James Joyce - Retrato Do Artista Quando Jovem.pdf
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JAMES JOYCE
RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM
Retrato do artista quando jovem mais do que uma obra
autobiogrfica. Ela o relato da trajetria de um homem em busca
do pleno conhecimento de si mesmo.
em Retrato do artista quando jovem que Joyce inaugura todo
o simbolismo que formar o cerne de suas obras posteriores. Com
este texto Joyce comea a desenvolver a tcnica do monlogo interior,
que apareceria mais tarde, em toda a sua plenitude, em Ulisses e
Finnegans Wake. Por isso muitos encaram o livro como um
prembulo de Ulisses. Mas Retrato do artista quando jovem uma
obra fechada em si mesma, no sentido de que traz todos os
componentes dos grandes romances. Ainda narrativa linear,
diferentemente de Ulisses, mas j contm em seu bojo todos os
elementos que fizeram da fico de James Joyce um marco da
literatura contempornea.
A difcil passagem da adolescncia maturidade, a busca do
sentido da vida e da arte, a emergncia do indivduo frente
sociedade, o carter aleatrio, e quase sempre desconcertante, da
vida so as grandes discusses que perpassam toda a obra.
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Retrato do artista
quando jovem
James Joyce
Traduo de
Jos Geraldo Vieira
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Ttulo do original ingls:
A portrait of the artist as a young man
da traduo, Editora Civilizao Brasileira S.A., 1987
Direitos no-exclusivos cedidos Ediouro S.A.
ISBN 85-00-92340-7
MAC 2340
EDIOURO PUBLICAES S/A
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CCOONNTTRRAA CCAAPPAA
James Joyce
RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM
Stephen Dedalus o meu nome,
Irlanda o meu pas.
Em Clongowes tenho a minha residncia,
Mas s no cu espero ser feliz.
(Anotao do caderno de Stephen Dedalus)
Retrato do Artista Quando Jovem conta-nos a trajetria de
Stephen Dedalus, alter ego de James Joyce. Mas o livro muito mais
que um depoimento pessoal. Ele o relato de uma busca. A histria
de um homem tentando compreender a si mesmo e aos outros. Uma
anlise minuciosa da existncia humana, com todos os seus dramas,
alegrias, fraquezas e descobertas.
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Et ignotas animum dimittit in artes
Metamorphoses, OVIDIO, VIII, 18
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A P R E S E N T A O
PRIMEIRO tero do presente sculo corresponde ao
estabelecimento das ideologias modernas, nutrientes do medo e do
desejo da aventura que alimentam a arte; o bisturi do realismo corta
ento as sensibilidades, e junta-se ao ascetismo positivista, o
fermento oportuno para o ideal baseado em aes reais. A hora de
mudanas e, mal firmados no seu cho evasivo, os estetas valem-se
da discrepncia, recorrendo ao misticismo cristo ou pago,
teologia moralizante ou aos esoterismos orientais; a angstia de
Kierkegaard e a ontologia heideggeriana disputam preferncias com o
vitalismo de Henri Bergson, com os voluntarismos de Schopenhauer
ou de Nietzsche. Entra em moda a psicologia de William James, de
Freud e de Jung. Na quebra do equilbrio burgus, a sociedade pensa
a revoluo como garantia dos direitos humanos e, em 1917, a
Rssia retoma de forma exacerbada o ideal positivista.
Como Gulliver nas mos do gigante, o homem desse tempo
sente-se transformado em inseto, e debate-se na tentativa de
descrever o mundo j irreconhecvel, retratando-o com as tintas da
revolta, do medo, da perplexidade, do humor custico, da ironia e da
indignao. Assim, mesmo quando a sua produo literria est
fundamentalmente comprometida com valores estticos e msticos, o
artista da transio observa a desagregao ambiente, faz
prognsticos apocalpticos e, ao contrrio do Ado expulso do paraso
estvel, revolta-se contra a flamejante espada do querubim que lhe
impede a reentrada no den. Copiando em escala miservel a altivez
de Prometeu e Lcifer, ele tem conscincia de que a vida sequer se
O
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caracteriza pela falta de sentido pois, em geral, parece fundamentar-
se no desastre.
Trabalhando a ambgua mistura de apocalipse e utopia, o
artista invoca opes variadas antes de tomar o rumo definitivo e,
como nova edio de romntico, toma conscincia da
responsabilidade social e poltica da arte; s vezes faz as escolhas
mais absurdas, como, por exemplo, o americano Ezra Pound, que se
volta para a antiga civilizao romana em busca de parmetros
ticos, quando, em sua poca, o que vige o execrvel e moderno
fascismo italiano. Outros escritores, como Joyce, Virginia Woolf e
Faulkner mergulham em vaga nostalgia da harmoniosa arete grega,
e muitos talentos menores caem em beletrismo estril. Nesse tempo,
porm, de modo geral, poetas e ficcionistas deixam-se fascinar pelo
esdrxulo e o desvio, cultivam o masoquismo, traduzem as pulses
mais prementes da sociedade e, freqentemente, transformam-se em
absurdos paladinos de verdades mortas, desenraizadas. Percebendo
que a beleza no se aloja no olhar do beholder nem no confuso
mundo que observam, procuram-na nos meandros escondidos da
conscincia ou do inconsciente, no fundo da terra, na voragem do
tempo recorrente, nas primitivas virtudes humanas.
Todas as reas artsticas esto infiltradas de indeciso e de
empenho transformador: na msica, Debussy, Bartok, Stravinski e
Ravel exploram audcias dissonantes; o folclore e os regionalismos
vm tona, metamorfoseados; os formalistas russos pinam das
profundezas da lingstica os mistrios da literariedade e, em
decorrncia, a literatura usa o potencial criativo da linguagem,
explorando sistematicamente a metfora, o smbolo, as alegorias, a
misteriosa e perene gravidez das palavras e dos sons. Na pintura,
tambm ocorrem mudanas sintomticas, o suave impressionismo
substitudo pela agudeza do cubismo e, enquanto Chagall voa em
busca do paraso apenas intudo, Picasso desbrava labirintos,
desvendando a angulosa e lasciva alma de mulheres, toureiros e
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minotauros. No cinema, em nome da moral e da ternura
humanitria, cineastas como Eisenstein e Chaplin recorrem
montagem de atrao para exprimir os seus pontos de vista. Por sua
vez, a poesia esplende e maltrata, revelando a misria
contempornea da terra devastada, como no caso exemplar de The
Love-Song of J. Alfred Prufrock e The Waste Land, de T. S. Eliot, ou
como os escritos de Joyce, estruturados sobre temas mitolgicos que,
h milnios, servem ao homem como veculo de regenerao.
A repugnncia pela realidade objetiva leva muitos escritores a
procurar a subjetividade: a sensibilidade da memria de Proust
continua a cativ-los, e Virginia Woolf revigora o lirismo atravs do
estilo do fluxo da conscincia, enquanto Andr Gide examina as
vrias camadas da alma humana, aproveitando-se das caixas de
segredo da mise-en-abyme. Em 1929, um William Faulkner j
inteiramente amadurecido como artista produz o monumental The
Sound and the Fury.
A expressiva retomada artstica da temtica mitolgica, prtica
to comum nos tempos de crise, caracterstica dominante de todo o
perodo e, em cerca de duas dcadas e meia, ajuda a mudar o
panorama geral da arte europia e a da norte-americana; alm disso,
como costuma acontecer, a crise favorece o surgimento de um dos
mais frteis perodos da literatura ocidental, incentivando o
imaginrio potico, admitindo o concurso de variadas intuies
filosficas, estticas e emocionais. Autores dentre os mais
expressivos, como Henry James, Joyce, Virginia Woolf e Thomas
Mann, por exemplo, fazem inteligentes incurses pelo pensamento de
Henri Bergson, de Nietzsche, de George Moore, de Freud, Jung e
William James.
Desse modo, cultivando o novo ou o renovado, resgatando
especialmente os mitos do eterno retorno e da ressurreio, a
vibrante produo literria do incio do sculo geralmente desenha a
utopia, seja no sentido otimista e freqentemente ingnuo da
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literatura marxista, seja pela inverso, pela pardia como a que
Joyce empreende ao inventar os gregos-irlandeses de Ulysses.
este o mundo em que James Joyce se entrega literatura
como um novo Parsifal em busca do Santo Graal; acredita ele que,
na condio de exilado, vai poder resgatar atravs da arte a
conscincia de sua raa, como declara o seu alter-ego Stephen
Dedalus, no final de Retrato do artista quando jovem. Por isso, onde
quer que esteja, carrega na alma a Irlanda, Dublin por inteiro e todos
os irlandeses massacrados por impedimentos como a pobreza e a
ignorncia, a injustia social, a hipocrisia do clero catlico conivente
com a crueza do opressor ingls, o preconceituoso e aristocrtico
protestantismo minoritrio e rgido, e a mgoa da perda de Charles
Parnell, o heri destroado pela violncia poltica e o moralismo
repressor.
Com efeito, misturando os regionalismos da prpria
experincia com os substratos psicolgicos da experincia humana
geral, James Joyce constri com tal desenvoltura o seu universo
fictcio que, embora convivendo com a obra de irlandeses to
talentosos como Bernard Shaw, Synge ou Yeats, garante a
perenidade do binmio Joyce/Irlanda.
Como qualquer jovem intelectual de sua poca, admira Ibsen,
l Kropotkin, Bakunin e Prudhon, olha os fenianos com simpatia,
rotula-se um artista socialista, advoga medidas revolucionrias
contra a opresso britnica e, apesar de gabar-se de odiar a Irlanda,
o amor e o vago humanitarismo patriticos so particularidades que
Stephen Dedalus no consegue disfarar. Apesar disso, alguns
crticos acusam-no de admirao pela burguesia capitalista, e de
indiferena quanto ao destino irlands.
Nascido em Dublin, em 2 de fevereiro de 1882, Joyce o
primeiro filho da grande famlia de Mary Jane Joyce e do arruinado
coletor de impostos John Stanislaus Joyce; desde criana, define-se
pela timidez da rebeldia, faceta de sua personalidade que vai se
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exacerbar por influncia dos anos passados sob a rgida tutela dos
padres jesutas do Clongowes Wood College e do Belvedere College.
Em 1899, aos dezessete anos, entra para o University College de
Dublin, escreve ensaios sobre o teatro, e um panfleto em que ataca o
Irish Literary Theater, ganhando a antipatia de considervel parte da
intelligentsia local; sentindo-se marginalizado, despaisado no
prprio pas, decide mudar-se para a Frana mas, em 1903, volta
Irlanda para assistir morte da me; em 1904, apaixona-se por Nora
Barnacle, me de seus futuros filhos, uma criadinha insinuante com
a qual foge para Trieste, e com quem se casa oficialmente apenas em
1931. Em 1932, enfrenta o ano terrvel do enlouquecimento
irremedivel da filha Anna Lucia mas, tambm naquele ano, tem o
gosto de ver o neto recm-nascido receber o nome de Stephen.
