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  • FABRICE SCHURMANS

    O GENOCDIO DO RUANDA NO CINEMA: AUSNCIA, REPRESENTAO, MANIPULAO

    Janeiro de 2010 Oficina n 336

  • Fabrice Schurmans

    O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    Oficina do CES n. 336 Janeiro de 2010

  • OFICINA DO CES Publicao seriada do

    Centro de Estudos Sociais Praa D. Dinis

    Colgio de S. Jernimo, Coimbra

    Correspondncia: Apartado 3087

    3001-401 COIMBRA, Portugal

  • Fabrice Schurmans

    O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    Resumo: Nos ltimos anos, o genocdio no Ruanda foi objecto de vrias obras cinematogrficas, algumas celebradas pela crtica, outras produzidas como no existentes. As primeiras destacam-se por uma viso pouco matizada dos acontecimentos, a ausncia de contextualizao, a vontade de suscitar d e piedade numa perspectiva trgica, uma estrutura narrativa assaz clssica. As segundas escolheram, pelo contrrio, dar voz a personagens locais, tentaram dar alguma espessura histrica ao acontecimento e enveredaram por uma estrutura narrativa mais complexa. Neste ensaio gostaria de questionar a maneira como um certo cinema representa e manipula em vrias ocorrncias um acontecimento to dificilmente transmissvel como um genocdio.

    Introduo

    O cinema, como qualquer outro media, susceptvel de evidenciar tendncias manifestas

    ou latentes da sociedade na qual produzido,1 ou seja, pode pelo seu contedo descrever

    em parte a dita sociedade (o lado manifesto). Porm, muitas vezes insinua mais do que

    pretende significar. Cabe ao crtico revelar este lado latente do cinema, recorrendo tanto

    anlise do discurso flmico, como histria, Sociologia ou, para diz-lo noutras palavras,

    cabe-lhe articular cincias sociais e humanas para praticar uma hermenutica do filme.

    Neste artigo pretendo analisar alguns dos filmes de fico sobre o genocdio no

    Ruanda que foram produzidos no Norte e no Sul entre 2004 e 2006, a fim de mostrar que os

    filmes do Norte, se, por um lado, descrevem de maneira assaz fiel o genocdio nos seus

    aspectos tcnicos (massacres de civis em larga escala por outros civis, com machados e

    outras ferramentas agrcolas), tendem a evitar questionar as suas origens imediatas ou

    histricas. Atravs da anlise das figuras do discurso cinematogrfico, ambiciono tambm

    evidenciar como alguns destes filmes colocam o branco no centro do quadro (e do guio),

    reduzindo o negro a um papel secundrio, nas suas margens, acabando desta maneira por 1 Partilho a posio de Ignacio Ramonet sobre a ligao estreita entre cinema e sociedade: On ne peut gure refuser dadmettre les qualits dindicateur sociologique du cinma. Lanalyse du film et de ses signes nous permet de dceler avec assez de prcision les tendances implicites de la socit qui le produit. Socit dont il constitue, en tant que produit culturel, un des symptmes ou des rvlateurs sociaux privilgis (2005: 94).

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    (re)produzir uma ideologia africanista e eurocntrica. Por fim, tentarei mostrar como e por

    que razes a esttica de um certo discurso televisivo influenciou parte do corpus escolhido.

    A ausncia de imagens

    Dos principais genocdios do sculo XX temos parcas representaes: algumas fotografias

    pouco claras ou desfocadas quando tiradas pelas vtimas, mais ntidas quando surgem como

    trofu nas mos dos carrascos; filmes de actualidade, reportagens fotogrficas s dos

    campos de concentrao nazis libertados, ou seja, de depois do acontecimento. Este tipo de

    imagem significa pouco. S remete para o genocdio, por um lado, pela interpretao que se

    fez delas surgindo por outro como uma espcie de metonmia de uma imagem inexistente.

    Em si, muitas dessas imagens evocam uma aco violenta, uma execuo em curso, mas se

    dizem, em parte, o genocdio foi unicamente porque passaram por um processo de anlise,

    de comentrio, de contextualizao. Se dependssemos apenas delas como provas da

    realidade do genocdio, seria difcil corroborar a sua existncia.

    O processo genocidirio tem sido descrito, analisado, dissecado, mas teve de passar

    pela lngua escrita para ganhar algum contorno. A representao do genocdio primeiro

    um acto de lngua, quase um acto performativo, que (re)cria o acontecimento medida que

    o vai descrevendo. No entanto, todos temos a certeza de j ter visto uma imagem das

    cmaras de gs a funcionar, das valas comuns a serem atulhadas de corpos, de prisioneiros

    esquelticos a titubear nas alamedas de um campo. Foram o cinema e a televiso que, em

    grande parte, preencheram o (quase) vazio audiovisual com representaes supostamente

    fiis s experincias narradas pelos sobreviventes, assim como pelos executores

    (nomeadamente por ocasio de processos).

    O genocdio no Ruanda2 no escapa a esta (quase) vacuidade de registo visual dos

    massacres. Entre 6 de Abril e meados de Maio, a fase mais aguda do genocdio, o Ruanda

    ocupa pouco espao na imprensa francesa e quase sempre em pginas interiores. Os

    jornalistas presentes no terreno resumem-se a dois fotgrafos trabalhando para agncias e

    2 Entre 6 de Abril (assassnio do presidente Habyarimana) e 15 de Julho de 1994 (vitria da Frente Patritica

    Ruandesa, movimento armado de oposio principalmente de etnia Tutsi) estima-se que entre 800.000 e 1.000.000 de pessoas tenham sido mortas em todo o pas (maioritariamente de etnia Tutsi, mas tambm opositores do governo de etnia Hutu), em grande parte pela prpria populao civil e com recurso a armas brancas. Existe uma vasta bibliografia que retrata no s o desenrolar dos massacres, como a sua gnese. Ver entre os mais recentes: Franche (2004), Kimonyo (2008), Pris e Servenay (2007).

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    alguns correspondentes estrangeiros (que saram logo a seguir ao comeo dos massacres) e

    regionais. Segundo Roskis, o genocdio passa a notcia principal, ou seja, passa primeira

    pgina de um jornal francs com fotografia (Le Quotidien de Paris) a 18 de Maio, quando

    as primeiras estimativas j atingem 500.000 mortos. No que diz respeito s imagens, apesar

    das fotografias disponveis nas agncias, poucos jornais parecem interessados nelas at

    incio de Maio (Roskis, 1994), o que no deixa de surpreender, na medida em que as fotos

    mostram os corpos violentados das primeiras vtimas. de facto bem conhecida a apetncia

    de grande parte do pblico pela representao de mortes violentas nos media, tendncia que

    Seaton evidenciou como fenmeno recente no contexto de sociedades ocidentais que

    paradoxalmente ocultaram e privatizaram a morte (Seaton, 2005: 183).

    O Ruanda disporia assim dos ingredientes para atrair as atenes dos media do Norte:

    massacres de civis, modo de matar muito chocante (utilizao de armas brancas,

    ferramentas de lavoura, etc.) e possibilidade de ler o genocdio de maneira dicotmica

    (maus Hutu versus bons Tutsi). Porm, como acabmos de ver atravs do exemplo da

    imprensa francesa, os principais jornais demonstraram pouco interesse pelas notcias

    provenientes do Ruanda. Entre outras razes, destacaria primeiro o contexto no qual teve

    lugar o genocdio: muitos recursos jornalsticos europeus estavam concentrados num

    conflito domstico (Bsnia), poucos meses depois de os mesmos media se terem

    deslocado em massa para a Somlia com a operao Restore Hope. Em segundo lugar, o

    desinteresse pelo genocdio explica-se com o que Moeller (1999: 12) chamou o cansao

    da compaixo, uma espcie de desinteresse pelo sofrimento alheio, sobretudo quando este

    repetitivo (Mais uma vez frica!) e longnquo (Onde que fica o Ruanda?). Por fim,

    um terceiro elemento explica, a meu ver, a falta de interesse pelo genocdio em curso: o da

    cor da pele das vtimas. Moeller tem razo em insistir neste factor importante, se bem que

    raramente admitido, na hierarquizao das notcias: The newsroom truism goes: One

    dead fireman in Brooklyn is worth five English bobbies, who are worth 50 Arabs, who are

    worth 500 Africans (Moeller, 1999: 22) .

    As reportagens, tanto fotogrficas como em vdeo, comearam a ocupar o espao

    meditico a partir de Junho de 1994, com um pico em meados de Julho quando, em poucas

    horas, centenas de milhares de refugiados entraram no Congo (ex-Zaire). No entanto, os

    jornalistas presentes em massa no estavam a presenciar o genocdio (este j tinha

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    terminado), mas antes a consequncia da vitria da Frente Patritica Ruandesa (FPR),

    maioritariamente composta pela etnia Tutsi, sobre as foras governamentais e as milcias

    radicais Hutu. Com a derrota, estas fugiram para o Sul do pas empurrando centenas de

    milhares de civis na sua frente rumo zona de segurana estabelecida pelo Exrcito

    Francs.3 Ou seja, muitas das imagens que associamos s vtimas dos conflitos em frica

    (refugiados atingidos pela doena, crianas famlicas, surtos de clera, mortos annimos na

    beira da estrada), por causa da representao hegemnica e exclusiva destes por parte das

    redaces ocidentais, correspondiam realidade retratada pelos correspondentes no terreno.

    Por outras palavras; as imagens da catstrofe humanitria de Julho substituram, na

    memria meditica, a falta de imagens do genocdio perpetuado nas semanas anteriores

    (Moeller, 1999: 28).

    semelhana do que aconteceu com a Shoah, foi o cinema que se encarregou de

    preencher os vazios da histria. As representaes cinematogrficas vm assim completar

    uma memria desprovida de imagens do genocdio em curso (pois se as fotografias e

    reportagens de corpos abatidos, disseminados pelas cidades e pelo campo no faltam, temos

    poucas da actuao dos assassinos).

