Cristo ordena lembrarmos que o evangelho

Page 73: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 10.34-42 73

nem sempre instaurará paz e concórdia onde for anunciado. “Não vim trazer

paz, mas espada. O objetivo da primeira vinda de Cristo à terra não foi o de

inaugurar um reino milenar, dentro do qual todos teriam uma única atitude

mental; antes, Ele veio trazer o evangelho que haveria de provocar divisões

e contendas. Não temos o direito de nos sentir surpreendidos se essa

predição vai sendo incessantemente cumprida. Não devemos estranhar se o

evangelho chegar a dividir famílias inteiras, separando até mesmo os

parentes mais chegados. Com certeza esse será o resultado do evangelho

em muitos casos, por causa da arraigada corrupção do coração humano.

Enquanto um homem crê e outro permanece na incredulidade, enquanto um

homem resolve desistir de seus pecados, mas outro está resolvido a

continuar no pecado, o resultado da pregação do evangelho será divisão.

Não devemos culpar o evangelho, mas, sim, o coração do homem.

Nestes ensinamentos há uma profunda verdade, embora seja cons-

tantemente esquecida e negligenciada. Muitos falam em termos vagos

acerca de unidade, harmonia e paz na igreja de Cristo, como se devêssemos

esperar por essas coisas, e pelas quais tudo o mais devesse ser sacrificado.

Tais pessoas fariam bem em relembrar as palavras de nosso Senhor. Não há

dúvida, a unidade e a paz são bênçãos poderosas. Deveríamos buscar

alcançá-las, orando por elas e até desistindo de tudo o mais para as

obtermos, excetuando a bondade e uma boa consciência. Porém, é um

sonho vão supormos que as igrejas de Cristo desfrutarão de grande unidade

e paz, antes que venha o milênio.

Em segundo lugar, nosso Senhor nos diz que os verdadeiros cristãos

devem estar preparados para sofrerem tribulações neste mundo. Se somos

ministros ou ouvintes, se ensinamos ou somos ensinados, não faz muita

diferença. Temos que levar a nossa “cruz”. Devemos estar dispostos a

perder até a própria vida por amor a Cristo. Devemos nos submeter à perda

do favor dos homens, suportar as dificuldades e negar a nós mesmos muitas

vezes ou, então, jamais chegaremos ao céu. Enquanto o mundo, o diabo e os

nossos próprios corações forem como são, as coisas têm de ser assim.

Descobriremos quão útil é relembrar-nos dessa lição, para então

transmiti-la aos nossos semelhantes. Poucas coisas são mais prejudiciais à

religião do que as expectativas exageradas e fora de proporção. Cer

tas pessoas esperam encontrar uma medida de conforto mundano no serviço

de Cristo, embora não tenham o direito de esperar. E, não encontrando o

que esperavam, sentem-se tentadas a desistir, desgostosas,da religião. Feliz

é quem compreende que, embora o cristianismo traga uma coroa no final da

carreira, traz também uma cruz para o caminho.

Por fim, nosso Senhor nos alegra com a declaração de que mesmo

Page 74: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

74 Mateus 10.34-42

o menor serviço prestado àqueles que trabalham em sua causa será observado e

recompensado por Deus. „ „E quem der a beber ainda que seja um copo de

água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em verdade

vos digo que de modo algum perderá o seu galardão.”

Nesta promessa há algo maravilhoso. Ela nos ensina que os olhos do

nosso grande Mestre estão perenemente fixos sobre aqueles que trabalham

para Ele e procuram fazer o bem. Parece que essas pessoas trabalham sem

serem notadas, sem serem consideradas. O trabalho dos pregadores e

missionários, dos professores e dos que visitam os pobres, pode parecer de

pouco valor e insignificante, em comparação com os ofícios de reis e

parlamentares, de generais e estadistas. Mas não é insignificante aos olhos

de Deus. Ele observa os que se opõem aos seus servos e aqueles que os

ajudam. Ele observa quem é dócil para seus ministros, como Lídia agiu com

Paulo, e quem põe obstáculos no caminho, como Diótrefes fez contra o

apóstolo João. Toda a experiência diária dos discípulos de Cristo fica

registrada, enquanto trabalham na seara do Mestre. Tudo fica registrado no

grande livro das obras e tudo será revelado no dia do juízo. O copeiro-mór

esqueceu-se de José depois de ter sido restaurado a seu cargo. Mas o Senhor

Jesus jamais se esquece de qualquer do seu povo. Ele dirá a muitos, que

menos esperam por isso, no dia da ressureiçao: „„Tive fome e me destes de

comer; tive sede e me destes de beber” (Mt 25.35).

Ao encerrarmos o estudo deste capítulo, perguntamos a nós mesmos

como consideramos a obra e a causa de Cristo neste mundo. Estamos

ajudando ou dificultando essa obra? Estamos ajudando de alguma maneira,

aos profetas e aos „„justos”do Senhor? Estamos auxiliando estes

pequeninos? Estamos pondo obstáculos no caminho, ou estamos enco-

rajando os obreiros do Senhor, procurando animá-los? Estas são perguntas

muito sérias. Os que oferecem o “copo de água fria” sempre que tenham

oportunidade, agem bem e com sabedoria. Porém, agem ainda melhor

aqueles que trabalham ativamente na obra do Senhor. Que todos nós nos

esforcemos por deixar este mundo melhor do que aquele em que nascemos.

Isso é ter a mente de Cristo. Isso é descobrir pessoalmente o valor das

maravilhas contidas neste capítulo.

João Envia Mensageiros a Jesus Leia Mateus 11.1-15

A primeira coisa que nos chama atenção nesta passagem é a men-

sagem que João Batista envia a nosso Senhor Jesus Cristo. Ele mandou

Page 75: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 11.1-15 75

dois dos seus discípulos perguntarem a Jesus: “És tu aquele que estava para

vir, ou havemos de esperar outro?“

Essa indagação não foi gerada por dúvida ou incredulidade de João

Batista. Faríamos uma grave injustiça àquele grande santo do Senhor se

interpretássemos a pergunta dessa maneira. Ela foi formulada visando ao

benefício dos discípulos de João. Teve a finalidade de oferecer-lhes a

oportunidade de ouvirem dos próprios lábios de Cristo a evidência de sua

missão divina. Sem dúvida, João Batista sentiu que o seu próprio ministério

estava terminado. Alguma coisa, no seu íntimo, lhe segredava que ele

jamais sairia do cárcere de Herodes mas, pelo contrário, ali morreria. João

lembrou-se dos ciúmes e invejas, motivados pela ignorância, que haviam

surgido entre os seus discípulos e os de Cristo. Logo, escolheu o curso mais

provável para esses ciúmes serem dissipados para sempre. Enviou alguns

de seus seguidores para que estivessem “ouvindo e vendo” por si mesmos o

que Jesus fazia.

A conduta de João Batista nos oferece um extraordinário exem

plo para ministros, professores e aos pais, quando estão chegando ao final

de sua carreira. A principal preocupação desses deveria dizer respeito às

almas que eles deixarão atrás de si, neste mundo. E o grande desejo deles

deveria ser persuadir tais almas a apegarem-se a Cristo. A morte daqueles

que nos têm guiado e instruído neste mundo sempre deveria produzir tal

efeito. Deveria fazer com que nos apegássemos ainda mais firmemente

Àquele que nunca mais morrerá, que continuará para sempre e tem um

“sacerdócio imutável” (Hb 7.24).

Outra coisa que requer a nossa atenção, neste texto, é o elevado

testemunho dado por nosso Senhor no tocame ao caráter de João Ba

tista. Nenhum homem jamais recebeu tamanha aprovação como essa que

Jesus dá a seu amigo que fora aprisionado. “Entre os nascidos de mulher,

ninguém apareceu maior do que João Batista.” Nos dias de seu ministério

público, João havia confessado ousadamente a Jesus, perante os homens,

mostrando ser Ele o Cordeiro de Deus. Agora, Jesus declarava abertamente

que João Batista era mais do que um mero profeta.

Sem dúvida, havia alguns que estavam inclinados a fazer pouco caso

de João Batista, em parte, por ignorância da natureza do ministério de João,

e, em parte, por não terem compreendido a finalidade da pergunta que ele

mandara fazer a Jesus. Nosso Senhor faz silenciar esses astuciosos com a

declaração que faz a respeito de João Batista. Jesus lhes disse que não

deveriam pensar que João fosse um homem tímido, vacilante e instável,

“um caniço agitado pelo vento”. Se assim pensassem, estariam totalmente

enganados. João Batista foi uma testemunha poderosa e inflexível da

verdade. Jesus diz que não deveriam

Page 76: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

76 Matem 11.1-15

supor que João fosse mundano de coração, apreciador dos palácios reais e

da vida fácil. Se assim estivessem pensando, estariam cometendo um

grande erro. João era um abnegado pregador do arrependimento, que

preferiria ser vítima da ira de um rei a deixar de reprovar os pecados deste.

Em suma, Jesus queria que todos soubessem que João Batista era “muito

mais do que profeta”. João era alguém a quem Deus tinha dado maior

honra do que a todos os profetas do Antigo Testamento. Na verdade,

aqueles profetas haviam profetizado a respeito de Cristo, mas morreram

sem tê-Lo visto. João não somente profetizou a respeito dEle, como

também O viu face a face. Os profetas haviam predito que os dias do Filho

do homem certamente chegariam, e o Messias apareceria neste mundo.

João foi testemunha ocular desses dias e, também, um honroso instrumento

de preparação dos homens para esses dias. Aos profetas foi ordenado

predizer que o Messias “como cordeiro seria levado ao matadouro”, e seria

“cortado da terra dos viventes”. Mas a João Batista fora outorgado apontar

pessoalmente para Ele, e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado

do mundo!”

Há algo de belíssimo e consolador para os verdadeiros crentes, neste

testemunho de nosso Senhor sobre João Batista. Vemos o interesse que o

nosso grande Cabeça sente, quanto à vida e o caráter de todos os seus

membros. Vemos quanta honra Ele está pronto a conceder a todo trabalho e

labor que os crentes desempenham, em favor de sua causa. É uma doce

antecipação da confissão que Ele fará dos seus discípulos perante o mundo

inteiro reunido, quando Ele os apresentará inculpáveis diante do trono do

seu Pai, no dia final.

Sabemos, realmente, o que significa trabalhar para Cristo? Já nos

sentimos desanimados e derrotados, como se não estivéssemos fazendo

nenhum bem, e ninguém se importasse conosco? Já nos sentimos tentados

a dizer, quando postos de lado por alguma enfermidade, ou quando

retirados de cena pela providência divina: “Tenho eu trabalhado em vão e

gasto minhas forças inutilmente?” Enfrentemos tais pensamentos,

relembrando o que Jesus disse acerca de João Batista. Recordemo-nos de

que há Alguém que registra diariamente tudo quanto fazemos em favor

dEle, e que se agrada mais do trabalho de seus servos do que eles próprios

imaginam. A mesma língua que prestou testemunho a respeito de João

Batista, quando este estava na prisão, também dará testemunho de todo o

seu povo, no último dia. Ele dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! entrai na

posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”. Então

as testemunhas fiéis descobrirão, para sua admiração e grande surpresa,

que jamais proferiram uma única palavra em favor de seu Mestre, pela qual não venham a receber uma recompensa.

Page 77: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 11.16-24 77

A Insensatez dos Incrédulos;

O Perigo de Não se Usar a Luz

Leia Mateus 11.16-24

Estas declarações do Senhor Jesus foram provocadas pelo estado em

que se encontrava a nação judaica naquela época. Elas também falam

conosco, em alto e bom som, tanto quanto para os judeus. As palavras de

Jesus projetam uma grande luz sobre determinados aspectos do caráter do

homem natural, Elas nos ensinam sobre o perigoso estado em que se

encontram muitas almas imortais hoje em dia.

A primeira parte destes versículos mostra-nos a insensatez de muitas

pessoas não-convertidas, quanto às questões religiosas. Os judeus, na época de

Jesus Cristo, encontravam falta em qualquer mestre que Deus lhes enviasse.

Primeiro apareceu João Batista, pregando o arrependimento — um homem

austero que se mantinha afastado da sociedade e vivia como um asceta. Mas

isso satisfez aos judeus? Não! Antes, acharam falta nele e disseram: “Tem

demônio”. Então veio Jesus, o próprio Filho de Deus, pregando o

evangelho, vivendo como o faziam outros homens quaisquer sem praticar

nenhuma das austeridades peculiares a João Batista. E isso satisfez aos

judeus? Não! Novamente acharam falta, e disseram: “Eis aí um glutão e

bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!” Em suma, eles eram

perversos e difíceis de contentar tanto quanto a crianças teimosas.

É um fato lamentável que sempre existam milhares de professos

cristãos tão insensatos quanto aqueles judeus. Eles são tão perversos quanto

difíceis de contentar. Em tudo o que ensinamos ou pregamos eles

encontram alguma falha. Sem importar qual seja a nossa maneira de viver,

eles estão insatisfeitos. Se falamos da salvação mediante a graça e da

justificação pela fé, imediatamente eles clamam contra a nossa doutrina,

como se fosse licenciosa e antinomiana. Falamos da santidade que o

evangelho requer? Prontamente eles dizem que somos por demais estritos e

exigentes, como se quiséssemos ser justos demais. Estamos alegres? Eles

nos acusam de leviandade. Mostramo-nos graves e sérios? Então eles nos

taxam de melancólicos e azedos. Mantemo-nos afastados de bailes, de

corridas e de eventos esportivos? Então eles nos denunciam como

puritanos, exclusivistas e bitolados. Comemos, bebemos e nos vestimos,

como as demais pessoas, e frequentamos eventos sociais e outras atividades

seculares? Então eles insinuam, zombeteiramente, que não vêem qualquer

diferença entre nós e aqueles que não

Page 78: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

78 Mateus 11.16-24

seguem qualquer religião, dizendo que não somos melhores do que os

demais homens. Ora, o que é tudo isso, senão a reiteração da conduta

daqueles judeus incrédulos? “Nós vos tocamos flauta, e não dançastes;

entoamos lamentações, e não pranteastes/‟ Aquele que disse estas palavras,

conhecia perfeitamente bem o coração do homem.

À verdade incontestável é que os verdadeiros cristãos não devem

esperar que homens não-convertidos estejam satisfeitos, seja com a fé ou

com a conduta dos crentes. Se assim o fizerem, estarão esperando o que não

podem mesmo receber da parte dos perdidos. Os crentes precisam

preparar-se mentalmente para ouvir objeções, argumentos ardilosos e

desculpas tolas, não importa quão santamente estejam vivendo. Com toda a

razão, afirmou Quesnel: “Não importa que medidas tomem os homens

bons, jamais conseguirão escapar das censuras do mundo. A melhor coisa a

fazer é não se deixar atingir por essas censuras”. Aü- nal, o que dizem as

Escrituras? “O pendor da carne é inimizade contra Deus” (Rm 8.7). “Ora, o

homem natural não aceita as cousas do Espírito de D e u s . . ( 1 Co 2.14).

Esta é a explicação de todo este assunto.

A segunda parte destes versfculos mostra-nos a enorme iniquidade da

impenitência proposital. Nosso Senhor declarou que “haverá menor rigor”

para Tiro, Sidom e Sodoma, no dia do juízo, do que para aquelas cidades

que tinham ouvido os sermões e contemplado os milagres de Jesus, mas não

se arrependeram.

Esta declaração se reveste de uma solenidade toda especial.

Examinemo-la, pois, detidamente. Pensemos, por momentos, em quanta

imoralidade, devassidão, idolatria e escuridão espiritual deve ter havido em

Tiro e Sidom. Relembremos a indizível iniqüidade de Sodoma.

Recordemo-nos de que as cidades designadas por nosso Senhor —* Co-

razim, Betsaida e Cafamaum — provavelmente não eram piores do que

quaisquer outras cidades da Judéia, e que, seja como for, eram muito

melhores, moralmente falando, do que Tiro, Sidom ou Sodoma. Então,

observemos que os habitantes de Corazim, Betsaida e Cafamaum achar-

-se-ão no mais profundo inferno, porquanto, embora tenham ouvido o

evangelho, não se arrependeram, e mesmo dispondo de grandes vantagens

religiosas, não tiraram proveito delas. Quão terrível soa tudo isso!

Por certo, estas palavras deveriam fazer tinir os ouvidos de todos os

que ouvem regularmente a pregação do evangelho, mas não querem

converter-se. Quão grande é a culpa de tais homens, diante de Deus! Quão

tremendo é o perigo espiritual em que se acham, dia após dia! Por mais

decentes, morais e respeitáveis que possam ser suas vidas, na verdade eles

são mais culpados aos oíhos de Deus do que os moradores de Tiro e Sidom,

ou do que algum miserável habitante de Sodoma. Aquela gente não

dispunha de qualquer luz espiritual, mas

Page 79: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 11.16-24 79

estes últimos negligenciam a luz espiritual que lhes é proporcionada.

Aqueles nunca tiveram oportunidade de ouvir o evangelho, mas estes não

querem obedecer-lhe. O coração daquela gente da antigüidade talvez

chegasse a sensibilizar-se, se tivessem desfrutado dos mesmos privilégios

destes últimos. Tiro e Sídom “se teriam arrependido com pano de saco e

cinza‟‟, e Sodoma teria „ „permanecido até ao dia de hoje‟ ‟. O coração

dessas pessoas, mesmo sob a luz intensa do evangelho, permanece frio e

inabalável. Só podemos tirar de tudo isso uma única e dolorosa conclusão:

a culpa de tais pessoas será muito maior do que a daqueles antigos, no

último dia. Com profimda verdade observou um pastor inglês: “Entre

todos os agravantes dos nossos pecados, não há nada mais hediondo do

que ouvirmos, com freqüência, qual é o nosso dever”.

Que todos meditemos freqüenteraente a respeito de Corazim, Bet-

saida e Cafamaum! Que fique bem estabelecido em nossas mentes que o

fato de ouvirmos e gostarmos do evangelho, apenas, não é suficiente.

Precisamos ir mais além. Devemos fazer o que Jesus disse: “arrependei-

-vos e convertei-vos”. Precisamos, realmente, valer-nos de Cristo,

unindo-nos espiritualmente a Ele. Enquanto não fizermos assim, esta-

remos em grave perigo. No fim, haverá menos rigor para os moradores de

Tiro, Sidom e Gomorra, que não ouviram o evangelho, do que para os que agora vivem no Brasil e ouvem o evangelho, mas morrem na incredulidade.

A Grandeza de Cristo; O Amplo Convite do Evangelho

Leia Mateus 11.25-30

Poucas passagens existem, nos quatro evangelhos, que sejam mais

importantes do que esta. Há poucos trechos bíblicos que contenham, em

tão poucos versículos, tantas e tão preciosas verdades. Que Deus nos dê olhos para ver e coração para apreciar o grande valor destas verdades!

Em primeiro lugar, aprendemos quão excelente é a atitude mental de ser simples

e despretencioso como uma criança, e estar pronto a recebera instrução. Em

oração, nosso Senhor disse a Deus Pai: “Ocultaste estas cousas aos sábios e

entendidos, e as revelaste aos pequeninos”.

Não nos compete tentar explicar por que razão alguns recebem e

crêem no evangelho, enquanto outros não o fazem. A soberania de Deus

quanto a isso é um profundo mistério, de maneira que não somos

Page 80: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

80 Mateus J 1.25-30

capazes de sondá-la. Mas, seja como for, bá algo na Bíblia que se destaca

como uma grande verdade prática, e da qual jamais nos deveríamos

esquecer. O evangelho geralmente está oculto daqueles que são “sábios a

seus próprios olhos, e prudentes em seu próprio conceito” (Is 5.21). O

evangelho geralmente é revelado aos humildes e despretenciosos, que

estão dispostos a aprender. As palavras da virgem Maria estão se cum-

prindo constantemente: „ „Encheu de bens os famintos, e despediu vazios

os ricos” (Lc 1.53).

Vigiemos nosso coração quanto ao orgulho, em todas as suas ma-

nifestações — o orgulho intelectual, o orgulho das riquezas, o orgulho em

face de nossa própria bondade, o orgulho de nossos próprios méritos.

Coisa alguma tende por manter um homem fora do céu, impedindo-o de

ver a Cristo, mais do que o orgulho. Enquanto imaginarmos que somos

alguma coisa, jamais seremos salvos. Oremos pedindo humildade, e então

a cultivemos. Procuremos conhecer a nós mesmos de maneira correta,

descobrindo a nossa verdadeira condição diante de um Deus santo. O

início do caminho para o céu é quando sentimos que estamos no caminho

do inferno, e então nos dispomos a ser ensinados pelo Espírito Santo. Um

dos primeiros passos no caminho da salvação éperguntar, como fez Saulo

de Tarso: “Que farei, Senhor?” (At 22.10). Dificilmente há outra

afirmação de nosso Senhor que seja tão frequentemente repetida quanto

esta: “...o que se exalta, será humilhado; mas o que se humilha, será

exaltado” (Lc 18.14).

Em segundo lugar, aprendamos, com base nestes versículos, a

grandiosidade e a majestade de nosso Senhor Jesus Cristo. A linguagem de

nosso Senhor quanto a este assunto é profunda e maravilhosa. Disse Ele:

“Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai;

e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser

revelar”. Ao ler estes versículos, bem podemos dizer: “Tal conhecimento é

maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir‟

‟, Podemos vislumbrar um pouco da perfeita união existente entre a

primeira e a segunda pessoa da Trindade. Vemos algo da incomensurável

superioridade do Senhor Jesus, sobre todos os que não passam de meros

homens. Não obstante, depois de havermos dito tudo isso, devemos

confessar que existem alturas e profundidades neste versículo, que estão

muito além da nossa débil compreensão. Podemos apenas admirá-las no

espírito de crianças pequenas. Contudo, ainda assim, sentimos que metade

dessas coisas jamais se contou ao mortal.

Entretanto, que nós vejamos nestas palavras de Jesus a grande

verdade prática de que todo poder e autoridade, em tudo quanto diz

respeito à salvação de nossas almas, está nas mãos de nosso Senhor

Page 81: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 11,25-30 81

Jesus Cristo. “Tudo me foi eotregue por meu Pai.” Ele tem a chave. Para ir

ao céu, precisamos ir até Ele. Ele é a porta: precisamos entrar por

intermédio dEle. Ele é o pastor das ovelhas: precisamos ouvir a Sua voz e

segui-Lo, se não quisermos perecer no deserto. Ele é o médico das almas:

precisamos consultá-Lo, se quisermos ser curados da praga do pecado. Ele

é o pão da vida: precisamos nos alimentar dEle, se quisermos que as nossas

almas sejam satisfeitas. Ele é a luz: devemos andar após Ele, se não nos

quisermos desviar para as trevas. Ele é a fonte da vida: precisamos

lavar-nos no seu sangue, se quisermos ser purificados e preparados para o

grande dia da prestação de contas. Benditas e gloriosas são estas verdades! Se temos a Cristo, temos todas as coisas (1 Co 3.22).

Por fim, com base nesta passagem, aprendemos como é amplo e pleno

o convite do evangelho de Cristo. Os últimos três versículos do capítulo, que

encerram essa lição, são realmente preciosos. Eles vêm ao encontro do

trêmulo pecador, que indaga: “Cristo revela o amor do Pai para alguém

como eu?” Estes versos são um precioso encorajamento, e merecem ser

lidos com especial atenção. Por quase dois mil anos eles têm sido uma

bênção para o mundo, e têm beneficiado a milhões de pessoas. Não há uma

única sentença, nestes versículos, que não contenha preciosos

pensamentos.

Observe quem são aqueles a quem Jesus convida. Ele não se dirige

àqueles que se sentem justos e dignos em si mesmos. Ao contrário,

dirige-se a “todos os que estais cansados e sobrecan-egados”. Essa é uma

descrição bastante ampla. Abrange multidões neste mundo cansativo.

Todos os que sentem um peso no coração, todos quantos desejam tornar-se

livres de alguma carga do pecado, de alguma carga de tristeza, de alguma

carga de ansiedade ou de remorso — todos estão convidados a virem a

Cristo, não importa quem sejam ou o que já tenham sido na vida.

Note, em seguida, a graciosa oferta que Jesus faz. “Eu vos aliviarei... e

achareis descanso para as vossas almas.*‟ Quão animadoras e confortantes

são tais palavras! A falta de tranqüilidade é uma das grandes características

do mundo. A pressa, o vexame, o fracasso e os desapontamentos nos

confrontam por todos os lados. Mas há esperança. Existe uma arca de

refugio para o cansado, tal como houve para a pomba solta por Noé. Em

Cristo encontramos descanso — descanso para a consciência e para o

coração, descanso fundamentado no perdão de todo pecado, descanso que é

resultado da paz com Deus.

Veja quão simples é o pedido que Jesus faz aos que estão cansados e

sobrecarregados. “Vinde a mim... tomai sobre vós o meu jugo... aprendei de

mim...” Jesus não interpôs nenhuma condição difícil de

Page 82: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

82 Mateus 11.25-30

ser atendida. Ele nada fala sobre obras a serem realizadas, ou de me-

recimentos, para que alguém possa receber os seus dons. Ele somente nos

pede para irmos até Ele como estamos, com todos os nossos pecados,

entregando-nos aos seus cuidados, como criancinhas dispostas a receber o

seu ensino. É como se Jesus dissesse: “Não busqueis alívio nos homens.

Não espereis que vos apareça alguma ajuda, vinda de outra direção. Tais e

quais sois, neste mesmo dia, vinde a mim”.

Observe, iguaímente, quão eneorajadora descrição Jesus faz de si

mesmo. Ele diz: “Sou manso e humilde de coração”. Quão verazes são essas

palavras é algo que todos os santos de Deus têm freqüente- mente

experimentado. Maria e Marta, em Betânia, Pedro após a sua queda, os

discípulos após a ressurreição, Tomé depois de sua fria incredulidade —■

todos eles provaram da “humildade e gentileza de Cristo”. Este é o único

lugar em toda a Escritura, onde se faz menção ao “coração” de Jesus. Esta é

uma declaração que nunca deveríamos esquecer.

Em último lugar, observe a eneorajadora consideração que Jesus dá

ao serviço prestado a Ele. Ele diz: “O meu jugo é suave e o meu fardo é

leve”. Sem dúvida que existe uma cruz para ser carregada se seguimos a

Cristo. Indubitavelmente existem provações e testes a serem enfrentados, e

batalhas a serem travadas. Mas, os consolos do evangelho ultrapassam em

muito o peso da cruz. Comparado com o serviço ao mundo e ao pecado,

comparado com o jugo das cerimônias judaicas e com a escravidão às

superstições humanas, o serviço prestado a Cristo é muitas vezes mais leve

e fácil. O jugo de Cristo não é carga maior do que as penas o são para a ave

que as possui. Os mandamentos de Cristo “não são penosos” (1 Jo 5.3). “Os

seus caminhos são caminhos deliciosos,e todas as suas veredas paz” (Pv

3.17).

Agora vem a solene pergunta: Já aceitamos, pessoalmente, esse

convite? Acaso, não temos pecados a serem perdoados e nem tristezas a

serem removidas? nem feridas de consciência a serem saradas? Se temos,

ouçamos atentamente a voz de Jesus Cristo. Ele fala conosco como falou

aos judeus. “Vinde a mim...” Esta é a chave para a verdadeira felicidade.

Eis o segredo de ter um coração leve. Tudo depende e gira em torno da

aceitação desta oferta que Cristo faz.

Que jamais estejamos satisfeitos, enquanto não soubermos e sen-

tirmos que já fomos a Cristo pela fé, buscando nEle o descanso, e que cada

dia estamos indo até Ele em busca de novos suprimentos da graça divina!

Se fomos até Ele, aprendamos a nos apegar a Ele ainda mais intimamente.

Mas, se ainda não fomos até Ele, então que o façamos agora mesmo. A

palavra de Cristo jamais falhará: “O que vem a mim, de modo nenhum o

lançarei fora” (Jo 6.37).

Page 83: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.1-13 83

A Verdadeira Doutrina do Sábado

Sem os Erros Judaicos Leia Mateus 12.1-13

O grande assunto que aparece com proeminência nesta passagem é

o dia de sábado. Esse era um assunto sobre o qual prevaleciam estranhas

opiniões entre os judeus, na época de nosso Senhor. Os fariseus haviam

feito muitos acréscimos ao que as Escrituras ensinavam a respeito do

assunto e sobrecarregaram o verdadeiro caráter desse dia com as tradições

humanas. Este também é um assunto acerca do qual diversas opiniões têm

sido defendidas nas igrejas de Cristo, e a respeito do qual existem

atualmente entre os homens grandes diferenças. Vejamos o que podemos

aprender a respeito, com base nos ensinos de nosso Senhor, nestes

versículos.

Em primeiro lugar, fixemos na mente, como um princípio soli-

damente estabelecido, que nosso Senhor Jesus Cristo não anula a observância

de um dia semanal de descanso sabático. Nem aqui nem em qualquer outro

trecho dos quatro evangelhos isso acontece. Freqüen- temente

encontramos ensinos de Cristo acerca das distorções judaicas atinentes ao

sábado, mas jamais uma palavra ensinando que os discípulos de Cristo não

devem observar o dia do descanso.

E importantíssimo notar esse fato. Os equívocos que se têm ori-

ginado de uma consideração superficial das declarações de nosso Senhor

acerca do sábado, não são nem pequenos e nem poucos. Milhares de

pessoas têm chegado à conclusão precipitada de que os cristãos nada têm a

ver com o quarto mandamento da lei, e que ele não é obrigatório, dá mesma

forma que não é obrigatória a lei mosaica dos sacrifícios de animais.

Todavia, nada existe nas páginas do Novo Testamento que justifique tal

conclusão.

A verdade patente é que nosso Senhor não aboliu a lei do sábado.

Tão-somente Ele a liberou das interpretações incorretas, purificando-a de

adições inventadas pelos homens. Jesus não arrancou do decálogo o quarto

mandamento. Apenas o desnudou das miseráveis tradições pelas quais os

fariseus haviam incrustado o dia, transformando-o em uma carga

insuportável, ao invés de ser uma bênção. Jesus deixou o quarto

mandamento exatamente onde o encontrou, isto é, como parte integrante da

eterna lei de Deus, da qual não se pode retirar nem sequer um til, e a qual

jamais passará. Que nunca nos esqueçamos disso!

Em segundo lugar, fixemos bem em nossas mentes que nosso Senhor

Jesus Cristo permite que todas as obras de real necessidade,

Page 84: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

84 Mateus 12.1-13

e obras de misericórdia, sejam feitas no dia do sábado. Este é um princípio

abundantemente firmado na passagem bíblica que ora consideramos.

Encontramos nosso Senhor justificando aos seus discípulos por colherem

espigas em dia de sábado. Era um ato permitido nas Escrituras (Dt 23.25).

Eles estavam famintos e necessitados de comida. Portanto, não se poderia

culpá-los. Vemos o Senhor Jesus frisando a legitimidade da cura de um

homem enfermo, em dia de sábado. O homem estava padecendo de uma

dolorosa enfermidade. Nesse caso, não era desobediência ao quarto

mandamento prestar alívio. Jamais deveríamos descansar de fazer o bem.

São salientes e irretorquíveis os argumentos por intermédio dos

quais nosso Senhor dá apoio à legitimidade de toda e qualquer obra

necessária ou de misericórdia, em dia de sábado. Quando acusado pelos

fariseus de ter quebrado a lei junto com os seus discípulos, Jesus

reíembra-os como Davi e seus homens, quando necessitados de alimentos,

haviam comido dos pães da proposição que estavam no tabernáculo. Ele os

faz relembrar de como os sacerdotes são obrigados a trabalhar aos sábados,

no templo, abatendo animais e oferecendo sacrifícios. Também fê-los

lembrar de que até mesmo uma ovelha deveria ser ajudada a sair de algum

buraco, em dia de sábado, ao invés de permitir-se que ali ficasse e

morresse. Acima de tudo, porém, Jesus estabelece o grande princípio de

que nenhuma ordenança de Deus deve ser pressionada sobre nós de modo

que nos obrigue a negligenciar os claros deveres da caridade para com o

próximo. “Misericórdia quero, e não holocaustos.” A primeira tábua da lei

não deve ser interpretada de tal maneira que nos force a desobedecer à

segunda. O quarto mandamento não deve ser explicado de maneira a nos

tornar insensíveis e destituídos de misericórdia para com o próximo. Há

uma profunda sabedoria em tudo isso. Lembremo-nos de que “jamais

alguém falou como este homem” (Jo 7.46).

Ao deixarmos este assunto cuidemos para que jamais sejamos

tentados a menosprezar a santidade do sábado cristão. Tenhamos cuidado

para não fazer das instruções de nosso gracioso Senhor uma desculpa para

a profanação do dia de descanso. Não abusemos da liberdade que Ele

assinalou tão claramente para nós, fingindo que fazemos obras necessárias

e de misericórdia, no dia do Senhor, que, na verdade, fazemos para

satisfazer ao nosso próprio egoísmo.

Há um grande motivo para advertirmos as pessoas quanto a isso. Os

erros dos fariseus, no tocante ao dia do Senhor, tendiam para um extremo.

Os erros dos cristãos tendem para o outro extremo. Os fariseus fingiam

querer aumentar a santidade do dia. Os cristãos, com grande freqiiência,

dispõem-se a subtrair a santidade do dia, agindo de maneira

Page 85: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.1-13 85

irreverente, profana e ociosa. Que cada um de nós vigie a sua própria

conduta quanto a essa questão. O cristianismo verdadeiro está intimamente

ligado à observância autêntica do dia do Senhor. Que jamais nos

esqueçamos de que o nosso grande alvo deveria ser obediência ao man-

damento que diz: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar”. As obras

de necessidade e misericórdia podem ser feitas. Jesus disse: “É lícito fazer

bem”. Porém, dedicar o dia do Senhor ao mero lazer, ao ócio ou ao mundo

é contra a lei de Deus. Tal atitude é contrária ao exemplo de Cristo, e um

pecado contra um mandamento claro de Deus.

A Iniqüidade dos Fariseus;

Descrição Encorajadora do Caráter de Cristo Leia Mateus 12.14-21

A primeira coisa que nos chama a atenção nesta passagem é a

desesperada iniqüidade do coração humano. Silenciados e derrotados pelos

argumentos de nosso Senhor, os fariseus foram afundando cada vez mais

no pecado. Eles, retirando-se “conspiravam contra ele, em como lhe

tirariam a vida”.

Que maldade havia praticado nosso Senhor para ser tratado daquela

maneira? Nenhuma, de modo algum. Eles não podiam fazer qualquer

acusação legítima contra Ele. Jesus era santo, inocente, sem mácula e

separado dos pecadores. Os seus dias eram passados inteiramente na

prática do bem. Nenhuma acusação podia ser levantada contra os seus

ensinamentos. Ele havia provado que sua doutrina concordava com as

Escrituras e com a razão, e nenhuma resposta havia sido dada aos seus

argumentos. Não obstante, pouco importava quão perfeitamente Ele vi-

vesse ou ensinasse. Ele era odiado.

Assim é a natureza humana, manifestando-se em suas verdadeiras

cores. O coração não convertido odeia a Deus e mostrará este ódio sempre

que ousar ou tiver uma oportunidade favorável. Sempre perseguirá as

testemunhas de Deus. Desagrada-lhe todos os que manifestam algo da

mente de Deus ou que tenham sido renovados segundo a sua imagem. Por

que tantos dentre os profetas do Senhor foram mortos? por que os nomes

dos apóstolos foram rejeitados pelos judeus como malignos? por que os

primeiros mártires cristãos foram executados? por que João Huss, Jerônimo

de Praga, Ridley e Latimer foram queimados na fogueira? Não por causa de

algum pecado que houvessem cometido; e nem por causa de qualquer

iniqüidade que tivessem praticado. Todos sofreram porque eram homens

piedosos. A natureza hu

Page 86: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

86 Mateus 12.14-21

mana não-convertida odeia os homens de Deus, porque odeia o próprio

Deus.

Os crentes verdadeiros nunca devem ficar surpresos, recebem o

mesmo tratamento que Jesus recebeu. “Irmãos, não vos maravilheis, se o

mundo vos odeia” (1 Jo 3.13). Nem a coerência mais perfeita ou o

caminhar mais chegado com Deus, haverá de isentar o crente da inimizade

do homem natural. O crente não precisa torturar a sua mente com a fantasia

de que, se tivesse menos faltas e mais coerência, todos os homens

certamente o amariam. Tal pensamento envolve um tremendo equívoco.

Devemos nos lembrar de que nunca houve um homem perfeito na terra,

senão um só, e que Ele não foi amado, e sim, odiado. Não é das fraquezas

do crente que o mundo desgosta, mas da sua bondade. Não são os

remanescentes da antiga natureza humana que provocam a inimizade dos

homens deste mundo, mas antes, é a exibição da nova natureza.

Lembremo-nos destas verdades e sejamos pacientes. O mundo odiou a

Cristo e continuará odiando os crentes.

A outra coisa que nos chama a atenção nesta passagem é a en-

corajadora descrição do caráter de nosso Senhor Jesus Cristo, que o apóstolo

Mateus extraiu da profecia de Isaías. “Não esmagará a cana quebrada, nem

apagará a torcida que fumega.”

O que devemos entender com as expressões “cana quebrada” e

“torcida que fumega”? Sem dúvida alguma, a linguagem do profeta é

figurada. O que significam essas duas expressões? A explicação mais

simples parece ser que o Espírito Santo estava aqui descrevendo pessoas

cuja graça no momento é fraca, cujo arrependimento é débil, e cuja fé é

pequena. Para com tais pessoas, o Senhor Jesus Cristo mostrar- -se-á muito

temo e compassivo. Embora a cana quebrada seja frágil, não será

esmagada. Por menor que seja a torcida que fumega, não será apagada.

Esta é verdade permanente no reino da graça divina, que uma graça fraca,

uma fé fraca e um arrependimento fraco são todos preciosos aos olhos de

nosso Senhor. “Deus é mui grande, contudo a ninguém despreza” (Jó 36.5).

A doutrina aqui salientada é plena de consolo e conforto. Para os

milhares de crentes em todas as igrejas de Cristo, essa doutrina deveria

representar grande paz e esperança. Em cada congregação, há alguns que

ouvem o evangelho, mas estão à beira de desistir da própria salvação,

porquanto as suas forças lhes parecem tão poucas. Estão cheios de temores

e desalentos, porquanto o seu conhecimento, fé, esperança e amor parecem

tão pequenos e insignificantes. Que esses crentes sejam consolados por

este texto bíblico. Que eles saibam que a fé, embora fraca, confere ao seu

possuidor um interesse real e verdadeiro em Cristo, tanto quanto a fé mais

robusta, embora não forneça o mesmo gozo.

Page 87: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.14-21 87

Há vida biológica em um recém-nascido, tanto quanto em um homem

plenamente adulto. Há fogo em uma fagulha, tanto quanto nas chamas mais

ardentes. Mesmo o menor grau de graça divina é uma possessão que dura

para sempre. A graça divina nos vem do céu, é preciosa aos olhos de nosso

SenhoT. Jamais será rejeitada.

Acaso Satanás faz pouco caso dos primeiros passos do arrepen-

dimento para com Deus e da fé em nosso Senhor Jesus Cristo? Não! Pelo

contrário, ele é tomado de grande ira, porque percebe que o seu tempo está

se tornando cada vez mais curto. Acaso os anjos de Deus consideram com

desdém os primeiros sinais de penitência para com Deus, em Cristo? Não,

de maneira alguma! Há júbilo entre os anjos, quando os pecadores se

arrependem. Acaso o Senhor Jesus mostra desinteresse quando a fé é

pequena e o arrependimento fraco? Não, certo que não! No momento em

que uma “cana quebrada” como Saulo de Tarso começa a clamar a Deus,

eis que o Senhor lhe envia Ananias, porque “ele está orando” (At 9.11).

Erramos gravemente se não encorajamos os primeiros passos de uma alma

em direção a Cristo. Que os ignorantes deste mundo escarneçam e zombem,

se assim o quiserem fazer. Podemos estar certos de que as “canas

quebradas” e as “torcidas que fumegam” são muito preciosas aos olhos de

nosso Senhor.

Que todos nós entesouremos estas verdades no coração, utilizando-

-as nos momentos de necessidade, tanto para o nosso proveito como para o

de outras pessoas. Deveria ser um conceito bem firme em nossa religião

cristã que uma fagulha é melhor do que a escuridão, e que uma pequena fé é

melhor do que nenhuma fé. Há quem despreze “o dia dos humildes

começos”? (Zc 4.10), mas esses humildes começos não são desprezados

por Cristo; e também não deveriam ser desprezados pelos crentes.

A Blasfêmia dos Adversários de Cristo; O

Pecado Contra o Conhecimento; As Palavras Vãs Leia Mateus 12.22-37

Esta passagem das Escrituras contém „ „cousas difíceis de enten-

der”^ Pe 3.16). O pecado contra o Espírito Santo, em particular, nunca foi

devidamente explicado, nem mesmo pelos teólogos mais eruditos. Não é

difícil demonstrar, a partir das Escrituras, no que esse pecado não consiste.

Difícil é demonstrar claramente o que é esse pecado. Contudo, não

precisamos ficar surpresos. A Bíblia não seria o Livro de Deus, se não

contivesse trechos mais profundos, aqui e ali, que nenhum

Page 88: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

88 Mateus 12.22-37

ser humano é capaz de perscrutar. Cumpre-nos agradecer a Deus pelas

lições de sabedoria a serem extraídas, até mesmo de versículos como estes,

acima; lições que mesmo os iletrados podem compreender facilmente .

Aprendamos destes versículos, antes de mais nada, que não existe

coisa alguma por demais blasfema para os homens endurecidos e pre-

conceituosos dizerem contra o cristianismo. Nosso Senhor expele um

demônio, e imediatamente os fariseus declaram que Ele faz isso “pelo

poder de Belzebu, maioral dos demônios”, A acusação foi simplesmente

absurda. Nosso Senhor, pois, mostra ser uma falta de bom senso supor que

o diabo ajudaria a derrubar o seu próprio reino, dizendo: “Se Satanás expele

a Satanás, dividido está contra si mesmo”. Todavia, para os incrédulos, não

parece ser um exagero quando dizem as coisas mais absurdas e ilógicas

contra a religião cristã. Os fariseus não eram os únicos que perderam de

vista a lógica, o bom senso e o equilíbrio, quando se trata de atacar o

evangelho de Cristo.

Por mais estranha que pareça aquela acusação, com freqüência ela

tem sido feita contra os servos do Senhor. Os inimigos dos crentes têm sido

forçados a confessar que os servos de Deus estão realizando uma obra no

mundo, e que está produzindo efeito. Os resultados do labor cristão deixam

perplexos os incrédulos. Eles não podem negar o fato. Assim sendo, o que

poderiam eles dizer? Dizem exatamente aquilo que os fariseus disseram a

respeito de nosso Senhor: “Tem demônio”. Os mais antigos hereges

disseram coisas desse tipo contra Atanásio. Os católicos-romanos

espalharam rumores dessa espécie a respeito de Martinho Lutero. E coisas

assim continuarão sendo ditas, enquanto o mundo existir. Nunca deveríamos nos surpreender se horrendas acusações são

feitas contra os melhores homens, sem causa. “Se chamaram Belzebu *

ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?” E um velho estra-

tagema. Quando os argumentos de um crente não podem ser respondidos, e

as suas boas obras não podem ser negadas, então o último recurso dos

ímpios é tentar denegrir o caráter do crente. Se isso é o que está nos

acontecendo, suportemos tudo com paciência. Se temos a Cristo e uma boa

consciência, podemos estar contentes. Falsas acusações não impedirão a

nossa entrada no céu. O nosso caráter será mostrado em suas verdadeiras

luzes, no último dia.

Em segundo lugar, reconhecemos por estes versículos que ê im-

possível a neutralidade em religião. Disse Jesus: “Quem não é por mim, é

contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha”. Muitos, em toda a

história da igreja de Cristo, tem tido a necessidade de serem confrontados

com estas palavras de nosso Senhor, Eles se esforçam por manter

Page 89: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus J2.22-37 89

meio termo em sua religião. Não são tão maus quanto muitos pecadores;

porém, também não são santos. Eles sentem a veracidade do evangelho de

Cristo, quando este lhes é apresentado, mas têm receio de confessar o que

sentem. Visto que têm tais sentimentos, bajulam-se a si mesmos, pensando

que não são tão ruins quanto os outros. Não obstante, estão aquém do

padrão de fé e conduta que Jesus estabeleceu. Eles não estão posicionados

decididamente do lado de Cristo, mas também não se declaram

abertamente contra Ele. Nosso Senhor adverte a todos estes, que eles se

encontram em uma posição extremamente perigosa. Em termos de religião

existem somente dois lados, somente dois partidos. Estamos do lado de

Cristo, trabalhando na sua causa? Se assim não é, estamos contra Ele.

Estamos fazendo o bem neste mundo? Se não fazemos o bem, fazemos o

mal.

O princípio aqui lançado é de natureza tal que deveria interessar a

todos nós. Estabeleçamos com firmeza em nossas mentes, que jamais

teremos paz e faremos o bem a outras pessoas, a menos que sejamos

francos e resolutos em nosso cristianismo. O ensino de Gamaliel e de

Erasmo jamais, até agora, trouxe felicidade e serventia a quem quer que

seja, nem jamais o fará.

Em terceiro lugar, notemos a excessiva iniqüidade dos pecados

cometidos contra o conhecimento. Esta é uma conclusão prática, que parece

fluir naturalmente das palavras de nosso Senhor acerca da blasfêmia contra

o Espírito Santo. Por mais difíceis que nos pareçam estas palavras, parece

justo pensarmos que elas provam a existência de níveis variados de

pecaminosidade. As ofensas que se derivam da ignorância a respeito da

verdadeira missão do Filho do Homem não serão punidas com tanta

severidade quanto as ofensas cometidas contra a luz maior que possuímos,

nesta nossa dispensação do Espírito Santo. Quanto maior a luz espiritual,

maior a culpa de quem a rejeita. Quanto mais claro for o conhecimento que

um homem tiver, da natureza do evangelho, tanto maior será o seu pecado,

se ele se recusa a arrepender-se e a crer.

A doutrina aqui ensinada também aparece em outras partes das

Sagradas Escrituras. Disse o escritor da epístola aos Hebreus: “É im-

possível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados... sim, é

impossível outra vez renová-los para arrependimento... porque, se vi-

vermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno

conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo

contrário, certa expectação horrível de juízo...” (Hb 6.4-7 e 10.26,27), Esta

é uma doutrina a respeito da qual encontramos provas lamentáveis por toda

a parte. Os filhos não-convertidos de pais crentes, os empregados

não-convertidos que trabalham para famílias piedosas, os membros

não-convertidos de congregações evangélicas são as pessoas mais di

Page 90: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

90 Mateus 12.22-37

fíceis de impressionar em toda a terra. Parece que já ficaram insensíveis. A

mesma chama que amolece a cera, endurece o barro. Esta é uma doutrina

que recebe uma terrível confirmação nas histórias de pessoas que

terminaram os seus dias de maneira realmente desesperada. Faraó, Saul,

Acabe, Judas Iscariotes, Juliano e Francisco Spira são ilustrações temíveis

daquilo que nosso Senhor quis dizer. Em todos esses casos houve uma

combinação de claro conhecimento da verdade e deliberada rejeição de

Cristo. Em cada um havia iluminação na mente, ódio à verdade, no coração.

O fim de cada uma dessas pessoas parece ter sido a escuridão das trevas para

sempre.

Que Deus nos dê o desejo de usar o conhecimento de que já dis-

pomos, seja ele grande ou pequeno! Que tomemos cuidado de não negli-

genciarmos as oportunidades para desenvolver o conhecimento que já

temos! Temos luz? Então vivamos de acordo com essa luz. Conhecemos a

verdade? Então andemos na verdade. Esta é a melhor salvaguarda contra o

pecado imperdoável.

Em último lugar, aproveitemos destes versículos o ensino sobre a

imensa importância do cuidado que devemos ter com as palavras que falamos

diariamente. Nosso Senhor nos informa que, “de toda palavra frívola que

proferirem os homens, dela darão conta no dia de juízo“. E, acrescenta:

“Pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás

condenado”.

Poucas declarações de Cristo são capazes de sondar tão profun-

damente os nossos corações quanto estas. Talvez nenhuma outra coisa

exista a que os homens dêem tão pouca atenção, quanto às suas próprias

palavras. Eles passam suas atividades diárias falando e conversando sem

pensar e sem refletir, e parecem imaginar que, se fizerem o que é direito,

pouco importa o que dizem.

Porém, é assim mesmo? São nossas palavras tão completamente

insignificantes e sem importância? Em vista de uma passagem bíblica como

esta, não ousaríamos afirmar tal coisa. Nossas palavras evidenciam o estado

do nosso coração, tão certo quanto o gosto da água evidencia o estado do

seu manancial, “A boca fala do que está cheio o coração”. Os lábios só

proferem aquilo que a mente concebe. As nossas palavras formarão um

assunto para inquisição contra nós, no dia do julgamento final. Teremos de

prestar contas das nossas declarações, tanto quanto de nossos atos. De fato,

estas são considerações muito solenes. Se não existisse qualquer outro texto

na Bíblia, este, por si só, deveria convencer-nos do fato que todos somos

culpados diante do Senhor e de que precisamos de uma justiça muito

superior à nossa — a justiça de Cristo (Fp 3.9). Que nos mostremos humildes, enquanto lemos esta passagem, ao

Page 91: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.22-37 91

relembrarmos os tempos passados. Quantas palavras ociosas, tolas, vãs,

levianas, frívolas, pecaminosas e sem proveito todos nós temos dito!

Quantas e quantas palavras temos usado, as quais, como ervas daninhas,

têm-se espalhado por uma grande área, semeando duradouro mal no

coração de outras pessoas! Conforme disse um homem de Deus no passado,

quando nos encontramos com os nossos amigos, com quanta freqüência “as

nossas palavras servem somente para, mais tarde, nos arrependermos delas!

‟ ‟ Há uma profunda verdade no que disse Burkitt: “Uma zombaria profana,

ou um escárnio ateu, podem grudar à mente daqueles que os ouvirem, muito

depois que já morreu a língua que os proferiu. Uma palavra dita é

fisicamente transitória, mas é moralmente permanente”. Escreveu Salomão:

“A morte e a vida estão no poder da língua” (Pv 18.21).

Mostremo-nos vigilantes, no tocante aos nossos dias vindouros,

depois de havermos lido este trecho bíblico acerca das nossas palavras.

Resolvamos, com a ajuda da graça divina, ser mais cautelosos e equi-

librados quanto ao uso que fizermos da língua, sobre como haveremos de

usar as palavras. Oremos diariamente para que a nossa palavra “seja sempre

agradável, temperada com sal” (Cl 4.6). A cada manhã, digamos juntamente

com o santificado Davi: “Disse comigo mesmo: Guardarei os meus

caminhos, para não pecar com a língua” (SI 39.1). Clamemos, como Davi,

ao forte por força: “Põe guarda, Senhor, à minha boca; vigia a porta dos

meus lábios” (SI 141.3). Foi com grande razão que Tiago escreveu: “Se

alguém não tropeça no falar é perfeito varão” (Tg 3.2).

O Poder da Incredulidade;

Reformas Imperfeitas e Incompletas;

O Amor de Cristo Pelos Seus Discípulos Leia Mateus 12.38-50

O começo desta passagem é um daqueles trechos que ilustram

admiravelmente a veracidade da história do Antigo Testamento. Nosso

Senhor menciona a rainha do Sul, como uma pessoa real, alguém que tinha

vivido e morrido. Ele se refere à história de Jonas e sua miraculosa

preservação no ventre do grande peixe como fatos inegáveis. Não nos

esqueçamos disso, pois há pessoas que dizem crer nos escritos do Novo

Testamento, mas ao mesmo tempo zombam dos acontecimentos registrados

no Antigo Testamento, como se fossem meras fábulas. Tais indivíduos

esquecem-se de que, assim fazendo, lançam desdém sobre o

Page 92: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

92 Mateus 12* 38-50

próprio Cristo. Quanto à sua autoridade, o Antigo e o Novo Testamento

permanecem de pé ou caem juntamente. O mesmo Espírito Santo que

inspirou homens para escrever sobre Salomão e sobre Jonas, também

inspirou os evangelistas a escreverem a história de Jesus Cristo. Estas não

são questões sem importância nestes nossos dias. Que tais coisas fiquem

bem afixadas em nossa mente.

A primeira lição prática que requer nossa atenção, nestes versículos,

é o espantoso poder da incredulidade. Observemos como os escribas e fariseus

solicitaram de nosso Senhor que lhes mostrasse um maior número de

milagres: “Mestre, queremos ver de tua parte algum sinal“. Eles fingiam

que só desejavam receber maiores e mais convincentes evidências, a fim de

se deixarem convencer e tomarem-se discípulos. Eles fecharam os olhos

para os inúmeros milagres que Jesus já havia realizado. Não era suficiente

para eles que Jesus tivesse curado os enfermos e purificado os leprosos,

ressuscitado mortos e expulsado demônios. Eles ainda não estavam

persuadidos. Ainda exigiam mais provas. Não queriam enxergar aquilo que

nosso Senhor mostrou claramente em sua resposta, isto é, que eles não

tinham disposição real para crer. Já havia evidência suficiente para

convencê-los, mas eles não queriam ser convencidos.

Na igreja de Cristo, há muitos que se encontram exatamente nas

mesmas condições espirituais desses escribas e fariseus. Eles bajulam a si

mesmos, dizendo que só precisam de um pouco mais de provas para se

tornarem cristãos decididos. Imaginam que, se a sua razão e intelecto ao

menos fossem alimentados por mais alguns argumentos, imediatamente

desistiriam de tudo para seguir a causa de Cristo, tomando a cruz e

seguindo-O. Mas enquanto isso, ficam apenas esperando. Infeliz cegueira a

deles! Não querem mesmo ver a grande quantidade de evidências ao seu

redor. A verdade insofismável é que eles não querem se deixar convencer.

Que todos nos ponhamos em guarda contra essa atitude de in-

credulidade. Esse é um mal crescente nos dias que correm. A ausência de

uma fé simples, como a de uma criança, é uma das características marcantes

em nossos tempos, em todos os níveis da sociedade. A verdadeira

explicação para muitas coisas estranhas, que nos espantam, na conduta de

homens de influência nas igrejas e no governo das nações, é a evidente falta

de fé. Homens que não acreditam naquilo que Deus diz na Bíblia, têm que,

necessariamente, assumir uma conduta vacilante e indecisa, nas questões

morais e religiosas: “Se não crerdes, certamente não permanecereis“ (Is

7.9).

A segunda lição prática que encontramos nestes versículos é o

imenso perigo de uma reforma religiosa imperfeita e parcial. Notemos

Page 93: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.38-50 93

quão horrível quadro nosso Senhor pintou sobre o homem para quem

retorna o espírito imundo, depois de já o ter deixado. Quão assustadoras são

as palavras: “Voltarei para minha casa, donde saf*. Quão vívida a

descrição: “E, tendo voltado, a encontra vazia, varrida e ornamentada”.

Quão tremenda é a conclusão: “E leva consigo outros sete espíritos, piores

do que ele... e o último estado daquele homem torna-se pior do que o

primeiro”. É um quadro repleto de dolorosa significação. Que nós o

examinemos cuidadosamente, e assim aprendamos sabedoria. s

E indiscutível que neste quadro temos uma figura da história da

igreja e da nação judaica, no tempo da primeira vinda de Cristo à terra.

Chamados como foram, no início, para saírem do Egito e serem o povo

todo peculiar de Deus, parece que os judeus jamais perderam inteiramente a

tendência de adorar ídolos. Sendo posteriormente remidos do cativeiro da

Babilônia, parece que nunca corresponderam à bondade de Deus.

Despertados como haviam sido, pela pregação de João Batista, o

arrependimento parece ter sido superficial. Nos dias em que o Senhor Jesus

lhes falava, eles se haviam tomado, como nação, mais duros e perversos do

que nunca. A vulgaridade da adoração aos ídolos cedera lugar a um mero

formalismo morto. Sete outros espíritos, piores do que o primeiro, tinham

vindo apossar-se deles. O seu último estado foi rapidamente se tomando

pior do que o primeiro. Loucamente, atiraram- -se a uma guerra rebelde

contra Roma. A Judéia transformou-se em uma autêntica Babel de

confusão. Jerusalém foi tomada. O templo destruído. Os judeus foram

dispersos por todo o mundo.

É também muito provável que este seja um quadro da história da

igreja cristã, como um todo. Libertados como foram das trevas do paganismo

mediante a pregação do evangelho, os crentes jamais chegaram a viver à

altura da luz que receberam. Revificadas como muitas foram, por ocasião

da Reforma Protestante, nenhuma das igrejas de Cristo tem chegado a fazer

uso correto de todos os seus privilégios, e nem têm avançado “até a

perfeição”. Todas ficaram mais ou menos aquém do padrão, acomodadas à

própria escória. Todas se têm mostrado mui prontas a estarem satisfeitas

com reformas meramente externas. E agora há dolorosos sintomas, em

quase todo lugar, de que o espírito maligno tem retornado à sua antiga casa,

e está preparando uma insurreição de infidelidade e doutrinas falsas, ta!

qual nunca se viu até hoje. Entre a incredulidade em certos segmentos da

igreja, e a superstição formal em outros, tudo parece estar pronto para

alguma terrível manifestação do anticristo. É de temer-se muito que o

último estado das professas igrejas cristãs venha a mostrar-se muito pior do

que o primeiro.

O mais triste, e o pior de tudo, é que temos aqui, neste quadro,

Page 94: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

94 Mateus 12.38-50

a história de muitos homens e mulheres. Houve pessoas que, durante um certo

tempo, pareciam estar sob a influência de fortes sentimentos religiosos.

Elas mudaram de vida. Puseram de lado muitas coisas ruins. Adotaram

muitas coisas boas. No entanto, estacaram nesse ponto e não mais

avançaram, e pouco a pouco foram perdendo completamente o seu

cristianismo. Assim, o espírito maligno voltou e encontrou a casa vazia,

varrida e adornada, e essas pessoas são agora piores do que jamais foram

antes. Parecem ter a consciência cauterizada. O sentimento religioso parece

inteiramente destruído. Parecem ser homens entregues a uma mente

corrompida. Poderíamos mesmo afirmar que, agora, “é impossível outra

vez renová-los para arrependimento” (Hb 6.6). Ninguém mostra ser tão

desesperadamente ímpio como aqueles que, após terem experimentado

fortes convicções religiosas, voltaram de novo ao pecado e ao mundo.

Se amamos a vida, oremos para que estas lições fiquem profun-

damente gravadas em nossas mentes. Que jamais nos contentemos com

uma reforma parcial de vida, sem uma inteira conversão a Deus, e sem a

mortificação do corpo inteiro do pecado. É coisa excelente esforçarmo-

-nos por expulsar o pecado para fora do nosso coração. Todavia, sejamos

cuidadosos, para que, em lugar do pecado, demos acolhida à graça de Deus.

Certifiquemo-nos de que não somente nos temos libertado do antigo

inquilino, o diabo, mas, também, certifiquemo-nos de já temos em nós o

Espírito Santo.

A última lição prática que vem ao nosso encontro, nestes versículos,

é o temo afeto com que o Senhor Jesus considera os seus verdadeiros discípulos.

Observe como Ele se refere a todos os que cumprem a vontade de Deus Pai,

que está nos céus. Jesus diz: “Qualquer que fizer a vontade de meu Pai

celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe”. Quão graciosas são essas palavras!

Quem pode conceber a profundeza do amor de nosso querido Senhor para

com os seus parentes segundo a carne? Era um amor puro e altruísta. Deve

ter sido um amor poderoso, um amor que ultrapassa os limites da

compreensão humana. Não obstante, aprendemos aqui que todos os crentes

verdadeiros são considerados seus parentes. Ele os ama, sente

profundamente acerca deles, cuida deles, como membros de sua família,

ossos de seus ossos e carne de sua carne.

Há aqui uma solene advertência contra todos os que zombam e

perseguem os verdadeiros cristãos por causa da religião deles. Tais pessoas

não pensam no que estão fazendo. Estão perseguindo os parentes próximos

do Rei dos reis. Descobrirão, no último dia, que escarneceram daqueles a

quem o Juiz de toda a terra considera como “meu irmão, irmã e mãe”. Nisto há um rico encorajamento para todos os crentes. Eles são

Page 95: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 12.38-50 95

muito mais preciosos aos olhos do Senhor do que aos seus próprios olhos.

A fé pode ser débil, o arrependimento pode não ser muito profundo, e a

força pode ser pequena. Eles podem ser pobres e necessitados neste mundo.

Entretanto, no último versículo deste capítulo há um „ „qualquer que” que

deveria alegrá-los: “Qualquer que” crê é um parente próximo de Jesus

Cristo. O nosso Irmão mais velho haverá de providenciar para o tempo e a

eternidade, sem jamais rejeitar a quem crê. Não há nenhum membro da

família dos remidos de quem o Senhor não se lembre. No Egito, José

proveu ricamente para todos os seus parentes; Jesus proverá para os seus.

A Parábola do Semeador Leia Mateus 13.1-23

Este capítulo é marcado pelo número de parábolas que contém. Sete

notáveis ilustrações da verdade espiritual são aqui apresentadas pelo grande

Cabeça da igreja, com base na natureza. Ao assim fazer, Jesus nos mostra

que o ensino religioso pode obter preciosos subsídios de tudo quanto existe

na criação. Aqueles que quiserem “achar palavras agradáveis” (Ec 12.10)

não devem esquecer este fato.

A parábola do semeador, que inicia este capítulo, é uma daquelas

parábolas que admitem uma aplicação muito abrangente. Esta parábola está

se cumprindo continuamente diante dos nossos próprios olhos. Onde quer

que a Palavra de Deus esteja sendo anunciada ou exposta, e as pessoas

estejam reunidas para ouvi-la, as declarações de nosso Senhor nesta

parábola provam ser verdadeiras. Elas descrevem o que acontece, via de

regra, em todas as congregações onde a palavra de Deus é pregada.

Antes de qualquer outra coisa, aprendamos, com esta parábola, que o

trabalho do pregador assemelha-se muito ao trabalho de um se

meador. Tal como o semeador, o pregador precisa semear boa semente,

se deseja ver frutos. Ele precisa semear a pura Palavra de Deus, e não

as tradições da igreja ou as doutrinas humanas. Sem isso, o esforço

do pregador será em vão. Ele pode ir de um lado para outro, parecendo

dizer muito e trabalhar muito em seus deveres ministeriais, a cada se-

mana. Porém, não haverá colheita de almas para o céu, nenhum resultado vivo, nenhuma conversão.

tilli

Assim como o semeador, o pregador precisa ser diligente. Não

de poupar esforços. Precisa lançar mão de todos os meios possíveis

para fazer o seu trabalho prosperar. Ele deve, com paciência, “semear

junto a todas as águas” (Is 32.20), e semear na esperança de uma boa

Page 96: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

96 Mateus 13.1-23

colheita. Deve pregar a Palavra “quer seja oportuno, quer não” (2 Tm 4.2).

Ele não pode se deixar deter por dificuldades e desencorajamen- tos.

“Quem somente observa o vento, nunca semeará” (Ec 11.4). Não há

dúvida, o sucesso de um pregador não depende exclusivamente de seus

esforços e de sua diligência; mas, sem labor e diligência, o sucesso

dificilmente será alcançado.

Tal como o semeador, o pregador também não pode transmitir vida.

Ele pode espalhar a semente que lhe foi confiada; mas não pode ordenar

que ela cresça. Ele pode oferecer a palavra da verdade a um povo, mas não

pode fazer as pessoas receberem a palavra e produzir fruto espiritual.

Produzir vida é uma prerrogativa soberana de Deus: “O espírito é o que

vivifica” (Jo 6.63). Somente Deus pode “dar o crescimento” (1 Co 3.7).

Que estas coisas estejam abrigadas no fundo do nosso coração.

Ser um verdadeiro ministro da Palavra de Deus não é algo de somenos *

importância. E fácil ser um obreiro formal e preguiçoso na igreja. Mas, ser

um semeador fiel é muito difícil. Os pregadores devem ser especialmente

lembrados em nossas orações.

Em seguida, aprendamos que há várias maneiras de se ouvir a Palavra

de Deus inutibnente. Podemos escutar um sermão com corações

endurecidos, como o chão "à beira do caminho”, sem preocupação, sem

cuidado, sem refletir sobre o estado de nossa própria alma. Cristo

crucificado pode ser afetuosamente exposto diante de nós, e podemos ouvir

dos seus sofrimentos com total indiferença, como um assunto em que não

temos nenhum interesse. Tão rápido as palavras chegam aos nossos

ouvidos, o diabo pode arrancá-las de nós, e então, regressamos aos nossos

lares como se nem tivéssemos ouvido algum sermão. ínfe- lizmente,

existem muitos ouvintes desse tipo! Deles pode-se dizer, tal como foi dito

acerca dos ídolos da antiguidade: “Têm olhos e não vêem; têm ouvidos e

não ouvem” (SI 135.16,17). A verdade parece não exercer efeito sobre o

coração deles.