Da mesma forma que o personagem Stephen Dedalus, e talvez
inspirado em Kierkegaard, James Joyce resolve inaugurar o prprio
futuro atravs de um gesto romntico, e foge da realidade
dublinense, embora a Irlanda continue necessariamente plantada em
sua obra, transfigurada, alegorizada, metamorfoseada, simbolizando
o princpio feminino ou, como ele mesmo a descreve, como a voraz
porca que devora as prprias crias, a branca Deusa Porca que, na
verso mitolgica celta, uma das mais fortes representaes da
Grande Me Cerridwen.
Embora o mito seja o grande gerador de vida no corpo geral de
sua produo literria, na escolstica de Toms de Aquino e no
pensamento de Giambattista Vico que ele vai encontrar fundamentos
estticos; partindo de vagas sugestes de natureza tomista, visa
sabedoria e iluminao, e engaja-se na busca de si mesmo e da
beleza artstica. Misturando simbolismo e realismo, com a mesma
liberdade com que utiliza conceitos filosficos, congrega diversas
vertentes da mitologia, fazendo o mito grego comungar com as razes
autctones da tradio celta e da anglo-saxnica, ou com posteriores
emprstimos normandos, almejando estruturar uma sntese
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relativamente idealista, o eptome do homo sapiens.
A sua obra est profundamente comprometida com valores
autobiogrficos, principalmente o romance Retrato do artista quando
jovem, em que a vida do personagem principal solda-se s
impresses da infncia, da adolescncia e da juventude do prprio
autor: esto a registrados a fraca figura de John Joyce, verdadeira
frustrao do arqutipo do Pai, a rgida paixo religiosa da me, o
rigor dos jesutas, a ptria linda e pauprrima explorada pelo
estrangeiro, a Igreja aviltada, o ideal patritico encarnado por
Parnell, a nervosa sensualidade da primeira juventude, a alma da
Irlanda em toda a sua plenitude.
O interesse juvenil do escritor pela medicina d-lhe o gosto
realista do detalhe e da preciso mimtica, e a paixo da forma
denuncia-se mesmo nas particularidades grficas de sua escritura,
onde tambm no se disfara a fascinao pela msica pois, se a
beleza plstica o cativa, logo ela o remete para o ritmo mais amplo,
para a harmonia intuda, para a msica das estrelas.
Paralelamente, Joyce interessa-se pela fora criativa da
linguagem, peculiaridade responsvel pela cativante musicalidade de
seus escritos, onde melodia, ritmo, senso de orquestrao e
harmonia so contedos bsicos. Alis, quando, em 1907, publica
Chamber Music, ele prprio o considera um conjunto de canes;
alm disso, em Trieste, em Paris e em Zurich, na Escola Berlitz,
como professor de lngua estrangeira que mantm a famlia.
Conseqentemente, no amplo caleidoscpio de sua fico mais
madura, o desenho final tem por base um tapete de neologismos
sintticos e vocabulares, sinestesia, variao de pontos de vista,
equilbrio tonal, leit-motifs sintticos, vocabulares ou sonoros,
aglutinaes, montagem espao-temporal, com o recurso das
chamadas tcnicas cinematogrficas como, dentre outras, o
flashback e o flash-forward, o fade-out ou o close-up. Contm
ainda trechos em lnguas estrangeiras, tradues, hibridismo
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lingstico, contraponto, onomatopia e orquestrao, o uso da gria,
dos dialetos, de painis imagsticos entrecruzados, enfim, de uma
imensa gama de formas gestuais e faladas, atravs de que o escritor
visa apreenso de significados latentes.
Desse modo, como exemplar do romance moderno, a obra de
James Joyce no expe propriamente o mundo sem deus
denunciado por Georges Lukacs mas, ao contrrio, levando em conta
elementos da relatividade einsteiniana, como tela relativizada que
sugere a presena do deus absconditus.
Desde os seus seis anos de idade, Joyce armazena na alma
uma pesada carga de sentimentos de culpa e de chamados
responsabilidade espiritual e, por isso, natural que se torne
exemplar do homem em conflito consigo mesmo e com o ambiente
sua volta; entretanto, auto-exilado em nome da arte, ansiando pelo
paraso, ele ainda conserva da beleza uma viso que nem a dolorosa
morte da me, nem a sensualidade de Nora, nem o seu prprio
erotismo ou a fragilidade de seus olhos podem apagar.
Impressionado pelo indizvel da experincia potica, maltratado pela
lembrana do sacerdote punidor que parece expelir chamas,
prometendo ao adolescente um inferno terrivelmente cruel e plstico,
pela angstia da escolha vocacional e profissional, pelo mistrio do
amor e da sexualidade, afligido por remorso e embates espirituais,
tambm espervel que se sinta tentado pelo confessionalismo
literrio; natural que ambicione encontrar uma sntese potica
infiltrada de alto teor mstico, e configurada no anseio pelo paraso
buscado pelos meios da solido, do sofrimento, da coragem moral.
Por isso mesmo, volta-se para a mitologia e para a metafsica.
Entretanto, ao contrrio do que acontece com artistas de
pocas estveis, no busca a forma mitolgica esttica, mas o mito
em seu potencial de metamorfose e de reconstruo; por
conseguinte, quando adota parmetros gregos em Ulysses, prope
uma espcie alegorizada de segunda vinda marcada pelo humor e a
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sensualidade divertida e vulgar de Molly Bloom.
Adotando o realismo, o inventor de Stephen publica Dubliners,
em 1914; em 1916, apresenta a verso integral de seu primeiro
grande romance, Retrato do artista quando jovem, em cuja feitura
utiliza a maior parte do material de Stephen Hero, fico que
abandona, aps ter-se ocupado dela desde 1904. De modo geral, em
toda a sua obra de fico, retrata o tempo infeliz em geral revelado
pelo romance moderno, a vida reificada, cujo sentido a prpria
ausncia de sentido. Contudo, infiltra valores mitolgicos em tudo o
que compe, garantindo assim algum lastro otimista. Afinal de
contas, no final do romance de 1916, Stephen Dedalus declara o seu
desejo de moldar na prpria alma a incriada conscincia dos
irlandeses.
Desde o incio de sua criao literria, portanto, James Joyce
pensa a Irlanda em termos mticos e perenes, continuando a escrever
sobre este tema em Exiles, de 1918, Ulysses, de 1922, e Finnegans
Wake, de 1939.
Em nmero de livros publicados, a sua obra no extensa,
embora abunde em profundidade e experimentalismo, ao longo do
percurso iniciado pelo lirismo dos poemas, incorporando realismo e
intimismo, entrando pela pardia, o humorismo irnico, e o
simbolismo de Ulysses que transforma taca em Dublin, Ulisses em
Leopold Bloom, Telmaco em Stephen Dedalus, e traz Penlope
metamorfoseada em Molly Bloom. O coroamento vem com o
intrincado universo onrico de Finnegans Wake, que sai apenas dois
anos antes da morte do autor.
Nos vrios estgios dessa produo, o inventor de Stephen
Dedalus apresenta a Irlanda por inteiro, no mesocosmo em que o
atual e o illo tempore mtico coalescem com naturalidade; alm
disso, depois das obras em que analisa a esfera consciente e o
subconsciente dos personagens, explora em Finnegans Wake o
inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo atuantes no sonho de
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Earwicker. tambm neste ltimo romance, que transforma o rio
Liffey em arqutipo da feminilidade, sob o nome de Anna Livia
Plurabelle.
costume dizer-se que h uma Irlanda antes de Joyce, e
outra depois de Joyce. Na Upper Combrassil Street, 52, por
exemplo, algumas pessoas quase conseguem ver Leopold Bloom em
carne e osso; em vez de olhar o rio do alto da ponte Chalelizod, como
antigamente, os namorados de hoje encontram-se na ponte Anna
Livia; alm disso, entre tantas outras manifestaes de
reconhecimento pelo talento do escritor, todos os anos Dublin
comemora o Bloomsday em 16 de junho, porque, no cosmo
imaginrio de Ulysses, Stephen-Telmaco e Leopold-Ulisses se
conhecem nesse dia, em 1904.
Na verdade, o mundo inventado por Joyce tem tal habilidade
para gerar imagens na imaginao dos leitores, que continua a
desenvolver-se como perene work in progress. Naturalmente, muito
dessa sua fora gerativa deriva da habilidade com que o ficcionista
associa substratos mticos realidade presente, sugerindo a
eternidade do deus absconditus traduzido como a alma a um
tempo regional e universal dos irlandeses.
assim que Stephen Dedalus, um jovem pobre, pretensioso e
meio amalucado segundo os padres locais, tambm James Joyce,
Prometeu, Hamlet, Byron, Lcifer, Parsifal, Ddalo e caro, o
peregrino que busca a iluminao, caando epifanias como quem
colhe flores, o poeta metido a filsofo que vive permanentemente
em busca de si mesmo.
Contudo, se a base mtica dos diversos romances de Joyce traz
superfcie os homens reificados e vazios e a terra devastada,
Stephen Dedalus, ao contrrio do enfermo e desesperanoso Rei do
Graal, ainda consegue vislumbrar a felicidade simbolizada pela
beleza artstica. Na verdade, a sua condio de exilado inclui o
paradoxo de Kma e Mra, o desejo de vida prazerosa e o medo da
-
morte ou, em seu caso especfico, o pavor do fracasso em termos
estticos.
to compacta a relao entre Stephen Dedalus e James
Joyce, no enredo confessional de Retrato do artista quando jovem,
que o criador se torna dependente da criatura, a ponto de faz-la
atravessar as prprias fronteiras do romance; assim, depois de
representar o papel de imaturo Telmaco empenhado em encontrar o
pai, Stephen pode completar-se magistralmente em Ulysses, onde,
mais adulto, e tambm mais realista, j aceita as limitaes de
Leopold Bloom como cabveis no que se poderia chamar de
desinflao do Pai arquetipal.
Quer como idealista, quer como realista, o personagem
desajustado na prpria terra, e revoltado contra o establishment
carcomido e intil, adota a mxima dos frades cartuxos Fuge, late,
tace, viajando para a Frana, disposto a estudar medicina, plano
logo desfeito em nome da literatura. Conduzido pela hybris de seu
egosmo de artista talentoso, enforma o heri trgico que, como
lembra Ortega y Gasset, representa na modernidade a aflio da
procura da identidade. Porque, em seu angustiado orgulho de
Lcifer, Stephen demonstra coragem moral e senso de
responsabilidade espiritual. Exemplo de sua integridade o fato de
que, tendo perdido a f catlica, nega-se a comungar para satisfazer
me moribunda, alegando respeito pelo smbolo venerado h
sculos.