    A fico ao contrrio do documentrio que tenta restabelecer o fio dos

    acontecimentos a partir da palavra das testemunhas da poca , pretende recriar as

    condies nas quais centenas de milhares de pessoas foram atacadas. Representa um ponto

    de vista sobre o real, mas um ponto de vista que se d como verosmil e que visa, ao mesmo

    tempo, comover o espectador, suscitar nele um sentimento de piedade para com as vtimas.

    Ou seja, dez anos depois dos acontecimentos, trata-se de sensibilizar um espectador que,

    como vimos, no o foi na altura. Enquanto representao e reconstruo, estes filmes

    apresentam-se igualmente como edificao de uma verdade possvel, e uma leitura crtica

    tem de incidir sobre os dois elementos ao mesmo tempo: o filme enquanto obra de arte

    (com a sua linguagem, a suas figuras discursivas) e o filme enquanto produtor de

    significaes (o que diz e no diz sobre o genocdio). Embora os dois estejam intimamente

    ligados, grande parte da crtica s incide no contedo, no grau de verosimilhana, nas

    3 Na realidade, esta zona serviu sobretudo para proteger muitos actores do genocdio, incluindo dirigentes do exrcito e das milcias, os quais escaparam desta maneira no s s foras da FPR como justia internacional. Ainda que negada pelas entidades oficiais francesas, a coluso entre os sucessivos governos franceses, nomeadamente os da era Mitterand, e o governo ruands transparece da leitura de partes de arquivos oficiais tornados pblicos h pouco tempo (Smolar, 2007; Braeckman, 2007).

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    personagens principais ou ainda na estrutura narrativa global. A descodificao da imagem

    cinematogrfica requer todavia uma articulao ou um vaivm permanente entre anlise

    retrica (o fazer do filme, com a anlise de sequncias por exemplo. Cf. Aumont, 1999,

    Goliot-Lt, 2007, Jullier, 2006) e anlise do contedo (o ponto de vista do realizador sobre

    a histria). Pois, como acontece com o texto literrio, a anlise do texto flmico s ganha

    contornos quando se articulam ambas as leituras, o contexto de enunciao e as estratgias

    discursivas utilizadas pelo autor.

    A representao do genocdio. A inveno das imagens

    Antes de comear a anlise, torna-se necessrio evidenciar as linhas que separam o corpus

    de filmes escolhidos, uma vez que estes no gozam do mesmo estatuto dentro do campo

    cinematogrfico. Trs apresentam claramente pontos de vista ocidentais: Hotel Ruanda, de

    Terry George, 2005; Shooting dogs, de Michael Caton-Jones, 2006; Un dimanche Kigali,

    de Robert Favreau, 2006; e dois pontos de vista do Sul: La nuit de la vrit, de Fanta

    Regina Nacro, 2004; Sometimes in April, de Raoul Peck, 2004. Esta seria a linha mais

    visvel que divide o corpus, uma linha quase abissal, ou seja, uma linha que separa o Norte

    do Sul enquanto produtores de saberes e de conhecimentos. Parece-me possvel recorrer em

    parte a este conceito desenvolvido por Santos (2007) para dar conta da diferena de

    tratamento entre os filmes por parte das instncias de legitimao. Para o socilogo, o

    pensamento ocidental um pensamento de tipo abissal que divide a sociedade em

    realidades visveis e invisveis, cada realidade estando separada por linhas abissais. O outro

    lado de uma linha abissal, o que Santos chamou de Sul global, no existe para o lado

    ocidental da linha: desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e mesmo

    produzido como inexistente (3-4). Aplicado ao nosso corpus, um exame superficial

    tenderia a estabelecer uma linha abissal entre o primeiro grupo (viso ocidental e

    hegemnica do genocdio) e o segundo (viso do Sul e contra-hegemnica do mesmo

    genocdio).

    Porm, um exame mais detalhado da posio de cada filme no campo

    cinematogrfico leva a matizar esta classificao inicial. Se tomarmos em conta a origem

    dos produtores, assim como o trabalho de legitimao por parte da crtica, as linhas

    movem-se e assistimos a uma recomposio dos grupos. No primeiro grupo, Hotel Ruanda

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

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    e Shooting dogs receberam ampla cobertura meditica, encontraram distribuidores em

    muitos pases, entraram em competies oficiais de renome, enquanto Un dimanche

    Kigali no conheceu a mesma difuso (poucas crticas, participao em festivais de menor

    importncia). Ou seja, este ltimo, apesar de apresentar um ponto de vista hegemnico,

    foi alvo de um procedimento de tipo abissal dentro do prprio campo, sendo produzido

    como quase no existente na Europa, por exemplo. No outro grupo, Sometimes in April,

    produo norte-americana da autoria de um realizador haitiano, apesar de apresentar um

    ponto de vista contra-hegemnico entrou na seleco oficial do Festival de Berlim (2005) e

    recebeu crticas laudativas em vrios rgos de imprensa (Braeckman e Crousse, 2006;

    Sotinel, 2005a; Stanley, 2005). No entanto, por razes obviamente polticas, no encontrou

    distribuidora na Frana e na Blgica, onde s pde ser visto no canal Arte, o que representa

    uma outra maneira de produzir um objecto cultural como no existente. O nico filme que,

    no estado actual da minha pesquisa, me parece ter sido inviabilizado no Norte foi o da

    realizadora do Burkina-Faso: pouco difundido em salas no Norte, muito poucos artigos na

    imprensa de qualidade (Sotinel, 2005b, por exemplo), aquela que torna um filme visvel e

    que confere o capital simblico nas suas pginas dedicada crtica de cinema.

    Desta maneira, se os filmes do primeiro grupo se aparentam pela leitura que fazem do

    genocdio, divergem relativamente ao capital simblico acumulado e subsequente

    influncia que exerceram junto do pblico enquanto representaes. Isto significa que,

    ainda que seja pertinente juntar Un dimanche Kigali a Hotel Ruanda e Shooting Dogs

    enquanto reflexo do ponto de vista dominante, h que ter em ateno o fraco

    reconhecimento que o filme teve junto do pblico.

    Se Hotel Ruanda no foi a primeira fico sobre o genocdio ruands (100 Days de

    Nick Hughes, 2001), foi sem dvida o primeiro sucesso pblico de um filme sobre este

    tema. Trata-se da histria de um homem partida normal, Paul Rusesabagina, gerente do

    Htel des Mille Collines em Kigali, que se transforma em heri por causa das

    circunstncias. Homem hbil, com agudo senso comercial, suborna quando precisa do

    apoio de algum, mesmo quando se trata de George Rutaganda, chefe das milcias

    extremistas. Casado com uma mulher Tutsi, Tatiana, e pai de trs filhos, v-se obrigado a

    proteg-los da fria dos genocidirios. Leva-os para o hotel, por a se albergar uma clientela

    maioritariamente branca protegida por um destacamento de capacetes azuis comandados

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    pelo Coronel Oliver. Rapidamente, outros Tutsi chegam ao hotel procura de segurana.

    Rusesabagina, que comeou por proteger a sua famlia, empenha-se na salvao dos

    refugiados, negoceia com os militares do exrcito nacional a fim de obter alguma proteco

    contra as milcias. Confia na comunidade internacional para salvar os Tutsi dos massacres,

    mas, depois do assassnio de dez capacetes azuis pelo exrcito ruands e pelas milcias, as

    Naes Unidas retiram grande parte do contingente. Rusesabagina encontra-se ento

    praticamente isolado face aos assassinos: durante trs meses compra a proteco dos

    refugiados junto de uma alta patente com dinheiro, lcool de luxo e ameaas de

    testemunhar perante a justia internacional. Vrias vezes, as milcias quase conseguem

    apoderar-se do hotel ou da famlia de Rusesabagina, e, no final, apenas a interveno da

    FPR salva os protagonistas. Chegam finalmente a um campo de refugiados onde encontram

    as sobrinhas de Tatiana, que perderam os pais nos massacres.

    A contextualizao reduz-se durante o genrico inicial a vrios rudos off de rdios a

    serem sintonizadas: ouvem-se noticirios em francs e em ingls que evocam Sarajevo e

    trechos de uma rdio extremista Hutu que anuncia o massacre dos Tutsi. Supe-se que o

    realizador quis aqui atingir uma tripla meta: a referncia a Sarajevo remete para o

    momento, as rdios em off para o papel central dos media na sociedade global e, por fim,

    anuncia a dicotomizao que atravessa e estrutura o filme (Hutu vs Tutsi).

    certo que no decorrer do filme Hotel Ruanda haver um momento de

    contextualizao histrica que dura um minuto! O facto de a localizao geogrfica no

    ser mencionada (para o senso comum deve ser ainda hoje difcil situar com preciso o pas

    num mapa) e de o contexto histrico estar quase ausente deve-se, a meu ver, ao guio que

    faz da personagem de Rusesabagina o eixo volta do qual se organiza toda a aco: no se

    trata de perceber como isto foi possvel, mas de entender como um homem banal se

    transforma em heri em circunstncias extraordinrias. Da, sem dvida, a presena

    permanente da personagem principal so poucos os planos onde no ocupa o centro do

    quadro desde a sequncia inicial (que nos mostra Rusesabagina de carrinha a atravessar

    Kigali por causa dos seus negcios) sequncia final (quando no campo de refugiados

    reencontra as sobrinhas de Tatiana). O tipo de plano utilizado para enquadrar Rusesabagina

    sublinha a sua importncia e d-lhe espessura emocional, pois o plano aproximado e o

    grande plano permitem a percepo dos sentimentos que animam a personagem.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

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    Do ponto de vista narrativo, este tipo de escolha (a exemplaridade de um ser nico)

    facilita claramente a empatia, tal como favorece a identificao com as vtimas, mas em

    detrimento da percepo do entendimento das causas do genocdio. Assim, numa curta

    sequncia filmada em plano aproximado beira da piscina do hotel, Paul Rusesabagina

    descreve a um empregado os corpos mortos espalhados pela cidade e quando este lhe

    pergunta porque as pessoas so to cruis, ele responde dio ou loucura, no sei. As

    razes histricas, os problemas sociais, o papel desempenhado pelos media locais

    desaparecem para dar lugar a argumentos como o inexplicvel, o mistrio de uma psique

    humana perturbada (a loucura).