Podemos ouvir um sermão com prazer, enquanto que a impressão

produzida em nós é apenas temporária e de pouca duração. Nosso coração,

como o “solo rochoso”, pode produzir um mundo de sentimentos e boas

resoluções. Porém, durante todo o tempo, pode não haver raízes profundas

em nossa alma, de maneira que o primeiro vento frio de oposição ou

tentação pode fazer secar a nossa aparente religião. In~ felizmente, há

fnuitos ouvintes dessa classe! A mera apreciação a sermões não é sinal da

presença da graça divina. Milhares de pessoas batizadas são como os

judeus dos dias de Ezequiel: “Eis que tu és para eles como quem canta

canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas

palavras, mas não as põem por obra” (Ez 33.32).

Page 97: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 13,1-23 97

Podemos ouvir um sermão aprovando cada palavra, e, no entanto,

não tirar dele qualquer benefício real, em consequência da absorvente

influência exercida pelo mundo sobre nós. Nosso coração, tal como o solo

recoberto de espinhos, pode se deixar afogar pelos cuidados, prazeres e

propósitos mundanos. Podemos realmente apreciar o evangelho e desejar

obedecê-lo, no entanto, podemos, insensivelmente, não dar qualquer

oportunidade ao evangelho de produzir fruto, permitindo que outras coisas

venham ocupar lugar em nossos afetos, e assim, sem o percebermos, tomar

conta de todo nosso coração. Infelizmente, também existem muitos

ouvintes dessa natureza! Eles conhecem bem a verdade. Esperam que um

dia serão cristãos decididos. Porém, jamais chegam ao ponto de desistir de

tudo por amor a Cristo. Eles nunca tomam a decisão de “buscar em

primeiro lugar o reino de Deus"; e, por isso mesmo, acabam morrendo em

seus pecados.

Estes são pontos que deveríamos pesar cuidadosamente. Nunca

deveríamos esquecer de que há várias maneiras de se ouvir a Palavra, sem

proveito. Não basta vir à igreja para ouvir a pregação: podemos ouvir e

estar desatentos. Não basta apenas prestar atenção: as impressões podem

ser apenas temporárias, tão superficiais que logo se dissipem. Também não

basta que as nossas impressões não sejam meramente passageiras. Elas

poderão continuar não produzindo quaisquer resultados, em consequência

de nosso obstinado apego a este mundo. Verdadeiramente, “enganoso é o

coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente corrupto, quem

o conhecerá?”(Jr 17.9).

Em último lugar, deixemo-nos ensinar, alicerçados sobre esta

parábola, que só há uma evidência de que estamos ouvindo corretamente a

Palavra de Deus. A evidência é produzir fruto. O fruto aqui referido é o

fruto do Espírito. Arrependimento para com Deus, fé no Senhor Jesus

Cristo, santidade de vida e de caráter, dedicação à oração, humildade, amor

cristão, mente espiritual — estas são as únicas provas satisfatórias de que a

semente da Palavra de Deus está realizando o trabalho que lhe é próprio em

nossas almas. Sem tais provas, a nossa religião é vã, por melhor que seja a

nossa profissão de fé, e não será melhor do que o bronze que soa ou o

címbalo que retine. Cristo disse: “Eu vos designei para que vades e deis

frutos, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16).

Não há outra porção nesta parábola que seja tão importante quanto

esta. Jamais nos deveríamos contentar com uma ortodoxia infrutífera, ou a

simples e fria manutenção de corretos pontos de vista teológicos. Não

podemos satisfazer-nos somente com um conhecimento claro, com

sentimentos calorosos e uma decente profissão cristã. Devemos cuidar para

que o evangelho que professamos amar esteja realmente produzindo

Page 98: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

98 Mateus 1 3.1-23

“fruto*‟ em nossos corações e em nossas vidas. Nisto é que consiste o

verdadeiro cristianismo. As palavras do apóstolo Tiago deveriam soar

freqüentemente em nossos ouvidos: “Tomai-vos, pois, praticantes da pa-

lavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22).

Que nós não passemos além, sem fazermos a nós mesmos uma

importante indagação: “Como é que estamos ouvindo a Palavra de Deus?”

Vivemos em um país que se declara cristão. Vamos à igreja domingo após

domingo, e ouvimos sermões. Com que atitude ouvimos? Que efeito a

pregação está exercendo sobre o nosso caráter? Podemos apontar para

qualquer coisa que mereça o nome de “fruto”?

Podemos estar seguros de que, para chegar ao céu, por fim, é preciso

algo mais do que ir à igreja regularmente aos domingos e escutar os

pregadores. A Palavra de Deus precisa ser acolhida em nosso coração e

tornar-se a regra de nossa conduta. Ela deve produzir uma influência

prática sobre o nosso caráter, que se tome aparente no nosso

comportamento exterior. Se não estiver sucedendo assim, a pregação da

palavra servirá tão-somente para aumentar ainda mais a nossa condenação

no dia do juízo.

A Parábola do Trigo e do Joio Leia Mateus 13.24-43

A parábola do trigo e do joio, que ocupa a parte principal destes

versículos, reveste-se de particular importância para os nossos dias. Ela tem

o propósito eminente de corrigir as expectativas muito altas que têm muitos

cristãos quanto ao efeito das missões cristãs no estrangeiro e à pregação do

evangelho em sua pátria. Que demos a essa parábola, portanto, a atenção

que ela merece.

Em primeiro lugar, esta parábola nos ensina que o bem e o mal

sempre serão achados Juntos na igreja, até ao fim do mundo. A igreja visível

nos é apresentada como um corpo misto. Ela é um vasto “campo”, onde

crescem, lado a lado, o trigo e o joio. Devemos estar preparados para

encontrar crentes e incrédulos, convertidos e não- -convertidos, os “filhos

do reino” e os “filhos do maligno”, todos misturados uns com os outros, em todas as congregações de pessoas batizadas.

Nem mesmo a mais pura e fiel pregação do evangelho conseguirá

impedir esse estado de coisas. Ele tem existido em todos os séculos da

igreja. Tal foi a experiência dos primeiros pais da igreja; tal foi a

experiência dos reformadores; e continua sendo a experiência dos me

ii

Page 99: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 13.24-43 99

lhores ministros do evangelho, até hoje. Nunca houve uma igreja local ou

assembléia cristã cujos membros fossem todos “trigo”. O diabo, o grande

inimigo de nossas almas, sempre teve o cuidado de semear o “joio”.

A disciplina eclesiástica mais prudente e estrita não impedirá essa

situação. Qualquer que seja a denominação, todas, igualmente, descobrem

que assim acontece. Sem importar o que façamos para purificar uma igreja,

jamais conseguiremos obter uma comunhão perfeitamente pura. O joio

sempre será encontrado no meio do trigo. Hipócritas e enganadores se

infiltrarão sorrateiramente. E, o pior de tudo, é que, se nos mostramos

exageradamente zelosos em nosso esforço de obter a pureza, fazemos mais

mal do que bem. Corremos o risco de encorajar a muitos Judas Iscariotes, e

o risco de esmagar muitas “canas quebradas”. Em nosso afã de “arrancar o

joio”, corremos o risco de arrancar “também com ele o trigo”. Tal zelo não

está de acordo com o entendimento, e tem, com freqüência, causado muito

dano. Quem não se importa com o que acontece ao trigo, contanto que possa

desarraigar o joio, demonstra possuir bem pouco da mente de Cristo. E,

afinal de contas, há uma profunda verdade na caridosa declaração de

Agostinho: “Os que hoje são joio, amanhã poderão ser trigo”.

Sentimo-nos inclinados a esperar pela conversão do mundo inteiro

através do trabalho dos missionários e ministros do evangelho? Que nós

tenhamos esta parábola sempre diante de nós, e nos acautelemos contra tal

idéia. Dentro da presente ordem de coisas, jamais veremos transformados

em trigo todos os habitantes da terra. O trigo e o joio continuarão a “crescer

juntos até à colheita”. Os reinos deste mundo jamais se tornarão o reino de

Cristo, nera o milênio começará, até que retorne o próprio Rei.

Sentimo-nos perturbados pelo argumento zombeteiro dos incré-

dulos, de que o cristianismo não pode ser uma religião verdadeira, visto que

existem tantos crentes falsos? Que nós tenhamos em mente esta parábola e

permaneçamos inabaláveis. Digamos ao incrédulo que a sua zombaria desse

estado de coisas não nos surpreende, de maneira alguma. Nosso Senhor nos

preparou para isso há quase dois mil anos atrás. Ele previu e predisse que a

sua igreja seria um campo contendo, não somente trigo, mas, também o joio.

Sentimo-nos tentados a abandonar uma igreja evangélica por outra,

porque vemos que muitos dos seus membros não são convertidos? Se for

este o caso, lembremo-nos desta parábola e tenhamos muito cuidado com

nossas atitudes. De modo nenhum encontraremos uma igreja perfeita.

Poderíamos passar a vida inteira migrando de uma igreja para outra,

sofrendo perene desapontamento. Não importa aonde formos,

Page 100: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

100 Mateus 13.24-43

ou a igreja que freqüentemos, sempre encontraremos o joio.

Em segundo lugar, a parábola nos ensina que haverá um dia da

separação entre os membros piedosos e os membros ímpios da igreja visível, no

fim do mundo. O presente estado de coisas não continuará para sempre. O

trigo e o joio serão separados afinal. O Senhor Jesus “enviará os seus

anjos”, no dia de seu segundo advento, os quais recolherão os que se

professam cristãos, formando dois grupos distintos. Esses poderosos

ceifeiros celestiais não se enganarão no que estiverem fazendo. Haverão de

discernir, com juízo infalível, entre o justo e o ímpio, colocando cada um

no seu próprio grupo. Os santos e fiéis servos de Cristo receberão glória,

honra e vida eterna. Os mundanos, os ímpios, os descuidados e os

não-convertidos serão lançados dentro da “fornalha acesa”, onde receberão

opróbrio e eterna tribulação.

Há algo de peculiarmente solene nesta parte da parábola. O sig-

nificado de tais palavras não admite qualquer equívoco. Nosso Senhor fala

com palavras de singular clareza, como se quisesse nos impressionar

profundamente com a seriedade da questão. Ele conclui a parábola com um

“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Que o ímpio estremeça ao ler esta parábola. Que ele veja, através

dessa linguagem assustadora, a sua própria condenação certa, a menos que

se arrependa e se converta. Compreenda que está semeando a desgraça

eterna para si próprio, se prosseguir em sua negligência quanto às coisas de

Deus. Que ele reflita que o seu destino final consistirá em ser recolhido

entre os feixes de joio, a fim de ser queimado. Sem dúvida alguma, uma

perspectiva horrenda como essa deveria fazer qualquer pessoa meditar.

Conforme disse Baxter: “Não devemos interpretar erroneamente a

paciência de Deus para com os ímpios”.

Que o crente em Cristo console-se com a leitura desta parábola. Que

entenda que há felicidade e segurança, preparadas para ele, no grande e

temível dia do Senhor. A voz do arcanjo e a trombeta de Deus não haverão

de aterrorizá-lo. Pelo contrário, serão uma convocação para a cena que,

desde há muito, o crente deseja contemplar: uma igreja perfeita e uma

perfeita comunhão dos santos. Quão lindo será o aspecto do corpo de

Cristo, a igreja, quando, afinal, tiver sido separada dos ímpios! Que bonito

parecerá então o trigo, recolhido no “celeiro” de Deus, quando, finalmente,

todo o joio tiver sido retirado do meio deles! Quão brilhantemente

resplandecerá a graça divina, quando não mais estiver sendo obscurecida

pelo incessante contato com os mundanos e os não-converti dos! Os justos

são pouco conhecidos no dia de hoje, O mundo não vê neles qualquer

beleza, como também não viu beleza alguma no Mestre e Senhor deles:

“Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele

mesmo” (1 Jo 3.1). Porém,

li

Page 101: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 13.24-43 101

um dia, “os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai”. Nas

palavras de Matthew Henry: “A santificação deles será perfeita e a sua

justificação se tomará pública”. E também lemos, em Colos- senses 3.4:

“Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis

manifestados com ele, em glória”.

As Parábolas do Tesouro, da Pérola

e da Rede Leia Mateus 13.44-50

As parábolas do “tesouro oculto no campo” e do homem que

“negocia e procura boas pérolas” parecem ter por alvo transmitir uma

mesma mensagem. Contudo, diferenciam-se quanto a uma notável par-

ticularidade. O “tesouro” foi encontrado ao acaso, por quem não procurava

por ele. A “pérola” foi encontrada somente após uma busca muito

diligente, por quem buscava boas pérolas. Entretanto, a conduta de ambos

os descobridores foi precisamente a mesma. Ambos “venderam tudo”, com

o propósito de fazer sua propriedade o objeto achado. É precisamente

quanto a esse particular que a instrução, em ambas as parábolas, é a mesma.

As duas parábolas têm por intuito ensinar que, se um homem está

realmente convencido da importância da salvação, haverá de desistir de tudo o

mais, para ganhar a Cristo e a vida eterna. Qual foi a conduta daqueles dois

homens que nosso Senhor descreve? O primeiro estava persuadido da

existência de um tesouro “oculto no campo”, o qual haveria de

recompensá-lo ricamente se ele comprasse o tal campo, sem importar o

quanto tivesse de pagar. O outro ficou persuadido de que a “pérola” que

havia achado era tão imensamente valiosa, que lhe conviria vender tudo o

quanto tinha a fim de adquiri-la. Ambos estavam convencidos de haverem

encontrado algo de imenso valor. Ambos se dispuseram a fazer um

tremendo sacrifício para que pudessem tornar-se possuidores daquelas

riquezas. Talvez outras pessoas estranhassem essa atitude. Outros

poderiam julgar aqueles dois homens uns tolos por haverem pago tão

elevada soma em dinheiro pelo campo e a pérola. Porém, eles sabiam o que

estavam comprando. Tinham a certeza de que estavam fazendo um

excelente negócio.

Você pode ver, nesta simples ilustração, a conduta de um ver-

dadeiro cristão. Ele é o que é, e faz o que faz, em sua religião, por estar

totalmente persuadido de que vale a pena. Ele abandona o mundo. Despe-se

do velho homem. Esquece-se das vãs companhias de sua vida

Page 102: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

102 Mateus 13.44-50

passada. Como Mateus, ele desiste de tudo, e, como Paulo, ele a “tudo

considera como perda”, por causa de Cristo. E por quê? Porque está

convencido de que Cristo irá recompensá-lo por tudo quanto ele estiver

deixando para trás. Ele vê em Jesus Cristo um tesouro de valor inestimável.

Cristo é a pérola preciosa. Ele fará qualquer coisa para ganhar a Cristo.

Nisto consiste a verdadeira fé. Este é o sinal da genuína operação do

Espírito Santo.

Observe, nestas duas parábolas, a verdadeira razão para a conduta

de muitas pessoas não-convertidas! Em se tratando de religião, elas são o

que são porque não estão plenamente persuadidas de que vale a pena ser

diferente. Evitam a decisão. Retraem-se de tomar a sua cruz. Vacilam entre

duas opiniões. Não desejam se comprometer. Não vêm ousadamente para o

lado de Cristo. Mas, por quê? Por não estarem convencidos de que isso é a

solução. Eles não estão seguros de que “o tesouro” está bem em frente

deles. Não estão convencidos de que a “pérola” vale tanto. Eles ainda não

conseguem tomar a resolução de “vender tudo” para que possam ter Cristo.

E assim, com freqüência acabam perecendo etemamente! Quando alguém

não se dispõe a abrir mão de tudo por causa de Cristo, temos de tirar a triste

conclusão de que tal pessoa não recebeu a graça divina.

A parábola da rede que é lançada ao mar tem alguns pontos em

comum com a parábola do trigo e do joio. A sua finalidade é instruir- -nos

no tocante a uma importantíssima questão: a verdadeira natureza da igreja

visível de Cristo.

A pregação do evangelho era como uma grande rede lançada em

meio ao mar deste mundo. A igreja professa, que haveria de ser colhida pela

rede, seria um corpo misto. A rede haveria de apanhar peixes de todo tipo,

bons e ruins. No seio da igreja haveria cristãos de diversas categorias,

convertidos e não-convertidos, tanto falsos quanto autênticos. A separação

entre bons e maus viria com certeza, mas não antes do fim do mundo. Esse

foi o relato que o grande Mestre deu a seus discípulos a respeito das igrejas

que eles haveriam de fundar.

É de suma importância que as lições contidas nesta parábola es-

tejam profundamente gravadas em nossa mente. Dificilmente haveria outro

assunto no cristianismo, acerca do qual sejam cometidos erros tão grandes

quanto este a respeito da natureza da igreja visível. Talvez não exista

nenhum outro assunto em que os erros sejam tão perigosos para a alma.

Aprendamos, com esta parábola, que todas as assembléias de cristãos

professos devem ser consideradas corpos mistos. Todas contêm peixes bons e

ruins, convertidos e não-convertidos, filhos de Deus e filhos deste mundo,

que devem ser descritos e tratados distintamente uns

k

Page 103: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 13.44-50 103

dos outros. Dizer-se a todas as pessoas batizadas, que elas nasceram de

novo, que possuem o Espírito de Deus, que são santas e são membros do

corpo de Cristo, na luz de uma parábola como esta, é inconcebível. Este

pode ser um modo lisonjeiro e bajulador de tratar com as pessoas, mas é

difícil que venba a fazer o bem ou salvar uma alma. E uma maneira

calculada de promover a justiça-própria, e ninar os pecadores dormentes.

Tal tratamento subverte o pleno ensinamento de Cristo e é nocivo para as

almas. Já tivemos ocasião de ouvir tal doutrina? Nesse caso, lembremo-nos

da “rede”.

Finalmente, que tenhamos como princípio nunca estar satisfeitos com

uma ligação meramente externa com a igreja. Podemos estar dentro da rede,

mas não pertencer a Jesus Cristo. Milhares de pessoas recebem a água do

batismo sem jamais serem lavadas na água da vida. Muitos participam da

comunhão do pão e do vinho à mesa do Senhor, mas nunca se alimentam de

Cristo, pela fé. Somos convertidos? Somos peixes bons ? Esta é a grande

pergunta, e terá de ser, finalmente, respondida. Dentro em pouco, a rede

será arrastada para a praia. E então, o caráter da religião de cada homem

será finalmente exposto. Haverá uma eterna separação entre os peixes bons

e os ruins. Haverá uma “fornalha de fogo para os ímpios. Certamente,

conforme asseverou Baxter: Estas palavras tão claras precisam mais ser

recebidas e cridas, do que explicadas”.

Cristo é Desprezado em sua Própria

Terra; O Perigo da Incredulidade Leia Mateus 13.51-58

A primeira coisa que deveríamos observar, nestes versículos, é a

penetrante pergunta com a qual nosso Senhor conclui as sete admiráveis

parábolas deste capítulo. Ele pergunta: “Entendestes todas estas cousas?” A

aplicação pessoal tem sido chamada de “alma” da pregação. Um sermão

sem aplicação é como uma carta enviada sem o endereço do destinatário.

Ela pode ter sido muito bem escrita, corretamente datada e assinada. Porém,

não tem valor algum, porquanto nunca chega ao seu destino. A pergunta de

nosso Senhor é um admirável exemplo de uma aplicação que realmente

perscruta o coração dos ouvintes: “Entendestes?”

A mera formalidade do ato de ouvir um sermão de nada aproveita ao

homem, a menos que ele entenda o seu significado. Em nada seria melhor

do que ouvir o sopro de uma trombeta ou o ritmo de um

Page 104: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

104 Mateus 13.51-58

tambor. Poderia cora igual proveito participar de uma missa católica em

latim! É preciso que o intelecto da pessoa seja posto a funcionar e o seu

coração tocado. As idéias precisam ser absorvidas pela mente. O ouvinte

deve levar consigo as sementes de novos pensamentos. Sem isso, ele

ouvirá em vão.

É muito importante deixar bem claro este ponto. Existe muita

ignorância sobre toda essa questão. Milhares de pessoas há que frequen-

tam regularmente a igreja, pensando que com isso já cumpriram os seus

deveres religiosos sem nunca saírem com uma idéia ou uma impressão

gravada em suas mentes e em seus corações. Se lhes perguntássemos, após

terem voltado para casa, no domingo, o que foi que aprenderam na igreja,

não poderiam dizer nenhuma palavra a respeito. E, se as examinássemos,

no final de um ano, quanto ao conhecimento religioso que adquiriram no

decurso desse prazo, descobriríamos que continuam tão ignorantes quanto

os pagãos.

Vigiemos as nossas almas quanto a essa questão. Levemos co-

nosco, para as reuniões nas igrejas, não somente os nossos corpos, mas

também a nossas mentes, nossos corações e nossas consciências. E sempre

perguntemos a nós mesmos: „ „O que foi que aproveitei deste sermão? O

que aprendi de novo? Quais verdades ficaram gravadas em minha mente?”

Sem dúvida, o intelecto não é tudo em matéria de religião. Mas isso não

significa que não tenha importância. O coração é, inquestionavelmente, o

ponto principal. Todavia, nunca nos deveríamos esquecer do fato que o

Espírito Santo geralmente chega ao coração através da mente. Ouvintes

sonolentos, preguiçosos e desatentos, dificilmente se convertem.

A segunda coisa que deveríamos notar, nestes versículos, é o

estranho tratamento que nosso Senhor recebeu em sua própria terra. Chegando

à cidade de Nazaré, onde fora criado, “ensinava-os na sinagoga”. Os seus

ensinamentos, não há dúvida, continuaram sendo o que sempre foram:

“Jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46). Porém, não teve efeito

sobre os habitantes de Nazaré. Eles se “maravilhavam” mas os corações

permaneciam intocados. Diziam: “Não é este o filho do carpinteiro? Não

se chama sua mãe Maria?” Assim, pois, desprezaram a Jesus por estarem

tão bem familiarizados com Ele. “Escandalizavam-se nele”, e essa atitude

arrancou de nosso Senhor a notável observação: “Não há profeta sem

honra senão na sua terra e na sua casa”.

Vamos ver, neste relato, uma triste visão, da natureza humana,

aberta diante de nossos olhos. Todos nos inclinamos por desprezar as

misericórdias das quais somos alvo, se estamos acostumados com elas e as

consideramos sem importância. A Bíblia e outros livros de cunho

Page 105: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 13.51-58 105

religioso vão se tomando cada vez mais comuns em nosso país; temos os

meios da graça e a pregação do evangelho, que ouvimos a cada semana;

tudo isso, porém, está sujeito a ser subestimado. É lamentavelmente

verdadeiro que, no terreno religioso, mais do que em qualquer outro

aspecto das atividades humanas, “a familiaridade gera o desrespeito , como

diz o ditado. Os homens esquecem-se de que a verdade é verdade, não

importa quão antiga e comum ela possa parecer, e a desprezam por causa de

sua antiguidade. Que pena! Assim fazendo, provocam a Deus, para que não

nos mostre a verdade.

Acaso nos admiramos que os parentes, servos e vizinhos de pessoas

piedosas nem sempre se convertem? Ficamos perplexos por que as

congregações de eminentes pregadores do evangelho geralmente são os

seus ouvintes mais duros e impenitentes? Não nos admiremos mais de

coisas assim. Observemos a experiência de nosso Senhor em Nazaré e

tomemo-nos mais sábios.

Acaso nos iludimos, pensando que, se apenas tivéssemos visto e

ouvido Jesus Cristo pessoalmente, teríamos sido seus fiéis discípulos?

Pensamos que, se nós tivéssemos vivido perto dEle, e sido testemunhas

oculares de seu ministério, não teríamos ficado indecisos, oscilantes e

indiferentes para com a religião? Não pensemos mais dessa maneira.

Observemos os habitantes de Nazaré e tornemo-nos sábios.

A última coisa que deveríamos notar nestes versículos é a natureza

destrutiva da incredulidade. Este capítulo termina com estas espantosas palavras: *„E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles”.

Observe que nesta palavra — incredulidade — está o segredo da

ruína eterna de multidões de almas! Perecem para todo o sempre, porque

não querem crer. Nada mais existe, no céu ou na terra, que impeça a sua

salvação. Os pecados, não importa quantos sejam, podem todos ser

perdoados. O amor do Pai está pronto para receber essas pessoas. O sangue

de Cristo está pronto para purificá-las. O poder do Espírito está sempre à

disposição para renová-las. Porém, uma grande barreira se interpõem —

eles não querem crer: “Não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40).

Que todos nós estejamos em guarda contra esse maldito pecado. Ele

é a antiga raiz de pecado, que provocou a queda do homem. Embora

cortado da vida de todo verdadeiro filho de Deus, pelo poder do Espírito,

ele está sempre pronto a brotar e florescer novamente. Há três grandes

inimigos contra os quais os filhos de Deus deveriam lutar diariamente em

oração: orgulho, mundanismo e incredulidade. Mas, destes três, nenhum é

pior do que a incredulidade.

Page 106: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

106 Mateus 14.1-12

O Martírio de João Batista Leia Mateus 14.1-12

Nesta passagem encontramos uma página extraída do livro dos

mártires de Deus: a história da morte de João Batista. A iniqüidade do rei

Herodes, a corajosa repreensão que João lhe deu, o conseqüente

encarceramento do fiel reprovador, e as lamentáveis circunstâncias em que

o santo de Deus foi executado — tudo ficou registrado para o nosso aprendizado. “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos“ (SI 116.15).

A narrativa da execução de João Batista foi contada com maiores

detalhes por Marcos do que por Mateus. Para o momento, parece suficiente

extrair duas lições gerais da narrativa de Mateus, e fixar nossa atenção

exclusivamente sobre as mesmas.

Em primeiro lugar, aprendamos, por estes versículos, o grande poder

da consciência. O rei Herodes ouviu da „ „fama de Jesus”, e então disse aos

que o serviam: “Este é João Batista; ele ressuscitou dos mortos e, por isso,

nele operam forças miraculosas”. Herodes, pois, lembrou-se das maldades

que tinha cometido contra aquele homem santo, e o seu coração

angustiou-se profundamente. O coração do monarca dizia-lhe que ele havia

repelido o santo conselho do profeta e cometido um homicídio pérfido e

abominável. O coração lhe dizia que, embora já tivesse matado João Batista,

o dia do acerto de contas ainda estava para vir. Ele e João Batista ainda

tornariam a encontrar-se. Com toda a razão, afirmou o bispo Hall: “Um

homem ímpio não precisa de outro atormentador, sobretudo no caso de

crimes de sangue, mais do que o seu próprio coração”.

Em todos os seres humanos há uma consciência natural. Que isto

jamais seja esquecido. Embora nasçamos neste mundo como criaturas

decaídas, perdidas e desesperadamente iníquas, Deus cuidou para que

houvesse sempre uma testemunha contra nós, dentro do nosso próprio peito.

Ela é um pobre guia cego, sem a ajuda do Espírito Santo. Não pode salvar a

ninguém. Não pode conduzir alguém a Cristo. Ela pode ser cauterizada e

pisada aos pés. Porém, em todos os homens existe uma consciência que os

acusa ou os justifica; e a Bíblia e a experiência humana são testemunhos

disso (Rm 2.15).

A consciência pode fazer mesmo os reis sentirem-se miseráveis

quando repelem obstinadamente os seus avisos. A consciência pode encher

os príncipes deste mundo de temor e pavor, conforme sucedeu a Félix

quando Paulo estava pregando. É mais fácil encarcerar e decapitar

Page 107: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 14.1-12 107

o pregador, do que abafar o sermão e a repreensão que clamam dentro do

próprio coração. As testemunhas de Deus podem ser postas de lado, mas o

testemunho prestado por elas com freqüência sobrevive, e continua agindo

ainda por muito tempo. Os profetas de Deus não vivem para sempre, mas as

suas palavras lhes sobrevivem (2 Tm 2.9; Zc 1.5,6),

Que os insensatos e os ímpios não se esqueçam disso, a fim de não

transgredirem contra as suas próprias consciências. Saibam que “o pecado

vos há de achar (Nm 32.23). Podem rir, zombar, escarnecer da religião por

algum tempo. Podem até dizer: * „Quem tem medo? Onde está a grande

iniqüidade das nossas ações?” Não perdem por esperar! Estão semeando a

miséria para si mesmos, e cedo ou tarde terão uma amarga colheita. A sua

própria maldade haverá de alcançá-los um dia. Assim como Herodes, descobrirão que é muito mau e amargo pecar contra Deus (Jr 2.19).

Que ministros e professores se lembrem que há nos homens uma

consciência, e assim, trabalhem com ainda maior ousadia. A instrução dada

nem sempre é perdida, simplesmente porque parece não produzir fruto

imediatamente. O ensinamento nunca é perdido, embora às vezes pareça ter

sido em vão, embora nos pareça que ninguém deu ouvidos e o ensinamento

foi logo esquecido. Existe uma consciência dentro das

pessoas que ouvem os nossos sermões. Existe uma consciência nas crian-

ças que freqüentam as nossas escolas. Muitos sermões e ensinos serão

ainda recordados mesmo depois da morte de quem os predicou, como

na história de João Batista. Milhares de pessoas sabem que estamos com

a razão, mas, tal como Herodes, não ousam admiti-lo.

Em segundo lugar, aprendamos que os filhos de Deus não devem

esperar que a sua recompensa seja dada neste mundo. Se já houve um

caso de piedade autêntica que não foi galardoada neste mundo, isso se

deu com João Batista. Pense por um momento no homem que ele foi

durante a sua breve carreira e, então, pense no trágico fim que lhe so-

breveio. Ele era profeta do Altíssimo e maior do que qualquer um dentre

os nascidos de mulher; e, no entanto, foi aprisionado como um mal-

feitor! A vida dele foi cortada por uma morte violenta, antes dos trinta e

quatro anos: a luz que brilhava foi apagada, e o pregador fiel foi assassinado

por estar cumprindo o seu dever — e tudo isso para satisfazer o ódio de uma

mulher adúltera, e por ordem de um tirano caprichoso! Se já houve no

mundo um acontecimento que desse motivo para o ignorante dizer “De que

aproveita servir a Deus?*‟, foi este.

Mas são coisas assim que nos mostram que haverá um julgamento

um dia. O Deus dos espíritos de toda carne haverá de instaurar um tribunal,

finalmente, e retribuirá a cada um de acordo com as suas obras. O sangue de

João Batista e do apóstolo Tiago, o sangue de Estevão,

Page 108: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

108 Mateus 14.1-12

de Policarpo, de João Huss, de Ridley e de Latimer, será ainda requerido da

parte de seus algozes. Está tudo devidamente registrado no livro de Deus.

“A terra descobrirá o sangue que embebeu e já não encobrirá aqueles que

foram mortos” (Is 26.21). O mundo ainda saberá que existe um Deus que é

o Juiz de toda a terra.

Que todos os verdadeiros cristãos se lembrem que o melhor ainda

está para vir. Não consideremos coisa estranha se a parte que nos cabe, no

presente, forem os sofrimentos. Este é um período de provação. Ainda

estamos na escola preparatória. Estamos aprendendo paciência, longa-

nimidade, gentileza e mansidão; coisas que dificilmente poderíamos

aprender se já tivéssemos recebido a melhor parte. Mas existe um descanso

eterno que ainda está para começar. Esperemos tranqüilos até que ele

chegue. Ele dará a compensação de tudo. “Porque a nossa leve e

momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de

toda comparação” (2 Co 4.17).

O Milagre dos Pães e Peixes Leia Mateus 14.13-21

Estes nove versículos contêm um dos maiores milagres de nosso

Senhor Jesus Cristo, a multiplicação de cinco pães e dois peixes para ”cinco

mil homens, além de mulheres e crianças”. Dentre todos os milagres

realizados por nosso Senhor, nenhum outro é tão repetidamente

mencionado no Novo Testamento. Mateus, Marcos, Lucas e João

referem-se todos a esse prodígio. É evidente que esse acontecimento tem

por intuito receber a nossa mais especial atenção. Observemo-lo, pois, com

atenção e vejamos o que podemos aprender.

Em primeiro lugar, esse milagre é uma prova incontestável do poder

divino de nosso Senhor. Satisfazer a fome de mais de cinco mil pessoas,

contando apenas com cinco pães e dois peixes, é algo manifestamente

impossível sem uma multiplicação sobrenatural. Era algo que nenhum

mágico, impostor ou falso profeta teria jamais intentado fazer. Um

impostor poderia simular a cura de um doente ou a ressus- citação de um

morto, e, com truques e enganos, talvez conseguisse iludir as pessoas mais

simples. Mas nenhum impostor tentaria realizar uma obra tão grande

quanto esta que está aqui registrada. Saberia perfeita- mente bem que não

poderia persuadir dez mil pessoas de que elas estavam satisfeitas, quando,

na realidade, continuavam famintas. Ele seria desmascarado no mesmo

instante. Não obstante, essa foi a poderosa obra que nosso Senhor realmente

Page 109: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 14.13-21 109

concretizou, através da qual deu provas conclusivas de que era Deus. Ele

fez existir, do nada, pães e peixes já preparados; comida verdadeira, que se

podia ver e tocar, o bastante para satisfazer dez mil pessoas, a partir de uraa

quantidade que mal seria suficiente para cinco pessoas. Sem dúvida,

estaríamos cegos se não percebêssemos nesse acontecimento a mão

dAquele que “dá alimento a toda carne“ e que fez o mundo e tudo quanto

nele existe. O poder de criar é uma prerrogativa exclusiva de Deus.

Precisamos nos apegar firmemente a passagens como esta. Temos a

obrigação de entesourar na mente cada evidência do poder divino de nosso

Senhor. O homem não convertido, frio e ortodoxo, talvez veja bem pouco

neste relato. Mas, o verdadeiro crente deveria guardá-lo em sua memória.

Que o crente medite sobre este mundo, o diabo e o seu próprio coração, e

aprenda a agradecer a Deus pelo fato do Salvador, o Senhor Jesus Cristo,

ser todo-poderoso.

Em segundo lugar, este milagre é um notável exemplo da compaixão

de nosso Senhor para com os homens. Ele viu uma multidão em um lugar

deserto, quase a desmaiar de fome. Ele sabia que muitos dentre eles não

tinham verdadeira fé e nem amor para com Ele. Seguiam- -No meramente

por curiosidade ou por costume, ou, então, por algum outro motivo

igualmente inferior (Jo 6.26). Mas nosso Senhor teve compaixão de toda

aquela gente. Todos foram saciados. Todos participaram do alimento

miraculosamente providenciado. Todos “comeram e se fartaram”, e

ninguém foi embora faminto.

Notemos o bondoso coração de nosso Senhor Jesus Cristo,

volvendo-se para os pecadores. Desde os dias da antiguidade Ele continua

sempre o mesmo: “Senhor, Senhor Deus compassivo, clemente e

longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade” (Êx 34.6). Ele não trata

com os homens de acordo com os pecados deles, e nem retribui à medida

das iniquidades de cada um. Mesmo aos seus próprios inimigos Ele cumula

de benefícios. Por isso, ninguém será tão indesculpável no dia do juízo

quanto aqueles que forem achados impenitentes. A bondade do Senhor

conduz ao arrependimento (Rm 2.4). Em todo o seu relacionamento com os

homens no mundo, Jesus mostrou “ter prazer na misericórdia” (Mq 7,18).

Que nos esforcemos por ser semelhantes a Ele. Escreveu Quesnel:

“Deveríamos ter abundância de piedade e compaixão para com as almas

enfermas”.

Em último lugar, este milagre é uma vivida ilustração da suficiência do

evangelho para satisfazer as necessidades da alma de toda humanidade. Todos

os milagres de nosso Senhor, sem dúvida, têm algum significado figurativo

profundo e ensinam grandes verdades espirituais. No entanto, devemos

tratá-los com reverência e discrição. E preciso

Page 110: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

110 Mateus 14.] 3-21

tomar cuidado para não fazer como muitos dos antigos mestres, que viam

alegorias até mesmo onde não fora esse o intuito do Espírito Santo.

Contudo, se existe um milagre que, além do seu sentido literal, também tem

um sentido figurado bem manifesto, é justamente desse milagre que

estamos tratando — o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes.

O que a multidão faminta em um lugar deserto representa para nós?

Ela simboliza a humanidade Inteira. Os filhos dos homens formam uma

gigantesca companhia de pecadores que estão perecendo, famintos em meio

a um mundo hostil, desamparados, caminhando sem qualquer esperança

rumo à destruição. Todos nós nos desgarramos, como ovelhas perdidas (Is

53.6). Por natureza, estamos longe, muito longe de Deus. Nossos olhos não

podem perceber toda a extensão do perigo que corremos. A realidade de

cada ser humano é como diz a Bíblia: “Tu és infeliz, sim, miserável, pobre,

cego e nu“ (Ap 3.17). Entre nós e a perdição eterna só existe um passo.

O que representam os pães e peixes? Pareciam tão inadequados para

satisfazer à necessidade do momento; mas, por meio de um milagre,

tornaram-se suficientes para alimentar cerca de dez mil pessoas! Eles são

como que figuras da doutrina de Cristo crucificado em favor de pecadores,

como Substituto vicário, que pela sua morte fez expiação pelos pecados.

Para o homem natural, essa doutrina parece ser a debilidade em pessoa.

Cristo crucificado era para os judeus uma pedra de tropeço, e para os gregos

loucura (1 Co 1.23). No entanto, Cristo crucificado tem demonstrado ser o

pão de Deus, que desceu do céu para dar vida ao mundo (Jo 6.33). A história

da cruz tem satisfeito amplamente as necessidades espirituais do homem,

em todo lugar onde tem sido pregada. Milhares de pessoas, de todas as

classes sociais, idade ou nacionalidade são testemunhas de que o evangelho

é o “poder de Deus e sabedoria de Deus” (1 Co 1.24). Todos esses têm

provado do pão da vida e têm sido saciados. Eles têm descoberto que Jesus é

“verdadeira comida“ e “verdadeira bebida“ (Jo 6.55).

Meditemos demoradamente sobre estas verdades. Há grande pro-

fundidade em todos os atos de nosso Senhor Jesus Cristo que ficaram

registrados, e que ninguém, até hoje, conseguiu sondar devidamente. Há

tesouros de rica instrução em todas as suas palavras e procedimentos que

ninguém ainda explorou completamente. Muitas passagens dos evangelhos

são como a nuvem que o servo de Elias viu (1 Rs 18.44). Quanto mais as

examinamos, tanto maiores e importantes elas nos parecem. Nas Escrituras

Sagradas há uma plenitude inexaurível. Outros escritos parece que se

tomam triviais quando nos familiarizamos com eles. Mas, em relação à Bíblia, quanto mais a lemos, mais rica ela se torna para nós.

Page 111: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 14.22-36 111

Cristo Anda Sobre o Mar Leia Mateus 14.22-36

O relato contido nestes versículos reveste-se de singular interesse. O

milagre aqui registrado demonstra o caráter de Jesus Cristo quanto ao seu

povo. O poder e misericórdia do Senhor Jesus e a mistura de fé e

incredulidade, que caracteriza até os seus melhores discípulos, são

maravilhosamente ilustrados.

Em primeiro lugar, com este milagre aprendemos sobre o absoluto

domínio que nosso Salvador tem sobre todas as coisas criadas. Vemos Jesus

“andando por sobre o mar” como se estivesse caminhando em terra seca. As

ondas agitadas, que jogavam o barquinho dos discípulos de lá para cá,

obedeceram ao Filho de Deus e tornaram-se sólidas debaixo de seus pés.

Aquela superfície líquida, que se agitava ao menor sopro de vento,

sustentava os pés de nosso Redentor como se fosse uma rocha. Para as

nossas pobres e débeis mentes, o acontecimento todo é incompreensível. A

cena de dois pés andando sobre a superfície do mar, segundo nos informa

Doddridge, era o símbolo de algo impossível para os egípcios. O cientista

nos dirá que é uma impossibilidade física um corpo material de carne e osso

andar sobre a água. Para nós, entretanto, basta-nos saber que assim sucedeu.

Basta-nos lembrar que, para Ele que criou os mares no princípio, deve ter

sido perfeitamente fácil caminhar sobre as ondas, quando Ele assim o quis.

Há aqui encorajamento para todos os verdadeiros cristãos. Que os

crentes saibam que não existe nenhuma coisa criada que não esteja sujeita ao

controle de Cristo. Todas as coisas servem juntamente ao Senhor. Ele pode

permitir que o seu povo seja submetido a teste por algum tempo, atirado

para um lado e para outro pelo temporal das tribulações. E possível que Ele

venha em socorro deles mais tarde do que gostariam, já “na quarta vigília da

noite”. Entretanto, que os crentes jamais se esqueçam que os ventos, as

ondas e os temporais são todos servos de Cristo. Nada acontece sem a

permissão de Cristo. “O Senhor nas alturas é mais poderoso do que o

bramido das grandes águas, do que os poderosos vagalhões do mar” (SI

93.4). Porventura, sentimo- -nos alguma vez tentados a clamar, como fez

Jonas: “A corrente das águas me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas

passaram por cima de mim” (Jn 2.3). Lembremo-nos de que as ondas

pertencem a Ele. Esperemos com paciência. Talvez ainda possamos

contemplar Jesus vindo em nossa direção e “andando por sobre o mar”. Em segundo lugar, aprendemos com esse milagre o poder que

Page 112: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

112 Mateus 14.22-36

Jesus pode conferir aos que nEle confiam. Vemos Simão Pedro saindo do

barco e andando sobre as águas, à semelhança de seu Senhor. Que prova

maravilhosa da divindade de nosso Senhor! Caminhar sobre as águas, Gle

mesmo, já fora um tremendo milagre. Mas, capacitar um pobre e fraco

discípulo a fazer o mesmo foi milagre maior ainda.

Existe um profundo significado nesta parte da narrativa. Ela nos

mostra quão grandes coisas nosso Senhor pode fazer pelos que ouvem a sua

voz e O seguem. Ele pode capacitá-los a realizarem coisas que antes

pensariam ser impossíveis. Ele pode conduzi-los através de dificuldades e

tribulações que, sem Ele, jamais ousariam enfrentar. Ele pode

outorgar-lhes forças para caminhar por meio do fogo e da água sem

qualquer dano, triunfando em meio à adversidade. Moisés no Egito, Daniel

na Babilônia, os santos da casa de Nero, todos são exemplos do seu imenso

poder. Se estamos servindo a Cristo, não tenhamos te- r r

mor de nada! As águas podem parecer profundas. Mas, se Jesus nos diz:

“Vinde! “, não temos razão para temer.4 4Aquele que crê em mim, fará

também as obras que eu faço, e outras maiores fará” (Jo 14,12).

Em terceiro lugar, aprendemos quantas tribulações os discípulos de

Cristo atraem contra si mesmos por falta de fé. Por algum tempo vemos Pedro

andando corajosamente por sobre as águas. Todavia, ao prestar atenção “na

força do vento“, deixa-se invadir pelo medo e começa a afundar. A

fraqueza da carne prevalece sobre o desejo do espírito. Pedro esquece das

maravilhosas provas que há pouco presenciara da bondade e do poder de

seu Senhor. Ele não considerou que o mesmo Salvador, que o capacitara a

dar o primeiro passo, era poderoso para sustentá-lo para sempre. Não

refletiu que agora estava mais perto de Cristo do que quando dera o

primeiro passo. O medo ofuscou-lhe a memória. O temor confundiu-lhe o

raciocínio. Ele não pensava em mais

nada, senão no vento, nas ondas e em seu perigo imediato; e a sua fé ■

retrocedeu: “Salva-me, Senhor!”

Quão vívido é o quadro que encontramos aqui sobre a experiência

de tantos crentes! Quantas pessoas têm fé suficiente para dar o primeiro

passo em direção à Cristo, mas não têm fé suficiente para seguir em frente!

Assustam-se diante das provações e dos perigos que parecem postar-se no

caminho. Eles olham para os inimigos que os circundam, bem como para as

dificuldades que parecem cercá-los na caminhada. Prestam mais atenção às

circunstâncias do que a Jesus e, imediatamente, começam a afundar. O seu

coração desmaia. As suas esperanças dissipam-se. O seu ânimo

desaparece. E por que tudo isso? Cristo ainda é o mesmo! Os inimigos dos

cristãos não são maiores agora do que o foram no passado. Isto acontece

por que, como Pedro, os crentes deixam de olhar para Jesus e, assim, dão

lugar à incredulidade.

Page 113: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 14.22-36 113

Deixam-se dominar pelo pensamento acerca de seus adversários, ao invés

de pensarem a respeito de Cristo. Que nós guardemos no coração este

ensinamento e assim aprendamos a sabedoria.

Em último lugar, aprendamos quão misericordioso é o Senhor Jesus

Cristo para com os crentes fracos. Vemo-lo prontamente a estender a mão

para salvar Pedro, tão logo este lhe pediu socorro. Jesus não deixa que

Pedro colha o fruto da sua própria incredulidade e afunde nas águas

profundas. Parece que todo o empenho de Jesus é considerar as dificuldades

de Pedro e salvá-lo imediatamente. A reprovação é moderada e gentil:

“Homem de pequena fé, por que duvidaste?”

Observe na conclusão deste milagre, a enorme mansidão e be-

nignidade de Cristo. Ele pode tolerar muito e perdoar muito, quando vê a

verdadeira graça divina operando no coração de um homem. Assim como a

mãe trata gentilmente seu filho, e não o rejeita por causa de seus pequenos

caprichos e petulâncias, assim também o Senhor Jesus trata com ternura o

seu povo. Ele já amava e se compadecia de seu povo antes mesmo da

conversão; e depois da conversão Ele ama e se compadece ainda mais.

Jesus reconhece as debilidades daqueles que lhe pertencem, demonstrando

grande paciência para com eles. Ele quer que saibamos que a dúvida não

prova que uma pessoa não tem fé, mas somente que essa fé é pequena. Mas,

mesmo quando a nossa fé é pequena, o Senhor está sempre pronto para

ajudar-nos. “Quando eu digo: Resvala-me o pé, a tua benignidade, Senhor,

me sustém” (SI 94.18).

Em tudo isso há muitas razões que encorajara a servir a Cristo!

Quem pode ter receio de iniciar a carreira cristã, tendo um Salvador como o

Senhor Jesus? Se cairmos, Ele nos reerguerá. Se errarmos, Ele nos trará de

volta ao reto caminho. A misericórdia de Jesus jamais se apartará

completamente de nós. Ele tem dito: “De maneira alguma te deixarei, nunca

jamais te abandonarei” (Hb 13.5). Ele cumprirá a sua palavra. Que

tão-somente nos lembremos de que, embora não desprezemos a pequena fé,

não devemos cruzar os braços e estar contentes com ela. A nossa oração sempre deveria ser: “Senhor, aumenta-nos a fé” (Lc 17.5).

A Hipocrisia dos Escribas e Fariseus; O Perigo das Tradições

Leia Mateus 15.1-9

Temos nestes versículos um diálogo entre nosso Senhor Jesus Cristo

e certos escribas e fariseus. À primeira vista, o assunto pode

Page 114: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

114 Mateus 15.1-9

parecer de pouco interesse para os dias de hoje. Mas muito pelo contrário, os

princípios dos fariseus são princípios que não morrem. Nesta conversa há

verdades de profunda importância.

Antes de tudo, aprendemos que os hipócritas geralmente dão grande

importância a coisas meramente exteriores. A denúncia desses escribas e

fariseus é uma notável ilustração desse pormenor. Eles trouxeram uma

acusação contra os discípulos. Porém, qual era a natureza dessa acusação?

Não era um problema de cobiça ou justiça-própria, nem acusação de

falsidade ou falta de caridade da parte dos discípulos. Nem tampouco era

que eles tivessem desobedecido a qualquer princípio da lei de Deus. A

acusação era: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos

anciãos? pois não lavam as mãos quando comem‟*. Os discípulos não

estavam observando uma regra de alguma mera autoridade humana, que

algum judeu antigo havia inventado! Nisso consistia toda a gravidade da

ofensa!

Acaso vemos algo do espírito dos fariseus nos dias de hoje? In-

felizmente, vemos demais dessa atitude. Existem milhares de assim

chamados * „cristãos” que parecem não se importar com a religião do seu

próximo, desde que possam concordar quanto às questões externas. O

vizinho adota uma forma de culto igual à deles? Pode esse vizinho imitar o

seu falar e comentar um pouco acerca de suas doutrinas favoritas? Se ele

pode, estão satisfeitos, mesmo que não haja evidência de ele ser convertido.

Se ele não pode, estão sempre achando defeitos e não podem falar dele

amistosamente, muito embora ele possa estar servindo a Cristo melhor do

que eles mesmos. Tenhamos muito cuidado com tal atitude. Ela é a essência

da hipocrisia. Que o nosso princípio seja o seguinte: “O reino de Deus não é

comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm

14.17).

Em seguida, aprendemos, com base nestes versículos, que é grande o

perigo para quem tenta acrescentar qualquer coisa d Palavra de Deus. Sempre

que alguém decide fazer qualquer adição à Bíblia, provavelmente acabará

valorizando mais as suas próprias adições do que as Escrituras.

Vemos este ponto grandemente destacado na resposta de nosso

Senhor à acusação dos fariseus contra os discípulos. Ele diz: “Por que

transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa

tradição?” Jesus combate ousadamente todo o sistema de se fazer acrés-

cimos à perfeita Palavra de Deus, como se algo mais fosse necessário para a

salvação. Ele desmascara a tendência malévola desse sistema, citando um

exemplo. Ele mostra como as vangloriosas tradições dos fariseus na

realidade estavam destruindo a autoridade do quinto mandamento. Em

suma, Jesus declara a grande verdade que jamais deveria

Page 115: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 15.1-9 115

scr esquecida, dc que há uma tendencia inerente em todas as tradições de

invalidar a Palavra de Deus (v. 6). É possível que os autores de tais tradições

não tivessem por escopo tal resultado. Talvez as suas intenções tivessem

sido puras, Mas a doutrina de Cristo, evidentemente, é que em todas as

normas religiosas de autoridade meramente humana existe uma tendência

em usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Bu- cer fez uma observação

solene: * „Raramente se encontrará um homem que, prestando atenção

excessiva às invenções humanas no campo da religião, não acabe

depositando maior confiança nelas do que na graça de Deus”.

Não temos nós visto provas melancólicas desta verdade, no decurso

da história da igreja de Cristo? Infelizmente, já vimos provas em demasia.

Conforme diz Baxter: “Os homens pensam que as leis de Deus são por

demais numerosas e estritas; e, no entanto, ainda fazem outras leis, sendo

meticulosos em cumpri-las”. Já não tivemos ocasião de ler como alguns

têm exaltado cânones, dogmas e leis eclesiásticas muito acima da Palavra

de Deus, punindo a desobediência a essas regras com maior severidade do

que a pecados notórios como o alcoolismo e o jurar em vão? Já não

ouvimos falar da extravagante importância com que a igreja de Roma

considera os votos monásticos e de celibato, a observância de festas e

jejuns? Parece que tais coisas recebem muito maior importância do que os

deveres para com a família e o cumprimento dos dez mandamentos? Já não

ouvimos falar de pessoas que se preocupam mais em não comer carne na

quaresma do que com a vida imoral ou 0 assassinato? Em nosso próprio

país, acaso não observamos como tantos parecera fazer o

denominacionalismo o assunto mais importante do cristianismo e

consideram a assim chamada “membresia” na igreja como uma matéria de

muito maior peso do que o arrependimento, a fé, a santidade e as graças do

Espírito Santo?

Estas são perguntas que só podem receber uma única e triste res-

posta. O espírito dos fariseus ainda está vivo, mesmo depois de quase vinte

séculos se terem passado. A disposição de invalidar a Palavra de Deus, por

meio de tradições humanas, encontra-se não somente entre judeus, mas

igualmente entre cristãos evangélicos. A tendência de, na prática, exaltar

invenções humanas acima da Palavra de Deus, continua prevalecendo de

uma maneira temerária. Que nós possamos vigiar e estar precavidos contra

tal tendência. Lembremo-nos de que nenhuma tradição ou instituição

religiosa de feitura humana poderá jamais desculpar-nos pela negligência

de determinados deveres, e nem justificar a desobediência a qualquer

mandamento explícito da Palavra de Deus. Alicerçados nestes versículos podemos aprender, em último lugar,

Page 116: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

116 Mateus 15.1-9

que a adoração religiosa que Deus deseja é a adoração no íntimo, que parte do

coração. Podemos perceber isso através da citação que nosso Senhor faz do

livro de Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está

longe de mim“ (ís 29.13).

O coração é a questão central no relacionamento entre marido e

mulher, entre amigo e amigo, entre pai e filho. O coração deve ser o ponto

principal em todas as relações entre Deus e a alma. Qual a primeira coisa de

que precisamos para sermos crentes? Um novo coração. Qual o sacrifício

que Deus nos pede para trazer-nos a Ele? Um coração quebrantado e

contrito. O que é a verdadeira circuncisão? A circuncisão do coração. O

que é obediência genuína? É obediência de coração. O que é fé salvadora?

É crer de todo o coração. Onde Cristo deveria habitar? Em nossos corações,

pela fé. Qual a principal petição que a Sabedoria faz a cada pessoa?

“Dá-me, filho meu, o teu coração” (Pv 23.26).

Ao concluirmos o estudo desta passagem, façamos uma auto-

-averiguação honesta do estado de nosso próprio coração. Deixemos

perfeitamente estabelecido, em nossa mente, que toda e qualquer adoração

formal a Deus, seja em público ou em particular, será totalmente inútil se o

coração estiver longe de Deus. Os joelhos dobrados, a cabeça abaixada, os

améns em voz alta, o capítulo lido diariamente, a freqüência regular à Ceia

do Senhor — tudo isso é em vão e sem proveito se nossos afetos estiverem

presos ao pecado, aos prazeres, ao dinheiro ou ao mundo. A pergunta de

nosso Senhor Jesus Cristo precisa ser respondida de maneira satisfatória,

antes que possamos ser salvos. Ele indaga a cada um de nós: “Tu me

amas?” (Jo 21.17),

Os Falsos Mestres; O Coração é a Fonte do Pecado

Leia Mateus 15.10-20

Há duas notáveis declarações do Senhor Jesus nesta passagem. Uma

diz respeito às falsas doutrinas. A outra refere-se ao coração humano.

Ambas merecem a nossa mais plena atenção.

No que concerne às falsas doutrinas, nosso Senhor declarou que é

nosso dever nos opormos a elas, que a sua destruição final está assegurada, e que

os seus mestres deveriam ser abandonados. Ele diz: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada. Deixai- os...”

Examinando esta passagem, torna-se evidente que os discípulos ficaram surpresos com a linguagem forte usada por nosso Senhor, contra

Page 117: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 15.10-20 117

os fariseus e suas tradições. Mui provavelmente os discípulos estavam

acostumados, desde a meninice, a pensar nos fariseus como os mais sábios

e mais excelentes dentre os homens. Portanto, ficaram atônitos ao ouvirem

o Mestre denunciá-los como hipócritas e transgressores dos mandamentos

de Deus. “Sabes que os fariseus se escandalizaram?“, disseram os

discípulos a Jesus. Em resposta a essa indagação, temos uma declaração

explanatória de nosso Senhor; uma declaração que talvez nunca tenha

recebido a atenção que merece.

O sentido claro das palavras de Jesus foi que as falsas doutrinas,

como as que eram ensinadas pelos fariseus, são como uma planta para a

qual não se deve demonstrar nenhuma misericórdia. Elas são uma planta

que o „ Pai celestial não plantou“, e que deve ser arrancada, não importa a

ofensa que isso venha a causar. Não seria caridade poupá- -la, pois é

prejudicial à alma humana. O fato de ter sido plantada por homens

importantes ou instruídos de nada importava. Se tais ensinamentos

contradizem a Palavra de Deus, deveriam sofrer oposição, ser refutados e

rejeitados. Os discípulos de Cristo, portanto, precisam entender que é justo

resistir a todo e qualquer ensinamento que não provenha das Escrituras,

isolando e abandonando os instrutores que persistem no erro. Cedo ou

tarde, haveriam de descobrir que toda doutrina falsa será totalmente

desarraigada e lançada ao opróbrio; e não ficará de pé senão aquilo que

tiver sido fundamentado sobre a Palavra de Deus.

Nesta afirmação de nosso Senhor, há lições de profunda sabedoria,

que servem para projetar luz sobre o dever dos que se professam cristãos.

Examinemos de perto essas lições, para ver o que temos a aprender. Foi a

obediência prática a essa declaração que produziu a bendita Reforma

Protestante, As suas lições merecem cuidadosa atenção.

Não enxergamos aqui o dever de resistir corajosamente a todo en-

sinamento falso? Sem dúvida que sim. Nenhum receio de escandalizar,

nenhum temor de censura eclesiástica deveria fazer-nos manter a paz en-

quanto a verdade de Deus estiver sendo ameaçada. Se somos verdadeiros

seguidores de nosso Senhor, deveríamos ser corajosos na denúncia, como

testemunhas inflexíveis contra o erro. Alguém disse que “a verdade não

deve ser suprimida por serem os homens ímpios e cegos”.

Vemos, novamente, o dever de abandonar os falsos mestres, se não

desistem de suas doutrinas distorcidas? Sem sombra de dúvida! Nenhuma

falsa cortesia, nenhuma humildade hipócrita deveria impedir- -nos de nos

retirarmos para longe dos ensinamentos de qualquer pregador que

contradiga a Palavra de Deus. Corremos perigo se nos submetemos a

ensinamentos não biblicos. O nosso sangue será sobre as nossas próprias

cabeças. Nas palavras de Whitby: “Nunca será certo seguir um cego e cair

com ele no barranco”.

Page 118: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

118 Mateus 15.10-20

Em último lugar, não vemos o dever de exercermos paciência quando

da multiplicação dos ensinamentos falsos? Podemos consolarmos diante do

fato que esses ensinos falsos não durarão muito. O próprio Deus defenderá

a causa da verdade. Mais cedo ou mais tarde toda e qualquer heresia será

arrancada pela raiz. Não devemos lutar com armas carnais; pelo contrário,

devemos esperar e pregar, protestar e orar. Mais cedo ou mais tarde, como

disse Wycliffe, “a verdade haverá de prevalecer‟ ‟.

Com respeito ao coração do homem, nosso Senhor declara, nestes

versos, que o coração é a verdadeira fonte de todo pecado e contaminação. Os

fariseus ensinavam que a santidade dependia de comidas e bebidas, da

lavagem do corpo e purificações. Eles afirmavam que todos quantos

obedeciam a essas tradições eram puros e limpos aos olhos de Deus, e que

todos quantos as negligenciavam eram impuros e pecaminosos. Nosso

Senhor derrubou por terra essa miserável doutrina, ao mostrar que a

verdadeira fonte de toda contaminação não estava fora, mas, sim, dentro do

homem. “Do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios,

prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas as cousas

que contaminam o homem". Quem quer servir a Deus corretamente,

precisa de algo muito mais importante do que a simples lavagem do corpo.

É preciso buscar um coração puro.

Que pavoroso quadro da natureza humana encontramos aqui, e

exposto por Aquele que real mente sabe o que existe no homem! Que

horrível catálogo daquilo que se oculta em nosso interior! Que melancólica

lista de sementes do mal nosso Senhor desmascarou, sementes

profundamente arraigadas em cada um de nós e sempre prontas a se

manifestarem vivas, a todo instante! O que podem dizer os orgulhosos e os

justos a seus próprios olhos, quando lêem uma passagem como esta? Este

não é o retrato do coração de algum ladrão ou assassino. E uma descrição

fiel e verdadeira do coração de toda humanidade. Que Deus nos permita

ponderar bem esta lição e aprender a sabedoria.

Que para nós seja uma resolução bem firmada, que o estado do

nosso coração será o ponto principal em toda a nossa religião. Que jamais

nos contentemos em apenas freqüentar uma igreja e cumprir com as

formalidades externas. Que procuremos por algo muito mais profundo,

com o desejo de possuir um coração “reto diante de Deus" (At 8.21). Um

coração reto é aquele que foi aspergido com o sangue de Cristo, renovado

pelo Espírito Santo, e purificado por meio da fé. Que não descansemos,

enquanto não encontrarmos dentro de nós o testemunho do Espírito, de que

Deus tem criado em nós um coração limpo e de que todas as coisas se

fizeram novas (SI 51.10; 2 Co 5.17).

Finalmente, que tomemos a inflexível resolução de guardar o co

Page 119: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 15.10-20 119

ração com toda a diligência, todos os dias de nossa vida (Pv 4.23). Mesmo

depois de ter sido renovado, nosso coração é fraco. Ele é enganoso, mesmo

depois que nos revestimos do novo homem. Nunca nos esqueçamos de que o

perigo principal vem de dentro. O mundo e o diabo, juntos, não podem nos

causar tanto dano quanto o nosso próprio coração, se não vigiarmos e

orarmos. Bem-aventurado é quem se lembra diariamente das palavras de

Salomão: “O que confia no seu próprio coração é insensato” (Pv 28.26).

A Mãe Cananéia

Leia Mateus 15.21-28

Outro milagre de nosso Senhor está registrado nestes versículos. As

circunstâncias que o cercam são peculiarmente interessantes, e vamos

examiná-las em ordem. Cada palavra, nesta narrativa, reveste-se de ricas

instruções.

Primeiramente, vemos que a verdadeira fé pode às vezes ser en-

contrada onde menos poderia ser esperada. Uma mulher cananéia clama a

nosso Senhor, pedindo ajuda em favor de sua filha. “Senhor, Filho de Davi,

tem compaixão de mim!” Se essa mulher vivesse em Betânia ou Jerusalém,

uma tal petição já teria demonstrado grande fé. Mas, quando descobrimos

que ela vinha dos “lados de Tiro e Sidom”, uma oração assim bem pode

encher-nos de surpresa. Isso nos deveria ensinar que é a graça de Deus e

não o local que faz uma pessoa tomar-se crente. Podemos viver na família

de um profeta, como sucedeu com Geazi, servo de Eliseu, e ainda continuar

incrédulos e enamorados do mundo. Podemos residir em meio à

superstição e obscura idolatria, como a menina escrava na casa de Naamã, e

ainda sermos testemunhas fiéis de Deus e de seu Cristo. Não nos

desesperemos em relação à alma de alguém, somente porque se encontra

em uma situação desfavorável. É possível viver na costa de Tiro e Sidom e,

ainda assim, ter um lugar no reino de Deus.

Em segundo lugar, vemos que a aflição às vezes demonstra ser uma

bênção para a alma de uma pessoa. Aquela mãe cananéia sem dúvida tinha

sido severamente provada. Ela via sua filha querida ser afligida por um

demônio, sem poder ajudá-la. Mas essa tribulação serviu para conduzi-la a

Jesus Cristo e ensiná-la a orar. Não fosse por essa aflição, ela poderia ter

vivido e morrido em ignorância despreocupada, sem jamais ter visto a Jesus. Certamente, foi bom para ela o ter sido afligida (SI 119.71).

Page 120: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

120 Mateus 15.21-28

Sublinhemos cuidadosamente esta verdade. Nada existe que de-

monstre tanto a nossa ignorância quanto a nossa impaciência na tribulação.

Esquecemo-nos de que cada cruz no caminho é uma mensagem de Deus,

designada para que, no fim, sejamos beneficiados. As provações são

destinadas a nos fazer meditar, a desligar-nos deste mundo, a conduzir-nos

à Bíblia, a colocar-nos de joelhos diante de Deus. A saúde é algo bom, mas

a enfermidade é muito melhor, se nos aproxima de Deus. A prosperidade é

uma grande misericórdia divina; mas a adversidade manifesta maior

misericórdia, se nos leva até Cristo. Qualquer coisa é melhor do que viver

despreocupadamente e morrer em pecado. Mil vezes melhor é sermos

afligidos e fugirmos para Cristo, tal como aquela mãe cananéia, do que

viver tranquilamente e por fim morrer sem Cristo e sem esperança, como o

“louco” homem rico (Lc 12.20).

Em terceiro lugar, notamos que o povo de Cristo com frequência

mostra-se menos misericordioso e compassivo do que Cristo. A mulher acerca

de quem estamos lendo não foi bem recebida pelos discípulos. Talvez eles

considerassem que uma habitante da costa de Tiro e Sidom fosse indigna

de receber ajuda da parte do Mestre. Seja como for, o que disseram foi:

“Despede-a”.

Existe demais dessa atitude entre os que se professam crentes.

Muitos tendem por desencorajar os que estão buscando a Cristo, ao invés

de os ajudarem a prosseguir. Estão dispostos a duvidar da realidade da

graça na vida de um principiante, por ser essa graça ainda pequena, e

prontos a tratá-lo como Saulo de Tarso foi tratado, quando chegou a

Jerusalém pela primeira vez, após sua conversão, “não acreditando que ele

fosse discípulo” (At 9.26). Cuidemos para nunca darmos lugar a essa

atitude. Procuremos ter mais daquele mesmo sentimento que houve

também em Cristo Jesus (Fp 2.5). Assim como Ele, que nós sejamos

gentis, bondosos e encorajadores no modo de agir com aqueles que estão

buscando a salvação. Mas, acima de tudo, digamos continuamente aos

homens que eles não deveriam julgar a Cristo com base nos cristãos.

Deixemos bem claro que existe muito mais no gracioso Mestre do que nos

melhores dentre os seus servos. Pedro, Tiago e João podem dizer a alguma

alma aflita: “Despede-a”, mas tal palavra jamais saiu dos lábios de Cristo.

Ele pode, às vezes, deixar-nos esperando por um longo tempo, conforme

fez com aquela mulher. Porém, jamais nos despedirá vazios.