Neste romance, o eu problemtico de Stephen aparece no
prprio ttulo da obra, nas palavras artista e jovem, que sugerem
vitalidade criativa e possibilidade de desenvolvimento; na escritura
que funciona como uma espcie de desenho anamorftico passvel de
decifrao, o personagem principal, com o seu temperamento de
Hamlet sensvel, melanclico e neurtico, apreende a corrente lrica
que subjaz ao mundo das aparncias, examinando a forma, a cor, a
estrutura das palavras, e chegando evidncia de que elas o
-
fascinam especialmente pelo ritmo, mais do que pelos outros
atributos, ou por sua associao com o lendrio.
Portanto, o primeiro passo da aventura esttica de Stephen
est sediado em sua aguada percepo sensorial, especialmente na
capacidade auditiva, o mais rico plo energtico da organizao
sinestsica da composio. Neste romance, freqentemente, som e
ritmo vm relacionados com imagens de pssaros, a comear pelo
baby-tuckoo com o qual o personagem, ainda um beb, se
identifica. Ao longo da obra, o vo natural das ondas sonoras
complementa-se com a sugesto do vo conscientemente arquitetado
pela inventiva humana, pois o Ddalo legendrio de quem Stephen
herda o nome constri deliberadamente o labirinto e a asa antes de
empreender o vo, da mesma forma que Stephen prepara
adequadamente os instrumentos e os esteios de seu vo potico.
Como Ddalo, portanto, o personagem no se entrega apenas ao
xtase de voar, mas quer garantir a segurana da viagem porque, ao
contrrio de caro, sabe que o vo intudo inseparvel do gesto, do
ato que fabrica a asa, e que atravessa labirintos, antes de lanar-se
para conquistar o espao e o tempo. Por conseguinte, por lrica e
impressionista que seja a sua viso da realidade, Stephen Dedalus
conta com uma organizao psicolgica dialtica e programadora e,
assim, preparando o futuro, toma as mesmas precaues de seu
criador.
Na verdade, aps escrever Stephen Hero utilizando tcnica
tradicional, largamente argumentativa e expositiva, Joyce procura
novos espeques literrios e lingsticos a fim de dotar a prpria
fico com a originalidade, o aspecto mpar que a caracteriza. Por
isso, antes de se dar por satisfeito com a estria de Stephen Dedalus,
reformula-a com nova roupagem, inventa artifcios estilsticos,
estuda a obra de outros escritores como, por exemplo, quando
analisa a fico de Edouard Dujardin, a fim de observar o uso que
este autor faz do monlogo interior. Somente a partir do estudo
-
sistemtico e criterioso, portanto, que se dispe realmente a criar,
sentindo-se apto a alar vo com as asas j ento confiveis do estilo
do fluxo da conscincia. Atravs dessa seriedade de propsitos, o
criador une-se ao personagem, transformando Retrato do artista
quando jovem em verdadeira viagem de aprendizagem.
nesta obra que, interessado em alcanar e exprimir
convenientemente a coerncia bsica em termos estticos, ou
melhor, em apreender a misteriosa lgica ontolgica subjacente
representao artstica e desviante da realidade bela, Stephen
Dedalus desenvolve uma teoria esttica vagamente fundamentada no
conceito tomista de quidditas, de coisidade. Em primeiro lugar,
procurando a beleza artstica ideal, concentra-se no que chama de
epifania, ou seja, o momento de estesia em que o artista desvenda
a coisidade do ser. Explica ele que So Toms de Aquino mostra os
trs passos necessrios ao desvelamento da coisidade, ou seja, as
condies de integritas, consonantia e claritas, isto ,
integridade, simetria e radincia.
Seguindo o roteiro do santo escolstico, ao descrever
detalhadamente tal processo, o esteta Stephen Dedalus observa que,
a fim de apreender a essncia objetiva, o observador precisa dividir o
universo em duas partes, uma delas assumida pelo prprio objeto
examinado, a outra pelo vazio que nada tem a ver com ele pois,
apenas dessa maneira, a mente pode descobrir o objeto integral. Para
Stephen, a integridade assim desvendada a primeira qualidade da
beleza.
Para definir a segunda qualidade da beleza, mostra ele a
necessidade de se considerar o objeto contemplado em todo e em
partes, enquanto relacionado consigo mesmo e com outros objetos;
ento, a mente pode constatar o equilbrio das partes, examinando a
forma da coisa observada, e cada particularidade de sua estrutura.
Somente a partir desta anlise vai tornar-se apta a apreender a
simetria do objeto, ou seja, a segunda necessria qualidade da
-
beleza.
Para completar, juntamente com a sua explicao do termo
epifania, o artista prope a receita para a apreenso da terceira
qualidade da beleza, deduzindo que, aps identificar no objeto as
qualidades de integridade e simetria, a mente observadora chega
sntese, ou seja, nica relao lgica possvel; assim, apreende a
terceira qualidade da beleza, ou seja, a radincia ou claritas,
atingvel num momento mgico que Stephen Dedalus chama de
epifania.
Apesar de eminentemente lrico e baseado na riqueza da
percepo sensorial do autor, Retrato do artista quando jovem
demonstra o aspecto arquitetnico da imaginao de James Joyce,
habilidade que vai chegar ao auge na obra posterior do ficcionista.
Entretanto, neste primeiro romance, o veio estruturante, a paixo
arquitetnica j transparece claramente como, por exemplo, na
diviso da narrativa, pois a primeira parte do relato corresponde
infncia do personagem, o que explica a coerente organizao
sinestsica do texto inicial do livro; enquanto isso, o final da obra,
embora carregado de impressionismo, caracteriza-se pelo aspecto
lgico e racional, especialmente nas ltimas pginas, quando o dirio
de Stephen Dedalus apresenta raciocnio dedutivo e meditao.
Este mesmo senso arquitetnico denuncia-se no interesse de
Stephen Dedalus pelas idias de Giambattista Vico pois, analisando
a estria como quem examina uma partitura musical, o personagem
refere-se constituio intrnseca da obra literria, explicando que
uma pea literria deve necessariamente comprometer-se com o
esquema lrico, ou com o pico, ou com as caractersticas do gnero
dramtico.
Condizente com tal idia, a fico de 1916 obedece s linhas
regulares de composio, pois conta com uma primeira parte
essencialmente lrica e dedicada infncia do personagem, uma
segunda, de natureza pica, com a subjetividade do adolescente
-
entrando em contato com o mundo ambiente atravs da ao, e uma
terceira, quando, j adulto, o personagem alarga o mbito de suas
relaes, assumindo um papel dinmico no palco da sociedade que o
inclui.
Alis, no corpo geral da obra de Joyce, o esquema estrutural
pregado por Stephen Dedalus em Retrato do artista quando jovem
mantm-se relativamente vlido, uma vez que esta fico
marcadamente lrica, Ulysses prestigia o gnero pico ao tratar da
ao do heri problemtico em suas escolhas particulares e em suas
experincias plurais, e Finnegans Wake reflete a dramaticidade geral
da existncia e, de modo muito especial, o drama da ebulio
constante, dos contrastes e confrontos das diversas correntes do
inconsciente do personagem principal.
Outro ponto interessante a especificidade da epifania no
contexto de Retrato do artista quando jovem pois, se as experincias
msticas dos santos, o xtase potico dos romnticos e o xtase
amoroso dos trovadores medievais tm muitas ligaes com o
momento de revelao buscado por Stephen Dedalus, tais instantes
de transe tambm apresentam diferenas essenciais em relao
epifania conforme explicada pelo personagem. Em primeiro lugar,
como ensina William Wordsworth, o xtase romntico do qual deriva
a obra de arte est diretamente relacionado com o fazer potico
obtido pela conjuno de percepo sensorial, emoo, e recollection
in tranquility. Alm disso, prope-se a recriar a beleza atravs de
capacidade exclusiva do artista, isto , por meio do dom especfico
que Samuel Taylor Coleridge denomina secondary imagination; a
finalidade de tal momento de transe , naturalmente, um resultado
esttico e praticado objetivamente, ou seja, uma obra de arte
concreta. O minnesinger medieval, por sua vez, descreve o instante
de alumbramento em que a beleza transita do olhar para o corao
humano, fazendo refulgir a o amor absoluto. Neste caso, o resultado
do xtase um sentimento abstrato, e conseqentemente puro.
-
Alis, como largamente difundido, uma mgica experincia desse
tipo que absorve Dante, no momento mesmo em que ele avista
Beatriz pela primeira vez; ambos tm apenas nove anos de idade
mas, segundo conta o poeta em Vita Nuova, naquele instante, a
centelha de beleza ilumina para sempre o seu corao com a chama
do amor perene e absoluto. Outro transe especfico a experincia
mstica dos santos, um xtase de natureza puramente anaggica, um
momento inefvel em que o humano transcende a si mesmo, um
estado milagroso de arrebatamento em que, para usar-se termos de
Mircea Eliade, o profano momentaneamente absorvido pelo sagrado
atemporal e aespacial. O resultado deste transe no um objeto
concreto como a obra de arte romntica, nem um sentimento, como
no caso o minnesinger apaixonado, mas uma momentnea morte
do corpo, o milagre da comunho do esprito humano com o esprito
divino.
No que concerne epifania ambicionada e sistematicamente
registrada pelo personagem de Joyce, entretanto, a exaltao
milagrosa, o alumbramento momentneo de natureza especulativa
e, portanto, intelectual. Toma por base a coisidade, a essncia do
ser, uma essncia no necessariamente espiritual ou artisticamente
bela, e no um dos atributos do ser, ou a ausncia total do ser, ou
seja, a morte do observador, ou do objeto observado; constitui-se
como o raro momento de desvelamento do ser ou, como diz Stephen
Dedalus, o instante em que o intelecto apreende a misteriosa
quidditas de qualquer objeto sublime ou vulgar. Portanto, os meios
auxiliares pelos quais o observador atinge a quidditas do objeto so
neste caso a percepo sensorial e o intelecto, a fagulha da razo,
sendo o mistrio revelado pela epifania uma verdade ontolgica, no-
emocional ou esttica ou mstica.
Por conseguinte, com a sua mente de observador a um tempo
realista e metafsico, o personagem de Joyce est empenhado na
sabedoria atingvel atravs do momento de revelao, o qual, posto
-
lhe possa servir de base para a criao esttica, como no caso do
xtase romntico, posto lhe possa trazer emoo e intuio do
sublime, como ocorre, respectivamente, com o trovador ou o santo,
est fundamentalmente relacionado com a verdade, com a essncia
do ser, com o princpio filosfico, com aquela Beleza essencial que
Plato, citado pelo prprio Stephen Dedalus, define como o
esplendor da verdade.
