James Joyce - Retrato Do Artista Quando Jovem.pdf

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  • JAMES JOYCE

    RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM

    Retrato do artista quando jovem mais do que uma obra

    autobiogrfica. Ela o relato da trajetria de um homem em busca

    do pleno conhecimento de si mesmo.

    em Retrato do artista quando jovem que Joyce inaugura todo

    o simbolismo que formar o cerne de suas obras posteriores. Com

    este texto Joyce comea a desenvolver a tcnica do monlogo interior,

    que apareceria mais tarde, em toda a sua plenitude, em Ulisses e

    Finnegans Wake. Por isso muitos encaram o livro como um

    prembulo de Ulisses. Mas Retrato do artista quando jovem uma

    obra fechada em si mesma, no sentido de que traz todos os

    componentes dos grandes romances. Ainda narrativa linear,

    diferentemente de Ulisses, mas j contm em seu bojo todos os

    elementos que fizeram da fico de James Joyce um marco da

    literatura contempornea.

    A difcil passagem da adolescncia maturidade, a busca do

    sentido da vida e da arte, a emergncia do indivduo frente

    sociedade, o carter aleatrio, e quase sempre desconcertante, da

    vida so as grandes discusses que perpassam toda a obra.

  • Retrato do artista

    quando jovem

    James Joyce

    Traduo de

    Jos Geraldo Vieira

  • Ttulo do original ingls:

    A portrait of the artist as a young man

    da traduo, Editora Civilizao Brasileira S.A., 1987

    Direitos no-exclusivos cedidos Ediouro S.A.

    ISBN 85-00-92340-7

    MAC 2340

    EDIOURO PUBLICAES S/A

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  • CCOONNTTRRAA CCAAPPAA

    James Joyce

    RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM

    Stephen Dedalus o meu nome,

    Irlanda o meu pas.

    Em Clongowes tenho a minha residncia,

    Mas s no cu espero ser feliz.

    (Anotao do caderno de Stephen Dedalus)

    Retrato do Artista Quando Jovem conta-nos a trajetria de

    Stephen Dedalus, alter ego de James Joyce. Mas o livro muito mais

    que um depoimento pessoal. Ele o relato de uma busca. A histria

    de um homem tentando compreender a si mesmo e aos outros. Uma

    anlise minuciosa da existncia humana, com todos os seus dramas,

    alegrias, fraquezas e descobertas.

  • Et ignotas animum dimittit in artes

    Metamorphoses, OVIDIO, VIII, 18

  • A P R E S E N T A O

    PRIMEIRO tero do presente sculo corresponde ao

    estabelecimento das ideologias modernas, nutrientes do medo e do

    desejo da aventura que alimentam a arte; o bisturi do realismo corta

    ento as sensibilidades, e junta-se ao ascetismo positivista, o

    fermento oportuno para o ideal baseado em aes reais. A hora de

    mudanas e, mal firmados no seu cho evasivo, os estetas valem-se

    da discrepncia, recorrendo ao misticismo cristo ou pago,

    teologia moralizante ou aos esoterismos orientais; a angstia de

    Kierkegaard e a ontologia heideggeriana disputam preferncias com o

    vitalismo de Henri Bergson, com os voluntarismos de Schopenhauer

    ou de Nietzsche. Entra em moda a psicologia de William James, de

    Freud e de Jung. Na quebra do equilbrio burgus, a sociedade pensa

    a revoluo como garantia dos direitos humanos e, em 1917, a

    Rssia retoma de forma exacerbada o ideal positivista.

    Como Gulliver nas mos do gigante, o homem desse tempo

    sente-se transformado em inseto, e debate-se na tentativa de

    descrever o mundo j irreconhecvel, retratando-o com as tintas da

    revolta, do medo, da perplexidade, do humor custico, da ironia e da

    indignao. Assim, mesmo quando a sua produo literria est

    fundamentalmente comprometida com valores estticos e msticos, o

    artista da transio observa a desagregao ambiente, faz

    prognsticos apocalpticos e, ao contrrio do Ado expulso do paraso

    estvel, revolta-se contra a flamejante espada do querubim que lhe

    impede a reentrada no den. Copiando em escala miservel a altivez

    de Prometeu e Lcifer, ele tem conscincia de que a vida sequer se

    O

  • caracteriza pela falta de sentido pois, em geral, parece fundamentar-

    se no desastre.

    Trabalhando a ambgua mistura de apocalipse e utopia, o

    artista invoca opes variadas antes de tomar o rumo definitivo e,

    como nova edio de romntico, toma conscincia da

    responsabilidade social e poltica da arte; s vezes faz as escolhas

    mais absurdas, como, por exemplo, o americano Ezra Pound, que se

    volta para a antiga civilizao romana em busca de parmetros

    ticos, quando, em sua poca, o que vige o execrvel e moderno

    fascismo italiano. Outros escritores, como Joyce, Virginia Woolf e

    Faulkner mergulham em vaga nostalgia da harmoniosa arete grega,

    e muitos talentos menores caem em beletrismo estril. Nesse tempo,

    porm, de modo geral, poetas e ficcionistas deixam-se fascinar pelo

    esdrxulo e o desvio, cultivam o masoquismo, traduzem as pulses

    mais prementes da sociedade e, freqentemente, transformam-se em

    absurdos paladinos de verdades mortas, desenraizadas. Percebendo

    que a beleza no se aloja no olhar do beholder nem no confuso

    mundo que observam, procuram-na nos meandros escondidos da

    conscincia ou do inconsciente, no fundo da terra, na voragem do

    tempo recorrente, nas primitivas virtudes humanas.

    Todas as reas artsticas esto infiltradas de indeciso e de

    empenho transformador: na msica, Debussy, Bartok, Stravinski e

    Ravel exploram audcias dissonantes; o folclore e os regionalismos

    vm tona, metamorfoseados; os formalistas russos pinam das

    profundezas da lingstica os mistrios da literariedade e, em

    decorrncia, a literatura usa o potencial criativo da linguagem,

    explorando sistematicamente a metfora, o smbolo, as alegorias, a

    misteriosa e perene gravidez das palavras e dos sons. Na pintura,

    tambm ocorrem mudanas sintomticas, o suave impressionismo

    substitudo pela agudeza do cubismo e, enquanto Chagall voa em

    busca do paraso apenas intudo, Picasso desbrava labirintos,

    desvendando a angulosa e lasciva alma de mulheres, toureiros e

  • minotauros. No cinema, em nome da moral e da ternura

    humanitria, cineastas como Eisenstein e Chaplin recorrem

    montagem de atrao para exprimir os seus pontos de vista. Por sua

    vez, a poesia esplende e maltrata, revelando a misria

    contempornea da terra devastada, como no caso exemplar de The

    Love-Song of J. Alfred Prufrock e The Waste Land, de T. S. Eliot, ou

    como os escritos de Joyce, estruturados sobre temas mitolgicos que,

    h milnios, servem ao homem como veculo de regenerao.

    A repugnncia pela realidade objetiva leva muitos escritores a

    procurar a subjetividade: a sensibilidade da memria de Proust

    continua a cativ-los, e Virginia Woolf revigora o lirismo atravs do

    estilo do fluxo da conscincia, enquanto Andr Gide examina as

    vrias camadas da alma humana, aproveitando-se das caixas de

    segredo da mise-en-abyme. Em 1929, um William Faulkner j

    inteiramente amadurecido como artista produz o monumental The

    Sound and the Fury.

    A expressiva retomada artstica da temtica mitolgica, prtica

    to comum nos tempos de crise, caracterstica dominante de todo o

    perodo e, em cerca de duas dcadas e meia, ajuda a mudar o

    panorama geral da arte europia e a da norte-americana; alm disso,

    como costuma acontecer, a crise favorece o surgimento de um dos

    mais frteis perodos da literatura ocidental, incentivando o

    imaginrio potico, admitindo o concurso de variadas intuies

    filosficas, estticas e emocionais. Autores dentre os mais

    expressivos, como Henry James, Joyce, Virginia Woolf e Thomas

    Mann, por exemplo, fazem inteligentes incurses pelo pensamento de

    Henri Bergson, de Nietzsche, de George Moore, de Freud, Jung e

    William James.

    Desse modo, cultivando o novo ou o renovado, resgatando

    especialmente os mitos do eterno retorno e da ressurreio, a

    vibrante produo literria do incio do sculo geralmente desenha a

    utopia, seja no sentido otimista e freqentemente ingnuo da

  • literatura marxista, seja pela inverso, pela pardia como a que

    Joyce empreende ao inventar os gregos-irlandeses de Ulysses.

    este o mundo em que James Joyce se entrega literatura

    como um novo Parsifal em busca do Santo Graal; acredita ele que,

    na condio de exilado, vai poder resgatar atravs da arte a

    conscincia de sua raa, como declara o seu alter-ego Stephen

    Dedalus, no final de Retrato do artista quando jovem. Por isso, onde

    quer que esteja, carrega na alma a Irlanda, Dublin por inteiro e todos

    os irlandeses massacrados por impedimentos como a pobreza e a

    ignorncia, a injustia social, a hipocrisia do clero catlico conivente

    com a crueza do opressor ingls, o preconceituoso e aristocrtico

    protestantismo minoritrio e rgido, e a mgoa da perda de Charles

    Parnell, o heri destroado pela violncia poltica e o moralismo

    repressor.

    Com efeito, misturando os regionalismos da prpria

    experincia com os substratos psicolgicos da experincia humana

    geral, James Joyce constri com tal desenvoltura o seu universo

    fictcio que, embora convivendo com a obra de irlandeses to

    talentosos como Bernard Shaw, Synge ou Yeats, garante a

    perenidade do binmio Joyce/Irlanda.

    Como qualquer jovem intelectual de sua poca, admira Ibsen,

    l Kropotkin, Bakunin e Prudhon, olha os fenianos com simpatia,

    rotula-se um artista socialista, advoga medidas revolucionrias

    contra a opresso britnica e, apesar de gabar-se de odiar a Irlanda,

    o amor e o vago humanitarismo patriticos so particularidades que

    Stephen Dedalus no consegue disfarar. Apesar disso, alguns

    crticos acusam-no de admirao pela burguesia capitalista, e de

    indiferena quanto ao destino irlands.

    Nascido em Dublin, em 2 de fevereiro de 1882, Joyce o

    primeiro filho da grande famlia de Mary Jane Joyce e do arruinado

    coletor de impostos John Stanislaus Joyce; desde criana, define-se

    pela timidez da rebeldia, faceta de sua personalidade que vai se

  • exacerbar por influncia dos anos passados sob a rgida tutela dos

    padres jesutas do Clongowes Wood College e do Belvedere College.

    Em 1899, aos dezessete anos, entra para o University College de

    Dublin, escreve ensaios sobre o teatro, e um panfleto em que ataca o

    Irish Literary Theater, ganhando a antipatia de considervel parte da

    intelligentsia local; sentindo-se marginalizado, despaisado no

    prprio pas, decide mudar-se para a Frana mas, em 1903, volta

    Irlanda para assistir morte da me; em 1904, apaixona-se por Nora

    Barnacle, me de seus futuros filhos, uma criadinha insinuante com

    a qual foge para Trieste, e com quem se casa oficialmente apenas em

    1931. Em 1932, enfrenta o ano terrvel do enlouquecimento

    irremedivel da filha Anna Lucia mas, tambm naquele ano, tem o

    gosto de ver o neto recm-nascido receber o nome de Stephen.