Em último lugar, vemos quanto encorajamento existe para per-

severarmos em oração, por nós mesmos e por outras pessoas. É difícil

conceber uma ilustração mais apropriada dessa verdade do que esta que se

nos depara nesta passagem. A princípio, a oração dessa mãe aflita parecia

inteiramente despercebida. Jesus “não lhe respondeu palavra”,

Page 121: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 15.21-28 121

mas ela continuou rogando. A declaração que finalmente saiu dos lábios de

Jesus tinha um tom desencorajador: ‟„Não fui enviado senão às ovelhas

perdidas da casa de Israel”. Mesmo assim ela insistiu na oração: "Senhor,

socorre-me!” A segunda declaração foi ainda menos encorajadora do que a

primeira: "Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”.

Mesmo apesar de ver adiada a sua esperança (Pv 13.12), ela não permitiu

adoecer o seu coração. Nem mesmo depois disso a mulher silenciou.

Mesmo assim, ela faz um apelo para que algumas migalhas de misericórdia

lhe sejam concedidas. A sua importunação finalmente obtém uma

recompensa graciosa: "Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como

queres”. A promessa nunca falhou: “Buscai, e achareis” (Mt 7.7).

Recordemo-nos dessa narrativa quando estivermos orando por nós

mesmos. Algumas vezes somos tentados a pensar que não obtemos qualquer

proveito de nossas orações, e que seria melhor desistir totalmente.

Resistamos à tentação; ela vem do diabo. Que nós confiemos e conti-

nuemos orando! Contra os nossos pecados repetitivos, contra o espírito

mundano e contra as ciladas do diabo, que nós continuemos orando, sem

desanimar. Prossigamos em oração, pedindo forças para cumprir nossos

deveres, a graça para enfrentar as provações, e o consolo em cada situação

difícil. Estejamos bem certos de que nenhum outro tempo é melhor em-

pregado diariamente do que o tempo que passamos em oração. Jesus nos

ouve e, no tempo determinado por Ele, haverá de dar-nos a resposta.

Lembremo-nos deste relato, quando estivermos intercedendo por

outras pessoas. Temos filhos que desejamos ver convertidos? Temos

parentes e amigos que ansiamos ver salvos? Sigamos, então, o exemplo

desta mulher cananéia e apresentemos essas pessoas diante dEle noite e dia,

e não descansemos enquanto não obtivermos uma resposta. Pode ser que

tenhamos de esperar por longos anos. Pode parecer que estamos orando em

vão, e intercedendo sem qualquer proveito. Todavia, jamais devemos

desistir. Confiemos que Jesus não muda. Ele, que atendeu àquela mãe

cananéia e lhe concedeu o que pedia, também nos ouvirá, e um dia nos dará

uma resposta satisfatória e de paz.

Curas Miraculosas Feitas por Cristo Leia Mateus 15.29-39

O início desta passagem contém três pontos que merecem a nossa atenção especial. No momento, portanto, concentraremos a nossa atenção sobre esses pontos.

Page 122: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

122 Mateus 15.29-39

Em primeiro lugar, observemos como as pessoas fazem maiores

esforços para curar doenças físicas, do que para obter a cura de suas almas.

Lemos que as multidões vinham a Jesus * „trazendo consigo coxos,

aleijados, cegos, mudos...” Muitos, sem dúvida, tinham viajado muitos

quilômetros e sofrido inúmeras fadigas. Poucas coisas são tão difíceis e

trabalhosas quanto movimentar pessoas enfermas. Porém, a esperança da

cura estava em vista e, para um homem doente, essa esperança é tudo.

Se nos admiramos pela conduta daquela gente, conhecemos bem

pouco da natureza humana. Não há razão alguma para admiração. Aquelas

pessoas sentiam que a saúde é a maior de todas as bênçãos terrenas. Elas

sentiam a dor, que para elas era a mais difícil de todas as provações a

suportar. Contra os sentimentos não há argumento. Uma pessoa sente as

suas forças irem-se esvaindo. Ela vê o seu corpo ir emagrecendo e o seu

rosto empalidecer. Percebe que o seu apetite está se acabando. Resumindo,

ela sabe que está doente e que precisa de um médico. Mostre- -lhe um

médico que possa consultar e que tenha a fama de jamais ter falhado, e tal

pessoa irá a ele sem demora.

Entretanto, não nos esqueçamos de que as nossas almas estão muito

mais enfermas do que nossos corpos, e aprendamos uma lição com base na

conduta dessas pessoas. As nossas almas são afligidas por uma enfermidade

com raízes muito mais fundas, muito mais complicadas, muito mais difíceis

do que qualquer mal herdado pela carne. Na verdade, nossas almas foram

atacadas pela praga do pecado. É preciso obter a cura, e cura eficaz e

definitiva, do contrário, pereceremos para sempre. Reconhecemos a

veracidade desse fato? Sentimos essa realidade? Estamos conscientes de

nossa enfermidade espiritual? Infelizmente, só há uma resposta possível

para estas perguntas! A grande maioria da humanidade não sente isso, de

maneira nenhuma. Os seus olhos estão cegos. Mostram-se totalmente

insensíveis diante de seu grave perigo. Para obter a saúde física, os homens

lotam a sala de espera dos médicos. Em prol da saúde eles empreendem

longas viagens para achar um ar mais puro. Mas, quanto à saúde da alma,

eles nem se preocupam. Verdadeiramente feliz é o homem ou a mulher que

já descobriu a enfermidade de sua alma! Essa pessoa não descansará

enquanto não tiver encontrado o Senhor Jesus. As dificuldades lhe

parecerão insignificantes, pois a vida, a própria vida eterna está em jogo.

Considerará todas as coisas como uma perda, contanto que possa ganhar a

Cristo e ser curada.

Em segundo lugar, notemos a maravilhosa facilidade e poder com que

nosso Senhor curava a todos os que lhe eram trazidos. Lemos que o povo se

maravilhou ao ver que os mudos falavam, os aleijados

Page 123: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 15.29-39 123

recobravam saúde, os coxos andavam e os cegos viam. Então glorificavam

ao Deus de Israel”.

Observe, nestas palavras, um símbolo vivo do poder de nosso

Senhor Jesus Cristo para curar almas enfermas pelo pecado! Não existe mal

do coração que Cristo não possa curar. Não existe problema espiritual que

Ele não possa vencer. A febre da concupiscência, a paralisia do amor a este

mundo, o vagaroso câncer da indolência e preguiça, e a incredulidade, que é

a doença do coração — todas, todas cedem caminho quando Ele envia o seu

Santo Espírito sobre uma pessoa, qualquer pessoa. Ele pode pôr nos lábios

do pecador um novo cântico e levá-lo a falar com amor daquele mesmo

evangelho que antes ele ridicularizava e contra o qual blasfemava. Ele pode

abrir os olhos do entendimento de um homem, para ver o reino de Deus.

Cristo pode abrir os ouvidos de um homem para torná-lo desejoso de ouvir a

voz de Cristo e segui-Lo por onde quer que Ele vá. Ele pode outorgar poder

espiritual ao homem, que antes prosseguia pelo caminho largo que conduz à

perdição, para andar no caminho da vida. Ele pode fazer com que as mãos

que antes foram instrumentos do pecado, agora o sirvam e façam a vontade

dEle. O tempo dos milagres ainda continua. Cada conversão é um milagre.

Já testemunhamos um caso real de conversão? Tenhamos a certeza de que

nessa conversão vimos a mão de Cristo operando. Devemos entender que tal

milagre não é menor do que se tivéssemos visto nosso Senhor fazendo os

mudos falarem ou os paralíticos andarem, quando andava na terra.

Gostaríamos de saber o que fazer, se desejássemos ser salvos?

Sentimo-nos adoentados na alma e queremos ser curados? Só temos que ir

até Cristo pela fé, rogando o alívio de que precisamos. Ele não muda. Vinte

séculos não fazem diferença para Ele. Nas alturas, à direita de Deus Pai, Ele

continua sendo o grande Médico. Ele ainda „„recebe pecadores” (Lc 15.2).

Ele continua sendo poderoso para curar!

Em terceiro lugar, observemos a transbordante compaixão de nosso

Senhor Jesus Cristo. Lemos que, “chamando Jesus os seus discípulos, disse:

Tenho compaixão desta gente”. Um grande ajuntamento de homens e

mulheres é sempre uma visão solene, O fato de que cada um é um pecador

que está morrendo, e de que cada um tem uma alma que precisa ser salva,

deveria mover nosso coração. Parece que ninguém jamais se sensibilizou

tanto, diante de uma multidão reunida, quanto o Senhor Jesus Cristo.

É um fato curioso e impressionante que, dentre todos os sentimentos

experimentados por nosso Senhor quando Ele estava sobre a terra, nenhum

outro é tão freqüentemente mencionado quanto a sua compaixão. Sua

alegria, tristeza, gratidão, ira, admiração e zelo — todos

Page 124: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

124 Mateus 15.29-39

esses sentimentos ficaram registrados ocasionalmente. Entretanto, nenhum

deles é tão reiteradamente mencionado como a sua “compaixão”. Parece

que o Espírito Santo desejava destacar para nós a característica mais

distintiva no caráter e o sentimento predominante na mente de Jesus,

enquanto Ele esteve entre os homens. Nove vezes, sem contar outras

expressões nas parábolas — sim, nove vezes o Espírito Santo fez com que a

palavra “compaixão” fosse escrita nos evangelhos.

Destaca-se algo de muito tocante e instrutivo nessa circunstância.

Nada ficou registrado por acaso na Palavra de Deus. Há uma razão especial

para o uso de cada expressão em particular. A palavra „ „compaixão”, sem

dúvida, foi especialmente selecionada para nosso proveito. Ela deveria

encorajar todos quantos hesitam em dar os primeiros passos nos caminhos

de Deus. O Salvador é cheio de “compaixão” e os receberá graciosamente.

Ele perdoará gratuitamente. Nunca mais se lembrará das iniqüidades

passadas. Ele suprirá abundantemente todas as necessidades. Não há

motivo para temer; a misericórdia de Cristo é como um poço

profundíssimo, do qual ninguém jamais achou o fundo.

Isto deveria ser um consolo para os santos e servos do Senhor,

quando se sentem cansados. Que eles se recordem de que Jesus é cheio de

“compaixão”. Ele sabe como é este mundo em que vivemos. Ele conhece o

corpo humano com todas as suas fragilidades. Ele conhece os artifícios do

inimigo, Satanás. O Senhor se compadece do seu povo. Portanto, que nunca

se sintam desanimados. Podem sentir que a debilidade, o fracasso e a

imperfeição estão estampados em tudo que fazem; não obstante, nunca

deveriam esquecer-se da palavra que diz: “as suas misericórdias não têm

fim” (Lm 3.22).

A Inimizade dos Escribas e Fariseus; E a Advertência Contra Eles

Leia Mateus 16.1-12

Nestes versículos encontramos nosso Senhor assediado pela in-

cansável inimizade dos fariseus e dos saduceus. Via de regra, essas duas

seitas tinham inimizade entre si. Mas quando resolveram perseguir a Cristo,

aliaram-se uma à outra. Essa foi, com certeza, uma aliança iníqua! No

entanto, quão freqüentemente vemos a mesma coisa acontecendo nos

nossos dias. Pessoas de hábitos e opiniões diametral mente opostas

concordam em detestar o evangelho e trabalham juntas para se opor ao seu

progresso. “Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9).

Nesta passagem bíblica, o primeiro assunto que merece a nossa

Page 125: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 16.1-12 125

atenção especial é a repetição que nosso Senhor faz de palavras por Ele

empregadas em uma ocasião anterior. Ele disse: “Uma geração má e adúltera

pede um sinal; e nenhum sinal lhe será dado, senão o de Jonas‟*. Se voltarmos para Mateus 12.39, veremos que Jesus já havia dito isso antes.

Essa repetição pode parecer, para alguns, algo superficial e sem

importância. Na verdade não é assim. A repetição ilumina um assunto

importante que tem deixado perplexos muitos sinceros estudiosos da

Bíblia, razão pela qual deve ser observada atentamente.

Essa reiteração nos mostra que nosso Senhor tinha o hábito de dizer a

mesma coisa mais de uma vez. Ele não se satisfazia em dizer alguma coisa

uma vez e nunca mais repeti-la. Está evidente que o seu costume era

mencionar certas verdades repetidamente, a fim de inculcá- -las mais fundo

na mente dos discípulos. Jesus sabia quão débil é nossa memória para as

coisas espirituais; Ele sabia que aquilo que ouvimos duas vezes, lembramos

melhor do que aquilo que ouvimos somente uma vez. Ele trazia do seu

depósito coisas novas e coisas velhas (Mt 13.52).

Ora, o que tudo isso nos ensina? Ensina-nos que não precisamos nos

esforçar tanto por harmonizar entre si as narrativas que lemos nos quatro

evangelhos, conforme muitos se dispõem a fazer. As declarações de nosso

Senhor que aparecem repetidas em Mateus e Lucas não tinham

necessariamente de terem sido proferidas numa mesma ocasião e os even-

tos a que essas declarações estão vinculadas não tinham de ser necessaria-

mente os mesmos. Mateus pode estar descrevendo um evento, ao passo que

Lucas pode estar descrevendo outro. Mesmo assim, as palavras de nosso

Senhor em ambas as ocasiões podem ter sido precisamente as mesmas. A

tentativa de fazer coincidir dois eventos em um só, por causa da semelhança

das palavras, com freqüência tem levado os estudiosos da Bíblia a caírem

em grandes dificuldades. É muito mais seguro defender o ponto de vista

aqui exposto, de que em diferentes ocasiões nosso Senhor muitas vezes

empregou as mesmas palavras.

O segundo ponto que merece atenção é a solene advertência que nosso

Senhor oferece aos seus discípulos. Evidentemente ficou dorida sua mente,

por causa das falsas doutrinas que via entre os judeus e a influência

perniciosa que elas causavam. E aproveita a oportunidade para exprimir

uma palavra de admoestação: “Vede, e acautelai-vos do fermento dos

fariseus e saduceus”. Observemos bem o conteúdo destas palavras. A quem

foi endereçado este aviso? Aos doze apóstolos, os primeiros ministros da

igreja de Cristo, homens que haviam abandonado tudo por amor ao

evangelho! Até mesmo eles foram advertidos! Os melhores dentre os

homens não passam de homens, e a qualquer momento podem cair em

tentação. “Aquele, pois, que pensa estar em

Page 126: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

126 Mateus 16.1-12 i

pé, veja que não caia” (1 Co 10.12). Se amamos a vida e desejamos ver dias

felizes, jamais imaginemos que não precisamos desta advertência: „„Vede, e

acautelai-vos!”

E contra o quê nosso Senhor adverte os seus apóstolos? Contra a

“doutrina dos fariseus e saduceus”. Os fariseus, os evangelhos nos dizem,

eram formalistas e justos aos seus próprios olhos. Os saduceus eram céticos,

livres-pensadores ou com tendências pagãs. Até mesmo Pedro, Tiago e João

devem precaver-se contra tais doutrinas! Na realidade, mesmo o melhor e

mais santo de todos os crentes deve ficar em guarda contra as falsas

doutrinas!

Qual é o simbolismo usado por nosso Senhor para descrever as falsas

doutrinas, acerca das quais adverte os seus discípulos? Ele em-‟ prega a

figura do “fermento”. Tal como o fermento, essas doutrinas podem parecer

coisa pequena, em comparação com a totalidade das verdades reveladas na

Bíblia. Mas, tal como o fermento, uma vez admitidas, elas ficariam

operando em segredo e em silêncio, e modificariam gradualmente todo o

caráter da religião com a qual se misturassem. Quanta significação está

contida com freqüência em uma única palavra! Não era apenas contra a

heresia patente, mas contra o “fermento” da heresia que os apóstolos

deviam acautelar-se.

Existe muito em tudo isso que clama em alta voz pela atenção

cuidadosa de todo crente professo. A advertência de nosso Senhor, nesta

passagem, tem sido vergonhosamente negligenciada. Teria sido bom para a

igreja de Cristo se as advertências do evangelho tivessem sido tão estudadas

quanto as suas promessas.

Lembremo-nos de que essa afirmação de nosso Senhor, sobre o

“fermento dos fariseus e saduceus”, visava a todos os séculos. Ela não se

destinava somente à geração que a ouviu pela primeira vez. Foi designada

para o perpétuo benefício da igreja de Cristo. Aquele que a proferiu

contemplava com visão profética a história futura do cristianismo. O grande

Médico sabia bem que as doutrinas dos fariseus e saduceus seriam duas

grandes enfermidades debilitadoras da igreja, até ao fim do mundo. Ele

queria que soubéssemos que sempre haverá fariseus e saduceus nas fileiras

do cristianismo. Nunca deixarão de ter sucessores, e a sua descendência

jamais se extinguirá. Eles podem tomar outros nomes, mas a atitude deles

permanecerá. Por isso Cristo nos diz: “Vede, e acautelai-vos.”

Finalmente, que nós façamos uso pessoal dessa advertência, man-

tendo um santo ciúme de nossas próprias almas. Lembremos de que

vivemos em um mundo onde o farisaísmo e o saduceísmo estão con-

tinuamente esforçando-se por obter a primazia na igreja de Cristo. Alguns

desejam acrescentar algo, outros querem subtrair alguma coisa do evan

Page 127: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 16.1-12 127

gelho. Alguns desejam sepultá-lo, enquanto outros tentam reduzi-lo a nada.

Alguns gostariam de sufocar o evangelho através de muitas adições,

enquanto outros querem sangrá-lo até a morte, ao subtrair-lhe as suas

verdades. Esses grupos concordam apenas quanto a uma questão: ambos

desejam matar e destruir a vida do cristianismo, o que fatalmente

aconteceria se conseguissem prevalecer. Contra tais erros que nós vi-

giemos, oremos e estejamos em guarda permanente. Nada acrescentemos

nem retiremos ao evangelho, querendo agradar a falsos mestres modernos.

Que o nosso lema seja “a verdade, toda a verdade, e nada mais que a

verdade” — nada acrescentando e nada subtraindo à verdade.

A Nobre Confissão de Pedro

Leia Mateus 16.13-20

Nesta passagem da Bíblia há palavras que têm produzido dolorosas

diferenças e divisões entre os cristãos. Homens têm lutado e contendido em

torno da sua significação, ao ponto de perderem de vista todo o amor

cristão, não sem conseguir convencer uns aos outros. Faremos um rápido

exame dessas palavras controvertidas, passando então para mais lições

práticas.

O que devemos entender quando lemos essa admirável afirmativa de

Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja‟ ‟? Será que

Pedro em pessoa seria o fundamento da igreja que Cristo estava por

edificar? Tal interpretação, para dizermos o mínimo, parece extremamente

improvável. Dizer que um falível e inseguro filho de Adão se tomaria o

alicerce do templo espiritual, não confere com a linguagem geral das

Sagradas Escrituras. Acima de tudo, não existe razão por que o Senhor não

poderia ter dito „ „sobre ti edificarei a minha igreja”, se isso fora o que ele queria dizer, ao invés de ter dito: “sobre esta pedra...”

O verdadeiro sentido da palavra “pedra”, nesta passagem, parece ser

a verdade do messiado e da divindade de nosso Senhor que Pedro acabara

de reconhecer. É como se Jesus houvera dito: “Com toda a razão foste

alcunhado de Pedro, ou pedra, porquanto confessaste aquela verdade

poderosa, sobre a qual, como sobre uma rocha, edificarei a minha igreja”.

Porém, o que devemos compreender quando lemos a promessa que

nosso Senhor faz a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus”? Teriam

conferido a Pedro o direito de admitir almas ao céu? Tal idéia é ilógica,

porque esse ofício é uma prerrogativa especial do próprio

Page 128: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

128 Mateus 16.13-20

Jesus Cristo (Ap 1.18). Será, então, que Pedro deveria ter a primazia ou

superioridade sobre os demais apóstolos? Não há a menor prova de que tal

significado tivesse sido atribuído a essas palavras de Jesus, na época

neo-testamentária; nem há prova de que Pedro tivesse qualquer autoridade

ou dignidade superior aos demais apóstolos.

Parece-nos que o verdadeiro sentido dessa promessa feita por Cristo

é que Pedro teria o privilégio especial de abrir, pela primeira vez, a porta da

salvação tanto aos judeus como aos gentios. E isso cumpriu-se à risca

quando ele anunciou o evangelho aos judeus, no dia de Pentecoste, e

quando visitou o gentio Comélio em sua casa.

Em cada ocasião Pedro utilizou as “chaves" e abriu completamente

a porta da fé. E, ao que tudo indica, Pedro tinha plena consciência disso,

pois afirmou: “Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio,

ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem" (At 15.7).

Finalmente, o que devemos entender quando lemos: “O que ligares

na terra, terá sido ligado no céu; e o que desligares na terra, terá sido

desligado nos céus"? Teria o apóstolo recebido algum poder de perdoar

pecados e absolver os pecadores? Tal noção tão-somente deprecia o ofício

especial de Jesus Cristo como nosso grande Sumo Sacerdote. Jamais

encontramos Pedro, ou qualquer outro apóstolo, exercendo algum poder de

perdoar pecados. Eles sempre encaminhavam as pessoas a Cristo, para o

perdão.

O verdadeiro significado dessa promessa parece ser que Pedro e os

demais apóstolos seriam especialmente comissionados para ensinar o ca-

minho da salvação, com autoridade. Assim como os sacerdotes do Velho

Testamento declaravam autoritativamente quem havia sido curado da le-

pra, também os apóstolos foram nomeados para declarar e pronunciar com

autoridade, quem havia sido perdoado de seus pecados. Além disso, eles

seriam especialmente inspirados para estabelecer regras e regulamentos

para orientação da igreja. Algumas coisas deviam ser “ligadas", ou

proibidas, e outras deviam ser „ „desligadas", ou permitidas. A decisão do

concílio de Jerusalém, de que os gentios não precisavam ser circuncidados,

foi um exemplo do exercício desse poder (At 15.19). Mas, essa foi uma

comissão especialmente restrita aos apóstolos. Eles não tiveram

sucessores, essa tarefa começou e terminou com eles.

A respeito destas palavras controvertidas já dissemos o suficiente

para nossa edificação pessoal. Vamos agora deixá-las para trás, apenas

lembrando-nos de que, em qualquer sentido em que essas palavras sejam

compreendidas, elas nada têm a ver com a igreja de Roma. A partir de

agora, voltaremos a nossa atenção para aqueles pontos que dizem respeito

mais diretamente às nossas almas.

Page 129: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 16.13-20 129

Em primeiro lugar, admiremos a nobre confissão do apóstolo Pedro,

Em resposta à pergunta de Jesus Cristo “Quem dizeis que eu sou?”, Pedro

afirma: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

A primeira vista, um leitor descuidado nada poderá notar de re-

levante nestas palavras do apóstolo. Parece extraordinário que Pedro

recebesse tamanho elogio por sua resposta. Mas esse pensamento surge da

ignorância e falta de melhor ponderação. Os homens se esquecem de que é

imensamente diferente crer na missão divina de Cristo quando estamos em

meio aos crentes do que quando em meio a judeus empedernidos e

incrédulos. A glória da confissão de Pedro está no fato de que ele a

apresentou quando poucos estavam a favor de Cristo, e muitos estavam

contra Ele. Pedro fez a sua confissão quando os líderes religiosos de sua

própria nação, os escribas, os sacerdotes e os fariseus, todos declaravam-se

contrários ao Senhor Jesus. Ele fez a sua confissão quando Jesus Cristo

estava em “forma de servo” (Fp 2.7), sem riquezas materiais, sem a

dignidade real e sem nenhuma comprovação visível de sua realeza. Fazer

uma tal confissão, naquela altura dos acontecimentos, requeria grande fé e

grande firmeza de caráter. A própria confissão, no dizer de Brentius, foi

“um resumo de todo o cristianismo, e um compêndio da verdadeira

doutrina religiosa”. Por isso nosso Senhor disse: “Bem-aventurado és,

Simão Barjonas...”

Faríamos bem em imitar o zelo e afeição sinceros que Pedro exibiu,

de todo o coração, nesse incidente. Talvez nos inclinemos por demais em

menosprezar este santo homem de Deus, por causa de sua ocasional

instabilidade e a tríplice negação ao Senhor Jesus. Mas isso é um grande

erro. Apesar de todas as suas faltas, Pedro era um servo fervoroso, resoluto

e sincero de Cristo. Apesar de todas as suas imperfeições, Pedro nos deu

um padrão que muitos crentes fariam bem em imitar. Um zelo como o de

Pedro talvez passe por momentos de hesitação, faltando- -lhe o impulso de

uma decisão mais firme. Um zelo como o de Pedro pode ser mal orientado,

e, algumas vezes, incorrer em equívocos. Todavia, um zelo como o

demonstrado por Pedro nunca deveria ser desprezado. Um zelo assim

desperta os sonolentos, anima aos vagarosos e leva outras pessoas à ação.

Qualquer coisa é melhor do que a indolência, a momidão e o torpor, na

igreja de Cristo. Quão mais feliz seria o mundo cristão se contássemos com

mais crentes parecidos com Pedro e Martinho Lutero, e menos como

Erasmo de Roterdã.

Em seguida, tenhamos certeza de haver compreendido o que nosso

Senhor quer dizer, quando fala sobre a sua igreja. A igreja que Jesus prometeu

edificar sobre a rocha é “a bem-aventurada companhia de todos os fiéis”.

Não se trata da igreja organizada e visível em qualquer nação, estado ou

localidade. Pelo contrário, a igreja é um corpo, formado

Page 130: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

130 Mateus 16.13-20

por crentes de todas as épocas, povos e línguas. Ela é composta por todos

quantos foram lavados no sangue de Cristo, que foram revestidos da justiça

de Cristo, renovados pelo Espírito de Cristo, unidos a Cristo pela fé, sendo

epístolas vivas de Cristo. É uma igreja onde todos os membros são

batizados no Espírito Santo, sendo real e verdadeiramente santos. Essa

igreja forma um corpo. Os que a ela pertencem estão unidos em atitudes e

pensamentos, defendem as mesmas verdades e creêm nas mesmas doutrinas

básicas da salvação. A igreja tem apenas uma Cabeça que é o próprio

Senhor Jesus Cristo. „„Ele é a cabeça do corpo, da igreja...” (Cl 1.18).

Tenhamos muito cuidado para não errar quanto a este assunto.

Poucas palavras são tão mal compreendidas quanto o vocábulo1 „igreja”.

Poucos equívocos têm prejudicado tanto a causa da religião pura. A

ignorância quanto a isso tem servido de solo fértil para preconceitos,

sectarismo e perseguição. Os homens têm brigado e contendido acerca de

denominações, como se para ser salvo fosse necessário pertencer a algum

partido eclesiástico em particular, e como se pertencer a algum desses

partidos fosse sinônimo de pertencer a Cristo. Em todo esse tempo eles têm

perdido de vista a igreja única verdadeira, fora da qual não existe salvação.

A denominação a que pertencemos nada significará no dia final, se não

estivermos relacionados como membros da verdadeira igreja dos eleitos de

Deus.

Em último lugar, salientamos as gloriosas promessas feitas por nosso

Senhor à sua igreja. Ele diz: „„As portas do inferno não prevalecerão contra

ela”. O significado dessa promessa é que o poder de Satanás jamais

destruirá o povo de Cristo. Aquele que introduziu o pecado e a morte na

primeira criação, ao tentar Eva, jamais introduzirá ruína na nova criação,

pela derrota dos crentes. O corpo místico de Cristo jamais perecerá, nem

decairá. Embora muitas vezes perseguida, afligida, assediada e humilhada,

a igreja jamais desaparecerá. Ela há de sobreviver à ira de faraós e

imperadores romanos. Uma igreja visível, como a de Efeso, pode vir a

desaparecer, mas, a igreja verdadeira nunca morre. Tal como a sarça que

Moisés viu, ela pode queimar, mas nunca será consumida. Cada um dos seus

membros será levado com segurança à glória eterna. A despeito de quedas,

fracassos e falhas, a despeito do mundo, da carne e do diabo, nenhum

membro da verdadeira igreja perecerá (Jo 10.28).

Page 131: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 16.21-23 131

Pedro é Repreendido Leia Mateus 16.21-23

No começo destes versículos, encontramos nosso Senhor revelando

a seus discípulos uma grande e espantosa verdade. A verdade de sua morte

na cruz, que se aproximava. Pela primeira vez, Ele apresenta o chocante

anuncio de que deveria „ „seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas.., ser

morto”. Ele não viera a este mundo a fim de tomar posse de um reino, e,

sim, para morrer. Ele não tinha vindo para reinar e ser servido, mas, sim,

para derramar seu sangue como sacrifício e dar a sua vida como resgate em

favor de muitos.

Para nós, é quase impossível conceber quão estranha e incom-

preensível essa revelação deve ter parecido para os discípulos de Cristo.

Como a maioria dos judeus, eles não podiam conceber a idéia de um

Messias sofredor. Não compreendiam que o capítulo cinqüenta e três de

Isaías precisava ser cumprido literalmente. Não percebiam que todos os

sacrifícios da lei mosaica tinham por finalidade apontar para a morte do

verdadeiro Cordeiro de Deus. Em nada mais pensavam, senão na vinda

gloriosa do Messias, a qual ainda terá lugar, no fim do mundo. Eles

pensavam tanto na coroa do Messias que perderam de vista a sua cruz.

Fazemos bem em lembrar disto. Uma compreensão correta deste fato

derrama grande luz sobre as lições que esta passagem contém.

Em primeiro lugar aprendemos que pode haver muita ignorância

espiritual, mesmo em um verdadeiro discípulo de Cristo. Não poderíamos obter

prova mais clara disso do que na conduta do apóstolo Pedro nessa ocasião.

Ele tenta dissuadir nosso Senhor: „„Tem compaixão de ti, Senhor; isso de

modo algum te acontecerá”. Pedro não era capaz de perceber todo o

propósito da primeira vinda do Senhor Jesus a este mundo. Os olhos dele

estavam cegos para a necessidade da morte de nosso Senhor. Ele fez tudo

quanto estava ao seu alcance para tentar impedir a morte de Jesus! Não

obstante, sabemos que Pedro era um homem convertido. Ele cria

verdadeiramente que Jesus era o Messias, e seu coração era reto aos olhos

de Deus.

Estas coisas têm por intuito nos ensinar que tanto não devemos

considerar bons homens como infalíveis, somente porque são bons, como

também não devemos supor que lhes falte a graça divina, somente porque

essa graça é pequena e fraca. Um irmão pode possuir dons singulares e ser

uma luz brilhante e resplandecente na igreja de Cristo. Mas, não nos

esqueçamos de que ele é apenas um homem, e, como tal, está su- * g

jeito a cometer grandes erros. Já um outro irmão pode ter um conheci

Page 132: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

132 Mateus 16.21-23

mento limitado. Talvez não consiga ajuizar corretamente acerca de muitos

pontos doutrinários. Talvez ele erre tanto em atos quanto em palavras.

Tem ele fé em Cristo e O ama? Reconhece Cristo como sua Cabeça? Se a

resposta é positiva, devemos tratá-lo com paciência. Aquilo que ele agora

não percebe, poderá enxergar mais tarde. Como Pedro, talvez agora ele

esteja obscurecido mas, à semelhança de Pedro, pode algum dia desfrutar

da plena luz do evangelho.

Em segundo lugar, aprendamos que não existe outra doutrina das

Escrituras tão profundamente importante quanto a doutrina da morte expiatória

de Cristo. A prova mais clara, quanto a isso, é a linguagem empregada por

nosso Senhor ao repreender Pedro. Jesus o chama pelo horrível nome de

“Satanás”, como se aquele apóstolo fosse um adversário, ocupado na causa

do diabo e procurando impedir a sua morte. Àquele que há pouco chamara

de “bem-aventurado”, Jesus diz: “Arreda! Satanás; tu és para mim pedra de

tropeço”. Ao homem cuja nobre confissão de fé Jesus tinha recentemente

elogiado, Ele diz: “Não cogitas das cousas de Deus, e, sim, das dos

homens”. Palavras mais fortes do que estas nunca saíram dos lábios de

nosso Senhor. O erro que provocou uma repreensão tão enérgica de nosso

amoroso Salvador, a um discípulo tão autêntico, deve ter sido realmente um

tremendo erro.

O fato é que nosso Senhor deseja que consideremos a crucificação

como a verdade central do cristianismo. Uma visão correta de sua morte

vicária, e dos benefícios daí resultantes, é fundamental para a religião

bíblica. Que nunca nos esqueçamos disso. Em questões de governo da

igreja e formas de culto, alguns podem diferir de nós, e, mesmo assim,

chegar ao céu em segurança. Quanto à questão da morte expiatória de

Cristo como o caminho da paz com Deus, a verdade é uma só. Se nos

enganamos nesse particular, estamos arruinados para sempre. 0 erro acerca

de muitos pontos de doutrina é apenas uma doença superficial. Mas o erro

acerca da morte de Cristo é uma doença fatal. Portanto, firmemo-nos nesse

ponto. Que coisa alguma nos desloque dessa base firme. A soma de todas

as nossas esperanças deve ser que Cristo morreu por nós (1 Ts 5.10). Se

desistimos dessa doutrina, não dispomos mais de qualquer esperança

sólida.

A Necessidade de Abnegação; O Valor da Alma Leia Mateus 16.24-28

A fim de percebermos a conexão destes versículos, devemos re-lembrar as impressões equivocadas dos discípulos de nosso Senhor,

Page 133: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 16.24-28 133

quanto aos propósitos de sua vinda ao mundo. Tal como Pedro, eles não

suportavam a idéia da crucificação. Pensavam que Jesus viera ao mundo a

fim de estabelecer um reino terrestre. Não percebiam que lhe ©ra

necessário sofrer e morrer. Sonhavam com honrarias seculares e

recompensas temporais no serviço do Mestre. Não entendiam que os

verdadeiros cristãos, a exemplo de Jesus Cristo, precisam ser experi-

mentados nos sofrimentos. Nosso Senhor corrige estes mal entendidos, usando palavras peculiarmente solenes, que faremos bem em guardar no coração.

Em primeiro lugar, devemos aprender que os homens precisam estar

decididos a enfrentar tribulação e negar a si mesmos, se desejam seguir a Cristo.

Nosso Senhor dissipa os caros sonhos de seus discípulos, dizendo-lhes que

os seus seguidores devem “tomar a cruz”. O glorioso reino pelo qual

estavam esperando, de modo nenhum haveria de ser estabelecido

prontamente. Seus seguidores precisam aceitar previamente a perseguição e

aflição, se desejam servir ao Senhor. Se desejam “salvar a sua vida”,

precisam estar dispostos a “perder a vida”.

E bom que compreendamos com clareza essa questão. Não devemos

ocultar de nós mesmos o fato de que o verdadeiro cristianismo traz consigo

uma cruz diária nesta vida, enquanto oferece uma coroa de glória na vida

futura. A carne precisa ser crucificada diariamente. Precisamos resistir ao

diabo dia após dia. O mundo precisa ser vencido. Há uma guerra declarada

e muitas batalhas a vencer. Tudo isso é o acompanhamento inseparável da

verdadeira religião. O céu nunca será conquistado sem tais batalhas. Nunca

houve declaração mais veraz do que o velho ditado: “Nenhuma cruz,

nenhuma coroa!” Se nunca descobrimos isso por experiência, nossa alma

está em uma pobre condição.

Em segundo lugar, aprendamos nestes versículos que nada existe de

tão precioso quanto uma alma humana, Nosso Senhor nos ensina esta lição,

fazendo uma das mais solenes indagações contidas no Novo Testamento. É

uma pergunta tão bem conhecida e tão freqüentemente repetida, que as

pessoas geralmente perdem de vista o seu caráter perscrutador. Mas é uma

pergunta que deveria soar em nossos ouvidos como uma trombeta, sempre

que somos tentados a negligenciar nossos interesses eternos: „ Que

aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e peTder a sua alma?”

Só pode haver uma resposta para esta pergunta. Nada existe sobre a

terra ou debaixo da terra que possa compensar pela perda de nossa própria

alma. Nada existe que o dinheiro seja capaz de comprar, ou que o homem

possa oferecer, que possa ser mencionado em comparação às nossas almas,

O mundo, e tudo quanto nele está contido, é apenas temporal. Ele está

gradual mente desaparecendo, perecendo e dissipando-

Page 134: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

134 Mateus 16.24-28

-se. A alma é eterna. Essa palavra é a chave de toda a questão. Guardemo-

-la no profundo de nossos corações. Estamos titubeantes em nossa religião?

Acaso tememos a cruz? O caminho nos parece muito estreito? Que as

palavras de nosso Senhor ressoem em nossos ouvidos: “Que aproveitará o

homem?”, e não mais duvidemos.

Em último lugar, aprendamos que será na segunda vinda de Cristo que

receberemos a recompensa. * „Porque o Filho do homem há de vir na glória de

seu Pai... e então retribuirá a cada um conforme as suas obras”. Nestas

palavras de Jesus há profunda sabedoria, quando são vistas em conexão com

os versículos precedentes. Jesus conhece o coração do homem. Ele sabe o

quão prontamente nos deixamos desanimar, e como, a exemplo do antigo

povo de Israel, ficamos impacientes no caminho (Nm 21.4). Por isso Ele nos

deixa uma preciosa promessa. Ele nos lembra de que virá a este mundo uma

segunda vez, tão certo quanto veio pela primeira vez. Ele nos diz que esse

será o tempo quando os seus discípulos receberão as recompensas. Haverá

glória, honra e galardões em abundância, algum dia, para todos quantos têm

servido e amado ao Senhor Jesus. Mas isso será na dispensação do segundo

advento, e não na dispensação do primeiro. O que é amargo virá antes do

que é doce, e a cruz ames da coroa. O primeiro advento foi a dispensação da

crucificação. O segundo é a dispensação do reino. Precisamos nos submeter

a tomar parte com nosso Senhor em sua humilhação, se queremos um dia

compartilhar de sua glória.

Não deixemos para trás estes versículos, sem primeiro fazermos uma

auto-inquirição séria quanto aos assuntos que eles contêm. Temos ouvido

sobre a necessidade de tomar a cruz e de negarmos a nós mesmos. Já

tomamos a nossa própria cruz? Estamos carregando-a diariamente? Temos

ouvido sobre o grande valor da alma humana. Acaso vivemos como quem

acredita nisso? Temos ouvido sobre a segunda vinda de Cristo. Estamos

aguardando esse segundo advento com esperança e júbilo? Feliz o homem

que pode dar respostas satisfatórias a estas perguntas.

A Transfiguração Leia Mateus 17.1-13

Estes versículos historiam um dos mais notáveis acontecimentos

ocorridos durante o ministério terreno de nosso Senhor — aquele evento

comumente chamado de “a transfiguração”. A ordem em que esse incidente

ficou registrado é bela e instrutiva. A última porção do capítulo anterior

mostra-nos a cruz, que já surge no horizonte. Aqui, porém,

Page 135: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 17.1-13 135

1 1

[

i i

U

i

somos graciosamente brindados com a visão de algo sobre a nossa re-

compensa vindoura. Os corações dos discípulos, que há tão pouco tempo

haviam sido profundamente entristecidos diante da clara afirmação feita

por Cristo, acerca dos seus sofrimentos, logo em seguida foram alegrados

pela visão da glória de Jesus Cristo. Devemos salientar esse ponto. Nós perdemos muito, quando ignoramos a conexão existente entre um capítulo e outro da Palavra de Deus,

Sem dúvida alguma, existem mistérios dentro da visão aqui descrita.

Porém, é forçoso que assim aconteça. Afinal, ainda estamos no corpo

físico. Os nossos sentidos estão voltados para as coisas materiais e

grosseiras deste planeta. As nossas idéias e a nossa percepção sobre corpos

glorificados e sobre santos mortos são, necessariamente, vagas e

imprecisas. Por conseguinte, contentemo-nos em assimilar as lições

práticas que a transfiguração de Jesus tenciona ensinar-nos.

Antes de qualquer outra coisa, nestes versículos encontramos uma

notável demonstração da glória com que Cristo e o seu povo aparecerão, quando

Ele vier pela segunda vez. Não se pode tolerar qualquer dúvida de que esse

foi um dos principais objetivos dessa admirável visão. O propósito da

mesma era encorajar aos discípulos, conferindo-lhes um vislumbre das

coisas boas que ainda teriam lugar. Aquele rosto que “resplandecia como o

sol‟ ‟, e aquelas vestes que se tomaram „ „brancas como a luz tiveram a

finalidade de proporcionar aos discípulos alguma idéia da majestade com

que o Senhor Jesus aparecerá neste mundo quando vier, pela segunda vez,

juntamente com todos os seus santos. Por assim dizer, uma beira do véu foi

erguida, a fim de mostrar aos discípulos a verdadeira dignidade do seu

Senhor e Mestre. Foi dessa maneira que eles puderam entender que se Jesus

não havia aparecido neste mundo com a figura majestosa de um monarca,

isso era devido tão-somente ao fato que o tempo dEIe vestir os seus trajes

reais ainda não havia chegado. E impossível a gente extrair qualquer outra

conclusão, se levarmos em conta a linguagem empregada pelo apóstolo

Pedro, quando ele escreveu sobre o assunto. Referindo-se claramente à

transfiguração, escreveu esse apóstolo; “...nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade“ (2 Pe 1.16).

Para nós convém que a vindoura glória de Cristo e do seu povo seja

profundamente impressa sobre as nossas mentes. Inclinamo-nos, mui

tristemente, por esquecer-nos disso. Há poucas indicações visíveis dessa

glória, no mundo presente. Porquanto ainda não vemos que todas as coisas

estão postas sob os pés de nosso Senhor. Por toda a parte abundam o

pecado, a incredulidade e a superstição. Na prática, milhares estão dizendo;

“Não queremos que este [Jesus] reine sobre nós” (Lc 19.14). E também

ainda não se manifestou como se tomarão as pessoas

Page 136: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

136 Mateus 17.1-13

que fazem parte do povo de Cristo. Suas cruzes, suas tribulações, suas

debilidades e seus conflitos, tudo isso nos é perfeitamente evidente. En-

tretanto, há mui escassos sinais da futura recompensa deles. Cuidemos,

portanto, em não permitir que nos surjam dúvidas quanto a essa par-

ticularidade. Silenciemos essas dúvidas, em nossos corações, lendo outra

vez o relato da transfiguração de Jesus Cristo. Para Jesus e para todos

quantos nEle confiam está reservada uma glória tão intensa como o co-

ração humano não é agora capaz de conceber. E não somente essa glória

nos foi prometida, como também conta com o testemunho de três com-

petentes testemunhas. Uma dessas testemunhas deixou registrado por

escrito: .e vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai”

(Jo 1.14). Por certo, bem podemos acreditar naquilo que foi visto por elas.

Em segundo lugar, nestes versículos encontramos uma prova in-

sofismável do fato da ressurreição do corpo e de que há vida depois da morte

física. Somos informados ali que Moisés e Elias apareceram juntamente

com Jesus, de forma visível e gloriosa. Eles foram vistos como corpos

físicos. Foram ouvidos a dialogar com o Senhor Jesus. Mil quatrocentos e

oitenta anos já se haviam passado, desde que Moisés morrera e fora

sepultado. E mais de novecentos anos se passaram, desde que Elias fora

arrebatado para o céu em um redemoinho. No entanto, eles foram vistos

vivos, por parte de Pedro, de Tiago e de João!

Devemos dar o máximo de atenção a essa visão. Ela merece nossa

cuidadosa atenção. Todos deveríamos sentir, quando meditamos a respeito

dessa visão, que o estado dos mortos é um assunto deveras misterioso e

profundo. Um após outro, os mortos são sepultados e desaparecem da

nossa vista. Nós os depositamos em seus estreitos túmulos, e nunca mais os

vemos, e os seus corpos físicos acabam reduzidos a pó. Mas, haverão eles,

realmente, de tomar a viver? Poderemos vê-los de novo? Os sepulcros

devolverão os mortos neles contidos, no último dia? Essas são perguntas

que, ocasionalmente, atravessam as mentes de algumas pessoas, apesar de

todas as claríssimas assertivas da Palavra de Deus.

Ora, por ocasião da transfiguração de Jesus nos deparamos com a

mais cristalina evidência de que os mortos, realmente, ressuscitarão algum

dia. Encontramos ali dois homens que reapareceram na terra, em seus

próprios corpos, embora já se tivessem passado séculos que estavam

separados da terra dos viventes. E é nisso que encontramos uma poderosa

garantia da ressurreição final de todos os seres humanos. Todos aqueles

que já viveram neste mundo serão novamente chamados à vida, a fim de

prestarem contas de tudo o que fizeram. Nenhuma dessas pessoas faltará.

Não existe tal coisa como o aniquilamento das almas. Todos quantos

chegaram a dormir em Cristo serão encontrados perfei-

Page 137: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 17.1-13 137

tamente seguros — patriarcas, profetas, apóstolos, mártires — até ao mais

humilde servo de Deus, dos nossos próprios dias. Embora atualmente

invisíveis para nós, todos eles estão bem vivos para Deus. “Ora, Deus não é

Deus de mortos, e, sim, de vivos; porque para ele todos vivem” (Lc 20.38).

Seus espíritos estão vivos, tanto quanto nós mesmos estamos vivos; e

aparecerão de novo, em corpos glorificados, tão certamente quanto Moisés

e Elias apareceram no monte da transfiguração. Estes, de fato, são

pensamentos solenes. Existe uma ressurreição, e homens como Félix

devem tremer. Existe uma ressurreição, e homens como Paulo devem

regozijar-se.

Em último lugar, nestes versículos, encontramos um notável tes-

temunho acerca da infinita superioridade de Cristo sobre todos quantos

nasceram de mulher. Esse foi um ponto fortemente frisado pela voz, vinda

do céu, que os discípulos ouviram. Pedro, perplexo e atônito diante da

visão celestial, sem saber o que dizer, propôs que fossem erigidos três

tendas no monte: uma para Cristo, outra para Moisés e outra para Elias. Na

realidade, parece que Pedro queria situar o legislador e o profeta lado a lado

com o divino Mestre, como se todos os três fossem iguais, porém, vemos

que essa proposta foi prontamente rechaçada, da maneira mais

extraordinária e impressionante. Uma nuvem encobriu Moisés e Elias, e

eles não mais puderam ser vistos. Ao mesmo tempo, de dentro da nuvem,

saiu uma voz, que reiterou as solenes palavras que João Batista ouvira, por

ocasião do batismo de nosso Senhor: “Este é o meu Filho amado, em quem

me comprazo: a ele ouvi”. Essa voz teve por intuito mostrar a Pedro que há

Alguém muito superior a Moisés ou a Elias. Moisés foi um fiel servo de

Deus. Elias foi uma ousada testemunha que defendeu a verdade divina.

Mas, Cristo é muito maior do que qualquer um deles, ou mesmo que os dois

juntos. Ele é o Salvador, para quem continuamente apontavam a lei e os

profetas. Ele é o verdadeiro Profeta, a quem todos estão na obrigação de

ouvir, conforme lhes foi ordenado (Dt 18.15). Moisés e Elias foram

grandes homens em sua própria época. Porém, Pedro e os outros dois

apóstolos precisavam relembrar que, quanto à natureza, à dignidade e ao

ofício, eles estão muito abaixo de Jesus. Cristo é o verdadeiro sol; mas eles

foram apenas os planetas que refletiram a sua luz. Ele é a raiz; mas eles

foram apenas os ramos, dependentes da raiz. Ele é o Senhor; mas eles

foram apenas os servos. A bondade deles era toda derivada; mas a de Cristo

era sua própria, original. Moisés e os profetas, como homens santos,

merecem honra. Mas, se os discípulos desejam ser salvos, devem ter

unicamente a Cristo como Mestre, e dar glória somente a Ele. “...a ele

ouvi”. Também devemos detectar nestas palavras uma grande lição para

Page 138: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

138 Mateus 17.1-13

toda a igreja de Cristo. Na nossa natureza humana manifesta-se a constante

tendência para “ouvirmos o homem”. Bispos, padres, diáconos, cardeais, o

papa, os concílios, pregadores e ministros de grupos evangélicos são

continuamente exaltados a uma posição que Deus jamais tencionou que

preenchessem, usurpando assim a honra devida somente a Cristo, para

todos os efeitos práticos. Por causa dessa inclinação, que todos vigiemos e

montemos guarda. E que aquelas solenes palavras da visão fiquem

ressoando em nossos ouvidos: “...a ele ouvi”.

Os melhores homens não passam de homens, mesmo em seus

melhores momentos. Os patriarcas, os profetas e os apóstolos — os

mártires, os pais da igreja, os reformadores, os puritanos — todos são meros

pecadores, que precisam do Salvador — santos, úteis, dignos de honra em

seus respectivos lugares, mas apenas pecadores, e nada mais. Nunca

podemos permitir que eles sejam interpostos entre nós e Cristo. Somente

Jesus Cristo é “o Filho, em quem o Pai se compraz”. Somente Ele dispõe

das chaves, que estão em suas mãos, e somente Ele é o “...Deus bendito para

todo o sempre. Amém” (Rm 9.5). Certifiquemo-nos de que estamos

ouvindo a sua voz e seguÍndo-0. Avaliemos todos os ensinamentos

religiosos de conformidade com o grau em que nos conduzem aos pés de

Cristo. A essência da religião que salva consiste nisso — ouvir a Jesus

Cristo.

A Cura do Jovem Endemoninhado Leia Mateus 17.14-21

Neste trecho bíblico tomamos conhecimento de outro dos gran-

diosos milagres realizados por Jesus Cristo. Ele curou um jovem lunático,

que vivia possuído por um demônio.

A primeira coisa que descobrimos, nestes versículos, é um vívido

quadro da horrenda influência que, algumas vezes, o demônios exercem sobre os

jovens. Lemos ali a respeito do filho de um homem que, além de “lunático”,

também sofria muito. Um espírito maligno o estava pressionando, tentando

destruir seu corpo e sua alma, “pois muitas vezes cai no fogo, e outras

muitas, na água”. Vemos aqui um daqueles casos de possessão demoníaca

que, embora comum nos dias de nosso Senhor na terra, hoje em dia são

encontrados com uma certa raridade. Porém, podemos facilmente imaginar

que, quando esses ataques aconteciam, sem dúvida deixavam as suas

vítimas extremamente aflitas e agoniadas. Já é doloroso ver os corpos

daqueles a quem amamos esmagados pelas enfermidades. E quão mais

doloroso deve ser ver o corpo

Page 139: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 17.14-21 139

e a mente de algum ente querido totalmente debaixo da influência do diabo! Disse o bispo Hall: “Fora do inferno, não pode haver desgraça pior”.

Todavia, nunca nos deveríamos esquecer de que há muitas maneiras

de Satanás exercer controle espiritual entre os jovens, que são tão

lamentáveis como o caso que estamos considerando nesta passagem. Há

milhares e milhares de jovens que parecem ter-se entregado completamente

às sugestões de Satanás, tendo ficado cativos à sua vontade. Esses jovens

desfazem-se de todo o temor de Deus e perdem todo o respeito pelos seus

mandamentos. Antes, servem a diversas concupiscências e prazeres

distorcidos. Atiram-se loucamente a todos os excessos e devassidões.

Recusam-se a ouvir os conselhos de seus progenitores, professores ou

ministros do evangelho. Jogam para um lado todas as preocupações com a

própria saúde, com o próprio caráter e com a própria respeitabilidade

perante os seus semelhantes. Fazem tudo quanto está ao seu alcance, a fim

de se arruinarem de corpo e de alma, no tempo e na eternidade. São escravos

voluntários de Satanás. Quem nunca viu jovens nessas condições? Podem

ser encontrados nas grandes cidades e nas áreas rurais. Procedem tanto das

classes abastadas quanto das classes humildes. Certamente esses jovens

servem de provas entristecedoras de que, embora Satanás raramente tome

posse dos corpos dos homens, nestes nossos dias, ele continua exercendo

um maléfico domínio sobre as almas dos homens em geral.

Contudo, jamais nos deveríamos esquecer de que, nem mesmo no

caso de jovens nessa situação deveríamos perder a esperança. Antes,

deveríamos recordar-nos de que nosso Senhor Jesus Cristo é o Todo-

-Poderoso. Por pior que fosse o caso daquele rapazinho, sobre quem lemos

nesses versículos, ele foi “curado”, e isso “desde aquela hora” mesma em

que foi apresentado a Cristo! Os pais, os mestres e os pregadores deveriam

continuar orando em favor dos jovens, mesmo quando eles exibem o seu

lado mais negro. Por mais endurecidos que pareçam ser os seus corações,

ainda assim tais corações poderão ser abrandados. Por mais desesperadora

que seja a sua iniquidade, no momento, ainda assim poderão ser curados. À

semelhança de João Newton, eles poderão chegar a arrepender-se e

converter-se, e o seu último estado demonstrar que é melhor do que o

inicial. Quem é capaz de negar isso? Que para nós constitua um princípio

fixo, quando lemos a respeito dos milagres realizados por nosso Senhor,

que jamais desistamos de esperar pela salvação de quem quer que seja.

Em segundo lugar, nestes versículos, encontramos um extraordinário

exemplo do efeito debilitador da incredulidade. Os discípulos indagaram

ansiosamente de nosso Senhor, ao notarem que o demônio

Page 140: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

140 Mateus 17.14-21

cedera diante do poder de Cristo: „ „Por que motivo não pudemos nós

expulsá-lo?” E eles receberam uma resposta plena da mais rica e proveitosa

lição: “Por causa da pequenez da vossa fé”. Desejariam eles conhecer o

segredo do seu próprio e triste fracasso, na hora da necessidade? Era a falta

de fé mais firme.

Ponderemos bem sobre esse incidente, e aprendamos a ser sábios. A

fé é a chave do sucesso na guerra espiritual do crente. A incredulidade é o

caminho garantido da derrota. Se permitirmos que a nossa fé se enfraqueça

e caia em decadência, todas as nossas graças cristãs debilitar-se-ão

juntamente com ela. A coragem, a paciência, a longanimidade e a esperança

não demorarão coisa alguma para murchar e desaparecer. A fé é a raiz da

qual dependem todas essas outras virtudes. Os mesmos israelitas que, em

certa ocasião, atravessaram triunfalmente o mar Vermelho, em outra

oportunidade encolheram-se diante do perigo como uns covardes, ao

chegarem às bordas da Terra Prometida. O Deus deles continuava o mesmo

que os tirara da servidão na terra do Egito. O líder deles era o mesmo

Moisés, que operara tantas maravilhas diante dos seus olhos. No entanto, a

fé deles já não era a mesma. Eles tinham dado margem a vergonhosas

dúvidas acerca do amor e do poder do Senhor Deus. “...não puderam entrar

por causa da incredulidade” (Hb 3.19).

Em último lugar, vemos nestes versículos que o reino de Satanás não

pode ser derrubado sem muita luta e diligência, Parece ser essa a lição com que

se encerra a presente passagem. “Mas esta casta não se expele senão por

meio de oração e jejum.” Nessas palavras parece haver implícita uma gentil

reprimenda de Jesus aos seus discípulos. Talvez eles estivessem por demais

entusiasmados com os sucessos do passado. Ou, talvez, estivessem sendo

menos diligentes no uso dos meios da graça, em face da ausência de seu

Senhor, do que quando Cristo estava em companhia deles. Sem importar

qual tenha sido a causa, eles receberam uma indicação perfeitamente clara,

da parte de nosso Senhor, de que a guerra contra Satanás jamais deve ser

travada de modo superficial. E assim sendo, foram instruídos quanto ao fato

que nenhuma vitória sobre o príncipe deste mundo pode ser ganha de modo

fácil. Sem a oração fervorosa e sem a auto-mortificação diligente, com fre-

quência haveremos de amargar o fracasso e a derrota.

A lição aqui ressaltada reveste-se de grande importância. Afirmou

Bullinger: “Eu gostaria que esta porção do evangelho nos agradasse tanto

quanto aquelas porções que nos concedem liberdade”. Todos nos

inclinamos por cumprir os nossos atos devocionais de maneira impensada e

apenas formal. A exemplo do povo de Israel, que estava envaidecido diante

da queda das muralhas de Jericó, estamos sempre dispostos

Page 141: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 17.14-22 Í41

a dizer para nós mesmos: “são poucos os inimigos“ (Js 7.3). Desse modo,

pois, imaginamos que não precisamos exercitar toda a nossa força

espiritual. Mâs, também a exemplo de Israel, por muitas vezes somos então

obrigados a experimentar, com amargor de espirito, que as batalhas

espirituais não são vencidas sem luta árdua. A arca do Senhor sob hipótese

alguma pode ser manuseada com irreverência. O trabalho do Senhor não

pode ser feito de maneira desleixada.

Que nunca nos esqueçamos das palavras de nosso Senhor aos seus

discípulos, e que tenhamos como regra, colocá-las em prática. No púlpito

ou na plataforma, na Escola Dominical ou no local de trabalho, no uso que

fizermos das nossas orações domésticas e da leitura da Bíblia, que sempre

vigiemos com diligência sobre os nossos próprios espíritos. Qualquer coisa

que estejamos fazendo, que o façamos de conformidade

com as nossas forças“ (Ec 9.10). Constitui um erro fatal subestimar os

nossos adversários. Maior é aquele que está conosco do que aquele que é

contra nós. Mas, a despeito disso, aquele que nos é contrário não deveria

ser subestimado quanto à sua periculosidade. Ele é o próprio príncipe deste

mundo. Ele é o forte homem armado, que guarda a sua casa, e que não sai

da mesma para dividir os seus bens com alguém, senão depois de muita

luta. Não temos de combater contra carne e san- gue, e, sim, contra

principados e potestades. Portanto, precisamos revestir-nos de toda a

armadura de Deus. E não somente nos cabe nos

revestirmos dela, porquanto também precisamos usá-la. Podemos ter

a mais absoluta certeza de que aqueles que obtêm o maior número de

vitórias sobre o mundo, a carne e o diabo são justamente aqueles que

mais oram em secreto, fazendo conforme fazia Paulo: “Mas esmurro

o meu corpo, e o reduzo à escravidão“ (1 Co 9.27).

O Peixe e a Moeda do Tributo Leia Mateus 17.22-27

Nestes versículos transparece uma certa circunstância, dentro da

vida de nosso Senhor, que não foi narrada por qualquer dos demais

evangelistas, além de Mateus. Um milagre notável foi efetuado, a fim de

providenciar o necessário para o pagamento do dinheiro do tributo,

requerido para a manutenção do templo de Jerusalém. Nessa narrativa há

três pontos salientes, que merecem a nossa atenta observação.

Em primeiro lugar, observemos que nosso Senhor tinha perfeito

conhecimento de tudo quanto é dito e feito neste mundo. Lemos ali que aqueles

que “cobravam o imposto das duas dracmas” dirigiram-se a

Page 142: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

142 Mateus 17.22-27

Pedro e lhe perguntaram: “Não paga o vosso Mestre as duas dracmas?“ E a

resposta dada por Pedro foi na afirmativa: “Sim”. É evidente que nosso

Senhor não estava presente quando essa pergunta foi formulada e essa

resposta foi dada. No entanto, nem bem Pedro chegou na casa, e o Senhor

lhe foi perguntando: “Simão, que te parece? de quem cobram os reis da terra

imposto ou tributo; dos seus filhos, ou dos estranhos?“ Dessa maneira, pois,

Jesus mostrou a Pedro que sabia qual a conversa que esse apóstolo tivera

com aqueles homens, como se Ele estivesse estado nas imediações,

escutando tudo.

Existe algo de indescritível solenidade na idéia de que o Senhor

Jesus sabe de todas as coisas. Há um par de olhos que acompanha toda a

nossa conduta diária. Há alguém que escuta todas as palavras que dizemos a

cada dia. Todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos dAquele a

quem teremos de prestar contas. É simplesmente impossível nos ocultarmos

dEle. A hipocrisia é perfeitamente inútil. Podemos enganar aos pregadores.

Podemos fingir diante de nossos parentes e vizinhos. O Senhor, no entanto,

vê todas claramente. Não podemos enganar a Cristo.

Deveríamos fazer um esforço para usar essa verdade de um modo

prático. Deveríamos esforçar-nos por viver como que diante dos olhos do

Senhor, conforme foi recomendado a Abraão: “anda na minha presença”

(Gn 17.1). Que o nosso alvo diário seja nada dizer que não gostaríamos que

Cristo ouvisse, e nada fazer que não gostaríamos que Cristo visse. Por igual

modo, deveríamos medir cada questão difícil, sobre o que é certo ou errado,

mediante um simples teste: Como eu me comportaria, se Jesus estivesse de

pé, ao meu lado? Um padrão assim não é extravagante e nem absurdo.

Também não é uma norma capaz de interferir com qualquer dever ou

relacionamento em nossas vidas. Interfere exclusivamente cora o pecado.

Feliz é aquele que procura sentir a presença de seu Senhor, fazendo e

dizendo todas as coisas como que na presença dEle.

Observemos ainda que nosso Senhor exerce o seu infinito poder sobre

toda a criação. Jesus fez de um peixe o seu tesoureiro. Fez uma criatura

muda trazer o dinheiro do imposto, para satisfazer às exigências do coletor.

Com toda a razão, pois, comentou Jerônimo: “Não sei o que mais admirar

aqui, se a presciência de nosso Senhor ou se a sua grandeza”.

Deparamo-nos aqui com um cumprimento literal das palavras do

salmista: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão, e sob seus pés tudo

lhe puseste... as aves do céu e os peixes do mar, e tudo o que percorre as

sendas dos mares” (SI 8.6-8). Temos aqui uma prova, dentre muitas outras, da majestade e da

Page 143: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 17.22-27 143

grandeza de nosso Senhor Jesus Cristo. Somente Ele, que foi o criador de

todas as coisas, poderia exigir a obediência de todas as suas criaturas.

“Tudo foi criado por meio dEle e para Ele... nEle tudo subsiste” (Cl

1.16-17), O crente que parte para realizar a obra de Cristo entre os incré-

dulos, pode entregar-se com toda a confiança aos cuidados do seu Senhor.

Porquanto estará servindo Àquele que detém toda a autoridade, até mesmo

sobre as feras da terra. Quão maravilhoso é o pensamento que esse Senhor

Todo-Poderoso tenha condescendido em ser crucificado, a fim de

salvar-nos! Quão consolador é o pensamento que, quando Ele vier ao

mundo, pela segunda vez, haverá de manifestar gloriosamente o seu poder

sobre todas as coisas criadas, no mundo inteiro! “O lobo e o cordeiro

pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da

serpente” (Is 65.25).

Em último lugar, observemos, nestes versículos, a disposição de

nosso Senhor em fazer concessões, por não querer escandalizar a ninguém. Com

toda a razão, Jesus poderia ter reivindicado isenção do pagamento do

dinheiro do tributo. Aquele que é o próprio Filho de Deus, com toda a

justiça poderia ser dispensado de pagar pela manutenção da casa de seu Pai.

Aquele que mostrou ser “maior do que o templo”, poderia ser reconhecido

como quem não precisava contribuir para o sustento do templo. Nosso

Senhor, entretanto, não fez nada disso. Não reivindicou qualquer isenção.

Pelo contrário, demonstrou que desejava que Pedro pagasse o dinheiro que

fora cobrado. Ao mesmo tempo, porém, Jesus declarou os seus motivos.

Isso deveria ser feito “para que não os escandalizemos”. Comentou o bispo

Hall, a esse respeito* “Foi efetuado um milagre, a fim de que nem mesmo

um coletor de impostos ficasse escandalizado‟ ‟.

O exemplo dado por nosso Senhor, nesse incidente, merece toda a

atenção da parte daqueles que se professam e se chamam cristãos.

Oculta-se uma profunda sabedoria naquelas cinco palavras, “para que nao

os escandalizemos . Elas ensinam-nos, com toda a clareza, que existem

questões acerca das quais o povo de Cristo deveria abafar as suas próprias

opiniões, submetendo-se a requisitos que talvez não aprovem plenamente,

somente por não quererem escandalizar a ninguém e nem “pôr tropeço

diante do evangelho de Cristo”. Dos direitos de Deus, é indubitável, jamais

deveríamos desistir; mas, dos nossos próprios direitos, ocasionalmente

podemos desistir deles, com real proveito. Talvez soe correto e pareça

heróico estarmos continuamente a defender, com tenacidade, os nossos

direitos. Porém, diante de uma passagem bíblica como a que temos diante

de nós, bem poderiamos duvidar se tal tenacidade sempre é sábia e sempre

reflete a mente de Cristo. Há ocasiões em que o crente demonstra maior

graça submetendo-se do que oferecendo resistência.

Page 144: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

144 Mateus 17.22-27

Lembremo-nos desta passagem, na qualidade de cidadãos e patriotas.

Talvez não aprovemos todas as medidas políticas tomadas por nossos

governantes. Talvez discordemos de alguns dos impostos que eles

determinam. Mas, a grande indagação, após tudo isso, é a seguinte:

“Redundará em qualquer benefício para a causa da religião cristã se eu

resistir às autoridades constituídas? As medidas decretadas por elas

realmente estão prejudicando o bem-estar da minha alma?*‟ Em caso

negativo, fiquemos tranquilos, “para que não os escandalizemos“.

Também nos devemos recordar deste trecho bíblico na qualidade de

membros da igreja de Cristo. Talvez não gostemos de tudo que ocorre nas

cerimônias e ritos do grupo evangélico a que pertencemos. Talvez

pensemos que aqueles que nos governam quanto às questões espirituais

nem sempre se mostram sábios. Mas, em última análise, os pontos sobTe os

quais nos sentimos insatisfeitos são, realmente, de importância vital?