Um romance, entretanto, no propriamente um corpo
lingstico onde idias altissonantes transitam, mas um palco
dramtico em que personagens agem e reagem de acordo com as
circunstncias ambientes. Neste sentido, a primeira parte da estria
de Stephen Dedalus, isto , a que vem contada no livro de 1916,
completa em si mesma, e subsiste sozinha, no sendo apenas um
prembulo do que vem relatado depois, em Ulysses. Como obra
lrica, montada sobre uma sucesso de epifanias, pois a
curiosidade da criana, do adolescente e do jovem artista focaliza
constantemente o mundo objetivo e, como mais uma vez explica o
personagem, o objeto torna-se epifanizado no momento em que o
foco da mente consegue ajustar-se perfeitamente em relao a ele.
Alm disso, caracteriza-se como um romance regular, pois enforma a
atuao de personagens complexos, verossimilhantes e plausveis,
apresentando os incidentes mais expressivos da infncia, da
adolescncia e da juventude do artista ingnuo e inteligente que
Stephen, descrevendo-o no ambiente da casa pobre, em sua relao
com a famlia, especialmente com os pais e com Dante, com o tio
Charles, com os colegas da escola, ou ainda no hospital, na igreja,
nos divertimentos, no esporte, nas conversas, na atrao amorosa,
na furtiva sexualidade, nos momentos de meditao e de tristeza,
nas pequenas alegrias, na sua afetao pour pater le bourgeois.
Embora Retrato do artista quando jovem seja um romance
intimista e confessional, todas as criaturas que transitam por suas
pginas so como pessoas de carne e sangue. Todas agem
-
naturalmente, demonstrando uma caracterstica bsica da alma
ocidental, isto , a constante preocupao com a individualidade.
Alis, exatamente o anseio por liberdade e conscincia
individual que explica a alegria criativa de James Joyce, a sua viva
capacidade de apreender a alma humana, a alegria que lhe permite
aperfeioar-se como ficcionista, mesmo quando enfrenta reveses to
dolorosos como a loucura da prpria filha, e a cegueira progressiva
que o maltrata durante toda a vida, at que a morte o encontra, em
1941, num hospital suo.
Rio, 12 de maro de 1993
Hilda Gouveia de Oliveira
-
1
ERTA VEZ e que linda vez que isso foi! vinha uma
vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que
vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de
menino chamado Pequerrucho Fua-Fua...
Essa histria contava-lhe o pai, com aquela cara cabeluda, a
olh-lo por entre os culos.
Ele era o Pequerrucho Fua-Fua que tinha encontrado a
vaquinha que fazia muu! descendo a estrada onde morava Betty
Byrne, a menina que vendia confeitos de limo.
Que beleza a pracinha verde,
Cheia assim de botes de rosas!
Essa era a sua cano. Ele cantava assim essa modinha:
Os boto veilde de lozinhas...
Quando se molha a cama, no comeo fica quentinho; depois vai
esfriando. Sua me punha por cima um oleado. Que cheiro esquisito
que o oleado tinha.
O cheirinho de sua me era mais gostoso do que o cheiro de
seu pai. Ele tocava ao piano o Cachimbo de Chifre do Marujo para ele
danar.
C
-
Tralal lal
Tralal tralaladona,
Tralal lal,
Tralal lal.
Tio Carlos e Dante aplaudiam. Os dois eram mais velhos do
que seu pai e sua me, mas tio Carlos era mais velho do que Dante.
Dante tinha duas escovas no armrio dela. A escova com
pelcia marrom nas costas era para Michael Davitt, e a escova com
pelcia verde nas costas era para Parnell. Dante dava-lhes uma
pastilha cada vez que ele lhe trazia papel de seda.
Os Vances moravam no nmero sete. Tinham um pai e uma
me diferentes. Eram o pai e a me de Eileen. Quando os dois
crescessem, ele ia se casar com Eileen. Disse e se escondeu debaixo
da mesa. Sua me ficou zangada:
Stephen! Pea j desculpas.
Dante ameaou:
Ahn! Se no pedir, as guias viro arrancar-lhe os olhos.
Arranca os olhos desse fregus!
Ento voc diz isso outra vez?
Ah! Voc vai dizer outra vez?
Arranca os olhos desse fregus!
Ento voc diz isso outra vez?
Arranca os olhos desse fregus!
Arranca os olhos desse fregus!
Ah! Ele no diz mais outra vez!
Os enormes ptios de recreio formigavam de garotos. Estavam
todos gritando, e os prefeitos os incentivavam com grandes brados. O
ar da tarde era desmaiado e friorento e a cada carga e arremesso dos
jogadores a bola de couro lustrosa voava, atravs da claridade
-
acinzentada, como um pssaro pesado. Ele conservava-se nos
limites da sua diviso, fora da vista do prefeito e do alcance dos
terrveis pontaps, fingindo correr para c e para l. Sentia-se
pequenino e fraco de corpo no meio daqueles brutos jogadores e os
seus olhos lacrimejantes viam mal. J, por exemplo, Rody Kickham
no era assim; ia ser o capito da terceira diviso, diziam os alunos.
Rody Kickham era um colega bem comportado, mas Roche
Relaxado era um esbodegado. Rody Kickham tinha ramagens
bordadas em volta do seu nmero e um cesta no refeitrio. Roche
Relaxado tinha umas mozonas. Chamava o pudim das sextas-
feiras de cachorro encolhido no cobertor. E um dia lhe perguntara:
Qual o seu nome?
Stephen tinha respondido: Stephen Dedalus.
Ao que Roche Relaxado dissera:
Que raio de nome esse?
E, vendo que Stephen no soubera o que responder, Roche
Relaxado perguntara:
Seu pai o que ?
Stephen tinha respondido:
Um cavalheiro.
Ao que Roche Relaxado indagara:
Ele magistrado?
Ia, agora, aos pinotes de ponta a ponta do ptio da sua diviso,
dando de vez em quando umas carreirinhas. Mas estava ficando com
as mos azuladas com o frio. Meteu-as nos bolsos que existiam de
cada lado do seu terno cinzento com cinturo. O cinturo dava a
volta, passando rente dos bolsos. O cinturo tambm era para dar
uma lambada num camarada. Um dia um camarada dissera assim a
Cantwell:
Dou-lhe j uma lambada.
Cantwell respondera:
V jogar a sua partida. Quero ver mas voc dar uma
-
lambada em Cecil Thunder. Eu sim que te dou j um pontap no
rabo!
Isso no era uma expresso bonita. Sua me dissera-lhe para
no falar com meninos grosseiros no colgio. Aquilo que era me!
No primeiro dia, no castelo, ao se despedir dele, ela tinha erguido o
vu, dobrando-o por cima do nariz, para poder beij-lo; e tanto o
nariz como os olhos dela estavam vermelhos. Mas fingira no
perceber que ela estava a ponto de chorar. E o pai ento lhe dera
duas moedas de cinco xelins para ele ficar com dinheiro mido no
bolso. E o pai lhe dissera que se precisasse de qualquer coisa que
escrevesse para casa e que nunca, fizessem-lhe l o que fosse, desse
parte de qualquer colega. Depois, porta do castelo, o reitor
estendera a mo a seu pai e a sua me, enquanto a sotaina dele
esvoaava na brisa; e o carro tinha ido embora, levando seu pai e sua
me. L do carro eles o tinham chamado alto, agitando as mos:
Adeus, Stephen, adeus!
Adeus, Stephen, adeus!
Ele fora colhido no meio dum redemoinho e, amedrontado com
tantos olhos que luziam e tantas botinas encoscoradas de barro, se
inclinara para espiar ainda atravs de tantas pernas. Os camaradas
estavam lutando e goelando, e enquanto isso davam pontaps,
caneladas, deixando marcas uns nos outros. Depois as botinas
amarelas de Jack Lawton tinham escapado com a bola e todos
aqueles calados e pernas tinham sado a correr atrs dele. Tambm
correu um pouco atrs deles, mas logo parou. No valia a pena
correr. Em breve todos voltariam para casa, em frias. Depois da
ceia, ele mudaria, no salo de estudo, o nmero colocado no alto da
sua carteira, em cima, de setenta e sete para setenta e seis.
Estar l dentro, no salo de estudo, havia de ser muito melhor
do que ali fora no frio. O cu estava desmaiado e frio, mas dentro do
castelo j havia luzes. Perguntou a si mesmo de que janela Hamilton
Rowan teria arremessado o seu chapu e se naquele tempo j
-
haveria floreiras debaixo das janelas nessa estao do ano. Um dia,
ao ser chamado no castelo, o mordomo lhe tinha mostrado as
marcas das coronhadas dos soldados na madeira da porta e lhe
tinha dado um pedao de po fresco do que a comunidade comia.
Era bonito e como que aquecia ver as luzes no castelo. Era como se
fosse num livro. Quem sabe se a Abadia de Leicester no era assim?
E que bonitas que eram as sentenas na Cartilha do Dr. Cornwell!
Parecia at poesia, mas eram apenas frases para aprender o modo de
pronunciar.
Wolsey morreu na Abadia de Leicester
Onde os monges o sepultaram.
Ferrugem uma doena das plantas,
Cncer o dos animais.
Como devia ser bom estar estirado sobre o pelego da lareira,
diante do fogo, com a cabea apoiada nas mos, pensando nessas
sentenas. Teve um arrepio como se lhe tivessem encostado na pele
gua fria e visguenta. Tinha sido maldade de Wells empurr-lo sobre
a valeta s porque ele no quisera trocar o seu estojozinho pelo
basto de crquete de Wells que era de carvalho bem amadurecido e
com o qual Wells tinha ganho quarenta partidas.
Como estava fria e visguenta a gua! Um garoto vira uma vez
uma ratazana cair dentro da escuma. A me a essas horas estaria
sentada diante do fogo, com Dante, esperando que Brgida trouxesse
o ch. Estaria com os ps sobre a barra e as suas chinelas bordadas
como estariam quentinhas e com um cheirinho quente, gostoso como
qu! Dante sabia uma poro de coisas. Ela lhe ensinara onde ficava
o canal de Moambique, qual era o rio mais comprido da Amrica e
como se chamava a montanha mais alta da lua. O padre Arnall sabia
mais do que Dante porque ele era padre, mas tanto o seu pai como o
tio Carlos diziam que Dante era uma mulher inteligente e muito
-
preparada. E quando Dante fazia aquele barulho depois do jantar e
em seguida levava a mo boca: isso era gs no corao.
Uma voz gritou l no ptio do recreio:
Todos pra dentro!
E, a seguir, outras vozes se puseram a gritar na diviso dos
mdios e na terceira.
Todos pra dentro. Pra dentro!