    Da mesma forma que o personagem Stephen Dedalus, e talvez

    inspirado em Kierkegaard, James Joyce resolve inaugurar o prprio

    futuro atravs de um gesto romntico, e foge da realidade

    dublinense, embora a Irlanda continue necessariamente plantada em

    sua obra, transfigurada, alegorizada, metamorfoseada, simbolizando

    o princpio feminino ou, como ele mesmo a descreve, como a voraz

    porca que devora as prprias crias, a branca Deusa Porca que, na

    verso mitolgica celta, uma das mais fortes representaes da

    Grande Me Cerridwen.

    Embora o mito seja o grande gerador de vida no corpo geral de

    sua produo literria, na escolstica de Toms de Aquino e no

    pensamento de Giambattista Vico que ele vai encontrar fundamentos

    estticos; partindo de vagas sugestes de natureza tomista, visa

    sabedoria e iluminao, e engaja-se na busca de si mesmo e da

    beleza artstica. Misturando simbolismo e realismo, com a mesma

    liberdade com que utiliza conceitos filosficos, congrega diversas

    vertentes da mitologia, fazendo o mito grego comungar com as razes

    autctones da tradio celta e da anglo-saxnica, ou com posteriores

    emprstimos normandos, almejando estruturar uma sntese

  • relativamente idealista, o eptome do homo sapiens.

    A sua obra est profundamente comprometida com valores

    autobiogrficos, principalmente o romance Retrato do artista quando

    jovem, em que a vida do personagem principal solda-se s

    impresses da infncia, da adolescncia e da juventude do prprio

    autor: esto a registrados a fraca figura de John Joyce, verdadeira

    frustrao do arqutipo do Pai, a rgida paixo religiosa da me, o

    rigor dos jesutas, a ptria linda e pauprrima explorada pelo

    estrangeiro, a Igreja aviltada, o ideal patritico encarnado por

    Parnell, a nervosa sensualidade da primeira juventude, a alma da

    Irlanda em toda a sua plenitude.

    O interesse juvenil do escritor pela medicina d-lhe o gosto

    realista do detalhe e da preciso mimtica, e a paixo da forma

    denuncia-se mesmo nas particularidades grficas de sua escritura,

    onde tambm no se disfara a fascinao pela msica pois, se a

    beleza plstica o cativa, logo ela o remete para o ritmo mais amplo,

    para a harmonia intuda, para a msica das estrelas.

    Paralelamente, Joyce interessa-se pela fora criativa da

    linguagem, peculiaridade responsvel pela cativante musicalidade de

    seus escritos, onde melodia, ritmo, senso de orquestrao e

    harmonia so contedos bsicos. Alis, quando, em 1907, publica

    Chamber Music, ele prprio o considera um conjunto de canes;

    alm disso, em Trieste, em Paris e em Zurich, na Escola Berlitz,

    como professor de lngua estrangeira que mantm a famlia.

    Conseqentemente, no amplo caleidoscpio de sua fico mais

    madura, o desenho final tem por base um tapete de neologismos

    sintticos e vocabulares, sinestesia, variao de pontos de vista,

    equilbrio tonal, leit-motifs sintticos, vocabulares ou sonoros,

    aglutinaes, montagem espao-temporal, com o recurso das

    chamadas tcnicas cinematogrficas como, dentre outras, o

    flashback e o flash-forward, o fade-out ou o close-up. Contm

    ainda trechos em lnguas estrangeiras, tradues, hibridismo

  • lingstico, contraponto, onomatopia e orquestrao, o uso da gria,

    dos dialetos, de painis imagsticos entrecruzados, enfim, de uma

    imensa gama de formas gestuais e faladas, atravs de que o escritor

    visa apreenso de significados latentes.

    Desse modo, como exemplar do romance moderno, a obra de

    James Joyce no expe propriamente o mundo sem deus

    denunciado por Georges Lukacs mas, ao contrrio, levando em conta

    elementos da relatividade einsteiniana, como tela relativizada que

    sugere a presena do deus absconditus.

    Desde os seus seis anos de idade, Joyce armazena na alma

    uma pesada carga de sentimentos de culpa e de chamados

    responsabilidade espiritual e, por isso, natural que se torne

    exemplar do homem em conflito consigo mesmo e com o ambiente

    sua volta; entretanto, auto-exilado em nome da arte, ansiando pelo

    paraso, ele ainda conserva da beleza uma viso que nem a dolorosa

    morte da me, nem a sensualidade de Nora, nem o seu prprio

    erotismo ou a fragilidade de seus olhos podem apagar.

    Impressionado pelo indizvel da experincia potica, maltratado pela

    lembrana do sacerdote punidor que parece expelir chamas,

    prometendo ao adolescente um inferno terrivelmente cruel e plstico,

    pela angstia da escolha vocacional e profissional, pelo mistrio do

    amor e da sexualidade, afligido por remorso e embates espirituais,

    tambm espervel que se sinta tentado pelo confessionalismo

    literrio; natural que ambicione encontrar uma sntese potica

    infiltrada de alto teor mstico, e configurada no anseio pelo paraso

    buscado pelos meios da solido, do sofrimento, da coragem moral.

    Por isso mesmo, volta-se para a mitologia e para a metafsica.

    Entretanto, ao contrrio do que acontece com artistas de

    pocas estveis, no busca a forma mitolgica esttica, mas o mito

    em seu potencial de metamorfose e de reconstruo; por

    conseguinte, quando adota parmetros gregos em Ulysses, prope

    uma espcie alegorizada de segunda vinda marcada pelo humor e a

  • sensualidade divertida e vulgar de Molly Bloom.

    Adotando o realismo, o inventor de Stephen publica Dubliners,

    em 1914; em 1916, apresenta a verso integral de seu primeiro

    grande romance, Retrato do artista quando jovem, em cuja feitura

    utiliza a maior parte do material de Stephen Hero, fico que

    abandona, aps ter-se ocupado dela desde 1904. De modo geral, em

    toda a sua obra de fico, retrata o tempo infeliz em geral revelado

    pelo romance moderno, a vida reificada, cujo sentido a prpria

    ausncia de sentido. Contudo, infiltra valores mitolgicos em tudo o

    que compe, garantindo assim algum lastro otimista. Afinal de

    contas, no final do romance de 1916, Stephen Dedalus declara o seu

    desejo de moldar na prpria alma a incriada conscincia dos

    irlandeses.

    Desde o incio de sua criao literria, portanto, James Joyce

    pensa a Irlanda em termos mticos e perenes, continuando a escrever

    sobre este tema em Exiles, de 1918, Ulysses, de 1922, e Finnegans

    Wake, de 1939.

    Em nmero de livros publicados, a sua obra no extensa,

    embora abunde em profundidade e experimentalismo, ao longo do

    percurso iniciado pelo lirismo dos poemas, incorporando realismo e

    intimismo, entrando pela pardia, o humorismo irnico, e o

    simbolismo de Ulysses que transforma taca em Dublin, Ulisses em

    Leopold Bloom, Telmaco em Stephen Dedalus, e traz Penlope

    metamorfoseada em Molly Bloom. O coroamento vem com o

    intrincado universo onrico de Finnegans Wake, que sai apenas dois

    anos antes da morte do autor.

    Nos vrios estgios dessa produo, o inventor de Stephen

    Dedalus apresenta a Irlanda por inteiro, no mesocosmo em que o

    atual e o illo tempore mtico coalescem com naturalidade; alm

    disso, depois das obras em que analisa a esfera consciente e o

    subconsciente dos personagens, explora em Finnegans Wake o

    inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo atuantes no sonho de

  • Earwicker. tambm neste ltimo romance, que transforma o rio

    Liffey em arqutipo da feminilidade, sob o nome de Anna Livia

    Plurabelle.

    costume dizer-se que h uma Irlanda antes de Joyce, e

    outra depois de Joyce. Na Upper Combrassil Street, 52, por

    exemplo, algumas pessoas quase conseguem ver Leopold Bloom em

    carne e osso; em vez de olhar o rio do alto da ponte Chalelizod, como

    antigamente, os namorados de hoje encontram-se na ponte Anna

    Livia; alm disso, entre tantas outras manifestaes de

    reconhecimento pelo talento do escritor, todos os anos Dublin

    comemora o Bloomsday em 16 de junho, porque, no cosmo

    imaginrio de Ulysses, Stephen-Telmaco e Leopold-Ulisses se

    conhecem nesse dia, em 1904.

    Na verdade, o mundo inventado por Joyce tem tal habilidade

    para gerar imagens na imaginao dos leitores, que continua a

    desenvolver-se como perene work in progress. Naturalmente, muito

    dessa sua fora gerativa deriva da habilidade com que o ficcionista

    associa substratos mticos realidade presente, sugerindo a

    eternidade do deus absconditus traduzido como a alma a um

    tempo regional e universal dos irlandeses.

    assim que Stephen Dedalus, um jovem pobre, pretensioso e

    meio amalucado segundo os padres locais, tambm James Joyce,

    Prometeu, Hamlet, Byron, Lcifer, Parsifal, Ddalo e caro, o

    peregrino que busca a iluminao, caando epifanias como quem

    colhe flores, o poeta metido a filsofo que vive permanentemente

    em busca de si mesmo.

    Contudo, se a base mtica dos diversos romances de Joyce traz

    superfcie os homens reificados e vazios e a terra devastada,

    Stephen Dedalus, ao contrrio do enfermo e desesperanoso Rei do

    Graal, ainda consegue vislumbrar a felicidade simbolizada pela

    beleza artstica. Na verdade, a sua condio de exilado inclui o

    paradoxo de Kma e Mra, o desejo de vida prazerosa e o medo da

  • morte ou, em seu caso especfico, o pavor do fracasso em termos

    estticos.

    to compacta a relao entre Stephen Dedalus e James

    Joyce, no enredo confessional de Retrato do artista quando jovem,

    que o criador se torna dependente da criatura, a ponto de faz-la

    atravessar as prprias fronteiras do romance; assim, depois de

    representar o papel de imaturo Telmaco empenhado em encontrar o

    pai, Stephen pode completar-se magistralmente em Ulysses, onde,

    mais adulto, e tambm mais realista, j aceita as limitaes de

    Leopold Bloom como cabveis no que se poderia chamar de

    desinflao do Pai arquetipal.

    Quer como idealista, quer como realista, o personagem

    desajustado na prpria terra, e revoltado contra o establishment

    carcomido e intil, adota a mxima dos frades cartuxos Fuge, late,

    tace, viajando para a Frana, disposto a estudar medicina, plano

    logo desfeito em nome da literatura. Conduzido pela hybris de seu

    egosmo de artista talentoso, enforma o heri trgico que, como

    lembra Ortega y Gasset, representa na modernidade a aflio da

    procura da identidade. Porque, em seu angustiado orgulho de

    Lcifer, Stephen demonstra coragem moral e senso de

    responsabilidade espiritual. Exemplo de sua integridade o fato de

    que, tendo perdido a f catlica, nega-se a comungar para satisfazer

    me moribunda, alegando respeito pelo smbolo venerado h

    sculos.