Alguma das grandes verdades do evangelho está sendo ameaçada? Em caso

contrário, fiquemos quietos, “para que não os escandalizemos“.

Lembremo-nos também desta passagem na qualidade de membros

que fazem parte de uma sociedade. Dentro do círculo social ao qual per-

tencemos, talvez haja regras e normas que nós, como crentes que somos,

sintamos serem cansativas, inúteis e sem nenhum proveito. Contudo, tais

questões são fundamentais? Elas prejudicam as nossas almas? A causa da

religião cristã seria beneficiada de alguma maneira, se nos recusássemos a

anuir diante de tais imposições? Em caso contrário, sujeitemo-nos

pacientemente a tais coisas, “para que não os escandalizemos“.

Teria sido muito bom, para a igreja e para o mundo, se essas cinco

palavras proferidas por nosso Senhor fossem melhor estudadas, ponderadas

e postas em prática! Quem é capaz de calcular o dano que tem sido feito

contra a causa do evangelho por aqueles escrúpulos mórbidos e por aquilo

que muitos chamam de consciência? Faríamos muito bem em relembrar o

exemplo que nos deixou o grande apóstolo dos gentios: “antes, suportamos

tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo” (1 Co

9.12).

A Necessidade da Conversão e da Humildade;

À Realidade do Inferno Leia Mateus 18.1-14

A primeira coisa que nos é ensinada nestes quinze versículos é a

necessidade de conversão, e esta manifestada sob a forma de uma humildade

como a de uma criança. Os discípulos apresentaram-se ao

L

Page 145: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.]-14 145

Senhor com a seguinte indagação: “Quem é, porventura, o maior no reino

dos céus?” Eles falaram como homens não bem iluminados, impulsionados

por muitas expectativas carnais. E receberam uma resposta dita de forma a

despertá-los dos seus sonhos em plena luz do dia —uma verdade que jaz

nos fundamentos mesmos do cristianismo: “Em verdade vos digo que, se

não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum

entrareis no reino dos céus”.

Permitamos que estas palavras penetrem no fundo dos nossos co-

rações. Sem conversão também não há salvação. Todos precisamos de uma

radical mudança em nossa natureza. Por nós mesmos não teríamos nem fé,

nem temor, nem amor para com Deus. “Importa-vos nascer de novo*‟ (Jo

3.7). Por nós mesmos somos totalmente despreparados para habitar na

presença do Senhor. O céu não seria céu para nós, se não nos

convertêssemos. Isso aplica-se com igual verdade a todas as fileiras,

classes e ordens da humanidade. Todos nós temos nascido no pecado e

somos filhos da ira, sem uma única exceção. Por isso mesmo, precisamos

nascer do alto, tornando-nos novas criaturas. É mister que um coração novo

comece a pulsar dentro de nós, que um espírito novo nos seja insuflado. As

coisas antigas precisam passar, e todas as coisas devem ser renovadas. É

coisa excelente alguém ser batizado em uma igreja evangélica e usufruir

dos meios cristãos da graça. Mas, antes de tudo, o que realmente importa é:

Já nos convertemos?

Gostaríamos de saber se realmente estamos convertidos? Conhe-

cemos aquele teste por meio do qual nos podemos submeter à prova? O

sinal mais seguro de uma autêntica conversão é a humildade. Se, na

verdade, já recebemos o Espírito Santo de Deus, então haveremos de

reconhecer o fato por intermédio de uma atitude mansa como a de uma

criança; e, à semelhança das crianças, haveremos de pensar a nosso próprio

respeito com modéstia, ao considerarmos as nossas forças e a nossa

sabedoria, e também porque mostraremos ser muito dependentes do nosso

Pai celeste. À semelhança das crianças, não buscaremos para nós mesmos

grandes coisas neste mundo; e, se tivermos alimentos, vestes e o amor de

nosso Pai dos céus, então ficaremos contentes. Na verdade, esse é um teste

que nos perscruta os corações! Ele desmascara as distorções de muitas

supostas conversões. É fácil alguém converter-se de uma igreja para outra,

de um conjunto de opiniões para outro. Conversões dessa natureza jamais

salvaram uma alma sequer. O de que todos precisamos é de nos

convertermos do orgulho para a humildade, de elevados conceitos sobre

nós mesmos para pensamentos modestos a nosso respeito, do

auto-convencimento para a auto- -humilhação, e da mentalidade de um

fariseu para a mentalidade de um publicano. Se quisermos ter qualquer

esperança de salvação, então te

Page 146: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

146 Mateus 18.1-14

remos de experimentar uma conversão desse alto nível. Porquanto essas são

as conversões operadas pelo Espírito Santo.

À próxima coisa que nos é ensinada nesses versículos é o grande

pecado que consiste em pôr pedras de tropeço no caminho dos crentes. As

palavras emitidas por nosso Senhor, sobre este assunto, foram pe-

culiarmente solenes: “Ai do mundo por causa dos escândalos... ai do

homem pelo qual vem o escândalo”. Ora, colocamos pedras de tropeço ou

escândalos no caminho das almas humanas, sempre que fazemos qualquer

coisa a fim de impedi-las de se aproximarem de Cristo, ou que poderiam

forçá-las a desviarem-se do caminho da salvação, ou que poderíam

desgostá-las no tocante ao cristianismo bíblico. Podemos fazer isso

diretamente, perseguindo, lançando no ridículo, fazendo oposição ou

procurando dissuadir os homens de servirem a Cristo. Também podemos

fazer isso de modo indireto, se vivermos de maneira incoerente com a

religião que professamos, ou fazendo o cristianismo parecer repelente e

insatisfatório, mediante a nossa própria conduta condenável. Sempre que

fizermos qualquer coisa desse tipo, conforme toma-se claro pelas palavras

de nosso Senhor, estaremos cometendo um grave pecado.

Há algo de muito temível, na doutrina aqui estabelecida por Jesus

Cristo, Taí doutrina deveria despertar em nós o desejo de sondarmos

cuidadosamente os nossos corações. Temos a certeza de que não estamos

sendo prejudiciais para outras pessoas? Talvez não estejamos perseguindo

abertamente aos servos de Cristo. Porém, não estaríamos dando mau

exemplo a nenhum deles, por meio da nossa conduta? É horrível quando

pensamos a respeito do grande dano causado por alguém que professe

falsamente seguir a religião cristã. Essa pessoa estará pondo uma arma nas

mãos dos incrédulos. Estará suprindo os mundanos com uma desculpa para

eles se manterem na impenitência. Tal pessoa atrapalha aqueles que estão

em busca da salvação. Desencoraja aos santos. Em suma, age como um

sermão vivo, em favor do diabo. Somente o último dia haverá de desvendar

toda a ruína sofrida pelas almas, por causa dos “escândalos” praticados no

próprio seio da igreja do Senhor. Uma das acusações de Natã, contra Davi,

foi a seguinte: “deste motivo a que blasfemassem os inimigos do Senhor”

(2 Sm 12.14).

A próxima verdade que nos mostram estes versículos é a realidade

do castigo futuro, após a morte física. Duas incisivas expressões foram

empregadas por nosso Senhor, quanto a esse particular. Ele falou em

alguém ser * 'lançado no fogo eterno‟ ‟, e também em ser “lançado no

inferno de fogo‟ ‟. O significado dessas palavras é claro e inequívoco. No

mundo vindouro existe um lugar caracterizado por uma indescritível

miséria, onde serão encerrados todos quantos morrerem na impenitência e

na incredulidade. Nas Escrituras, por conseguinte, nos é revelada uma

Page 147: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.1-14 147

“ardente indignação” que, mais cedo ou mais tarde, haverá de devorar todos

os adversários de Deus (Hb 10.27). A mesma firme palavra que garante o

céu para todos quantos se arrependerem e converterem, também declara,

sem rodeios, que há um inferno à espera dos ímpios.

Que ninguém tente enganar-nos com vãs palavras sobre esse hor-

rendo assunto. Nestes últimos dias têm surgido indivíduos que professam

negar a eternidade da punição futura, e que, assim sendo, repetem o antigo

argumento do diabo, o qual disse: “ É certo que não morrereis” (Gn 3.4).

Que nenhum desses falsos raciocínios nos abale, por mais plausíveis que

eles pareçam ser. Conservemo-nos firmes nas veredas antigas. O Deus de

amor e misericórdia também é o Deus da justiça. Sem a menor sombra de

dúvida, Ele retribuirá. O dilúvio, dos dias de Noé, e a destruição da cidade

de Sodoma tiveram por finalidade mostrar- -nos o que Deus fará, algum dia,

no futuro. Nenhuma boca jamais faiou com tanta clareza sobre o inferno

como a do próprio Jesus Cristo. Os pecadores insensíveis acabarão

descobrindo, para a sua própria perdição eterna, de que existe realmente a

“ira do Cordeiro” (Ap 6.16).

A última coisa que podemos aprender, com base nestes versículos, é

o valor dado por Deus até ao menor e mais fraco dos crentes. “Assim, pois, não

é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”.

Essas palavras ficaram registradas com o propósito de encorajar a todos os

verdadeiros crentes, e não somente às criancinhas, como é lógico. A

conexão dessas palavras com a parábola sobre as cem ovelhas, uma das

quais se desviara e perdera, parece esclarecer esse ponto acima de qualquer

sombra de dúvida. O propósito delas é mostrar- -nos que nosso Senhor Jesus

é um Pastor que cuida temamente de cada alma entregue aos seus cuidados.

Os membros mais recentes, mais fracos e doentios do seu rebanho, para Ele

são tão preciosos quanto os mais robustos. Eles nunca perecerão. Ninguém

poderá arrancá-los da mão do Senhor. Ele mesmo haverá de conduzi-los

gentilmente, através dos desertos deste mundo. Ele não haverá de permitir

que caminhem depressa demais, em um único dia, a fim de que nenhum

deles venha a perecer (Gn 33.13). Ele haverá de fazê-los ultrapassar

quaisquer dificuldades. Ele os defenderá de todo e qualquer adversário.

Estas palavras, ditas por Jesus, serão literalmente cumpridas: “Não perdi ne-

nhum dos que me deste” (Jo 18.9). Ora, com um Salvador assim, quem

precisa ter medo de começar a ser um cristão decidido? Contando com um

Pastor desse quilate, que já iniciou em nós a sua obra, quem poderia temer

uma possível rejeição?

Page 148: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

148 Mateus 1 8.15-20

Como Resolver Diferenças Entre os Crentes;

Natureza da Disciplina Eclesiástica Leia Mateus 18.15-20

As palavras do Senhor Jesus, contidas nestes versículos, encerram

uma expressão que, com freqüência, tem sido mal aplicada. A ordem que

afirma: “dize-o à igreja” tem sido interpretada de tal maneira que chega a

contradizer outras passagens da Palavra de Deus, Tal ordem tem sido

falsamente aplicada à autoridade da igreja visível, quanto a questões

doutrinárias, pelo que tem servido de justificativa para o exercício de muita

tirania eclesiástica. Porém, os abusos contra as verdades das Escrituras não

deveriam nos tentar a negligenciarmos o uso correto das mesmas. Não

devemos desprezar qualquer texto bíblico que seja, somente por que alguns

o têm pervertido e transformado em veneno.

Observemos, em primeiro lugar, quão admiráveis são as normas

determinadas por nosso Senhor para a solução de divergências entre os irmãos.

Se, lamentavelmente, tivermos sido ofendidos por algum outro membro da

igreja de Cristo, o primeiro passo a ser dado será visitá-lo e “argüi-lo entre

ti e ele só”, na tentativa de ser corrigida a falha. Talvez esse irmão nos tenha

ofendido sem intenção disso, conforme aconteceu entre Abimeleque e

Abraão (Gn 21,26). A sua conduta talvez admita uma ótima explicação,

como aquela que foi dada pelos membros das tribos de Ruben, Gade e

Manassés, quando erigiram um altar, ao retornarem para a sua própria terra

(Js 22.24). Seja como for, essa maneira amigável, fiel e franca de entrar em

entendimento é o curso mais provável para ganharmos de volta a algum

irmão que nos tenha ofendido em qualquer sentido. “A língua branda

esmaga ossos” (Pv 25.15). Quem pode garantir que aquele irmão não venha

a reconhecer, imediatamente: “Eu estava errado”, para, em seguida, reparar

seu erro desculpando-se conosco?

Entretanto, se essa maneira de proceder, não conseguir produzir

qualquer bom resultado, um segundo passo deverá ser dado por nós. Nesse

caso, conforme Jesus disse, “toma ainda contigo uma ou duas pessoas”,

para que, mediante o depoimento dessas testemunhas, seja procurada a

solução, diante do irmão ofensor. Talvez a consciência desse irmão seja

tocada, e assim reconheça o seu erro, envergonhe-se e arrependa -se. Mas,

caso contrárioy ainda assim disporemos do dcpoimcn- to daquelas duas ou

três testemunhas, de que fizemos tudo quanto estava ao nosso alcance para

que nosso irmão voltasse à sobriedade, o que se recusara a fazer na primeira

tentativa, e agora, novamente, na segunda.

Page 149: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.15-20 149

Final mente, se essa segunda tentativa tiver sido em vão, então

devemos relatar a questão inteira à congregação local da qual fazemos

parte, cumprindo assim a recomendação de Cristo, “dize-o à igreja”.

Talvez o coraçao que se mostrara inabalável na primeira e na segunda

tentativas, renda-se afinal, diante do temor do desmascaramento público.

Mas, se o ofensor, ainda assim nao quiser se dobrar, então só nos restará

uma conclusão a respeito do estado daquele irmão — devemos

considerá-lo, embora com tristeza, como alguém que preferiu desfazer- -se

de todos os princípios cristãos, deixando-se guiar pelos motivos inferiores

que impulsionam a qualquer “gentio e publicano”.

Esta passagem é uma linda instância de sabedoria mesclada com

terna consideração, que se percebe no ensinamento de nosso Senhor.

Quanto conhecimento Ele demonstrou possuir sobre a natureza humana!

Coisa alguma é tão prejudicial para a causa da religião cristã quanto as

desavenças entre os cristãos. Por conseguinte, nenhuma pedra deveria ser

deixada sem revirar, nenhuma tribulação deveria ser evitada, se somente

assim tais desavenças cheguem a tornar-se questões de domínio público.

Jesus, portanto, mostrou uma profunda e delicada preocupação com a

sensibilidade da pobre natureza humana! Muitos problemas escandalosos

poderiam ser evitados se estivéssemos mais dispostos a praticar aquela

regra que diz „ „entre ti e ele só”. Traduzir-se-ia em grande felicidade para

a igreja e para o mundo, se essa porção das instruções de Jesus fosse mais

cuidadosamente estudada e obedecida. Sempre haverá discórdias e

divisões entre nós, enquanto o mundo continuar existindo como é.

Entretanto, quantas dessas coisas seriam imediatamente extintas, se o

curso de ação recomendado por Jesus, nesses versículos, fosse

experimentado!

Em segundo lugar, observemos o claro argumento que encontramos

nestes versículos em favor do exercício da disciplina em uma comunidade cristã.

Nosso Senhor determinou que os desacordos entre crentes que não possam

ser solucionados de outra maneira sejam entregues à decisão da igreja local

a qual aqueles irmãos pertencem. Asseverou Ele. dize-o à igreja . Com

base nesses fatos, é evidente que o Senhor tenciona que cada local de

crentes professos tome conhecimento da conduta moral de seus membros,

ou mediante a ação coletiva da comunidade inteira, ou por meio de líderes

e anciãos aos quais seja delegada autoridade espiritual. Também é patente

que Ele queria que cada congregação tivesse a autoridade de excluir

membros desobedientes e refratários, para que não participem de suas

atividades normais, como a prática das ordenanças. Declarou o Senhor

Jesus: “E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também

a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Jesus não disse uma única

palavra sobre castigos

Page 150: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

150 Mateus 18.15-20

temporais ou sobre impedimentos civis. Penas de cunho espiritual são as

únicas penalidades que Jesus permitiu à sua igreja infligir. Mas, quando

essa aplicação é feita corretamente, tal punição não pode ser considerada

coisa sem importância: “tudo o que ligardes na terra, terá sido ligado no

céu, e tudo o que desligardes na terra, terá sido desligado no céu”. Parece

ser essa a substância do ensinamento de nosso Senhor acerca da disciplina

eclesiástica.

É inútil tentar negar que o assunto inteiro está circundado de di-

ficuldades . Sobre nenhuma outra particularidade a influência do mundo

tem pesado tanto sobre a ação das igrejas locais. Sobre nenhum outro

ponto as igrejas locais têm cometido tantos erros — algumas vezes para o

lado de uma indiferença sonolenta, e, de outras vezes, para o lado de uma

cega severidade. Não há que duvidar que a autoridade da exclusão tem sido

temivelmente abusada e pervertida; e, conforme escreveu Quesnel:

“Deveríamos temer mais aos nossos pecados do que todas as exclusões no

mundo”. A despeito disso, é impossível negarmos, contando com uma

passagem como essa, à nossa frente, que a disciplina eclesiástica

harmoniza-se com a mentalidade de Cristo, de tal maneira que, quando

devidamente exercida, visa a promover o bem-estar e a higidez da igreja.

Não pode mesmo ser direito que toda variedade de indivíduos, por ímpios

e malignos que sejam, tenham permissão de achegar-se à mesa do Senhor,

sem que ninguém os impeça ou proíba. Faz parte dos deveres mais solenes

de todo crente usar a sua influência para tentar impedir a continuação desse

estado de coisas. Nunca poderemos conseguir uma perfeita comunhão

neste mundo; embora a pureza deva ser o nosso grande alvo. Um padrão

crescentemente mais elevado de qualificações, para que alguém se tome

membro de uma igreja local, sempre será uma das melhores evidências de

uma igreja próspera.

Em último lugar, observemos quão gracioso encorajamento Cristo tem

em reserva para aqueles que se reúnem em seu nome. Declarou Ele: “Porque

onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio

deles”. Essa declaração serve de notável comprovação indireta da

divindade do Senhor Jesus. Pois somente Deus pode estar em muitos

lugares ao mesmo tempo.

Nestas palavras também há uma grande consolação para todos

aqueles que apreciam reunir-se com outros crentes, com propósitos de

adoração religiosa. Em cada reunião de adoração pública, em cada reunião

de oração ou louvor, em cada reunião missionária, em cada reunião de

leitura da Bíblia acha-se presente o próprio Rei dos reis, Jesus Cristo.

Talvez Fiquemos desencorajados, por muitas vezes, diante do pequeno

número de pessoas que se faz presentes aos cultos, em comparação com os

grandes números que se reúnem para finalidades seculares e mun

Page 151: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.15-20 151

danas. De outras vezes, sentiremos dificuldades em suportar os insultos

e o ridículo de indivíduos de natureza maligna, que clamam como o

fizeram aqueles antigos inimigos: “Que fazem esses fracos judeus?” (Ne 4.2). Todavia, não temos qualquer razão para o desânimo. Pois

podemos ficar dependendo da palavra de promessa do Senhor Jesus.

Em todas as nossas reuniões contaremos com a companhia do próprio Cristo.

Por outra parte, nestas palavras há uma solene repreensão para todos

aqueles que negligenciam a adoração pública a Deus, e nunca se fazem

presentes às reuniões com propósitos religiosos. Esses estão voltando as

costas à sociedade do Senhor dos senhores. Eles perdem a oportunidade de

se encontrarem pessoalmente com o próprio Cristo, na dimensão coletiva.

De coisa alguma lhes adianta tentarem justificar- -se de que as reuniões dos

crentes são assinaladas por defeitos e debilidades, ou que o crente obtém

tantas bênçãos ficando em casa quanto freqüentando os cultos na igreja. As

palavras proferidas por nosso Senhor deveriam silenciar todos os

argumentos desse tipo. Sem dúvida, não demonstram sabedoria aqueles

indivíduos que falam com escarninho de qualquer reunião em que Cristo se

faz presente.

Bem poderíamos ponderar sobre essas coisas. Se já nos reunimos

com o povo de Deus, para efeitos espirituais, no passado, então per-

severemos nessa prática e não nos envergonhemos da mesma. Se, até o

momento, temos desprezado tais reuniões, reconsideremos a nossa maneira

de agir e aprendamos a ser sábios.

A Parábola do Servo que Não Queria Perdoar Leia Mateus 18.21-35

Nestes versículos, o Senhor Jesus abordou um assunto de máxima

importância — como devemos perdoar as ofensas. Vivemos em um mundo

maligno, e é inútil esperar que consigamos escapar aos maus tratos, por

mais cuidadosamente que nos comportemos. Saber como nos devemos

conduzir, quando somos maltratados, é algo importantíssimo para as nossas

almas.

Em primeiro lugar, o Senhor Jesus estabeleceu uma regra geral,

de que devemos perdoar às outras pessoas ao máximo. Foi Pedro quem

apresentou a indagação: “Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará

contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?” E, como resposta, Jesus lhe disse: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete‟ ‟.

Page 152: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

152 Mateus 18.21-35

A regra aqui estabelecida, naturalmente, precisa ser interpretada com

sobriedade. Nosso Senhor não quis dar a entender que as transgressões

contra as leis da terra e contra a boa ordem social devam ser des-

consideradas e passadas em silêncio. Ele também não quis dizer que

devamos permitir que as pessoas cometam furtos e assaltos com a im-

punidade. Tudo quanto Ele quis dizer é que devemos manter uma atitude

geral de misericórdia, disposta a perdoar aos nossos irmãos e semelhantes.

Precisamos tolerar muita coisa e suportar muitas injustiças, ao invés de logo

entrarmos em conflito com os nossos ofensores. Também devemos afrouxar

sobre muitas coisas, submetendo-nos a muitas imposições, antes de

entrarmos em choque com outras pessoas. E, por igual modo, devemos

repelir tudo quanto a aparência de malícia, contenda, vingança e retaliação.

Sentimentos dessa ordem servem somente para os incrédulos. Mas, são

totalmente indignos, no caso de qualquer discípulo de Cristo.

Quão mais abençoada seria a vida neste mundo, se essa norma ditada

por nosso Senhor fosse mais largamente reconhecida e melhor obedecida!

Quantas das desgraças que sobrevêem à humanidade são ocasionadas por

disputas, querelas, ações judiciais e uma obstinada tenacidade quanto àquilo

que os homens costumam intitular de *4meus direitos”! Quantos conflitos

entre os homens poderiam ser evitados, se ao menos os homens se

dispusessem mais ao perdão, e desejassem mais que a paz imperasse! Nunca

nos deveríamos esquecer que nenhuma fogueira pode continuar queimando

sem lenha. Por semelhante maneira, são necessárias duas pessoas para que

comece uma briga. Portanto, que cada uma das duas pessoas resolva, pela

graça de Deus, que não contribuirá para que a briga tenha início e prossiga.

Antes, devemos resolver pagar o mal com o bem, e a maldição com a

bênção, dissipando assim toda inimizade e transformando os nossos

adversários em amigos (Rm 12.20). Era uma excelente qualidade de caráter

do arcebispo Cranmer que, se alguém chegasse a ofendê-lo, certamente

acabaria tomando-se amigo dele.

Em segundo lugar, nosso Senhor supriu-nos dois poderosos motivos

para exercitarmos um espírito perdoador. Jesus contou a história de um

homem que devia uma gigantesca quantia para seu senhor; mas, como não

tinha “com que pagar‟*, chegado o momento da prestação de contas, seu

senhor compadeceu-se dele (<e perdoou-lhe a dívida**. E Jesus continuou

para dizer que esse mesmo homem, após haver sido perdoado,

encontrando-se com um seu companheiro que lhe devia uma importância

insignificante, recusou-se a perdoá-lo. Além disso, aquele servo exigiu que

seu conservo fosse lançado no cárcere, não querendo dispensar a mínima

parcela da dívida. Finalmente, conforme o Senhor

Page 153: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.21-35 153

Jesus ajuntou, o castigo sobreveio àquele servo cruel, que não se dispunha a

perdoar. Porquanto, após ter-lhe sido mostrada misericórdia, ele também

deveria ter-se mostrado misericordioso para com seu semelhante. E o

Senhor Jesus conclui a sua parábola com estas impressionantes palavras:

Assim também meu Pai celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada

um a seu irmão”.

Nesta parábola de Jesus fica patenteada a verdade que um dos

motivos para perdoarmos aos nossos semelhantes deveria ser a lembrança de

que todos precisamos ser perdoados diante de Deus. Dia após dia, caímos em

muitas transgressões e ficamos muito aquém do que deveríamos ser, e

“deixamos de fazer, e fazemos aquilo que não deveríamos fazer”. Dia após

dia, solicitamos de Deus misericórdia e perdão. As ofensas que outras

pessoas têm praticado contra nós são coisas desprezíveis, em confronto com

as nossas gravíssimas ofensas contra o Senhor. Sem dúvida alguma, não

condiz com a nossa condição de pobres criaturas pecaminosas, como

somos, mostrar-nos excessivamente severos, fazendo cobrança por causa de

pequenas falhas que nossos irmãos na fé cometem contra nós, ou

mostrando-nos inclinados a não perdoá-los prontamente.

Uma outra razão para que nos mostremos dispostos a perdoar a

outras pessoas deveria ser a lembrança acerca do dia do julgamento final,

juntamente com o padrão que será utilizado naquele dia, acerca de todos os

que forem julgados. Naquele dia, não será dado o perdão para indivíduos

que não se dispuseram a perdoar aos seus semelhantes. Tais indivíduos, na

verdade, não estão aptos para viver no céu. Pois não seriam capazes de dar o

devido valor a um lugar de habitação onde a misericórdia” é o único título

de posse, onde a “misericórdia”é o tema de um cântico perene. Sem dúvida,

se estamos planejando ser um daqueles que estarão em pé, à direita de

Jesus, quando Ele se sentar no seu trono de glória, então teremos de

aprender a ser perdoadores, enquanto ainda estamos neste mundo.

Que essas verdades lancem profundas raízes em nossos corações. É

um fato melancólico que poucos deveres cristãos estejam sendo postos em

prática com tanta parcimônia e má vontade como o dever de perdoarmos ao

próximo. E é entristecedor verificarmos quanto amargor de espírito, quanto

falta de compaixão, quanto despeito, quanta dureza e quanta falta de

gentileza manifestam-se entre os homens. No entanto, poucos deveres são

tantas vezes ressaltados, nas Escrituras do Novo Testamento, como esse

dever. Mas, poucas outras falhas de caráter são capazes de fechar tão

definitivamente para um homem as portas do reino de Deus, como essa. Queremos dar provas de que realmente fomos reconciliados com

Page 154: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

154 Mateus 18.21-35

Deus, lavados no sangue de Cristo, nascidos do alto pelo poder do Espírito

Santo, e feitos filhos de Deus por adoção, em resultado da graça divina?

Então não nos esqueçamos desse passo bíblico. Seguindo o exemplo dado

por nosso Pai celestial, disponhamo-nos a perdoar aos nossos ofensores.

Porventura, fomos ofendidos por alguém? Que perdoemos o tal, agora

mesmo. É conforme comentou Leighton: „„Deveríamos perdoar pouco a

nós mesmos, e muito aos outros”.

Pretendemos ser elementos benéficos à humanidade? Queremos

exercer uma influência positiva sobre os nossos semelhantes, para que

percebam quão excelente é a religião cristã? Então não nos esqueçamos

dessa passagem. Indivíduos que não se importam com as doutrinas cristãs,

podem compreender perfeitamente bem o temperamento perdoador de um

crente.

Queremos desenvolver-nos pessoalmente na graça, tomando-nos

mais santos, em toda a nossa formação, e em nossas palavras e obras? Então

não nos esqueçamos dessa passagem. Coisa alguma entristece tanto ao

Espírito Santo e obscurece tanto a alma como deixar-se o indivíduo levar

por um espírito rixento e pelo temperamento que não se dispõe a perdoar

(Ef 4.30-32).

O Juízo de Cristo Sobre o Divórcio; A Ternura de Cristo com as Crianças

Leia Mateus 19.1-15

Nestes versículos nos é concedido perceber a mente de Cristo acerca

de dois assuntos de capital importância. O primeiro versa sobre o

relacionamento entre marido e mulher. E o segundo diz respeito à maneira

como deveríamos pensar acerca das criancinhas, no que con- cerce às suas

almas.

É difícil exagerar a importância desses dois assuntos. O bem- -estar

das nações e a felicidade geral da sociedade humana estão intimamente

vinculados a pontos de vista corretos sobre essas questões. As nações nada

mais são do que uma coletânea de muitas famílias. E a boa ordem das

famílias depende inteiramente de ser conservado o mais elevado padrão de

respeito pelos laços do matrimônio e pelo correto treinamento das crianças.

Deveríamos mostrar-nos agradecidos diante do fato que, sobre ambas essas

questões, o grande Cabeça da igreja pronunciou a sua opinião de uma

maneira tão distinta. No tocante ao casamento, nosso Senhor ensinou que a união entre

marido e mulher jamais deveria ser rompida, exceto pela mais grave

Page 155: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 19,1-15 155

causa, algum ato de infidelidade conjugal. Nos dias durante os quais nosso

Senhor esteve neste mundo, o divórcio era permitido entre os judeus, e isso

pelos motivos mais superficiais e frívolos. Essa prática, embora tolerada

pela legislação mosaica, a fim de impedir males ainda piores — como a

crueldade ou o homicídio — gradualmente foi-se transformando em um

insuportável abuso, e, sem dúvida, que dava margem a muita imoralidade

(Ml 2.14-16), A observação feita pelos discípulos de nosso Senhor

desvenda o estado deplorável mente baixo dos sentimentos populares sobre

o assunto. Comentaram os discípulos: “Se essa é a condição do homem

relativamente à sua mulher, não convém casar”. Sem sombra de dúvida, o

que eles queriam dizer era algo como isto: "Se um homem não pode

divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo, e a qualquer tempo, então é

melhor nem casar-se”. Uma linguagem dessas, nos lábios dos apóstolos de

Jesus, soa realmente estranha para nós!

Nosso Senhor apresentou um padrão inteiramente diferente para

servir de orientação aos seus discípulos. Antes de qualquer outra coisa, Ele

fundamentou o seu juízo sobre a instituição original do casamento. Para

tanto, citou as palavras que aparecem no começo do livro de Gênesis, onde

estão descritos a criação do homem e a união de Adão e Eva, como prova do

fato que nenhum outro relacionamento humano deveria ser tão altamente

considerado como aquele entre um homem e a sua esposa. O

relacionamento entre pais e filhos pode parecer muito íntimo; mas o

relacionamento entre marido e mulher ainda é mais íntimo, “deixará o

homem pai e mãe, e se unirá à sua mulher, tomando-se os dois uma só

carne”. Em seguida, o Senhor reforçou esse conceito com as suas próprias

solenes palavras: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”. E,

finalmente, o Senhor fez uma gravíssima acusação, que envolve a quebra do

sétimo mandamento, mediante um novo casamento, contraído após o

divórcio conseguido por motivos superficiais e frívolos: „ „Quem repudiar

sua mulher, não sendo causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra,

comete adultério”.

Toma-se evidente, portanto, com base no teor inteiro desta pas-

sagem, que a relação matrimonial deveria ser altamente reverenciada e

honrada entre o seguidores de Cristo. Trata-se de uma relação que foi

instituída no próprio paraíso, durante o período da inocência do homem. E

agora serve de figura simbólica predileta da união mística que há entre

Cristo e a sua igreja. Assim sendo, trata-se de uma relação que somente a

morte é capaz de romper. Essa é uma relação que, com a mais absoluta

certeza, exercerá incalculável influência, para a felicidade ou para a

infelicidade, para o bem ou para o mal, sobre aqueles que ela une. Nunca

deveríamos assumir tal relação de maneira frívola,

Page 156: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

156 Mateus 19.1-15

superficial, sem exame prévio; pelo contrário, somente com sobriedade,

discreção e a devida consideração dos fatos envolvidos. Lamentavelmente,

é fato comprovado que os casamentos efetuados sem seriedade são uma das

mais férteis causas da infelicidade, e, com grande frequência, do pecado de

muitas pessoas.

No que concerne às criancinhas, encontramos nosso Senhor a

instruir-nos, nestes versículos, mediante a palavra e a ação, mediante o

preceito e o exemplo. “Trouxeram-lhe então algumas crianças, para que

lhes impusesse as mãos, e orasse”. Evidentemente, eram crianças bem

pequenas, pequenas demais para receberem qualquer instrução, embora não

pequenas demais para serem beneficiadas pela oração em favor delas. Os

discípulos, entretanto, parecem haver pensado que o Senhor nunca se

rebaixaria a dar atenção àquelas criancinhas, e repreenderam aos adultos

que as tinham trazido. Todavia, isso provocou uma solene declaração da

parte do grande Cabeça da igreja: “Deixai os pequeninos, não os embaraceis

de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus”.

Há algo de interessantíssimo, tanto na linguagem quanto nos atos de

nosso Senhor, nessa oportunidade. Reconhecemos a fraqueza e a

debilidade, física e mental, das crianças pequeninas. De todas as criaturas

que nascem neste mundo, nenhuma é tão impotente e dependente como um

bebê humano. Sabemos quem era Aquele que deu tanta atenção aos

infantes, tendo encontrado tempo suficiente, em seu ativo ministério entre

homens e mulheres adultos, para orar em favor daquelas crianças,

impondo-lhes “as mãos”. Esse Alguém é o próprio filho de Deus, o grande

Sumo Sacerdote, o Rei dos reis, por intermédio de quem todas as coisas

vieram à existência, “o resplendor da glória e a expressão exata” do Ser de

Deus Pai. Que instrutivo quadro apresenta, diante dos nossos olhos, toda

essa notável transação! Não admira que a grande maioria dos membros da

igreja de Cristo sempre tenha visto nesta passagem bíblica um poderoso,

embora indireto argumento em favor do batismo infantil.

Estribados sobre estes versículos, aprendamos que o Senhor Jesus

cuida temamente das almas das criancinhas. É perfeitamente provável que

Satanás as odeie de modo todo especial. E também é indubitável que Jesus

as ama de modo todo especial. Embora tão pequeninas, as crianças não

estão abaixo de seus pensamentos e de sua atenção. O seu poderoso coração

reserva um lugar para o bebezinho, em seu berço, tanto quanto para o

monarca, em seu trono. Jesus considera que cada criancinha traz,

potencialmente, em seu corpinho, um princípio imor- redouro, que

sobreviverá às pirâmides do Egito, e até mesmo ao sol e à lua, quando, por

fim, se apagarem. Ora, dispondo de uma passagem

Page 157: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 19.1-15 157

como esta, diante de nós, sem dúvida podemos esperar a salvação de todos aqueles que morrerem na infância. 4 . p o r q u e dos tais é o reino dos céus.”

Em último lugar, extraiamos destes versículos um grande enco-

rajamento para ousarmos grandes coisas, procurando instruir as nossas

crianças na religião cristã. Desde os mais tenros anos das crianças, tratemos

com elas como quem tem uma alma que pode vir a ser salva ou que pode vir

a perder-se. E, assim sendo, esforcemo-nos por conduzi- -las aos pés de

Jesus Cristo. Precisamos familiarizar as crianças com a Bíblia Sagrada,

assim que elas puderem compreender qualquer coisa. Oremos por elas, e

também oremos juntamente com elas, ensinando-as a orarem por si

mesmas. Podemos ter a certeza de que Jesus contemplará com prazer tais

esforços da nossa parte, e que Ele haverá de abençoar às criancinhas.

Podemos ter a certeza de que tais esforços não são inúteis. A semente

semeada na infância, com freqüência brota somente após muitos dias. Feliz

é a igreja local cujas crianças recebem tanta atenção quanto os membros

adultos, que participam de plena comunhão! A bênção d Aquele que foi

crucificado, certamente será concedida a qualquer igreja local que costume

agir desse modo! Jesus impôs as suas mãos sobre as criancinhas. E orou em

favor delas.

O Jovem Rico Leia Mateus 19.16-22

Estes versículos detalham um diálogo que teve lugar entre nosso

Senhor Jesus Cristo e um jovem que se aproximou dEIe, a fim de indagar-

-Lhe sobre o caminho para a vida eterna. Tal como toda outra conversação

registrada nos evangelhos, entre nosso Senhor e alguma pessoa qualquer,

esta merece nossa atenção especial. A salvação é uma questão individual.

Todos quantos desejem ser salvos precisam entrar em questões particulares,

com Cristo, acerca das suas próprias almas.

Antes de qualquer outra coisa, alicerçados sobre o caso desse jovem

rico, percebemos que uma pessoa pode ter o desejo de ser salva, e mesmo assim

não vir a ser salva. Ali estava um homem que, em um período de

incredulidade generalizada, veio falar com Cristo por sua livre vontade. Ele

não veio a fim de pedir a cura para alguma pessoa enferma. Não veio para

rogar em favor de alguma criança. Mas veio para consultar a Jesus sobre a

sua própria alma. Ele iniciou a conversa com uma pergunta direta e franca:

'„Mestre, que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna?” Sem dúvida,

haveríamos de pensar: Eis aí um

Page 158: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

158 Mateus 19.16-22

caso promissor. Esse jovem não é algum líder cheio de preconceitos, ou

algum fariseu. Antes* é um interessado na salvação de sua alma. No

entanto, ao terminar o seu diálogo com o Senhor Jesus* o jovem rico „

„retirou-se triste‟ ', e em porção alguma da Bíblia lemos qualquer

informação de que ele tenha jamais se convertido!

Nunca deveríamos perder de vista o fato que os bons sentimentos,

por si sós, na religião cristã, não refletem a presença da graça de Deus. Pois

podemos conhecer a verdade apenas intelectualmente, Com freqüência, a

consciência nos espicaça. Afetos religiosos podem ser despertados lá no

íntimo, profundas ansiedades podem brotar, acerca das nossas almas, e até

podemos derramar muitas lágrimas. Tudo isso, porém, ainda não é a

conversão. Isso não garante que foi efetuada a genuína obra salvatícia do

Espírito Santo.

Infelizmente, isso ainda não é tudo quanto se poderia dizer a res-

peito deste particular. Não somente os bons sentimentos, por si só, não

refletem a graça divina, como também pode ser positivamente perigosos,

se porventura nos contentarmos com eles, e não passarmos dos sentimentos

à ação. Uma profunda observação daquele poderoso mestre sobre as

questões morais, o bispo Butler, é que as impressões passivas, quando

repetidas com freqüência gradualmente vão perdendo todo o seu poder. As

ações por muitas vezes reiteradas produzem apenas um hábito na mente

humana. Se cedermos por múltiplas vezes aos nossos sentimentos, sem nos

deixarmos conduzir à ação correspondente, frnal- mente não seremos mais

tocados.

Apliquemos essa lição às nossas próprias condições, Talvez sai-

bamos o que significa ser assaltado por temores, desejos e anelos reli-

giosos. Cuidemos para nunca depender dessas coisas. Jamais fiquemos

satisfeitos enquanto não contarmos com o testemunho interior do Espírito,

em nossos corações, de que realmente nascemos de novo e somos novas

criaturas. Que não consigamos descansar enquanto não nos tivermos

realmente arrependido, tendo lançado mão da esperança que nos é proposta no evangelho. É bom ter sentimentos. Mas é muito melhor converter-se.

Em seguida, ainda com base no caso daquele jovem rico, enten-

demos que as pessoas nâo-convertidas são profundamente ignorantes sobre os

assuntos espirituais. Nosso Senhor fez aquele jovem inquiridor meditar

sobre o padrão eterno do que é certo e do que é errado — a lei moral. Visto

que o jovem havia falado tão ousadamente em “fazer” algo, Jesus

submeteu-o a teste, mediante um conselho cuja finalidade era sondar o

verdadeiro estado de seu coração: “Se queres, porém, entrar na vida,

guarda os mandamentos”. Jesus chegou mesmo a relembrar diante dele a

segunda tábua dos mandamentos da lei. Diante da resposta

Page 159: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 19.16-22 159

de Jesus, o jovem retrucou prontamente, e com toda a confiança: “Tudo isso

tenho observado; que me falta ainda?” Tão completamente ignorante

mostrou-se ele quanto à profunda espiritualidade dos estatutos de Deus que

jamais duvidou de que estava cumprindo os mesmos com toda a perfeição.

Parecia totalmente inconsciente do fato que os mandamentos aplicam-se até

às palavras e aos pensamentos do indivíduo, e não somente às suas ações.

Portanto, se Deus tivesse de entrar em juízo com ele, não poderia responder

“nem a uma de mil cousas” (Jó 9.3). Quão entenebrecida devia ser a mente

dele, quanto à natureza da lei de Deus! Quão baixas deviam ser as suas

idéias, no tocante à santidade que Deus exige de nós!

É fato deveras melancólico que uma ignorância parecida com a

daquele jovem seja por demais comum entre os membros das igrejas

evangélicas. Há milhares de pessoas batizadas que não sabem mais a

respeito da doutrinas fundamentais do cristianismo do que os mais au-

tênticos pagãos. Dezenas de milhares enchem os nossos templos e capelas

semanalmente, mas que estão totalmente às escuras quanto à verdadeira

extensão da pecaminosidade humana. Esses apegam-se obstinadamente à

antiga noção de que, de uma maneira ou de outra, as suas próprias obras

serão capazes de salvá-los. Dessa forma, quando os pastores os visitam em

seus momentos finais, tais indivíduos mostram-se tão cegos e ignorantes

como quem nunca teve a oportunidade de ouvir a pregação da verdade

divina. Por conseguinte, temos de reconhecer aquela verdade que estipula: „

„Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe

são loucura” (1 Co 2.14).

Em último lugar, ainda firmados no caso do jovem rico, percebemos

que um (dolo afagado no coração pode arruinar uma alma para sempre. Nosso

Senhor, que sabia o que existe no homem, finalmente mostrou ao jovem

inquiridor qual era o seu pecado arraigado, que ele não queria largar. A

mesma voz sondadora que dissera à mulher sa- maritana: “Vai, chama teu

marido e vem cá” (Jo 4.16), disse agora ao jovem rico: “vai, vende os teus

bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me".

Isso desmascarou de pronto o ponto fraco do seu caráter. A realidade dos

fatos era que, a despeito de todos os seu desejos e anelos pela vida eterna,

havia uma coisa que ele amava ainda mais do que à sua alma, a saber, as

riquezas materiais. Isso posto, o jovem rico não passou na prova. Ele foi

pesado na balança e foi achado em falta. E a narrativa sobre ele termina com

estas entris- tecedoras palavras: “Tendo, porém, o jovem ouvido esta

palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades”.

Nesse relato, pois, deparamo-nos com mais uma comprovação

daquela profunda verdade que afirma: “Porque o amor do dinheiro é

Page 160: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

160 Mateus 19.16-22

raiz de todos os males‟‟ (1 Tm 6.10). Em nossa maneira de conceber,

devemos colocar esse jovem rico lado a lado com Judas Iscariotes e com

Ananias e Safira, para, em seguida, aprendermos a evitar a cobiça.

Infelizmente, esse é um recife contra o qual milhares de pessoas nau-

fragam. Dificilmente encontraríamos um ministro do evangelho que não

poderia apontar para muitos membros de sua congregação e dizer que,

humanamente falando, eles “não estão longe do reino de Deus”. Não

obstante, os tais nunca parecem fazer o menor progresso para mais perto do

Senhor. Eles desejam. Eles sentem muito. Eles são sinceros. Eles esperam.

Porém, não saem do lugar onde estão! E, por quê? Porque apreciam

exageradamente o dinheiro.

Façamos um teste que sonde a nós mesmos, antes de deixarmos

para trás esta passagem. Vejamos de que maneira ela afeta as nossas almas.

Somos honestos e sinceros do desejo que professamos ter de sermos

crentes verdadeiros? Temos desistido de todos os nossos ídolos? Não

haveria algum pecado secreto, ao qual continuamos aferrados em silêncio,

recusando-nos a desistir do mesmo? Não haveria alguma coisa, ou alguma

pessoa, que estejamos amando em particular mais do que a Cristo e às

nossas próprias almas? Essas são indagações que bradam pedindo resposta.

A verdadeira explicação sobre o estado insatisfatório de tão grande número

de ouvintes do evangelho é que eles estão presos à idolatria espiritual. O

conselho do apóstolo João aplica-se bem a eles: “Filhinhos, guardai-vos

dos ídolos**.

O Perigo das Riquezas; Devemos Abandonar Tudo por Amor a Cristo

Leia Mateus 19.23-30

A primeira coisa que aprendemos, nestes versículos, é o imenso

perigo que as riquezas representam para a alma de quem as possui. O Senhor

Jesus declarou que “um rico dificilmente entrará no reino dos céus”. Ele

ainda foi mais longe: “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma

agulha, do que entrar um rico no reino de Deus”, utilizando-se de um

provérbio a fim de reforçar sua afirmação.

Dentre os provérbios usados por nosso Senhor, poucos soam mais

surpreendentes do que este. Poucos vão mais de encontro às opiniões e

preconceitos da humanidade. Poucos são tão pouco cridos. No entanto,

estas são palavras verdadeiras e dignas de toda aceitação. Riquezas, que

todos desejam obter, riquezas, pelas quais os homens labutam e se cansam,

e envelhecem antes do tempo — estas riquezas são uma pos

Page 161: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 19.23-30 161

sessão perigosíssima. Elas com frequência, causam grande dano à alma.

Elas expõem os homens a muitas tentações. Elas deturpam os pensamentos

e as afeições dos homens, atando pesados fardos ao coração e tomando o

caminho para o céu ainda mais difícil do que naturalmente é.

Estejamos precavidos contra o amor ao dinheiro. É possível usar

corretamente o dinheiro e fazer o bem com ele. Entretanto, para oada um

que faz uso correto do dinheiro, há milhares que fazem mau uso dele e

causam dano tanto a si próprios quanto a outrem. Que o homem mundano

transforme o dinheiro em um ídolo se quiser, e que ele até considere mais

feliz quem tem mais dinheiro! Mas os crentes, entretanto, que dizem

possuir “um tesouro no céu”, volvem o rosto resolutamente contra o

espírito mundano, nesta questão.

Oremos diariamente pelas almas de pessoas ricas. Elas não devem

ser invejadas e, sim, são dignas de piedade, porque carregam fardos pesados

em sua caminhada cristã. Dentre todos os homens, são quem mais

improvavelmente podem correr de maneira a alcançar o prêmio (1 Co 9.24).

A sua prosperidade neste mundo geralmente é a sua perdição no mundo

vindouro. São palavras muito apropriadas as da litania da igreja anglicana: “Em todo tempo de nossa prosperidade, ó bom Senhor, livra-nos”.

A segunda coisa que aprendemos nesta passagem é o poder soberano

da graça de Deus sobre a alma humana. Os discípulos ficaram perplexos

quando ouviram a linguagem de nosso Senhor acerca dos ricos. Era uma

linguagem tão contrária a todos os conceitos deles sobre as vantagens

advindas da riqueza, que exclamaram com surpresa: „ „Sendo assim, quem

pode ser salvo?” A resposta foi graciosa e instrutiva: „ „Isto é impossível aos

homens, mas para Deus tudo é possível”.

O Espírito Santo pode levar até os homens mais abastados a pro-

curar um tesouro no céu. Ele pode fazer com que até mesmo os reis

deponham suas coroas aos pés de Cristo e considerem todas as coisas como

perda, por amor ao reino de Deus. Disto a Bíblia nos oferece prova sobre

prova. Abraão era muito rico e, no entanto, é o pai dos fiéis. Moisés poderia

ter sido um grande príncipe ou governador no Egito, mas desistiu de todas

as suas brilhantes perspectivas por amor dAquele que é invisível. Jó foi o

homem mais rico do Oriente, mesmo assim era um servo escolhido de

Deus. Davi, Josafá, Josias e Ezequías foram todos ricos monarcas, mas

amaram mais o favor divino do que as possessões terrenas. Eles nos

mostraram que para Deus não há “cousa demasiadamente difícil”, e que a fé

pode desenvolver-se até no solo mais impróprio. Apeguemo-nos firmemente a esta doutrina sem jamais largá-la. A

posição e as circunstâncias externas de um homem não o impedem

Page 162: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

162 Mateus 19.16-22

de entrar no reino de Deus. Nunca desesperemos da salvação de quem quer

que seja. Sem dúvida, as pessoas ricas carecem de uma graça especial, e

estão sujeitas a muitas tentações peculiares. Mas o Senhor Deus de Abraão

e de Moisés, de Jó e de Davi, em nada mudou. Ele que os salvou, a despeito

de suas riquezas, também pode salvar outros. “Agindo eu, quem o

impedirá?” (Is 43.13).

A última coisa que nos é dado aprender, nestes versículos, é o imenso

encorajamento que o evangelho dá àqueles que desistem de tudo por amor a

Cristo. Somos informados de que Pedro indagou ao Senhor o que ele e os

demais apóstolos, tendo abandonado todo o pouco que tinham por causa

dEle, haveriam de receber em troca. Ele obteve a mais grata das respostas.

Plena recompensa será dada a todos os que se sacrificam por amor a Cristo.

Cada um “receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna”.

Existe algo muito animador nesta promessa. Poucos são, nos dias de

hoje, os que são forçados a abandonar lares, parentes e propriedades por

causa da religião. Mesmo assim, são poucos os fiéis ao seu Senhor que não

têm, de uma maneira ou outra, passado por dificuldades. O escândalo da

cruz ainda não cessou! Risadas, ridículo, zombarias e perseguição familiar

são, muitas vezes, a porção de um crente. Ele geralmente perde o favor do

mundo. Cargos e posições muitas vezes são postos em risco, por causa de

sua fidelidade ao evangelho de Cristo. Mas quem está exposto a provações

desse tipo pode consolar-se com a promessa contida nestes versículos.

Jesus anteviu a necessidade e por isso deixou esta promessa para nosso

consolo.

Podemos ter certeza de que ninguém será real perdedor, seguindo a

Jesus Cristo. Pode parecer que o crente sofre desvantagem durante algum

tempo, quando inicia a sua caminhada de crente decidido. Ele pode estar

muito desanimado pelas aflições que lhe sobrevem por causa de sua fé.

Mas pode estar certo de que, a longo prazo, ele não será perdedor. Cristo

pode nos dar amigos que vão mais do que compensarmos pelos amigos

perdidos. Cristo pode abrir corações e lares para nós, muito mais

acolhedores e hospitaleiros do que aqueles que se fecham contra nós.

Acima de tudo, Cristo pode dar-nos paz de consciência, alegria interior,

esperanças brilhantes e sentimentos de felicidade, que ultrapassarão

qualquer prazer terreno que abandonemos por amor a Ele. Ele empenhou a

sua palavra de Rei, garantindo que assim será. Essa palavra jamais falhou. Portanto, confiemos e não tenhamos qualquer receio.

Page 163: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

ts.

.

Mateus 20.1-16 163

A Parábola dos Trabalhadores na Vinha Leia Mateus 20.1-16

Há inegáveis dificuldades na parábola contida nestes versículos. A

chave para explicá-las corretamente deve ser buscada na passagem com

que se encerrou o capítulo anterior. Lá encontramos o apóstolo Pedro

fazendo a nosso Senhor uma pergunta importante: “Nós tudo deixamos e te

seguimos: que será, pois, de nós?” Vimos que Jesus lhe deu uma resposta

notável. Ele fez uma promessa especial a Pedro e aos demais discípulos:

eles um dia haveriam de assentar-se “em doze tronos para julgar as doze

tribos de Israel”. Ele também fez uma promessa geral, dirigida a todos

quantos sofrem perdas por amor a Cristo. Cada um dos tais “receberá

muitas vezes mais, e herdará a vida etema‟ ‟.

Agora devemos lembrar que Pedro era judeu. Assim como a maioria

dos judeus, mui provavelmente ele havia sido treinado na quase total

ignorância quanto aos propósitos de Deus para a salvação dos gentios. De

fato, o livro de Atos nos mostra que foi preciso receber uma visão celestial

para que se dissipasse a sua ignorância (At 10.28). Mais do que isso,

devemos ter em mente o fato que Pedro e os outros discípulos eram fracos

na fé e no conhecimento. Provavelmente, eles tendiam a dar grande

importância a seus próprios sacrifícios por amor a Cristo, inclinando-se

para atitudes de justiça própria e presunção. Nosso Senhor conhecia bem

todos esses detalhes. Por isso, esta parábola tem em vista beneficiar

especialmente a Pedro e seus companheiros. O Senhor fala daquilo que

estava no coração de seus discípulos. Ele percebeu qual o remédio que

aqueles corações estavam precisando, e o aplicou sem demora. Em poucas palavras, Ele refreou o orgulho crescente em seus corações, e lhes ensinou humildade.

Na exposição desta parábola, não precisamos nos ficação

literal de “denário”, “praça”, “administrador” ocupar da sígni-

ou “hora”. Tais indagações, com freqüencia, obscurecem o conselho mediante palavras

sem entendimento. Calovius disse, e com razão, que4'a teologia das pará-

bolas não é argumentativa”. A opinião de Crisóstomo merece a nossa

atenção. Escreveu ele: “Não é correto esquadrinhar curiosamente cada

palavra e cada minúcia em uma parábola; devemos apreender o obje-

tivo pelo qual foi composta, e examiná-lo, e não nos atarefar com

qualquer outra coisa”. Duas lições principais, portanto, parecem so-

I bressair nesta parábola, abrangendo a finalidade geral de sua mensagem.

Contentemo-nos, pois, em compreender essas duas lições.

Page 164: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

164 Mateus 20.1-16

Em primeiro lugar, aprendemos que Deus exerce uma graça livre,

soberana e incondicional quando chama o povo que irá professar o seu nome na

terra. Ele convoca as famílias da terra para a comunhão na igreja visível, no

tempo e segundo a maneira por Ele mesmo escolhidos.

Vemos essa verdade maravilhosamente ilustrada na história do

relacionamento de Deus com a humanidade. Vemos os filhos de Israel

sendo chamados e escolhidos para serem o povo de Deus já nos primórdios

da história. Posteriormente muitos gentios foram chamados pela pregação

dos apóstolos. Nos dias de hoje, vemos outros povos sendo alcançados

mediante o labor dos missionários. Ainda vemos, porém, muitos outros,

como os chineses e hindus, que continuam “desocupados”, porque ninguém

os contratou. E qual a razão de tudo isso? Não sabemos. O que sabemos é

que Deus gosta de afastar da igreja o orgulho, não lhe dando ocasião para

jactância. Ele nunca permitirá que os ramos mais antigos de sua igreja

olhem com desdém para os ramos mais recentes. O evangelho oferece o

perdão e a paz com Deus por meio de Jesus Cristo, aos pagãos, hoje, tanto

quanto ao apóstolo Paulo, em sua época. Os convertidos dentre regiões

distantes, neste século, serão tão plenamente admitidos ao céu, quanto o

mais santo dos patriarcas, que viveu há três mil e quinhentos anos atrás. A

velha parede de separação entre judeus e gentios foi derrubada. Não há nada

que impeça os pagãos crentes de ser, com os judeus crentes, “co-herdeiros...

e co-participantes da promessa em Cristo” (Ef 3.6). Os gentios que se

converterem na “ hora undécima" serão igual mente herdeiros da glória, tão

legítimos quanto os judeus. Eles se assentarão juntamente com Abraão,

Isaque e Jacó no reino dos céus, enquanto que muitos dos filhos do reino

serão rejeitados. De fato, “os últimos serão primeiros”.

Em segundo lugar, aprendemos que, na salvação de pessoas, como no

chamamento das nações, Deus é Soberano e não presta contas de seus atos. Ele

tem misericórdia de quem Lhe agrada ter misericórdia, e isso, também, no

tempo por Ele mesmo determinado (Rm 9.15).

Esta é uma verdade que vemos ilustrada em toda parte na igreja de

Cristo, na experiência prática. Vemos um homem que é chamado ao

arrependimento e fé ainda na infância, como Timóteo, e que trabalha na

vinha do Senhor quarenta ou cinqüenta anos. Vemos outro homem, que é

chamado à “hora undécima", como o ladrão na cruz, salvo como um tição

arrebatado do fogo — um dia, um pecador endurecido e impenitente, e, dia

seguinte, no paraíso. Mesmo assim, o evangelho nos permite crer que estes

dois homens estão perdoados diante de Deus. Ambos são igualmente

lavados no sangue de Cristo e revestidos da justiça de Cristo. Ambos estão

igualmente justificados, ambos aceitos, e ambos estarão à direita de Cristo,

no último dia.

Page 165: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 20.1-16 165

Não há dúvida de que esta doutrina soa muito estranha aos ouvidos

do cristão ainda ignorante e inexperiente. Ela confunde o orgulho da

natureza humana. Ela não permite que o homem se vanglorie em just

iça-própria. É uma doutrina rebaixadora e niveladora, e pode suscitar

muita murmuração. Mas, é impossível rejeitá-la, a menos que rejeitemos

toda a Bíblia. A verdadeira fé em Cristo, mesmo que só tenha um dia de

idade, já justifica o homem perante Deus, tão completamente quanto a fé

verdadeira de quem tem seguido a Cristo por cinqüenta anos. A justiça

com que Timóteo se apresentará, no dia do juízo, é a mesma com que se

apresentará aquele ladrão que morreu na cruz ao lado de Jesus. Ambos

serão salvos exclusivamente pela graça, ambos deverão tudo a Cristo. Nós

podemos não gostar disso, mas assim é a doutrina ensinada nesta parábola;

e não somente nesta parábola, mas em todo o Novo Testamento. Feliz é

quem recebe esta doutrina com humildade no coração! Com razão

comentou o bispo Hall: “Se alguns têm motivos para magnificar a

generosidade de Deus, ninguém tem, por isso, motivos para queixar-se”.

Antes de passarmos adiante, armemo-nos de algumas precauções

que se fazem necessárias. Esta é uma porção das Escrituras que tem sido

frequentemente pervertida e aplicada erroneamente. Muitas vezes, os

homens têm dela extraído algo que não é leite e, sim, veneno.

Cuidemos em jamais supor, por qualquer detalhe existente nesta

parábola, que a salvação possa, em qualquer sentido, ser obtida mediante

boas obras. Supor tal coisa é lançar por terra todo o ensinamento bíblico.

Tudo o que um crente receber no mundo vindouro será por graça, e não

por dívida. Deus nunca está em dívida conosco, em hipótese alguma.

Mesmo depois de havermos feito tudo, continuamos sendo servos inúteis

(Lc 17.10).

Tomemos a precaução de não supor, refletindo sobre esta parábola,

que a distinção entre judeus e gentios tenha sido inteiramente anulada pelo

evangelho. Supor tal coisa seria contradizer muitas profecias inequívocas,

tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. No tocante à justificação,

não há diferença entre crente judeu e crente gentio. No entanto, Israel

continua sendo um povo especial, e “não será reputado entre as nações”

(Nm 23,9). Deus ainda tem muitos propósitos concernentes aos judeus, e

que ainda estão por cumprir-se.

Tenhamos o cuidado de não supor que todas os salvos receberão

idêntico peso de glória. Tal suposição contradiz muitos textos claros das

Escrituras. A propriedade comum de todos os crentes é, sem dúvida, a

justiça perfeita de Cristo. Mas nem todos terão a mesma posição no céu. Cada um receberá o seu galardão, segundo o seu nróorio trabalho” (1 Co 3.8).

Page 166: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

166 Mateus 20.1-16

Final mente, temos o cuidado de não supor, baseados nesta pa-

rábola, que é seguro adiar o arrependimento para os últimos anos da vida.

Esse pensamento é uma ilusão das mais perigosas. Quanto mais os homens

se demoram em obedecer à voz de Cristo, menor a probabilidade de virem

a ser salvos. “Eis agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da

salvação" (2 Co 6.2). Pouquíssimas pessoas são salvas no leito de morte.

Um dos ladrões sobre a cruz foi salvo, para que ninguém desesperasse da

salvação; mas somente um, para que ninguém tenha presunção. Uma falsa

confiança nas palavras “hora undécima" tem arruinado milhares de almas.

Cristo Anuncia a sua Morte que se Aproxima;

O Misto de Ignorância e Fé em

Verdadeiros Discípulos Leia Mateus 20.17-23

A primeira coisa que nos convém observar, nestes versículos, é o

claro anúncio que o Senhor Jesus Cristo faz acerca de sua própria morte que se

aproxima. Pela terceira vez, encontramo-Lo dizendo a seus discípulos a

espantosa revelação de que Ele, o Mestre, operador de maravilhas, em

breve terá de sofrer e morrer.

O Senhor Jesus sabia desde o princípio tudo o que O aguardava. A

traição de Judas Iscariotes, a feroz perseguição movida pelos principais

sacerdotes e escribas, o julgamento injusto, a sua entrega a Pilatos, as

zombarias, os açoites, a coroa de espinhos, a cruz, o ter de ficar pendurado

entre dois malfeitores, os cravos, a ponta da lança — Jesus contemplava

tudo isto em sua mente, como a um retrato.

O conhecimento prévio agrava em muito os sofrimentos de uma

pessoa, conforme sabem muito bem aqueles que estão na expectativa de

uma intervenção cirúrgica perigosa. Mas nada disso conseguiu abalar

nosso Senhor. Ele diz: “Eu não fui rebelde, não me retraí. Ofereci as costas

aos que me feriam, e as faces aos que me arrancavam os cabelos; não

escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam" (Is 50.5-6).

Durante toda a vida Jesus contemplou o Calvário à distância, e, mesmo

assim, caminhou tranqüilamente até ele, sem desviar-se nem para a direita

nem para a esquerda. Certamente, jamais houve tristeza como a dEle, ou

amor como o dEle.

O Senhor Jesus foi um sofredor voluntário. Quando morreu sobre a cruz, não foi porque não tivesse o poder para evitar tal coisa. Ele sofreu

propositalmente, por sua livre vontade (Jo 10.18). Ele sabia

Page 167: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 20.17-23 167

que sem o derramamento de seu sangue não podería haver remissão dos

pecados do homem. Ele tinha consciência de ser o Cordeiro de Deus, que

precisava morrer para tirar o pecado do mundo. Ele sabia que sua morte era

o sacrifício predeterminado, que tinha de ser oferecido para fazer expiação

pela iniquidade. Sabendo de tudo isso, Ele caminhou voluntariamente até à

cruz. Seu coração estava resolvido a cumprir a grandiosa obra que viera

realizar neste mundo. Ele tinha plena consciência de que tudo dependia de

sua própria morte, e que, sem ela, os seus milagres e sua pregação teriam

feito, comparativamente, nada por este mundo. Não admira, pois, que três

vezes Ele chamasse a atenção de seus discípulos para a necessidade de sua

morte. Bem-aventurados e felizes são os que reconhecem o real significado

e a importância dos sofrimentos de Cristo!

A próxima coisa que deveríamos perceber, nestes versículos, é o

misto de ignorância efé, que pode ser encontrado mesmo nos crentes mais bem

intencionados. Vemos a mãe de Tiago e João aproximando-se de nosso

Senhor com seus dois filhos e apresentando em favor deles uma estranha

petição. Ela pede que “no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um

à tua direita, e o outro â tua esquerda”. Ela parece ter esquecido tudo quanto

Jesus há pouco dissera sobre os seus sofrimentos. A mente ambiciosa dela

só podia pensar na glória de Jesus. Os avisos claros de sua crucificação

também não foram acolhidos por seus filhos. Eles não conseguiam pensar

noutra coisa, senão no trono de Cristo e em seu poder. Havia muita fé, da

parte deles, nesse pedido, mas havia também muita debilidade. Havia algo

de elogiável no fato que eles podiam ver em Jesus de Nazaré um futuro rei.

Mas era culpável o fato de terem-se esquecido de que ele deveria ser

crucificado antes que pudesse reinar. Verdadeiramente, a carne milita

contra o Espírito em todos os filhos de Deus. Com razão, pois, observou

Lutero: A carne sempre procura ser glorificada, antes de ser crucificada”.

Há muitos crentes que se assemelham a esta mulher e seus filhos.

Eles vêem em parte e conhecem em parte as coisas de Deus. Têm fé

suficiente para seguir a Cristo. Têm conhecimento suficiente para odiar o

pecado e deixar o mundo. Mesmo assim, há muitas verdades do cris-

tianismo que eles deploravelmente ignoram. Eles falam com ignorância,

agem em ignorância e cometem muitos e tristes equívocos. Eles conhecem

as Escrituras Sagradas apenas superficialmente, e o discernimento que têm,

quanto aos seus próprios corações, é muito pequeno. No entanto, com base

nestes versículos, devemos aprender a tratar gentilmente com tais pessoas,

porquanto o Senhor as recebeu para si. Não devemos considerá-las como

ímpias e destituídas da graça divina, somente por causa de sua ignorância.

Lembremo-nos de que pode haver a verdadeira

Page 168: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

168 Mateus 20.17-23

fé no fundo do coração, mesmo que haja tanto entulho encobrindo-a.

Precisamos refletir sobre o fato que os fllhos de Zebedeu, cujo conhe-

cimento era tão imperfeito a princípio, mais tarde se tomaram colunas da

igreja de Cristo. Da mesma forma, um homem pode começar sua carreira

em meio a muita ignorância; e, mesmo assim, pode finalmente vir a

tomar-se um homem poderoso nas Escrituras, um seguidor digno do

exemplo de Tiago e João.

A última coisa que deveríamos observar, nestes versículos, é a

solene reprovação com gue nosso Senhor responde ao pedido da mulher de

Zebedeu e seus dois filhos. O Senhor Jesus disse: “Não sabeis o que pedis”.