    No entanto, este tipo de plano onde a personagem principal se encontra literalmente

    no centro das atenes, coloca outra pergunta que a do fora de campo. sabido que o

    quadro no cinema opera um corte na realidade filmada e que esta se prolonga virtualmente

    no que se chama um fora de campo. Para Deleuze, o fora de campo remete para o que no

    se ouve nem se v, no entanto est perfeitamente presente (1983: 28) . Esta definio

    parece-me problemtica, pois o fora de campo remete em muitos filmes para o que se ouve,

    e portanto para uma realidade existente fora do quadro. Ou seja, o som, enquanto parte pelo

    todo, uma espcie de fio que liga o visvel ao (ainda) no visvel. O som, como indicador

    forte da presena de uma realidade fora de campo, mantm ainda com o campo uma tenso

    de tipo dialctico. Assim, em Hotel Ruanda, vrias cenas atestam a presena do fora de

    campo por sons que evocam a guerra (tiros, exploses) numa tenso permanente, pois o

    espao virtual da guerra e do genocdio em curso ameaa constantemente o espao actual

    do hotel, onde, apesar de tudo, se consegue sobreviver.

    Uma cena em particular ilustra a tenso de tipo dialctico entre campo e fora de

    campo que estrutura parcialmente o filme. Quando Rusesabagina percebe que esgotou

    quase todos os seus recursos para salvar os refugiados, convida Tatiana para ir ao terrao do

    hotel para aparentemente tomarem uma bebida luz de velas. A conversa entre as duas

    personagens filmada em grande plano e em campo e contra-campo, mais uma vez de

    maneira a humaniz-las, a conceder-lhes espessura. Em off, uma msica que supostamente

    evoca um encontro romntico mistura-se com sons que dimanam do fora de campo e que

    evocam o perigo e a morte. A tenso da qual falava h pouco atinge aqui o seu clmax, pois

    o campo revela um elemento positivo, enquanto o fora de campo anuncia uma morte

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    virtual, mas sempre possvel. A tenso s se resolve quando Rusesabagina pede a Tatiana

    para no hesitar em se atirar do telhado com as crianas no caso de as milcias entrarem no

    hotel, pois neste momento tomamos conscincia de que, aos olhos da personagem principal,

    a morte passou de possvel a algo provvel. Os sons provenientes do fora de campo tomam

    retrospectivamente outra significao: tanto antecedem como anunciam o pedido de

    Rusesabagina.

    Esta cena tambm essencial por aperfeioar a figura de Rusesabagina como ser

    nico, essencialmente positivo, que naquele momento prev um possvel fracasso. Se a

    imprensa internacional (por exemplo Mantilla, 2005) fez de Paul Rusesabagina uma espcie

    de Schindler ruands, contribuindo assim no s para a sua fama como para o sucesso do

    filme, um livro recente veio colocar perguntas relativamente construo da personagem

    no filme de Terry George. Apesar de uma estrutura geral um pouco confusa, de uma escrita

    desleixada e de alguns erros factuais, o livro de Ndahiro e Rutazibwa (2008) pe em causa

    de maneira convincente a figura de Paul Rusesabagina. Os autores fundamentam as suas

    observaes em entrevistas conduzidas com 74 dos 1200 sobreviventes, assim como em

    documentos diversos (cartas, faxes enviados pelos refugiados), que indicam que estes no

    s no deviam a sua sobrevivncia ao gerente, como tambm que este tentara aproveitar-se

    da situao para ganhar dinheiro (fez pagar os quartos at a Sabena, proprietria do hotel, o

    mandar parar, e vendia a escassa comida). De facto, quando interrogados sobre as razes

    que os tinham levado a escolher o Hotel des Mille Collines como refgio, grande parte dos

    entrevistados responderam que fora por causa da presena de elementos da MINUAR, e s

    uma testemunha afirmou que o retrato de Paul Rusesabagina do filme correspondia

    realidade.

    Como se ter percebido, os autores apontam para alguns elementos pelos menos

    perturbantes que colocam srias dvidas relativamente actuao de Rusesabagina na

    altura. Se Hotel Ruanda no fez dele uma personagem complexa, dividida, mas antes um

    ser inteiramente colocado do lado do bem, tal deve-se a uma concepo do cinema como

    arte prxima da tragdia. Na sua Potica, Aristteles j defendia uma tragdia que

    suscitasse o temor e a compaixo junto dos espectadores, a fim de os purgar da tenso

    acumulada no decorrer da representao e assim transformar sentimentos penosos em

    prazer. Se a personagem de Rusesabagina nunca poderia ter sido considerada trgica aos

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    olhos dos tericos da tragdia clssica, este filme, na sua estrutura, responde bem

    definio aristotlica de um gnero que, paradoxalmente, suscita prazer junto dos

    espectadores com imagens que os assombrariam na realidade.

    Este paradoxo continua a interpelar alguns autores contemporneos; assim Luc

    Boltanski (1993, 2000) situa-se claramente na esteira terica de Aristteles quando evoca o

    sentimento de compaixo que se apodera de um espectador que assiste distncia, tanto

    geogrfica como ficcional, ao sofrimento de um ser humano. sabido que o socilogo

    francs coloca esta questo para entender o que suscita, junto do espectador do sofrimento,

    a vontade de reagir, de se investir ou de se empenhar em prol da vtima. Retoma a ideia,

    importante para o meu propsito, da dificuldade em distinguir entre a compaixo suscitada

    pelo sofrimento real, evocado atravs de uma reportagem, e a ficcional, suscitada por um

    filme, sobretudo quando se trata de um ser sofredor longnquo. O espectador (co)movido

    distncia precisa de uma narrativa (aparentemente) objectiva do sofrimento, de maneira a

    poder partilhar o seu sentimento com outros espectadores; mas ao mesmo tempo esta

    narrativa tem de atiar nele o sentimento da compaixo (1993: 38-42; 2000: 7). Esta dupla

    exigncia encontra-se bem ilustrada no caso da vtima remota, o ser humano que temos

    pouca ou nenhuma hiptese de poder ajudar, pois neste caso, como nota Boltanski, o

    espectador tender a apreender a narrativa da vtima de um modo ficcional.

    justamente o que est em jogo com os filmes sobre o genocdio no Ruanda: a

    escassez de imagens do genocdio real, a indiferena da maior parte dos e dos pblicos no

    Ocidente, originaram alguns anos mais tarde a vontade de representar os acontecimentos e,

    por conseguinte, de suscitar compaixo para com as vtimas na tripla distncia do tempo, do

    espao e da fico. Deste ponto de vista, a discrepncia entre Hotel Ruanda e Sometimes in

    April situa-se, entre outros elementos, na gesto pelos realizadores dos elementos

    fundamentais da tragdia. Ambos utilizam o temor e a compaixo como motor para suscitar

    empatia e interesse junto do espectador, mas o primeiro, pelo seu fim feliz, favorece o

    efeito de catarse, enquanto o segundo, ao mostrar a dificuldade ou at a impossibilidade de

    gerir os sofrimentos ps-genocdio, o impede.

    Esta vontade de comover, que caracteriza tanto os filmes do primeiro como os do

    segundo grupo, se bem que com modalidades diferentes, como veremos mais frente, s se

    entende plenamente se tivermos em conta o projecto que subjaz s cinco obras: representar

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    11

    para testemunhar os sofrimentos, produzir imagens de fico para substituir a ausncia de

    imagens reais. Da, sem dvida, o carcter empenhado de filmes que evidenciam o falhano

    dos media internacionais na cobertura do genocdio, o que acontece de maneira mais clara

    em Hotel Ruanda e Shooting dogs. Estas duas produes falam talvez mais dos fracassos

    combinados da comunidade internacional e dos media do que do genocdio em si. Em

    Shooting dogs, Rachel, jornalista da BBC, e Joe, um jovem activista idealista, conversam a

    propsito dos massacres que presenciaram. A primeira compara o que testemunhara no

    Ruanda com cenas semelhantes na Bsnia: quando nos Balcs via uma mulher branca

    morta, pensava que podia ser a sua me, mas no Ruanda no passam de Africanos

    mortos. Em Hotel Ruanda, uma curta sequncia ganha um relevo particular nesta

    perspectiva: Daglish, o operador, conversa com Rusesabagina a propsito das imagens dos

    massacres que acabou de filmar. O gerente acha que estas vo provocar alguma reaco

    junto da comunidade internacional, ao contrrio de Daglish que responde: As pessoas que

    vo ver as imagens vo dizer: Meu Deus! terrvel e vo continuar a jantar. Ambos os

    exemplos ilustram paradigmaticamente o que Boltanski dizia a propsito do sofrimento

    distncia. Se concebvel sofrer distncia, o grau de sofrimento e de envolvimento para

    (tentar) reduzir o sofrimento do outro dependem claramente do estatuto das vtimas.

    Os filmes do primeiro grupo giram todos volta desta culpabilidade da comunidade

    internacional e dos media, o que explica, em parte, a escolha de colocar personagens

    brancas no centro das atenes em Un dimanche Kigali e Shooting dogs. Neste ponto, o

    que disse Douin, crtico de cinema, sobre o segundo vale igualmente para o primeiro:

    Ce point de vue sur un gnocide admis sans broncher puis ni pendant un temps (800 000 morts seulement!) est donc celui de Blancs accusant les Blancs d'aveuglement et de lchet. Ce qui explique (partiellement) le manque d'paisseur des personnages africains, pour la plupart fondus dans une masse scinde entre bons apeurs et mchants menaants (Douin, 2006).