    Neste romance, o eu problemtico de Stephen aparece no

    prprio ttulo da obra, nas palavras artista e jovem, que sugerem

    vitalidade criativa e possibilidade de desenvolvimento; na escritura

    que funciona como uma espcie de desenho anamorftico passvel de

    decifrao, o personagem principal, com o seu temperamento de

    Hamlet sensvel, melanclico e neurtico, apreende a corrente lrica

    que subjaz ao mundo das aparncias, examinando a forma, a cor, a

    estrutura das palavras, e chegando evidncia de que elas o

  • fascinam especialmente pelo ritmo, mais do que pelos outros

    atributos, ou por sua associao com o lendrio.

    Portanto, o primeiro passo da aventura esttica de Stephen

    est sediado em sua aguada percepo sensorial, especialmente na

    capacidade auditiva, o mais rico plo energtico da organizao

    sinestsica da composio. Neste romance, freqentemente, som e

    ritmo vm relacionados com imagens de pssaros, a comear pelo

    baby-tuckoo com o qual o personagem, ainda um beb, se

    identifica. Ao longo da obra, o vo natural das ondas sonoras

    complementa-se com a sugesto do vo conscientemente arquitetado

    pela inventiva humana, pois o Ddalo legendrio de quem Stephen

    herda o nome constri deliberadamente o labirinto e a asa antes de

    empreender o vo, da mesma forma que Stephen prepara

    adequadamente os instrumentos e os esteios de seu vo potico.

    Como Ddalo, portanto, o personagem no se entrega apenas ao

    xtase de voar, mas quer garantir a segurana da viagem porque, ao

    contrrio de caro, sabe que o vo intudo inseparvel do gesto, do

    ato que fabrica a asa, e que atravessa labirintos, antes de lanar-se

    para conquistar o espao e o tempo. Por conseguinte, por lrica e

    impressionista que seja a sua viso da realidade, Stephen Dedalus

    conta com uma organizao psicolgica dialtica e programadora e,

    assim, preparando o futuro, toma as mesmas precaues de seu

    criador.

    Na verdade, aps escrever Stephen Hero utilizando tcnica

    tradicional, largamente argumentativa e expositiva, Joyce procura

    novos espeques literrios e lingsticos a fim de dotar a prpria

    fico com a originalidade, o aspecto mpar que a caracteriza. Por

    isso, antes de se dar por satisfeito com a estria de Stephen Dedalus,

    reformula-a com nova roupagem, inventa artifcios estilsticos,

    estuda a obra de outros escritores como, por exemplo, quando

    analisa a fico de Edouard Dujardin, a fim de observar o uso que

    este autor faz do monlogo interior. Somente a partir do estudo

  • sistemtico e criterioso, portanto, que se dispe realmente a criar,

    sentindo-se apto a alar vo com as asas j ento confiveis do estilo

    do fluxo da conscincia. Atravs dessa seriedade de propsitos, o

    criador une-se ao personagem, transformando Retrato do artista

    quando jovem em verdadeira viagem de aprendizagem.

    nesta obra que, interessado em alcanar e exprimir

    convenientemente a coerncia bsica em termos estticos, ou

    melhor, em apreender a misteriosa lgica ontolgica subjacente

    representao artstica e desviante da realidade bela, Stephen

    Dedalus desenvolve uma teoria esttica vagamente fundamentada no

    conceito tomista de quidditas, de coisidade. Em primeiro lugar,

    procurando a beleza artstica ideal, concentra-se no que chama de

    epifania, ou seja, o momento de estesia em que o artista desvenda

    a coisidade do ser. Explica ele que So Toms de Aquino mostra os

    trs passos necessrios ao desvelamento da coisidade, ou seja, as

    condies de integritas, consonantia e claritas, isto ,

    integridade, simetria e radincia.

    Seguindo o roteiro do santo escolstico, ao descrever

    detalhadamente tal processo, o esteta Stephen Dedalus observa que,

    a fim de apreender a essncia objetiva, o observador precisa dividir o

    universo em duas partes, uma delas assumida pelo prprio objeto

    examinado, a outra pelo vazio que nada tem a ver com ele pois,

    apenas dessa maneira, a mente pode descobrir o objeto integral. Para

    Stephen, a integridade assim desvendada a primeira qualidade da

    beleza.

    Para definir a segunda qualidade da beleza, mostra ele a

    necessidade de se considerar o objeto contemplado em todo e em

    partes, enquanto relacionado consigo mesmo e com outros objetos;

    ento, a mente pode constatar o equilbrio das partes, examinando a

    forma da coisa observada, e cada particularidade de sua estrutura.

    Somente a partir desta anlise vai tornar-se apta a apreender a

    simetria do objeto, ou seja, a segunda necessria qualidade da

  • beleza.

    Para completar, juntamente com a sua explicao do termo

    epifania, o artista prope a receita para a apreenso da terceira

    qualidade da beleza, deduzindo que, aps identificar no objeto as

    qualidades de integridade e simetria, a mente observadora chega

    sntese, ou seja, nica relao lgica possvel; assim, apreende a

    terceira qualidade da beleza, ou seja, a radincia ou claritas,

    atingvel num momento mgico que Stephen Dedalus chama de

    epifania.

    Apesar de eminentemente lrico e baseado na riqueza da

    percepo sensorial do autor, Retrato do artista quando jovem

    demonstra o aspecto arquitetnico da imaginao de James Joyce,

    habilidade que vai chegar ao auge na obra posterior do ficcionista.

    Entretanto, neste primeiro romance, o veio estruturante, a paixo

    arquitetnica j transparece claramente como, por exemplo, na

    diviso da narrativa, pois a primeira parte do relato corresponde

    infncia do personagem, o que explica a coerente organizao

    sinestsica do texto inicial do livro; enquanto isso, o final da obra,

    embora carregado de impressionismo, caracteriza-se pelo aspecto

    lgico e racional, especialmente nas ltimas pginas, quando o dirio

    de Stephen Dedalus apresenta raciocnio dedutivo e meditao.

    Este mesmo senso arquitetnico denuncia-se no interesse de

    Stephen Dedalus pelas idias de Giambattista Vico pois, analisando

    a estria como quem examina uma partitura musical, o personagem

    refere-se constituio intrnseca da obra literria, explicando que

    uma pea literria deve necessariamente comprometer-se com o

    esquema lrico, ou com o pico, ou com as caractersticas do gnero

    dramtico.

    Condizente com tal idia, a fico de 1916 obedece s linhas

    regulares de composio, pois conta com uma primeira parte

    essencialmente lrica e dedicada infncia do personagem, uma

    segunda, de natureza pica, com a subjetividade do adolescente

  • entrando em contato com o mundo ambiente atravs da ao, e uma

    terceira, quando, j adulto, o personagem alarga o mbito de suas

    relaes, assumindo um papel dinmico no palco da sociedade que o

    inclui.

    Alis, no corpo geral da obra de Joyce, o esquema estrutural

    pregado por Stephen Dedalus em Retrato do artista quando jovem

    mantm-se relativamente vlido, uma vez que esta fico

    marcadamente lrica, Ulysses prestigia o gnero pico ao tratar da

    ao do heri problemtico em suas escolhas particulares e em suas

    experincias plurais, e Finnegans Wake reflete a dramaticidade geral

    da existncia e, de modo muito especial, o drama da ebulio

    constante, dos contrastes e confrontos das diversas correntes do

    inconsciente do personagem principal.

    Outro ponto interessante a especificidade da epifania no

    contexto de Retrato do artista quando jovem pois, se as experincias

    msticas dos santos, o xtase potico dos romnticos e o xtase

    amoroso dos trovadores medievais tm muitas ligaes com o

    momento de revelao buscado por Stephen Dedalus, tais instantes

    de transe tambm apresentam diferenas essenciais em relao

    epifania conforme explicada pelo personagem. Em primeiro lugar,

    como ensina William Wordsworth, o xtase romntico do qual deriva

    a obra de arte est diretamente relacionado com o fazer potico

    obtido pela conjuno de percepo sensorial, emoo, e recollection

    in tranquility. Alm disso, prope-se a recriar a beleza atravs de

    capacidade exclusiva do artista, isto , por meio do dom especfico

    que Samuel Taylor Coleridge denomina secondary imagination; a

    finalidade de tal momento de transe , naturalmente, um resultado

    esttico e praticado objetivamente, ou seja, uma obra de arte

    concreta. O minnesinger medieval, por sua vez, descreve o instante

    de alumbramento em que a beleza transita do olhar para o corao

    humano, fazendo refulgir a o amor absoluto. Neste caso, o resultado

    do xtase um sentimento abstrato, e conseqentemente puro.

  • Alis, como largamente difundido, uma mgica experincia desse

    tipo que absorve Dante, no momento mesmo em que ele avista

    Beatriz pela primeira vez; ambos tm apenas nove anos de idade

    mas, segundo conta o poeta em Vita Nuova, naquele instante, a

    centelha de beleza ilumina para sempre o seu corao com a chama

    do amor perene e absoluto. Outro transe especfico a experincia

    mstica dos santos, um xtase de natureza puramente anaggica, um

    momento inefvel em que o humano transcende a si mesmo, um

    estado milagroso de arrebatamento em que, para usar-se termos de

    Mircea Eliade, o profano momentaneamente absorvido pelo sagrado

    atemporal e aespacial. O resultado deste transe no um objeto

    concreto como a obra de arte romntica, nem um sentimento, como

    no caso o minnesinger apaixonado, mas uma momentnea morte

    do corpo, o milagre da comunho do esprito humano com o esprito

    divino.

    No que concerne epifania ambicionada e sistematicamente

    registrada pelo personagem de Joyce, entretanto, a exaltao

    milagrosa, o alumbramento momentneo de natureza especulativa

    e, portanto, intelectual. Toma por base a coisidade, a essncia do

    ser, uma essncia no necessariamente espiritual ou artisticamente

    bela, e no um dos atributos do ser, ou a ausncia total do ser, ou

    seja, a morte do observador, ou do objeto observado; constitui-se

    como o raro momento de desvelamento do ser ou, como diz Stephen

    Dedalus, o instante em que o intelecto apreende a misteriosa

    quidditas de qualquer objeto sublime ou vulgar. Portanto, os meios

    auxiliares pelos quais o observador atinge a quidditas do objeto so

    neste caso a percepo sensorial e o intelecto, a fagulha da razo,

    sendo o mistrio revelado pela epifania uma verdade ontolgica, no-

    emocional ou esttica ou mstica.

    Por conseguinte, com a sua mente de observador a um tempo

    realista e metafsico, o personagem de Joyce est empenhado na

    sabedoria atingvel atravs do momento de revelao, o qual, posto

  • lhe possa servir de base para a criao esttica, como no caso do

    xtase romntico, posto lhe possa trazer emoo e intuio do

    sublime, como ocorre, respectivamente, com o trovador ou o santo,

    est fundamentalmente relacionado com a verdade, com a essncia

    do ser, com o princpio filosfico, com aquela Beleza essencial que

    Plato, citado pelo prprio Stephen Dedalus, define como o

    esplendor da verdade.