Eles haviam pedido para participar da recompensa de seu Senhor; porém,

não haviam considerado que primeiro teriam de ser participantes dos

sofrimentos de seu Senhor (1 Pe 4.13). Tinham-se esquecido de que os que

querem estar em pé, com Cristo na glória, precisam beber do seu cálice e

ser batizados em seus sofrimentos. Eles não compreendiam que só aqueles

que levam a cruz (e somente esses) receberão a coroa. Portanto, foi com

muita razão que disse nosso Senhor: “Não sabeis o que pedis”.

Mas, porventura, será que nós mesmos nunca incorremos nesse

equívoco? Nunca caímos no mesmo erro, fazendo pedidos impensados e

imprudentes? Não é verdade que com freqüência dizemos coisas em nossas

orações, sem antes “calcular o custo”, e pedimos coisas sem antes

refletirmos sobre tudo o que nossas petições envolvem? Estas são

perguntas que nos perscrutam o coração. E de temer que muitos de nós não

possam dar as respostas satisfatórias.

Pedimos que nossa alma seja salva e vá para o céu quando morrer-

mos. Esse é um bom pedido, sem dúvida. Entretanto, estamos preparados

para tomar nossa cruz e seguir a Cristo? Estamos dispostos a desistir do

mundo por amor a Cristo? Estamos preparados para nos despirmos do

velho homem, revestindo-nos do novo — a lutar, trabalhar e correr de

maneira a que alcancemos este alvo? (1 Co 9.24). Estamos dispostos a

suportar toda zombaria do mundo e padecer dificuldades por amor à causa

de Cristo? Que diremos? Se não estamos assim preparados, nosso Senhor

poderá dizer a nós também: “Não sabeis o que pedis”.

Pedimos que Deus nos tome santos e bondosos. Este é um bom

pedido, de fato. Todavia, estamos preparados a ser santificados mediante

qualquer processo que o Senhor Deus, em sua sabedoria, nos convoque a

passar? Estamos prontos para ser purificados por meio da aflição, a sermos

desapegados do mundo mediante privações, e a sermos trazidos para mais

perto de Deus mediante perdas, enfermidades e tristezas? Ah! Estas são

questões difíceis. Se não estamos prontos para tudo isso, nosso Senhor bem

poderá dizer-nos: “Não sabeis o que pedis”.

Page 169: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 20.17-23 169

Ao deixarmos estes versículos, tomemos a solene resolução de

considerar atentamente o que estamos fazendo, quando nos aproximamos

de Deus em oração. Procuremos evitar petições impensadas, precipitadas,

sobre as quais ainda não tenhamos considerado o bastante. Foi com muita

razão que Salomão deixou registrado: “Não te precipites com a tua boca,

nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus”

(Ec 5.2).

O Verdadeiro Padrão de Grandeza Entre os Crentes

Leia Mateus 20.24-28

Estes versos são poucos em número, mas contêm lições de grande importância para todos os verdadeiros cristãos. Vejamos em que con-sistem.

Em primeiro lugar, aprendemos que mesmo entre verdadeiros

discípulos de Jesus pode haver orgulho, ciúme e amor à preeminência. Que

dizem as Escrituras? “Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os

dois irmãos”.

O orgulho é dos mais antigos e mais danosos pecados da huma-

nidade. Foi por orgulho que os anjos caíram, porque “não guardaram o seu

estado originar1 (Jd 6). Foi através do orgulho que Adão e Eva foram

seduzidos a comer do fruto proibido. Eles não estavam contentes com o seu

destino e pensaram que podiam ser como Deus. O orgulho é o causador dos

maiores danos sofridos pelos santos de Deus depois da conversão. Hooker,

com razão, disse que “o orgulho é um vício que se apega tão teimosamente

ao coração humano que, se nos tivéssemos de desfazer de todas as nossas

faltas, uma a uma, sem dúvida descobriríamos que ela seria a última e mais

difícil de todas as faltas a “eliminar”. Bispo Hall fez uma declaração

curiosa, mas verídica: “ O orgulho é a vestimenta mais íntima, da qual nos

despimos por último e que vestimos primeiro”.

Em segundo lugar, aprendemos que uma vida de auto-negação, e

gentileza para com outrem, é o verdadeiro segredo da grandeza no reino de

Cristo: “Quem quiser tomar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e

quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo”. r

Os padrões deste mundo e os critérios do Senhor Jesus Cristo são,

de fato, largamente diferentes. São mais do que diferentes, são diametralmente contrários. Entre os filhos deste mundo, é considerado

Page 170: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

170 Mateus 20.24-28

grande aquele que tem mais terras, mais dinheiro, um maior número de

servos, maior posição social e maior poder. Entre os filhos de Deus, maior

é quem mais faz a fim de promover a felicidade espiritual e temporal de

seus semelhantes. A verdadeira grandeza consiste não em receber, mas em

dar. Não consiste na aquisição egoísta de bens, mas, sim, em conferir

coisas boas aos nossos semelhantes. Não em sermos servidos, mas em

servir. Não em nos assentarmos enquanto outros ministram às nossas

necessidades, mas em sairmos para ministrar às necessidades alheias. Os

anjos percebera muito maior beleza no trabalho dos missionários do que no

trabalho de quem procura ouro numa região distante. Eles se interessam

muito mais pelos labores de homens como Judson e Carey, do que nas

vitórias dos generais, nos discursos dos políticos ou nas decisões dos

ministros de Estado. Lembremo-nos disso! Tenhamos cuidado em não

procurar a falsa grandeza. Que o nosso alvo seja somente aquilo que é

verdade. Podemos saber com certeza que há profunda sabedoria nas

palavras de Jesus: “Mais bem-aventurado é dar que receber‟ * (At 20.35).

Em terceiro lugar, aprendemos que o Senhor Jesus foi posto como

exemplo de todos os verdadeiros cristãos. Que dizem as Escrituras?

Deveríamos servir uns aos outros, “tal como o Filho do homem, que não

veio para ser servido, mas para servir“.

O Senhor Deus tem providenciado, misericordiosamente, tudo

quanto é necessário para a santificação de seu povo. Ele tem dado preceitos

claríssimos para os que seguem a santidade, bem como os melhores

motivos e as promessas mais encorajadoras. Isso, porém, ainda não é tudo.

Deus nos supriu como exemplo e padrão mais perfeitos, a saber, a vida de

seu próprio Filho. Ele nos manda amoldar nossa vida de acordo com a vida

de Jesus Cristo. Ele nos manda caminhar, seguindo os passos de Cristo (1

Pe 2.21). A vida de Cristo é o modelo segundo o qual devemos

esforçar-nos por moldar nosso temperamento, nossas palavras e nossas

atitudes neste mundo maligno. — Teria o meu Senhor falado desta

maneira? Meu Mestre teria agido desse modo? — Estas são perguntas que

deveríamos fazer a nós mesmos diariamente.

Quão humilhadora é, para nós, esta verdade! Quanto exame de

coração ela nos invoca a fazer! Quão insistente é o chamamento para nos

desembaraçarmos “de todo peso, e do pecado que tenazmente nos assedia‟

‟! Quão exemplares devem ser os que professam imitar a Cristo! Que inútil

é a religião que leva um homem a contentar-se com palavras vazias,

enquanto que em sua vida não há pureza nem santidade! Que pena!

Aqueles que desconhecem a Cristo como exemplo, finalmente descobrirão

que também Ele não os conhece como o povo que salvou! “Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (1 Jo 2.6).

Page 171: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 20.24-28 171

Final mente, aprendemos, por estes versículos, que a. morte de Cristo

foi uma expiação pelo pecado. Que dizem as Escrituras? Jesus Cristo veio

para “dar a sua vida em resgate por muitos“.

Esta é a verdade mais poderosa na Bíblia. Cuidemos de nos apegar

firmemente a ela, sem jamais largá-la. Nosso Senhor Jesus Cristo não

morreu simplesmente como um mártir ou um exemplo esplêndido de

auto-sacrificio e negação de si mesmo. Quem não pode ver mais do que

isso, na morte dEle, está muito aquém da verdade. Esses perdem de vista a

própria pedra fundamental do cristianismo, e deixam de receber a plena

consolação do evangelho. A morte de Cristo foi um sacrifício pelo pecado

do homem. Ele morreu para fazer expiação pela iniquidade do homem, e

expurgar os nossos pecados mediante a oferta de Si mesmo. Ele morreu

para nos redimir da maldição que todos nós merecemos e para satisfazer a

justiça de Deus que, senão pela morte de Cristo, nos teria condenado.

Nunca nos esqueçamos disso!

Todos nós somos devedores por natureza. Devemos ao nosso santo

Criador dez mil talentos, e não somos capazes de pagar essa dívida. Não

podemos fazer expiação pelas nossas próprias transgressões, visto que

somos fracos e incapazes, e só aumentamos, a cada dia, a nossa dívida

insolúvel. Mas, bendito seja Deus! Aquilo que não podíamos fazer, Cristo

fez por nós quando veio a este mundo. Aquilo que não podíamos pagar,

Jesus pagou por nós total e cabalmente, morrendo na cruz do Calvário. Ele

“a si mesmo se ofereceu” a Deus (Hb 9.14).

Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1 Pe 3.18). Novamente, jamais nos esqueçamos desse fato!

Não deixemos estes versículos, sem perguntar a nós mesmos: “Onde

está nossa humildade? Qual é a nossa idéia da verdadeira grandeza pessoal?

Que exemplo estamos dando ao próximo? Qual é a nossa esperança? A

vida, a vida eterna, depende das respostas que damos a estas indagações.

Feliz é a pessoa verdadeiramente humilde, que se esforça por praticar o

bem, que caminha nos passos de Jesus confia inteiramente no resgate pago mediante o sangue de Cristo. Assim é um verdadeiro crente!

Page 172: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

172 Mateus 20.29-34

A Cura de Dois Cegos Leia Mateus 20.29-34

Nestes versículos encontramos o quadro de um acontecimento na

vida de Cristo. Ele cura dois cegos que estavam assentados à beira do

caminho, perto de Jericó. As circunstâncias dessa ocorrência contêm lições

de profundo interesse, que todos os crentes fariam bem em relembrar.

Antes de tudo, observemos que.muita fé pode ser encontrada onde às

vezes menos esperamos encontrá-la. Embora cegos, aqueles dois homens

acreditavam que Jesus tinha poder para ajudá-los. Eles jamais viram

qualquer dos milagres de nosso Senhor. Conheciam-no somente de ouvir

falar, e não pessoalmente. Não obstante, tão logo ouviram que Ele estava

passando, clamaram: „"Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós!”

Tamanha fé bem pode servir para nos envergonhar. Com todos os

nossos livros de evidências, biografias de santos e bibliotecas de teologia,

quão poucos conhecem algo daquela confiança simples, como de uma

criança, na misericórdia de Cristo e no poder de Cristo! Mesmo entre os

crentes, o grau da fé com frequência é estranhamente desproporcional aos

privilégios usufruídos. Muitas vezes, um homem inculto, que só pode ler

seu Novo Testamento com dificuldade, possui um espírito de resoluta

confiança na advocacia de Cristo, ao passo que teólogos que já estudaram

muito vêem-se assediados por dúvidas e questionamentos. Os que,

humanamente falando, deveriam ser os primeiros, muitas vezes são os

últimos; e os últimos são os primeiros.

Em seguida, notemos a sabedoria que existe em se aproveitar cada

oportunidade para o bem de nossa alma. Esses dois cegos estavam “assentados

à beira do caminho”. Se lá não estivessem, provavelmente jamais teriam

sido curados. Jesus nunca mais voltou a Jerico, e eles jamais poderiam ter-se

encontrado novamente com Ele.

Neste fato tão simples, vemos a importância da diligência no uso dos

meios da graça. Nunca deveríamos negligenciar a casa de Deus, nem deixar

de nos reunir com o povo de Deus, nem omitir a leitura da Bíblia, nem

abandonar a prática da oração individual. Estas coisas, sem dúvida, não

podem salvar-nos sem a atuação da graça do Espírito Santo. Muitíssimos

fazem uso deles, e, no entanto, permanecem mortos em delitos e pecados.

Porém, é mediante o uso desses meios de graça que almas são convertidas e

salvas. Eles são os caminhos em que anda o Senhor Jesus. Os que se

assentam “à beira do caminho” são os que

Page 173: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 20.29-34 173

provavelmente serão curados. Conhecemos as enfermidades de nossa alma?

Temos algum desejo de consultar o grande Médico? Em caso positivo, não

deveríamos esperar em inatividade, dizendo que “se eu tiver de ser salvo,

serei salvo de qualquer maneira”. Pelo contrário, devemos nos levantar e ir

para a estrada por onde passa Jesus. Quem pode saber se logo não será a

última vez que Ele estará passando por aqui?! Assentemo-nos diariamente à

beira do caminho.

Em terceiro lugar, observemos o valor do esforço e da perseverança na

busca por Cristo. Os dois cegos foram repreendidos pela multidão que

acompanhava nosso Senhor. Disseram-lhes que se calassem, mas isto não

seria suficiente para silenciá-los. Eles sentiam o quanto precisavam de

ajuda. Em nada se importaram com a reprovação recebida; “gritavam cada

vez mais: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!”

Nisto temos um exemplo sumamente importante. Não devemos nos

deixar deter pela oposição, nem ficar desencorajados pelas dificuldades

quando passamos a buscar a salvação de nossa alma. Devemos “orar

sempre e nunca esmorecer” (Lc 18.1). Devemos recordar a parábola da

viúva importuna, e a parábola do homem que foi à casa do amigo à meia

noite, a fim de conseguir pão emprestado. É dessa ma- neira que devemos

insistir com nossas preces diante do trono da graça, dizendo: “Não te

deixarei ir, se me não abençoares” (Gn 32.26). Amigos, parentes e vizinhos

podem mesmo dizer coisas indelicadas e reprovar o nosso intenso zelo.

Podemos até encontrar frieza e falta de simpatia no lugar aonde fomos

procurar ajuda. Entretanto, que nada disso nos abale. Se sentimos nossas

enfermidades e desejamos ver a Jesus, o grande Médico; se conhecemos os

nossos pecados e queremos que Ele nos perdoe, então prossigamos. “O

reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam

dele” (Mt 11.12).

Finalmente, destaquemos quão gracioso o Senhor Jesus é para com

aqueles que O buscam. Parando Jesus, chamou-os. Ele gentilmente

perguntou o que desejam, escutou a petição e fez o que lhe pediram. Condoído Jesus, tocou-lhes os olhos, e imediatamente recuperaram a

vista.”

Deparamo-nos aqui com uma ilustração daquela antiga verdade, a

misericórdia de Cristo para com os filhos dos homens, a qual nunca

podemos conhecer plenamente bem. O Senhor Jesus não é apenas um

Salvador poderoso, mas também é misericordioso, gentil e bondoso, e em

um grau que vai além da nossa compreensão. Como bem disse o apóstolo

Paulo: “O amor de Cristo, que excede todo o entendimento‟ ‟ (Ef 3.19).

Como ele, oremos para que possamos conhecer mais desse amor.

Precisamos do amor de Cristo quando principiamos na carreira

Page 174: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

174 Mateus 20.29-34

cristã, penitentes tremorosos e bebês na graça divina. Precisamos desse

amor, daí em diante, enquanto seguimos pelo caminho estreito, muitas

vezes errando, com freqüência tropeçando e nos sentindo desencorajados.

Já no fim da vida, ainda precisaremos desse amor, ao passarmos pelo vale

da sombra da morte. Por conseguinte, apeguemo-nos firmemente ao amor

de Cristo; seja esse amor a nossa meditação diária. Até que despertemos, já

no outro mundo, nunca saberemos, realmente, o quanto devemos ao amor

de Cristo.

A Entrada Triunfal em Jerusalém Leia Mateus 21.1-11

Estes versículos narram um momento muito importante na vida de

nosso Senhor Jesus Cristo — a sua entrada pública em Jerusalém, pela

última vez antes de ser crucificado.

Há algo de peculiarmente notável nesse incidente na história de

nosso Senhor. A narrativa é como a descrição do retorno de um con-

quistador real à sua própria cidade. Multidões o acompanham, formando

um tipo de procissão triunfal. Altos clamores e expressões de louvor são

ouvidos ao redor de Jesus. “Toda a cidade se alvoroçou“. O episódio inteiro

é totalmente diferente do curso anterior da vida de nosso Senhor. Do

princípio ao fim, foi curiosamente diferente do que era comum Aquele

sobre quem estava escrito: “Não clamará nem gritará, nem fará ouvir a sua

voz na praça” (Is 42.2). Aquele que em outras ocasiões se ausentava da

multidão, e que dizia aos que por Ele eram curados: “Olha, não digas nada a

ninguém” (Mc 1.44). No entanto, todo este acontecimento admite uma

explicação. Os motivos dessa entrada pública e triunfal não são difíceis de

detectar. Vejamos quais são.

Na verdade, nosso Senhor sabia bem que o tempo de seu ministério

terreno estava por acabar. Ele sabia que já se aproximava a hora em que

deveria concluir a poderosa obra que viera realizar, morrendo na cruz por

nossos pecados. Ele sabia que suas andanças estavam terminadas, e que

para completar seu ministério terreno só lhe restava ser oferecido como

sacrifício sobre o Calvário. Sabendo de tudo isso, Jesus não mais procurou

manter segredo, como anteriormente, Sabendo de tudo isso, Ele houve por

bem entrar pública e solenemente no lugar onde seria entregue à morte.

Não convinha que o Cordeiro de Deus viesse secretamente e em silêncio,

para ser morto no Calvário. Antes que fosse oferecido o grande sacrifício

pelos pecados do mundo, era correto que todos os olhos contemplassem a

vítima. Convinha que o ato

Page 175: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 21,1-11 175

mais importante na vida de nosso Senhor fosse concretizado com tanta

notoriedade quanto possível. Por isso foi que Jesus fez sua entrada triunfal.

Por isso foi que Ele atraiu para si os olhos admirados de toda a multidão.

Por isso foi que toda Jerusalém se alvoroçou. O sangue expiatório do

Cordeiro de Deus estava prestes a ser derramado. Esse sacrifício não devia

ser feito em segredo, “nalgum recanto” (At 26.26).

E bom relembrar estas coisas. A real significação da conduta de

nosso Senhor, durante esse período, não é considerada suficientemente por

muitos que leem esta passagem. Devemos considerar as lições práticas a

que estes versículos parecem apontar.

Em primeiro lugar, temos um exemplo do conhecimento perfeito de

nosso Senhor“ Jesus Cristo, Ele envia dois de seus discípulos a uma aldeia, e

disse-lhes que lá encontrariam o jumentinho em que Ele haveria de montar.

Ele lhes deu uma palavra para falarem aos donos do animal, e, por causa

dessa palavra, o jumentinho lhe seria enviado. E tudo aconteceu exatamente

como Jesus predissera.

Coisa nenhuma está escondida dos olhos de nosso Senhor. Para Ele

não há segredos. A sós ou acompanhados, de dia ou de noite, em particular

ou em público, Jesus tem conhecimento de todos os nossos caminhos. Ele,

que viu Natanael sob a figueira, em nada mudou. Indo para onde quer que

seja, e por mais que nos retiremos da sociedade humana, jamais estamos

longe dos olhos de Jesus Cristo.

Este é um pensamento que deveria exercer um efeito refreador e

santificador em nossa alma. Todos sabemos da influência que a presença

dos governantes deste mundo tem sobre os cidadãos deste mundo. A

própria natureza nos ensina a refrear nossa língua e comportamento quando

estamos perante um rei. O senso do perfeito conhecimento que nosso

Senhor Jesus Cristo tem, de tudo quanto fazemos, deveria surtir o mesmo

efeito ero nossos corações. Que nós nada façamos que não gostaríamos que

Cristo visse, e que nada digamos que não gostaríamos que Cristo ouvisse.

Procuremos viver e conduzir-nos, e fazer tudo, relembrando continuamente

a presença de Cristo. Que nos comportemos como teríamos feito se

tivéssemos caminhado com Cristo em companhia de Tiago e João, junto ao

Mar da Galiléia. Esse é o modo de sermos treinados para o céu. No céu, “estaremos para sempre com o Senhor” (1 Ts 4.17).

Em segundo lugar, temos um exemplo da maneira como foram

cumpridas as profecias sobre a primeira vinda de nosso Senhor. Somos

informados de que esta entrada triunfal cumpria a predição de Zacarias:

“Eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento”

(Zc 9.9). Parece que essa predição teve um cumprimento literal e exato.

Page 176: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

176 Mateus 21.1-11

As palavras que o profeta falou mediante o Espírito Santo não tiveram um

cumprimento figurado. Tal como ele disse, assim mesmo aconteceu.

Conforme ele predissera, assim foi feito. Quinhentos e cinqüenta anos

tinham-se passado desde que a predição fora feita, e quando chegou o

tempo determinado, o Messias desde há muito prometido, literalmente,

entrou em Sião montado sobre um jumentinho. Entretanto, não há que

duvidar que a vasta maioria dos habitantes de Jerusalém nada perceberam

nessa circunstância. O véu estava posto sobre o coração deles. Nós, porém,

não somos deixados em dúvida no que diz respeito ao cumprimento dessa

profecia. É-nos dito claramente, que “isto aconteceu, para se cumprir o que

foi dito, por intermédio do profeta”.

Ao verificar o cumprimento da palavra de Deus em tempos pas-

sados, sem dúvida cumpre-nos formar uma idéia sobre como será o

cumprimento das profecias futuras. Podemos esperar que as profecias

acerca da segunda vinda de Cristo serão cumpridas tão literalmente quanto

foram as profecias do primeiro advento. Em sua primeira vinda, Jesus veio

a este mundo em pessoa, literalmente. Na segunda vez, Ele virá em pessoa,

literalmente. Na primeira, Ele uma vez veio em humilhação, literalmente,

para sofrer. Ele virá segunda vez, em glória, literalmente, para reinar. Cada

predição a respeito das coisas que acompanharam o seu primeiro advento,

teve um cumprimento literal. O mesmo sucederá quando Ele voltar a este

mundo. Tudo quanto foi predito sobre a restauração dos judeus, sobre o

julgamento dos ímpios, sobre a incredulidade do mundo e o agrupamento

dos eleitos, tudo se cumprirá à risca. Nunca nos esqueçamos disso! No

estudo das profecias que ainda não se cumpriram, é de suma importância ter

um princípio fixo de interpretação.

Finalmente, observemos nestes versículos uma notável demonstração

de que o favor humano não tem valor algum. Dentre toda a multidão que

cercava ao Senhor Jesus quando Ele entrou em Jerusalém, ninguém ficou

ao lado dEle quando foi entregue às mãos de homens iníquos. Muitos

gritaram “Hosana!”, e quatro dias mais tarde: “Fora! Fora! Crucifica-o!”

(Jo 19.15).

Mas este é um retrato fiel da natureza humana. É uma prova da

tamanha insensatez que é dar maior valor ao louvor do homem do que ao

louvor que vem de Deus. Na verdade, coisa alguma é tão inconstante e

incerta quanto a popularidade. Ela está aqui hoje, mas amanhã já de-

sapareceu. A popularidade é como um alicerce sobre a areia, que

certamente transtornará quem sobre ela construir. Que nós não façamos

caso dela. Pelo contrário, busquemos o favor d Aquele que “ontem e hoje é

o mesmo, e o será para sempre” (Hb 13.8). Jesus nunca muda.

Page 177: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 21.1-11 177

Aqueles a quem Ele ama, amará até o fim. O seu favor perdura para sempre.

Expulsão dos Vendilhões do Templo;

A Figueira Infrutífera

Leia Mateus 21.12-22

Temos nestes versículos um relato de dois acontecimentos notáveis

na história de nosso Senhor. Em ambos os casos havia algo de

eminentemente simbólico e típico. Cada um é uma figura de realidades

espirituais. Sob a superfície estão lições de solene instrução.

O primeiro acontecimento que requer a nossa atenção é a visita de

nosso Senhor ao templo. Ele encontrou a casa de seu Pai em uma condição

que mui verdadeiramente retratava a condição geral da igreja judaica: tudo

fora de ordem e fora de curso. Ele viu os átrios daquele edifício sagrado

sendo desgraçadamente profanados por transações mundanas, O comércio

de compra e venda estava acontecendo dentro das próprias muralhas do

templo. Lá estavam os vendedores, prontos para suprir os judeus que

vinham de países distantes com qualquer sacrifício que desejassem

oferecer. Lá estavam os cambistas, prontos para trocar o dinheiro

estrangeiro por moeda corrente da nação. Bois, ovelhas, cabras e pombas

estavam lá expostos, como se o lugar fosse um mercado. Podia-se ouvir o

tilintar das moedas, como se aqueles átrios sagrados fossem um banco ou

casa de cambio. Assim foram as cenas vistas pelos olhos do Senhor. Jesus

contemplou tudo aquilo com uma santa indignação. “Expulsou a todos os

que ali vendiam e compravam; também derrubou as mesas dos cambistas”.

Não houve qualquer Tesistência, porquanto sabiam que Ele estavá certo.

Objeção também não houve nenhuma, pois todos sentiam que Ele estava

apenas reformando um abuso notório, que tinha sido aviltantemente

permitido por amor ao lucro. Jesus teve boas razões para dizer aos

mercadores espantados, enquanto fugiam: “Está escrito: A minha casa será

chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de

salteadores”.

Deveríamos detectar, na conduta de nosso Senhor nessa ocasião, um

notável exemplo do que Ele fará quando vier pela segunda vez. Ele irá

purificar a sua igreja visível tal como purificou o templo. Ele a limpará de

tudo quanto a contamina e gera iniquidade, e expulsará do meio dela os

mundanos. Jesus não permitirá que o adorador do dinheiro ou amante do

lucro esteja naquele templo glorioso que Ele finalmente haverá de exibir

perante o mundo. Que todos nós vivamos na expectação

Page 178: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

178 Mateus 12.12-22

diária de sua vinda! Devemos julgar a nós mesmos, a fim de não sermos

condenados e rejeitados naquele dia de exame e triagem! Deveriamos

sempre estudar aquelas palavras de Malaquias: “Quem pode suportar o dia

da sua vinda? E quem subsistir quando Ele aparecer? Porque Ele é como o

fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros” (Ml 3.2).

O segundo evento que chama nossa atenção, nestes versículos, é a

maldição sobre a figueira infrutífera. Somos informados que Jesus, “vendo

uma figueira à beira do caminho, aproximou-se dela; e, não tendo achado

senão folhas, disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti. E a figueira secou

imediatamente”. Este é um incidente quase que sem paralelo em todo o

ministério de nosso Senhor. Essa é praticamente a única ocasião em que

vemos Jesus fazer uma de suas criaturas sofrer, a fim de com isso ensinar

uma verdade espiritual. Havia naquela figueira ressecada uma lição que

nos perscruta o coração. Ela prega um sermão que todos nós faríamos bem

em escutar.

Aquela figueira, recoberta de folhas porém sem frutos, era uma

notória figura da igreja judaica quando nosso Senhor veio à terra. A igreja

judaica tinha tudo para ser um impressionante espetáculo. Ela tinha o

templo, o sacerdócio, o culto diário, as festas anuais, as Escrituras do

Antigo Testamento, os turnos dos levitas, os sacrifícios da manhã e da

tarde. Porém, por detrás dessa folhagem exuberante, a igreja judaica estava

completamente destituída de frutos. Não havia nenhuma graça, nenhuma

fé, nenhum amor, nenhuma humildade, nenhuma espiritualidade, nenhuma

santidade real, nenhuma disposição para receber ao seu Messias (Jo 1.11).

E assim, como a figueira, a igreja judaica não demoraria a secar. Ela

haveria de ser despida de todos os seus ornamentos exteriores, e os seus

membros seriam dispersos por toda a face da terra. Jerusalém seria

destruída; o templo iria ser queimado; o sacrifício diário seria

interrompido. A árvore haveria de secar até às raízes. E isso mesmo foi o

que aconteceu. Nunca houve um tipo simbólico que se cumprisse tao

literalmente. Em cada judeu errante podemos ver um ramo dessa figueira

que foi derribada. Porém, não podemos parar aqui. Deste evento podemos extrair

ainda outras instruções. Estas coisas foram escritas tanto para os judeus quanto por nossa causa.

Não está cada ramo infrutífero da igreja visível de Jesus Cristo em

um tremendo perigo de se tornar uma figueira seca? Sem a menor dúvida!

Altos privilégios e posições eclesiásticas, desacompanhadas de santidade

entre o povo; confiança exagerada em concílios, bispos, liturgias e

cerimônias, enquanto que o arrependimento e fé são negligenciados. Tais

coisas têm aniquilado muitas igrejas no passado, e podem ainda destruir

muitas outras mais. Onde estão igrejas como as de Éfeso,

Page 179: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 21.12-22 179

Sardes> Cartago e Hipona, que em seu tempo foram tão famosas? Todas

desapareceram. Elas tinham folhagem mas não frutificavam. A maldição de

nosso Senhor veio sobre elas, e tomaram-se figueiras secas. Saiu o decreto

divino: “Cortai a árvore, e destruí-a” (Dn 4.23). Lembremo-nos disso!

Tenhamos todo o cuidado de evitar o orgulho eclesiástico. “Não te

ensoberbeças, mas teme” (Rm 11.20).

Por fim, não está uma pessoa que se diz cristã, mas não produz fruto

algum em um perigo terrível, podendo tornar-se uma figueira seca? Não há

que duvidar disso. Enquanto se contenta com a mera folhagem da religião

(com um nome de quem vive, ao mesmo tempo em que está morto, e tendo

apenas a forma de piedade sem poder), a alma da pessoa está em grande

perigo. Enquanto se satisfizer em ir à igreja e participar da Ceia do Senhor, e

ser chamado de “cristão”; enquanto seu coração não tiver sido transformado

e não houver abandonado os seus pecados, neste tempo está diariamente

provocando a Deus a cortar a árvore irremediavelmente. Fruto, fruto — o

fruto do Espírito é a única prova segura de que estamos unidos a Jesus

Cristo, salvos, e a caminho do céu. Que este pensamento lance raízes

profundas em nossos corações e jamais seja esquecido.

A Resposta de Cristo aos Fariseus Que

Questionavam a sua Autoridade; Os Dois Filhos Leia Mateus 21.23-32

Estes versículos contêm um diálogo entre nosso Senhor Jesus Cristo

e os principais sacerdotes e anciãos dentre o povo. Aqueles amargos

adversários de toda a retidão, viram a sensação que a entrada triunfal em

Jerusalém e a purificação do templo haviam provocado. Imediatamente eles

cercaram nosso Senhor, como abelhas, procurando um motivo para levantar

acusação contra ele.

Observemos, em primeiro lugar, como os inimigos da verdade estão

sempre preparados para questionar a autoridade de todos quantos se conduzem

melhor do que eles próprios. Os principais dos sacerdotes não tinham uma

única palavra que dizer contra os ensinamentos de nosso Senhor. Não

podiam fazer sequer uma acusação contra a vida e a conduta de Jesus e seus

seguidores. Por isso, trataram de questionar a sua comissão divina,

indagando: “Com que autoridade fazes estas cousas? E quem te deu essa

autoridade?”

Idêntica acusação com frequência tem sido lançada contra os servos

do Senhor, quando eles procuram refrear o progresso da corrupção

Page 180: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

180 Mateus 21.23-32

eclesiástica. É uma velha artimanha, pela qual os filhos deste mundo têm

muitas vezes tentado impedir o avanço das reformas e reavivamen- tos. É

uma espada que muitas vezes foi brandida contra a face dos reformadores,

dos puritanos e metodistas, séculos atrás. É uma flecha envenenada, que

muitas vezes é atirada contra os missionários e obreiros leigos, hoje em dia.

Não poucos são os que em nada se importam com a manifesta bênção de

Deus, sobre o trabalho de um homem, se tal homem não foi enviado pela

seita ou denominação a que pertence. Não importa se pela

instrumentalidade de um humilde obreiro Deus tem realizado muitas

conversões em sua seara, eles prosseguem questionando: “Com que

autoridade fazes estas cousas?"

O sucesso desse obreiro nada significa; eles querem saber quem o

enviou. As grandes coisas que tem sido feitas, nada significam; eles querem

ver o seu diploma. Não devemos ficar nem surpresos nem desanimados

quando ouvimos tais coisas. Esta mesma argumentação foi levantada contra

o próprio Jesus Cristo. “Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9).

Observemos, em segundo lugar, a sabedoria consumada com que

nosso Senhor replicou à indagação que lhe fora dirigida. Os adversários lhe

haviam perguntado com que autoridade Ele fazia o que fazia. Ao que tudo

indica, tencionavam fazer de sua resposta um motivo de acusação contra

Ele. O Senhor, porém, sabia quais eram as verdadeiras intenções da

pergunta, e por isso disse: “Eu também vos farei uma pergunta; se me

responderdes, também eu vos direi com que autoridade faço estas cousas.

Donde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?"

Devemos entender claramente que nesta resposta de nosso Senhor

não havia evasiva. Supor que Jesus estivesse fiigindo à pergunta seria um

grande erro. A pergunta que usou como resposta foi, na realidade, uma

inquirição de seus inimigos. Jesus sabia que eles não ousariam negar que

João Batista fora um homem enviado por Deus. Ele sabia que, uma vez

admitida essa verdade, só tinha que relembrá- -los do testemunho de João

Batista sobre a sua pessoa. Não tinha João declarado ser Jesus “o Cordeiro

de Deus, que tira o pecado do mundo"? Não tinha João Batista ensinado que

Ele, Jesus, era quem haveria de batizar “com o Espírito Santo"? Em suma, a

pergunta de nosso Senhor foi um golpe certeiro na consciência de seus

inimigos. Uma vez admitida a autoridade divina da missão de João Batista,

eles também teriam que admitir a autoridade divina de Jesus Cristo.

Reconhecendo que João Batista fora enviado do céu, eles também teriam de

reconhecer que Jesus era o Cristo.

Oremos para que, neste mundo hostil, seja-nos proporcionada a

mesma sabedoria que foi aqui demonstrada por nosso Senhor. Sem

1

Page 181: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 21.23-32 181

dúvida, devemos seguir a determinação do apóstolo Pedro: “estando

sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da

esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor** (1

Pe 3.15). Não devemos nos encolher diante de um questionamento a

respeito dos princípios que regem a nossa santa religião. Devemos sempre

estar preparados para defender e explicar nossa prática, a qualquer tempo.

Contudo, lembremo-nos de que, para isso, é necessário sabedoria. Em

defesa de uma boa causa, devemos procurar falar sabiamente. As palavras

de Salomão merecem consideração: “Não respondas ao insensato segundo a sua estultícia, para que não te faças semelhante a ele” (Pv 26.4).

Em último lugar, observemos quão grande encorajamento nosso

Senhor oferece àqueles que se arrependem. Vemos isso salientado claramente

na parábola dos dois filhos. Ambos receberam ordem de ir trabalhar na

vinha de seu pai. Um dos filhos, como os cerimoniosos fariseus, fingiu

estar disposto a obedecer, mas realmente não foi. O outro, como os

devassos publicanos, por algum tempo recusou-se abertamente a obedecer,

mas depois arrependeu-se e foi. “Qual dos dois”, nosso Senhor pergunta, “fez a vontade do pai?” Mesmo os seus inimigos foram obrigados a responder: “O segundo”.

Que se tome um princípio bem estabelecido em nosso cristianismo,

que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo está infinitamente disposto a

receber pecadores penitentes. Não importa o que um homem tenha sido no

passado. Se ele se arrepende e vem a Cristo, então as coisas antigas já

passaram, e eis que tudo se fez novo. Não importa quão elevada e

auto-confiante possa ser a religiosidade de um homem. Se ele não desiste

realmente de seus pecados, a sua religião não passa de uma abominação aos

olhos de Deus, e ele mesmo está ainda sob a maldição divina. Se até agora

temos sido grandes pecadores, que então tomemos coragem! Basta que nos

arrependamos e confiemos em Cristo, e então haverá esperança. Que nós

encoragemos outras pessoas a se arrependerem. Mantenhamos bem aberta

a porta, para que mesmo o principal dos pecadores possa entrar. A palavra

jamais falhará: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para

nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1 Jo 1.9).

Page 182: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

182 Mateus 21.33-46

A Parábola dos Lavradores Maus Leia Mateus 21.33-46

A parábola contida nestes versículos foi proferida com especial

referência aos judeus. Eles são os lavradores aqui mencionados. São os

pecados deles que estão aqui retratados. Disso não há dúvida, pois está

escrito que “era a respeito deles que Jesus falava”.

Mas nós não devemos nos exaltar, dizendo que esta parábola nada

contém para os gentios. Nela estão contidas lições tanto para os judeus,

quanto para nós. Vejamos quais são.

Antes de tudo, vemos os privilégios distintivos que Deus se agrada em

proporcionar a certas nações. Ele escolheu Israel como seu povo peculiar.

Ele os separou dentre as outras nações da terra, e lhes concedeu incontáveis

bênçãos. Ele deu a Israel revelações de Si mesmo, enquanto que o restante

da humanidade continuava em trevas. Ele deu aos israelitas a lei, as

alianças e os oráculos de Deus, enquanto que os outros povos foram

deixados como estavam. Em suma, Deus tratou com os judeus à

semelhança de como um homem trata de um pedaço de terra que cerca e

cultiva, enquanto todos os campos ao redor são deixados sem cultivo, como

terras devolutas. A vinha do Senhor, era a casa de Israel (Is 5.7).

E nós, não temos nenhum privilégio? Sem dúvida, temos muitos.

Temos a Bíblia, e a liberdade, cada um de nós, para a ler. Temos o

evangelho e a permissão de escutar e crer. Dispomos de abundantes

misericórdias espirituais, acerca das quais bilhões de homens nada sabem.

Quão agradecidos deveríamos ser! O mais pobre entre nós pode dizer, cada

manhã: “Há bilhões de almas imortais que estão em pior situação do que eu.

Quem sou eu para ser diferente? Bendize ao Senhor, ó minha alma!”

Em seguida, percebemos como as nações fazem mau uso dos pri-

vilégios de que dispõem. Quando o Senhor separou os israelitas dentre os

outros povos, Ele tinha o direito de esperar que eles o serviriam e

obedeceriam às suas leis. Quando um homem cultiva uma vinha, tem o

direito de esperar frutos. Mas Israel não retribuiu adequadamente todas as

misericórdias divinas. Eles se misturaram com os pagãos e aprenderam

caminhos pecaminosos. Eles se endureceram no pecado e na incredulidade.

Voltaram-se para os ídolos. Não guardaram as ordenanças de Deus.

Desprezaram o templo de Deus. Recusaram-se a ouvir os profetas de Deus.

Maltrataram aqueles a quem Deus enviou para chamá-los ao

arrependimento. E, finalmente, levaram a sua iniquidade

Page 183: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 21.33-46 183

a um ponto extremo, matando o próprio Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo.

E o que estamos nós fazendo com nossos privilégios? Esta é uma

pergunta muita séria, e que deveria nos fazer refletir. É de temer que nossa

nação não esteja vivendo de acordo com a luz e as muitas misericórdias que

já temos recebido. Devemos confessar, envergonhados, que milhões dentre

nós parecem estar vivendo total mente sem Deus neste mundo. Devemos

reconhecer que em muitas cidades e povoados Cristo parece não ter

nenhum discípulo, e parece não haver ninguém que creia na Bíblia. É inútil

cerrarmos os olhos diante desses fatos. O fruto que o Senhor está

recebendo de sua vinha, em nosso país, comparado com o que deveria ser,

é desgraçadamente pequeno. Temos razões para pensar que somos tão

provocativos quanto os judeus, aos olhos do Senhor.

Em seguida, vemos o terrível acerto de contas que Deus às vezes faz

com nações e igrejas que fazem mau uso de seus privilégios. Chegou,

finalmente, o tempo em que a longanimidade de Deus para com o seu povo

se esgotou. Quarenta anos após a morte de nosso Senhor, o cálice das suas

iniqüidades transbordou, e eles receberam um pesado castigo por seus

muitos pecados. Jerusalém, a cidade santa foi destruída. O templo foi

queimado. Eles mesmos foram espalhados por toda a face da terra. O reino

de Deus foi tirado e entregue a um povo que lhe produzisse os respectivos

frutos.

Será que o mesmo acontecerá conosco? Virão os juízos de Deus

sobre esta nação, por causa de sua infidelidade em face de tantas mi-

sericórdias? Quem pode dizer?! Só podemos afirmar aquilo que disse o

profeta: “Tu, ó Senhor, o sabes” (Jr 15.15). Porém, sabemos que o

julgamento tem sobrevindo a muitas igrejas e nações, nos últimos mil e

novecentos anos. O reino de Deus foi tirado das igrejas cristãs no norte da

África. O poder do islamismo tomou o lugar da maior parte das antigas

igrejas cristãs no Oriente. Por isso, convém que todos os crentes

intercedam insistentemente em favor de nosso país. Nada ofende tanto a

Deus quanto a negligência em relação aos nossos privilégios. Muito nos

tem sido dado, e muito nos será requerido.

Em último lugar, vemos o poder da consciência, mesmo sobre os ímpios. Os principais

sacerdotes e anciãos descobriram, por fim, que a parábola de nosso Senhor visava

especial mente a eles. Aquelas últimas palavras tinham sido cortantes demais para

não serem perce- , bidas. Eles “entenderam que era a respeito deles que Jesus

falava”.

Em cada congregação há muitos ouvintes do evangelho que se j

encontram exatamente nas mesmas condições desses infelizes judeus. j Eles

sabem que é verdade aquilo que ouvem, domingo após domingo,

í Eles sabem que estão errados, e sabem que cada sermão os condena

1

Page 184: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

184 Mateus 21.33-46

ainda mais. Contudo não têm a vontade e nem a coragem de reconhecer

isso. São por demais orgulhosos e muito amigos do mundo para confessar

os erros passados, tomar a cruz e seguir a Cristo! Que nós tomemos

precaução contra esse horrendo estado mental. O dia final proverá que

houve muito mais consciências perturbadas entre ouvintes do que jamais

desconfiaram os pregadores. Haverá milhares e milhares de pecadores que,

como os principais dos sacerdotes judeus, foram condenados pela própria

consciência, mas que, mesmo assim, morreram sem se converter.

A Parábola das Bodas Leia Mateus 22.1-14

A parábola relatada nestes versículos tem uma significação muito

ampla. Em sua aplicação primária, inquestionavelmente ela aponta para os

judeus. Porém, não podemos limitá-la somente a eles, pois esta parábola

contém lições que perscrutam o coração, para todos quantos o evangelho é

pregado. Ela é um quadro espiritual que ainda hoje fala conosco, se é que

temos ouvidos para ouvir. A observação de Olshau- sen é sábia e verídica:

“As parábolas são como pedras preciosas de múltiplas facetas, cortadas de

modo a lançar o seu brilho em mais de uma direção“.

Observemos, em primeiro lugar, que a salvação anunciada no

evangelho é comparada a uma festa de casamento. O Senhor Jesus nos fala de

“um rei que celebrou as bodas de seu filho”.

Existe no evangelho uma provisão completa para todas as neces-

sidades da alma humana. Há um suprimento de tudo quanto se requer para

aliviar a fome e sede espiritual. Perdão, paz com Deus, uma viva esperança

neste mundo, glória no mundo vindouro, são bênçãos retratadas diante dos

nossos olhos em rica abundância. Trata-se de “um banquete de cousas

gordurosas” (Is 25.6). Toda esta provisão é devida ao amor manifestado

pelo Filho de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor. Ele deseja nos unir a si

mesmo, restaurar-nos à família de Deus como filhos queridos, vestir-nos

com a sua própria justiça, dar-nos uma posição em seu reinado e nos

apresentar inculpáveis perante o trono de seu Pai, no último dia. O

evangelho, em suma, é uma oferta de pão para o faminto, de alegria para o

triste, de um lar para o desprezado, de um amigo para o perdido. O

evangelho é boas novas. Deus oferece identificar-se com o homem

pecador, mediante seu Filho querido. Jamais nos esqueçamos: “Nisto

consiste o amor, não em que nós tenhamos

Page 185: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 22.1-14 185

amacio a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1 Jo 4,10).

Em segundo lugar, tomemos nota do fato que os convites do evangelho

são amplos, plenos, generosos e ilimitados. Nesta parábola, o Senhor Jesus nos

conta que os servos disseram aos convidados: “Tudo está pronto; vinde para

as bodas”. Da parte de Deus nâo há nada faltando para a salvação da alma

dos pecadores. Ninguém jamais poderá dizer, no ftm, que foi por culpa de

Deus que não se salvou. O Pai está pronto para amar e acolher. O Filho está

pronto para perdoar e limpar de toda culpa. O Espírito está pronto para

santificar e renovar. Os anjos estão prontos para se regozijarem ante cada

pecador que retorna ao caminho reto. A graça está pronta para assisti-lo. A

Bíblia está pronta para instruí-lo. O céu está pronto para ser o seu lar eterno.

Só uma coisa é necessária: que o próprio pecador esteja desejoso de ser

salvo. Que isso, também, jamais seja esquecido. Que não fiquemos

debatendo e perdendo-nos em minúcias acerca deste assunto tão simples.

Deus sempre será achado inocente do sangue de todas as almas perdidas. O

evangelho sempre fala dos pecadores como seres responsáveis e que terão

de prestar contas a Deus. O evangelho coloca uma porta aberta diante de

toda a humanidade. Ninguém está excluído desse convite universal.

Embora eficaz somente para os que crêem, ele é suficiente para a

humanidade inteira. Embora poucos são os que entram pela porta estreita,

todos são igualmente convidados a entrar por ela.

Em terceiro lugar, notemos que a salvação oferecida pelo evangelho é

rejeitada por muitos daqueles a quem ela é oferecida. O Senhor Jesus nos conta que os convidados, chamados pelos servos do rei, “não se importaram e se foram”,

Há milhares de ouvintes do evangelho que em nada se beneficiam

dele. Eles ouvem a pregação domingo após domingo, ano após ano, mas

não crêem para a salvação de sua alma. Eles não sentem qualquer

necessidade especial do evangelho. Não vêem qualquer beleza especial

nele. Talvez não cheguem a odiar, nem a se opor, nem façam oposição ao

evangelho. Porém, não o recebem no coração. Há outras coisas de que eles

gostam muito mais. Seu dinheiro, suas terras, seus negócios e seus prazeres

são todos assuntos muito mais interessantes para eles do que a salvação da

alma. Esse é um estado mental deplorável, porém horrivelmente comum.

Que nós examinemos o nosso próprio coração, e tomemos o cuidado de que

esse não seja também o nosso. O pecado notório pode matar os seus

milhares, mas a indiferença e a negligência ao evangelho matam os seus dez

milhares. Multidões se verão no inferno, nâo tanto porque desobedeceram

abertamente aos dez mandamentos, mas porque fizeram pouco caso da

verdade.

Page 186: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

186 Mateus 22.1-14

Cristo morreu por eles na cruz, mas eles O negligenciaram.

Em último lugar, observemos que todos quantos professam falsamente

a religião cristã serão detectados, desmascarados e condenados eternamente, no

último dia. O Senhor Jesus nos conta que, quando ft- nalmente chegaram os

convidados para as bodas, o rei entrou para ver os que estavam às mesas, e

“notou ali um homem que não trazia veste nupcial”. O rei perguntou ao

homem como este havia entrado, vestido impropriamente, mas não obteve

qualquer resposta. Ordenou então o rei a seus servos: “Amarrai-o de pés e

mãos, e lançai-o para fora, nas trevas ‟ ‟.

Sempre haverá alguns falsos membros na igreja de Cristo, enquanto

o mundo existir. Nesta parábola, segundo disse Quesnel, “Um único

expulso representa todos os demais que serão expulsos”. É impossível

lermos os corações dos homens. Enganadores e hipócritas nunca serão

totalmente excluídos do meio dos verdadeiros cristãos. Desde que uma

pessoa professe obediência ao evangelho e viva uma vida externamente

correta, não ousamos afirmar categoricamente que tal pessoa não esteja

justificada por Cristo. Entretanto, não haverá qualquer dúvida, no dia do

juízo. O olho infalível de Deus irá discernir quem é do seu povo e quem

não é. Coisa alguma, senão a fé verdadeira, será capaz de subsistir ao fogo

do julgamento. Todo e qualquer cristianismo espúrio será pesado na

balança e achado em falta. Ninguém, senão os verdadeiros cremes,

participará da ceia das bodas do Cordeiro. Ao hipócrita de nada valerá ter

falado muito sobre religião e ter tido a reputação de ser um cristão

eminente entre os homens. O seu triunfo não perdurará. Ele será despido

de toda a sua plumagem emprestada, e ficará nú e trêmulo perante o

tribunal de Deus — mudo, condenado por si mesmo, sem esperança e sem

salvação. Ele será lançado nas trevas exteriores, em opróbrio, colhendo

assim aquilo que semeou em vida. O Senhor Jesus disse que “ali haverá

choro e ranger de dentes”.

Que nós aprendamos sabedoria através dos quadros desta parábola,

e sejamos diligentes em procurar confirmar a nossa vocação e eleição (1

Pe 1.10). A nós, também, é dito: “Tudo está pronto; vinde para as bodas”.

Tenhamos cuidado de não recusar ao que fala (Hb 12,25). Não durmamos

como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios (1 Ts 5.6), O

tempo urge. O Rei em breve entrará para ver os convidados. Já recebemos

ou não a veste nupcial? Já nos revestimos de Cristo? Essa é a grande

indagação levantada por esta parábola. Que jamais descansemos enquanto

não pudermos dar uma resposta satisfatória a essa pergunta. Que estas

palavras soem diariamente em nossos ouvidos, e nos sondem o coração: “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.

Page 187: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 22.15-22 187

Os Fariseus e a Questão do Tributo Leia Mateus 22.15-22

Nesta passagem, encontramos o primeiro de uma série de ataques

sutis desfechados contra nosso Senhor nos últimos dias de seu ministério

terrestre. Seus adversários mortíferos, os fariseus, notaram a imensa

influencia que Ele estava obtendo, tanto por seus milagres quanto por sua

pregação. Eles estavam determinados a silenciá-Lo ou a tirar-Lhe a vida.

Por esse motivo, procuravam “como o surpreenderiam em alguma

palavra*‟. Eles lhe enviaram discípulos juntamente com os herodianos, com

o propósito de apanhá-Lo em perguntas difíceis. Desejavam encurralá-Lo

para que dissesse algo que servisse de motivo para uma acusação. Mas o

esquema, conforme somos informados nestes versículos, falhou

completamente. O movimento resultou em nada, e retiraram-se em

confusão.

A primeira coisa que nos chama a atenção, nestes versículos, é a

linguagem bajuladora com a qual nosso Senhor foi abordado por seus

adversários. Disseram-Lhe: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que

ensinas o caminho de Deus, de acordo com a verdade, sem te importares

com quem quer que seja, porque não olhas a aparência dos homens”. Como

aqueles fariseus e herodianos falavam bem! Que palavras lisonjeiras e

doces! Eles pensaram, sem dúvida, que com boas palavras e belos

discursos conseguiriam fazer nosso Senhor descuidar-se do que dizia.

Deles bem se poderia dizer: “A sua boca era mais macia que a manteiga,

porém no coração havia guerra; as suas palavras eram mais brandas que o

azeite, contudo eram espadas desembainhadas” (SI 55.21).

Convém que todos os crentes estejam em guarda contra a bajulação.

Estamos grandemente enganados se supomos que as únicas armas no

arsenal de Satanás são a perseguição e os maus tratos. Esse inimigo

engenhoso dispõe de outros dispositivos para nos prejudicar, os quais ele

sabe manejar muito bem. Ele sabe como envenenar almas mediante a

gentileza sedutora deste mundo, sempre que não consegue amedrontá- -las

por meio do dardo inflamado e da espada. Não sejamos ignorantes quanto a

seus artifícios. É mediante uma paz fingida que ele destrói a muitos.

Nós tendemos demais por esquecer desta verdade, Negligenciamos

os muitos exemplos que Deus nos deu nas Escrituras para nosso

aprendizado. O que levou Sansão à derrota? Não foram os exércitos dos

filisteus, e, sim, o amor fingido de uma mulher filisteia. O que levou

Salomão a desviar-se? Não foi a força de inimigos externos, c.

Page 188: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

188 Mateus 22.15-22

sim, a adulação de suas numerosas esposas. Qual foi a causa do maior erro

do rei Ezequias? Não foi a espada de Senaqueribe nem as ameaças de

Rabsaqué, e, sim, as lisonjas dos embaixadores da Babilônia.

Lembremo-nos dessas coisas e estejamos em guarda. Com frequência, a

paz arruina mais as nações do que a guerra. As coisas doces causam muito

mais doenças do que as coisas amargas. O calor leva o soldado a tirar a sua

armadura com mais rapidez do que o vento polar. Tomemos precaução

contra os bajuladores! Satanás nunca é tão perigoso como quando aparece

como anjo de luz. O mundo nunca nos é tão perigoso como quando nos

sorri. Quando Judas traiu ao Senhor, fê-lo com um beijo. O crente que é

imune à desaprovação do mundo, faz bem; mas o crente que é imune à

bajulação do mundo, este faz melhor.

A segunda coisa que nos chama a atenção, nestes versículos, é a

maravilhosa sabedoria da resposta que nosso Senhor deu aos seus inimigos. Os

fariseus e herodianos perguntaram se era legítimo pagar tributo a César ou

não. Eles, sem dúvida, pensaram ter apresentado uma pergunta que nosso

Senhor não poderia responder sem lhes dar um ponto de vantagem. Se Ele

simplesmente respondesse que era legítimo pagar tributo, eles o teriam

denunciado ao povo como quem desonrava os privilégios de Israel, e que

não considerava os filhos de Abraão como homens livres, e, sim, como um

povo sujeito a uma potência estrangeira. Por outro lado, se Ele

respondesse que não era legítimo pagar tributos, eles o teriam denunciado

aos romanos como um instigador de sedições e um rebelde contra César,

que se recusava a pagar os tributos. Entretanto, a conduta habilidosa de

nosso Senhor deixou seus adversários totalmente desconcertados. Ele pede

para ver o dinheiro do tributo e pergunta de quem é a efígie na moeda, “De

César”, respondem, Usuários daquele dinheiro, com a efígie e inscrição de

César, eles reconheciam que César tinha autoridade sobre eles, visto que a

moeda corrente é cunhada pelos governantes da terra onde ela vigora. Em

seguida, eles receberam uma resposta conclusiva e irrefutável: “Dai, pois,

a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

O princípio estabelecido nestas bem conhecidas palavras reveste-

-se de profunda importância. Há uma obediência que todo crente deve ao

governo civil da nação da qual é cidadão, em todas as questões que não

sejam de natureza puramente espiritual. Ele pode não aprovar todos os

requerimentos desse governo civil, mas deve submeter-se às leis da comunidade enquanto vigorarem. É preciso “dar a César o que é de César”.

Mas há também uma obediência que o crente deve ao Deus da Bíblia, em todas as questões que sejam puramente espirituais. Nenhuma

peida material, nenhuma inabilidade civil, nem qualquer desprazer das

Page 189: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 22.15-22 189

autoridades que existem, deveria jamais tentar um crente a fazer coisas que

as Escrituras claramente proíbem. A situação pode ser muito difícil . Ele

pode ter de sofrer muitas coisas por motivo de consciência. Mas ele jamais

deve fugir dos requisitos inequívocos das Escrituras. Se César cunha um

novo evangelho, este novo evangelho não deve ser obedecido. Devemos

dar “a Deus o que é de Deus".

Este é inquestionavelmente um assunto de grande dificuldade e

delicadeza. É certo que a igreja não deve tentar abarcar o Estado. Também

é certo que o Estado não deve tentar engolfar a igreja. Talvez nenhum outro

assunto tem causado tanta provação para homens conscienciosos; talvez

nenhum outro assunto tem causado tanta divergência entre homens de bem,

quanto o problema de se determinar onde terminam as coisas "de César", e

onde começam as "coisas de Deus". De um lado, o poder civil tem muitas

vezes usurpado terrivelmente os direitos de consciência (como sofreram os

puritanos durante a infeliz dinastia Stuart, na Inglaterra). De sua parte, o

poder eclesiástico tem freqüentemente estendido as suas reivindicações, de

modo extravagante, ao ponto de tomar em suas mãos o cetro de César

(como fez a igreja romana no passado). Para que possa fazer um correto

julgamento sobre todas as questões dessa natureza, cada verdadeiro crente

deveria orar constantemente, pedindo a sabedoria que vem do alto. A

pessoa sincera, que diariamente busca a graça divina e o bom senso, nunca

errará gravemente, porquanto Deus não o permitirá.

Os Saduceus e a Questão da Ressurreição

Leia Mateus 22,23-33

Esta passagem descreve uma conversa entre nosso Senhor Jesus

Cristo e os saduceus. Esses homens infelizes que afirmavam "não haver

ressurreição , como os fariseus e herodianos, tentaram embaraçar nosso

Senhor com questões difíceis. Eles, também, procuravam como o

surpreenderiam em alguma palavra", e como manchariam a reputação dEle

entre o povo. Porém, tal como os fariseus, eles também ficaram

inteiramente frustrados.

Em primeiro lugar, observemos que objeções absurdas e céticas às

verdades bíblicas são um fenômeno antigo. Os saduceus desejavam

demonstrar o absurdo da doutrina da ressurreição e da vida futura. Por isso,

vieram até nosso Senhor com uma história que provavelmente foi

inventada para a ocasião. Disseram-lhe que certa mulher havia se casado

com sete irmãos sucessivamente, todos os quais morreram sem

Page 190: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

190 Mateus 22.23-33

deixar filhos. Então, perguntaram de quem ela seria esposa no mundo por

vir, quando todos ressuscitassem... O objetivo da pergunta era claro e

transparente. Na realidade, o que eles queriam mesmo era lançar a doutrina

da ressurreição no ridículo. Queriam insinuar que a ressurreição traria

muita confusão e contendas e uma desordem inconveniente se após a morte

homens e mulheres houvessem de reviver.

Nunca nos deveríamos surpreender se chegarmos a encontrar se-

melhantes objeções contra as doutrinas bíblicas, especialmente aquelas

doutrinas que dizem respeito ao outro mundo. Provavelmente nunca faltará

homens irracionais, ocupando-se de coisas que se não vêem e criando

dificuldades imaginárias a fira de desculpar a sua própria incredulidade.

Casos supostos são uma das estratégias favoritas em que as mentes

incrédulas gostam de se firmar. A pessoa, muitas vezes, cria uma sombra

imaginária em sua mente e passa a lutar contra ela, como se essa sombra

representasse a verdade real. Tal mentalidade geralmente se recusará a

olhar para a avassaladora massa de evidências claras em que se alicerça o

cristianismo, e irá agarrar-se a única dificuldade, que, para ela, parece

insolucionável. O falar e os argumentos de pessoas assim jamais deveriam

abalar nossa fé, nem por um momento. Primeiro, devemos lembrar que a

religião cristã forçosamente envolve verdades profundas e misteriosas, e

até uma criança pode formular perguntas que o maior dos filósofos não é

capaz de responder. Depois, precisamos lembrar-nos de que há incontáveis

verdades na Bíblia que são claras e inequívocas. São a essas verdades que

devemos atentar em primeiro lugar, crendo e obedecendo. Se assim

fizermos, podemos ter certeza de que muitas das coisas que agora são

ininteligíveis, ainda hão de ser desvendadas. Podemos ter a certeza de que,

o que nlo o sabemos agora, compreendê-lo-emos depois (Jo 13.7).

Em segundo lugar, observemos que texto notável nosso Senhor

apresenta como prova da realidade de uma vida futura. Ele apresenta aos

saduceus as palavras que Deus falou a Moisés desde a sarça ardente: “Eu

sou o Deus de Abraão, o Deus de ísaque e o Deus de Jacó‟ ‟ (Êx 3.6). E

Jesus ainda acrescenta que “Ele não é Deus de mortos, e, sim, de vivos”.

Ora, no tempo em que Moisés ouviu aquelas palavras, Abraão, Isaque e

Jacó já estavam mortos sepultados por muitos anos. Dois séculos tinham-se

passado desde que Jacó, o último dos três, tinha sido sepultado. Não

obstante, Deus falou a respeito deles como ainda sendo seu povo, e acerca

de Si mesmo como ainda sendo o Deus deles. Ele não disse: “eu era o Deus

de Abraão...” e, sim, “Eu sou'\

É possível que por muitas vezes nos sintamos tentados a duvidar das

verdades da ressurreição e da vida futura. Infelizmente, é fácil aceitar uma

verdade apenas teoricamente, sem compreender as suas impli-

Page 191: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 22.23-33 191

cações práticas. Que nos conscientizemos de que os mortos ainda estão

vivos. Eles desapareceram de diante dos nossos olhos e já não habitam

neste mundo. Mas aos olhos de Deus eles estão vivos e um dia deixarão a

sepultura para receber uma sentença eterna. Não existe aniquilamento; tal

idéia não passa de uma miserável ilusão. Sol, lua, e estrelas, as montanhas

rochosas e o mar profundo algum dia serão reduzidos a nada. Porém, a

criancinha mais fraca e pobre do mundo haverá de viver para todo o

sempre no mundo vindouro. Que jamais nos esqueçamos disso! Feliz é

quem pode dizer de coração o que o credo niceno afirma: “Espero pela

ressurreição dos mortos, e pela vida no mundo vindouro”.

Observemos, por fim, o relato que nosso Senhor dá acerca da situação

de homens e mulheres, após a ressurreição. Ele silencia as objeções

fantasiosas dos saduceus demonstrando que eles estavam totalmente

equivocados quanto ao verdadeiro caráter do estado ressurreto. Eles

supunham que a ressurreição tem de ser, necessariamente, uma existência

carnal, grosseira, como a que a humanidade vive aqui na terra. Entretanto,

nosso Senhor lhes diz que no mundo vindouro receberemos um corpo real

e material, mas de constituição inteiramente diferente e com necessidades

muito diversas das que temos agora. Lembremo- -nos de que Jesus falou

somente a respeito dos salvos; ele deixou de mencionar o estado dos

perdidos. Jesus afirma: “Porque na ressurreição nem casam nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos no céu”.

Conhecemos extremamente pouco sobre a vida futura no céu. E

possível que nossas idéias mais claras sobre o céu sejam aquelas tiradas da

consideração daquilo que o céu não será. Será um estado em que nunca

mais teremos nem fome nem sede. Enfermidades, dor e doenças não serão

conhecidas. Debilitamento, velhice e morte não terão lugar. Casamentos,

nascimentos e uma constante sucessão de habitan- tes, já não serão mais

necessários. Os que uma vez forem admitidos ao céu lá haverão de habitar

para sempre. E, passando para os aspectos afirmativos, é-nos dito

claramente que seremos “como os anjos no céu”. A exemplo deles,

serviremos a Deus de uma maneira perfeita, sem qualquer cansaço. Tal

como eles, estaremos para sempre na presença de Deus. Como eles, o

nosso deleite sempre será cumprir a vontade do Senhor. E, como eles,

daremos toda a glória ao Cordeiro. Todas estas são coisas muito

profundas, mas todas são verdadeiras.

Estamos preparados para essa vida? Se admitidos ao céu, será que apreciaríamos essa vida? A companhia e o serviço de Deus seriam agradáveis para nós? A ocupação dos anjos seria uma ocupação em que nos deleitássemos?

Estas sao perguntas solenes. Se esperamos ir para o céu quando

Page 192: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

192 Mateus 22.23-33

ressuscitarmos no outro mundo, nosso coração deve ser celestial desde

agora, quando vivemos nesta terra (Cl 3.1-4).

A Questão do Grande Mandamento;

A Pergunta de Cristo a Seus Inimigos Leia Mateus 22.34-46

No começo desta passagem, encontramos nosso Senhor respon-

dendo à pergunta de um intérprete da lei, que lhe havia indagado qual era

“o grande mandamento na lei”. A pergunta não fora feita com espírito

amigável. Porém, temos razões para agradecer que ela tenha sido feita,

porque provocou da parte de nosso Senhor uma resposta cheia de

preciosas instruções. Vemos que o bem pode derivar-se até do raal.

Destaquemos quão admirável sumário estes versículos contêm, acerca

do nosso dever para com Deus e com o próximo. Jesus diz: „ „Amarás o

Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu

entendimento”. Ele diz, outra vez: “Amarás o teu próximo como a ti

mesmo”. E acrescenta: “Destes dois mandamentos dependem toda a lei e

os profetas”.

Que simples são essas duas regras; e, no entanto, quão abrangentes!

São compostas de poucas palavras, mas contêm um profundo significado!

Que humilhadoras e condenadoras elas são! Como elas demonstram a

nossa necessidade diária de receber misericórdia e a expiação no precioso

sangue de Cristo! Feliz seria a humanidade se estas regras fossem melhor

conhecidas e melhor praticadas!

O amor é o grande segredo da verdadeira obediência a Deus.

Quando sentirmos em relação a Ele o que as crianças sentem em relação a

um pai querido, então nos deleitaremos em cumprir a sua vontade. Então

os seus mandamentos não serão penosos, e não trabalharemos para Ele

como se fôssemos escravos, com medo do açoite. Teremos prazer em

procurar observar as suas leis, e lamentaremos quando as transgredirmos.