    Contudo a vontade, consciente ou inconsciente de mostrar o que no foi mostrado na

    altura, de comover distncia quando se deveria ter comovido no momento, tem outra

    consequncia: a linguagem flmica utilizada no primeiro grupo aproxima-se da linguagem

    das reportagens televisivas. O cinema, neste caso, foi buscar televiso os seus cdigos

    para originar um discurso que esta no produziu na altura. A influncia do dispositivo

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    12

    televisivo qui mais patente no filme de Caton-Jones, no s por causa das referidas

    reflexes das personagens sobre o papel dos jornalistas, mas sobretudo por causa da

    linguagem flmica utilizada.

    Tal como Hotel Ruanda, o guio de Shooting dogs inspira-se em factos verdicos.

    Logo a seguir ao incio dos massacres, duas mil pessoas refugiaram-se na ETO (cole

    Technique Officielle) de Kigali, por estar sob proteco das Naes Unidas e a este ttulo

    albergar um destacamento de capacetes azuis. O guionista, ele prprio antigo jornalista que

    cobriu o Ruanda ao servio da BBC, acrescentou vrias personagens fictcias a fim de

    fomentar o temor e a compaixo. Christopher um padre catlico, com trinta anos de

    terreno, fluente na lngua nacional, que trabalha na ETO. Joe, jovem entusiasta, est no pas

    por conta da Oxfam para dar aulas s crianas da escola. Pouco tempo depois do assassnio

    do presidente, centenas de Tutsi, assim como algumas dezenas de brancos, vm buscar

    alguma proteco junto dos soldados da ONU. Rapidamente, as milcias extremistas

    cercam o recinto e impedem qualquer sada. Durante o cerco, cada um tenta com os seus

    fracos recursos ajudar os refugiados: Christopher continua a celebrar a missa e Joe procura

    Rachel, uma jornalista da BBC, para testemunhar o que est a acontecer. Esta s aceita

    acompanh-lo quando sabe que h europeus entre os refugiados. Pouco tempo depois,

    soldados franceses, que actuam fora do mandato da ONU, chegam para levar os brancos,

    mas Joe decide ficar e continuar a ajudar os refugiados, entre os quais se conta Marie, uma

    jovem Tutsi pela qual parece ter uma certa atraco. Porm, a situao piora quando a ONU

    manda retirar grande parte do contingente no pas, o que significa a sada do destacamento

    da escola. Joe, assustado pelas matanas, foge com os soldados, enquanto Christopher

    decide ficar entre os refugiados. Antes de morrer, este consegue ainda salvar vrias crianas

    e adolescentes, Marie includa. Cinco anos mais tarde esta reencontra Joe na Inglaterra e

    perdoa-lhe a fuga.

    Como em Sometimes in April, o filme comea com um carto que d algumas

    informaes preliminares: Durante 30 anos o governo de maioria Hutu perseguiu a

    minoria Tutsi. Sob a presso dos pases ocidentais, o presidente aceitou com relutncia

    partilhar o poder com os Tutsi. Relembra-se ainda a presena de uma pequena fora das

    Naes Unidas em Kigali e arredores. Procede-se assim a uma apresentao dicotmica do

    contexto social como sendo uma realidade em que os prejudicados (Tutsi) e os

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    13

    prejudicadores (Hutu) se distinguem claramente. No se mencionam elementos to

    essenciais para entender o genocdio como a guerra travada pela FPR desde 1990, ou o

    papel desempenhado pelos colonizadores alemes e belgas assim como pela Igreja Catlica.

    Nisso Shooting dogs aproxima-se claramente de Hotel Ruanda: ambos evitam questionar

    um contexto mais matizado onde a histria, a economia, a religio, os media locais

    desempenham um papel complexo. Esta postura inicial explica porque as duas personagens

    principais (Christopher e Joe) no entendem o que est a acontecer, no conseguindo,

    semelhana de Rusesabagina, interpretar o genocdio como consequncia das polticas

    coloniais e ps-coloniais.

    Como nos outros filmes do primeiro grupo, o guio de Shooting dogs construdo em

    torno do referido duplo falhano e do sentimento de culpa. Da talvez a escolha da figura do

    padre, que supostamente deveria carregar de maneira simblica o peso da culpa colectiva.

    Com Joe, Christopher representa de maneira metonmica o espectador sofredor distncia,

    ou melhor, na relao especular que tambm o cinema, a dupla oferece ao espectador um

    reflexo do seu sofrimento perante os acontecimentos: de facto Joe e Christopher permitem-

    nos experimentar o temor e a compaixo em diferido.

    Shooting dogs poblematiza de duas maneiras o fracasso dos media em geral e da

    televiso em particular em retratar o genocdio que est a decorrer. Como vimos, no prprio

    guio, a equipa da BBC representa de modo metonmico o comportamento dos media na

    altura. S tem interesse em filmar corpos mortos e segue Joe ETO unicamente por causa

    da presena de brancos. Esta cena aponta para um duplo fracasso dos media: por um lado, o

    de um certo sentido moral (no do importncia s narrativas, ao ponto de vista das vtimas,

    comportam-se como abutres quando avistam os corpos de uma famlia) e, por outro, o do

    seu suposto poder de influncia (o espectador levado a constatar a incapacidade da

    imagem jornalstica em influenciar a opinio internacional). O prprio Joe acredita ainda

    que imagens do que est a acontecer na ETO podero mudar o fatum dos refugiados: Se

    uma coisa no aparece na TV, no existe ou ainda Se as pessoas virem o que est a

    acontecer, devem fazer algo . Possui as iluses que Daglish, em Hotel Ruanda, j perdera:

    o espectador distncia sofrer, sentir compaixo pelas vtimas, mas no se empenhar

    em pressionar o seu governo.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    14

    A segunda maneira de problematizar o fracasso da televiso tem a ver com a maneira

    de filmar de Caton-Jones. A esttica do seu filme inspira-se na esttica televisiva, filmando

    como a televiso o deveria ter feito na altura, com a cmara ao ombro, por exemplo. Dois

    exemplos ilustram esta tendncia.

    No primeiro dia do genocdio (7 de Abril), Joe pega na carrinha para ir procura de

    Marie e do seu pai, Roland. A cmara ao ombro gira volta do seu eixo (panormico) ou

    fica espera de a camioneta entrar no campo. Nesta sequncia, um plano rpido d-nos o

    ponto de vista de Joe a conduzir (cmara subjectiva), com a imagem a tremer. Acontece o

    mesmo quando chega casa de Roland: cmara subjectiva no corredor, atrs das costas de

    Joe ou em grande plano. A montagem alterna assim os grandes planos com a cmara

    subjectiva, de maneira a suscitar um efeito de suspense provocado pelo facto de sabermos

    tanto como ele (ser que Marie e a sua famlia foram mortas?). No que tem a ver com o

    som, h uma msica ilustrativa que evoca a tristeza durante a curta viagem da carrinha e

    que pra quando Joe chega a casa de Roland. Depois ouvem-se tiros em off (como em Hotel

    Ruanda, estes remetem para um fora de plano de onde dimana o perigo) e o tiquetaque de

    um relgio que reala o peso do silncio, um silncio de morte. O tratamento da imagem e

    do som participam do efeito procurado, o de suspense, que visa associar o ponto de vista da

    personagem principal ao do espectador. O realizador coloca-nos literalmente na pele da

    personagem para nos obrigar a entrar em empatia, no s com ela mas com o seu olhar

    sobre os acontecimentos. Aos poucos, os sentimentos de Joe tornam-se nossos, ou seja,

    comeamos a sofrer distncia por intermdio de uma personagem na qual delegmos a

    experincia do sofrimento directo.

    O fim da sequncia vem confirm-lo: no caminho de volta ETO, um soldado do

    exrcito oficial manda parar Joe num bloqueio de estrada. O ponto de vista continua a ser o

    deste (em cmara subjectiva), que avista algumas vtimas a serem molestadas por tropas. O

    movimento da carrinha apaga-as do plano. O plano seguinte, largo e fixo, mostra a carrinha

    a afastar-se da barragem. Em off, ouve-se uma rajada que pode ser associada execuo

    das vtimas annimas.

    H pelo menos mais um momento que ilustra a influncia do formato da reportagem

    televisiva. Quando Joe se encontra a caminho da ETO com Rachel e a restante equipa da

    BBC, um grupo de milicianos embriagados manda-os parar e ameaa-os. Conseguem

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    15

    escapar morte e, pouco depois, Rachel avista corpos mortos e pede a Joe para parar. O

    operador de cmara aproxima-se dos corpos chacinados, comea a filmar enquanto Rachel

    toma apontamentos. Mais uma vez, o ponto de vista parece ser o de Joe revestido da misso

    de comover o espectador distncia. O dispositivo flmico mostra em plano de semi-

    conjunto, com cmara ao ombro, a equipa em trabalho. Os planos dos corpos remetem para

    o olhar de Joe que passa de um corpo ao outro, o que parece ser comprovado pelos planos

    de pormenor que mostram o olhar aterrorizado da personagem. Porm, a imagem sacudida

    no aponta s para o seu olhar, mas igualmente para a esttica que a da reportagem

    televisiva: planos curtos, filmagem na urgncia, imagem agitada, etc. Para alm de produzir

    uma imagem de cunho televisivo como substituto s imagens que no foram divulgadas na

    altura, esta sequncia poderia tambm ser lida como crtica tendncia voyeurista da

    reportagem televisiva (a apetncia dos media pela morte da qual falava Seaton) e aos

    jornalistas abutres. Porm, ao faz-lo, o prprio realizador tambm se torna parte do

    dispositivo de evidenciao, da encenao complacente da morte e do sofrimento alheio.