Os jogadores ajuntaram-se, esbaforidos e enlameados, e ele
veio para o meio deles, contente porque ia entrar. Rody Kickham
segurava a bola pelo lao encerado. Um garoto pediu-lhe para dar
um ltimo chute; mas ele prosseguiu sem sequer responder ao
garoto. Simo Moonan disse-lhe que no lhe desse, porque o prefeito
estava olhando. O garoto voltou-se para Simo Moonan e disse:
Ns bem que sabemos por que que voc est falando. Voc
o songa do McGlade.
Que palavra esquisita! O garoto chamara Simo Moonan por
esse nome porque Simo Moonan tinha o costume de ligar as
mangas sobressalentes do prefeito nas costas dele; e o prefeito o
deixara fazer, sem ficar zangado. Mas essa palavra soava feio. Uma
vez ele, Stephen, tinha lavado as mos no lavatrio do Hotel Wicklow,
e seu pai tinha puxado a vlvula pela corrente, tendo a gua
comeado a descer pelo buraco da pia. E depois, quando toda a gua
j tinha descido vagarosamente, o buraco da bacia tinha feito um
som que era direitinho essa palavra. S que mais baixo.
Recordar-se disso e do olho branco do lavatrio fez que sentisse
frio e depois calor. Havia dois registros que a gente virava e a gua
saa logo: quente e fria. Experimentara a fria e depois, um
pouquinho, a quente; e vira palavras impressas nas torneiras. Que
coisa mais esquisita.
E o ar, no corredor, tambm o inteiriou. Alm de esquisito, era
mido. Mas o gs ia ser aceso imediatamente e, aceso, fazia um
barulhinho que at dava idia duma canozinha; um barulhinho
-
sempre igual; quando os companheiros paravam de conversar no
recreio, podia-se ouvir.
Agora era hora de fazer as somas. O Pe. Arnall passou uma
soma difcil no quadro e depois falou assim:
Vamos ver, agora, quem ganhar? Adiante, York! Passe na
frente, Lancaster!
Stephen caprichou o melhor que pde, mas a soma era difcil e
ele se sentiu atrapalhado. A insigniazinha de seda, que tinha uma
rosa branca em cima e que estava presa bem no peito da sua
jaqueta, comeou a mexer. Ele no era muito forte em somar
parcelas, mas tentou o melhor que pde de maneira que York no
viesse a perder. A cara do Pe. Arnall parecia carregada e bastante,
mas no estava furioso no; pelo contrrio, estava sorrindo. Por fim
Jack Lawton estalou os dedos e o Pe. Arnall, dando uma olhadela no
caderno dele, disse:
Acertou. Bravo, Lancaster! A rosa encarnada ganhou.
Vamos, vamos, York! Toquem pra frente!
Jack Lawton olhou todo garboso, l do seu lado. A pequenina
insgnia, com a rosa encarnada no alto, parecia muito bonita porque
tinha um barrete de marinheiro em cima. Stephen tambm sentiu a
sua prpria cara ficar vermelha, pensando em todas as apostas sobre
quem teria o primeiro lugar em Elementos. Jack Lawton, ou ele.
Certas semanas Jack Lawton ganhava o carto de primeiro; e certas
semanas ganhava ele. A sua insgnia branca de seda mexia e remexia
enquanto trabalhava na soma seguinte e ouvia a voz de Pe. Arnall.
Depois todo o entusiasmo passou e sentiu que o seu rosto estava
completamente frio. Pensou que o seu rosto devia estar lvido, j que
estava sentido tanto frio. No havia possibilidades de dar com a
resposta da soma, mas no se importou mais. Rosas brancas e rosas
encarnadas; ora, a estavam umas cores que dava prazer pensar
nelas. E os cartes de primeiro, segundo e terceiro lugares tambm
tinham umas bonitas cores: Cor-de-rosa, creme e alfazema. Rosas
-
dessas cores dava prazer pensar nelas. Com certeza a rosa silvestre
devia ter cores como essas e ele se lembrou da cano sobre os
botes de rosa silvestre na pracinha verde. Mas ter uma rosa verde,
isso no era possvel. Mas, talvez nalgum lugar do mundo houvesse.
A sineta tocou; e ento as classes comearam a desfilar saindo
das salas para os corredores na direo do refeitrio. Sentou-se l
encarando os dois bloquinhos de manteiga no seu prato; mas no
houve meios de poder comer aquele po mido. A toalha da mesa
estava mida e mole. Mas bebeu todo o ch quente e fraco que o
desajeitado servente, que tinha um avental branco, entornou na sua
xcara. Perguntou a si mesmo se o avental do servente tambm
estaria mido e se todas as coisas brancas estariam frias e midas.
Roche Relaxado e Saurin beberam chocolate que os parentes lhes
mandavam em tabletes de estanho. Diziam que no podiam beber
ch; que era gua suja. Os pais deles eram magistrados, era o que os
colegas diziam.
Todos os meninos lhe pareciam muito estranhos. Todos eles
tinham pais, mes, roupas e vozes diferentes. Sentiu saudades de
casa, desejou encostar a cabea sobre o colo da me. Mas isso agora
era impossvel; assim, pois, desejou que acabasse o brinquedo, o
estudo e as oraes para ir logo para a cama.
Bebeu outra xcara de ch e Fleming disse:
Que que h? Ests com alguma dor, ou o que que h?
No sei disse Stephen.
Vomita na tua cesta de po disse Fleming , pois est
com a cara branca como qu! Vomitando, passa logo.
Oh! sim disse Stephen.
Mas no era no rosto que ele se sentia doente. Pensou que
estava doente mas era no corao, se que se pode ter doena nesse
lugar. Fleming era muito bonzinho em lhe perguntar isso. Ficou com
vontade de chorar. Fincou os cotovelos sobre a mesa e comeou a
apertar e soltar as orelhas. Cada vez que abria os pavilhes das
-
orelhas escutava o barulho do refeitrio. Isso produzia um rudo
como o de um trem noite. E quando apertava os pavilhes das
orelhas o estardalhao se fechava como um trem entrando num
tnel. Aquela noite, em Dalkey, o trem ia rangendo com o barulho de
agora e, depois, quando entrou no tnel, o barulho tinha sumido.
Fechava os olhos e o trem continuava, fazendo barulho e calando;
fazendo barulho e calando. Era gostoso ouvi-lo rugir e calar, e
comear outra vez a rugir ao sair do tnel e em seguida tornar a ficar
silencioso.
Depois os camaradas da diviso dos grandes comearam a
descer dos estrados para o centro do refeitrio, Paddy Rach, Jimmy
Magee, o espanhol que tinha permisso de fumar charutos e o
portuguesinho que usava capote de trs palas com l. A seguir, a
diviso dos mdios, depois as mesas da terceira diviso. E cada
camarada individualmente tinha uma maneira sua de caminhar.
Ele ficou sentado a um canto da sala de recreio com a idia de
assistir a um jogo de domin e uma vez, ou mesmo duas, chegou a
ouvir distintamente, durante algum tempo, a pequena cano que o
gs fazia. O prefeito estava porta com alguns meninos e Simo
Moonan estava dando n nas mangas sobressalentes dele. O prefeito
contava-lhes qualquer coisa a respeito de Tullabeg.
Depois que ele saiu, Wells veio at Stephen e lhe disse:
Diga-nos uma coisa, Dedalus, voc beija sua me antes de ir
deitar?
Stephen respondeu:
Beijo, sim.
Wells virou-se para os demais camaradas e disse:
Escutem uma coisa, este camarada que est aqui est
dizendo que beija a me dele todas as noites antes de ir deitar.
Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela
direo, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:
No beijo nada.
-
Escutem vocs, este camarada que est aqui est dizendo
que no beija a me dele antes de ir deitar.
Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu
todo o corpo quente e confuso, de sbito. Qual era a resposta certa
para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. Que
Wells soubesse a resposta certa no era nada de mais, pois ele era o
terceiro em gramtica. Experimentou imaginar como seria a me de
Wells, mas no ousou erguer os olhos para o rosto de Wells. No lhe
agradava a cara de Wells. Fora Wells quem o empurrara para dentro
da valeta na vspera, s porque no quisera trocar o seu pequeno
estojo pelo basto de crquete dele que era de carvalho bem
amadurecido e com o qual havia conquistado quarenta vitrias.
Agir assim era uma coisa m; todos os camaradas tinham tido.
E como a gua estava fria e escorregadia! E um garoto tinha visto,
uma vez, um rato enorme cair repentinamente na escuma.
O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro; e
quando a sineta tocara para o estudo e as filas comearam a deixar
as salas de recreio ele sentiu o ar frio do corredor e das escadas por
dentro das duas vestes. Tentava ainda pensar qual seria a resposta
certa. Era direito beijar sua me, ou no era direito beijar sua me?
Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para
dizer boa-noite, e ento a me abaixava o seu rosto. Isso que era
beijar. Sua me punha os lbios na sua face; os lbios dela eram
moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift!
Por que as pessoas faziam isso assim com seus rostos?
Ao sentar no salo de estudo abriu a tampa da carteira e
trocou o nmero colocado em cima, setenta e sete, pelo seu, setenta
e seis. Mas as frias de Natal ainda estavam muito longe; um dia,
porm, tinham que chegar, porque a terra estava sempre se
movendo.
Havia um desenho da terra na primeira pgina da sua
geografia: uma bola imensa no meio de nuvens. Fleming tinha uma
-
caixa de lpis e uma noite, durante o estudo livre, ele lhe havia
colorido a terra de verde e as nuvens de castanho. Tinha ficado tal
como as duas escovas de prensa de Dante, a escova com pelcia
verde nas costas, para Pernell, e a escova com pelcia marrom nas
costas, para Michael Davitt. Mas ele no dissera a Fleming que
pintasse essas cores. Fleming tinha feito isso por si mesmo.
Abriu a geografia para estudar a lio; mas no conseguia
aprender os nomes dos lugares na Amrica. Ainda por cima todos
eles eram lugares diferentes que tinham nomes diferentes. Estavam
todos em diferentes pases, os pases estavam nos continentes, os
continentes estavam no mundo e o mundo estava no universo. Virou
a aba da geografia e olhou o que tinha escrito, ele prprio, do lado de
dentro: o seu nome e onde estava:
Stephen Dedalus
Classe elementar
Colgio de Clongowes Wood
Sallins
Condado de Kildare
Irlanda
Europa
Mundo
Universo
Isso, com a sua caligrafia; e Fleming, certa noite, por um
bolinho, tinha escrito na pgina oposta:
Stephen Dedalus o meu nome,
Irlanda o meu pas.
Em Clongowes tenho a minha residncia,
Mas s no cu espero ser feliz.