Ninguém trabalha tão bem quanto os que trabalham por amor. O temor ao

castigo ou desejo de uma recompensa são princípios de muito menor

motivação. Cumprem melhor a vontade de Deus aqueles que a fazem de

coração. Gostaríamos de treinar corretamente as crianças? Nesse caso, que

as ensinemos a amar a Deus.

O amor é o grande segredo da reta conduta para com os nossos

semelhantes. Aquele que ama ao próximo recusará fazer-lhe qualquer

dano proposital, seja em sua pessoa, caráter ou propriedade. Contudo, não

parará aí. Em todos os sentidos desejará fazer-lhe o bem. De todos

Page 193: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 22.34-46 193

os meios promoverá o seu conforto e felicidade. Procurará aliviar suas

tristezas e fomentar as suas alegrias. Se alguém ama, sentimos confiança

nessa pessoa. Sabemos que ela jamais nos fará mal intencional mente, e que

em todo tempo de necessidade será nossa amiga. Gostaríamos de ensinar as

crianças a se comportarem corretamente para com outras pessoas? Então,

devemos ensiná-las a amar a todos como a si mesmas, e fazer aos outros

aquilo que gostariam que os outros lhes fizessem.

Porém, como obteremos esse amor a Deus? Ele não é um sentimento

natural. Já nascemos pecadores e, como pecadores, temos medo de Deus.

Como, então, podemos amá-Lo? Jamais poderemos amar realmente a Deus

enquanto não estivermos em paz com Ele, por intermédio de Cristo.

Quando soubermos que nossos pecados estão perdoados, e que nós mesmos

estamos reconciliados com nosso santo Criador, então, e só então,

haveremos de amá-Lo, e teremos em nós o espírito filial de adoção. A fé em

Cristo é a verdadeira fonte do amor a Deus. Ama mais quem mais sente o

quanto lhe foi perdoado. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1

Jo 4.19).

E como podemos obter esse amor para com o próximo? Esse

também não é um sentimento natural. Já nascemos egoístas, odiosos e

odiando-nos uns aos outros (Tt 3.3). Jamais amaremos corretamente o

nosso próximo enquanto nosso coração não for transformado pelo Espírito

Santo. Precisamos nascer de novo. Precisamos despir-nos do velho homem,

revestir-nos do novo homem e receber a mente de Cristo. Então, e só então,

nosso coração insensível conhecerá o verdadeiro amor que vem de Deus e se estende a todos. O fruto do Espírito é amor (G1 5.22).

Que possamos entesourar estas verdades no coração. Nos dias em

que vivemos há muita conversa vaga acerca do amor e da caridade. Os

homens asseveram que admiram essas qualidades e que gostariam de vê-las

cultivadas; e, no entanto, odeiam os únicos princípios capazes de promover

tais virtudes. Permaneçamos nas veredas antigas. Não teremos frutos nem

flores, se não tivermos raízes. Não poderemos ter amor a Deus e aos

homens sem a fé em Cristo e sem a regeneração. A maneira certa de se

ensinar o verdadeiro amor neste mundo consiste em ensinar sobre a expiação de Cristo e sobre as operações do Espírito Santo em nossas almas.

A conclusão desta passagem contém uma pergunta de nosso Senhor

aos fariseus. Após haver respondido com sabedoria perfeita às indagações

de seus adversários, por fim Ele também lhes dirige uma pergunta: “Que

pensais vós do Cristo? de quem é filho?” E eles respondem imediatamente:

“De Davi”. Jesus então lhes pede que expliquem porque Davi, no livro de

Salmos, o chama de Senhor (SI 110.1), “Se

Page 194: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

194 Mateus 22.34-46

Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” Imediatamente, os

inimigos foram silenciados: “ninguém podia responder palavra”.

Os escribas e os fariseus, sem dúvida, estavam familiarizados com o

salmo citado, mas não eram capazes de explicar a sua aplicação. Ele só

podia ser explicado mediante o reconhecimento da preexistência e da

divindade do Messias. E isto era algo que os fariseus não estariam dispostos

a admitir. A única idéia com que podiam conceber o Messias era a de que

Ele seria um homem qualquer, semelhante a eles mesmos. Assim, e de uma

só vez, ficaram expostas a visão baixa, carnal, que esses homens tinham

acerca da verdadeira natureza do Cristo, bem como a sua ignorância das

Escrituras, as quais eles julgavam conhecer mais do que os outros homens.

E Mateus pôde escrever, guiado pelo Espírito Santo: “nem ousou alguém, a

partir daquele dia, fazer-lhe perguntas”.

Não deixemos para trás estes versículos, sem fazermos um uso prá-

tico da solene pergunta de nosso Senhor: “Que pensais vós do Cristo?” O

que pensamos de sua Pessoa e ofícios? O que pensamos de sua vida, e o que

pensamos de sua morte por nós, na cruz? O que pensamos de sua

ressurreição, ascenção e intercessão por nós, à direita de Deus? Já temos

experiência de que Ele é gracioso? Já nos apegamos a Ele por meio da fé? Já

descobrimos, por experiência, que Ele é precioso para nossa alma? Será que

podemos verdadeiramente dizer: Ele é meu Redentor e meu Salvador, meu

Pastor e meu Amigo?

Estas são perguntas muito sérias. Que não descansamos enquanto

não pudermos dar a elas uma resposta satisfatória! De nada nos aproveitará

ler a respeito de Cristo, se não formos unidos a Ele mediante uma fé viva.

Uma vez mais, pois, façamos um teste de nossa religião, perguntando “Que

pensais vós do Cristo?”

Advertência Contra o Ensino dos

Escribas e Fariseus Leia Mateus 23.1-12

Estamos dando início a um capítulo que, em certo sentido, é o mais

marcante em todos os quatro evangelhos. Contém as últimas palavras que o

Senhor Jesus falou dentro das muralhas do templo. São palavras que

consistem de uma desmanteladora exposição dos fariseus e escribas, e uma

contundente reprimenda às suas doutrinas e práticas. Tendo pleno

conhecimento de que o seu tempo sobre a terra estava chegando ao fim,

nosso Senhor já não deixa de tornar pública a sua opinião acerca dos

principais mestres da nação judaica. Sabendo que em breve

Page 195: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 23.1-12 195

deixaria de estar com seus seguidores, e que estes ficariam como ovelhas

entre lobos, Jesus os adverte claramente a respeito dos falsos pastores por

quem estavam cercados.

O capítulo inteiro é um sinal marcante de firmeza e fidelidade na

denúncia do erro. É uma prova contundente de que mesmo o coração mais

amoroso pode usar uma linguagem que transmita a mais severa repreensão.

Acima de tudo, este capítulo é uma tremenda evidência da culpa em que

incorrem os mestres infiéis. Este capítulo deve ser uma advertência e um

farol para todos os ministros religiosos, enquanto houver mundo. Aos olhos

de Cristo, nenhum pecado é tão maligno quanto os pecados desses falsos

mestres.

Nos doze versículos que iniciam este capítulo vemos, em primeiro

lugar, o dever de fazermos uma distinção entre o ofício de um mestre e o exemplo

pessoal desse mestre. Os escribas e fariseus se assentaram na cadeira de

Moisés”. Fiéis ou infiéis, o fato é que eles ocupavam a posição de mestres

públicos principais da religião judaica. Embora preenchessem de modo

indigno essa posição de autoridade, o seu ofício lhes conferia respeito.

Porém, enquanto que o ofício deveria ser respeitado, o mau exemplo de

vida daqueles mestres não deveria ser imitado. Os ensinamentos deviam

ser observados até onde tivessem o respaldo das Escrituras; mas não

deveriam ser obedecidos se entrassem em contradição com a Palavra de

Deus. Segundo palavras de Brentius, os escribas e fariseus „„deveriam ser

ouvidos enquanto estivessem ensinando o que Moisés ensinara”, e nada

além disso. Pelo teor inteiro do capítulo, evidencia-se que esse era o

pensamento de Jesus. São denunciadas nesta passagem tanto a falsa

doutrina quanto a falsa vida prática.

O dever que nos é aqui recomendado reveste-se de grande im-

portância. Existe na mente humana uma tendência constante de cair em

extremos. Se não consideramos o ofício de um ministro com veneração

idólatra, tendemos a tratá-lo com desprezo indecente. Precisamos manter-

-nos em guarda contra ambos os extremos. Por mais que desaprovemos os

procedimentos de um ministro do evangelho, ou por mais que discordemos

de seus ensinamentos, nunca nos deveríamos esquecer de respeitar o seu

ofício. Devemos mostrar que podemos honrar a comissão ministerial, não

importa o que pensemos sobre o ministro. É digno de nota o exemplo de

Paulo, em certa ocasião: “Não sabia, irmãos, que ele é sumo sacerdote;

porque está escrito: „Não falarás mal de uma autoridade do teu povo”‟ (At

23.5).

Nestes versículos percebemos, em segundo lugar, que a incon-

sistência, a ostentação e o amor à preeminência entre os cristãos, são atitudes

especialmente desagradáveis para Cristo. No tocante à inconsistência, é

notável que a primeiríssima coisa que nosso Senhor diz a

Page 196: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

196 Mateus 23.1-12

respeito dos fariseus, é: eles “dizem e não fazem“. Eles requeriam de

outros aquilo que eles mesmos não praticavam. Quanto à ostentação, nosso

Senhor declara que eles faziam todas as suas obras “com o fim de serem

vistos dos homens”. Eles tinham os seus filactérios, (ou tiras de

pergaminho com textos escritos, que muitos judeus usavam em seu

vestuário) feitos de tamanho exagerado. As “franjas” das vestes (que

Moisés havia ordenado para os israelitas como uma lembrança de Deus —

Nm 15.38) usavam-nas com uma largura extravagante. E tudo isso era

feito para chamar a atenção e fazer as pessoas pensarem quão santos eram

os escribas e fariseus. Quanto ao amor à preeminência, nosso Senhor nos

diz que os fariseus amavam ter “o primeiro lugar* * em público, e

gostavam de ser tratados mediante títulos lisonjeiros. Nosso Senhor,

entretanto, reprova todas as atitudes semelhantes. E Ele nos recomenda

que vigiemos e oremos, precavendo-nos contra tais atitudes. Esses são

pecados que arruinam a própria alma: “Como podeis crer, vós os que

aceitais glória uns dos outros, e contudo não procurais a glória que vem do

Deus único?” (Jo 5.44). Muito mais feliz teria sido a história da igreja

visível de Cristo se essa passagem tivesse sido mais profundamente

considerada e se o seu espírito tivesse sido mais implicitamente

obedecido. Os fariseus não são as únicas pessoas que têm imposto me-

didas austeras a outras pessoas, fingindo pelo seu traje possuir uma patente

santidade, ao mesmo tempo em que apreciam os elogios humanos. Os

anais da história eclasiástica mostram que um número muito grande de

cristãos tem seguido de perto àqueles religiosos. Lembremos disso e

sejamos sábios! É perfeitamente possível que um cidadão batizado de

nossos dias seja dotado de um espírito decididamente farisaico.

Em terceiro lugar, nestes versículos, vemos que os crentes jamais

devem dar a homem algum os títulos e honras que são devidos exclusivamente a

Deus e ao seu Cristo. Jesus disse: “A ninguém sobre a terra chameis vosso

pai”. A norma aqui estabelecida deve ser interpretada com a devida

restrição escriturística. Não somos proibidos de estimar grandemente e

amar os ministros do evangelho, por causa do trabalho que realizam (1 Ts

5.13). O próprio apóstolo Paulo, um dos mais humildes santos de Deus

chamou Tito de “verdadeiro filho segundo a fé” e disse aos coríntios: “eu

pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus” (1 Co 4.15). Mesmo assim,

devemos ter o cuidado de não dar insensatamente aos ministros um lugar e

honra que não lhes pertencem. Jamais devemos permitir que eles se

anteponham entre nós e Cristo. Mesmo os melhores dentre os melhores

não são infalíveis. Eles não são sacerdotes, que possam fazer expiação por

nós; não são mediadores, que possam cuidar dos interesses de nossa alma

diante de Deus. Eles são homens sujeitos às mesmas paixões que nós, e

que pre-

Page 197: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 23.1-12 197

cisam ser lavados no mesmo sangue expiatório de Cristo e precisam do

mesmo Espírito renovador; homens separados para um alto e santo

chamamento, mas, ainda, afinal de contas, apenas homens. Jamais nos

esqueçamos destas coisas. Tais medidas acauteladoras sempre nos serão

úteis. Pois a natureza humana sempre preferirá depender de algum ministro

do evangelho, que é visível, do que do Cristo invisível.

Em último lugar, vemos que não existe graça divina que devesse

distinguir o crente tanto quanto a humildade. Quem deseja ser grande aos

olhos de Cristo, deve ter um propósito inteiramente diferente daquele dos

fariseus. O alvo do crente não deve ser tanto mandar quanto servir à igreja.

Baxter disse muito bem: “Na igreja, a grandeza consiste em ser-se

grandemente prestativo”. O desejo dos fariseus era receberem honra e

serem chamados de “mestres‟O desejo do cristão deve ser o de fazer o

bem, e dar a si mesmo, e tudo quanto possua, para o serviço de outrem.

Sem dúvida, esse é um alvo elevado, mas jamais deveríamos nos contentar

com um padrão inferior. O exemplo de nosso bendito Senhor, e o

mandamento deixado nas epístolas dos apóstolos, ambos requerem de nós

que estejamos revestidos de humildade (1 Pe 5.5). Procuremos cultivar

essa graça bendita, dia a dia. Nenhuma outra virtude cristã é mais bela, por

mais que seja desprezada pelo mundo. Nenhuma dá tanta evidência da fé

salvadora e da verdadeira conversão a Deus. Nenhuma é tão

freqüentemente elogiada por nosso Senhor. Dentre todas as palavras de

Jesus, dificilmente encontraremos uma declaração que seja tão

constantemente repetida como esta, que encerra a passagem que estamos

lendo: “Quem a si mesmo se humilhar será exaltado”.

Oito Acusações Contra os Escribas e Fariseus

Leia Mateus 23.13-33

Nestes versículos temos as acusações de nosso Senhor contra os

mestres judeus, arranjadas em oito segmentos. Em pé, no templo, e

rodeado por uma multidão que o escutava, Jesus denuncia publicamente os

erros principais dos escribas e dos fariseus, sem poupar palavras. Oito

vezes Ele usa a solene expressão “ai de vós”. Sete vezes Ele os chama de

“hipócritas”. Por duas vezes os intitula de “guias cegos”. Duas vezes os

chama de “insensatos e cegos” e uma vez os intitula como “serpentes, raça

de víboras”.

Atentemos bem a essa linguagem. Ela nos ensina uma lição solene:

ensina-nos quão completamente abominável é, aos olhos de Deus, o

espírito de escribas e fariseus, não importa a forma em que se ma-

Page 198: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

198 Mateus 23.13-33

nifeste. Façamos um exame breve das oito acusações trazidas por nosso

Senhor e procuremos extrair da passagem inteira alguma instrução geral.

O primeiro aí nesta lista foi dirigido contra a sistemática oposição

dos escribas e fariseus ao progresso do evangelho. Eles “fechavam” o reino

dos céus diante dos homens. Nem eles mesmos entravam, nem deixavam

que outros entrassem. Tinham rejeitado a voz de João Batista, que os

advertia. Recusaram-se a reconhecer Jesus como Messias, quando Ele

apareceu. Eles procuravam tolher os judeus que se aproximavam de Jesus.

Eles mesmos não criam no evangelho, e faziam tudo para impedir que

outros cressem. Isso era um grande pecado.

O segundo aí na lista foi dirigido contra a cobiça e o espírito de

auto-engrandecimento dos escribas e fariseus. Eles “devoravam” as casas

das viúvas e, como justificativa, faziam “longas orações". Eles tiravam

proveito da credulidade de mulheres fracas e desprotegidas, mediante uma

simulação de devoção profunda, até que essas mulheres os considerassem

como guias espirituais. Não hesitavam em abusar dessa influência assim,

malvadamente conseguida, para obterem vantagens pessoais e fazer da

religião um motivo para ganhar dinheiro. Nova- raente, isso era um grande pecado.

O terceiro ai da lista é dirigido contra o zelo dos escribas e fariseus

na obtenção de partidários. Eles rodeavam “o mar e a terra para fazer um

prosélito‟ ‟. Trabalhavam incessantemente para que homens se

vinculassem ao seu partido e adotassem as suas opiniões. Faziam isso, não

com a finalidade de beneficiar almas ou trazê-las a Deus. Faziam tudo

somente com o intuito de engrossar as fileiras de sua seita e ganhar mais

prosélitos e maior importância. Aquele zelo religioso tinha por origem o

sentimento sectarista, e não o amor a Deus. Isso, também, era um grande pecado.

O quarto ai desta lista foi dirigido contra as doutrinas dos escribas e

fariseus a respeito de juramentos. Eles estabeleciam sutis distinções entre

um tipo de juramento e outro. Eles seguiam o mesmo ensino mais tarde

defendido pelos jesuítas de que alguns juramentos tinham de ser

cumpridos, outros não. Eles atribuíam maior importância aos juramentos

feitos “pelo ouro” oferecido ao templo do que aos juramentos “pelo

templo” propriamente dito. Dessa forma, desprezavam o terceiro man-

damento e, promoviam os seus próprios interesses quando faziam os

homens superestimarem o valor dos donativos e ofertas. Isso também era

um grande pecado.

O quinto ai foi dirigido contra a prática dos escribas e fariseus, de

exaltarem as coisas menos importantes acima das questões realmente

sérias da religião, pondo as últimas coisas em primeiro lugar, e as primeiras

por último. Assim, faziam grande questão de separar dízimo da

Page 199: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 23.13-33 199

hortelã, como se nunca fossem suficientemente estritos na observância da

lei de Deus. Não obstante, negligenciavam ao mesmo tempo grandes e

claros deveres morais, tais como a justiça, o amor e a honestidade. De

novo, isso era um grande pecado.

O sexto e o sétimo ais têm muito em comum para serem separados.

Eles foram dirigidos contra uma característica geral da religião dos

escribas. Para eles, a pureza exterior, e a decência, estavam acima da

santificação interior e da pureza de coração. Tinham como um dever

religioso limpar o exterior de copos e pratos, porém negligenciavam o seu

próprio homem interior. Eles eram como sepulcros caiados, limpos e belos

externamente, mas, por dentro, cheios de corrupção. Exteriormente,

pareciam justos, mas por dentro estavam cheios de hipocrisia e de

iniquidade. Esse, também, era um grande pecado.

O último ai dessa lista foi dirigido contra a veneração fingida que os

escribas e fariseus demonstravam pela memória dos santos já mortos. Eles

edificavam os sepulcros dos profetas e adornavam os túmulos dos justos.

No entanto, por sua própria vida, eles provavam ter a mesma mentalidade

daqueles que mataram os profetas. Pela sua própria conduta diária eles

davam evidência de que preferiam mais santos mortos do que santos vivos.

Os mesmos homens que fingiam honrar os profetas mortos, não viam qualquer beleza em um Cristo vivo. Isso também era um grande pecado.

Temos em tudo isso um quadro melancólico que nosso Senhor nos

dá acerca dos mestres judeus. Ele nos deveria fazer sentir tristeza e

humilhação, pois é uma temível exibição da anatomia mórbida da natureza

humana. É um quadro que, infelizmente, tem sido reproduzido muitas e

muitas vezes na história da igreja cristã. No caráter dos escribas e fariseus,

não há um único ponto em que não se possa verificar facilmente que

pessoas, auto-intituladas cristãs, têm com freqüência adotado o mesmo

procedimento.

Nesta passagem inteira podemos ver a deplorável situação espi-

ritual em que se achava a nação judaica, quando nosso Senhor estava sobre

a terra. Se assim eram os mestres, quão grande deve ter sido a escuridão

miserável dos que por eles eram ensinados! Verdadeiramente, a iniqüidade

de Israel havia atingido o seu ponto máximo. Já era mais do que chegado o tempo de o Sol da Justiça aparecer e o evangelho ser pregado.

Com base em toda essa passagem, aprendemos quão abominável é

a hipocrisia aos olhos de Deus. Os escribas e fariseus não foram acusados

de serem ladrões ou assassinos, e, sim, de serem hipócritas desde o

âmago do ser. Sem importar o que mais sejamos em nossa religião cristã,

tomemos a firme resolução de que jamais usaremos de uma capa

Page 200: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

200 Mateus 23.13-33

de disfarce. Que em tudo sejamos honestos e reais.

Aprendamos, mediante toda esta passagem, quão terrivelmente

perigosa é a posição de um ministro infiel. Já é bastante ruim sermos cegos

nós mesmos; é mil vezes pior ser um guia cego. Dentre todos os homens,

ninguém é tão iniquamente culpado como um ministro não- -convertido, e

ninguém será julgado com tanta severidade. Há um ditado solene que se

refere a esse tipo de pastor: „ „Ele assemelha-se a um navegador

incompetente — não naufraga sozinho”.

Finalmente, devemos ter o cuidado de não supor, com base nesta

passagem, que o mais seguro, em se tratando de religião, é não declarar

religião alguma. Isso equivale a cair em um extremo perigoso. Somente

porque alguns homens são hipócritas, isso não significa que não exista a

verdadeira profissão cristã. Nem todo dinheiro é ruim somente porque

existe muita moeda falsa. Que nenhuma hipocrisia nos impeça de

confessar a Cristo, ou nos afaste da nossa firmeza, se é que já temos feito

confissão de Jesus Cristo. Prossigamos, olhando sempre para Jesus e

descansando nEle, orando diariamente para sermos resguardados de todo

erro, e dizendo com o salmista: “Seja o meu coração irrepreensível nos

teus decretos” (SI 119.80).

as Palavras Públicas de Jesus aos Judeus

Leia Mateus 23.34-39

Estes versículos formam a conclusão do discurso de nosso Senhor

Jesus Cristo acerca dos escribas e fariseus. São as últimas palavras que

como Mestre falou publicamente ao povo. A ternura e a compaixão que

caracterizam nosso Senhor, resplandecem de maneira magnífica no

término do seu ministério. Embora tivesse deixado seus adversários ainda

na incredulidade, Jesus demonstrou até o fira que os amava e tinha

compaixão deles.

Em primeiro lugar, escudados nestes versículos, aprendemos que

Deus frequentemente usa de grande condescendência para com os ímpios. Ele

enviou aos judeus “profetas, sábios e escribas”. Ele lhes deu reiteradas

advertências. Enviou-lhes mensagem após mensagem. Não permitiu que

continuassem pecando sem repreensão. Eles jamais poderiam dizer que

não haviam sido avisados quando agiam mal.

Geralmente, é dessa maneira que Deus trata com os professos ainda

não-convertidos. Ele nunca os deixa perecer em seus pecados sem antes

chamá-los ao arrependimento. Ele bate às portas de seus corações mediante enfermidades e aflições. Ele assedia as suas consciências por

Page 201: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 23.34-39 201

meio de sermões ou pelo conselho de amigos, Ele sbre 3 sepultura diante

deles e os intima a considerarem os seus caminhos, e rouba-lhes os ídolos

em que confiam. Com freqüência, entretanto, não sabem o que tudo isso

significa. Quase sempre estão cegos e surdos para todas as graciosas

mensagens de Deus. Contudo, finalmente haverão de perceber a mão de

Deus, embora, talvez tarde demais. Descobrirão que “Deus fala de um

modo, sim de dois modos, mas o homem não atenta para isso“ (Jó 33.14).

Descobrirão que, a exemplo dos judeus, eles também tiveram profetas,

sábios e escribas que lhes foram enviados. Em cada ato da Providência,

havia uma voz a dizer*. “Convertei-vos, convertei- -vos... por que haveis de

morrer?“ (Ez 33.11),

Aprendemos, em segundo lugar, que Deus observa o tratamento que

recebem seus mensageiros e ministros, e um dia fará a prestação de contas. Os

judeus, como nação, por muitas vezes deram aos servos do Senhor 0

tratamento mais infame. Sempre os trataram como inimigos, porque os

mensageiros de Deus lhes diziam a verdade. A alguns haviam perseguido, a

outros haviam açoitado, e a outros haviam até mesmo executado. Talvez

pensassem que nenhuma prestação de contas lhes seria requerida. Jesus,

entretanto, diz aos judeus que eles estavam enganados. Tudo quanto faziam

era acompanhado de perto pelos olhos de Deus. Havia uma mão que

registrava em livros eternos todo o sangue inocente que derramavam. As

últimas palavras de Zacarias, que foi morto entre o santuário e o altar,

seriam comprovadas oitocentos e cinquenta anos mais tarde. Ao morrer, de

havia dito: “O Senhor o verá, e o retribuirá“ (2 Cr 24.22).

Mais alguns anos e haveria um tamanho derramamento de sangue

em Jerusalém, como o mundo jamais tinha visto igual. A cidade santa seria

destruída. A nação que havia assassinado tantos profetas seria, ela mesma,

devastada pela fome, pela pestilência e pela espada. Mesmo os que

conseguissem escapar seriam dispersos pelos quatro ventos, e, à

semelhança de Caim, o assassino, tomar-se-iam fugitivos e vagabundos na

terra. Todos sabemos quão literalmente estas afirmações foram cumpridas.

Jesus bem disse: “Em verdade... todas estas cousas hão de vir sobre a

presente geração“.

Convém que sublinhemos claramente esta lição. Sempre estamos

demasiadamente aptos a pensar que “o passado é passado“, e as coisas que

já aconteceram e estão consumadas e ultrapassadas, jamais serão revolvidas

outra vez. Esquecemo-nos, entretanto, que, para Deus “um dia é como mil

anos, e mil anos como um dia“ (2 Pe 3.8), e os eventos de mil anos atrás

estão tão frescos aos olhos do Senhor, como os acontecimentos desta

mesma hora. Deus requer aquilo que oculta-se no passado e, acima de tudo,

haverá de requerer dos homens o tratamento dado aos

Page 202: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

202 Mateus 23.34-39

seus santos. O sangue dos cristãos primitivos, derramado pelos impe-

radores romanos; o sangue dos valdenses e albigenses, das vítimas no

massacre de São Bartolomeu; o sangue dos mártires que foram queimados

na fogueira durante o tempo da Reforma, e o sangue dos que foram mortos

pela Inquisição — tudo, tudo isso será considerado na prestação de contas.

Segundo diz um velho ditado, “as mós da justiça divina moem devagar,

porém moem muito fino”. O mundo ainda verá que “há um Deus, com

efeito, que julga na terra” (SI 58.11).

Que aqueles que perseguem o povo de Deus tomem precaução

quanto àquilo que estão fazendo. Fique sabido que todos os que pre-

judicam, ridicularizam, zombam ou caluniam a outras pessoas, por motivo

de sua religião, cometem um grande pecado. Cristo toma conhecimento de

cada um que persegue a seu próximo por ter uma vida mais correta do que

ele, ou porque ora, lê a sua Bíblia e pensa sobre o bem de sua alma. Vivo

está quem declarou: “aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho”

(Zc 2.8). O dia do juízo mostrará que o Rei dos reis fará prestar contas

todos os que insultam os servos de Deus.

Em último lugar, nestes versículos aprendemos que aqueles que se

perdem para sempre perdem-se por sita própria culpa. As palavras de nosso

Senhor Jesus Cristo são muito marcantes. “Quis eu reunir os teus filhos... e

vós não o quisestes!” Há algo nessa declaração que merece a nossa atenção

especial. Ela projeta luz sobre um assunto misterioso, e que geralmente é

obscurecido pelas explicações humanas. É uma declaração que nos mostra

como Cristo tem sentimentos de piedade e misericórdia por muitos, que

não são salvos; e mostra-nos que o grande segredo da ruína de um homem é

a sua própria falta de vontade. Impotente como é por natureza, incapaz de

ter de si mesmo sequer um bom pensamento, e sem poder em si mesmo

para crer e invocar a Deus, ainda assim o homem parece ter uma poderosa

habilidade para arruinar a sua própria alma. Incapacitado de praticar o bem,

ele continua um poderoso praticante do mal. Dizemos, e com razão, que

uma pessoa nada pode por si mesma; mas sempre devemos lembrar que a

sede dessa incapacidade é a sua própria vontade. Ninguém pode despertar

em si mesmo a vontade de se arrepender e crer; mas, todo homem possui,

por natureza, a vontade para rejeitar a Cristo e seguir o seu próprio caminho

desviado; e se, por fim, não for salvo, tão-somente ficará provado que essa

vontade foi a causa de sua perdição. Jesus Cristo disse: “Não quereis vir a

mim para terdes vida” (Jo 5.40).

Deixemos este assunto com a confiante reflexão de que, para Cristo,

nada é impossível. Mesmo o coração mais empedernido pode ser

transformado. Sem dúvida, a graça divina é irresistível. Porém, ja-

Page 203: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 23.34-39 203

raais nos esqueçamos de que a Bíblia fala do homem como um ser res-

ponsável, e diz de alguns: “vós sempre resistis ao Espírito Santo” (At

7.51). Entendamos que a ruína dos que se perdem não é porque Cristo nao

esteja disposto a salvá-los, nem tampouco porque eles querem ser salvos

mas não conseguem sê-lo. Eles não são salvos porque não querem vir a

Cristo. Que nós tomemos como base a verdade ressaltada nesta passagem.

Cristo deseja reunir a si os filhos dos homens, mas eles não querem ser

reunidos. Cristo deseja salvar os homens, mas estes não querem ser salvos.

Que seja um princípio bem estabelecido em nossa religião, que a salvação

do homem — se salvo — deve-se inteiramente a Deus, e a sua ruína — se

perdido — deve-se inteiramente a ele mesmo. A maldade que está em nós

é, toda ela, nossa maldade. E o bem, se é que temos algum, esse procede

inteiramente de Deus. No mundo vindouro, os salvos atribuirão toda a

glória a Deus, e os perdidos descobrirão que eles mesmos destruíram a si

próprios (Os 13.9).

Profecia Sobre a Destruição de Jerusalém, a

Segunda Vinda de Cristo e o Fim do Mundo Leia Mateus 24.1-14

Com estes catorze versículos inicia-se um capítulo repleto de pro-

fecias, das quais uma grande parte ainda não foi cumprida, e profecias que

deveriam ser profundamente interessantes para todos os verdadeiros

cristãos. Trata-se de um assunto acerca do qual o Espírito Santo diz que

fazemos bem em atender (2 Pe 1.19).

Todas as passagens proféticas das Escrituras deveriam ser abor-

dadas com profunda humildade e fervorosa oração, buscando o ensina-

mento do Espírito Santo. Em nenhum outro ponto têm homens de bem

discordado tão inteiramente como no caso da interpretação de profecias.

Sobre nenhuma outra questão os preconceitos de uma classe, o

dogmatismo de outra e as extravagâncias de uma terceira têm contribuído

tanto para furtar a igreja das verdades designadas por Deus para lhe serem

uma bênção. Com razão, pois, escreveu Olshausen: “Que é que o homem

não vê, ou não deixa de ver quando deseja fazer prevalecer as suas próprias

opiniões favoritas?”

Para compreender a intenção de todo este capítulo, devemos manter

cuidadosamente em vista a questão que suscitou este discurso de nosso

Senhor. Ao deixarem o templo pela última vez, os discípulos, impelidos

pelo sentimento natural dos judeus, haviam chamado a atenção de seu

Mestre para as esplêndidas construções de que o templo era com

Page 204: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

204 Mateus 24.1-14

posto. Mas, para grande surpresa e perplexidade deles, Jesus lhes assevera

que tudo aquilo estava para ser destruído. Estas palavras ficaram

profundamente gravadas na mente dos discípulos. Eles vieram a Jesus

quando este estava assentado sobre o Monte das Oliveiras e lhe pediram

com ansiedade evidente: “Diz-nos quando sucederão estas coisas, e que

sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”. É nessa petição que

encontramos a chave para a compreensão do tema da profecia que temos à

nossa frente. Abrange três pontos: 1 — a destruição de Jerusalém; 2 — a

segunda vinda de Cristo; 3 — o fim do mundo. Estes três pontos estão

indubitavelmente entrelaçados em algumas partes deste capítulo; tão

entrelaçados que é difícil separar e desembaraçá-los uns dos outros. Mas

todos os três pontos aparecem distintamente e sem eles não é possível

explicar satisfatoriamente este capítulo.

Os primeiros catorze versículos da profecia ocupam-se com lições

de natureza geral, de largo alcance e aplicação. São lições que parecem

aplicar-se com igual força, tanto para o final da era judaica, quanto para o

final da dispensação cristã, sendo o primeiro evento notavelmente

simbólico do segundo. São lições que demandam atenção especial de

nossa parte, “de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado”

(1 Co 10.11). Vejamos, então, quais são essas lições.

A primeira lição geral que se nos apresenta é uma advertência contra

o engano. As primeiríssimas palavras de Jesus são: “Vede que ninguém vos

engane”. Não poderíamos conceber uma advertência mais necessária do

que esta. Satanás conhece bem o valor da profecia, e tem sempre

procurado lançar o assunto em descrédito. Os escritos de Josefo

comprovam quantos falsos cristãos e quantos falsos profetas surgiram

antes da destruição de Jerusalém. Pode-se demonstrar facilmente como os

olhos dos homens estão continuamente cegos, de muitas maneiras, nestes

nossos dias, no que tange às ocorrências futuras. O mormonismo tem sido

muito usado como argumento para rejeitar-se toda a doutrina da segunda

vinda de Cristo. Assim sendo, vigiemos e ponhamo-nos em guarda.

Que ninguém nos engane quanto aos principais fatos da profecia

ainda não cumprida, dizendo-nos que são coisas impossíveis. Que nin-

guém nos engane quanto à maneira em que elas virão a acontecer, dizendo

serem improváveis e contrárias à experiência passada. Que nenhum ho-

mem nos engane quanto ao tempo quando serão cumpridas as profecias,

fixando datas ou asseverando que primeiro deveríamos aguardar pela

conversão da humanidade inteira. Em todos esses particulares, que o

sentido claro das Escrituras seja a nossa única norma, e não as tradições da

interpretação humana. Nunca nos envergonhemos em dizer que esperamos

um cumprimento literal das profecias ainda não cumpridas.

Page 205: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 24.1-14 205

Sejamos francos em reconhecer que há muitas coisas que não entendemos,

mas, mesmo assim, mantenhamos tenazmente nossa posição. Que nós

creiamos muito, esperemos e não duvidemos de que um dia tudo se tomará

claro. Acima de tudo, lembremo-nos de que a primeira vinda do Messias,

para sofrer, foi o evento mais improvável que se poderia ter concebido. E

não duvidemos de que, assim como Ele veio literalmente, em pessoa, para

sofrer, assim, literalmente, Ele há de voltar, em pessoa, para reinar.

A segunda grande lição diante de nós é um aviso contra as ex-

pectações exageradas e extravagantes acerca de coisas que devem acontecer

antes que venha o fim. Esta é uma advertência tão profundamente importante

quanto a anterior. Se ela não tivesse sido tão negligenciada, a igreja teria

tido uma história muito mais feliz!

Não devemos esperar por um reino de paz universal, felicidade e

prosperidade antes que o ftm aconteça. Se estamos esperando por tal

bonança, ficaremos muito desiludidos. Nosso Senhor nos manda esperar

por guerras, fomes, terremotos e perseguições. É inútil esperar paz

enquanto o Príncipe da Paz não retornar. Então, e só então, as espadas serão

transformadas em arados, e as nações não mais aprenderão a guerra.

Somente então, a terra dará o seu fruto (Is 2.4; SI 67.6).

Não devemos esperar um tempo universal de pureza doutrinária e

prática, na igreja de Cristo, antes que venha o fim. Se o fizermos, estaremos

grandemente equivocados. Nosso Senhor nos manda estar na expectativa

do aparecimento de falsos profetas, multiplicação da iniquidade e

esfriamento do amor de quase todos. A verdade nunca será recebida por

todos os professos cristãos, e a santidade jamais será a norma entre os

homens enquanto o grande Cabeça da igreja não retornar e não for preso

Satanás. Então, e só então haverá igreja gloriosa, sem defeito e sem mácula

(Ef 5.27).

Não devemos esperar que o mundo todo vá se converter antes que o

fim aconteça. Estaremos grandemente equivocados, se o fizermos. Será

pregado o evangelho por todo o mundo, para testemunho a todas as nações.

Porém, não devemos pensar que o evangelho será crido universalmente.

Esse evangelho irá “constituir um povo” (At 15.14) onde quer que seja

fielmente pregado, e serão testemunhas de Cristo. Todavia, a plena

convocação das nações não ocorrerá até que Cristo venha. Então, e

somente então, a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as

águas cobrem o mar (Hc 2.14).

Guardemos estas coisas no coração, e nunca nos esqueçamos delas.

São verdades extremamente relevantes para o tempo presente. Apren-

damos a moderar nossas expectativas no tocante a qualquer organização

existente na igreja de Cristo, e seremos poupados de muito desaponta-

Page 206: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

206 Mateus 24.1-14

mento. Apressemo-nos em propagar o evangelho no mundo, pois o tempo é

curto, não longo. A noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Tempos

difíceis nos esperam. Heresias e perseguições podem em breve enfraquecer

e distrair as igrejas. Uma feroz guerra de princípios pode em breve

convulsionar as nações. As portas que agora estão abertas para a prática do

bem, podem em breve cerrar-se para sempre. Nossos olhos podem ainda

ver o sol do cristianismo pôr-se entre nuvens e tempestades no horizonte,

como sucedeu ao sol do judaísmo. Acima de tudo, anelemos pelo retorno

de nosso Senhor. Ah! um coração disposto a orar diariamente: Vem,

Senhor Jesus!

Continuação das Profecias Sobre as Misérias

que Viriam no Primeiro e Segundo Cercos de Jerusalém

Leia Mateus 24.15-28

Um dos pontos importantes desta profecia de nosso Senhor é a

tomada de Jerusalém, pelos romanos. Esse tremendo evento aconteceu

cerca de quarenta anos depois de proferidas as palavras que agora lemos .

Uma completa narrativa do acontecimento encontra-se nos escritos do

historiador Josefo. Os seus escritos são o melhor comentário sobre as

palavras de nosso Senhor. Eles são uma prova notável da exatidão de cada

pormenor nas predições de Cristo. Os horrores e misérias que os judeus

suportaram durante o cerco de sua cidade superam tudo que já foi

registrado. Verdadeiramente, aquele foi um tempo de tribulação, como

desde o princípio do mundo até agora não tem havido”.

Alguns se surpreendem ao ver tanta importância atribuída à tomada

de Jerusalém. Tais pessoas preferem considerar este capítulo como ainda

não-cumprido. Esquecem-se, porém, de que Jerusalém e o templo eram o

centro da antiga dispensação judaica. Quando foram destruídos, chegou ao

fim o antigo sistema mosaico. O sacrifício diário, as festas anuais, o altar, o

Santo dos Santos, o sacerdócio: todos eram partes essenciais da religião

revelada, até que Cristo veio; mas não mais depois disso. Quando Ele

morreu sobre a cruz, a finalidade de todas essas partes foi terminada.

Estavam agora mortas, e só restava que fossem sepultadas. Porém, não

convinha que isso fosse feito silenciosamente. O fim de uma dispensação

dada com tanta solenidade, no Monte Sinai, bem poderíamos esperar que

fosse marcado por uma solenidade peculiar. A destruição do templo santo,

onde tantos santos do Velho Testamento tinham visto a “sombra dos bens

vindouros” (Hb 10.1), era

Page 207: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 24.15-28 207

de se esperar que fosse o assunto de uma profecia. E de fato o foi. O

Senhor Jesus prediz especialmente a desolação no “lugar santo”. O grande

Sumo Sacerdote descreve o fim de uma dispensação que tinha sido o

preceptor para trazer homens a Cristo.

Contudo, não devemos supor que esta parte da profecia de nosso

Senhor foi cumprida inteiramente na primeira tomada de Jerusalém. É

mais provável que as palavras de nosso Senhor tenham uma aplicação

mais ampla e ainda mais profunda. É mais do que provável que elas se

apliquem a um segundo cerco de Jerusalém, ainda por acontecer, quando

Israel já tiver retomado à sua própria terra; e se apliquem a uma segunda

tribulação, a vir sobre os habitantes de Israel e que só será detida pelo

retomo de nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma semelhante visão desta passagem pode, para alguns, parecer

surpreendente. Mas os que duvidam da correção desta interpretação fariam

bem em estudar o último capítulo do profeta Zacarias e o último capítulo

de Daniel. Esses dois capítulos contêm descrições solenes, e lançam

grande luz sobre os versículos que ora estudamos e sua conexão com os

versículos que vêm em seguida.

Resta-nos agora considerar as lições contidas nesta passagem, para

nossa edificação pessoal. São lições claras e inequívocas. Nelas, pelo

menos, não há qualquer obscuridade.

Antes de tudo, vemos que fugir do perigo pode, às vezes, ser o dever

explícito de um crente. Nosso Senhor ordenou pessoalmente ao seu povo que

“fujam”, sob determinadas circunstâncias. Sem dúvida, o servo de Cristo

não deve ser um covarde, Ele deve confessar o seu Mestre diante dos

homens, e estar disposto a morrer, se necessário, pela causa da verdade.

Mas, do servo de Cristo, não é requerido que ele se atire para dentro do

perigo, a menos que isso faça parte do seu dever. Ele não deve se

envergonhar de usar meios racionais para prover a sua segurança pessoal,

quando nenhum bem seria conseguido pelo fato de ele morrer em seu

posto. Há profunda sabedoria nesta lição. Os verdadeiros mártires cristãos

nem sempre são aqueles que cortejam a morte e têm o afã de serem

queimados ou decapitados. Há ocasiões em que o crente demonstra maior

graça ao ficar quieto, esperando, orando e aguardando um tempo oportuno,

do que ao desafiar seus adversários e atirar-se na batalha. Que nós

possamos ter a sabedoria para agir em tempos de perseguição. Tanto é

possível ser impetuoso quanto ser um covarde, e é possível perder a nossa

própria serventia por sermos muito exasperados ou muito passivos.

Em segundo lugar, observemos que, ao entregar esta profecia, nosso Senhor faz menção especial ao sábado. Diz Ele: “Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado”.

Page 208: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

208 Mateus 24.15-28

Este é um fato que merece a nossa atenção. Vivemos em uma época

em que a obrigação de honrar o sábado é freqüentemente negada, até

mesmo por bons cristãos. Eles nos dizem que o sábado não é mais

obrigatório para nós, como não o são as leis cerimoniais. É difícil enxergar

como tal ponto de vista, pode ser conciliado com as palavras de nosso

Senhor nessa ocasião solene. Quando predisse a destruição final do templo

e das cerimônias mosaicas, parece que Jesus mencionou intencionalmente

o sábado, como que para marcar com honra esse dia. Ele parece dar a

entender que, embora o seu povo houvesse de ser absolvido do jugo de

sacrifícios e ordenanças, para eles ainda restava a guarda de um sábado

(Hb 4.9). Os defensores do dia do Senhor devem cuidadosamente

lembrar-se deste texto, pois é uma passagem de grande peso.

Em terceiro lugar, vemos que os eleitos de Deus sempre são objetos

especiais do cuidado de Deus. Duas vezes nesta passagem o Senhor faz

menção deles. “Por causa dos escolhidos*' os dias da tribulação serão

“abreviados". Não será possível enganar os “eleitos".

Aqueles a quem Deus escolheu para a salvação, mediante Cristo,

são os que Deus ama especialmente neste mundo. Eles são as jóias dentre

toda a humanidade. Deus tem maior cuidado por eles do que pelos reis que

se assentam nos tronos, se são reis não-convertidos. Deus ouve as orações

dos eleitos. Ele ordena todos os acontecimentos entre as nações, e as

causas de guerras, para o bem e a santificação dos seus escolhidos. Ele os

guarda por meio do Espírito, e não permite que homem, nem demônio, os

arranque de sua mão protetora. Não importa que tribulação venha sobre o

mundo, os eleitos de Deus estão seguros! Que nós jamais repousemos

enquanto não tivermos a certeza de pertencer ao número dos

bem-aventurados. E nenhum ser humano pode provar que não é um dos

eleitos. As promessas do evangelho se estendem a todos. Portanto,

esforcemo-nos por confirmar a nossa vocação e eleição! (2 Pe 1.10). Os

eleitos de Deus são um povo que clama a Ele noite e dia. Quando Paulo viu

a fé, a esperança e o amor dos Tessalonicenses, então reconheceu que

eram eleitos da parte de Deus (1 Ts 1.4; Lc 18.7).

Finalmente, vemos, por estes versículos, que, seja quando for que

aconteça, a segunda vinda de Cristo será um acontecimento muito súbito. Será

como o relâmpago que “sai do oriente e se mostra até no ocidente".

Esta é uma verdade prática e que deveriamos sempre ter em mente.

Sabemos pelas Escrituras que nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa, há de

retomar a este mundo. Também sabemos que Ele virá em um tempo de

grande tribulação. Mas o período preciso: dia, hora, mês e ano estão todos

ocultos para nós. Somente sabemos que será um acon-

Page 209: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 24.15-28 209

tecimento repentino. O nosso claro dever, portanto, é viver sempre pre-

parados para a volta de Cristo. Que andemos pela fé, e não por vista.

Creiamos em Cristo, sirvamos a Cristo, sigamos a Cristo e amemos a

Cristo. Assim vivendo, não importa o momento em que Cristo retome,

estaremos prontos para encontrá-lo.

Descrição do Segundo Advento

Leia Mateus 24.29-35

Nesta parte da profecia, nosso Senhor descreve a sua própria se-

gunda vinda para julgar o mundo. Isso, ao menos, é o que naturalmente se

deduz desta passagem. Qualquer interpretação menos abrangente,

parece-nos uma distorção violenta da linguagem da Escritura. Se as pa-

lavras solenes aqui empregadas significam apenas a vinda dos exércitos

romanos a Jerusalém, então podemos dar uma explicação semelhante a

qualquer outro evento na Bíblia. O acontecimento aqui descrito é algo de

muito maior importância do que a marcha de qualquer exército terreno.

Não é outra coisa senão o ato final que encerrará esta dispensação, o

segundo advento de Jesus Cristo, em pessoa.

Estes versos nos ensinam, em primeiro lugar, que quando o Senhor

Jesus regressar a este mundo, virá com peculiar glória e majestade. Ele virá

“sobre as nuvens do céu com poder e muita glória.” Diante da sua presença

o próprio sol, a lua e as estrelas perderão o seu resplendor, e “os poderes

dos céus serão abalados”.

A segunda vinda pessoal de Jesus Cristo será tão diferente da

primeira quanto possível. Ele veio a primeira vez como homem de tris-

tezas, cercado de aflições. Nasceu em uma manjedoura, em Belém,

pequenino e humilde, e assumiu a forma de servo, tendo sido desprezado e

rejeitado pelos homens desde o início. Ele foi traído e entregue às mãos de

homens iníquos, condenado por um julgamento injusto, escarnecido,

açoitado, coroado de espinhos e, por fim, crucificado entre dois ladrões. Na

segunda vez, Ele virá como Rei de toda a terra, com toda majestade real. Os

príncipes e grandes homens deste mundo haverão de comparecer diante do

seu trono, para receberem uma sentença eterna. Diante dEle toda boca se

calará, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é o

Senhor. Jamais nos esqueçamos disso. Sem importar o que os homens

possam fazer no presente, não permanecerá zombaria alguma, nem

escárnios contra Cristo, nem infidelidade alguma no dia do juízo. Os servos

do Senhor Jesus podem esperar com paciência. Seu Mestre será, um dia, reconhecido como Rei dos reis, por todo o mundo.

Page 210: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

210 Mateus 24.29-35

Estes versículos nos ensinam, em segundo lugar, que quando Cristo

retomar a este mundo, Ele irá primeiramente cuidar do seu povo, os crentes. Ele

enviará os “seus anjos” e estes “reunirão os seus escolhidos”.

No dia do julgamento final, os verdadeiros crentes gozarão de

perfeita segurança. Nem um único fio de cabelo lhes cairá por terra.

Nenhum único osso do corpo místico de Cristo será quebrado. Houve uma

arca para Noé no dia do dilúvio; houve uma Zoar para Ló quando Sodoma

foi destruída; e haverá em Jesus um esconderijo para todos os crentes,

quando a ira de Deus, finalmente, descarregar-se sobre este mundo vil. Os

poderosos anjos, que se regozijavam no céu a cada vez que um pecador se

arrependia, haverão de alegremente recolher o povo de Deus para o

encontro com o Senhor, nos ares. Esse dia, sem dúvida alguma, será um dia

terrível; mas os crentes podem aguardá-lo sem temor.

No dia do juízo os verdadeiros cristãos serão, por fím, todos reu-

nidos. Os santos de todos os séculos e de todos os idiomas serão recolhidos

dentre todas as nações. Todos estarão lá, desde o justo Abel, até à última

alma que se converter a Deus; desde o mais antigo patriarca até a criança

que é salva. Portanto, meditemos sobre quão feliz será esse encontro,

quando a família de Deus estiver toda reunida! Se tem sido agradável nos

encontrarmos ocasional mente com um ou dois crentes, aqui na terra,

quanto mais agradável será nos reunirmos, no céu, a uma multidão

inumerável, que ninguém pode contar! Certamente podemos nos contentar

em carregar a cruz e suportar a dor de uma separação por alguns anos, pois

viajamos em direção a um dia quando nos encontraremos é já não haverá

mais separações.

Em terceiro lugar, estes versículos nos ensinam que até que Cristo

retome a este mundo, os Judeus serão sempre um povo separado. Nosso Senhor

nos diz que „ „ não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”. A

existência contínua dos judeus como uma nação distinta é, inegavelmente,

um grande milagre. É uma daquelas evidências da veracidade da Bíblia que

os incrédulos jamais conseguem anular. Sem uma pátria, sem rei, sem

governo, espalhados e dispersos pelo mundo por cerca de dezenove

séculos, os judeus nunca são absorvidos entre os povos dos países onde

vivem; “é povo que habita só” (Nm 23.9). A única explicação paia isso é o

dedo protetor de Deus. A nação judaica permanece de pé diante do mundo,

como uma resposta esmagadora para a incredulidade, e como um livro vivo

que evidencia a veracidade da Bíblia. Contudo, não deveríamos reputar os

judeus apenas como testemunhas da verdade das Escrituras. Deveríamos

contemplá-los como uma garantia contínua de que o Senhor Jesus um dia

irá voltar outra

Page 211: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 24.29-35 211

vez. Tal a ordenança da Ceia do Senhor, os judeus são um testemunho da

realidade do segundo advento, tanto quanto são testemunhas do primeiro

advento. Não nos esqueçamos disso. Em cada judeu errante contemplemos

uma prova viva de que a Bíblia é verdadeira e de que Cristo um dia haverá

de retomar.

Finalmente, estes versículos nos ensinam que as predições de nosso

Senhor certamente se cumprirão. Ele disse: “Passará o céu e a terra, porém as

minhas palavras não passarão“. Nosso Senhor conhecia bem a

incredulidade natural da natureza humana Ele sabia que nos últimos dias

surgiriam zombadores, dizendo: “Onde está a promessa da sua vinda?” (2

Pe 3.4). Jesus sabia que quando retomasse a fé seria rara entre os seres

humanos. Ele anteviu o grande número de pessoas que iriam rejeitar, com

desprezo, aquelas predições solenes que acabara de fazer, como

improváveis, absurdas, impossíveis. Ele nos adverte a todos, acerca de

pensamentos assim, céticos, com uma advertência de peculiar solenidade.

Ele nos diz que suas palavras haverão de se cumprir no tempo exato; e não

“passarão” sem cumprimento, não importa o que os homens possam

pensar ou dizer a respeito. Todos aceitemos no coraçao esta advertência!

Vivemos em uma época de grande incredulidade. Poucos creram no relato

da primeira vinda do Senhor, e poucos crêem no relato da sua segunda

vinda (Is 53.1). Acautelemo- -nos dessa infecção e creiamos no Senhor,

para a salvação de nossa alma. Não estamos lendo fábulas astuciosamente

inventadas, e, sim, verdades profundas e importantíssimas. Que Deus nos

dê um coração capaz de crer nestas verdades.

Os Dias Anteriores à Segunda Vinda;

Recomendação à Vigilância Leia Mateus 24.36-51

O primeiro assunto a requerer nossa atenção, nestes versículos, é o

horrendo quadro que eles nos dão sobre o estado do mundo quando o Senhor

Jesus voltar. O mundo não terá sido convertido quando Cristo voltar. Será

encontrado nas mesmas condições em que esteva no dia do dilúvio.

Quando veio o dilúvio os homens estavam comendo e bebendo,

casando-se e dando-se em casamento, absorvidos em suas atividades

mundanas e inteiramente surdos para as repetidas advertências feitas por

Noé. Não acreditavam na possibilidade de um dilúvio. Recusavam- -se a

crer que houvesse algum perigo. No entanto, de súbito veio o dilúvio “e os

levou a todos”. Todos quantos não se encontravam com Noé

Page 212: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

212 Mateus 24.36-51

no interior da arca, pereceram. Todos foram varridos, de uma vez e para

sempre, sem perdão, não-con verti dos, despreparados para o encontro

com Deus. E nosso Senhor diz que “assim será também a vinda do Filho

do homem”.

Sublinhemos esta passagem e entesouremo-la no profundo do co-

ração. Há muitas opiniões estranhas sobre esse assunto, até mesmo entre

homens bons. Não nos devemos enganar, imaginando que antes do retorno

do Senhor todos os homens virão a se converter ou que a terra se encherá

do conhecimento de Deus. Não sonhemos, supondo que o fim de todas as

coisas não possa estar próximo porque ainda há muita iniqüidade, tanto na

igreja quanto no mundo em geral. Tais concepções são redondamente

contraditadas nesta passagem. Os dias de Noé são um verdadeiro tipo dos

dias em que Jesus Cristo irá retornar. Milhões de professos cristãos serão

desmascarados como insensatos, incrédulos, sem Deus e sem Cristo,

mundanos e desqualificados para o encontro com o Juiz. Tenhamos muito

cuidado para não sermos encontrados entre os tais.

A segunda coisa que exige a nossa atenção, neste trecho, é a com-

pleta separação que haverá quando o Senhor Jesus voltar. Duas vezes lemos

que “um será tomado, e deixado o outro”. No presente, o piedoso e o ímpio

estão misturados e convivem juntamente. Nas igrejas, nas cidades, nos

campos e por toda a parte, os filhos de Deus e os filhos deste mundo estão

lado a lado. Mas isto não será sempre assim. No dia do retorno de nosso

Senhor haverá, enfim, uma completa divisão. Em um momento, num

piscar de olhos, ao ressoar a última trombeta, cada um desses grupos será

separado do outro para sempre. Esposas serão separadas dos maridos, os

pais dos filhos, os irmãos das irmãs, os patrões de seus empregados, os

pregadores de seus ouvintes. Não haverá tempo para palavras de despedida

e nem para arrependimento quando o Senhor Jesus voltar. Cada qual será

tomado como estiver, e ceifará conforme o que tiver semeado. Os crentes

serão arrebatados para a glória, honra e vida eterna. Os incrédulos serão

deixados para trás, para vergonha e desprezo eternos. Bem-aventurados

aqueles que estão unidos de coração, seguindo a Cristo! A sua unidade

jamais será quebrada. Ela perdurará para toda a eternidade. Quem pode

descrever a felicidade daqueles que forem arrebatados, quando retomar o

Senhor? Quem pode imaginar a miséria daqueles que forem deixados para trás? Que nós pensemos sobre essas coisas e consideremos os nossos caminhos.

A última coisa que nos chama a atenção nestes versículos é o dever prático de vigiar, ante a expectação da segunda vinda de Cristo. Nosso Senhor

diz: “Vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso

Page 213: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 24.36-51 213

Senhor... ficai tsmbéni vós apercebidos; porque, à hors em que olo cuidais, o Filho do homem virá.”

Este é um particular que nosso bendito Mestre insta com ffeqüência

para nossa observação. Dificilmente encontramos Jesus aludindo à sua

segunda vinda sem acrescentar uma recomendação; “vigiai”. Ele conhece a

dormência de nossa própria natureza. Ele sabe quão rapidamente nos

esquecemos dos assuntos mais solenes da religião. Ele sabe quão

incessantemente Satanás trabalha para obscurecer a gloriosa doutrina da

segunda vinda. Ele nos arma de exortações poderosas para examinar o

coração, para que estejamos alertas, a fim de não sofrermos ruína

eterna. Que todos nós possamos dar ouvidos a essas exortações.

Os verdadeiros cristãos devem viver como atalaias. O dia do Senhor

vira como um ladrão à noite. Os crentes deveriam esforçar-se por estar

sempre de prontidão. Deveriam comportar-se como sentinelas de

um exército em território inimigo. Deveriam tomar a resolução de, pela

graça de Deus, não dormir em seus postos. Há um texto do apóstolo Paulo

que merece atenta consideração: “Assim, pois, não durmamos como os

demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios” (1 Ts 5.6), Os

verdadeiros cristãos devem viver como bons servos, cujo senhor acha-se

ausente. Devem esforçar-se para estar sempre prontos para o retorno de seu

Senhor. Jamais devem ceder ante o pensamento “Meu Senhor demora-se”.

Eles devem procurar manter-se em uma atitude de coração que possa, de

uma vez, dar-lhe uma recepção calorosa e cheia de amor, não importa o

momento em que Ele venha. Há uma vasta profundidade na declaração do

Senhor; “Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier,

achar fazendo assim”. Se não estamos prontos para, a qualquer momento,

receber o Senhor que volta, bem podemos questionar se somos verdadeiros

crentes em Jesus ou não. Encerremos este capítulo com sentimentos

solenes. Aquilo que acabamos de ler requer de nós uma grande sondagem

de coração. Procuremos assegurar-nos de que real mente estamos em

Cristo e temos uma arca de salvação para quando o dia da ira irromper

sobre o mundo. Esforcemo-nos por viver de maneira a sermos declarados

“benditos”

naquele dia final, e não sermos lançados fora para sempre. E, não menos

importante, apaguemos de nossa mente a idéia generalizada de que a

profecia ainda não cumprida é algo para especulação, e não para a vida

prática. Se estas coisas não são para a vida prática, então simplesmente não

existe religião prática. João disse; “A si mesmo se purifica todo o que nele

tem esta esperança, assim como ele é puro” (1 Jo 3.3).

Page 214: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

214 Mateus 25.1-13

A Parábola das Dez Virgens Leia Mateus 25.1-13

O capítulo que agora iniciamos é a continuação do discurso pro-

fético de nosso Senhor, no monte das Oliveiras. O tempo a que o discurso

se refere está evidente e inequívoco. Do início ao fim há uma contínua

alusão à segunda vinda de Cristo e ao fim do mundo. O capítulo está

dividido em três seções. Na primeira, nosso Senhor usa a sua própria

segunda vinda como um argumento para a vigilância e sinceridade na

religião. Isto Ele o faz mediante a parábola das dez virgens. Na segunda

seção Ele usa a sua segunda vinda como um argumento para a diligência e

a fidelidade. Ele o faz mediante a parábola dos talentos. Na terceira, Ele

resume tudo mediante uma descrição do grande dia do juízo, uma

passagem que, por sua beleza e majestade, não tem igual no Novo Tes-

tamento . A parábola das dez virgens contém lições peculiarmente solenes

e despertadoras. Vejamos quais são.

Antes de mais nada, vemos que a segunda vinda de Cristo encontrará

a igreja como um corpo misto, contendo bons e maus elementos. A igreja

professante é comparada a „„dez virgens que, tomando as suas lâmpadas,

saíram a encontrar-se com o noivo”. Todas tinham sua lâmpada, mas

apenas cinco dispunham de azeite para alimentar a chama. Todas

professavam ter um objetivo em vista, mas apenas cinco, eram

verdadeiramente sábias, e as outras eram insensatas. A igreja visível

encontra-se nessa mesma condição. Todos os seus membros são batizados

em nome de Jesus Cristo, mas nem todos ouvem a voz de Cristo e O

seguem. Todos são chamados cristãos e professam seguir a religião cristã;

mas nem todos têm a graça do Espírito Santo no coração, e não são aquilo

que professam ser. Nossos próprios olhos são testemunhas disso. O Senhor

Jesus nos diz que assim será até que Ele venha.

Observemos atentamente esta descrição. É um quadro que nos

humilha. Apesar de todas as nossas pregações e orações, apesar de toda

nossa visitação e ensinamentos, depois de todo nosso esforço missionário

no estrangeiro e dos meios de graça de que dispúnhamos em nossa pátria,

muitas dessas pessoas se acharão, no último dia, mortas em seus delitos e

pecados. A iniqüidade e a incredulidade da natureza humana é um assunto

acerca do qual nós todos ainda temos muito a aprender.

Em seguida, vemos que a segunda vinda de Cristo, seja quando for que

aconteça, pegará os homens de surpresa. Esta verdade nos é apresentada na

parábola de maneira impressionante. A meia noite, quando

Page 215: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 25.1-13 215

as virgens estavam sonolentas e dormentes, ouviu-se um grito: “Bis o noivo! saí ao seu encontro”.

Será também assim quando Jesus voltar ao mundo. Ele encontrará a

vasta maioria da humanidade totalmente incrédula e despreparada. Ele

encontrará uma grande parte do seu povo, em um estado de alma indolente

e sonolento. Os negócios estarão seguindo normalmente, na cidade e no

campo, exatamente como agora. A política, o comércio, a agricultura, a

compra, a venda e a busca do prazer estarão controlando a atenção dos

homens, exatamente como agora. Os ricos ainda estarão banqueteando-se

suntuosamente, e os pobres murmurando e reclamando. As igrejas ainda

estarão cheias de divisões e disputando acerca de insignificâncias, e as

controvérsias teológicas ainda estarão em voga. Pregadores ainda estarão

chamando os homens ao arrependimento, e o povo adiando o dia da

decisão. No meio de tudo isso, o Senhor, em pessoa, aparecerá

repentinamente. Na hora em que ninguém imaginar, o mundo surpreso

será intimado a cessar todas as suas atividades e comparecer diante de seu

legítimo Rei. Existe algo de indizivelmente terrível neste pensamento; mas

assim está escrito e assim será. Um ministro do evangelho afirmou, ao morrer: “Nenhum de nós está mais do que meio-acordado”.

A seguir, vemos que, quando o Senhor voltar, muitos descobrirão o

valor da religião salvadora, porém já muito tarde. A parábola nos diz que

quando veio o noivo, as virgens insensatas disseram às sábias: “Dai-nos do

vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão se apagando”. E diz-nos

mais, que, como as sábias não dispunham de azeite para ceder- -lhes, as

insensatas saíram “para comprar”. Finalmente, a parábola nos diz que

quando voltaram a porta já estava fechada e elas clamaram em vão para

que fosse aberta: “Senhor, senhor, abre-nos a porta!”. Todas estas

expressões são emblemas impressionantes das coisas por vir. Tomemos

precaução para que tais coisas não se tornem verdadeiras em nossa própria

experiência, pois isso seria a nossa ruína eterna.

Podemos estar certos em nossas mentes de que um dia haverá no

mundo uma completa mudança de opinião quanto à necessidade de um

cristianismo decidido. No presente (todos devemos estar cientes), a vasta

maioria dos que se professam cristãos em nada se preocupam com a

validade do seu cristianismo. Não têm nenhum senso de pecado. Não têm

nenhum amor a Cristo. Nada sabem sobre o nascer de novo.

Arrependimento e fé, graça e santidade são meras palavras e nomes, para

eles. São assuntos que, para eles, são indiferentes, ou dos quais não

gostam. Mas todo esse estado de coisas um dia chegará ao fim.

Conhecimento, convicção, o valor da alma e a necessidade de um Salvador

— tudo isso eclodirá no último dia nas mentes dos homens, como

Page 216: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

216 Mateus 25.1-13

um relâmpago. Infeliz mente, já será tarde demais! Será muito tarde para

estar à procura de azeite quando o Senhor retomar. Os erros que não

tiverem sido corrigidos até aquele dia serão irrevogáveis.

Somos escarnecidos, perseguidos e julgados insensatos por causa

de nossa religião? Sejamos pacientes e oremos por aqueles que nos per-

seguem. Eles não sabem o que estão fazendo. Um dia, com certeza, eles

irão mudar de atitude. Pode ser que ainda os escutemos confessar que nós

fomos sábios e eles insensatos. O mundo inteiro reconhecerá um dia que

os santos de Deus fizeram uma escolha sábia.

Nesta parábola, em último lugar, vemos que quando Cristo retomar,

os crentes verdadeiros receberão uma rica recompensa por tudo que sofreram

por amor ao Mestre. Somos informados que quando veio o noivo, “as que

estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta“.

Somente os verdadeiros crentes estarão prontos quando acontecer o

segundo advento. Lavados no sangue da expiação, revestidos da justiça de

Cristo, renovados pelo Espírito Santo, os remidos irão ao encontro de seu

Senhor com ousadia, e tomarão lugar na ceia das bodas do Cordeiro, para

dali jamais saírem. Sem dúvida, esta é uma bendita perspectiva.

Os remidos estarão em companhia de seu Senhor, com Aquele que

os amou e a si mesmo se entregou por eles, que os sustentou e guiou

durante a peregrinação terrestre, Aquele a quem amaram verdadeira-

mente e a quem seguiram fielmente sobre a terra, embora em meio a

muitas fraquezas e muitas lágrimas. Sem dúvida, esta também é uma

bendita perspectiva.