    neste ponto provavelmente que a articulao entre ambos os discursos (o televisivo

    e o cinematogrfico) se torna mais evidente. A fico vai buscar parte da sua linguagem

    reportagem de guerra e, no sentido inverso, a reportagem, ou at o documentrio,

    ficcionaliza por assim dizer a realidade, quando no importa mesmo trechos de filmes para

    atestar as suas prprias ausncias. Como Seaton demonstrou, as narrativas televisivas das

    mortes violentas devem muito fico, tal como as testemunhas de guerra que relatam a

    sua experincia consoante modelos literrios e culturais dos quais podem ou no ter

    conscincia (Seaton, 2005: 186-187). Por outras palavras, teramos tendncia para contar

    experincias traumatizantes numa linguagem que se aproxima da fico. No caso da

    representao jornalstica de uma guerra ou de um genocdio, isto significa que as

    reportagens tendem a assemelhar-se experincia mais prxima que o espectador destes

    tem: o filme de fico (Moeller, 1999: 18-19). Assim, por causa da confuso permanente

    entre mortos reais e fingidos, acabamos por nos sentir mais comovidos pelo sofrimento

    reconstitudo do que pelo sofrimento real. A mistura dos discursos acaba por confundir os

    sentimentos e percebemos talvez seja a concluso mais perturbadora que o figurante

    annimo ruands que finge a sua morte de maneira convincente pesa mais, do ponto de

    vista emocional, do que um corpo annimo real em decomposio beira de um caminho.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    16

    Ao focalizarem-se quase exclusivamente no fracasso dos media e na impotncia da

    comunidade internacional, os filmes do primeiro grupo evitam questionar o papel essencial

    desempenhado pela Igreja Catlica na gnese e no desenrolar do genocdio. No caso de

    Shooting dogs, no s se trata tanto de uma omisso, mas inclusivamente de uma

    manipulao da histria da colnia e do estado independente. O guio reala o momento

    simblico no qual o genocdio toma lugar: a Pscoa e a sua noo central de sacrifcio de

    Jesus pela redeno dos pecadores. A personagem de Christopher parece ter sido pensada

    como metfora deste sacrifcio inicial: o Justo que morre em martrio para salvar parte da

    humanidade. Ter-se- notado a proximidade onomstica entre Cristo e Christopher (O que

    leva Cristo ao ombros), proximidade que refora a analogia entre ambas as figuras. Juntos

    carregam o peso do mal e da desgraa, entendem os criminosos como sendo igualmente

    filhos de Deus, aceitam o preo a pagar pela salvao do mundo ou de uma mo cheia de

    crianas. Figura tutelar dos refugiados da ETO, eixo volta do qual se organiza o guio, o

    padre oferece uma s sada aos Tutsi: abnegao e entrega das almas a Deus. Assim, na

    sequncia da fuga dos capacetes azuis, alguns planos curtos so reveladores no s da

    posio central de Christopher na narrativa, como da ideologia veiculada pelo filme. Pronto

    a sair, Joe avista o padre na multido, salta do camio militar e pergunta a Christopher

    porque quer ficar. Este responde-lhe: Deus est com esta gente, sofrendo. O seu amor est

    aqui. O campo-contra-campo em plano aproximado das duas personagens remete a

    multido para mero pano de fundo, rostos e corpos que atravessam o plano, que se agitam

    sem passar da categoria de figurantes de personagens. A tenso est neste momento

    concentrada na nica alternativa que o guio permite: fugir com os capacetes azuis (Joe) ou

    permanecer entre os seres sofredores e aceitar o sacrifcio (Christopher). Esta sequncia

    manifesta o duplo subentendido que estrutura o filme: por um lado, o branco o nico

    portador de sentidos, a personagem atravs da qual possvel ao espectador experimentar o

    sofrimento distncia; por outro, a f crist -nos apresentada como via de salvao

    exclusiva para as vtimas.

    Este sentido exonera completamente a Igreja Catlica das suas responsabilidades no

    contexto ruands. Como vrios historiadores mostraram, esta no s participou, durante o

    perodo colonial, na radicalizao e na racializao das diferenas que podiam existir entre

    Tutsi e Hutu (Chrtien, 1985, 2000), como pactuou com o regime ps-colonial do

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    17

    presidente Habyarimana que preparou, pela sua poltica de ndole racista, os massacres de

    1990 e o genocdio de 1994. Nada disso transparece em Shooting dogs: a Igreja aparece

    constantemente como soluo (a f para superar o sofrimento) e produzida como vtima

    (veja-se a sequncia em que Christopher descobre que as freiras de um convento tinham

    sido violadas e assassinadas). Neste ponto, Shooting dogs assemelha-se a Hotel Ruanda,

    onde o carrasco nos era dado como ser monstruoso, incompreensvel, alheio f e ao

    humanismo cristo, enquanto Tatiana, por exemplo, pelo seu estatuto de ser indefeso, de

    borrego preste a ser degolado, era associada ao plo da pureza e da f.

    Un dimanche Kigali (2006), produo canadiana (Quebeque), o terceiro filme do

    primeiro grupo, participa da mesma obliterao das responsabilidades da Igreja Catlica

    nas tenses que conduziram ao genocdio. Retrata-o do ponto de vista de um jornalista e

    cineasta quebequiano, Bernard Valcourt, homem de meia-idade, sem iluses, alcolico,

    presente em Kigali para realizar um documentrio sobre a SIDA. Na companhia de um

    operador de imagem, Modeste, e de um tcnico de som, Augustin, percorre a capital

    procura de testemunhas e de vtimas da doena. Aos poucos entende que algo terrvel est

    em preparao e decide ficar para informar o mundo exterior. Reside no Hotel des Mille

    Collines, onde trabalha Gentille, uma empregada de mesa pela qual se apaixona. Esta,

    apesar de ser Hutu pelo lado do pai, corre risco de vida por causa da aparncia fsica que a

    assemelha a uma mulher Tutsi, pelo menos aos olhos dos extremistas Hutu. Depois do

    assassnio de um padre quebequiano que ajudava refugiados Tutsi, Valcourt entende que

    ningum est a salvo. A impotncia da ONU em parar a onda crescente de massacres

    convence-o a casar-se com Gentille de maneira a poder lev-la para o Canad. Contudo, os

    acontecimentos precipitam-se depois do assassnio do presidente Habyarimana. O casal

    tenta ento fugir numa caravana organizada pelos capacetes azuis, mas num bloqueio de

    estrada de milicianos que procuram Tutsi, Modeste, agora chefe de milcia, rapta Gentille

    perante os olhos impotentes de Valcourt. Ela ser violada e mutilada antes de ser

    abandonada. Logo a seguir ao fim do genocdio, Valcourt reencontra-a agonizante na casa

    em runa do pai e aceita ajud-la a morrer, asfixiando-a.

    Este resumo restabelece a cronologia de um filme cuja estrutura dramtica funciona

    com frequentes analepses. O filme comea com um Valcourt esgotado de volta ao Hotel

    des Mille Collines em Julho de 1994, logo a seguir vitria da FPR. Interroga os

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    18

    sobreviventes procura de uma pista que o possa levar a Gentille. Flashbacks regulares

    levam-nos ao perodo anterior ao genocdio e tm como funo mostrar o desmoronamento

    do pas, assim como o incio da relao entre Valcourt e Gentille. Mais uma vez, o guio

    procura comover atravs de uma personagem branca, uma personagem com a qual o

    espectador, sofredor distncia, consegue identificar-se, ou melhor, uma personagem com

    a qual o guionista achava que o espectador poderia identificar-se.

    Como nos dois outros filmes, o realizador e co-guionista, Robert Favreau, no

    contextualiza os acontecimentos. No genrico, aparecem alguns cartes com parcas

    informaes sobre o desenrolar dos primeiros momentos do genocdio. Relembram que, a 6

    de Abril, o avio de Habyarimana abatido e que a sua guarda, assim como as milcias,

    entram logo em aco. Como em Hotel Ruanda, o fim do genocdio est claramente

    associado vitria da FPR. Quando aparece a informao sobre a identidade das vtimas

    (que eram de facto de origem Tutsi na sua maioria), um crucifixo ocupa o centro do plano,

    seguido de trs que dividem o plano em diagonal e que, ao mesmo tempo que anunciam os

    cemitrios que aparecem no plano de abertura, designam a presena de padres canadianos.

    interessante notar que aqui, como em Shooting dogs, os padres so sempre brancos e

    encarados como figuras positivas: no s protegem os Tutsi, como esto dispostos a morrer

    por estes.

    Parece-me uma vez mais que esta atitude se deve tendncia, consciente ou no, de

    apreender a situao de maneira dicotmica num determinado tipo de cinema: para

    comover o espectador distncia, este tem obviamente de criar empatia com o plo

    positivo, ao mesmo tempo que tem de reconhecer um plo negativo onde as personagens

    so encaradas sobretudo no modo da subtraco ou da ausncia (menos humanidade, menos

    respeito pelo outro, sem razo, etc.). O padre branco/catlico, assim como a ideologia

    crist, situam-se sem dvida aos olhos dos trs realizadores no plo positivo, enquanto os

    sacerdotes negros, e com eles a instituio da Igreja Catlica no Ruanda, so produzidos

    como no existentes ou reduzidos s margens da histria.

    Uma sequncia ilustra paradigmaticamente a leitura tendenciosa da histria pelos

    guionistas (Favreau e Courtemanche). Valcourt conversa com o padre quebequiano que

    confessara o coronel Bagosora, provvel organizador do atentado que custou a vida a

    Juvenal Habyarimana e planificador do genocdio. O padre revela ao jornalista as intenes

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    19

    dos extremistas Hutu (organizao do atentado, planeamento do genocdio).

    Estranhamente, o facto de o principal organizador dos massacres ser catlico no levanta

    nenhum comentrio (quem o formou?) e ainda menos qualquer crtica sobre a ideologia

    religiosa em questo (como que a moral crist explica tal deturpao da mensagem

    evanglica?). Bernard Valcourt contenta-se em filmar e gravar o depoimento do padre com

    a sua cmara de vdeo, como se a imagem assim produzida falasse por si, a de um padre

    destroado pelo que ouviu, num acto de palavra que em princpio nunca deveria ter

    revelado. A complexidade histrica e o empenhamento de membros de toda a hierarquia

    catlica ruandesa nos massacres permanecem nas margens do guio, ou melhor dito, nos

    silncios e no ditos que o assombram.