    Um romance, entretanto, no propriamente um corpo

    lingstico onde idias altissonantes transitam, mas um palco

    dramtico em que personagens agem e reagem de acordo com as

    circunstncias ambientes. Neste sentido, a primeira parte da estria

    de Stephen Dedalus, isto , a que vem contada no livro de 1916,

    completa em si mesma, e subsiste sozinha, no sendo apenas um

    prembulo do que vem relatado depois, em Ulysses. Como obra

    lrica, montada sobre uma sucesso de epifanias, pois a

    curiosidade da criana, do adolescente e do jovem artista focaliza

    constantemente o mundo objetivo e, como mais uma vez explica o

    personagem, o objeto torna-se epifanizado no momento em que o

    foco da mente consegue ajustar-se perfeitamente em relao a ele.

    Alm disso, caracteriza-se como um romance regular, pois enforma a

    atuao de personagens complexos, verossimilhantes e plausveis,

    apresentando os incidentes mais expressivos da infncia, da

    adolescncia e da juventude do artista ingnuo e inteligente que

    Stephen, descrevendo-o no ambiente da casa pobre, em sua relao

    com a famlia, especialmente com os pais e com Dante, com o tio

    Charles, com os colegas da escola, ou ainda no hospital, na igreja,

    nos divertimentos, no esporte, nas conversas, na atrao amorosa,

    na furtiva sexualidade, nos momentos de meditao e de tristeza,

    nas pequenas alegrias, na sua afetao pour pater le bourgeois.

    Embora Retrato do artista quando jovem seja um romance

    intimista e confessional, todas as criaturas que transitam por suas

    pginas so como pessoas de carne e sangue. Todas agem

  • naturalmente, demonstrando uma caracterstica bsica da alma

    ocidental, isto , a constante preocupao com a individualidade.

    Alis, exatamente o anseio por liberdade e conscincia

    individual que explica a alegria criativa de James Joyce, a sua viva

    capacidade de apreender a alma humana, a alegria que lhe permite

    aperfeioar-se como ficcionista, mesmo quando enfrenta reveses to

    dolorosos como a loucura da prpria filha, e a cegueira progressiva

    que o maltrata durante toda a vida, at que a morte o encontra, em

    1941, num hospital suo.

    Rio, 12 de maro de 1993

    Hilda Gouveia de Oliveira

  • 1

    ERTA VEZ e que linda vez que isso foi! vinha uma

    vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que

    vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de

    menino chamado Pequerrucho Fua-Fua...

    Essa histria contava-lhe o pai, com aquela cara cabeluda, a

    olh-lo por entre os culos.

    Ele era o Pequerrucho Fua-Fua que tinha encontrado a

    vaquinha que fazia muu! descendo a estrada onde morava Betty

    Byrne, a menina que vendia confeitos de limo.

    Que beleza a pracinha verde,

    Cheia assim de botes de rosas!

    Essa era a sua cano. Ele cantava assim essa modinha:

    Os boto veilde de lozinhas...

    Quando se molha a cama, no comeo fica quentinho; depois vai

    esfriando. Sua me punha por cima um oleado. Que cheiro esquisito

    que o oleado tinha.

    O cheirinho de sua me era mais gostoso do que o cheiro de

    seu pai. Ele tocava ao piano o Cachimbo de Chifre do Marujo para ele

    danar.

    C

  • Tralal lal

    Tralal tralaladona,

    Tralal lal,

    Tralal lal.

    Tio Carlos e Dante aplaudiam. Os dois eram mais velhos do

    que seu pai e sua me, mas tio Carlos era mais velho do que Dante.

    Dante tinha duas escovas no armrio dela. A escova com

    pelcia marrom nas costas era para Michael Davitt, e a escova com

    pelcia verde nas costas era para Parnell. Dante dava-lhes uma

    pastilha cada vez que ele lhe trazia papel de seda.

    Os Vances moravam no nmero sete. Tinham um pai e uma

    me diferentes. Eram o pai e a me de Eileen. Quando os dois

    crescessem, ele ia se casar com Eileen. Disse e se escondeu debaixo

    da mesa. Sua me ficou zangada:

    Stephen! Pea j desculpas.

    Dante ameaou:

    Ahn! Se no pedir, as guias viro arrancar-lhe os olhos.

    Arranca os olhos desse fregus!

    Ento voc diz isso outra vez?

    Ah! Voc vai dizer outra vez?

    Arranca os olhos desse fregus!

    Ento voc diz isso outra vez?

    Arranca os olhos desse fregus!

    Arranca os olhos desse fregus!

    Ah! Ele no diz mais outra vez!

    Os enormes ptios de recreio formigavam de garotos. Estavam

    todos gritando, e os prefeitos os incentivavam com grandes brados. O

    ar da tarde era desmaiado e friorento e a cada carga e arremesso dos

    jogadores a bola de couro lustrosa voava, atravs da claridade

  • acinzentada, como um pssaro pesado. Ele conservava-se nos

    limites da sua diviso, fora da vista do prefeito e do alcance dos

    terrveis pontaps, fingindo correr para c e para l. Sentia-se

    pequenino e fraco de corpo no meio daqueles brutos jogadores e os

    seus olhos lacrimejantes viam mal. J, por exemplo, Rody Kickham

    no era assim; ia ser o capito da terceira diviso, diziam os alunos.

    Rody Kickham era um colega bem comportado, mas Roche

    Relaxado era um esbodegado. Rody Kickham tinha ramagens

    bordadas em volta do seu nmero e um cesta no refeitrio. Roche

    Relaxado tinha umas mozonas. Chamava o pudim das sextas-

    feiras de cachorro encolhido no cobertor. E um dia lhe perguntara:

    Qual o seu nome?

    Stephen tinha respondido: Stephen Dedalus.

    Ao que Roche Relaxado dissera:

    Que raio de nome esse?

    E, vendo que Stephen no soubera o que responder, Roche

    Relaxado perguntara:

    Seu pai o que ?

    Stephen tinha respondido:

    Um cavalheiro.

    Ao que Roche Relaxado indagara:

    Ele magistrado?

    Ia, agora, aos pinotes de ponta a ponta do ptio da sua diviso,

    dando de vez em quando umas carreirinhas. Mas estava ficando com

    as mos azuladas com o frio. Meteu-as nos bolsos que existiam de

    cada lado do seu terno cinzento com cinturo. O cinturo dava a

    volta, passando rente dos bolsos. O cinturo tambm era para dar

    uma lambada num camarada. Um dia um camarada dissera assim a

    Cantwell:

    Dou-lhe j uma lambada.

    Cantwell respondera:

    V jogar a sua partida. Quero ver mas voc dar uma

  • lambada em Cecil Thunder. Eu sim que te dou j um pontap no

    rabo!

    Isso no era uma expresso bonita. Sua me dissera-lhe para

    no falar com meninos grosseiros no colgio. Aquilo que era me!

    No primeiro dia, no castelo, ao se despedir dele, ela tinha erguido o

    vu, dobrando-o por cima do nariz, para poder beij-lo; e tanto o

    nariz como os olhos dela estavam vermelhos. Mas fingira no

    perceber que ela estava a ponto de chorar. E o pai ento lhe dera

    duas moedas de cinco xelins para ele ficar com dinheiro mido no

    bolso. E o pai lhe dissera que se precisasse de qualquer coisa que

    escrevesse para casa e que nunca, fizessem-lhe l o que fosse, desse

    parte de qualquer colega. Depois, porta do castelo, o reitor

    estendera a mo a seu pai e a sua me, enquanto a sotaina dele

    esvoaava na brisa; e o carro tinha ido embora, levando seu pai e sua

    me. L do carro eles o tinham chamado alto, agitando as mos:

    Adeus, Stephen, adeus!

    Adeus, Stephen, adeus!

    Ele fora colhido no meio dum redemoinho e, amedrontado com

    tantos olhos que luziam e tantas botinas encoscoradas de barro, se

    inclinara para espiar ainda atravs de tantas pernas. Os camaradas

    estavam lutando e goelando, e enquanto isso davam pontaps,

    caneladas, deixando marcas uns nos outros. Depois as botinas

    amarelas de Jack Lawton tinham escapado com a bola e todos

    aqueles calados e pernas tinham sado a correr atrs dele. Tambm

    correu um pouco atrs deles, mas logo parou. No valia a pena

    correr. Em breve todos voltariam para casa, em frias. Depois da

    ceia, ele mudaria, no salo de estudo, o nmero colocado no alto da

    sua carteira, em cima, de setenta e sete para setenta e seis.

    Estar l dentro, no salo de estudo, havia de ser muito melhor

    do que ali fora no frio. O cu estava desmaiado e frio, mas dentro do

    castelo j havia luzes. Perguntou a si mesmo de que janela Hamilton

    Rowan teria arremessado o seu chapu e se naquele tempo j

  • haveria floreiras debaixo das janelas nessa estao do ano. Um dia,

    ao ser chamado no castelo, o mordomo lhe tinha mostrado as

    marcas das coronhadas dos soldados na madeira da porta e lhe

    tinha dado um pedao de po fresco do que a comunidade comia.

    Era bonito e como que aquecia ver as luzes no castelo. Era como se

    fosse num livro. Quem sabe se a Abadia de Leicester no era assim?

    E que bonitas que eram as sentenas na Cartilha do Dr. Cornwell!

    Parecia at poesia, mas eram apenas frases para aprender o modo de

    pronunciar.

    Wolsey morreu na Abadia de Leicester

    Onde os monges o sepultaram.

    Ferrugem uma doena das plantas,

    Cncer o dos animais.

    Como devia ser bom estar estirado sobre o pelego da lareira,

    diante do fogo, com a cabea apoiada nas mos, pensando nessas

    sentenas. Teve um arrepio como se lhe tivessem encostado na pele

    gua fria e visguenta. Tinha sido maldade de Wells empurr-lo sobre

    a valeta s porque ele no quisera trocar o seu estojozinho pelo

    basto de crquete de Wells que era de carvalho bem amadurecido e

    com o qual Wells tinha ganho quarenta partidas.

    Como estava fria e visguenta a gua! Um garoto vira uma vez

    uma ratazana cair dentro da escuma. A me a essas horas estaria

    sentada diante do fogo, com Dante, esperando que Brgida trouxesse

    o ch. Estaria com os ps sobre a barra e as suas chinelas bordadas

    como estariam quentinhas e com um cheirinho quente, gostoso como

    qu! Dante sabia uma poro de coisas. Ela lhe ensinara onde ficava

    o canal de Moambique, qual era o rio mais comprido da Amrica e

    como se chamava a montanha mais alta da lua. O padre Arnall sabia

    mais do que Dante porque ele era padre, mas tanto o seu pai como o

    tio Carlos diziam que Dante era uma mulher inteligente e muito

  • preparada. E quando Dante fazia aquele barulho depois do jantar e

    em seguida levava a mo boca: isso era gs no corao.

    Uma voz gritou l no ptio do recreio:

    Todos pra dentro!

    E, a seguir, outras vozes se puseram a gritar na diviso dos

    mdios e na terceira.

    Todos pra dentro. Pra dentro!

    Os jogadores ajuntaram-se, esbaforidos e enlameados, e ele

    veio para o meio deles, contente porque ia entrar. Rody Kickham

    segurava a bola pelo lao encerado. Um garoto pediu-lhe para dar

    um ltimo chute; mas ele prosseguiu sem sequer responder ao

    garoto. Simo Moonan disse-lhe que no lhe desse, porque o prefeito

    estava olhando. O garoto voltou-se para Simo Moonan e disse:

    Ns bem que sabemos por que que voc est falando. Voc

    o songa do McGlade.