A porta será fechada, enfim — fechada sobre toda dor e tristeza,

fechada para todo este mundo malvado e ímpio, fechada para as tentações

do diabo, fechada para todas as dúvidas e temores — fechada, para nunca

mais ser aberta. Sem dúvida, podemos dizer outra vez, esta é uma bendita

perspectiva.

Lembremo-nos destas coisas, elas merecem a nossa meditação.

Todas são verdadeiras. O crente pode sofrer muita tribulação, mas ele tem

diante de si abundantes consolações. A tristeza pode durar por uma noite,

mas a alegria vem ao amanhecer (SI 30,5). O dia do retorno de Cristo, fará

certamente a compensação por tudo.

Deixemos para trás esta parábola, com a firme determinação de

jamais nos contentarmos com algo menos do que a graça divina habitando

em nossos corações. A lâmpada e o nome de cristão, a profissão cristã e as

ordenanças do cristianismo, todos são bons e têm o seu devido lugar;

porém, não sao aquilo que de tudo é o mais necessário. Que não

descansemos enquanto não tivermos a certeza de ter o “azeite“ do Espírito

em nosso coração.

Page 217: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 25.14-30 217

A Parábola dos Talentos Leia Mateus 25.14-30

A parábola dos talentos, que agora lemos, é semelhante à parábola

das dez virgens. Ambas direcionam os nossos pensamentos para o mesmo

e importante acontecimento, a segunda vinda de Jesus Cristo. Ambas nos

falam das mesmas pessoas — os membros da igreja professa de Cristo. As

virgens e os servos representam um só e o mesmo povo, mas este povo

considerado de um ângulo diferente, sendo retratados diferentes aspectos

da sua atuação. A lição prática de cada parábola é o principal ponto de

diferença. A vigilância é a nota chave da primeira parábola, e a diligência é

a ênfase da segunda. A história sobre as virgens exorta a igreja a vigiar; a história sobre os talentos conclama a igreja a trabalhar.

Esta parábola nos ensina, em primeiro lugar, que todos os cristãos

recebem algo da parte de Deus. Somos todos “servos” de Deus. Todos temos

“talentos” que nos foram confiados. A palavra “talentos” tem sido

curiosamente distorcida quanto ao seu significado original. Ela geralmente

só é aplicada a pessoas notáveis por sua habilidade ou dons. São as

chamadas pessoas “talentosas”. Porém, tal uso da expressão é mera

invenção moderna. No sentido em que nosso Senhor empregou o termo

nesta parábola, a palavra aplica-se a todas as pessoas batizadas, sem

distinção. Aos olhos de Deus todos nós temos talentos. Somos todos

pessoas talentosas.

Qualquer coisa pela qual possamos glorificar a Deus constitui um

talento. Nossos dons, nossa influência, nosso dinheiro, nosso co-

nhecimento, nossa saúde, nossa força, nosso tempo, nossos sentidos, nosso

raciocínio, nosso intelecto, nossa memória, nossos afetos, nossos

privilégios como membros da igreja de Cristo, nossas vantagens como

possuidores da Bíblia — todos, todos são talentos. De onde vieram essas

coisas? Quem no-las outorgou? Por qual motivo somos o que somos? Por

que não somos vermes que se arrastam sobre a terra? Há somente uma

resposta para todas estas perguntas. Tudo o que temos é por empréstimo de

Deus. Nós somos mordomos de Deus. Somos devedores a Deus. Que este

pensamento se abrigue no profundo de nosso coração.

Em segundo lugar, aprendemos que muitos fazem mal uso dos

privilégios e misericórdias recebidos de Deus. Na parábola lemos de um servo

que “abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor”. Esse homem

representa uma grande parcela da humanidade.

Ocultar nosso talento é negligenciar as oportunidades que temos

Page 218: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

218 Mateus 25.14-30

de glorificar a Deus. Os que desprezam a Bíblia, negligenciam a oração e

não guardam o dia do Senhor; os incrédulos, os sensuais e os que seguem o

pensamento do mundo; os frívolos, os imprudentes e os que buscam

prazeres, os que amam ao dinheiro, os cobiçosos e os auto-indulgentes —

todos igualmente, estão enterrando no chão o dinheiro de seu Senhor.

Todos receberam alguma luz, porém não a utilizam. Todos esses poderiam

ser melhores e mais úteis do que são, mas estão roubando diariamente a

Deus. Deus lhes confiou muitas coisas e eles não lhe dão nenhum retomo.

As palavras de Daniel a Belsazar são notavelmente aplicáveis a toda pessoa

não-con vertida: “A Deus, em cuja mão está a tua vida, e todos os teus

caminhos, a ele não glorificaste”(Dn 5.23).

Em terceiro lugar, aprendemos que todos os que se professam cristãos

um dia haverão de prestar contas a Deus. A parábola nos diz que, * „depois de

muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles”.

Há um julgamento à espera de cada um de nós. Se não há jul-

gamento, as palavras da Bíblia não têm qualquer significação. Negá-lo é

tratar com leviandade as Escrituras. Há um julgamento que nos aguarda, de

acordo com nossas obras, e será seguro, estrito e inevitável. Importantes ou

não, ricos ou pobres, eruditos ou incultos, todos teremos de comparecer

diante do tribunal de Deus e receber nossa sentença eterna. Não haverá

escapatória. Esconder-se será impossível. Nós e Deus haveremos enfim de

nos encontrar face a face. Teremos de prestar contas de cada privilégio que

nos foi concedido, e de cada raio de luz desfrutado. Descobriremos, por

fim, que somos tratados como criaturas responsáveis que terão de prestar

contas, e que, a quem muito é dado, muito lhe será exigido (Lc 12.48).

Lembremo-nos dessa verdade por todos os dias de nossa vida. Que nos

julguemos a nós mesmos, para não sermos condenados pelo Senhor (1 Co

11.31,32).

Em quarto lugar, aprendemos que os verdadeiros crentes receberão

uma abundante recompensa, no grande dia da prestação de contas. A parábola

nos diz, que os servos que tinham empregado bem o dinheiro de seu Senhor

foram elogiados: “Servo bom e fiel... entra no gozo do teu senhor”. Estas

palavras estão cheias de conforto para todos os crentes, e nos enchem de

admiração e surpresa. O melhor de todos os crentes é apenas uma pobre e

frágil criatura, e precisa do sangue de expiação todos os dias de sua vida.

Entretanto, o menor e mais pobre de todos os crentes descobrirá, naquele

dia, que é contado entre os servos de Cristo, e que o seu labor não foi vão no

Senhor. Ele descobrirá, para sua surpresa, que os olhos de seu Senhor

enxergavam maior beleza do que ele mesmo enxergava em seus esforços

para agradar ao Senhor. Verá que cada hora passada no serviço de Cristo, e

cada palavra dita

Page 219: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 25.14-30 219

em favor de Cristo, ficaram registradas em um livro de memórias. Que os

crentes se lembrem destas coisas e assim tomem coragem. A cruz pode ser

pesada agora, mas a recompensa gloriosa fará compensação por tudo.

Disse Leighton: “Aqui, algumas partículas de gozo entram em nós; mas, no

céu, seremos nós que entraremos no gozo“.

Em último lugar, aprendemos que todos os membros infrutíferos da

igreja de Cristo serão condenados e lançados fora no dia do juízo. A parábola

nos diz que o servo que enterrou o dinheiro de seu senhor foi condenado

como “mau e negligente“ e “inútil”, e foi lançado “para fora, nas trevas”. E

o Senhor acrescenta estas solenes palavras: “Ali haverá choro e ranger de

dentes”.

No último dia não haverá desculpa para um crente professo e

não-convertido. As razões com que agora ele imagina justificar a si mesmo

mostrarão ser inúteis e vãs. Naquele dia ficará comprovado que o Juiz de

toda a terra agiu com justiça. A ruína do homem perdido será devida

exclusivamente a ele mesmo. As palavras de nosso Senhor, “sabias que... ”,

deveriam soar bem alto aos ouvidos de muitos homens, compungindo-lhes

o coração. Milhares de pessoas estão vivendo sem Cristo e sem conversão,

e fazendo de conta que nada podem fazer a respeito. Mas sabem o tempo

todo, em sua própria consciência, que são culpados. Estão enterrando o seu

talento. Não estão fazendo o quanto podem. Felizes são os que descobrem

essa realidade a tempo. No último dia tudo será desvendado.

Passemos adiante com a firme resolução de, pela graça de Deus,

nunca nos contentarmos com o cristianismo apenas de nome, sem vida

prática. Cumpre-nos não apenas falar sobre religião, e, sim, agir. Não

devemos apenas sentir a importância da religião; devemos também fazer

algo a respeito. A parábola não diz que o servo inútil era um homicida ou

ladrão, e nem mesmo afirma que ele desperdiçava o dinheiro de seu senhor.

Mas ele não fez nada, e isso foi a sua ruína. Tomemos precaução contra um

cristianismo do tipo nada-fazer. Tal cristianismo não procede do Espírito

de Deus. “Não ter feito nenhum mal”, diz Baxter, “é elogio para uma pedra,

mas não para um homem”.

O Julgamento Final Leia Mateus 25.31-46

Nestes versículos nosso Senhor Jesus Cristo descreve o dia do

julgamento final, e algumas das principais circunstâncias referentes a esse

dia. Em toda Bíblia, há poucas passagens mais solenes e que tanto

Page 220: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

220 Mateus 25.31-46

nos perscrutam o coração. Que possamos lê-la com a atenção séria e profunda que ela merece.

Notemos, em primeiro lugar, quem será o Juiz, no último dia. Lemos

que será “o Filho do homem”, o próprio Jesus Cristo.

O mesmo Jesus que nasceu na manjedoura, em Belém, e tomou sobre si a

forma de servo; que foi desprezado e rejeitado pelos homens e muitas vezes

não tinha onde reclinar a cabeça; que foi condenado, esmurrado, açoitado e

pregado na cruz pelos príncipes deste mundo esse mesmo Jesus irá julgar,

Ele mesmo, o mundo, quando vier em sua glória. O Pai confiou a Ele todo o

julgamento (Jo 5.22). Diante dEle, finalmente, todo joelho se dobrará, toda língua confessará que Ele é o Senhor (Fp 2.10,11).

Que os crentes meditem a esse respeito e se consolem. Aquele que

se assenta no trono, naquele grande e espantoso dia, será o Salvador, o

Pastor, o Sumo Sacerdote, o Irmão mais velho e o Amigo dos crentes.

Quando O virem não terão motivos para estarem alarmados.

Que os não-convertidos meditem sobre isso e temam. Quem os

julgará será o próprio Cristo cujo evangelho agora desprezam, e cujos

convites graciosos recusam-se a ouvir. Quão grande perplexidade sofrerão

se persistirem na incredulidade e morrerem em seus pecados! Ser

condenado no último dia por um juiz qualquer, já seria horrível. Porém, ser

condenado por aquele que desejava salvá-los, será verdadeiramente

terrível. Com muita razão disse o salmista: “Beijai o Filho para que se não

irrite” (SI 2.12).

Em segundo lugar, observemos quem será julgado naquele dia.

Lemos que “todas as nações serão reunidas” diante de Cristo. Todos

quantos já viveram um dia terão de prestar contas de si mesmos perante o

tribunal de Cristo. Todos terão de obedecer à intimação do grande Rei e

receber a sua respectiva sentença. Os que não querem adorar a Cristo neste

mundo, descobrirão que terão de apresentar-se diante do seu grande

tribunal, quando Ele voltar para julgar o mundo.

Todos os julgados serão divididos em duas grandes categorias. Não

haverá mais distinção nenhuma entre reis e súditos, patrões e empregados,

ou clérigos e pregadores independentes. Não se fará menção alguma a

denominações ou partidos religiosos, porquanto todas as distinções do

passado terão sido eliminadas. Graça ou nenhuma graça, conversão ou não

conversão, fé ou nenhuma fé, estas serão as únicas distinções que

prevalecerão naquele dia. Todos quantos forem achados em Cristo serão

postos entre as ovelhas, à sua direita. E todos quantos nao forem achados

em Cristo serão colocados entre os bodes, à sua esquerda. Como disse

Sherlock: “As distinções que agora fazemos de nada nos adiantarão, a

menos que tenhamos o cuidado de ser achados

Page 221: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 25,31-46 221

entre o número das ovelhas de Cristo, quando Ele vier para julgar o mundo”.

Em terceiro lugar, observemos de que maneira o julgamento será

conduzido, no último dia. Há aqui particularidades notáveis sobre o as-

sunto. Vejamos, pois, quais são.

O juízo final será um julgamento de acordo com as evidências. As

obras dos homens serão as testemunhas que serão trazidas a frente,

sobretudo suas obras de caridade. A questão a ser esclarecida será não

apenas o que dissemos, mas o que fizemos; não será meramente aquilo que

professamos, mas aquilo que houvermos praticado. Inquestionavelmente,

nossas obras não nos justificarão diante de Deus. Somos justificados pela

fé, sem as obras da lei. Mas a autenticidade de nossa fé será testada pela qualidade de nossa vida. A fé que não tem obras, por si só está morta (Tg 2.17).

O juízo final será um julgamento que trará alegria para todos os

verdadeiros crentes. Eles ouvirão aquelas preciosas palavras: “Vinde,

benditos de meu Pai! entrai na posse do reino”. Eles serão propriedade do

Mestre, e Ele os confessará diante do Pai e dos santos anjos. Descobrirão

que o salário que Ele dá aos seus é um reino, e nada menos do que isso. O

menor, o menos importante e o mais pobre da família de Deus, terá uma

coroa de glória e será rei.

O juízo final será um julgamento que trará confusão sobre todos os

não-convertidos. Eles irão ouvir aquelas palavras horríveis: “Apartai- -vos

de mim, malditos, para o fogo eterno”. Eles serão rejeitados pelo grande

Cabeça da igreja, diante do mundo inteiro reunido. E descobrirão que,

assim como semearam para a carne, da carne irão ceifar corrupção. Nâo

queriam ouvir a Cristo, quando dizia: “Vinde a mim, e eu vos aliviarei , e

agora terão de ouvi-Lo dizer: “Apartai-vos de mim, para o fogo eterno .

Não quiseram tomar aos ombros a cruz de Cristo e, portanto, não haverá

lugar para eles no seu reino.

O juízo final será um julgamento que revelará notavelmente o

caráter, tanto dos salvos como dos perdidos. Aqueles à direita de Cristo,

suas ovelhas, continuarão “revestidos de humildade”; e ficarão surpresos

ao ouvirem o Senhor mencionar e aprovar qualquer obra que tenham

realizado. Ao lado esquerdo, os que não foram de Cristo continuarão cegos

em sua justiça-própria. Não se mostrarão sensíveis à sua negligência a

Cristo. “Senhor”, dirão, “quando foi que te vimos... e não te assistímos?”

Possa este pensamento penetrar em nossos corações. O caráter moral

desenvolvido neste mundo será uma possessão eterna no mundo vindouro.

Com o mesmo caráter com que o homem morre, com esse mesmo caráter

haverá de ressuscitar. Observemos, em último lugar, quais serão os resultados finais

Page 222: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

222 Mateus 25.31-46

do dia do julgamento. Disto somos informados através de palavras que

nunca deveriam ser esquecidas: “E irão estes para o castigo eterno, porém

os justos para a vida eterna‟*.

Terminado o julgamento, o estado de coisas será imutável e sem

fim. Tanto a miséria dos perdidos quanto a felicidade dos salvos, serão

ambas fixadas para sempre. Que ninguém nos engane quanto a isso. Isso

está claramente revelado nas Escrituras. A eternidade de Deus, a

eternidade do céu e a eternidade do inferno, todas estão alicerçadas sobre

um mesmo fundamento. Tão certo quanto Deus é eterno, também o céu é

um dia interminável, sem noite, e o inferno é uma noite interminável, sem

dia.

Quem descreverá a bem-aventurança da vida eterna? Ela ultrapassa

em muito ao poder da concepção humana. Só pode ser medida por

contraste e comparação. Por exemplo, um eterno descanso após guerra e

conflito; a eterna companhia dos santos, depois de ter batalhado contra um

mundo maligno; um corpo eternamente glorioso e que nunca mais sentirá

enfermidade; uma eterna contemplação de Jesus Cristo, face a face, sendo

que anteriormente só havia o ouvir e crer. Tudo isso é bem-aventurança, de

fato. Mas metade de tudo isso ainda está para ser contada.

Quem descreverá as misérias da punição eterna? Trata-se de algo

totalmente indescritível e inconcebível. A eterna dor no corpo; a dor aguda

de uma consciência acusadora; a eterna sociedade dos ímpios com o diabo

e seus anjos; a eterna lembrança de oportunidades negligenciadas e Cristo

desprezado; a eterna perspectiva de um futuro aborrecido e sem esperança.

Tudo isso é miséria, de fato; o suficiente para fazer nossos ouvidos tinirem

e o sangue gelar em nossas veias. Mesmo assim, esse quadro é nada

quando comparado com a realidade.

Encerremos o comentário destes versículos com uma séria auto-

-inquirição. Perguntemos a nós mesmos, de que lado de Cristo prova-

velmente estaremos, no último dia. Estaremos à sua direita ou à sua

esquerda? Feliz é quem não descansa até que possa dar uma resposta

satisfatória para essa pergunta.

A Mulher que Ungiu Nosso Senhor Leia Mateus 26.1-13

Estamos nos aproximando da cena final do ministério terreno de

nosso Senhor Jesus Cristo. Até esta altura, temos lido de suas declarações

ede seus feitos. Doravante iremos ler de seus sofrimentos e sua morte.

Page 223: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.1-13 223

Até agora o temos visto como o grande Profeta; daqui por diante o veremos como o grande Sumo Sacerdote.

Esta é uma porção das Escrituras que deveria ser lida com peculiar

atenção e reverência. O lugar em que pisamos é terra santa. Vemos aqui

como o Descendente da mulher esmagou a cabeça da serpente. Vemos aqui

o grande sacrifício, para o qual apontavam todos os sacrifícios do Antigo

Testamento. Vemos aqui como foi vertido o sangue que nos purifica de

todo pecado , como foi morto o Cordeiro que „ „tira o pecado do mundo".

Vemos revelado na morte de Cristo o grande mistério de como Deus pode

ser justo e mesmo assim justificar o ímpio. Não admira que todos os quatro

evangelhos contenham um relato completo deste maravilhoso evento.

Acerca de outros detalhes na história de nosso Senhor, descobrimos que,

freqíientemente, quando um evangelista fala os outros três fazem silêncio.

Mas, quando chegamos à crucificação, temos um relato minuciosamente descrito por todos os quatro evangelistas.

Nos versículos que acabamos de ler, observemos, em primeiro

lugar, como o Senhor é cuidadoso ao chamar a atenção de seus discípulos para a

sua própria morte. Ele lhes disse: * „Sabeis que daqui a dois dias

celebrar-se-á a páscoa; e o Filho do homem será entregue para ser

crucificado".

A conexão destas palavras com o capítulo anterior é impossível não

se notar. Nosso Senhor à pouco falava de sua segunda vinda em poder e

glória, no fim do mundo. Ele estava descrevendo o julgamento final e todos

aqueles terríveis acontecimentos. Estivera falando de si mesmo como o

Juiz diante de cujo trono todas as nações serão reunidas. E então,

subitamente, sem pausa ou intervalo, Jesus começa a falar de sua

crucificação. Enquanto as predições maravilhosas de sua glória final ainda

ressoavam aos ouvidos dos discípulos. Ele lhes fala mais uma vez dos

sofrimentos que em breve viriam. Relembra-os de que deve morrer como

oferta pelo pecado antes de reinar como Rei; de que deve fazer a expiação

sobre a cruz antes de receber a coroa.

Não há como exagerar a importância da morte expiatória de Cristo.

Ela é o fato central na Palavra de Deus, para o qual os nossos olhos

espirituais deveriam estar sempre atentos. Sem o derramamento do sangue

de Cristo não há remissão de pecados. Essa é a verdade fundamental, de

que depende o sistema inteiro do cristianismo. Sem ela o evangelho é como

uma arca sem a quilha; como um belo edifício sem alicerces; é como um

sistema solar sem sol.

Que nós valorizemos grandemente a encarnação de nosso Senhor e

o seu exemplo, seus milagres, suas parábolas, seus ensinamentos e seus

feitos; mas, acima de tudo, valorizemos muito a sua morte

Page 224: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

224 Mateus 26.1-13

Deleitemo-nos na esperança de sua segunda vinda pessoal e seu reinado

milenar, mas lembremo-nos de que essas verdades benditas não são mais

importantes do que a expiação realizada na cruz. Bsta, afinal de contas, é a

verdade central das Escrituras, que “Cristo morreu pelos nossos pecados”

(1 Co 15.3). Lembremo-nos desta verdade, dia a dia. Alimentemos com

ela, diariamente, as nossas almas. Alguns, como os antigos gregos, podem

até escarnecer da doutrina e chamá-la de “loucura”. Mas jamais nos

envergonhemos de dizer, com Paulo: “Longe esteja de mim gloriar-me,

senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (G1 6.14).

Observemos nestes versículos, em segundo lugar, quanta honra o

Senhor Jesus ama conceder àqueles que O honram. Lemos que quando Jesus

estava “em casa de Simão, o leproso”, uma certa mulher aproximou-se,

estando Ele à mesa, e lhe derramou sobre a cabeça um frasco de ungüento

preciosíssimo. Ela fez isso, sem dúvida, por reverência e afeição. Tinha

recebido de Jesus um benefício espiritual, e por isso nenhum sacrifício

pessoal era grande demais para honrar ao Senhor como retribuição. Não

obstante, o ato daquela mulher levou alguns dos circunstantes a

reprová-la, quando viram o que fizera. Chamaram aquilo de

“desperdício”. Disseram que talvez teria sido melhor vender o ungüento e

dar o dinheiro aos pobres. Mas o Senhor repreendeu prontamente aqueles

homens insensíveis e críticos. Jesus disse-lhes que “Ela praticou uma boa

ação para comigo”, a qual Ele aceitava e aprovava. E Jesus foi mais além,

e fez uma predição notável: “Onde for pregado em todo o mundo este

evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua”.

Dentro desse pequeno incidente, notamos quão perfeitamente

nosso Senhor conhecia os acontecimentos futuros, e quão facilmente Ele

pode conferir honra a alguém. Essa profecia, a respeito daquela mulher,

está sendo cumprida a cada dia perante nossos olhos. Onde quer que o

evangelho de Mateus seja lido, torna-se conhecido o que fez essa mulher.

Os feitos e os títulos de muitos monarcas, imperadores e generais estão

completamente esquecidos, como se tivessem sido escritos sobre a areia.

Porém, o ato de gratidão de uma humilde mulher crente está registrado em

centenas de idiomas diferentes, e é conhecido em todo o mundo. O elogio

dos homens dura somente por alguns dias, mas o elogio de Cristo

permanece para sempre. O caminho para a honra duradoura consiste em

dar honra a Cristo.

Em último lugar, mas não menos importante, vemos nesse in-

cidente um bendito antegozo de coisas que estão para acontecer no dia do

juízo final. Naquele grande dia, nenhuma honra prestada a Cristo nesta

terra terá sido esquecida por Ele. Os discursos dos oradores par-

Page 225: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.1-13 225

lamentares, os feitos heróicos dos guerreiros, as obras de poetas e pintores

nem serão mencionados. Mas a menor obra que o crente mais fraco tiver

feito em favor de Cristo ou do seu povo, estará registrada num livro de

memórias eternas. Nem uma única palavra ou atitude gentil, nenhum copo

de água fria ou frasco de perfume deixará de ser registrado no livro. Ouro e

prata talvez ela não tivesse; posição social, poder e influência talvez não

possuísse, mas, se ela amava a Cristo e confessava a Cristo, e trabalhava

por Cristo, a sua memória estará registrada no céu. Ela será elogiada diante

dos mundos reunidos.

Sabemos o que significa trabalhar por Cristo? Se sabemos, tenha-

mos coragem e trabalhemos ainda mais. Qual encorajamento haveríamos

de desejar maior do que este que encontramos aqui? O mundo pode rir e

nos ridicularizar. Nossos motivos podem ser mal interpretados e nossa

conduta deturpada. Nossos sacrifícios por amor a Cristo podem ser

chamados de “desperdício** — desperdício de tempo, desperdício de

dinheiro, desperdício de energias. Porém, que nada disso nos abale. Os

olhos daquele que esteve na casa de Simão, em Betânia, estão postos sobre

nós. Ele vê tudo quanto fazemos por Ele, e fica satisfeito. Portanto, sede

firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,

no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1 Co 15.58).

O Falso Apóstolo e Seu Pecado Arraigado Leia Mateus 26.14-25

No começo desta passagem vemos como nosso Senhor Jesus Cristo

foi traído e entregue às mãos de seus inimigos mortais. Os sacerdotes e

escribas, embora ansiosos por vê-Lo morto, não sabiam como concretizar

o seu propósito, pois temiam uma revolta entre o povo. Então, surgiu um

instrumento apropriado, oferecendo-se para levar adiante os seus intentos

Judas Iscariotes. Esse falso apóstolo dispôs-se a trair o seu Mestre, por

trinta moedas de prata.

Em toda a História há poucas páginas mais escuras do que a do

caráter e da conduta de Judas Iscariotes. Não há pior evidência da pe-

caminosidade do homem. Um dos nossos poetas já disse que “uma criança

ingrata é mais cortante do que as presas de uma serpente* ‟. Mas, que

diríamos sobre um discípulo que se dispôs a trair seu próprio Mestre, de

um apóstolo que foi capaz de vender Cristo? Certamente essa não foi a

parte menos amarga do cálice de sofrimentos que nosso Senhor bebeu. Com base nestes versículos, em primeiro lugar, cumpre-nos apren-

Page 226: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

226 Mateus 26.14-25

der que um homem pode desfrutar de grandes privilégios e fazer uma grande

confissão e, mesmo assim, o tempo todo seu coração pode não estar correto

diante de Deus. Judas Iscariotes dispunha dos mais elevados privilégios

religiosos possíveis. Foi escolhido para ser apóstolo e companheiro de

Cristo. Foi testemunha ocular dos milagres de nosso Senhor e ouvinte de

seus sermões. Ele viu aquilo que Moisés e Abraão jamais viram, e ouviu o

que Davi e Isaías nunca ouviram. Viveu na companhia dos onze apóstolos.

Foi cooperador de Pedro e João. Porém, a despeito de tudo isso, seu

coração nunca foi mudado; ele se apegava a um pecado de estimação.

Judas Iscariotes fazia uma respeitável profissão religiosa. Quanto à

sua conduta externa tudo era correto, apropriado e coerente. Como os

demais apóstolos, ele parecia crer e desistir de tudo por amor a Cristo. Ele

também fora enviado para pregar e realizar milagres. Nenhum dos onze

parece ter suspeitado que Judas era um hipócrita. Quando nosso Senhor

disse: “um dentre vós me trairá”, ninguém falou: “Será Judas?” Não

obstante, durante todo aquele tempo, seu coração nunca foi mudado.

Deveríamos observar tais coisas. Elas servem para nos humilhar e

instruir. Assim como a mulher de Ló, Judas foi posto como um farol para

toda a igreja. Que nós pensemos freqüentemente a respeito dele, e

digamos, enquanto meditarmos, “sonda-me, ó Deus, e conhece o meu

coração... vê se há em mim algum caminho mau” (SI 139.23,24). To-

memos a resolução, pela graça de Deus, de nunca nos contentarmos com

qualquer coisa menos do que uma conversão completa e genuína do

coração.

Em segundo lugar, aprendamos, com base nestes versículos, que o

amor ao dinheiro é uma das maiores armadilhas para a alma de um homem.

Não podemos imaginar uma prova mais evidente dessa verdade do que o

caso de Judas. Aquela pergunta infame, “Que me quereis dar?”, revela o

pecado secreto que foi a ruína de Judas. Ele havia desistido de muita coisa,

por causa de Cristo; mas não havia desistido de sua cobiça.

As palavras do apóstolo Paulo deveriam soar com freqüência aos

nossos ouvidos: “O amor do dinheiro é raiz de todos os males” (1 Tm

6.10). A história da igreja está repleta de ilustrações dessa verdade. Foi por

dinheiro que José foi vendido por seus irmãos. Por dinheiro Sansão foi

traído e entregue aos filisteus. Por dinheiro Geazi enganou Naamã e mentiu

para Elizeu. Por dinheiro Ananias e Safira tentaram ludibriar o apóstolo

Pedro. Por dinheiro o Filho de Deus foi entregue às mãos dos ímpios.

Parece extraordinário que a causa de tantos males seja tão amada pelos

homens.

Page 227: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.14-25 227

Que todos nós estejamos precavidos contra o amor ao dinheiro. Em

nossos dias o mundo está cheio deste amor. A praga está por toda parte.

Milhares de pessoas, que abominariam a idéia de adorar uma imagem de

escultura, não se envergonham em fazer do ouro um ídolo. Todos estamos

sujeitos a essa infecção, desde o menor ao maior dentre nós. Podemos amar

ao dinheiro mesmo sem possuMo, da mesma maneira como podemos

possuir o dinheiro sem amá-lo. Este é um mal que opera de maneira muito

enganadora. Leva-nos em cativeiro, antes mesmo de percebermos que já

estamos presos em suas cadeias. Uma vez que permitimos que ele nos

domine, o amor ao dinheiro irá endurecer, paralizar, cauterizar, congelar,

enferrujar e secar a nossa alma. Isso aconteceu até mesmo a um apóstolo de

Cristo. Cuidemos para que também não nos aconteça. Um pequeno

vasamento pode afundar um grande navio. Um único pecado

não-mortificado pode arruinar uma alma.

Deveríamos lembrar-nos com frequência de palavras solenes como

estas. Que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua

alma?”; “nada temos trazido para o mundo, nem cousa alguma podemos

levar dele”. Nossa oração diária deveria ser “não me dês nem a pobreza

nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário” (Pv 30.8). O nosso alvo

constante deveria ser o enriquecimento na graça. Os que querem ficar ricos

em possessões mundanas freqüentemente descobrem, mais tarde, que

fizeram a pior das barganhas. A exemplo de Esaú, trocaram uma porção

eterna por uma pequena gratificação temporária. Assim como Judas

Iscariotes, venderam-se à perdição eterna.

Nestes versículos aprendemos, em último lugar, a situação de-

sesperada de todos quantos morrem sem se converter. As palavras de nosso

Senhor, a respeito do assunto, são peculiarmente solenes. Disse Ele acerca

de Judas: “Melhor lhe fora não haver nascido!”.

Esta afirmativa admite somente uma interpretação. Ela nos ensina

claramente que é melhor nunca viver, do que viver neste mundo sem ter fé,

e morrer sem a graça divina. Morrer em tal estado significa ruma para todo

o sempre. Trata-se de uma queda sem recuperação. É uma perda

absolutamente irreparável. No inferno não haverá qualquer possibilidade

de mudança. O abismo entre céu e inferno é enorme, e ninguém pode

atravessá-lo.

Esta declaração nunca poderia ter sido usada se houvesse alguma

verdade na doutrina da salvação universal. Se realmente fosse verdade que,

mais cedo ou mais tarde, todos os seres humanos alcançarão o céu, e que o

inferno cedo ou tarde não terá mais habitantes, então jamais poderia ter

sido dito que seria melhor um homem “não haver nascido”, conforme disse

Jesus. O próprio inferno perderia os seus terrores, se viesse a ter um fim. O

próprio inferno se tornaria um lugar

Page 228: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

228 Mateus 26.14-25

suportável, se após milhões de anos houvesse uma esperança de liberdade

e de o condenado ir para o céu. Porém, a salvação universal não encontra

qualquer fundamento nas Escrituras. O ensino da Palavra de Deus sobre o

assunto é claro e explícito. Há um “verme” que não morre e um “fogo” que

não se apaga (Mc 9.44). “Se alguém não nascer de novo” (Jo 3.3),

desejará, um dia, nunca ter nascido. Escreveu Burkitt: “Melhor não existir

do que não existir em Cristo”.

Apeguemo-nos firmemente a esta verdade, sem deixá-la escapar.

Sempre há pessoas que têm aversão à realidade e eternidade do inferno.

Vivemos em uma época em que uma benevolência mórbida leva muitos

homens a exagerar a misericórdia de Deus às custas da justiça de Deus; e

falsos mestres ousam falar de um „ „amor de Deus que ultrapassa até

mesmo o inferno”. Ofereçamos resistência a tal tipo de ensino, movidos

por um santo zelo, e permaneçamos fiéis à doutrina da Sagrada Escritura.

Que nós não nos envergonhemos de andar nas antigas veredas, crendo que

existe um Deus eterno, um céu eterno e um inferno eterno. Se nos

afastarmos desta crença, estaremos admitindo a cunha afiada do ceticismo,

e por fim acabaremos negando qualquer doutrina do evangelho. Entre uma

crença na eternidade do inferno e a infidelidade evidente não há qualquer

ligação. Acerca disso podemos estar descansados.

A Ceia do Senhor e os Primeiros Participantes Leia Mateus 26.26-35

Estes versículos descrevem a instituição da ordenança da Ceia do

Senhor. Nosso Senhor sabia bem as coisas que estavam diante de si, e

graciosamente escolheu a última noite de quietude que podia ter, antes da

crucificação, como ocasião para conceder um dom à sua igreja, antes de

partir. Quão preciosa deve ter parecido esta ordenança, mais tarde, quando

os discípulos se lembraram dos acontecimentos daquela noite! Quão

lamentável saber que nenhuma outra ordenança tem provocado uma

controvérsia tão feroz, e sido tão tristemente mal compreendida como esta

ordenança da Ceia do Senhor. Ela deveria ter unificado a igreja, mas

nossos pecados a tem transformado em um motivo de divisões. Aquilo que

visava ao nosso bem com freqüência tem sido transformado em ocasião de

tropeço.

A primeira coisa que nos chama a atenção nestes versículos é a

correta significação das palavras de nosso Senhor, “isto ê o meu corpo' „ ‘isto

ê o meu sangue ‟É desnecessário dizer que este assunto

Page 229: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.26-35 229

tem causado divisão na igreja visível de Cristo. Muitos volumes de te-

ologia controvertida já foram escritos a respeito, mas não deveríamos

deixar de ter uma opinião bem formada sobre o assunto, somente porque

os teólogos têm disputado e diferido entre si. A compreensão errônea

destas palavras de Cristo já originou muitas superstições deploráveis.

O nítido sentido das palavras de nosso Senhor parece ser o se-

guinte: “Este pão representa o meu corpo. Este vinho representa o meu

sangue”. Jesus não quis dizer que o pão oferecido a seus discípulos era,

real e literalmente, o seu corpo. Também não quis jamais dar a entender

que o vinho era, Hteralmente, o seu sangue. Firmemo-nos nesta

interpretação, pois ela conta com o apoio de diversas razões importantes.

A conduta dos discípulos, na Ceia do Senhor, proíbe-nos de crer

que o pão que receberam fosse o corpo de Cristo, e o vinho fosse o seu

sangue. Eles todos eram judeus, ensinados desde a infância a crer que era

pecado ingerir a carne juntamente com o sangue (Dt 12.23-25). No

entanto, nada existe nesta narrativa bíblica que demonstre que tenham

ficado chocados com as palavras de nosso Senhor. Evidentemente, eles

não viram qualquer mudança no pão e vinho.

Nossos próprios sentidos, hoje, impedem-nos de acreditar que haja

qualquer modificação no pão e vinho, na celebração da Ceia do Senhor.

Nosso paladar nos diz que esses elementos são real e literalmente aquilo

com que se parecem. A Bíblia nos manda crer em fatos que ultrapassam o

nosso entendimento, mas nunca ordena que creiamos naquilo que

contradiz os nossos sentidos.

A verdadeira doutrina acerca da natureza humana de nosso Senhor

proíbe-nos crer que o pão, na Ceia do Senhor, possa ser seu corpo, ou o

vinho seu sangue. O corpo natural de Jesus não pode estar em mais de um

lugar ao mesmo tempo. Se o corpo de Cristo pudesse estar reclinado à

mesa, e, ao mesmo tempo, ser ingerido pelos discípulos, fica perfeitamente

claro que aquele não era um corpo humano, como o nosso. Isto é algo que

jamais devemos admitir, sequer por um momento. A glória do cristianismo

é que o nosso Redentor é homem perfeito e Deus perfeito.

Finalmente, o caráter da linguagem empregada por nosso Senhor

durante a Ceia, torna inteiramente desnecessário interpretarmos as suas

palavras literalmente. A Bíblia está cheia de expressões semelhantes, às

quais ninguém pensa em dar uma interpretação que não seja figurativa. Por

exemplo, nosso Senhor fala de si mesmo como a “porta” e a “videira”, e

sabemos que Ele está usando símbolos e figuras quando assim fala.

Portanto, não há qualquer incoerência em supor que Ele falou em

linguagem figurativa quando instituiu a Ceia do Senhor. E temos ainda

maior direito de assim pensar, quando nos lembramos das

Page 230: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

230 Mateus 26.26-35

graves objeções que advêem de uma interpretação literal.

Que nós guardemos estas coisas em mente, e não nos esqueçamos

delas. Numa época em que as heresias tanto se multiplicam, é bom

estarmos bem armados. Pontos de vista confusos e ignorantes, acerca do

significado da linguagem das Escrituras, são uma grande causa de erros

doutrinários.

A segunda coisa que exige a nossa atenção, nestes versículos, é o

próposito e o objetivo porque a Ceia do Senhor foi instituída. Novamente, este é

um assunto em torno do qual prevalece muita obscuridade. A ordenança da

Ceia do Senhor tem sido considerada como algo misterioso e que

ultrapassa o entendimento. Imenso dano tem sido feito ao cristianismo pela

linguagem vaga e floreada com que muitos escritores se permitem abordar

esta ordenança. Nada existe, na narrativa original da instituição da Ceia,

que possa justificar interpretações assim. Quanto mais simples a nossa

compreensão sobre o propósito desta ordenança, mais bíblica ela será.

A Ceia do Senhor não é um sacrifício. Não há nela qualquer

oblação, nenhuma oferenda de coisa alguma, senão nossas orações, lou-

vores e ações de graças. Desde o dia em que Jesus morreu, não há

necessidade de qualquer outra oferenda pelo pecado. Com uma única

oferta Ele aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados (Hb

10.14). Sacerdotes, altares e sacrifícios deixaram de ser necessários,

quando o Cordeiro de Deus ofereceu a si mesmo. Tais ofícios e instituições

chegaram ao seu ponto final; a sua utilidade cessou para sempre.

A Ceia do Senhor não tem poder de conferir benefícios aos que dela

participam, se estes não se aproximam com fé. O mero ato formal de comer

o pão e beber o vinho será completamente inútil, a menos que seja feito

com um reto coração. Eminentemente, esta é uma ordenança para a alma já

vivificada, e não para aquela que está morta; é uma ordenança para os

convertidos, e não para os inconversos.

A Ceia do Senhor foi ordenada para ser um memorial contínuo do

sacrifício da morte de Cristo, até que Ele volte. Os benefícios que ela

concede são espirituais, e não físicos. Os seus efeitos devem ser procurados

em nosso homem interior. Sua finalidade é fazer lembrar- -nos, mediante

elementos visíveis e tangíveis, pão e vinho, que o oferecimento do corpo e

sangue de Cristo por nós, na cruz, é a única expiação pelo pecado, e é a

vida da alma de um crente. Os seus propósitos são ajudar nossa débil fé,

para que tenhamos um relacionamento mais próximo com nosso Senhor

crucificado, e nos assistir e alimentar de uma maneira espiritual do corpo e

do sangue de Cristo. E uma ordenança para pecadores remidos, e não para

anjos que nunca caíram. Recebendo-a, declaramos publicamente nosso

senso de culpa e nossa

Page 231: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.26-35 231

necessidade de um Salvador, nossa confiança em Jesus e nosso amor por

Ele, nosso desejo de viver alicerçados sobre Ele e nossa esperança de viver

com Ele. Usando a Ceia com esta atitude, veremos que nosso

arrependimento será mais profundo, nossa fé será fortalecida, nossa

esperança avivada e nosso amor aumentado; nossos pecados costumeiros

se enfraquecerão, e as graças divinas serão intensificadas. Isto, portanto,

aproxima-nos mais de Jesus Cristo.

Guardemos era mente estas coisas. Elas precisam ser relembradas

nestes nossos últimos dias. Nada existe em nossa religião que estejamos tão

prontos a perverter e mal-entender, quanto aquelas partes que envolvem os

nossos sentidos. Tudo aquilo que pudermos tocar com a nossa mão, e ver

com nossos olhos, temos a tendência de transformar em um ídolo, ou

esperar dessas coisas algum benefício, como se fosse por mágica.

Vigiemos, sobretudo, no que diz respeito à Ceia do Senhor, contra esta

nossa tendência. Acima de tudo, como diz a homilia, tomemos cuidado para “que o memorial não seja transformado em sa-crifício* '.

A ultima coisa a merecer uma breve nota, nesta passagem, é o

caráter dos que participaram na primeira Ceia. Esta é uma particularidade

repleta de consolo e instrução. O pequeno grupo, que pela primeira vez

recebeu do Senhor a ministração da Ceia, era composto pelos apóstolos a

quem Ele havia escolhido para acompanhá-Lo durante o seu ministério

terreno. Eram homens pobres e iletrados, que amavam a Cristo, mas eram

todos igualmente fracos, tanto na fé quanto no conhecimento. Eles não

compreendiam o pleno significado das afirmações e dos atos de seu

Mestre. Não conheciam a fragilidade de seus próprios corações. Pensavam

estar preparados para morrer em companhia de Jesus, mesmo assim,

naquela mesma noite todos O deixaram e fugiram. Nosso Senhor sabia de

tudo isso perfeitamente bem. O estado real de seus corações não Lhe era desconhecido. Mesmo assim Ele não lhes negou a participação na Ceia.

Há um grande ensinamento nesta circunstância. Ela nos mostra

claramente que não devemos impor um grande conhecimento e um grande

vigor espiritual como qualificativos indispensáveis para a participação na

Ceia do Senhor. Um homem pode conhecer bem pouco e não ser mais do

que uma criança em termos de vigor espiritual, mas não deve, por isso, ser

excluído da mesa do Senhor. Este homem realmente se ressente de seus

pecados? Ele realmente ama a Cristo? Tem o desejo autêntico de servi-Lo?

Se assim for, devemos recebê-lo e encorajá-lo. Sem duvida, devemos fazer

todo o possível para excluir comungantes indignos. Nenhuma pessoa alheia

a graça de Deus deveria participar da Ceia do Senhor, mas devemos ter

cuidado de não rejeitar àquele a

Page 232: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

232 Mateus 26,26-35

quem Cristo não rejeitou. Não há sabedoria alguma em nos mostrarmos

mais estritos do que nosso Senhor e seus apóstolos.

Passemos adiante, fazendo uma séria auto-inquirição de nossa

própria conduta a respeito da Ceia do Senhor. Nós nos afastamos dela

quando está sendo celebrada? Nesse caso, como podemos justificar nossa

conduta? Não podemos alegar que não se trata de uma ordenança ne-

cessária. Dizer isso significa desprezar o próprio Jesus Cristo e declarar

que não Lhe obedecemos. Também não podemos alegar que nos sentimos

indignos de participar da mesa do Senhor. Afirmar tal coisa é declarar que

estamos despreparados para a morte, despreparados para nos

encontrarmos com Deus. Estas são considerações extremamente solenes.

Todos os que não participam da Ceia do Senhor deveríam ponderá-las

bem.

Temos o hábito de vir à Ceia do Senhor? Nesse caso, com que

atitude o fazemos? Achegamo-nos a ela de forma inteligente e humilde,

com fé no coração? Compreendemos, na verdade, o que nos propomos a

fazer? Sentimos, efetivamente, a nossa peeaminosidade e nossa ne-

cessidade de Jesus Cristo? Desejamos viver uma vida realmente cristã, e

professar realmente a fé cristã? Feliz o homem que pode dar respostas

satisfatórias a estas indagações. Que ele vá em frente e persevere.

A Agonia no Getsêmani Leia Mateus 26,36-46

Os versículos que acabamos de ler descrevem aquilo que é co-

mumente chamado de a “paixão” de Cristo no Getsêmani. É uma

passagem que, sem dúvida contém profundidades e mistérios. Deveríamos

lê-la com reverência e admiração, pois há nela muitas coisas que não

podemos compreender inteiramente.

Por que motivo encontramos nosso Senhor muito entristecido e

angustiado, conforme lemos neste trecho? Como devemos entender suas

palavras: “A minha alma está profundamente triste até à morte?” Por que

vemos Jesus distanciar-se de seus discípulos e prostrar-se de rosto em

terra, a fim de dirigir ao Pai fortes clamores em oração por três vezes? Por

que o todo-poderoso Filho de Deus, que fizera tantos milagres, estava

agora tão triste e inquieto? Por que Jesus, que veio ao mundo para morrer,

agora quase desmaiava ao aproximar-se a morte? Por que todas estas

coisas?

Só existe uma única resposta razoável para estas indagações. O peso que estava sobre a alma de nosso Senhor não era o temor da morte

Page 233: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.36-46 233

e de suas agonias. Milhares de pessoas têm sofrido os mais terríveis

sofrimentos físicos e morrido sem emitir um gemido, e, sem dúvida,

poderia ter sido assim com nosso Senhor. Mas o peso real, que tanto

entristecia o coração de Jesus, era o peso do pecado do mundo, que

naquele momento parecia estar pesando sobre Ele com força peculiar. Era

a carga de nossa culpa que Lhe estava sendo imputada, a qual agora estava

sendo lançada sobre Ele, como era posta sobre a cabeça do cordeiro da

expiação. Não há coração humano que possa conceber quão grande era

essa carga. Só Deus o sabe. Bem podia falar a litania grega sobre os

sofrimentos desconhecidos de Cristo”. E as palavras de Scott sobre esse

assunto provavelmente são corretas: “Cristo, naqueles momentos,

suportava uma penúria tao intensa (como aquela que sofrem os espíritos

condenados) quanto fosse possível suportar sem deixar de ter uma

consciência pura, um perfeito amor a Deus e aos homens, e uma segura

confiança de uma consumação gloriosa“.

Mas por mais misteriosa que nos possa parecer essa etapa na his-

tória de nosso Senhor, não devemos deixar de observar as preciosas lições

de instrução prática nela contidas. Vejamos, pois, quais são essas lições.

Em primeiro lugar, aprendamos que a oração é o melhor remédio

prático que podemos usar em tempos de tribulação. Vemos que Cristo mesmo

orou quando sua alma estava angustiada. Todos os verdadeiros crentes

deveriam fazer o mesmo.

As tribulações são um cál ice do qual todos precisamos beber neste

mundo de pecado. „ „O homem nasce para o enfado como as faíscas das

brasas voam para cima” (Jo 5.7). Não podemos evitá-lo. Dentre todas as

criaturas, nenhuma é tão vulnerável quanto o homem. Nosso corpo, nossa

mente, nossa família, nossos negócios, nossos amigos, são várias portas

por onde a tribulação pode vir. Mesmo o mais santificado dos filhos de

Deus não pode declarar-se como exceção. A exemplo de seu Senhor, os

crentes, com grande freqüência, são “homens de dores” Gs 53.3).

Qual seria a primeira coisa que deveríamos fazer, quando nos

sentimos atribulados? Deveríamos orar. À semelhança de Jó, devemos

prostrar-nos e adorar ao Senhor (Jó 1.20). Tal como Ezequiel, devemos

expor as nossas dificuldades diante do Senhor (2 Rs 19.14). A primeira

pessoa a quem deveríamos pedir ajuda é ao nosso Deus. Deveríamos

contar ao nosso Pai, que está nos céus, todas as nossas aflições. De-

veríamos confiar que coisa alguma é por demais pequena ou trivial, para

colocar perante Ele, contanto que o façamos com inteira submissão à sua

vontade. Uma das características da fé consiste em nada ocultar de nosso

melhor Amigo. Assim agindo, podemos ter a certeza de que

Page 234: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

234 Mateus 26.36-46

obteremos a sua resposta. “Se for possível”, e se a coisa solicitada

contribuir para a glória de Deus, então nosso pedido ser-nos-á outorgado.

O espinho na carne ser-nos-á removido, ou então a graça divina ser-nos-á

proporcionada, para podermos suportar tal espinho, segundo se deu com o

apóstolo Paulo (2 Co 12.9). Registremos na mente essa lição, para tempos

de necessidade. É perfeitamente veraz aquela declaração; “A oração é um

remédio que alivia preocupações”.

Em segundo lugar, aprendemos que a inteira submissão de nossa

vontade à vontade de Deus deveria ser um dos nossos principais alvos neste

mundo. As palavras de nosso Senhor são um belo exemplo da atitude que

devemos cultivar quanto a essa questão. Ele diz: “Não seja como eu quero,

e, sim, como tu queres”.

Uma vontade descontrolada e não-santificada é uma grande causa

de infelicidade na vida. Isso pode ser visto até nas vidas de pequenos

infantes. É algo que já nasce conosco. Todos nós gostamos de fazer as

coisas à nossa própria maneira. Desejamos e queremos muitas coisas, mas

nos esquecemos de que somos totalmente ignorantes acerca do que é

melhor para nós, e de que somos incapazes de escolher por nós mesmos.

Feliz é quem já aprendeu a não ter desejos, e estar contente em qualquer

situação. Esta é uma lição que só aprendemos com lentidão, e, como o

apóstolo Paulo, não devemos aprendê-la na escola do homem mortal, mas

na escola de Cristo (Fp 4.11).

Desejamos saber se já nascemos de novo e se estamos crescendo na

graça? Nesse caso, vejamos o que acontece no tocante à nossa vontade.

Somos capazes de suportar desapontamentos? Somos capazes de tolerar

com paciência os testes inesperados e os desgostos que nos sobrevêm?

Podemos ver frustrados os nossos planos de estimação e projetos, sem

murmuração e sem queixas? Podemos nos assentar em silêncio e sofrer

calmamente, tanto quanto estar envolvidos em grande atividade? Estas são

questões que comprovam se realmente temos a mente de Cristo. Nunca

deveríamos nos esquecer de que sentimentos calorosos e disposições

alegres não são as evidências mais verdadeiras da graça divina. A vontade

mortificada é uma possessão muito mais valiosa. Mesmo o nosso Senhor

nem sempre se regozijava, mas podia sempre dizer “faça- -se a tua

vontade”.

Por último, aprendamos que existe grande fraqueza, até mesmo nos

verdadeiros discípulos de Cristo, e que eles precisam vigiar e orar a esse

respeito. Vemos Pedro, Tiago e João, três apóstolos escolhidos, dormindo,

quando deveriam estar vigiando e orando. Também vemos nosso Senhor

dirigindo-se a eles com estas solenes palavras: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”.

Page 235: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.36-46 235

Há uma dupla natureza em todos os crentes. Convertidos, reno-

vados e santificados como são, mesmo assim eles ainda carregam consigo

uma massa de corrupção, um corpo de pecado. Paulo refere-se a isso,

quando assevera: ..encontro a lei de que o mal reside em mim. Por

que, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo

nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente,

me faz prisioneiro da lei do pecado...” (Rm 7.21-23). A experiência de

todos os verdadeiros cristãos, em todos os séculos, confirma isso. Eles

encontram dentro de si mesmos dois princípios contrários, e uma batalha

contínua entre os dois. Nosso Senhor alude a esses dois princípios quando

se dirige aos discípulos dormentes. Ele chama a um de “carne” e ao outro

de “espírito”. “O espírito na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.”

Mas nosso Senhor procurou desculpar essa fraqueza em seus dis-

cípulos? Longe de nós pensar tal coisa. Os que tiram esta conclusão

interpretam muito mal o que Ele quis dizer. Jesus usa essa mesma fraqueza

como um argumento para a vigilância e a oração. Ele nos ensina que o

próprio fato de estarmos cercados de tanta fraqueza deveria despertar-nos

continuamente para “vigiar e orar”.

Se desejamos seguir a verdadeira religião cristã, jamais nos es-

queçamos desta lição. Se desejamos andar com Deus confortavelmente e

não cair, como sucedeu a Davi e a Pedro, então nunca nos esqueçamos de

vigiar e orar. Que vivamos como soldados em território inimigo,

montando guarda permanente. Nunca caminhamos com demasiada cau-

tela. Nunca exercemos cuidado em demasia por nossa alma. O mundo é

muito traiçoeiro. O diabo está sempre muito ocupado. Que as palavras de

nosso Senhor soem em nossos ouvidos diariamente, como uma trombeta.

O espírito pode, talvez, estar bem pronto, mas a carne é sempre muito

fraca. Portanto, vigiemos sempre e oremos sempre.

O Beijo do Falso Apóstolo; A Submissão Voluntária de Jesus Cristo

Leia Mateus 26.47-56

Nestes versículos, vemos que o cálice dos sofrimentos de nosso

Senhor Jesus Cristo começa a encher-se. Vemo-Lo traído por um de seus

discípulos, abandonado pelos demais e aprisionado por seus inimigos de

morte. Certamente nunca houve tristezas como as que Ele sofreu. Não nos

esqueçamos, ao ler este trecho da Bíblia, que os nossos pecados foram a

causa dessas tristezas! Jesus foi “entregue por causa das nossas

transgressões” (Rm 4.25).

Page 236: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

236 Mateus 26.47-56

Em primeiro lugar notemos, nestes versículos, como o relacio-

namento entre Jesus e seus discípulos foi marcado por uma graciosa

afabilidade, Este ponto é demonstrado através de uma circunstância

profundamente comovedora, no momento da traição de nosso Senhor,

Quando Judas Iscariotes ofereceu-se para guiar a multidão ao lugar onde

estava o seu Mestre, ele lhes deu um sinal, mediante o qual poderiam

distinguir a Jesus dentre os seus discípulos, mesmo sob a fraca luz da lua.

Ele disse: “Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o”. E assim,

chegando-se a Jesus, disse: “Salve, Mestre!”, e O beijou. Este simples fato

revela os termos afetuosos com que os discípulos se associavam a Jesus. E

costume nos países orientais, quando dois amigos se encontram,

saudarem-se com um ósculo (Êx 18.7; 1 Sm 20.41). Parece, portanto, que

quando Judas beijou Jesus, ele estava apenas fazendo o que todos os

apóstolos estavam habituados a fazer quando encontravam o Mestre, após

uma ausência.

Que nós tiremos desta pequena circunstância conforto para nossas

próprias almas. Nosso Senhor Jesus Cristo é um Salvador gracioso e

afável. Ele não é “homem severo”, repelindo os pecadores e mantendo- -os

à distância. Ele não é um ser tão diferente de nós, em natureza, que

tenhamos de considerá-Lo com assombro, mais do que com afeto. Ele

antes deseja que O consideremos como um irmão mais velho e um querido

amigo. O seu coração, lá no céu, é ainda o mesmo que era neste mundo.

Ele é sempre manso, misericordioso e afável para com os homens

humildes. Confiemos nEle, e não tenhamos receio,

Em segundo lugar, observemos como nosso Senhor condena àqueles

que pensam em usar armas carnais em defesa dEle ou de sua causa. Ele

reprova a um de seus discípulos por ferir um servo do sumo sacerdote. Diz

Ele: „ „Embainha a tua espada‟ ‟. E acrescenta uma declaração solene, de

perpétua significação: “Todos os que lançam mão da espada, à espada

perecerão”.

A espada tem uma utilização legítima e peculiar. Ela pode ser

utilizada com justiça, na defesa de nações contra a opressão. Ela pode

mesmo tomar-se necessária a fim de evitar confusão, saque e rapina em

um país. Mas a espada jamais deve ser empregada na propagação e

manutenção do evangelho. O cristianismo não pode ser imposto mediante

o derramamento de sangue, e nem se pode obrigar as pessoas a crerem. A

igreja teria tido uma história mais feliz se esta sentença tivesse sido mais

frequentemente relembrada. Há poucos países na cristandade onde esse

erro não tem sido cometido, na tentativa de modificar as opiniões

religiosas dos homens mediante compulsão, penalidades, encarceramento

e morte. E com quais efeitos? As páginas da história nos dão uma resposta.

Não têm havido guerras mais sangrentas do que

Page 237: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.47-56 237

as motivadas pelo choque de opiniões religiosas. Com freqüência, com

muita freqüência, infelizmente, os próprios homens que promovem tais

guerras são eles mesmos mortos na batalha. Nunca nos deveríamos

esquecer disso. As armas da milícia cristã não são carnais, e, sim, es-

pirituais (2 Co 10.4).

Em seguida, observemos como nosso Senhor deixou-se fazer pri-

sioneiro por sua própria e livre vontade. Ele não foi levado cativo porque não

pudesse escapar. Teria sido fácil, para Ele, dispersar os seus inimigos pelo

vento, se assim tivesse querido fazer. “Acaso pensas“, Ele disse a um

discípulo, que não posso rogar a meu Pai, e Ele me mandaria neste

momento mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as

Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?“

Nestas palavras vemos o segredo da sua submissão voluntária a seus

inimigos. Ele veio com o propósito de cumprir os símbolos e as promessas

das Escrituras do Antigo Testamento, para que, cumprindo- -os,

providenciasse salvação para o mundo. Ele veio intencionalmente, para ser

o verdadeiro Cordeiro de Deus, o Cordeiro pascal. Veio para ser o bode

expiatório, sobre o qual seriam postas as iniquidades do povo. O seu

coração estava resolvido a realizar essa grande obra. Para isso, era

necessário que fosse velado o seu poder'* (Hc 3.4) por algum tempo. Para

fazer essa obra Ele se tornou um sofredor voluntário. Ele foi preso, julgado,

condenado e crucificado inteiramente por sua própria vontade.

Marquemos esse fato, pois há nele muito encorajamento para nós. O

sofredor voluntário será, também, um Salvador voluntário. O Filho de

Deus, todo-poderoso, que consentiu em ser preso pelos homens e levado

cativo quando poderia tê-los impedido com apenas uma palavra,

certamente estará pronto a salvar as almas que correrem para Ele. Uma vez mais, portanto, devemos aprender a confiar nEle, sem qualquer receio.

Em último lugar, notemos quão pouco os crentes reconhecem a

fraqueza de seus próprios corações, até que sejam provados. Temos, na

conduta dos apóstolos, uma triste ilustração desta verdade. Os versículos

que acabamos de ler se concluem com estas palavras: “Então os discípulos

todos, deixando-o, fugiram”. Todos esqueceram as confiantes afirmações

feitas por eles mesmos, umas poucas horas antes. Esqueceram-se de que

tinham declarado sua disposição de morrer com seu Mestre.

Esqueceram-se de tudo, menos do perigo que agora os encarava de frente.

O temor da morte os dominou e, “deixando-o fugiram”.

Quantos cristãos já fizeram o mesmo! Sob a influência de sen-

timentos agitados, eles prometeram jamais se envergonhar de Cristo!

Depois da Ceia do Senhor, ou de algum sermão poderoso, ou de algum

Page 238: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

238 Mateus 26.47-56

congresso cristão, eles saíram cheios de zelo e amor, prontos a dizer, a

todos os que procuravam acautelá-los acerca da possibilidade de desvio:

“Pois que é teu servo, este cão, para fazer tão grandes coisas?” (2 Rs 8.13).

No entanto, em poucos dias, aqueles sentimentos esfriaram e

desapareceram. Veio uma provação e caíram diante dela. Abandonaram a

Cristo.

Nesta passagem, aprendamos preciosas lições de humildade e auto-

-abatimento. Resolvamos, pois, pela graça de Deus, cultivar um espírito de

humildade e auto-desconfiança. Em nossas mentes, conscientizemo- -nos

de que nada existe de tão ruim que o melhor dentre nós não possa fazer, a

menos que vigiemos, oremos e estejamos amparados pela graça de Deus.

Que uma de nossas orações diárias seja: “Sustenta-me, e serei salvo” (SI 119.117).

Cristo Diante do Concílio Judaico

Leia Mateus 26.57-68

Nestes versículos lemos como nosso Senhor Jesus Cristo foi levado

a Caifás, o sumo sacerdote, e solenemente declarado culpado. Convinha

que assim fosse, pois o grande dia da expiação havia chegado. O

maravilhoso símbolo do bode expiatório estava para ser completamente

cumprido. Era apropriado que o sumo sacerdote fizesse a sua parte e

imputasse o pecado sobre a cabeça da vítima, antes que ela fosse levada

para a crucificação. Que nós possamos meditar sobre estas coisas e

compreendê-las bem. Havia um profundo significado em cada etapa da

paixão de nosso Senhor.

Observemos, nestes versículos, que os maiorais dos sacerdotes foram

os agentes principais a conspirarem para a morte de nosso Senhor. Devemos

recordar que não foi tanto o povo judeu que suscitou esta obra de

impiedade, e, sim, Caifás e seus companheiros, os principais sacerdotes.

Temos nisso um fato instrutivo, merecedor de toda a nossa atenção.

Trata-se de uma prova evidente de que elevados ofícios eclesiásticos não

isentam ninguém de graves erros doutrinários ou pecados tremendos. Os

sacerdotes judeus podiam traçar a sua ascendência desde Aarão, e eram os

seus legítimos sucessores. O seu ofício era caracterizado por uma santidade

peculiar e responsabilidades peculiares. Mesmo assim, estes mesmos

homens foram os assassinos de Cristo!

Tenhamos o cuidado de não considerar infalível nenhum ministro

religioso. A sua ordenação pela igreja, por mais autorizada que seja,

Page 239: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.57-68 239

não é garantia de que ele não possa nos desviar do caminho e mesmo

arruinar nossas almas. O ensino e conduta de todos os ministros precisa ser

checado pela Palavra de Deus. Eles devem ser seguidos enquanto

estiverem sendo fiéis à Bíblia, e nem um pouco além disso. A máxima

estabelecida em Isaías deve ser a nossa diretriz: “À lei e ao testemunho!”

(Is 8.20).

Em segundo lugar, observemos que nosso Senhor declarou aber-

tamente, ao concílio judaico, a sua própria messianidade e futura vinda gloriosa.

Nenhum judeu não-convertido pode hoje dizer-nos que seus antepassados

foram deixados na ignorância quanto ao fato de Jesus ser o Messias. A

resposta de nosso Senhor à solene adjuração do sumo sacerdote foi uma

declaração suficiente. Ele afirma claramente, diante do concílio, ser o

„„Cristo, o Filho de Deus”. Ele vai mais além, e os adverte que, embora

ainda não tivesse aparecido em glória, conforme esperavam que o Messias

tivesse feito, um dia chegaria em que Ele iria aparecer desse modo. „„Eu

vos declaro que desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita

do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.” Eles ainda veriam

aquele mesmo Jesus de Nazaré, a quem estavam julgando em seu tribunal,

aparecer um dia em toda a majestade, como Rei dos reis (Ap 1.7).

Um fato destacado, que não deveríamos deixar de notar, é que nas

últimas palavras de nosso Senhor para os judeus estava uma predição de

advertência, acerca de sua própria segunda vinda. Jesus lhes disse,

claramente, que ainda haveriam de vê-lo em glória. Sem dúvida, Ele se

referia ao sétimo capítulo de Daniel, na linguagem que usou. Mas falava

para ouvidos surdos. Incredulidade, preconceitos e justiça- -própria

cobriam aqueles judeus, como uma nuvem espessa. Nunca houve um caso

tão grave de cegueira espiritual. Por isso é que a litania da igreja anglicana

contém a oração: *„De toda a cegueira... e dureza de coração, ó bom

Senhor, livra-nos”.

Em último lugar, observemos quanto falso testemunho e quanta

zombaria nosso Senhor precisou suportar diante do concílio judaico. A

falsidade e o ridículo são armas antigas e favoritas do diabo. Satanás é

mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44). Durante todo o ministério terreno de

nosso Senhor vemos essas armas sendo continuamente usadas contra Ele.

Jesus foi chamado de glutão, bebedor de vinho e amigo de publicanos e

pecadores. Foi menosprezado e chamado de samaritano; e a cena final de

sua vida foi perfeitamente coerente com todo o teor passado da mesma.

Satanás incitou os adversários a acrescentarem insulto às agressões. Assim

que Jesus foi declarado culpado, choveu sobre Ele toda a sorte de

indignidades: “Uns cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e outros o

esbofeteavam”. Eles diziam, em zombaria:

Page 240: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

240 Mateus 26.57-68

“Profetiza-nos, à Cristo, quem é que te bateu!“

Quão incrível e estranho tudo isso soa para nós! Quão maravilhoso

que o santo Filho de Deus tivesse se submetido voluntariamente a tais

indignidades, para redimir miseráveis pecadores como nós! Que

maravilhoso cada um dos insultos contra Jesus terem sido preditos se-

tecentos anos antes de ocorrerem! Setecentos anos antes, Isaías tinha

escrito: “não escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam“

(Is 50.6).

Extraímos desta passagem uma conclusão prática. Que jamais nos

surpreenda o termos de enfrentar escárnio e ridículo e calúnia, porque

pertencemos a Jesus Cristo. O discípulo não é maior do que seu mestre,

nem o servo maior do que seu Senhor. Se mentiras e insultos foram

lançados contra nosso Salvador, não temos que nos admirar se as mesmas

armas são constantemente usadas contra o seu povo. Uma das grandes

artimanhas de Satanás é denegrir o caráter dos homens de Deus e fazê-los

cair em descrédito. As vidas de Lutero, Cranmer, Cal- vino e João Wesley

são exemplos abundantes disto. Se alguma vez formos chamados a sofrer

desse modo, suportemos tudo com paciência. Bebemos do mesmo cálice

de que nosso amado Senhor bebeu. Mas há uma grande diferença. No pior

dos casos, experimentamos apenas algumas poucas gotas amargas, mas

Ele bebeu o cálice todo.