    A imagem vdeo aponta para um segundo ponto de aproximao de Un dimanche

    Kigali a Hotel Ruanda e Shooting Dogs: a omnipresena dos jornalistas e da representao

    do sofrimento numa esttica de ndole televisiva. Os trs filmes tm no guio uma figura de

    operador de cmara e jornalistas, evidncia da vontade de comover atravs da imagem de

    fico, ou melhor, de uma imagem que se d na fico como substituto de uma imagem real

    que quase no existiu. Valcourt, como Daglish (Hotel Ruanda) ou Rachel (Shooting dogs),

    entende aos poucos que o mundo ocidental no quer saber do que est a acontecer no

    Ruanda. No seu quarto do Hotel des Mille Collines, fala por telefone com um colega no

    Canad e explica que se trata de um plano preparado de genocdio, e no de uma guerra

    tribal entre Hutu e Tutsi. Irrita-se com o ntido desinteresse do campo jornalstico ocidental,

    desliga e depois vai ter com Gentille varanda. Em plano aproximado, aponta para o

    telefone que fica agora no fora de campo e diz No h ningum que queira saber o que

    est a acontecer aqui!. Gentille pergunta-lhe ento Porqu que ficas? e ele responde

    Porque as palavras no bastam. preciso imagem para parar esta loucura. Durante o

    dilogo, ouvem-se no fora de campo sons de tiros de armas automticas e de exploses que

    remetem, como nos outros filmes, para o perigo latente que ameaa permanentemente os

    seres presentes no campo. A sequncia aproxima a figura de Valcourt de Daglish e de

    Rachel. Nenhum dos trs acredita na capacidade dos media em comover suficientemente o

    espectador para o obrigar a reagir. Quando, no final do dilogo, questionado por Gentille

    sobre se acredita na eficcia dos seus esforos, Valcourt responde Honestamente, no

    No tenho o direito de no tentar.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    20

    Porm, o que este comentrio no pe em causa a propenso dos prprios media

    para no representar alguns acontecimentos ou para os representar em moldes que ajudam a

    produzir o cansao do espectador. Como vimos, o espectador cansa-se em parte por causa

    de questes que tm a ver com a sua prpria predisposio ideolgica (quando a cor da pele

    da vtima intervm, por exemplo), cansa-se devido ao formato das notcias, devido

    repetio do mesmo a intervalos regulares, devido falta de uma notcia que seja

    finalmente matizada. Valcourt, Daglish e Rachel no pem realmente em causa o seu

    prprio trabalho, julgam at fazer um trabalho profissional; o mais grave, porm, que a

    fico, apesar da distncia, reproduz, quase sem a contradizer, esta opinio do meio

    jornalstico sobre ele prprio.

    O problema deste tipo de filmes que se concentra no imediato do genocdio,

    privilegia o agora, nunca o antes. Se este tipo de estrutura favorece claramente a tenso

    dramtica, o envolvimento do espectador, a empatia com certas personagens, f-lo em

    detrimento da espessura histrica, esquecendo, por ignorncia no melhor dos casos, factores

    essenciais para entender um genocdio.

    Este ltimo comentrio leva-me terceira semelhana entre os trs filmes: no se

    explica um genocdio, pois este um acto de pura loucura. o que sobressai de duas curtas

    sequncias: a primeira, perto do incio, mostra-nos Valcourt em conversa com Maurice, um

    empregado do Hotel des Mille Collines que perdera a famlia nos massacres. Em plano

    peito justificado aqui no s pelas necessidades de filmagem de uma cena dialogada, mas

    igualmente pela necessidade de mostrar os estragos da tragdia no rosto de Valcourt , num

    cenrio que evoca o abandono, a tristeza, a morte (mveis e objectos dispersos no cho,

    piscina com gua estagnante), Maurice atribui o genocdio perda da razo: Vizinhos

    mataram os seus vizinhos, amigos mataram os seus amigos, maridos mataram mulher e

    filhos. Em Hotel Ruanda, numa escala de plano idntica e no mesmo local, mas antes da

    evacuao do Hotel, Rusesabagina tambm evitava colocar perguntas relativas s causas

    polticas e histricas do genocdio. A loucura passageira de parte da sociedade ruandesa

    parece bastar em ambos os filmes para explicar os acontecimentos.

    A segunda sequncia tem lugar perto do fim, depois de Valcourt ter ido a casa do pai

    de Gentille para a pedir em casamento. Conduz e observa as colinas que circundam Kigali.

    Eis o seu comentrio dirigido a Gentille sentada ao seu lado: Continuo sem perceber.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    21

    Como que tanta beleza pode gerar tanto dio? Pois, para o ponto de vista hegemnico,

    no se decifra um genocdio, ele inexplicvel por natureza, sem causas histricas

    aparentes, espcie de monstro produzido no momento e cujo fim parece to misterioso

    como o seu princpio. Por outras palavras, os filmes do primeiro grupo, ao concentrarem-se

    no imediato do genocdio, transformam o genocdio ruands na duplicao de qualquer

    outro. Da talvez a sensao de repetio ao ver os trs filmes: privilegiam a tenso

    dramtica em detrimento da explicao, envolvem emocionalmente o espectador em torno

    de uma dupla de personagens (Paul/Tatiana; Christopher/Joe; Valcourt/Gentille) em vez de

    suscitarem nele um questionamento (sobre as responsabilidades ocidentais, por exemplo),

    ou seja, limitam-se a provocar no espectador (momentaneamente) sofredor distncia os

    sentimentos de receio e de piedade que se esvairo com a catarse final. Existe, no entanto,

    uma outra via possvel para o cinema sobre o genocdio: so as propostas contra-

    hegemnicas que tratarei a seguir.

    Propostas contra-hegemnicas oriundas do Sul

    Os realizadores Raoul Peck (Haiti) e Fanta Regina Nacro (Burkina-Faso) propuseram uma

    viso alternativa dos acontecimentos em questo, uma verso mais matizada, mais

    preocupada tambm com as realidades locais. No entanto, ambos os realizadores viram os

    seus filmes produzidos como no existentes na maior parte dos pases europeus. Sometimes

    in April (Peck), por exemplo, nunca arranjou distribuidoras em Frana e na Blgica. Ser

    que o contedo crtico relativamente s responsabilidades destes dois pases no genocdio

    explica a espcie de censura da qual foi vtima? Ou ser por o filme no ter actores

    conhecidos (junto de um pblico ocidental claro) ou ainda por assumir a espessura histrica

    num guio forosamente complexo? Embora La nuit de la vrit tenha estreado em Frana,

    recebeu poucas crticas e no atingiu o sucesso pblico de Hotel Ruanda ou de Shooting

    dogs. Sem actores (re)conhecidos, com uma estrutura pouco habitual, sem o apoio da

    mquina meditica, tinha igualmente poucas hipteses de adquirir o capital simblico

    suficiente para ganhar os favores dos espectadores. aqui, porm, que se encontram as

    leituras contra-hegemnicas que evocava h pouco. Uma apresentao rpida ajuda a

    entender as diferenas fundamentais entre os filmes dos dois grupos.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    22

    Sometimes in April (2004) conta a histria de um sobrevivente, Augustin Muganza

    (Hutu), antigo soldado do exrcito oficial, procura do que aconteceu sua famlia durante

    o genocdio. No incio do filme (2004), encontra-se numa escola a debater com alunos um

    discurso do Presidente Clinton que passa na televiso. De volta a casa, depara-se com uma

    carta do irmo, Honor Botera, acusado de cumplicidade no genocdio por causa do seu

    papel de animador na rdio que incitava ao dio e aos massacres. Este pede a Augustin para

    o ir visitar a Arusha, sede do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, porque tem

    informaes sobre o que aconteceu a Jeanne (Tutsi), mulher de Augustin, e aos dois filhos,

    Marcus e Yves Andr. Esta solicitao do irmo obriga Augustin a recordar o que

    acontecera dez anos antes, entre Abril e Julho de 1994. A primeira reaco de Augustin

    de recusa perante a dor de reviver um passado que tenta esquecer, mas Martine, a sua nova

    companheira, antiga professora de Anne-Marie, outra filha de Augustin e Jeanne, morta

    tambm no genocdio, anima-o a viajar Tanznia. O difcil dilogo que se reata entre

    Honor e Augustin obriga o ltimo a convocar os fantasmas que o assombram desde a

    Primavera de 1994.

    Logo nos primeiros dias do genocdio, Augustin quer mandar a sua famlia, assim

    como a do seu amigo Xavier, outro oficial das foras armadas, para o Hotel des Mille

    Collines. Com muita relutncia, Honor aceita levar as famlias para o que ainda

    considerado um lugar seguro. Augustin e Xavier, enquanto oficiais acusados de traio, no

    podem acompanh-los e tm de fugir pelos seus prprios meios. Na fuga, Xavier

    apanhado pelas milcias e abatido. Augustin consegue atingir o hotel, mas no encontra l a

    sua famlia. S dez anos mais tarde, em Arusha, que Honor lhe conta o que acontecera.

    Na fuga tinham sido parados num bloqueio de estrada do exrcito, onde os militares tinham

    abatido a tiro os filhos de Augustin e abandonado Jeanne como morta. Horas depois,

    Honor salvara-a e levara-a para a igreja da Sainte-Famille, pois julgara que ali ficaria em

    segurana. No entanto, violada por tropas, suicidara-se antes de ser executada. Depois de

    ter assistido a vrios momentos dos processos em curso em Arusha, Augustin volta para

    Kigali onde tenta continuar a viver com Martine, grvida de um rapaz.

    Uma montagem paralela d igualmente ao espectador informaes sobre o que

    acontecia em Washington na mesma altura. Vrias sequncias mostram uma funcionria

    norte-americana (Bushnell), que luta para fazer entender a gravidade da situao a

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    23

    superiores desinteressados. Este tipo de montagem leva-nos tambm at aos dirigentes

    ruandeses implicados na planificao do genocdio. Assim Bagosora d metonimicamente a

    cara aos carrascos, e vrias cenas apontam para a sua importncia nos acontecimentos

    (recepo das armas entregues pelo Exrcito Francs, por exemplo).