    Que palavra esquisita! O garoto chamara Simo Moonan por

    esse nome porque Simo Moonan tinha o costume de ligar as

    mangas sobressalentes do prefeito nas costas dele; e o prefeito o

    deixara fazer, sem ficar zangado. Mas essa palavra soava feio. Uma

    vez ele, Stephen, tinha lavado as mos no lavatrio do Hotel Wicklow,

    e seu pai tinha puxado a vlvula pela corrente, tendo a gua

    comeado a descer pelo buraco da pia. E depois, quando toda a gua

    j tinha descido vagarosamente, o buraco da bacia tinha feito um

    som que era direitinho essa palavra. S que mais baixo.

    Recordar-se disso e do olho branco do lavatrio fez que sentisse

    frio e depois calor. Havia dois registros que a gente virava e a gua

    saa logo: quente e fria. Experimentara a fria e depois, um

    pouquinho, a quente; e vira palavras impressas nas torneiras. Que

    coisa mais esquisita.

    E o ar, no corredor, tambm o inteiriou. Alm de esquisito, era

    mido. Mas o gs ia ser aceso imediatamente e, aceso, fazia um

    barulhinho que at dava idia duma canozinha; um barulhinho

  • sempre igual; quando os companheiros paravam de conversar no

    recreio, podia-se ouvir.

    Agora era hora de fazer as somas. O Pe. Arnall passou uma

    soma difcil no quadro e depois falou assim:

    Vamos ver, agora, quem ganhar? Adiante, York! Passe na

    frente, Lancaster!

    Stephen caprichou o melhor que pde, mas a soma era difcil e

    ele se sentiu atrapalhado. A insigniazinha de seda, que tinha uma

    rosa branca em cima e que estava presa bem no peito da sua

    jaqueta, comeou a mexer. Ele no era muito forte em somar

    parcelas, mas tentou o melhor que pde de maneira que York no

    viesse a perder. A cara do Pe. Arnall parecia carregada e bastante,

    mas no estava furioso no; pelo contrrio, estava sorrindo. Por fim

    Jack Lawton estalou os dedos e o Pe. Arnall, dando uma olhadela no

    caderno dele, disse:

    Acertou. Bravo, Lancaster! A rosa encarnada ganhou.

    Vamos, vamos, York! Toquem pra frente!

    Jack Lawton olhou todo garboso, l do seu lado. A pequenina

    insgnia, com a rosa encarnada no alto, parecia muito bonita porque

    tinha um barrete de marinheiro em cima. Stephen tambm sentiu a

    sua prpria cara ficar vermelha, pensando em todas as apostas sobre

    quem teria o primeiro lugar em Elementos. Jack Lawton, ou ele.

    Certas semanas Jack Lawton ganhava o carto de primeiro; e certas

    semanas ganhava ele. A sua insgnia branca de seda mexia e remexia

    enquanto trabalhava na soma seguinte e ouvia a voz de Pe. Arnall.

    Depois todo o entusiasmo passou e sentiu que o seu rosto estava

    completamente frio. Pensou que o seu rosto devia estar lvido, j que

    estava sentido tanto frio. No havia possibilidades de dar com a

    resposta da soma, mas no se importou mais. Rosas brancas e rosas

    encarnadas; ora, a estavam umas cores que dava prazer pensar

    nelas. E os cartes de primeiro, segundo e terceiro lugares tambm

    tinham umas bonitas cores: Cor-de-rosa, creme e alfazema. Rosas

  • dessas cores dava prazer pensar nelas. Com certeza a rosa silvestre

    devia ter cores como essas e ele se lembrou da cano sobre os

    botes de rosa silvestre na pracinha verde. Mas ter uma rosa verde,

    isso no era possvel. Mas, talvez nalgum lugar do mundo houvesse.

    A sineta tocou; e ento as classes comearam a desfilar saindo

    das salas para os corredores na direo do refeitrio. Sentou-se l

    encarando os dois bloquinhos de manteiga no seu prato; mas no

    houve meios de poder comer aquele po mido. A toalha da mesa

    estava mida e mole. Mas bebeu todo o ch quente e fraco que o

    desajeitado servente, que tinha um avental branco, entornou na sua

    xcara. Perguntou a si mesmo se o avental do servente tambm

    estaria mido e se todas as coisas brancas estariam frias e midas.

    Roche Relaxado e Saurin beberam chocolate que os parentes lhes

    mandavam em tabletes de estanho. Diziam que no podiam beber

    ch; que era gua suja. Os pais deles eram magistrados, era o que os

    colegas diziam.

    Todos os meninos lhe pareciam muito estranhos. Todos eles

    tinham pais, mes, roupas e vozes diferentes. Sentiu saudades de

    casa, desejou encostar a cabea sobre o colo da me. Mas isso agora

    era impossvel; assim, pois, desejou que acabasse o brinquedo, o

    estudo e as oraes para ir logo para a cama.

    Bebeu outra xcara de ch e Fleming disse:

    Que que h? Ests com alguma dor, ou o que que h?

    No sei disse Stephen.

    Vomita na tua cesta de po disse Fleming , pois est

    com a cara branca como qu! Vomitando, passa logo.

    Oh! sim disse Stephen.

    Mas no era no rosto que ele se sentia doente. Pensou que

    estava doente mas era no corao, se que se pode ter doena nesse

    lugar. Fleming era muito bonzinho em lhe perguntar isso. Ficou com

    vontade de chorar. Fincou os cotovelos sobre a mesa e comeou a

    apertar e soltar as orelhas. Cada vez que abria os pavilhes das

  • orelhas escutava o barulho do refeitrio. Isso produzia um rudo

    como o de um trem noite. E quando apertava os pavilhes das

    orelhas o estardalhao se fechava como um trem entrando num

    tnel. Aquela noite, em Dalkey, o trem ia rangendo com o barulho de

    agora e, depois, quando entrou no tnel, o barulho tinha sumido.

    Fechava os olhos e o trem continuava, fazendo barulho e calando;

    fazendo barulho e calando. Era gostoso ouvi-lo rugir e calar, e

    comear outra vez a rugir ao sair do tnel e em seguida tornar a ficar

    silencioso.

    Depois os camaradas da diviso dos grandes comearam a

    descer dos estrados para o centro do refeitrio, Paddy Rach, Jimmy

    Magee, o espanhol que tinha permisso de fumar charutos e o

    portuguesinho que usava capote de trs palas com l. A seguir, a

    diviso dos mdios, depois as mesas da terceira diviso. E cada

    camarada individualmente tinha uma maneira sua de caminhar.

    Ele ficou sentado a um canto da sala de recreio com a idia de

    assistir a um jogo de domin e uma vez, ou mesmo duas, chegou a

    ouvir distintamente, durante algum tempo, a pequena cano que o

    gs fazia. O prefeito estava porta com alguns meninos e Simo

    Moonan estava dando n nas mangas sobressalentes dele. O prefeito

    contava-lhes qualquer coisa a respeito de Tullabeg.

    Depois que ele saiu, Wells veio at Stephen e lhe disse:

    Diga-nos uma coisa, Dedalus, voc beija sua me antes de ir

    deitar?

    Stephen respondeu:

    Beijo, sim.

    Wells virou-se para os demais camaradas e disse:

    Escutem uma coisa, este camarada que est aqui est

    dizendo que beija a me dele todas as noites antes de ir deitar.

    Os outros garotos pararam de jogar e se viraram todos naquela

    direo, pondo-se a rir. Stephen corou e disse:

    No beijo nada.

  • Escutem vocs, este camarada que est aqui est dizendo

    que no beija a me dele antes de ir deitar.

    Eles todos tornaram a rir. Stephen tentou rir com eles. Sentiu

    todo o corpo quente e confuso, de sbito. Qual era a resposta certa

    para tal pergunta? Ele tinha dado duas e ainda assim Wells rira. Que

    Wells soubesse a resposta certa no era nada de mais, pois ele era o

    terceiro em gramtica. Experimentou imaginar como seria a me de

    Wells, mas no ousou erguer os olhos para o rosto de Wells. No lhe

    agradava a cara de Wells. Fora Wells quem o empurrara para dentro

    da valeta na vspera, s porque no quisera trocar o seu pequeno

    estojo pelo basto de crquete dele que era de carvalho bem

    amadurecido e com o qual havia conquistado quarenta vitrias.

    Agir assim era uma coisa m; todos os camaradas tinham tido.

    E como a gua estava fria e escorregadia! E um garoto tinha visto,

    uma vez, um rato enorme cair repentinamente na escuma.

    O lodo visguento do fosso tinha coberto o seu corpo inteiro; e

    quando a sineta tocara para o estudo e as filas comearam a deixar

    as salas de recreio ele sentiu o ar frio do corredor e das escadas por

    dentro das duas vestes. Tentava ainda pensar qual seria a resposta

    certa. Era direito beijar sua me, ou no era direito beijar sua me?

    Que significava isso, beijar? Punha-se a cara para cima, assim, para

    dizer boa-noite, e ento a me abaixava o seu rosto. Isso que era

    beijar. Sua me punha os lbios na sua face; os lbios dela eram

    moles e umedeciam a face; e faziam um barulhinho diminuto: bift!

    Por que as pessoas faziam isso assim com seus rostos?

    Ao sentar no salo de estudo abriu a tampa da carteira e

    trocou o nmero colocado em cima, setenta e sete, pelo seu, setenta

    e seis. Mas as frias de Natal ainda estavam muito longe; um dia,

    porm, tinham que chegar, porque a terra estava sempre se

    movendo.

    Havia um desenho da terra na primeira pgina da sua

    geografia: uma bola imensa no meio de nuvens. Fleming tinha uma

  • caixa de lpis e uma noite, durante o estudo livre, ele lhe havia

    colorido a terra de verde e as nuvens de castanho. Tinha ficado tal

    como as duas escovas de prensa de Dante, a escova com pelcia

    verde nas costas, para Pernell, e a escova com pelcia marrom nas

    costas, para Michael Davitt. Mas ele no dissera a Fleming que

    pintasse essas cores. Fleming tinha feito isso por si mesmo.

    Abriu a geografia para estudar a lio; mas no conseguia

    aprender os nomes dos lugares na Amrica. Ainda por cima todos

    eles eram lugares diferentes que tinham nomes diferentes. Estavam

    todos em diferentes pases, os pases estavam nos continentes, os

    continentes estavam no mundo e o mundo estava no universo. Virou

    a aba da geografia e olhou o que tinha escrito, ele prprio, do lado de

    dentro: o seu nome e onde estava:

    Stephen Dedalus

    Classe elementar

    Colgio de Clongowes Wood

    Sallins

    Condado de Kildare

    Irlanda

    Europa

    Mundo

    Universo

    Isso, com a sua caligrafia; e Fleming, certa noite, por um

    bolinho, tinha escrito na pgina oposta:

    Stephen Dedalus o meu nome,

    Irlanda o meu pas.

    Em Clongowes tenho a minha residncia,

    Mas s no cu espero ser feliz.