Pedro Nega o Seu Mestre Leia Mateus 26.69-75

Estes versículos relatam um acontecimento notável e profunda-

mente instrutivo: a negação de Cristo, por parte do apóstolo Pedro. Este é

um daqueles eventos que provam indiretamente a veracidade da Bíblia. Se

o evangelho fosse mera invenção humana, nunca teríamos sido informados

de que um dos seus principais pregadores foi um dia tão fraco e pecador, a

ponto de negar seu Mestre.

A primeira coisa a requerer nossa atenção é a natureza do pecado de

que Pedro se tomou culpado. Foi um grande pecado. Vemos um homem que

havia seguido a Cristo por três anos e se destacado por sua profissão de fé e

amor por Ele, um homem que havia recebido muitíssima misericórdia e

amabilidade, e que havia sido tratado por Cristo como um amigo familiar

— vemos este homem três vezes negar que conhecia a Jesus! Isto foi muito

mau. Foi um pecado cometido sob circunstancias as mais agravantes.

Ademais, Pedro tinha sido avisado claramente do perigo, e tinha ouvido a

advertência. A pouco tinha re-

Page 241: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.69-75 241

cebido pão e vinho das mãos de nosso Senhor, e declarado em alta voz que, ainda que tivesse de morrer com Cristo, jamais O negaria! Isto, também, foi muito mau.

O pecado foi cometido sob uma provocação aparentemente pequena

. Duas simples criadas fazem a declaração de que ele estava com Jesus. Os

que estavam ao lado dizem: *'Verdadeiramente és também um deles‟'.

Nenhuma ameaça parece ter sido usada; nenhuma violência parece ter sido

feita. No entanto, isto foi suficiente para derrotar a fé de Pedro. Ele nega

diante de todos; nega cora juramento e pragueja. Verdadeiramente, este é

um quadro humilhante!

Frisemos bem esta história, guardando-a na memória. Porquanto

nos ensina, com toda a clareza, que os melhores dentre os santos não

passam de homens, e homens cercados de muitas fraquezas. Um homem

pode converter-se ao Senhor, ter fé e esperança e amor para com Cristo, e,

mesmo assim, ser apanhado em uma falta e sofrer quedas terríveis. Isto nos

mostra a necessidade de humildade. Enquanto estamos no corpo, estamos

em perigo. A carne é fraca e o diabo está sempre ativo. Jamais devemos

pensar: “Eu não caio”.

Isto nos mostra o dever de usarmos de bondade para com os irmãos

na fé que erram. Não devemos classificar homens como réprobos in-

convertidos, somente porque ocasional mente tropeçam e erram. Antes, devemos relembrar-nos de Pedro, e corrigi-los com o espírito de brandura (Gl 6.1),

A segunda coisa que demanda nossa atenção é a série de passos pelos

quais Pedro foi levado a negar seu Senhor. Esses passos estão

misericordiosamente registrados, para nosso aprendizado. O Espírito de

Deus cuidou de tê-los escrito para benefício perpétuo da igreja de Cristo.

Acompanhemos esses passos, um por um.

O primeiro passo para a queda de Pedro foi auto-confiança. Ele

disse: “Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para

mim” (26.33). O segundo passo foi indolência. Seu Senhor lhe havia dito

para vigiar e orar; ao invés de obedecer, Pedro dormiu. O terceiro passo foi

acomodar-se covardemente. Em lugar de ficar ao lado de seu Senhor, ele

primeiro O abandonou, e, depois “o seguia de longe“. O último passo foi

expor-se desnecessariamente a más companhias. Ele foi ao pátio do sumo

sacerdote e “assentou-se entre os serventuários”, como se fosse apenas um

deles. Então veio a queda final — o juramento, os impropérios e a tríplice

negação. Por mais espantoso que pareça, o coração de Pedro vinha se

preparando para aquilo. A sua queda foi puramente o fruto das sementes

que ele mesmo havia semeado. Colheu o fruto do seu próprio proceder (Jr

17.10). Não nos esqueçamos desta parte da história de Pedro. Trata-se

Page 242: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

242 Mateus 26.69-75

de uma grande lição para todos os que se professam cristãos. Graves

enfermidades raramente nos afetam o organismo sem demonstrar pre-

viamente uma série de sintomas. Para o crente, grandes quedas raramente

acontecem sem que tenha havido anteriormente algum desvio secreto. A

igreja e o mundo às vezes ficam chocados pela súbita má-conduta de

alguma figura importante do cristianismo. Crentes são desencorajados e

tropeçam por causa disso. Os inimigos de Deus se regozijam e blasfemam.

Porém, se a verdade pudesse ser conhecida, a explicação para tais casos

geralmente seria um afastamento secreto de Deus. Os homens caem em sua

vida privada muito antes de caírem em público. A árvore tomba com

grande estrondo, mas a deterioração secreta, que leva à queda,

freqüentemente não é descoberta, até o momento da queda.

Por último, merece nossa atenção a tristeza que o pecado de Pedro

trouxe sobre ele. No final do capítulo lemos: “E, saindo dali, chorou

amargamente”. Estas palavras merecem mais atenção do que geralmente

recebem. Milhares de pessoas lêem a história do pecado de Pedro sem dar

importância às suas lágrimas e arrependimento. Que nós possamos ter

olhos para ver e coração para entender.

Nas lágrimas de Pedro vemos a estreita ligação entre o afastamento

de Deus e a infelicidade. Um arranjo misericordioso, de Deus, é que, em

certo sentido, a santidade sempre será a sua própria recompensa. Um

coração pesado e uma consciência perturbada, uma esperança enevoada e

uma colheita abundante de dúvidas sempre serão a consequência da

apostasia e inconsistência. As palavras de Salomão descrevem a

experiência inconsistente de muitos filhos de Deus; ”0 infiel de coração

dos seus próprios caminhos se farta” (Pv 14.14). Portanto, que seja um

princípio fundamental de nossa religião cristã, se realmente amamos a paz

interior, que devemos andar sempre perto do Senhor.

Nas lágrimas amargas de Pedro vemos a grande diferença entre o

hipócrita e o verdadeiro crente. Quando o hipócrita é vencido pelo pecado,

ele geralmente cai para nunca mais levantar-se. Ele não tem dentro de si

nenhum princípio de vida para restaurá-lo. Mas quando o filho de Deus cai

em pecado, ele se levanta novamente e, mediante um verdadeiro

arrependimento e pela graça de Deus, corrige a sua vida. Que ninguém se

lisonjeie ante o pensamento de que pode pecar impunemente, só porque

Davi cometeu adultério e Pedro negou ao seu Senhor. Não há dúvida que

estes dois santos pecaram grandemente, contudo, não prosseguiram em

seus pecados. Eles se arrependeram grandemente, também. Lamentaram

amargamente a sua queda, abominaram e odiaram as suas próprias

iniqüidades. Seria oom se os homens imitassem a esses santos de Deus em

seu arrependimento, tanto quanto em seus pecados. Muitos estão

familiarizados com a queda destes homens de

Page 243: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 26.69-75 243

Deus, mas não com a sua recuperação. Muitos, como Davi e Pedro, caíram

no pecado; mas não se arrependeram como Pedro e Davi.

A passagem inteira está cheia de lições que jamais deveríamos es-

quecer. Professamos ter esperança em Cristo? Então observemos a

fraqueza de um crente e os passos que levam para a queda. Temo-nos

desviado lamentavelmente, e abandonado nosso primeiro amor?

Lembremo- -nos, então, de que o Salvador de Pedro ainda vive. Há

misericórdia para nós, tanto quanto houve para ele, mas precisamos nos

arrepender e buscar essa misericórdia, se desejamos encontrá-la.

Voltemo-nos para Deus, e Ele se voltará para nós. As suas misericórdias

não têm fim (Lm 3.22).

O Fim de Judas Iscariotes Leia Mateus 27.1-10

O início deste capítulo descreve como nosso Senhor Jesus Cristo

foi entregue às mãos dos gentios. Os principais sacerdotes e anciãos dos

judeus O conduziram à Pôncio Pilatos, governador romano. Podemos ver

o dedo de Deus neste incidente. Foi determinado por sua providência que

tanto gentios quanto judeus estivessem envolvidos na morte de Cristo. Foi

determinado por sua providência que os sacerdotes confessassem

publicamente que o cetro se tinha arredado de Judá. Eles não podiam

condenar alguém sem a permissão dos romanos. As palavras de Jacó,

portanto, foram cumpridas. O Messias, “Siló”, na verdade já havia

chegado (Gn 49.10).

O assunto principal destes versos que lemos é o triste fim do falso

apóstolo, Judas Iscariotes. É um assunto cheio de ensinamentos. Ob-

servemos atentamente o que ele contém.

O fim de Judas Iscariotes é uma prova dara da inocência de Jesus,

diante de todas as acusações levantadas contra Ele. Se havia alguma

testemunha viva que pudesse apresentar evidências contra nosso Senhor

Jesus Cristo, Judas Iscariotes era esse homem. Um apóstolo escolhido de

Jesus, um companheiro constante em todas as suas jornadas, um ouvinte

de todo o seu ensinamento, tanto em público quanto em particular, Judas

era alguém que saberia dizer se Jesus tinha feito algum mal, fosse por

palavra ou ação. Tendo-se tomado um desertor, um traidor de nosso

Senhor às mãos dos inimigos, era do seu interesse, na defesa de sua própria

reputação, provar que Jesus era culpado. Ele poderia disfarçar e desculpar

sua própria conduta, se pudesse demonstrar que seu antigo Mestre era um

impostor e transgressor.

Page 244: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

244 Mateus 27.1-10

Por que, então, Judas não veio acusá-Lo? Por que ele não se apre-

sentou diante do concílio judaico para especificar suas acusações contra

Jesus, se é que tinha qualquer acusação a fazer? Por que ele não se aven-

turou a acompanhar os principais sacerdotes até Pilatos, para provar aos

romanos que Jesus era um malfeitor? Só há uma resposta possível para

estas perguntas. Judas não se apresentou como testemunha porque sua

consciência não lho permitiu. Por mais maldoso que fosse, Judas sabia que

nada podia provar contra Cristo. Por mais iniquo que fosse, ele sabia que

seu Mestre era santo, inofensivo, inocente, verdadeiro e sem qualquer

culpa. Que isto nunca seja esquecido. A ausência de Judas Iscariotes, no

julgamento de nosso Senhor é uma dentre muitas provas, de que o

Cordeiro de Deus era sem mácula alguma, um homem sem pecado.

Outrossim, vemos na morte de Judas que existe um tipo de ar-

rependimento que vem muito tarde. Lemos claramente que Judas ficou

“tocado de remorso”. Lemos até mesmo que ele foi aos sacerdotes e disse:

“Pequei, traindo sangue inocente”. Mesmo assim, está claro que ele não se

arrependeu para a salvação.

Este é um ponto que merece atenção especial. Popularmente se diz

que: “Nunca é tarde para se arrepender”. Isto é verdade somente se o

arrependimento for verdadeiro; porém, infelizmente, o arrependimento

tardio freqüentemente não é genuíno. Uma pessoa pode sentir pelos seus

pecados e se entristecer por eles, sentir uma forte convicção de culpa e

expressar profundo remorso, ser atormentado pela consciência e

demonstrar grande perturbação mental; e mesmo assim, a despeito disso

tudo, não se arrepender de coração. A razão destes sentimentos pode ser o

perigo presente e o temor da morte, e o Espírito Santo pode não ter

realizado obra alguma nessa pessoa.

Cuidemos para não confiar no arrependimento tardio. “Eis agora o

tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2 Co 6.2). Um

ladrão penitente foi salvo na hora da morte, para que ninguém de-

sesperasse da salvação; mas apenas um, para que ninguém seja presumido.

Que não desconsideremos qualquer coisa que diga respeito à nossa

salvação; acima de tudo, não deixemos de lado o arrependimento, me-

diante a vã idéia de que ele só depende do nosso próprio poder. As

palavras de Salomão sobre este assunto são realmente temíveis: “Então me

invocarão, mas eu não responderei; procurar-me-ão, porém não me hão de

achar” (Pv 1.28).

Em seguida, observemos na morte de Judas Iscariotes quão pouco

conforto a iniqüidade traz a uma pessoa no fim de sua vida. Somos informados

de que ele atirou para o santuário as trinta moedas de prata, pelas quais

tinha vendido seu Mestre, e saiu em amargura de espírito.

Page 245: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.1-10 245

Aquele dinheiro tinha sido ganho de maneira penosa. Não lhe trouxe prazer

algum, mesmo quando já o tinha consigo. “Os tesouros da impiedade de

nada aproveitam” (Pv 10.2).

O pecado, na verdade, é o mais cruel de todos os senhores. Ele faz

muitas promessas maravilhosas, mas que não se concretizam. Os prazeres

que ele dá são momentâneos, enquanto que seus resultados são tristeza,

remorso, auto-acusação e, muitas vezes, a própria morte. Os que semeiam

para a carne, de fato colhem corrupção.

Sentimo-nos tentados a cometer pecado? Lembremo-nos da palavra

das Escrituras: “O vosso pecado vos há de achar” (Nm 32,23). E, em face

disso, resistamos à tentação. Estejamos certos de que, cedo ou tarde, nesta

vida ou na vida futura, neste mundo ou no dia do juízo, pecado e pecador

terão de encontrar-se face a face, para uma amarga prestação de contas.

Estejamos seguros de que, de todas as ocupações, o pecado é a mais

desvantajosa. Judas, Acâ, Geazi, Ananias e Safira — todos descobriram

isso às suas próprias custas. Com razão indagou o apóstolo Paulo: “Naquele

tempo que resultados colhestes? Somente as cousas de que agora vos

envergonhais” (Rm 6.21).

Finalmente, notemos, no caso de Judas a que fim miserável um homem

pode chegar se tem grandes privilégios e não os utiliza corretamente. Somos

informados de que este infeliz “retirou-se e foi enforcar-se”. Que morte

horrível para se morrer! Um apóstolo de Cristo, um ex-pregador do

evangelho, um companheiro de Pedro e João comete suicídio, e assim se

precipita à presença de Deus, sem preparo e sem perdão.

Nunca nos esqueçamos de que nenhum pecador é mais pecaminoso

do que aquele que peca contra a luz e contra o conhecimento. Nenhum

pecador é tão ofensivo a Deus quanto este. Quando olhamos para as

Escrituras, notamos que nenhum pecador tem sido tão freqüentemente

removido de súbito deste mundo, por terríveis visitações da ira de Deus,

quanto este tipo. Lembremo-nos da mulher de Ló, Faraó, Coré, Data e

Abirã, e Saul, rei de Israel. Todos comprovam o que acabamos de dizer. Há

uma solene declaração de João Bunyan, que diz: “Ninguém cai tão

profundamente no poço, quanto aqueles que caem retrocedendo”. Está

escrito em Provérbios: “O homem que muitas vezes repreendido endurece a

cerviz, será quebrantado de repente, sem que haja cura” (Pv 29.1). Que

todos possamos nos esforçar para viver de acordo com a luz que já nos foi

dada. Existe algo que é pecado contra o Espírito Santo e não tem perdão. O

claro conhecimento da verdade na cabeça, combinado com um amor

deliberado pelo pecado, no coração, estão bem próximos dele. Agora, em que estado se encontram os nossos corações? Somos

Page 246: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

246 Mateus 27.1-10

nós tentados a confiar no nosso conhecimento e profissão religiosa, como se

isso bastasse? Lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Estamos

inclinados a nos apegar ao mundo e dar ao dinheiro um lugar de proemi-

nência em nossas mentes? De novo, lembremo-nos de Judas e tenhamos

cautela. Estamos brincando com algum pecado e enganando a nós mesmos

que podemos deixar o arrependimento para mais tarde? Novamente,

lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Ele foi posto diante de nós

como um farol, para que olhemos bem para ele e não naufraguemos na fé.

Cristo Condenado Diante de Pilatos Leia Mateus 27.11-26

Estes versículos descrevem o comparecimento de nosso Senhor

diante de Pôncio Pilatos, o governador romano. Os amigos de Deus devem

ter ficado maravilhados ao ver Aquele que um dia iria julgar o mundo,

permitindo que fosse Ele mesmo julgado e condenado, Ele “que nunca fez

injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (Is 53.9). Ele, de cujos

lábios Caifás e Pilatos um dia receberão a sentença eterna, permitiu

silenciosamente que uma sentença injusta lhe fosse passada. Esses

sofrimentos em silêncio cumpriram as palavras proféticas de Isaías: “Como

ovelha, muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca” (Is

53.7). Toda a paz e esperança dos crentes são devidas a esses sofrimentos

em silêncio. É por causa deles que os crentes terão ousadia no dia do

julgamento, pois nada poderiam alegar por si mesmos.

Pela conduta de Pilatos, aprendemos como ê lastimável a condição de

um homem poderoso mas sem princípios. Pilatos, aparentemente, tinha

concluído que nosso Senhor nada fizera digno de morte. Ele sabia que “por

inveja o tinham entregado”. Caso seguisse o seu próprio julgamento, Pilatos

provavelmente teria rechassado as acusações contra nosso Senhor, e o teria

posto em liberdade.

Pilatos, entretanto, era governador de um povo invejoso e tur-

bulento. O seu grande desejo era buscar a simpatia do povo e agradá-los.

Pouco lhe importava o quanto pecasse contra Deus e contra a própria

consciência, contanto que recebesse o aplauso dos homens. Embora de-

sejoso de salvar a vida de nosso Senhor, ele temia que, ao assim fazer,

acabasse ofendendo aos judeus. Por isso, depois de uma débil tentativa para

desviar a fúria do povo, de Jesus para Barrabás, e de uma tentativa ainda

mais débil para satisfazer a própria consciência, lavando publicamente as

mãos, ele finalmente veio a condenar Aquele a quem ele

Page 247: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.11-26 247

mesmo chamara de “justo”. Ele rejeitou a estranha e misteriosa advertên-

cia que sua esposa lhe enviara depois de um sonho. Ele sufocou protestos

de sua própria consciência; e entregou Jesus “para ser crucificado”.

Observe neste homem miserável um emblema vivo de muitos go-

vernantes deste mundo! Quantos há que têm consciência de que seus atos

públicos estão errados, mas, mesmo assim, não têm a coragem para agir de

acordo com essa consciência. Eles temem o povo. Receiam tomar-se

motivo de risos. Não podem suportar a impopularidade. Como peixes

mortos, eles flutuam com a maré. O louvor dos homens é o ídolo diante do

qual se prostram, e a esse ídolo sacrificam a consciência, a paz interior e a

alma imortal.

Qualquer que seja nossa posição social nesta vida, devemos ser

guiados por princípio, e não por conveniências, O louvor dos homens é

algo pobre, débil e inconstante. Está aqui hoje, mas amanhã já se foi. Que

nos esforcemos para agradar a Deus, e então pouco nos importará se

agradamos ou não os demais. Se tememos ao Senhor, então não temos que

ter receio de ninguém mais.

Convém aprendermos, pela conduta dos judeus, nesta passagem, a

irremediável iniquidade da natureza humana. O comportamento de Pilatos

deu aos principais sacerdotes e anciãos uma oportunidade para

reconsiderarem o que estavam fazendo. As dificuldades que levantou

acerca da condenação de nosso Senhor fizeram com que eles tivessem

tempo para pensar melhor. Mas os inimigos de nosso Senhor não mudaram

de idéia, antes insistiram na concretização de sua maldade. Rejeitaram a

proposta que Pilatos ofereceu. Na verdade, preferiram que um criminoso

vil fosse posto em liberdade, e não Jesus. Clamaram em altas vozes pela

crucificação de nosso Senhor; e, afinal, assumiram sobre si mesmos toda a

culpa pela morte dEle, com palavras de gravíssima significação: “Caia

sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos!”

Mas o que nosso Senhor havia feito para que os judeus tanto O

odiassem? Ele não era ladrão nem assassino. Não era blasfemador contra

Deus nem caluniador dos profetas. A sua vida era caracterizada pelo amor.

Ele “andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos

do diabo” (At 10.38). Ele era inocente de qualquer transgressão contra a lei

de Deus ou dos homens. Mesmo assim, os judeus O odiavam e não

descansaram enquanto não O viram morto! E odiavam - -No porque Ele

lhes dizia a verdade. Odiavam-No porque Ele testificava das obras más

que cometiam. Eles odiavam a luz porque ela tornava visíveis as trevas em

que viviam. Em suma, eles odiavam a Cristo porque Ele era justo e eles

iníquos; porque Ele era santo e eles profanos; porque Ele testificava contra

o pecado, e eles estavam determinados a continuar agarrados em seus

pecados.

Page 248: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

248 Mateus 27.11-26

Observemos o seguinte: poucas coisas são tão pouco percebidas e

cridas quanto a corrupção da natureza humana. Os homens imaginam que,

se vissem a uma pessoa perfeita, haveriam de amá-ia e admirá-la. Eles

enganam a si mesmos, afirmando que é da inconsistência dos que se dizem

cristãos que não gostam, e não, de sua religião em si. Esquecem - -se do

fato que quando um homem realmente perfeito esteve neste mundo, na

pessoa do Filho de Deus, esse homem foi odiado e morto. Este fato basta

para provar a veracidade do que disse Jônatas Edwards: “Os homens

não-convertidos matariam Deus, se pudessem alcançá-Lo‟‟.

Jamais nos deveríamos surpreender ante a iniqüidade prevalente no

mundo. Compete-nos lamentar tal iniqüidade e esforçarmo-nos por

diminuí-la, mas nunca nos surpreender com a sua extensão. Nada há de tão

perverso que o coração do homem não possa conceber ou a mão do

homem não possa fazer. Enquanto estivermos vivos, devemos desconfiar

de nosso próprio coração. Mesmo quando renovado pelo Espírito Santo,

“enganoso é o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente

corrupto” (Jr 17.9).

Os Sofrimentos de Cristo às Mãos

dos Soldados e a Crucificação Leia Mateus 27.27-44

Estes versículos descrevem os sofrimentos de nosso Senhor Jesus

Cristo depois de sua condenação por Pilatos — os seus sofrimentos às

mãos dos brutais soldados romanos e o sofrimento final, na cruz. São

cenas que formam um maravilhoso registro histórico. São maravilhosas

quando nos lembramos do Sofredor, o eterno Filho de Deus. São mara-

vilhosas quando nos lembramos das pessoas por quem esses sofrimentos

foram suportados, Nós e os nossos pecados fomos a causa de todas essas

tristezas. “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1 Co. 15.3).

Antes de tudo, observemos a extensão e a realidade dos sofrimentos de

nosso Senhor. A lista de dores inflingidas ao corpo de nosso Senhor é, de

fato, terrível. Raramente o corpo de uma pessoa tem sofrido tanto mau

trato durante as últimas horas de vida. Mesmo os selvagens mais brutais,

no refinamento de sua crueldade, não poderiam ter acumulado piores

torturas sobre um inimigo do que foram acumuladas sobre a carne e ossos

de nosso amado Mestre. Nunca nos esqueçamos de que Jesus tinha um

corpo humano autêntico, um corpo exatamente como o nosso, tão sensível,

tão vulnerável, tão capaz de sentir dor intensa quanto o nosso. Vejamos,

portanto, o que esse corpo padeceu.

Page 249: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.27-44 249

Nosso Senhor, devemos nos lembrar, já havia passado a noite sem

dormir e suportado extrema fadiga. Ele tinha sido levado do Get- sêmani

para o sinédrio judaico, e dali para o tribunal de Pilatos. Duas vezes tinha

sido interrogado, e por duas vezes havia sido condenado injustamente. Já

havia sido espancado e açoitado cruelmente com varas. E agora, após todos

esses padecimentos, Ele havia sido entregue às mãos dos soldados

romanos, um grupo de homens que, sem dúvida, eram exercitados na

crueldade, e de quem menos se poderia esperar delicadeza ou compaixão.

Esses homens brutais logo começaram a fazer o que bem queriam. Eles se

reuniram em tomo dEle, “toda a coorte‟*. Despiram-No de suas vestes, e

por escárnio, deram-Lhe um manto escarlate. Trançaram uma coroa de

espinhos, e, rindo, puseram-na sobre a cabeça dEle. Então se ajoelharam

em escárnio, como se Ele fosse o impostor de um rei. Cuspiram nEle.

Bateram-Lhe na cabeça com um caniço. Finalmente, depois de O vestirem

com as suas próprias vestes, levaram-No para fora da cidade, a um lugar

chamado Gólgota, onde O crucificaram entre dois ladrões.

Mas, o que era uma crucificação? Vamos, pois, tentar imaginar e

entender este mistério. A pessoa crucificada era deitada de costas sobre

uma escora de madeira sobre a qual a peça que formava a cruz era pregada,

perto de uma das extremidades; ou sobre o tronco de uma árvore, com um

formato que servisse ao mesmo propósito. As mãos da pessoa crucificada

eram estendidas abertas sobre os braços da cruz e atravessadas com pregos

que as prendiam à madeira. Os pés da vítima, igualmente, eram pregados

ao tronco principal da cruz. Depois que o corpo estava assim, bem preso, a

cruz era levantada e encravada firmemente no solo. Ali ficava o infeliz

sofredor, dependurado até que as dores e a exaustão física trouxessem o seu

fim, e isso lentamente, pois nenhum órgão vital era atingido, mas numa

agonia excruciante de pés e mãos feridos e o corpo incapaz de mover-se.

Essa era a morte por crucificação. Essa foi a morte que Jesus enfrentou por

nós! Durante seis longas horas Ele esteve pendurado em frente à multidão

— semi-despido, sangrando da cabeça aos pés, a cabeça ferida pelos

espinhos, as costas laceradas pelo chicote, mãos e pés transpassados pelos

cravos, e, ainda, a zombaria e o desprezo até o último instante, por parte

dos cruéis inimigos.

Meditemos com frequência sobre a cruz e a paixão de Cristo.

Não menos importante, lembremo-nos de que todos esses sofrimentos

horrendos foram experimentados sem murmuração. Nenhuma palavra

de impaciência saiu dos lábios de nosso Senhor. Ele foi perfeito, tanto na vida quanto na morte. Até ao ultimo instante, Satanás nada encontrou nEle.

Em segundo lugar, salientemos que todos os sofrimentos de nosso

Page 250: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

250 Mateus 27.27-44

Senhor Jesus Cristo foram vicários. Jesus não sofreu em razão de pecados

próprios, mas em razão dos nossos pecados. Ele foi, notadamente, o nosso

Substituto em todos os sofrimentos por que passou.

Esta é uma verdade da maior importância. Sem ela a narrativa dos

sofrimentos de nosso Senhor, com todos os seus detalhes e pormenores,

sempre nos pareceria misteriosa e inexplicável. Entretanto, esta é uma

verdade da qual as Escrituras falam freqüentemente, e nunca em tons

incertos. Somos ensinados que Cristo carregou “ele mesmo em seu corpo,

sobre o madeiro, os nossos pecados‟* (1 Pe 2.24); que Ele morreu pelos

pecados, “o justo pelos injustos” (1 Pe 3.18); que Ele não conhecia pecado

mas foi feito pecado por nós “para que nele fôssemos feitos justiça de

Deus” (2 Co 5.21); que “Ele se fez maldição em nosso lugar” (G13.13);

“para tirar os pecados de muitos” (Hb 9.28); que Ele foi “traspassado pelas

nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades”, mas “o Senhor fez

cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (Is 53.5,6). Que todos nos

lembremos constantemente destes textos sagrados. Eles são pedras

fundamentais do evangelho.

Todavia, não devemos nos contentar com uma crença vaga e su-

perficial de que os sofrimentos de Cristo na cruz foram vicários. Devemos

enxergar esta verdade em cada detalhe da sua paixão. Podemos acom-

panhá-Lo do começo ao fim, desde o tribunal de Pilatos até o momento de

sua morte; e vê-Lo, a cada passo, como nosso poderoso Substituto, nosso

Representante, nosso Cabeça, nossa Garantia, e nosso Fiador; nosso Amigo

divino que se propôs a tomar o nosso lugar e, pelo mérito de seus

sofrimentos, comprar nossa redenção. Ele foi chicoteado? Foi, para que

“pelas suas pisaduras” fôssemos sarados. Ele foi condenado, mesmo que

inocente? Foi, para que pudéssemos ser declarados inocentes, embora

culpados. Ele recebeu uma coroa de espinhos? Recebeu, para que

pudéssemos ganhar a coroa da glória. Ele foi despido de suas vestes? Foi,

para que pudéssemos ser vestidos em eterna justiça. Ele foi escarnecido e

desprezado? Foi, para que fôssemos considerados inocentes e justificados

de todo pecado. Ele foi declarado incapaz de salvar a si mesmo? Foi, para

que pudesse salvar a outrem, até o pior de todos. Ele morreu a morte mais

dolorosa e infeliz? Morreu, para que pudéssemos viver eternamente e ser

exaltados às maiores glórias. Que nós meditemos demoradamente sobre

estas coisas. Vale a pena relembrá- -las. O segredo para a paz consiste em

uma correta compreensão acerca dos sofrimentos vicários de Cristo.

Passemos adiante da narrativa da paixão de nosso Senhor, com

sentimentos de profunda gratidão. Nossos pecados são grandes e muitos,

mas um grande sacrifício foi feito para expiá-los. Havia um mérito infinito

em todos os sofrimentos de Jesus Cristo. Foram os sofrimentos

Page 251: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.27-44 251

de Alguém que era tanto homem como Deus. Certamente é apropriado e

correto, e nosso dever, louvar a Deus diariamente, pela morte de Cristo.

Por fim, mas também muito importante, aprendamos, baseados no

relato da paixão de Cristo, a odiar o pecado íntensamente. O pecado foi a

causa de todos os sofrimentos de nosso Salvador. Foram os nossos pecados

que trançaram a coroa de espinhos. Os nossos pecados cravaram os pregos

em suas mãos e pés. O seu sangue foi derramado por causa dos nossos

pecados. Por certo, o pensamento de Cristo crucificado nos deveria fazer

repugnar todo pecado. Com muita razão, diz a homilia da paixão: “Que a

imagem de Cristo crucificado fique impressa para sempre em nossos

corações. Que ela desperte em nós profundo ódio ao pecado, provocando

em nossas mentes o terno amor do Deus Todo- -Poderoso".

A Morte de Cristo e os Sinais Acompanhantes Leia Mateus 27.45-56

Nestes versículos lemos a conclusão da paixão de nosso Senhor

Jesus Cristo. Após seis horas de sofrimento agonizante, Ele foi obediente

até a morte, e “entregou o espírito". Três particularidades na narrativa

demandam atenção especial. Vamos observar esses três pontos.

Em primeiro lugar, observemos as palavras notáveis que Jesus

pronunciou, pouco antes de sua morte: “Deus meu, Deus meu, por que me

desamparaste?" Existe um profundo mistério nestas palavras, que nenhum

mortal é capaz de sondar. Sem dúvida elas não foram ditas por nosso

Senhor somente por causa de dor corporal. Uma afirmação em contrário é

totalmente insatisfatória, e somente desonra ao nosso Salvador bendito. As

palavras foram ditas para exprimir a incrível pressão que estava sobre sua

alma, e a enorme carga dos pecados do mundo. Elas foram ditas para

mostrar como Jesus foi verdadeiramente, e, literalmente, feito nosso

substituto; como Ele foi feito pecado e maldição por nós, suportando sobre

si mesmo a justa ira de Deus contra os pecados do mundo. Naquele

horrível momento, a iniquidade de todos nós foi posta sobre Ele, até às

últimas consequências. “Ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar"

(Is 53.10). Ele levou os nossos pecados e tomou sobre Si as nossas

transgressões. Essa carga deve ter sido ex- tremamente pesada; real e literal

foi a substituição efetuada pelo nosso Senhor em nosso lugar, quando Ele,

mesmo sendo o eterno Filho de Deus, foi capaz de dizer que tinha sido

“desamparado” pelo Pai.

Que esta expressão de Jesus desça até ao fundo de nossos corações

Page 252: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

252 Mateus 27.45-56

e não seja esquecida. Não poderíamos ter maior prova da pecamino-

sidade do pecado, e da natureza vicária dos sofrimentos de Cristo, do que

este seu grito angustiado: “Deus meu, Deus meu, por que me de-

samparaste?” Isto nos deveria levar a odiar o pecado e nos encorajar a

confiar em Cristo.

Em segundo lugar, notemos quão profiuzda significação está contida

nas palavras que descrevem os momentos finais de nosso Senhor. Somos

simplesmente informados de que Ele “entregou o espírito”. Nunca houve

um último suspiro de tão tremenda importância quanto esse. Nunca houve

um evento do qual tanta coisa dependesse. Os soldados romanos e a

multidão espalhada ao redor da cruz nada viram de extraordinário. Eles

somente viram uma pessoa morrendo como outras morrem, com toda a

agonia usual e o sofrimento que acompanhava uma crucificação. Eles

desconheciam total mente os interesses eternos que estavam envolvidos

em toda aquela transação.

A morte de Cristo saldou completamente a enorme dívida que

pecadores tinham para com Deus, abrindo a porta da vida eterna para cada

crente. A sua morte satisfez às justas reivindicações da santa lei de Deus,

para que Deus fosse justo e o justificador do ímpio. Essa morte não foi

apenas um mero exemplo de auto-sacrifício, e, sim, uma completa

expiação e propiciação pelo pecado do homem, alterando a condição e as

possibilidades futuras de toda a humanidade. Essa morte solucionou o

complicado problema de como Deus pode ser perfeitamente santo, e, ao

mesmo tempo, perfeitamente misericordioso. Ela abriu para o mundo uma

fonte purificadora para todo pecado e imundícia. Foi uma vitória completa

sobre Satanás, tendo-o despojado abertamente. Ela desfez a transgressão,

fez expiação pela iniquidade e vindicou justiça eterna. Ela demonstrou a

pecaminosidade do pecado, pelo fato de ter sido necessário um sacrifício

tão grande para expiá-lo. Demonstrou o amor de Deus pelos pecadores,

pelo fato de Ele ter enviado seu próprio Filho para fazer a expiação. De

fato, nunca houve nem poderia haver outra morte como a de Jesus Cristo.

Não admira, portanto, que a terra tremesse quando Jesus morreu em nosso

lugar sobre a cruz maldita. O mundo inteiro foi sacudido e se maravilhou

quando a alma de Cristo foi posta como oferta pelo pecado (Is 53.10).

Por ultimo, notemos ainda, o milagre notável que ocorreu na hora da

morte de nosso Senhor, bem no interior do templo judaico. As Escrituras nos

dizem que “o véu do santuário se rasgou em duas partes, de alto a baixo”.

A cortina que separava o Santo dos Santos do restante do templo foi

rasgada de cima para baixo. De todos os maravilhosos sinais que acompanharam a morte de

nosso Senhor, nenhum foi mais significante do que esse. A escuridão

Page 253: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.45-56 253

ao meio-dia, e que durou três horas, sem dúvida, foi um acontecimento

espantoso. O terremoto que fendeu as rochas, também foi um tremendo

choque. Mas havia um significado naquele súbito rompimento do véu,

rasgado de alto a baixo, que atingiría o coração de qualquer judeu in-

teligente. A consciência de Caifás, o sumo sacerdote, devia estar mesmo

cauterizada, se as notícias sobre o véu rasgado não o abalaram.

O rompimento do véu proclamava o fim e o passamento da lei

cerimonial. Era um sinal de que a antiga dispensação de sacrifícios e

ordenanças já não era mais necessária. A sua obra estava completa, e sua

utilidade acabou-se desde o momento em que Cristo morreu. Não havia

mais nenhuma necessidade de se ter um sumo sacerdote, aspersão de

sangue e um propiciatório terrenos, nem a oferta de incenso, nem um dia de

expiação. O verdadeiro Sumo Sacerdote tinha final mente aparecido, O

verdadeiro Cordeiro de Deus tinha sido morto, e o verdadeiro propiciatório

revelado. As figuras e sombras não eram mais necessárias. Que todos nos

lembremos disso! Estabelecer um altar, um sacrifício e um sacerdócio, agora, é como acender uma lâmpada em pleno meio- dia.

O rompimento do véu proclamava a abertura do caminho da sal-

vação para toda a humanidade. Até à morte de Cristo, o caminho para a

presença de Deus era desconhecido para os gentios e apenas visto

obscuramente pelos judeus. Mas Cristo, tendo-se oferecido como sacrifício

perfeito e obtido eterna redenção, a escuridão e o mistério se acabaram .

Doravante, todos seriam convidados a aproximarem-se de Deus com

ousadia e vir a Ele com confiança, pela fé em Jesus. Uma porta tinha sido

aberta, e o caminho da vida estava posto diante do mundo inteiro. Que

todos possamos nos lembrar disso! Desde a morte de Jesus, o caminho da

paz nunca mais deveria estar envolto em mistérios. Não haveria nenhuma

reserva. O evangelho era a revelação de um mistério que estava oculto

através dos séculos e das gerações. Por isso, envolver, no presente, a

religião em uma capa de mistério é equivocar- -se quanto à maior

característica do cristianismo, a revelação.

Todas as vezes que considerarmos a história da crucificação de

Jesus, façamo-lo com o coração cheio de louvor. Louvemos a Deus pela

confiança de termos a crucificação como fundamento de nossa esperança e

perdão. Nossos pecados podem ser grandes e muitos, mas o pagamento

efetuado pelo nosso grande Substituto em muito os ultrapassa a todos.

Louvemos a Deus pela visão que a crucificação nos dá, do amor do Pai

celeste. Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós O

entregou, certamente nos dará com Ele todas as coisas (Rm 8.32). Não

menos importante, louvemos a Deus por vermos na crucificação a simpatia

de Jesus para com todo o seu povo, os

Page 254: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

254 Mateus 27.45-56

crentes. Ele sabe comover-se diante do sentimento de nossas fraquezas. Ele

sabe o que é sofrimento. Ele é exatamente o Salvador que um corpo

enfermo, com um coração fraco, requer, em um mundo maligno.

O Sepultamento de Cristo; As Vãs

Precauções para Evitar Sua Ressurreição Leia Mateus 27.57-66

Estes versículos contêm a narrativa do sepultamento de nosso

Senhor Jesus Cristo. Havia ainda uma etapa necessária para assegurar o

cumprimento da grande obra da redenção que nosso Redentor empreendeu.

O seu corpo santo, no qual Ele carregou nossos pecados sobre a cruz,

precisava ainda ser depositado na sepultura e ressuscitar. A ressurreição

seria o selo e a pedra angular de toda a sua obra.

A infinita sabedoria de Deus previu todas as objeções dos incrédulos

e infiéis, e tomou providências contra elas. Será que o Filho de Deus

realmente morreu? Ele realmente ressuscitou? Não poderia ter havido

alguma fraude no tocante à realidade de sua morte? Não houve algum

embuste ou logro quanto à realidade de sua ressurreição? Todas estas, e

muitas objeções mais teriam sido levantadas se a oportunidade para isso

tivesse sido dada. Porém, Aquele que sabe qual será o fim das coisas desde

o princípio, impediu a possibilidade da apresentação de tais objeções.

Mediante sua providência, que a tudo controla, Deus ordenou as coisas de

maneira que a morte e o sepultamento de Jesus Cristo ficassem acima de

qualquer dúvida. Pilatos deu permissão para o sepultamento. Um discípulo

amoroso envolveu o corpo em panos de linho e o depositou em um túmulo

novo, escavado na rocha, “no qual ninguém tinha sido ainda posto” (Jo

19.41). Os próprios sacerdotes puseram uma guarda sobre o lugar onde o

corpo tinha sido posto. Judeus e gentios, amigos e inimigos — todos

testificaram do grande fato que Cristo, realmente morreu e foi sepultado.

Esse é um fato que não pode ser questionado. Ele foi realmente torturado,

realmente sofreu, real mente morreu, e realmente foi sepultado.

Marquemos isso bem, pois são fatos que precisam ser lembrados.

Em primeiro lugar, aprendemos que nosso Senhor Jesus Cristo tem

amigos de quem pouco se sabe. Não encontraríamos um exemplo mais

marcante dessa verdade do que esse que vemos nesta passagem. Um

homem chamado José de Arimatéia se apresenta, depois da morte de nosso

Senhor, e pede permissão para sepultá-Lo. Nunca tínhamos ouvido desse

homem anteriormente no ministério terreno de nosso Se-

Page 255: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 27.57-66 255

nhor. Depois disso, nunca mais ouvimos falar a seu respeito. Nada mais

sabemos, senão que ele era um discípulo que amava a Cristo e O honrou na

sua morte. Na ocasião em que os apóstolos haviam abandonado nosso

Senhor; quando era extremamente perigoso alguém mostrar consideração

pelo Senhor; quando parecia que nenhuma vantagem terrena seria ganha

pela confissão de um discipulado; é numa ocasião assim que José de

Arimatéia vem à frente com ousadia, pede o corpo de Jesus e o deposita

em sua própria sepultura nova.

Esse fato nos traz muito consolo e encorajamento. Ele nos mostra

que existem, aqui na terra, pessoas retraídas que conhecem ao Senhor e

sao conhecidas por Ele, mas que sao pouco conhecidas pela igreja. Vemos

que há diversidade de dons entre o povo de Cristo. Alguns glorificam a

Cristo passivamente, e outros O glorificam ativamente. Alguns têm a

vocação de edificar a igreja e ocupar um lugar de projeção pública; há

outros, como José de Arimatéia, que só vêm à frente em ocasiões de

especial necessidade. Mas todos, individualmente, são guiados por um único Espírito; todos, e cada um glorificando a Deus através de diferentes maneiras.

Que essas coisas nos ensinem a sermos mais esperançosos. De-

vemos crer que muitos ainda chegarão do Oriente e do Ocidente, e se

assentarão com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Pode haver, em

lugares ocultos da cristandade, muitos que, como Simeão, Ana e José de

Arimatéia, no presente são bem pouco conhecidos, mas que haverão de

brilhar entre as jóias preciosas do Senhor Jesus, no dia de seu

aparecimento.

Em segundo lugar, aprendemos que Deus pode transtornar os

esquemas de homens maus e fazê-los trabalhar para a sua própria glória.

Aprendemos esta lição de maneira impressionante, pela conduta dos

sacerdotes e fariseus depois do sepultamento de nosso Senhor. A

incansável inimizade desses homens infelizes não podia cessar, nem

mesmo quando o corpo de Jesus já estava na sepultura. Eles se lembraram

de palavras que Jesus havia dito a respeito de “ressuscitar”, e resolveram

tornar impossível a sua ressurreição dos mortos, julgando que poderiam

mesmo impedi-Lo, Eles foram a Pilatos e obtiveram uma guarda de

soldados romanos. Puseram uma escolta ao sepulcro e selaram

oficialmente a pedra da entrada. Em suma, fizeram tudo quanto puderam

para que o sepulcro fosse “guardado com segurança”.

Eles nem imaginavam o que estavam fazendo. Nem pensaram que

estavam providenciando a evidência mais completa da veracidade da

ressurreição de Jesus Cristo que estava para ocorrer. Na verdade, eles

estavam fazendo impossível provar que tivesse havido qualquer fraude ou

engano. A guarda, o selo e as precauções, todos se tornaram

Page 256: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

256 Mateus 27-57-66

testemunhas, depois de poucas horas, do fato que Cristo havia ressus-

citado. Eles tanto poderiam tentar parar o fluxo das marés ou impedir o

nascimento do sol, quanto poderiam tentar impedir que Jesus ressurgisse

da sepultura. Eles foram pegos em sua própria astúcia (1 Co 3.19). Seus

próprios estratagemas se transformaram em instrumentos de demonstração

da glória de Deus.

A história da igreja de Cristo está repleta de exemplos similares a

esse. As próprias coisas que pareciam mais desfavoráveis, muitas vezes se

transformaram em benefícios para o povo de Deus. Que prejuízo trouxe à

igreja de Cristo a perseguição que se levantou após a morte de Estevão?

(At 8.1-4). “Os que foram dispersos iam por toda parte pregando a

palavra.‟* Que mal o encarceramento trouxe ao apóstolo Paulo? Sua

prisão deu-lhe tempo para escrever muitas de suas epístolas, que agora são

lidas em todo o mundo. Qual foi o prejuízo verdadeiro causado à Reforma

na Inglaterra pela perseguição da rainha Maria Sanguinária? De fato, o

sangue dos mártires tornou-se a semente da igreja. Que mal a perseguição

causa ao povo de Deus hoje em dia? Ela só nos faz chegar mais perto de

Cristo. Ela só nos faz aproximarmo-nos mais e mais ao trono da graça, à

Bíblia e à oração.

Que todos os verdadeiros crentes guardem estas verdades no co-

ração e tenham coragem. Vivemos em um mundo onde tudo é controlado

pela mão da perfeita Sabedoria, e onde todas as coisas estão cooperando

juntamente, e continuamente para o bem do corpo de Cristo. Os poderes

deste mundo são meros instrumentos nas mãos de Deus. Ele está sempre

usando esses instrumentos para os seus próprios propósitos, quer tenham

consciência disso ou não. São instrumentos pelos quais Deus está

lapidando e polindo as pedras vivas de seu templo espiritual; e todos os

planos e esquemas dos inimigos somente resultarão em louvor ao Senhor.

Sejamos, pois, pacientes em dias atribulados e escuros, e olhemos para a

frente. As mesmas coisas que agora parecem contra nós, estão todas

trabalhando juntas para a glória de Deus. No momento, vemos apenas a

metade do que realmente sucede. Dentro em pouco veremos tudo com

clareza. Então descobriremos que toda perseguição que agora suportamos,

assim como a escolta ao sepulcro e o selo sobre a pedra, serve para maior

glória a Deus. Até a ira humana há de louvar a Deus (SI 76.10).

Page 257: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 28.1-10 257

A Ressurreição de Cristo Leia Mateus 28.1-10

O assunto principal destes versículos é a ressurreição de nosso Senhor

Jesus Cristo dentre os mortos. Essa é uma das verdades fundamentais sobre

que se baseia o cristianismo, e por isso recebe atenção especial em todos os

quatro evangelhos. Todos os quatro evangelistas descrevem minuciosamente

como nosso Senhor foi crucificado. Todos os quatro relatam, com não menos

clareza que Ele ressuscitou.

Não temos que nos admirar pelo fato de tanta importância ser dada à

ressurreição de nosso Senhor. Ela é o seio e a pedra angular da grande obra de

redenção que Ele veio efetuar. Ela é a prova coro- adora de que Ele pagou a

dívida que se propôs a pagar em nosso favor; a prova de que Ele venceu a

batalha que empreendeu para nos libertar do inferno, e de que foi aceito por

nosso Pai celestial como Fiador e Substituto nosso. Se Ele jamais tivesse saído

da prisão da sepultura, que certeza teríamos de que nosso resgate tinha sido

inteiramente pago? (1 Co 15.17) Se Ele nunca tivesse ressurgido de seu

conflito com o último inimigo, como poderíamos ter a confiança de que Ele

venceu a morte e aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo? (Hb 2.14)

Mas graças a Deus não fomos deixados em dúvida. O Senhor Jesus realmente

„„ressuscitou por causa da nossa justificação' ‟ (Rm 4.25). Os crentes

verdadeiros são regenerados “para uma viva esperança mediante a ressurreição

de Jesus Cristo dentre os mortos” (1 Pe 1.3). Eles podem dizer com toda a

ousadia, juntamente com Paulo: „„Quem os condenará? É Cristo Jesus quem

morreu, ou antes, quem ressuscitou” (Rm 8.34).

Somos gratos porque essa verdade maravilhosa da nossa religião, a

ressurreição de Cristo, está tão clara e plenamente provada. Essa é uma

circunstância impressionante, porque, dentre todos os fatos ligados ao

ministério terreno de nosso Senhor, nenhum ficou tão incontestavelmente

estabelecido quanto a sua ressurreição. A sabedoria de Deus, que conhece a

incredulidade da natureza humana, providenciou uma grande nuvem de

testemunhas sobre o assunto. Nunca houve um fato em que os amigos de Deus

relutassem a crer, tanto quanto a ressurreição de Cristo. Nunca houve um fato

que os inimigos de Deus estivessem tão ansiosos para contradizer. No entanto,

apesar da incredulidade dos amigos e da inimizade dos adversários, o fato

ficou solidamente estabelecido. Para uma mente justa e imparcial as

evidências serão sempre irrefutáveis. Seria mesmo impossível provar qualquer

coisa neste mundo, se nos recusássemos a crer que Jesus ressuscitou.

Page 258: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

258 Mateus 28.1-10

Observemos, nestes versículos a glória e majestade com que Cristo

ressurgiu dentre os mortos. Somos informados de que houve “um grande

terremoto” e “um anjo do Senhor desceu do céu, chegou-se, removeu a pedra

e assentou-se sobre ela‟'. Não precisamos supor que nosso bendito Senhor

precisasse da ajuda de algum anjo, ao sair da sepultura. Não devemos duvidar,

sequer por um momento, que Ele ressuscitou por seu próprio poder. Mas

aprouve a Deus que a sua ressurreição fosse acompanhada e seguida por sinais

e maravilhas. Pareceu conveniente a Deus que a terra estremecesse e

aparecesse um anjo glorioso, quando o Filho de Deus ressurgisse dentre os

mortos como um Conquistador.

Não deixemos de ver, na maneira como nosso Senhor ressuscitou, um

tipo simbólico e uma garantia da ressurreição daqueles que nEle crêem. A

sepultura não conseguiu segurá-Lo além do tempo determinado, e o mesmo se

dará com os crentes. Um anjo glorioso foi testemunha da ressurreição de

Jesus, e anjos gloriosos serão os mensageiros que recolherão os crentes

quando ressuscitarem. Jesus ressuscitou com um corpo renovado, mas um

corpo — real, verdadeiro e material; da mesma forma, os crentes terão um

corpo glorioso e serão como Ele, que é o Cabeça de todos. “Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1 Jo 3.2).

Consolemo-nos com este pensamento. Tribulações, tristezas e

perseguições, com freqüência, são a porção que cabe ao povo de Deus.

Enfermidades, fraqueza e dor muitas vezes ferem e desgastam seu pobre

tabernáculo terreno. Mas o tempo favorável está para vir. Que os crentes

esperem com paciência, pois terão uma ressurreição gloriosa. Quando vamos

morrer, onde seremos sepultados e que tipo de funeral teremos são questões de

pequena importância. A grande pergunta a ser feita é esta: “Como

ressuscitaremos?”

Observemos em seguida o terror que os inimigos de Cristo sentiram no

período da sua ressurreição. Quando viram o anjo, * „os guardas tremeram

espavoridos, e ficaram como se estivessem mortos”. Aqueles brutais soldados

romanos, embora acostumados a contemplar cenas chocantes e dramáticas,

viram algo que os deixou aterrorizados. Diante da visão de um anjo de Deus

perderam de uma vez toda a coragem.

Novamente, vemos nesse fato um tipo e símbolo de coisas ainda por

vir. O que farão o descrente e o ímpio no dia final, quando a trombeta soar e

Cristo voltar em glória, para julgar o mundo? O que farão quando virem todos

os mortos, tanto grandes quanto pequenos, saindo de seus túmulos, e todos os

anjos de Deus reunidos ao redor do grande trono branco? Que temores e

terrores não se apossarão de suas almas quando descobrirem que não mais

poderão evitar a presença de Deus, e por fim terão de enfrentá-Lo face a face?

Ah, que todos os homens

Page 259: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 28.1-10 259

fossem sábios e refletissem sobre o seu fim! Que todos se lembrassem de que

há uma ressurreição e um julgamento, e que também existe a ira do Cordeiro!

Em seguida, notemos as palavras de conforto que o anjo dirigiu aos

amigos de Cristo. Ele disse: “Não temais: porque sei que buscais a Jesus, que

foi crucificado”.

Estas palavras foram ditas com um profundo significado. Elas visavam

a animar o coração dos crentes de todos os séculos, diante da certeza da

ressurreição. A intenção destas palavras é lembrar-nos de que o verdadeiro

crente não tem motivo algum para andar alarmado, não importa o que possa

acontecer neste mundo. O Senhor aparecerá entre as nuvens do céu, e então a

terra será consumida pelo fogo. Os sepulcros entregarão os seus mortos e será,

então, o dia final. O julgamento terá início e os livros serão abertos. Os anjos

separarão o trigo da palha; eles farão a divisão entre bons e maus peixes. Mas

em tudo isto não há motivo para os crentes estarem temerosos. Eles estarão

sem qualquer mancha ou culpa, revestidos da justiça de Cristo. Estarão a salvo

na verdadeira arca, e não serão feridos quando o dilúvio da ira de Deus

irromper sobre a terra. Será então que as palavras do Senhor terão

cumprimento completo: “Ora, ao começarem estas cousas a suceder, exultai e

erguei as vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima” (Lc 21.28).

Então os ímpios e incrédulos verão quão verdadeira é a afirmação bíblica que

díz: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor” (SI 33.12).

Em último lugar, observemos a graciosa mensagem que o Senhor Jesus

enviou aos seus discípulos, depois da ressurreição. Ele apareceu pessoalmente

às mulheres que tinham ido prestar honras ao seu corpo. As últimas junto à

cruz e as primeiras junto ao túmulo, elas foram quem primeiro tiveram o

privilégio de ver a Jesus ressurreto. E receberam a incumbência de levar a boa

nova aos discípulos. O primeiro pensamento de Jesus é para seu pequeno

rebanho, disperso: “ide avisar a meus irmãos”.

Há algo muito tocante nestas simples palavras, “meus irmãos”. Elas

merecem mil pensamentos. Embora fracos, frágeis e tendentes ao desvio

como eram os discípulos, Jesus ainda os chama de “irmãos”. Ele os conforta,

como José fizera a seus irmãos que o tinham vendido, dizendo: “Eu sou José,

vosso irmão”. Por mais que os discípulos tivessem falhado quanto a sua

profissão de fé, por mais que se tivessem acovardado, por temor de homens,

eles ainda eram seus “irmãos”. Glorioso como era em Si mesmo, o

Conquistador da morte, do inferno e da sepultura, o Filho de Deus ainda é

“manso e humilde de coração”. Ele chama a seus discípulos de “irmãos”.

Page 260: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

260 Mateus 28.1-10

Se conhecemos algo da verdadeira religião, podemos deixar esta

passagem levando confortáveis pensamentos. Vemos nas palavras de Cristo

um encorajamento para confiar e não estar temerosos. O nosso Salvador

jamais se esquece do seu povo. Ele se compadece das nossas enfermidades e

não nos despreza. Ele conhece as nossas fraquezas, e mesmo assim não nos

rejeita. O nosso grande Sumo Sacerdote é também nosso Irmão mais velho.

A Incumbência Final Dada aos Discípulos Leia Mateus 28.11-20

Estes versículos formam a conclusão do evangelho de Mateus.

Começam nos mostrando o quanto o preconceito cego prejudica o crente, antes

que ele creia na verdade pura. Também nos mostram as fraquezas que havia

nos corações de alguns discípulos, e como eles custaram a crer. A passagem se

encerra contando-nos algumas das últimas palavras de nosso Senhor sobre a

terra, palavras tio importantes que exigem e merecem toda nossa atenção.

Em primeiro lugar, devemos observar a honra conferida por Deus a

nosso Senhor Jesus Cristo, Nosso Senhor diz: “Toda a autoridade me foi dada

no céu e na terra‟ ‟. Essa também é uma verdade declarada por Paulo aos

Filipenses: “Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de

todo nome” (Fp 2.9). Essa é uma verdade que, sob hipótese alguma, contradiz

a verdadeira noção da divindade de Cristo, conforme alguns, por ignorância,

têm imaginado. Ela é simplesmente uma declaração de que, nos conselhos da

Trindade eterna, Jesus, o Filho do homem, é designado herdeiro de todas as

coisas e Mediador entre Deus e os homens e de que a Ele cabe a salvação de

todos os que são salvos; é uma declaração de que Ele é a grande fonte de

misericórdia, graça, vida e paz. Foi por causa dessa „ "alegria que lhe estava

proposta” que Ele “suportou a cruz” (Hb 12.2).

Com toda a reverência, apeguemo-nos decididamente a essa verdade.

Cristo é aquele que tem as chaves da morte e do inferno. Cristo é o Sacerdote

ungido, o único que pode absolver pecadores. Cristo é a fonte das águas vivas,

o único que pode nos purificar. Cristo é o Príncipe e Salvador, o único que

pode outorgar arrependimento e remissão de pecados. Nele habita toda a

plenitude. Ele é o caminho, a porta, a luz, a vida, o Pastor, o altar de refúgio.

Aquele que tem o Filho tem a vida, e quem não tem o Filho não tem a vida

eterna. Que todos nós nos esforcemos para entender isto. É certo que os

homens podem fa-

Page 261: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 18.11-20 261

cilraente pensar em termos pequenos demais acerca de Deus Pai e de Deus

Espírito Santo, mas ninguém jamais pensou em termos demasiadamente

grandes a respeito de Cristo.

Observemos, em segundo lugar, o dever de que Jesus incumbiu os seus

discípulos. Jesus lhes disse: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações”.

Eles não deveriam reter para si mesmos o seu conhecimento de Jesus Cristo, e,

sim, deveriam comunicá-lo a outras pessoas. Não deveriam supor que a

salvação fora revelada exclusivamente para os judeus, e deviam fazê-la

conhecida do mundo inteiro. Deveriam esforçar-se para fazer discípulos de

todas as nações, e anunciar a todos os povos que Cristo havia morrido pelos

pecadores.

Nunca nos esqueçamos de que essa solene determinação continua

ainda em pleno vigor. Continua sendo dever obrigatório de todo discípulo de

Cristo fazer tudo quanto seja possível, pessoalmente, ou pela oração, para que

outras pessoas venham a conhecer a Cristo. Se negligenciamos este dever,

onde está a nossa fé? Onde está o nosso amor cristão? Se uma pessoa não tem

o desejo de fazer o evangelho conhecido no mundo inteiro, bem se pode

questionar se essa pessoa conhece mesmo o valor do evangelho.

Notemos, em terceiro lugar, a confissão pública que Jesus requer

daqueles que crêem em seu evangelho. Ele disse aos apóstolos para batizarem

todos quantos recebessem como discípulos. Quando lemos esse mandamento

final de nosso Senhor, é muito difícil entender como os homens podem evitar a

conclusão de que o batismo é necessário quando pode ser administrado. Parece

impossível explicar o significado desta passagem como sendo outra coisa que

não uma ordenança externa, a ser administrada a todos quantos se unem à

igreja. Que o batismo externo não é algo absolutamente necessário para a

salvação, fica claramente demonstrado pelo caso do ladrão penitente que

morreu ao lado de Jesus. Ele foi para o paraíso sem ter sido batizado. E que o

batismo externo, apenas, não transmite qualquer benefício espiritual, o caso de

Simão, o mago, o demonstra claramente. Embora batizado, ele permanecia no

“fel de amargura e laço de iniqüidade” (At 8.23). Porém, a afirmação de que o

batismo é uma questão totalmente indiferente e que nem mesmo precisa ser

usado, parece algo que não concorda com as palavras de nosso Senhor nesta

passagem.

A lição prática e clara, nestas palavras, é a necessidade de uma

confissão pública de fé em Cristo. Não basta ser um discípulo secreto. Não

devemos nos envergonhar por deixar que os homens vejam de quem somos e a

quem servimos. Não devemos nos comportar como se não gostássemos de ser

identificados como crentes; devemos tomar a nossa cruz e confessar o nosso

Mestre perante o mundo. As palavras dEle

Page 262: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

262 Mateus 28.11-20

são muito solenes: “Porque qualquer que... se envergonhar de mim e das

minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando

vier na glória de seu Pai com os santos anjos” (Mc 8,38).

Em quarto lugar, sublinhemos a obediência que Jesus requer de todos os

que se declaram seus discípulos. Ele disse aos apóstolos para ensinarem os

novos discípulos a “guardar todas as cousas”, tudo o que Ele ordenou. Essa é

uma expressão perscrutante que demonstra a inutilidade de um cristianismo

apenas de nome e de aparência; demonstra que somente devem ser contados

como verdadeiros cristãos aqueles que vivem em obediência prática à Palavra

e se esforçam por cumprir as coisas que Ele ordenou. A água do batismo e o

pão e vinho da Ceia do Senhor sozinhos, não salvarão a alma de ninguém. De

nada adianta ir a uma igreja, e ouvir os ministros de Cristo, e concordar com o

evangelho, se nossa religião não vai além disso. Como está a nossa vida? Qual

é a nossa conduta diária, no lar e fora dele? O Sermão do Monte é a nossa regra

e padrão de conduta? Nós nos esforçamos por copiar o exemplo de Cristo?

Procuramos fazer as coisas que Ele ordenou? Estas são perguntas que precisam

ser respondidas afírmativamente se somos realmente nascidos de novo e filhos

de Deus. A obediência é a única prova dessa realidade. A fé sem obras, por si

só está morta. “Vós sois meus amigos”, diz Jesus, “se fazeis o que eu vos

mando” (Jo 15.14).

Em quinto lugar, assinalemos a solene menção à Trindade bendita, que

nosso Senhor faz nestes versículos. Ele manda batizar “em nome do Pai e do

Filho e do Espírito Santo”. Este é um daqueles grandes textos bíblicos que

direta e claramente ensinam a poderosa doutrina da Trindade. O texto fala do

Pai, Filho e Espírito Santo como três pessoas distintas, e todos os três como

co-iguais. Assim como é o Pai, também é o Filho e o Espírito Santo. Não

obstante, os três são um.

Essa verdade é para nós um grande mistério. Que nos seja suficiente

receber e crer nessa doutrina, e que nos abstenhamos de qualquer tentativa de

explicação. É tolice infantil recusar aceitação a alguma coisa, simplesmente

porque não a entendemos. Nós somos como uns vermes que rastejam pelo

chão, por breve tempo; quando muito, pouco conhecemos a respeito de Deus e

da eternidade. Que seja suficiente recebermos no coração a doutrina da

Trindade em Unidade, com uma atitude humilde e reverente, sem perguntas

presunçosas. Creiamos que nenhuma única alma pecaminosa poderia ser salva

sem a operação conjunta de todas as três pessoas na bendita Trindade; e

regozijemo-nos, porque Pai, Filho e Espírito Santo, que cooperaram para criar

o homem, também cooperam na salvação do mesmo. Convém que paremos

por aqui. Podemos receber praticamente aquilo que não podemos explicar teoricamente.

Page 263: J. C. RYLE - 1 Meditações no Evangelho de Mateus.pdf

Mateus 28.11-20 263

Finalmente, observemos nestes versículos a graciosa promessa com

que Jesus encerra suas palavras. Ele diz aos seus discípulos: “Estou convosco

todos os dias até à consumação do século“. É impossível concebermos

palavras mais consoladoras, fortalecedoras, animadoras e santificadoras do

que essas. Embora deixados a sós, como crianças órfãs em um mundo frio e

hostil, os discípulos não deveriam pensar que tivessem sido abandonados. O

Mestre estaria sempre com eles (“convosco ). Embora comissionados a

realizar uma obra tão dura quanto aquela para a qual Moisés fora enviado a

Faraó, eles não deveriam ficar desencorajados. O Mestre certamente estaria

“com eles”. Por conseguinte, não havia palavras mais apropriadas para serem

proferidas a quem o foram pela primeira vez. Nenhuma palavra poderia ser

mais adequada à posição daqueles primeiros discípulos. Também não é pos-

sível imaginar uma palavra mais consoladora para os crentes de todos os

séculos.

Que todos os verdadeiros crentes se apossem dessas palavras de Jesus

e as tenham sempre em mente. Cristo está “conosco“ todos os dias. Cristo está

“conosco“ em todo lugar que vamos. Quando nasceu neste mundo, Ele veio

para ser “Emanuel, Deus conosco“. Agora, quando chega ao fim de seu

ministério terrestre e está prestes a deixar o mundo, Ele declara que é

Emanuel, sempre “conosco”. Ele está conosco diariamente para perdoar e

absolver; conosco diariamente para santificar e fortalecer; conosco

diariamente para defender e guardar; conosco diariamente para conduzir e

guiar; conosco em tristezas e alegrias; conosco em saúde ou enfermidade;

conosco na vida e na morte; conosco no tempo e na eternidade.

Que maior consolação os crentes poderiam desejar do que esta? Não

importa o que aconteça, nunca estamos completamente sozinhos ou sem

amigos. Cristo está sempre conosco. Podemos olhar para dentro da sepultura

e dizer, com Davi: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não

temerei mal nenhum, porque tu estás comigo“ (SI 23.4). Podemos olhar para

além da sepultura e dizer, com Paulo: “Estaremos para sempre com o Senhor“

(I Ts 4.17). Jesus o disse e o cumprirá: “Estou convosco todos os dias até à

consumação do século . E, igualmente: “De maneira alguma te deixarei,

nunca jamais te abandonarei (Hb 13.5). Não poderíamos pedir mais do que

isso! Prossigamos, confiando em Cristo e não tendo receio de coisa alguma.

Ser um crente verdadeiro é tudo. Não há quem tenha semelhante Rei, um tal

Sacerdote, um Companheiro tão constante e um Amigo assim, infalível,

como têm os verdadeiros servos de Jesus Cristo.