    Percebe-se pela leitura deste resumo a complexidade do guio de um realizador que

    quis abranger vrios pontos de vista, ou seja, que sobrepe, atravs da montagem, discursos

    diferentes sobre o mesmo assunto. Os acontecimentos so-nos dados a ler simultaneamente

    ao nvel individual (o destino de Augustin e da sua famlia) e ao nvel colectivo (reaces

    internacionais, principalmente a americana), sem que haja interaco entre os dois nveis

    dentro da prpria diegese. Mais do que nos filmes do primeiro grupo, o espectador no se

    pode acantonar na funo de mero receptor da informao, -lhe pedido um esforo no s

    de interpretao mas tambm de ligao entre diferentes pontos de vista.

    Assim, o incio do filme prope pelo menos cinco tipos de discursos que nos so

    dados sucessivamente pela montagem, mas que temos de encarar simultaneamente para

    entender o genocdio e as suas origens. Ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, que

    remetiam o genocdio para a perda da razo, Peck defende a possibilidade de explicar as

    suas origens.

    O primeiro dos discursos em questo o da histria. O genrico inicial mostra um

    mapa antigo de frica, um mapa desenhado pelos conquistadores europeus. Este plano

    inicial altamente significativo, pois remete para a apropriao violenta de um continente

    que passou a existir aos olhos europeus a partir do momento no qual foi transladado,

    traduzido, enclausurado num mapa. Um travelling ptico foca lentamente o centro deste

    mapa enquanto aparecem cartes com informaes sobre a colonizao da zona pelos

    belgas. medida que o zoom se vai aproximando do pas, uma srie de fondu-enchan faz

    emergir outros mapas mais recentes, o que, ao mesmo tempo, aponta para uma progresso

    cronolgica, assim como para a constncia do apoderamento do continente pelos Europeus.

    O continente s existiu aos olhos do Norte na medida em que foi descrito e transformado

    com vista sua apropriao violenta.

    o que afirma sem ambiguidade o segundo discurso. O genrico acaba com um

    fecho em esbatido sobre o Ruanda contemporneo e assegura um raccord com a sequncia

    seguinte que, com uma abertura em esbatido, abre sobre um plano de paisagem. A voz off

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    24

    de Augustin pergunta em que momento que o pas se tornou um inferno. Mais uma vez, o

    guio coloca a culpa inicial do lado dos colonizadores: trechos de filmes da poca

    evidenciam o papel negativo dos cientistas belgas no processo de racializao (um filme

    documental a preto e branco mostra mos brancas a tomar medidas antropomrficas das

    populaes locais). O ponto de vista dos colonizadores constituiria, desta maneira, o

    terceiro tipo de discurso tido sobre o Ruanda. No fim desta sequncia comea-se a ouvir um

    discurso de Clinton sobre o genocdio em off, com um plano de fundo de uma paisagem

    idlica, alis falsamente idlica, uma vez que fora palco de massacres.

    O discurso de Clinton em causa permite o raccord com a terceira sequncia e o

    terceiro ponto de vista, o da potncia hegemnica, os Estados-Unidos, que na altura no s

    no intervieram como tambm travaram qualquer esforo por parte das Naes Unidas para

    mandar mais tropas para o Ruanda. A retransmisso do discurso ocupa o ecr durante um

    tempo at um raccord cut nos dar a entender que se tratam de alunos de uma escola a ver

    uma gravao vdeo numa sala de aula. Um travelling lateral em plano aproximado ou em

    grande plano aponta para rapazes e raparigas concentrados no discurso do presidente norte-

    americano. Assistimos aqui a uma transio entre o ponto de vista macro e o ponto de vista

    micro, que nos leva para o ltimo nvel de verdade, o dos habitantes do Ruanda. Depois da

    transmisso, Augustin, agora professor, questiona os alunos. Uma jovem, que parece ter

    sofrido, pergunta se o genocdio podia ter sido evitado. Logo uma colega reage com ira

    (Estas coisas ms pertencem ao passado), o que aponta sem dvida para a dificuldade de

    reconciliao entre as duas comunidades. Esta sequncia da escola essencial, pois em

    poucos minutos aponta para o fracasso dos prprios ruandeses e da comunidade

    internacional, para a memria do que aconteceu e a difcil reconciliao.

    A sobreposio dos discursos determina em grande parte a estrutura do filme e a

    escolha por parte do realizador da montagem paralela entre os vrios nveis de verdade,

    montagem que estabelece relaes lgicas entre muitas sequncias. Vejamos, entre outros

    exemplos, a articulao entre as duas sequncias seguintes: na primeira, temos uma

    conversa exaltada em Washington entre funcionrios e militares sobre as opes possveis

    de interveno no Ruanda. Bushnell defende que se silencie atravs de interferncias na

    rdio na qual trabalha Honor. Um oficial responde-lhe que uma rdio nunca matou

    ningum. Na sequncia seguinte, ouve-se a rdio em questo a funcionar numa casa

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    25

    isolada. Um campons annimo sai, pega num instrumento agrcola e anuncia mulher que

    vai ao trabalho (expresso muitas vezes utilizada pelos assassinos para designar o acto de

    matar). Existe simultaneamente uma relao de contradio entre a declarao feita pelo

    oficial em Washington e a actuao do campons no terreno, assim como uma relao de

    consequncia entre a opinio de Bushnell sobre a rdio e os seus efeitos nos carrascos. O

    efeito produzido pela articulao entre as sequncias ilustra igualmente a vertente

    pedaggica do filme de Peck: a passagem de um espao para o outro quase sempre

    altamente significativa, a resposta a uma pergunta de uma personagem num lugar encontra-

    se noutro lugar na sequncia seguinte. Desta maneira, o espectador tem de estar sempre

    atento aos efeitos de montagem, pois s perceber o propsito do filme, assim como a

    opinio de Peck sobre os acontecimentos, se conseguir desvendar e analisar o tipo de

    ligao e a motivao por trs da montagem paralela. O filme de Peck movimenta-se assim

    permanentemente entre os nveis de verdade, passando de um espao ao outro, um

    correspondendo ao passado (tempo do enigma e da dor em 1994) e o outro ao presente

    (tempo da resposta e de uma certa desopresso em 2004).

    Esta circulao complexa de significaes no hesita em confrontar-se com questes

    mais sensveis, como a da actuao de vrios ministros do culto catlico durante o

    genocdio. Ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, que tinham tendncia para produzir

    uma Igreja isenta de compromisso com os genocidirios, Sometimes in April, mais fiel a

    este respeito ao que aconteceu no terreno, evidencia o papel desempenhado por membros

    locais do clero que actuaram pelo menos como cmplices dos assassinos. Uma sequncia

    reveladora deste propsito de Peck: a da violao e do suicdio de Jeanne. Situa-se perto do

    fim do filme e narrada em voz off por Honor, a partir da priso onde Augustin o visitou.

    Jeanne fora violada juntamente com outras mulheres na sacristia da igreja da Sainte-Famille

    e os soldados anunciam que vo mat-las. Como noutras sequncias, o significado desta

    ganha igualmente com os pormenores que se escondem nos planos. So muitos os

    elementos que remetem para a presena da Igreja Catlica no Ruanda: crucifixo, gravura

    representando Cristo, fotografia de um eclesistico branco, fotografia de Joo Paulo II

    (provavelmente durante a sua viagem ao Ruanda) e, por fim, o prprio padre que pede a

    Jeanne para no atirar a granada e desaparece na escurido com as mos postas em orao.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    26

    Em suma, Sometimes in April distingue-se dos filmes do primeiro grupo no s pela

    complexidade de uma estrutura narrativa adaptada complexidade da realidade

    representada, pela apresentao de uma multiplicidade de pontos de vista ou nveis de

    verdade, ou pela espessura humana que d s suas personagens, mas sobretudo pela

    vontade bvia de interpelar o espectador, de lhe mostrar que os annimos tambm tinham

    rosto. Uma curta sequncia de execuo oferece uma ilustrao paradigmtica desta

    vontade de transformar as vtimas em personagens. Comea com um panormico lento que

    mostra parte da igreja e um pedao de cu azul antes de descer ao nvel dos troncos de um

    bananal. No fundo do plano, vem-se futuras vtimas levadas por soldados para junto de

    outras j ajoelhadas. O plano seguinte apresenta as vtimas em plano aproximado do peito,

    que aparecem e desaparecem medida que o travelling as apaga, sendo o pano de fundo

    constitudo por soldados das foras armadas ruandesas que as vo fuzilar. Contudo, alm da

    tristeza que dimana da cena tristeza realada por um requiem em off , a sequncia no s

    procura suscitar o temor e a compaixo junto do destinatrio, mas sobretudo interpel-lo

    com recurso ao olhar-cmara. Vrias vtimas seguem com o olhar o movimento lateral do

    aparelho, mas o choque para o espectador acontece quando o travelling pra em frente de

    uma jovem cabisbaixa. Esta levanta a cabea e mergulha o olhar na objectiva e, atravs

    desta, no prprio olhar do espectador/destinatrio. Do ponto de vista tcnico, este plano

    corresponde letra definio do olhar-cmara:

    Pour obtenir un regard la camra, il faut que lacteur regarde lobjectif sans quun acteur ou un objet, qui pourrait tre tenu pour le destinataire de ce regard, sinterpose entre les deux. Il faut aussi que lacteur soit assez prs de la camra pour qu limage, on puisse juger de la direction de son regard. Il faut donc que lacteur soit film en gros plan, tout le moins en plan amricain, dans la position la plus frontale possible (Vernet, 1988: 11).

    esta a figura com a qual nos defrontamos aqui: a jovem annima fixa, quase no

    sentido fotogrfico, petrifica, semelhana de Medusa, quem recebe o seu olhar,

    transformando assim o espectador em alvo. Se os filmes do primeiro grupo reproduziam

    nos seus efeitos o duplo movimento aristotlico (temor-compaixo/catarse) que permite ao

    espectador sofrer sem envolvimento, Sometimes in April causa nesta sequncia um

    sentimento de compaixo mas anula o efeito catrtico, pois este nico olhar no s impede

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    27

    a sensao de prazer decorrente da catarse como anula a iluso referencial. Caracterstica

    essencial do olhar-cmara, a abolio da iluso (Journot, 2005) torna desconfortvel a

    posio do espectador: compelido a encarar o filme no s como obra de arte com a sua

    esttica, com as suas figuras de retrica (das quais o olhar-cmara faz parte), mas tambm

    como testemunha do inefvel: a morte em massa de desconhecidos. De facto, o filme

    remete a execuo para o fora de campo na sequncia seguinte (rajadas em off). Por

    conseguinte, o essencial no evidenciar uma morte por si indescritvel Peck conhece a

    utilizao repetitiva de cenas de execues em filmes sobre o genocdio , mas colocar

    frente a frente vtima e espectador, sem intermedirio. No espanta, neste contexto, que a

    sequncia no tenha comentrios nem dilogo; o receptor deste olhar tem de o aceitar pelo

    que este realmente: um olhar especular (o da jovem reflectindo-se no meu) para uma

    morte anunciada.