  • Leu os versos de trs para diante, mas assim j no eram mais

    poesia. Depois leu a folha antes do frontispcio vindo de baixo para

    cima at chegar ao seu prprio nome. Sim, era ele. E tornou a ler a

    pgina at embaixo, outra vez. Que que haveria depois do

    universo? Nada. Mas haveria qualquer coisa em volta do universo

    para mostrar onde ele parava antes de comear o lugar do nada? No

    poderia ser uma parede; mas bem que podia ser uma linha fininha,

    bem fininha, l bem em volta de tudo. Era uma coisa muito grande

    para poder pensar em todas aquelas coisas e em todos aqueles

    lugares. S Deus podia fazer isso. Tentou imaginar que enorme

    pensamento deveria ser esse, mas s conseguiu pensar em Deus.

    Deus era o nome de Deus, assim como o nome dele era Stephen.

    Dieu era o nome francs para Deus, e era tambm o nome de Deus; e

    quando algum rezava a Deus e dizia Dieu, ento Deus

    imediatamente ficava sabendo que era uma pessoa francesa que

    estava rezando. Mas embora houvesse nomes diferentes para Deus

    em todas as diferentes lnguas do mundo, e Deus compreendesse o

    que era que todas as pessoas que rezavam diziam em suas lnguas

    diferentes, ainda assim Deus permanecia sempre o mesmo Deus e o

    nome verdadeiro de Deus era Deus.

    Cansou-se muito de pensar dessa maneira. Acabou sentindo a

    cabea ficar muito grande. Virou aquela pgina de dentro e encarou,

    j cansado, a terra redonda verde no meio de nuvens marrons.

    Perguntou a si mesmo qual seria o certo, ser a favor do verde ou do

    marrom, porque Dante tinha rasgado a pelcia verde das costas da

    escova que era para Parnell, um dia, com uma tesoura e lhe dissera

    que Parnell era um homem ruim. Perguntou a si mesmo se em casa

    estariam discutindo por causa disso. Chamava-se a isso poltica. E

    em tal coisa havia dois lados: Dante estava dum lado e seu pai mais

    o Sr. Casey estavam do outro lado; mas sua me e o tio Carlos no

    estavam de lado nenhum. Todos os dias saa alguma coisa nos

    jornais sobre isso.

  • Afligia-o no perceber bem o que significava poltica, bem como

    no saber onde era que o universo acabava. Sentia-se pequeno e

    fraco. Quando seria ele como os alunos de Poesia e de Retrica?

    Tinham umas vozes enormes, botinas muito grandes e estudavam

    trigonometria. At l ainda demorava muito. Primeiro viriam as frias

    e depois o primeiro perodo letivo; a seguir frias outra vez, e depois,

    de novo, outro perodo e outra vez, de novo, frias. Era como um

    trem entrando e saindo de tneis e era como o barulho que faziam os

    meninos comendo no refeitrio quando a gente apertava e afrouxava

    as abas das orelhas. Perodo letivo, frias: tnel, fora! Barulho,

    silncio. Ah! Como ainda estava longe! O melhor era ir para a cama

    dormir. S faltava rezar na capela e, depois, cama. Arrepiou-se e

    bocejou. Que gostosa seria a cama depois que os lenis ficassem

    um pouco quentinhos. No comeo, que frio que eles eram para uma

    pessoa se meter dentro deles! Ficou todo arrepiado s em pensar

    como eram frios quando se entrava para debaixo deles. Mas logo

    ficavam quentinhos e ento poderia dormir. Bem que era agradvel

    sentir-se cansado. Bocejou outra vez. Oraes da noite e, depois,

    cama! Estremeceu todo e teve vontade de abrir a boca de novo. Ia ser

    uma gostosura da a pouco. Sentiu uma brasa quentinha ir

    despencando pelos lenis friorentos e trmulos e ir aquecendo cada

    vez mais at tudo ficar bem quentinho; ainda assim tremeu um

    pouco e teve vontade de bocejar.

    A sineta tocou para as oraes da noite; e ele deixou o salo

    dos estudos, depois dos outros; desceu as escadas e se meteu pelos

    corredores rumo capela. Os corredores estavam sombriamente

    iluminados e sombriamente iluminada estava a capela. Em breve

    tudo estaria imerso na treva e no sono. Dentro da capela havia um ar

    frio, da noite; e os mrmores estavam com a cor que o mar tem de

    noite. O mar era frio tanto de dia como de noite; mas, de noite, era

    bem mais frio. O paredo beira-mar, perto da casa paterna,

    embaixo, era frio e escuro. Mas a chaleira estaria no fogo para fazer

  • ponche.

    O prefeito, na capela, rezava por cima da sua cabea e ele sabia

    o responso de cor:

    Abre os nossos lbios, , Senhor,

    E nossas bocas anunciaro a Tua glria

    Vem, , Deus, em nosso socorro!

    , Senhor, apressa-Te em ajudar-nos!

    Havia um cheiro de noite fria na capela. Mas era um cheiro

    sagrado. No era como o cheiro dos velhos aldees que se ajoelhavam

    no fundo da capela na missa do domingo. No era aquele cheiro de

    poeira, de chuva, de torro e de couro curtido. Mas eram uns santos

    aldees. Por detrs dele, respiravam-lhe na nuca e suspiravam

    enquanto rezavam. Moravam l para Clane, segundo havia dito um

    garoto. Um lugar com pequenas cabanas; tinha at visto uma mulher

    em p na porta meio aberta da cabana, com uma criana nos braos;

    passara l de carro, vindo de Sallins. Que agradvel que devia ser

    dormir uma noite nessa cabana, pertinho da lareira, a turfa

    fumegando no escuro, uma escurido quentinha, sentindo, ao

    respirar, o cheiro dos aldees, um cheirinho feito de ar quente, de

    chuva com terra e de couro curtido. Mas, oh! Que escura que estaria

    a estrada entre as rvores! Era para uma pessoa se perder na

    escurido. Fazia-lhe medo s pensar como isso havia de ser.

    Ouviu a voz do prefeito da capela recitando a ltima orao. E

    ele tambm a recitava, mas l fora, de encontro escurido, debaixo

    das rvores.

    Visita, ns Te rogamos, , Senhor, esta habitao e expulsa

    para bem longe dela, as armadilhas do inimigo. Que os Teus

    anjos permaneam dentro dela para nos preservarem em paz e

    que a Tua bno esteja sempre sobre ns, por Cristo Nosso

  • Senhor. Amm.

    E enquanto ele se despia no dormitrio, os seus dedos

    tremiam. Falou com os dedos que se apressassem. Tinha de se

    despir, em seguida se ajoelhar, dizer as suas oraes particulares e

    se meter na cama antes que a luz do gs fosse abaixada, de maneira

    que no tivesse que ir para o inferno ao morrer. Arrancou as meias,

    enrolou-as, meteu a camisola pela cabea abaixo, s pressas,

    ajoelhou-se tremendo beira do leito, e repetiu as suas oraes em

    disparada, com medo de que a chama do gs abaixasse. Sentiu

    tremer os ombros ao murmurar:

    Deus abenoe meu pai e minha me e os conserve para

    mim!

    Deus abenoe meus irmozinhos e minhas irmzinhas e os

    conserve para mim!

    Deus abenoe Dante e tio Carlos e os conserve para mim!

    Benzeu-se, jogou-se s pressas na cama e enrolando a ponta

    da camisola debaixo dos ps, escorregou por entre os frios lenis

    alvacentos, cheio de tremores e calafrios. Mas no iria para o inferno

    quando morresse, e o calafrio havia de parar. Uma voz ecoou pelo

    dormitrio, desejando boa-noite aos meninos. Ele espiou um instante

    por cima da colcha e viu as cortinas amarelas aos lados e diante da

    sua cama e que o fechavam de todos os lados. A luz foi abaixando

    vagarosamente.

    Os sapatos do prefeito afastaram-se. Para onde? Escadas

    abaixo, ao longo dos corredores, ou para o seu quarto l na ponta?

    Via s a escurido. Seria verdade o que diziam, que um co preto

    passava por ali de noite, com uns olhos do tamanho de lanternas de

    carruagem? Diziam que era o fantasma de um assassino. Um calafrio

    de pavor correu por todo o seu corpo. Via o portal negrejante do

  • vestbulo do castelo. Velhos criados com suas antigas librs estavam

    enfileirados na balaustrada de ferro, em cima, na escadaria. Isso

    tinha se passado havia muito tempo. Os velhos fmulos estavam

    imveis. Havia uma lareira, mas o vestbulo estava imerso na

    escurido. Uma figura, vinda do vestbulo, subia a escadaria. Vestia

    um manto branco de marechal; o seu rosto era plido e estranho.

    Uma das suas mos apertava o corpo, de um lado. Olhava com olhos

    esquisitos para os velhos criados. E os criados olhavam para ele e

    viam o rosto do amo, e aquele seu manto! E sabiam que ele tinha

    recebido um ferimento mortal. Mas para onde eles olhavam no

    havia mais do que treva; apenas negror no ar silencioso. O seu amo

    tinha recebido um ferimento mortal no campo de batalha, em Praga,

    muito longe, para l do mar. Ele estava em p no meio do campo; a

    sua mo apertava o seu corpo, num dos lados; a sua face era lvida e

    estranha! Cingia-o uma capa branca de marechal.

    Oh! Como dava arrepio e como era esquisito estar a pensar

    nisso! Toda a treva estava fria e estranha. Havia rostos estranhos

    nela, grandes olhos que nem lanternas de carruagens. E eram os

    fantasmas de assassinos, as figuras de marechais que tinham

    recebido seus ferimentos de morte nos campos de batalha, l longe,

    alm do mar. Que desejariam eles dizer, j que suas faces estavam

    assim to estranhas?

    Visita, ns Te rogamos, , Senhor, esta habitao e expulsa

    para bem longe dela todos os...

    Ir para casa em frias! Que bom que seria; tinham-lhe dito os

    garotos. Tudo subindo para os carros na manh hibernal, no lado de

    fora do portal do castelo. Os carros a rodarem sobre as pedrinhas.

    Hurras, ao reitor!

    Hurra! Hurra! Hurra!

    Os carros passam por diante da capela e todos os barretes so

  • tirados. L vo eles rodando alegremente ao longo das estradas e dos

    campos. Os cocheiros, apontando com o cabo dos seus chicotes,

    mostram para que lado fica Bodenstown. A garotada d vivas.

    Passam pela herdade do Jolly Farmer. Vivas e mais vivas e mais

    vivas. Atravessam Clane, dando vivas e sendo ovacionados. As aldes

    surgem nas portas meio abertas; os aldees esto aqui e acol. Que

    cheiro bom que anda na atmosfera hibernai! O cheiro de Clane:

    chuva e ar friorento; turfa queimando e cheiro de couro curtido.

    Depois o trem cheio de alunos: um trem muito comprido de

    chocolate, com fisionomias cor de creme. Guardas passando para l

    e para c, abrindo, fechando, prendendo, soltando as maanetas das

    portas. So homens fardados de azul com gales prateados; tm

    gales prateados e suas chaves produzem uma msica gil: clic, clic;

    clic, clic.