-
Leu os versos de trs para diante, mas assim j no eram mais
poesia. Depois leu a folha antes do frontispcio vindo de baixo para
cima at chegar ao seu prprio nome. Sim, era ele. E tornou a ler a
pgina at embaixo, outra vez. Que que haveria depois do
universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em volta do universo
para mostrar onde ele parava antes de comear o lugar do nada? No
poderia ser uma parede; mas bem que podia ser uma linha fininha,
bem fininha, l bem em volta de tudo. Era uma coisa muito grande
para poder pensar em todas aquelas coisas e em todos aqueles
lugares. S Deus podia fazer isso. Tentou imaginar que enorme
pensamento deveria ser esse, mas s conseguiu pensar em Deus.
Deus era o nome de Deus, assim como o nome dele era Stephen.
Dieu era o nome francs para Deus, e era tambm o nome de Deus; e
quando algum rezava a Deus e dizia Dieu, ento Deus
imediatamente ficava sabendo que era uma pessoa francesa que
estava rezando. Mas embora houvesse nomes diferentes para Deus
em todas as diferentes lnguas do mundo, e Deus compreendesse o
que era que todas as pessoas que rezavam diziam em suas lnguas
diferentes, ainda assim Deus permanecia sempre o mesmo Deus e o
nome verdadeiro de Deus era Deus.
Cansou-se muito de pensar dessa maneira. Acabou sentindo a
cabea ficar muito grande. Virou aquela pgina de dentro e encarou,
j cansado, a terra redonda verde no meio de nuvens marrons.
Perguntou a si mesmo qual seria o certo, ser a favor do verde ou do
marrom, porque Dante tinha rasgado a pelcia verde das costas da
escova que era para Parnell, um dia, com uma tesoura e lhe dissera
que Parnell era um homem ruim. Perguntou a si mesmo se em casa
estariam discutindo por causa disso. Chamava-se a isso poltica. E
em tal coisa havia dois lados: Dante estava dum lado e seu pai mais
o Sr. Casey estavam do outro lado; mas sua me e o tio Carlos no
estavam de lado nenhum. Todos os dias saa alguma coisa nos
jornais sobre isso.
-
Afligia-o no perceber bem o que significava poltica, bem como
no saber onde era que o universo acabava. Sentia-se pequeno e
fraco. Quando seria ele como os alunos de Poesia e de Retrica?
Tinham umas vozes enormes, botinas muito grandes e estudavam
trigonometria. At l ainda demorava muito. Primeiro viriam as frias
e depois o primeiro perodo letivo; a seguir frias outra vez, e depois,
de novo, outro perodo e outra vez, de novo, frias. Era como um
trem entrando e saindo de tneis e era como o barulho que faziam os
meninos comendo no refeitrio quando a gente apertava e afrouxava
as abas das orelhas. Perodo letivo, frias: tnel, fora! Barulho,
silncio. Ah! Como ainda estava longe! O melhor era ir para a cama
dormir. S faltava rezar na capela e, depois, cama. Arrepiou-se e
bocejou. Que gostosa seria a cama depois que os lenis ficassem
um pouco quentinhos. No comeo, que frio que eles eram para uma
pessoa se meter dentro deles! Ficou todo arrepiado s em pensar
como eram frios quando se entrava para debaixo deles. Mas logo
ficavam quentinhos e ento poderia dormir. Bem que era agradvel
sentir-se cansado. Bocejou outra vez. Oraes da noite e, depois,
cama! Estremeceu todo e teve vontade de abrir a boca de novo. Ia ser
uma gostosura da a pouco. Sentiu uma brasa quentinha ir
despencando pelos lenis friorentos e trmulos e ir aquecendo cada
vez mais at tudo ficar bem quentinho; ainda assim tremeu um
pouco e teve vontade de bocejar.
A sineta tocou para as oraes da noite; e ele deixou o salo
dos estudos, depois dos outros; desceu as escadas e se meteu pelos
corredores rumo capela. Os corredores estavam sombriamente
iluminados e sombriamente iluminada estava a capela. Em breve
tudo estaria imerso na treva e no sono. Dentro da capela havia um ar
frio, da noite; e os mrmores estavam com a cor que o mar tem de
noite. O mar era frio tanto de dia como de noite; mas, de noite, era
bem mais frio. O paredo beira-mar, perto da casa paterna,
embaixo, era frio e escuro. Mas a chaleira estaria no fogo para fazer
-
ponche.
O prefeito, na capela, rezava por cima da sua cabea e ele sabia
o responso de cor:
Abre os nossos lbios, , Senhor,
E nossas bocas anunciaro a Tua glria
Vem, , Deus, em nosso socorro!
, Senhor, apressa-Te em ajudar-nos!
Havia um cheiro de noite fria na capela. Mas era um cheiro
sagrado. No era como o cheiro dos velhos aldees que se ajoelhavam
no fundo da capela na missa do domingo. No era aquele cheiro de
poeira, de chuva, de torro e de couro curtido. Mas eram uns santos
aldees. Por detrs dele, respiravam-lhe na nuca e suspiravam
enquanto rezavam. Moravam l para Clane, segundo havia dito um
garoto. Um lugar com pequenas cabanas; tinha at visto uma mulher
em p na porta meio aberta da cabana, com uma criana nos braos;
passara l de carro, vindo de Sallins. Que agradvel que devia ser
dormir uma noite nessa cabana, pertinho da lareira, a turfa
fumegando no escuro, uma escurido quentinha, sentindo, ao
respirar, o cheiro dos aldees, um cheirinho feito de ar quente, de
chuva com terra e de couro curtido. Mas, oh! Que escura que estaria
a estrada entre as rvores! Era para uma pessoa se perder na
escurido. Fazia-lhe medo s pensar como isso havia de ser.
Ouviu a voz do prefeito da capela recitando a ltima orao. E
ele tambm a recitava, mas l fora, de encontro escurido, debaixo
das rvores.
Visita, ns Te rogamos, , Senhor, esta habitao e expulsa
para bem longe dela, as armadilhas do inimigo. Que os Teus
anjos permaneam dentro dela para nos preservarem em paz e
que a Tua bno esteja sempre sobre ns, por Cristo Nosso
-
Senhor. Amm.
E enquanto ele se despia no dormitrio, os seus dedos
tremiam. Falou com os dedos que se apressassem. Tinha de se
despir, em seguida se ajoelhar, dizer as suas oraes particulares e
se meter na cama antes que a luz do gs fosse abaixada, de maneira
que no tivesse que ir para o inferno ao morrer. Arrancou as meias,
enrolou-as, meteu a camisola pela cabea abaixo, s pressas,
ajoelhou-se tremendo beira do leito, e repetiu as suas oraes em
disparada, com medo de que a chama do gs abaixasse. Sentiu
tremer os ombros ao murmurar:
Deus abenoe meu pai e minha me e os conserve para
mim!
Deus abenoe meus irmozinhos e minhas irmzinhas e os
conserve para mim!
Deus abenoe Dante e tio Carlos e os conserve para mim!
Benzeu-se, jogou-se s pressas na cama e enrolando a ponta
da camisola debaixo dos ps, escorregou por entre os frios lenis
alvacentos, cheio de tremores e calafrios. Mas no iria para o inferno
quando morresse, e o calafrio havia de parar. Uma voz ecoou pelo
dormitrio, desejando boa-noite aos meninos. Ele espiou um instante
por cima da colcha e viu as cortinas amarelas aos lados e diante da
sua cama e que o fechavam de todos os lados. A luz foi abaixando
vagarosamente.
Os sapatos do prefeito afastaram-se. Para onde? Escadas
abaixo, ao longo dos corredores, ou para o seu quarto l na ponta?
Via s a escurido. Seria verdade o que diziam, que um co preto
passava por ali de noite, com uns olhos do tamanho de lanternas de
carruagem? Diziam que era o fantasma de um assassino. Um calafrio
de pavor correu por todo o seu corpo. Via o portal negrejante do
-
vestbulo do castelo. Velhos criados com suas antigas librs estavam
enfileirados na balaustrada de ferro, em cima, na escadaria. Isso
tinha se passado havia muito tempo. Os velhos fmulos estavam
imveis. Havia uma lareira, mas o vestbulo estava imerso na
escurido. Uma figura, vinda do vestbulo, subia a escadaria. Vestia
um manto branco de marechal; o seu rosto era plido e estranho.
Uma das suas mos apertava o corpo, de um lado. Olhava com olhos
esquisitos para os velhos criados. E os criados olhavam para ele e
viam o rosto do amo, e aquele seu manto! E sabiam que ele tinha
recebido um ferimento mortal. Mas para onde eles olhavam no
havia mais do que treva; apenas negror no ar silencioso. O seu amo
tinha recebido um ferimento mortal no campo de batalha, em Praga,
muito longe, para l do mar. Ele estava em p no meio do campo; a
sua mo apertava o seu corpo, num dos lados; a sua face era lvida e
estranha! Cingia-o uma capa branca de marechal.
Oh! Como dava arrepio e como era esquisito estar a pensar
nisso! Toda a treva estava fria e estranha. Havia rostos estranhos
nela, grandes olhos que nem lanternas de carruagens. E eram os
fantasmas de assassinos, as figuras de marechais que tinham
recebido seus ferimentos de morte nos campos de batalha, l longe,
alm do mar. Que desejariam eles dizer, j que suas faces estavam
assim to estranhas?
Visita, ns Te rogamos, , Senhor, esta habitao e expulsa
para bem longe dela todos os...
Ir para casa em frias! Que bom que seria; tinham-lhe dito os
garotos. Tudo subindo para os carros na manh hibernal, no lado de
fora do portal do castelo. Os carros a rodarem sobre as pedrinhas.
Hurras, ao reitor!
Hurra! Hurra! Hurra!
Os carros passam por diante da capela e todos os barretes so
-
tirados. L vo eles rodando alegremente ao longo das estradas e dos
campos. Os cocheiros, apontando com o cabo dos seus chicotes,
mostram para que lado fica Bodenstown. A garotada d vivas.
Passam pela herdade do Jolly Farmer. Vivas e mais vivas e mais
vivas. Atravessam Clane, dando vivas e sendo ovacionados. As aldes
surgem nas portas meio abertas; os aldees esto aqui e acol. Que
cheiro bom que anda na atmosfera hibernai! O cheiro de Clane:
chuva e ar friorento; turfa queimando e cheiro de couro curtido.
Depois o trem cheio de alunos: um trem muito comprido de
chocolate, com fisionomias cor de creme. Guardas passando para l
e para c, abrindo, fechando, prendendo, soltando as maanetas das
portas. So homens fardados de azul com gales prateados; tm
gales prateados e suas chaves produzem uma msica gil: clic, clic;
clic, clic.