    Como se v, em Sometimes in April, ainda que haja espao para um certo grau de

    esperana, no h lugar para um final feliz, como acontece por exemplo em Hotel Ruanda

    (Stanley, 2005). O genocdio surge como um desmoronamento completo da humanidade do

    Homem, como um espelho da responsabilidade original do colonialismo e, nas suas

    representaes, como uma tragdia no sentido clssico, ou seja, como um texto onde

    pairam a morte e as culpas (do colonizador belga, dos sucessivos governos ps-coloniais,

    da ONU, etc.).

    No outro filme do segundo grupo, La nuit de la vrit (2004), Fanta Regina Nacro

    reivindica justamente a influncia da tragdia na construo das suas personagens (Sotinel,

    2005b). Uma descrio rpida do contedo evidencia a estrutura trgica do filme.

    Num pas africano imaginrio, para pr fim a uma guerra civil entre os Nayaks, etnia

    do Presidente Miossoune, e os Bonands, etnia do Coronel Tho, organiza-se uma festa de

    reconciliao em casa deste ltimo, mas a tenso forte entre os soldados dos dois grupos.

    No entanto, o Presidente e o Coronel esto dispostos a construir a paz entre os grupos.

    Percebe-se rapidamente que Tho est atormentado por um crime que cometeu durante a

    guerra e que Edna, a mulher do Presidente, est atormentada pelo assassnio de Michel, o

    seu filho. Num determinado momento da festa, Tho revela mulher do Presidente que

    ele o assassino de Michel e, como razo principal para o seu acto, diz que se deixara

    submergir pelo gosto de matar. Pede ento o perdo da mulher para poder continuar a viver.

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    28

    Esta tinha entretanto preparado uma ratoeira com a ajuda de um oficial do exrcito (o

    verdadeiro pai da criana): alguns homens apoderam-se de Tho e assam-no at morrer.

    Quando se descobre a morte de Tho, a tenso volta entre os grupos. O Presidente mata a

    tiro a mulher e impede assim um reatar da guerra. No fim, um ex-soldado louco conversa

    com o esprito de Tho e anuncia os progressos da reconciliao e da paz no pas. Durante o

    genrico final, uma professora dita a uma turma de midos um texto do coronel Tho sobre

    a necessidade da unidade.

    A aco desenrola-se quase na sua totalidade no recinto fechado da casa do Coronel e

    em pouco mais de 12 horas, respeitando desta maneira a unidade de lugar e de tempo

    caracterstica da tragdia clssica. A noo de culpa, to presente nas tragdias gregas ou

    shakespearianas, tambm se encontra no filme de Nacro (sobre a influncia do dramaturgo

    ingls, ver Allardice, 2005). Percebe-se desde o incio que Tho cometeu algo terrvel no

    passado, que no s determina o seu desejo de parar a loucura da guerra, como tambm

    explica o desejo de vingana por parte de Edna. Ou seja, antes do encontro entre os ex-

    inimigos, decises e aces anteriores determinam o destino das personagens ali agregadas.

    O espao cerrado da aco aumenta igualmente o risco de confronto entre os homens dos

    dois exrcitos, mas tambm o risco de cruzamento entre destinos que, embora diversos,

    convergem por causa de uma desgraa comum (Tho/Edna, por exemplo). Neste contexto,

    entende-se a razo pela qual a realizadora foca as suas atenes nos seres humanos e no na

    paisagem. Na escala de planos, La nuit de la vrit oscila, em grande parte, entre plano

    mdio e grande plano, ou seja, cola-se s personagens, aos seus gestos, s suas reaces

    Ao contrrio de muitos filmes ocidentais produzidos sobre o continente africano, no

    existem, no filme de Nacro, planos de grande conjunto revelando um horizonte extico (um

    pr-do-sol, por exemplo). Se em Un dimanche Kigali Valcourt perguntava como tanto

    dio podia coexistir no meio de tanta beleza natural, as personagens principais de La nuit

    de la vrit s se preocupam com a possibilidade da paz. Por outras palavras, a paisagem

    relegada para o fora de campo e nunca chega a actualizar-se no campo.

    O tema que interessa realizadora, o da paz entre antigos inimigos, no precisa de

    uma natureza indiferente aos assuntos humanos. S intervm quando processada e

    transformada numa comida, encarada como elemento essencial de uma cultura. Da talvez a

    presena em vrias sequncias de pratos cozinhados, especialidades de um ou de outro

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    29

    grupo. Uma em particular ganha especial relevo: o coronel Tho e o presidente Miossoune,

    assim como as suas esposas respectivas, filmados em plano americano, convidam o antigo

    inimigo a partilhar a comida do outro. Apesar das relutncias recprocas, acabam por

    provar a cultura do ex-inimigo e assim dar um passo na sua direco. O alimento aparece,

    desta maneira, como metfora da cultura de cada um e o acto de provar a comida do

    estranho (e do estrangeiro) como smbolo da abertura diferena. Entende-se assim o

    comentrio no fora de plano de Soumari, mulher do coronel: As nossas cozinhas so

    diferentes, mas retiramos os produtos da mesma natureza. Alm disso, o enfoque numa

    comida preparada das mais diversas maneiras (grelhados, cozidos) aponta igualmente

    para a cena da execuo do coronel, a ltima refeio, derradeiro teste reconciliao,

    onde haver a mesma reciprocidade verificada na sequncia da refeio: Edna tira uma vida

    Bonand (Tho), acto destabilizador, mas Mioussone tira uma vida Nayak (a prpria

    mulher), restabelecendo o equilbrio.

    Percebe-se ento por que razo Nacro no contextualizou o seu filme, no o radicou

    num pas existente. Atrs dos Nayaks e dos Bonands, o receptor poder, em funo da sua

    experincia, encontrar aluses ao Ruanda, Costa de Marfim, Serra Leoa, ao Congo ou

    ainda ex-Jugoslvia ( de facto neste ltimo conflito que Nacro pensava quando escreveu

    o guio do seu filme). Como Peck, e ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, Nacro

    coloca a pergunta que levanta qualquer guerra civil: como conviver com o inimigo? Como

    partilhar o mesmo espao de vida? Como gerir o desejo compreensvel de vingana por

    parte dos sobreviventes? Com a inveno das duas etnias, Nacro ampliou e universalizou o

    propsito, mas as solues que prope no seu filme passam todas por uma inevitvel

    abertura s diferenas culturais. Tal como Sometimes in April, La nuit de la vrit no

    idealiza o processo de reconciliao, mostra que este passa, de facto, por fases de

    sofrimento e de regresso, mas encara-o como inevitvel em sociedades onde carrascos e

    sobreviventes tm de conviver no seu dia-a-dia (como o caso no Ruanda).

    Concluso

    Um dos pressupostos do presente ensaio radicava na centralidade da representao flmica

    como reveladora de tendncias sociais profundas, mas tambm como modo preferencial de

    acesso a uma realidade muitas vezes inacessvel. Seria errneo ver uma relao de

  • O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao

    30

    continuidade entre estes dois nveis; eles so antes concomitantes, j que cada segmento do

    filme manifesta ao mesmo tempo um e outro. A principal consequncia desta duplicidade,

    to fundadora como fundamental, reside na especificidade da anlise flmica: tem de incidir

    ao mesmo tempo sobre o contedo e a forma, o que significa que a decomposio crtica de

    uma sequncia em planos, a descrio das figuras narrativas utilizadas, etc., se reveladora

    de um estilo, pode muito bem constituir um exerccio vo, se no for articulada com uma

    anlise de contedo. Shooting dogs, por exemplo, ganha assim outros contornos quando se

    tomam em conta ao mesmo tempo a forma de organizao das sequncias onde aparecem

    Christopher (quase sempre ocupando o centro do campo) e o lugar, ele prprio central, da

    Igreja Catlica nas origens do antagonismo Hutu/Tutsi.

    Considerado desta maneira, o filme deixa de ser mero objecto de divertimento ou de

    prazer esttico para se tornar uma espcie de texto que, semelhana do texto literrio, tem

    de ser acompanhado e comentado, para revelar a espessura dos seus significados. Como

    qualquer outro discurso, portador/veculo de ideologia, dominante ou no, possuindo

    como poucos um amplo poder amplificador. A anlise flmica tem, portanto, como tarefa

    revelar e expor este contedo ideolgico para ajudar o receptor a desenvolver a sua

    capacidade de desconfiana.

    O meu trabalho hermenutico tentou assim demonstrar como todos os filmes do

    primeiro grupo recebem e propagam simultaneamente a ideologia africanista, ou seja, um

    sistema explicativo holstico que pretende entender todo o continente com base num

    nmero reduzido de clichs e representaes, repetidas, retomadas e raramente

    questionadas. Atravs dos filmes do segundo grupo tentei evidenciar precisamente a

    possibilidade e as especificidades de um discurso diferente, oriundo do Sul, contra-

    hegemnico e, de certo modo, emancipador. Revelar a existncia de outras vozes, aqui

    radica sem dvida um dos papis fundamentais do crtico.

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