    E o trem dispara por sobre as terras frteis e deixa longe a

    Colina de Allen. Os postes dos telgrafos, passando, passando. E o

    trem sempre a seguir, a seguir. Estava farto de saber. Havia

    lanternas na entrada da casa paterna e grinaldas verdes de ramos

    amarrados. Haveria azevinho e hera, esta bem verdinha aquela bem

    vermelhona, enrolando os candelabros. E haveria azevinho vermelho

    e hera verde em volta dos velhos retratos, pelas paredes. Azevinho e

    hera, para ele e para o Natal.

    Que bom!...

    Todo o mundo l. Bem-vindo, Stephen! Rudos de receber. Sua

    me beijava-o. Isso era direito? Seu pai, agora, era marechal; muito

    mais do que um magistrado. Bem-vindo, Stephen!

    Quanto rudo alegre!

    Rudo de argolas de cortinas correndo nas barras; de gua

    espirrando nas pias. Rudo de levantar, de vestir e de se lavar no

    dormitrio; rudo de mos batendo palmas medida que o prefeito

    passava para cima e para baixo recomendando os garotos a se

    despacharem. Um plido claro de sol deixando ver as cortinas

  • amarelas corridas e os leitos desmanchados. O seu leito estava

    ardendo e o rosto e o corpo estavam pegando fogo.

    Levantou-se e sentou-se na beirada da cama. Sentia-se fraco.

    Tentou enfiar as meias. Produziram-lhe uma sensao spera,

    horrvel. Que luz de sol mais fria e esquisita!

    Fleming disse:

    Ests te sentindo mal?

    Ele no sabia; e Fleming disse:

    Deita-te outra vez. Eu direi a McGlade que tu no ests

    bom.

    Ele est doente.

    Quem?

    Comunica a McGlade.

    Mete-te outra vez na cama.

    Ele est doente?

    Um companheiro segurou-o pelos braos enquanto ele perdia a

    meia que lhe caa pela perna abaixo. Enfiou-se outra vez na cama

    quente.

    Encolheu-se bem entre os lenis, contente do seu calorzinho

    morno. Ouvia os garotos conversarem entre si a seu respeito

    enquanto acabavam de se vestir para a missa. Fora malvadeza t-lo

    empurrado para dentro do fosso, era o que eles estavam dizendo.

    Depois as suas vozes calaram; tinha ido. Junto ao seu leito,

    uma voz dizia:

    Dedalus, voc no vai nos denunciar, no mesmo?

    A cara de Wells estava ali. Ele olhou para a cara e viu que

    Wells estava com medo.

    Eu no fiz de propsito. Garante que no ir nos denunciar?

    Seu pai dissera-lhe que jamais, fosse por que fosse, delatasse

    um companheiro. Ele sacudiu a cabea, respondendo que no, e se

    sentiu contente.

    Wells disse:

  • Eu no fiz de propsito. Palavra de honra. Foi s

    brincadeira. Sinto muito.

    A face e a voz foram-se. Pedira desculpa, porque tinha medo.

    Medo de que fosse alguma doena. Ferrugem era doena das plantas

    e cncer era uma das que do nos animais; ou outra, diferente.

    Como lhe parecia longe agora, quando estivera a dar pinotes de uma

    extremidade outra no ptio da sua diviso, luz mortia da tarde,

    l no recreio, um pssaro pesado a voar atravs da claridade

    cinzenta. A abadia de Leicester toda iluminada. Wolsey morrera l.

    Os prprios monges o tinham sepultado.

    No, no era a cara de Wells; era a do prefeito. Ele no estava

    fingindo. No, no: ele estava doente deveras. No era fingimento

    no. Sentiu a mo do prefeito na sua testa; e sentiu a testa quente e

    mida de encontro mo fria e mida do prefeito. Era a mesma

    sensao que um rato produzia: visguenta, mida e fria. Todos os

    ratos tinham dois olhinhos para espiar por eles. Uma pele lustrosa e

    mole, umas patinhas muito pequeninas dobradas para dar um salto,

    uns olhinhos negros gelatinosos para espiar por eles. Eles sabiam de

    que jeito deviam pular. Mas o esprito dos ratos era incapaz de

    compreender trigonometria. Quando estavam mortos ficavam

    tombados de lado. Seus corpos secavam logo. Ficavam sendo apenas

    coisas mortas.

    O prefeito estava l outra vez e era a voz dele que lhe dizia que

    se levantasse, que o padre Ministro tinha dito que era para ele se

    levantar, vestir e ir para enfermaria. E enquanto ele se vestia o mais

    depressa que podia, o prefeito falava:

    Devemos despachar para o Irmo Michael quem estiver com

    dor de barriga!...

    Era muito delicado dizer-lhe isso. E era s para faz-lo rir. Mas

    no podia rir porque tanto o rosto como os lbios eram um s

    tremor; de modo que o prefeito teve que rir por ele.

    O prefeito exclamou:

  • Ligeiro, marche! Um p no feno! Outro p na palha!

    Desceram juntos as escadas, seguiram pelo corredor e

    passaram pelo banheiro. E, ao chegar porta, recordou com um

    medo vago do tanque dgua quente cor de turfa, da atmosfera

    quente confinada, do barulho dos mergulhos, do cheiro das toalhas,

    cheiro como que de remdio.

    O Irmo Michael estava em p na porta da enfermaria e, pela

    porta do gabinete escuro que existia sua direita, vinha um cheiro

    de farmcia. Provinha das garrafas nas prateleiras. O prefeito falou

    com o Irmo Michael e, respondendo, o Irmo Michael chamava o

    prefeito de Senhor. Tinha cabelo ruivo misturado com cabelo grisalho

    e um expresso engraada. O mais esquisito era que ele no pudesse

    nunca passar alm de irmo. E esquisito tambm que ningum o

    viesse jamais a chamar de Senhor ser irmo leigo e ter uma

    expresso assim diferente. No seria ele santo bastante, ou por que

    no havia ele de poder se misturar ou ser como os demais?

    Havia duas camas num quarto, e numa delas estava um aluno;

    quando os dois entraram, o aluno chamou:

    Al! Pois no o jovem Dedalus? Que aconteceu?

    Ordens do cu! respondeu o Irmo Michael.

    Tratava-se dum aluno da Terceira Gramtica e enquanto

    Stephen se despia o garoto pedia ao Irmo Michael um pouco de

    torrada com manteiga.

    Ah! Traga, sim? dizia ele.

    Que manteiga o qu! disse o Irmo Michael. Quando o

    doutor vier esta manh voc vai mas ter alta.

    Vou ter alta? disse o aluno. Mas eu ainda no estou

    bom.

    O Irmo Michael repetiu:

    O doutor vai assinar a sua alta na papeleta. o que estou

    lhe dizendo.

    Abaixou-se para espevitar o fogo. Tinha umas costas

  • compridas, como as dum cavalo de puxar bonde. Remexeu com o

    atiador, gravemente, e acenou com a cabea para o aluno da

    Terceira Gramtica.

    Em seguida o Irmo Michael foi embora e pouco depois o aluno

    do terceiro ano gramatical virou para a parede e caiu no sono.

    Isso que era a enfermaria. Ele estava doente, portanto.

    Teriam eles escrito contando a seu pai e sua me? Seria mais

    rpido se um dos padres fosse pessoalmente avisar. Ou deveria ele

    escrever uma carta para o padre levar?

    Querida me.

    Estou doente. Quero ir para casa. Por favor, venha me

    buscar. Estou na enfermaria.

    Seu filho querido,

    Stephen.

    Que longe que eles estavam! Do lado de fora da janela a

    claridade do sol era fraca. Comeou a desconfiar se por acaso no

    morreria. Pode-se morrer ora essa! num dia de sol. E se

    morresse antes da me chegar? Depois, ento, tinha que haver missa

    de requiem na capela, como daquela vez, conforme os colegas tinham

    contado, quando morrera o Pequenino. Todos os alunos teriam que

    assistir missa, de preto, todos com rostos tristonhos. Wells tambm

    tinha que estar l, mas nenhum aluno olharia para ele. O reitor

    estaria paramentado com uma casula negra e dourada. Grossas

    velas estariam a derreter, muito amarelas, nos candelabros, sobre o

    altar e em torno do catafalco. Depois haveriam de carregar o esquife

    para fora da capela, vagarosamente... E ele seria enterrado no

    pequeno claustro da comunidade, sob a grande alameda dos

    limoeiros. E Wells teria remorsos e arrependimento do que tinha

    feito. E o sino tocaria lentamente.

    Ouviria as badaladas. E disse para si mesmo a cano que

  • Brgida lhe tinha ensinado:

    Blem! Blo!Blem!Blo! O sino do castelo.

    Oh! Adeus para sempre, minha me.

    Sepultem-me no claustro da abadia,

    Bem ao lado do meu irmo mais velho.

    Quero que o meu esquife seja preto.

    Quero seis anjos ao redor de mim:

    Dois, bem lindos, cantando... Dois rezando...

    E outros dois transportando ao cu minha alma!

    Como era bonito! Ah! E como era triste! Que bonitas que

    ficavam as palavras quando diziam: Sepultem-me no claustro da

    abadia! Um tremor correu-lhe pelo corpo todo. Quo triste e quo

    bonito seria! Sentia vontade de chorar, mas no por si mesmo: por

    causa das palavras to bonitas e to tristes como se fossem msica.

    O sino! O sino! Adeus! Oh! Adeus para sempre!

    A luz do sol estava cada vez mais fraca. O Irmo Michael estava

    borda do seu leito, com uma tigela de caldo de carne. Isso o alegrou

    porque estava com a boca seca e quente. Ouvia os folguedos nos

    ptios do colgio, como se estivesse l.

    Depois, quando o Irmo Michael ia indo embora, o aluno do

    terceiro de Gramtica lhe disse que visse as novidades e voltasse logo

    para contar o que havia sado nos jornais. E disse a Stephen que se

    chamava Athy e que seu pai possua uma poro de cavalos de

    corridas, uns excelentes saltadores de obstculos e que qualquer um

    desses dias o pai iria dar gorda propina ao Irmo Michael porque o

    Irmo Michael era muito bonzinho e lhe contava as notcias que

    vinham nos jornais que o castelo recebia. Notcias de todo jeito:

    acidentes, naufrgios, esportes e poltica.

    Agora s sai poltica nos jornais disse. A gente de voc

    tambm conversa sobre isso?

  • Conversa sim respondeu Stephen.

    A minha tambm observou ele. Em seguida, ficou

    pensativo at que fez este reparo:

    Que nome mais esquisito que voc tem, Dedalus. O meu

    nome esquisito tambm: Athy. o nome duma cidade. O de voc

    lembra o latim. Depois indagou: Voc forte em charadas?

    Ao que Stephen respondeu:

    No muito.

    Disse ento o outro:

    Veja se responde a esta: Por que que o condado de Kildare

    se parece com a perna das calas de uma pessoa?

    Stephen procurou adivinhar a resposta, dizendo depois:

    No adivinho no.

    porque no condado existe a tigh. Repare bem no jogo das

    palavras. At hy, cidade, tem o mesmo som de a tigh, uma perna, de

    maneira que ambos completam as calas. trocadilho, sabe?

    Ah! Compreendo fez Stephen.

    Esta uma charada antiga disse ele.

    E depois de um momento, acrescentou:

    Escute!

    O qu? indagou Stephen.

    Pode-se fazer a pergunta desta charada de outra maneira.