E o trem dispara por sobre as terras frteis e deixa longe a
Colina de Allen. Os postes dos telgrafos, passando, passando. E o
trem sempre a seguir, a seguir. Estava farto de saber. Havia
lanternas na entrada da casa paterna e grinaldas verdes de ramos
amarrados. Haveria azevinho e hera, esta bem verdinha aquela bem
vermelhona, enrolando os candelabros. E haveria azevinho vermelho
e hera verde em volta dos velhos retratos, pelas paredes. Azevinho e
hera, para ele e para o Natal.
Que bom!...
Todo o mundo l. Bem-vindo, Stephen! Rudos de receber. Sua
me beijava-o. Isso era direito? Seu pai, agora, era marechal; muito
mais do que um magistrado. Bem-vindo, Stephen!
Quanto rudo alegre!
Rudo de argolas de cortinas correndo nas barras; de gua
espirrando nas pias. Rudo de levantar, de vestir e de se lavar no
dormitrio; rudo de mos batendo palmas medida que o prefeito
passava para cima e para baixo recomendando os garotos a se
despacharem. Um plido claro de sol deixando ver as cortinas
-
amarelas corridas e os leitos desmanchados. O seu leito estava
ardendo e o rosto e o corpo estavam pegando fogo.
Levantou-se e sentou-se na beirada da cama. Sentia-se fraco.
Tentou enfiar as meias. Produziram-lhe uma sensao spera,
horrvel. Que luz de sol mais fria e esquisita!
Fleming disse:
Ests te sentindo mal?
Ele no sabia; e Fleming disse:
Deita-te outra vez. Eu direi a McGlade que tu no ests
bom.
Ele est doente.
Quem?
Comunica a McGlade.
Mete-te outra vez na cama.
Ele est doente?
Um companheiro segurou-o pelos braos enquanto ele perdia a
meia que lhe caa pela perna abaixo. Enfiou-se outra vez na cama
quente.
Encolheu-se bem entre os lenis, contente do seu calorzinho
morno. Ouvia os garotos conversarem entre si a seu respeito
enquanto acabavam de se vestir para a missa. Fora malvadeza t-lo
empurrado para dentro do fosso, era o que eles estavam dizendo.
Depois as suas vozes calaram; tinha ido. Junto ao seu leito,
uma voz dizia:
Dedalus, voc no vai nos denunciar, no mesmo?
A cara de Wells estava ali. Ele olhou para a cara e viu que
Wells estava com medo.
Eu no fiz de propsito. Garante que no ir nos denunciar?
Seu pai dissera-lhe que jamais, fosse por que fosse, delatasse
um companheiro. Ele sacudiu a cabea, respondendo que no, e se
sentiu contente.
Wells disse:
-
Eu no fiz de propsito. Palavra de honra. Foi s
brincadeira. Sinto muito.
A face e a voz foram-se. Pedira desculpa, porque tinha medo.
Medo de que fosse alguma doena. Ferrugem era doena das plantas
e cncer era uma das que do nos animais; ou outra, diferente.
Como lhe parecia longe agora, quando estivera a dar pinotes de uma
extremidade outra no ptio da sua diviso, luz mortia da tarde,
l no recreio, um pssaro pesado a voar atravs da claridade
cinzenta. A abadia de Leicester toda iluminada. Wolsey morrera l.
Os prprios monges o tinham sepultado.
No, no era a cara de Wells; era a do prefeito. Ele no estava
fingindo. No, no: ele estava doente deveras. No era fingimento
no. Sentiu a mo do prefeito na sua testa; e sentiu a testa quente e
mida de encontro mo fria e mida do prefeito. Era a mesma
sensao que um rato produzia: visguenta, mida e fria. Todos os
ratos tinham dois olhinhos para espiar por eles. Uma pele lustrosa e
mole, umas patinhas muito pequeninas dobradas para dar um salto,
uns olhinhos negros gelatinosos para espiar por eles. Eles sabiam de
que jeito deviam pular. Mas o esprito dos ratos era incapaz de
compreender trigonometria. Quando estavam mortos ficavam
tombados de lado. Seus corpos secavam logo. Ficavam sendo apenas
coisas mortas.
O prefeito estava l outra vez e era a voz dele que lhe dizia que
se levantasse, que o padre Ministro tinha dito que era para ele se
levantar, vestir e ir para enfermaria. E enquanto ele se vestia o mais
depressa que podia, o prefeito falava:
Devemos despachar para o Irmo Michael quem estiver com
dor de barriga!...
Era muito delicado dizer-lhe isso. E era s para faz-lo rir. Mas
no podia rir porque tanto o rosto como os lbios eram um s
tremor; de modo que o prefeito teve que rir por ele.
O prefeito exclamou:
-
Ligeiro, marche! Um p no feno! Outro p na palha!
Desceram juntos as escadas, seguiram pelo corredor e
passaram pelo banheiro. E, ao chegar porta, recordou com um
medo vago do tanque dgua quente cor de turfa, da atmosfera
quente confinada, do barulho dos mergulhos, do cheiro das toalhas,
cheiro como que de remdio.
O Irmo Michael estava em p na porta da enfermaria e, pela
porta do gabinete escuro que existia sua direita, vinha um cheiro
de farmcia. Provinha das garrafas nas prateleiras. O prefeito falou
com o Irmo Michael e, respondendo, o Irmo Michael chamava o
prefeito de Senhor. Tinha cabelo ruivo misturado com cabelo grisalho
e um expresso engraada. O mais esquisito era que ele no pudesse
nunca passar alm de irmo. E esquisito tambm que ningum o
viesse jamais a chamar de Senhor ser irmo leigo e ter uma
expresso assim diferente. No seria ele santo bastante, ou por que
no havia ele de poder se misturar ou ser como os demais?
Havia duas camas num quarto, e numa delas estava um aluno;
quando os dois entraram, o aluno chamou:
Al! Pois no o jovem Dedalus? Que aconteceu?
Ordens do cu! respondeu o Irmo Michael.
Tratava-se dum aluno da Terceira Gramtica e enquanto
Stephen se despia o garoto pedia ao Irmo Michael um pouco de
torrada com manteiga.
Ah! Traga, sim? dizia ele.
Que manteiga o qu! disse o Irmo Michael. Quando o
doutor vier esta manh voc vai mas ter alta.
Vou ter alta? disse o aluno. Mas eu ainda no estou
bom.
O Irmo Michael repetiu:
O doutor vai assinar a sua alta na papeleta. o que estou
lhe dizendo.
Abaixou-se para espevitar o fogo. Tinha umas costas
-
compridas, como as dum cavalo de puxar bonde. Remexeu com o
atiador, gravemente, e acenou com a cabea para o aluno da
Terceira Gramtica.
Em seguida o Irmo Michael foi embora e pouco depois o aluno
do terceiro ano gramatical virou para a parede e caiu no sono.
Isso que era a enfermaria. Ele estava doente, portanto.
Teriam eles escrito contando a seu pai e sua me? Seria mais
rpido se um dos padres fosse pessoalmente avisar. Ou deveria ele
escrever uma carta para o padre levar?
Querida me.
Estou doente. Quero ir para casa. Por favor, venha me
buscar. Estou na enfermaria.
Seu filho querido,
Stephen.
Que longe que eles estavam! Do lado de fora da janela a
claridade do sol era fraca. Comeou a desconfiar se por acaso no
morreria. Pode-se morrer ora essa! num dia de sol. E se
morresse antes da me chegar? Depois, ento, tinha que haver missa
de requiem na capela, como daquela vez, conforme os colegas tinham
contado, quando morrera o Pequenino. Todos os alunos teriam que
assistir missa, de preto, todos com rostos tristonhos. Wells tambm
tinha que estar l, mas nenhum aluno olharia para ele. O reitor
estaria paramentado com uma casula negra e dourada. Grossas
velas estariam a derreter, muito amarelas, nos candelabros, sobre o
altar e em torno do catafalco. Depois haveriam de carregar o esquife
para fora da capela, vagarosamente... E ele seria enterrado no
pequeno claustro da comunidade, sob a grande alameda dos
limoeiros. E Wells teria remorsos e arrependimento do que tinha
feito. E o sino tocaria lentamente.
Ouviria as badaladas. E disse para si mesmo a cano que
-
Brgida lhe tinha ensinado:
Blem! Blo!Blem!Blo! O sino do castelo.
Oh! Adeus para sempre, minha me.
Sepultem-me no claustro da abadia,
Bem ao lado do meu irmo mais velho.
Quero que o meu esquife seja preto.
Quero seis anjos ao redor de mim:
Dois, bem lindos, cantando... Dois rezando...
E outros dois transportando ao cu minha alma!
Como era bonito! Ah! E como era triste! Que bonitas que
ficavam as palavras quando diziam: Sepultem-me no claustro da
abadia! Um tremor correu-lhe pelo corpo todo. Quo triste e quo
bonito seria! Sentia vontade de chorar, mas no por si mesmo: por
causa das palavras to bonitas e to tristes como se fossem msica.
O sino! O sino! Adeus! Oh! Adeus para sempre!
A luz do sol estava cada vez mais fraca. O Irmo Michael estava
borda do seu leito, com uma tigela de caldo de carne. Isso o alegrou
porque estava com a boca seca e quente. Ouvia os folguedos nos
ptios do colgio, como se estivesse l.
Depois, quando o Irmo Michael ia indo embora, o aluno do
terceiro de Gramtica lhe disse que visse as novidades e voltasse logo
para contar o que havia sado nos jornais. E disse a Stephen que se
chamava Athy e que seu pai possua uma poro de cavalos de
corridas, uns excelentes saltadores de obstculos e que qualquer um
desses dias o pai iria dar gorda propina ao Irmo Michael porque o
Irmo Michael era muito bonzinho e lhe contava as notcias que
vinham nos jornais que o castelo recebia. Notcias de todo jeito:
acidentes, naufrgios, esportes e poltica.
Agora s sai poltica nos jornais disse. A gente de voc
tambm conversa sobre isso?
-
Conversa sim respondeu Stephen.
A minha tambm observou ele. Em seguida, ficou
pensativo at que fez este reparo:
Que nome mais esquisito que voc tem, Dedalus. O meu
nome esquisito tambm: Athy. o nome duma cidade. O de voc
lembra o latim. Depois indagou: Voc forte em charadas?
Ao que Stephen respondeu:
No muito.
Disse ento o outro:
Veja se responde a esta: Por que que o condado de Kildare
se parece com a perna das calas de uma pessoa?
Stephen procurou adivinhar a resposta, dizendo depois:
No adivinho no.
porque no condado existe a tigh. Repare bem no jogo das
palavras. At hy, cidade, tem o mesmo som de a tigh, uma perna, de
maneira que ambos completam as calas. trocadilho, sabe?
Ah! Compreendo fez Stephen.
Esta uma charada antiga disse ele.
E depois de um momento, acrescentou:
Escute!
O qu? indagou Stephen.
Pode-se fazer a pergunta desta charada de outra maneira.
Ento, faa disse Stephen.