    Ento, faa disse Stephen.

    A mesma charada disse ele. Voc sabe qual a outra

    maneira de perguntar isso?

    No disse Stephen.

    Pense bem e veja l se consegue disse ele.

    Enquanto falava, olhava para Stephen por cima da roupa da

    cama. Em seguida estirou-se sobre o travesseiro e disse:

    Existe uma maneira diferente, mas no quero agora lhe dizer

    como .

    Por que no quereria ele dizer? O pai dele, que tinha cavalos de

  • corridas, devia ser algum magistrado tambm, como o pai de Saurin

    e o de Roche Relaxado. Ps-se ento a pensar em seu prprio pai,

    de como ele cantava umas rias enquanto sua me tocava e em como

    sempre lhe dava um xelim quando lhe pedia s seis pences; lastimou

    no ser ele um magistrado como os pais dos outros meninos. Mas

    ento por que tinha ele sido mandado para esse colgio com os

    outros? Bem lhe dissera o pai que no devia se considerar um

    intruso, porque um seu tio-av tinha apresentado ali uma moo ao

    Libertador cinqenta anos antes. A gente conhecia as pessoas

    daquele tempo por suas roupagens antigas. Parecia-lhe um tempo

    solene; e se perguntou se no seria esse o tempo em que os alunos

    em Clongowes usavam jalecos azuis com botes de lato, coletes

    amarelos e bons de pele de coelho, bebiam cerveja como gente j

    crescida e dispunham de galgos seus para a caa s lebres.

    Olhou para a janela e viu que a claridade se fizera mais fraca.

    Devia estar sobre os ptios de recreio, uma claridade cinzenta e

    enevoada. A classe devia estar fazendo os temas ou talvez o padre

    Arnall estivesse a fazer a leitura no livro.

    Esquisito no lhe terem dado nenhum remdio. Talvez o Irmo

    Michael trouxesse algum quando regressasse. Diziam que se tinha

    que beber coisas de cheiro insuportvel quando se estava na

    enfermaria. Sentia-se, porm, melhor agora do que antes. Na livraria

    tinha um livro sobre a Holanda. Havia nele uns nomes estrangeiros

    esplndidos e quadros de cidades completamente esquisitas, bem

    como de navios. Isso fazia a gente se sentir to feliz.

    Que desmaiada que estava a luz na janela! Mas isso era bonito.

    O fogo da chamin subia e caa pela parede. Formava como que

    ondas. Algum devia lhe ter posto carvo; e Stephen escutava vozes.

    Como de gente conversando. Era o rudo das ondas. Estariam as

    ondas conversando entre si, medida que se levantavam e que

    caam?

    Viu o mar de ondas, compridas ondas negras erguendo-se e

  • caindo, muito negras sob a noite sem lua. Uma luz fraca bruxuleava

    de encontro ao molhe por onde o navio estava entrando; e viu uma

    poro de gente reunida na beira da praia para ver o navio que

    demandava o porto. Um homem corpulento estava no cais, olhando

    l para longe, para a terra ch, escura; e foi por causa da luz nas

    pedras do molhe que Stephen viu o rosto dele, o rosto infeliz do

    Irmo Michael.

    Viu-o estender as mos para o povo e o ouviu dizer com uma

    voz cheia de aflio, por cima das guas:

    Ele morreu. Vimo-lo estendido sobre o catafalco.

    Um lamento de amargura subiu daquela gente.

    Parnell! Parnell! Ele est morto!

    Todos caram de joelhos, lamentando com amargura.

    E viu Dante, com um vestido de veludo marrom e um manto de

    veludo verde que lhe pendia dos ombros, passar orgulhosamente e

    em silncio por entre o povo que estava ajoelhado na beira das

    guas.

    Um grande fogo serpenteava alto e rubro, flamejando na

    lareira; e, sob os braos dos candelabros que a hera entrelaava,

    estendia-se a mesa de Natal. Eles tinham chegado casa um pouco

    atrasados e o jantar ainda no estava pronto; mas ficaria num abrir

    e fechar de olhos, dissera a me. Estavam espera de que a porta

    fosse aberta e os criados entrassem trazendo grandes travessas

    cobertas com suas pesadas tampas de metal.

    Todos estavam espera: Tio Carlos, sentado bem longe, na

    sombra da janela; Dante e o Sr. Casey, sentados nas poltronas do

    outro lado da lareira; Stephen sentado numa banqueta entre eles

    com os ps descansando sobre a barra tostada. O Sr. Dedalus olhou-

    se no espelho inclinando sobre a cmoda, cofiou as guias dos bigodes

    e, depois, endireitando as abas da sobrecasaca, postou-se de costas

    para o fogo crepitante; de quando em quando, retirava a mo da aba

    da casaca para cofiar uma das pontas dos bigodes. O Sr. Casey

  • inclinava a cabea para uma lado e, sorrindo, batia na salincia que

    tinha no pescoo, com os dedos. E Stephen tambm sorria porque j

    sabia, agora, que era mentira que o Sr. Casey tivesse uma sacola de

    prata na sua garganta. Sorria ao pensar quanto o barulho,

    igualzinho ao de prata, que o Sr. Casey tinha o costume de fazer o

    havia, durante muito tempo, intrigado. E at quando tentara abrir a

    mo do Sr. Casey para ver se a bolsa de prata estava escondida

    dentro dela vira que os dedos dele no podiam ser esticados; e o Sr.

    Casey contara-lhe que tinha ficado com aqueles trs dedos assim,

    porque os apertara numa prensa ao fazer um presente de aniversrio

    para a Rainha Vitria.

    O Sr. Casey tornou a bater no caroo do pescoo e sorriu para

    Stephen com olhos sonolentos; e ento o Sr. Dedalus lhe disse:

    Sim. Ora bem, est tudo muito direito. Demos uma boa

    caminhada, no demos, John? Sim... Pergunto-me se haver alguma

    probabilidade de jantarmos, esta noite. Sim... Ora bem, est tudo

    muito direito. Respiramos hoje, dando a volta por Head, uma boa

    dose de ozona. L isso, que no h dvida!

    Voltou-se para Dante e disse:

    A senhora no se animou absolutamente, hein, Sra.

    Riordan?!

    Dante fez um ar carrancudo e respondeu secamente:

    No.

    O Sr. Dedalus deixou cair as abas da sobrecasaca e se

    encaminhou para o guarda-louas. Trouxe de l um grande jarro de

    pedra, de usque, que tirou da prateleira e encheu com ele a bilha

    devagar, inclinando-se de vez em quando para ver quanto j tinha

    entornado. Depois, indo colocar outra vez o jarro na prateleira, virou

    um pouco do usque dentro de dois copos, acrescentou um pouco

    dgua, e voltou para a chamin com eles.

    Uma molhada, John, apenas disse ele , para aguar o

    teu apetite.

  • O Sr. Casey segurou o copo, bebeu e o colocou perto de si,

    sobre o aparador. E a seguir disse:

    Ora bem, eu no posso deixar de pensar em nosso amigo

    Christophen a fabricar...

    Teve um acesso de riso e, tossindo, acrescentou:

    ... a fabricar esta champanha para aqueles sujeitos.

    O Sr. Dedalus riu estrepitosamente.

    Referes-te a Christy? disse ele. H mais astcia nos

    calombos da cabea desse careca, do que num magote de raposas

    saltadeiras.

    Inclinou a cabea, fechou os olhos e, lambendo os beios

    profusamente, comeou a falar imitando a voz do hoteleiro.

    E que boca macia quando fala com uma pessoa, j

    reparaste? muito sibilante, com aquela tromba sempre ensalivada.

    O Sr. Casey estava ainda lutando entre a alternativa de tossir

    ou de dar risada. E Stephen, vendo e ouvindo o hoteleiro atravs da

    cara e da voz de seu pai, ria.

    O Sr. Dedalus enfiou os culos e, olhando-o fixamente, de cima

    para baixo, perguntou calma e bondosamente:

    De que te ests a rir, tu a, Pequerrucho!?

    Os criados entraram e depuseram as travessas sobre a mesa. A

    Sra. Dedalus seguia-os; e o lugares foram dispostos.

    Vamos sentar disse ela.

    O Sr. Dedalus foi para a ponta da mesa e disse:

    J agora, Sra. Riordan, sente-se. John, senta-te, meu caro.

    Deu uma olhadela a ver onde tio Carlos se sentava e disse:

    Ora, pois, aqui temos uma ave nossa espera.

    Quando todos j haviam tomado seus lugares, ele estendeu a

    mo at a coberta e disse vagarosamente, destampando-a:

    Agora, Stephen.

    Stephen, em p, l no seu lugar, deu as graas antes da

    refeio:

  • Abenoa-nos, Senhor, e a estas tuas mercs que, por intermdio

    de Tua magnanimidade, estamos recebendo, por Cristo, Nosso Senhor,

    Amm.

    Todos se benzeram e o Sr. Dedalus, com mostras de prazer,

    levantou da travessa a pesada cpula perolada em toda volta com

    gottulas cintilantes.

    Stephen no tirava os olhos do rechonchudo peru que tinha

    sido preparado, recheado e posto no espeto sobre a mesa da cozinha.

    Estava ao par de que o pai tinha pago um guinu por ele no Dunns,

    ali na DOlier Street, e que o homem o tinha cutucado muitas vezes

    no osso do peito para mostrar que gordo que estava; e at se

    recordava da voz do homem ao dizer:

    Fique com este, Senhor. um legtimo Ally Daly.

    Por que seria que o Sr. Barret, em Clongowes, chamava a sua

    palmatria de peru? Mas Clongowes estava muito longe dali; e o

    cheiro quente e espesso do peru, do toucinho e do condimento

    erguia-se dos pratos e das travessas, o grande fogo estava com

    grandes labaredas vermelhas na lareira e a hera verde mais o

    vermelho azevinho faziam a gente se sentir to feliz! Quando o jantar

    terminasse o grande pudim de ameixas seria trazido, todo enfeitado

    com amndoas descascadas e brotos de azevinho, com um fogo

    azulado correndo em redor dele e uma bandeirola verde flutuando

    em cima.

    Aquele era o seu primeiro jantar de Natal; e pensou em seus

    irmozinhos e irmzinhas que estariam esperando na sala das

    crianas, como ele tantas vezes tinha esperado, que o pudim viesse.

    O duplo colarinho baixo e a jaqueta formato Eton faziam-no achar-se

    esquisito e como que mais velho; e aquela manh, quando a me o

    descera para o parlatrio, vestido para a missa, seu pai at se pusera

    a chorar. E isso porque estava pensando em seu prprio pai. Tio

    Carlos tambm dissera que fora por causa disso.

    O Sr. Dedalus cobriu a travessa e comeou a comer como um

  • esfomeado. Depois, ento, disse:

    Pobre do velho Christy, est quase todo entortado agora de

    tamanha velhacaria.

    Simo disse a Sra. Dedalus, voc no ps nenhum

    molho para a Sra. Riordan.

    No pus? exclamou ele. Sra. Riordan, perdoe o pobre

    cego.

    Dante cobriu o prato com ambas as mos, dizendo:

    No, obrigada.

    O Sr. Dedalus voltou-se para tio Carlos.

    Que tal vai isso, senhor?

    De vento em popa.