A mesma charada disse ele. Voc sabe qual a outra
maneira de perguntar isso?
No disse Stephen.
Pense bem e veja l se consegue disse ele.
Enquanto falava, olhava para Stephen por cima da roupa da
cama. Em seguida estirou-se sobre o travesseiro e disse:
Existe uma maneira diferente, mas no quero agora lhe dizer
como .
Por que no quereria ele dizer? O pai dele, que tinha cavalos de
-
corridas, devia ser algum magistrado tambm, como o pai de Saurin
e o de Roche Relaxado. Ps-se ento a pensar em seu prprio pai,
de como ele cantava umas rias enquanto sua me tocava e em como
sempre lhe dava um xelim quando lhe pedia s seis pences; lastimou
no ser ele um magistrado como os pais dos outros meninos. Mas
ento por que tinha ele sido mandado para esse colgio com os
outros? Bem lhe dissera o pai que no devia se considerar um
intruso, porque um seu tio-av tinha apresentado ali uma moo ao
Libertador cinqenta anos antes. A gente conhecia as pessoas
daquele tempo por suas roupagens antigas. Parecia-lhe um tempo
solene; e se perguntou se no seria esse o tempo em que os alunos
em Clongowes usavam jalecos azuis com botes de lato, coletes
amarelos e bons de pele de coelho, bebiam cerveja como gente j
crescida e dispunham de galgos seus para a caa s lebres.
Olhou para a janela e viu que a claridade se fizera mais fraca.
Devia estar sobre os ptios de recreio, uma claridade cinzenta e
enevoada. A classe devia estar fazendo os temas ou talvez o padre
Arnall estivesse a fazer a leitura no livro.
Esquisito no lhe terem dado nenhum remdio. Talvez o Irmo
Michael trouxesse algum quando regressasse. Diziam que se tinha
que beber coisas de cheiro insuportvel quando se estava na
enfermaria. Sentia-se, porm, melhor agora do que antes. Na livraria
tinha um livro sobre a Holanda. Havia nele uns nomes estrangeiros
esplndidos e quadros de cidades completamente esquisitas, bem
como de navios. Isso fazia a gente se sentir to feliz.
Que desmaiada que estava a luz na janela! Mas isso era bonito.
O fogo da chamin subia e caa pela parede. Formava como que
ondas. Algum devia lhe ter posto carvo; e Stephen escutava vozes.
Como de gente conversando. Era o rudo das ondas. Estariam as
ondas conversando entre si, medida que se levantavam e que
caam?
Viu o mar de ondas, compridas ondas negras erguendo-se e
-
caindo, muito negras sob a noite sem lua. Uma luz fraca bruxuleava
de encontro ao molhe por onde o navio estava entrando; e viu uma
poro de gente reunida na beira da praia para ver o navio que
demandava o porto. Um homem corpulento estava no cais, olhando
l para longe, para a terra ch, escura; e foi por causa da luz nas
pedras do molhe que Stephen viu o rosto dele, o rosto infeliz do
Irmo Michael.
Viu-o estender as mos para o povo e o ouviu dizer com uma
voz cheia de aflio, por cima das guas:
Ele morreu. Vimo-lo estendido sobre o catafalco.
Um lamento de amargura subiu daquela gente.
Parnell! Parnell! Ele est morto!
Todos caram de joelhos, lamentando com amargura.
E viu Dante, com um vestido de veludo marrom e um manto de
veludo verde que lhe pendia dos ombros, passar orgulhosamente e
em silncio por entre o povo que estava ajoelhado na beira das
guas.
Um grande fogo serpenteava alto e rubro, flamejando na
lareira; e, sob os braos dos candelabros que a hera entrelaava,
estendia-se a mesa de Natal. Eles tinham chegado casa um pouco
atrasados e o jantar ainda no estava pronto; mas ficaria num abrir
e fechar de olhos, dissera a me. Estavam espera de que a porta
fosse aberta e os criados entrassem trazendo grandes travessas
cobertas com suas pesadas tampas de metal.
Todos estavam espera: Tio Carlos, sentado bem longe, na
sombra da janela; Dante e o Sr. Casey, sentados nas poltronas do
outro lado da lareira; Stephen sentado numa banqueta entre eles
com os ps descansando sobre a barra tostada. O Sr. Dedalus olhou-
se no espelho inclinando sobre a cmoda, cofiou as guias dos bigodes
e, depois, endireitando as abas da sobrecasaca, postou-se de costas
para o fogo crepitante; de quando em quando, retirava a mo da aba
da casaca para cofiar uma das pontas dos bigodes. O Sr. Casey
-
inclinava a cabea para uma lado e, sorrindo, batia na salincia que
tinha no pescoo, com os dedos. E Stephen tambm sorria porque j
sabia, agora, que era mentira que o Sr. Casey tivesse uma sacola de
prata na sua garganta. Sorria ao pensar quanto o barulho,
igualzinho ao de prata, que o Sr. Casey tinha o costume de fazer o
havia, durante muito tempo, intrigado. E at quando tentara abrir a
mo do Sr. Casey para ver se a bolsa de prata estava escondida
dentro dela vira que os dedos dele no podiam ser esticados; e o Sr.
Casey contara-lhe que tinha ficado com aqueles trs dedos assim,
porque os apertara numa prensa ao fazer um presente de aniversrio
para a Rainha Vitria.
O Sr. Casey tornou a bater no caroo do pescoo e sorriu para
Stephen com olhos sonolentos; e ento o Sr. Dedalus lhe disse:
Sim. Ora bem, est tudo muito direito. Demos uma boa
caminhada, no demos, John? Sim... Pergunto-me se haver alguma
probabilidade de jantarmos, esta noite. Sim... Ora bem, est tudo
muito direito. Respiramos hoje, dando a volta por Head, uma boa
dose de ozona. L isso, que no h dvida!
Voltou-se para Dante e disse:
A senhora no se animou absolutamente, hein, Sra.
Riordan?!
Dante fez um ar carrancudo e respondeu secamente:
No.
O Sr. Dedalus deixou cair as abas da sobrecasaca e se
encaminhou para o guarda-louas. Trouxe de l um grande jarro de
pedra, de usque, que tirou da prateleira e encheu com ele a bilha
devagar, inclinando-se de vez em quando para ver quanto j tinha
entornado. Depois, indo colocar outra vez o jarro na prateleira, virou
um pouco do usque dentro de dois copos, acrescentou um pouco
dgua, e voltou para a chamin com eles.
Uma molhada, John, apenas disse ele , para aguar o
teu apetite.
-
O Sr. Casey segurou o copo, bebeu e o colocou perto de si,
sobre o aparador. E a seguir disse:
Ora bem, eu no posso deixar de pensar em nosso amigo
Christophen a fabricar...
Teve um acesso de riso e, tossindo, acrescentou:
... a fabricar esta champanha para aqueles sujeitos.
O Sr. Dedalus riu estrepitosamente.
Referes-te a Christy? disse ele. H mais astcia nos
calombos da cabea desse careca, do que num magote de raposas
saltadeiras.
Inclinou a cabea, fechou os olhos e, lambendo os beios
profusamente, comeou a falar imitando a voz do hoteleiro.
E que boca macia quando fala com uma pessoa, j
reparaste? muito sibilante, com aquela tromba sempre ensalivada.
O Sr. Casey estava ainda lutando entre a alternativa de tossir
ou de dar risada. E Stephen, vendo e ouvindo o hoteleiro atravs da
cara e da voz de seu pai, ria.
O Sr. Dedalus enfiou os culos e, olhando-o fixamente, de cima
para baixo, perguntou calma e bondosamente:
De que te ests a rir, tu a, Pequerrucho!?
Os criados entraram e depuseram as travessas sobre a mesa. A
Sra. Dedalus seguia-os; e o lugares foram dispostos.
Vamos sentar disse ela.
O Sr. Dedalus foi para a ponta da mesa e disse:
J agora, Sra. Riordan, sente-se. John, senta-te, meu caro.
Deu uma olhadela a ver onde tio Carlos se sentava e disse:
Ora, pois, aqui temos uma ave nossa espera.
Quando todos j haviam tomado seus lugares, ele estendeu a
mo at a coberta e disse vagarosamente, destampando-a:
Agora, Stephen.
Stephen, em p, l no seu lugar, deu as graas antes da
refeio:
-
Abenoa-nos, Senhor, e a estas tuas mercs que, por intermdio
de Tua magnanimidade, estamos recebendo, por Cristo, Nosso Senhor,
Amm.
Todos se benzeram e o Sr. Dedalus, com mostras de prazer,
levantou da travessa a pesada cpula perolada em toda volta com
gottulas cintilantes.
Stephen no tirava os olhos do rechonchudo peru que tinha
sido preparado, recheado e posto no espeto sobre a mesa da cozinha.
Estava ao par de que o pai tinha pago um guinu por ele no Dunns,
ali na DOlier Street, e que o homem o tinha cutucado muitas vezes
no osso do peito para mostrar que gordo que estava; e at se
recordava da voz do homem ao dizer:
Fique com este, Senhor. um legtimo Ally Daly.
Por que seria que o Sr. Barret, em Clongowes, chamava a sua
palmatria de peru? Mas Clongowes estava muito longe dali; e o
cheiro quente e espesso do peru, do toucinho e do condimento
erguia-se dos pratos e das travessas, o grande fogo estava com
grandes labaredas vermelhas na lareira e a hera verde mais o
vermelho azevinho faziam a gente se sentir to feliz! Quando o jantar
terminasse o grande pudim de ameixas seria trazido, todo enfeitado
com amndoas descascadas e brotos de azevinho, com um fogo
azulado correndo em redor dele e uma bandeirola verde flutuando
em cima.
Aquele era o seu primeiro jantar de Natal; e pensou em seus
irmozinhos e irmzinhas que estariam esperando na sala das
crianas, como ele tantas vezes tinha esperado, que o pudim viesse.
O duplo colarinho baixo e a jaqueta formato Eton faziam-no achar-se
esquisito e como que mais velho; e aquela manh, quando a me o
descera para o parlatrio, vestido para a missa, seu pai at se pusera
a chorar. E isso porque estava pensando em seu prprio pai. Tio
Carlos tambm dissera que fora por causa disso.
O Sr. Dedalus cobriu a travessa e comeou a comer como um
-
esfomeado. Depois, ento, disse:
Pobre do velho Christy, est quase todo entortado agora de
tamanha velhacaria.
Simo disse a Sra. Dedalus, voc no ps nenhum
molho para a Sra. Riordan.
No pus? exclamou ele. Sra. Riordan, perdoe o pobre
cego.
Dante cobriu o prato com ambas as mos, dizendo:
No, obrigada.
O Sr. Dedalus voltou-se para tio Carlos.
Que tal vai isso, senhor?
De vento em popa.