Jean Starobinski - A palavra civilização

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JHAN STAROBINSKI As mascaras da civilizacao Ensaios Tradupio Maria Lucia Machado COM PA NH IA D AS L ET RA S

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JHAN STAROBINSKI

As mascaras da

civilizacaoEnsaios

Tradupio

Maria Lucia Machado

COMPANHIA DAS LETRAS

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1. A pala vr a "civilizacao"

Asprincipais referencias da hist6ria sobre a palavra civilizacao

I 'Lh} hoje conhecidas com uma aproximacao satisfat6ria.'

Em frances, civil (seculo XIII), civilidade (seculo XIV) justifi-

uun-se facilmente por seus antecedentes latinos. Civilizar e ates-

Indo mais tardiamente. Ele e encontrado no seculo XV I em duas

ucepcoes :

1.Levar it civilidade, tornar civis e brandos os costumes e asmanei-

ras dos individuos.

Montaigne: "Os do reino do Mexico eram absolutamente mais

civilizados e mars engenhosos do que asoutras nacoes da Arnerica"

2.Em jurisprudencia: tornar civil uma causa criminal.'

Esta ultima acepcao sobrevivera pelo menos ate 0fim do secu-

1 0 XVlII (Littre a assinala como utilizada "outrora"), E elaque forne-

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ce a base do substantivo civilizacao, que 0 Dicionario universal

(Trevoux) de 1743 define do seguinte modo: "Termo de jurispru-

dencia. E urn ato dejustica, urn julgamento que torna civil urn pro-

cesso criminal. A civtlizacao sefazconvertendo as inforrnacoes em

investigacoes, ou de outra maneira" Urn esforco par nadai Menos

do que se suporia. A formacao neologica do significante e urnmomento importante. 0 aparecimento urn pouco mais tardio da

mesma palavra, no sentido moderno do termo, constituira menos

urn neologismo lexical do que a entrada em cena de urn significa-

do concorrente, logo triunfante. A acepcao juridica de civilizacao

tera desaparecido do Di c ionar io daAcadem ia de 1798.3

o primeiro dicionario que assinala a palavra civilizacao em

seu sentido "moderno" eo Di c ionar io un iv e rs a l (Trevoux) de 1771.

Transcrevo 0verbete:

(Cada Cidadao da Europa esta hoje empenhado nesse ultimo com-

bate de civilizacao, Civilizacao dos costumes.)

Como observa J . Moras, a palavra civilizacao conheceu tal

irnpulso durante 0 periodo revolucionario que era facil atribuir ao

cspirito da Revolucao urn neologismo que the era anterior.' Masnao deixa de ser verdade que a palavra civilizacao podia ser tanto

mais facilmente adotada e difundida quanta a periodo revolucio-

nario, segundo M. Frey, viu formarem-se inumeros substantivos

em -a~aoa partir de verbos em -izar: centralizacao, democratiza-

cao, federalizacao, afrancesamento," fraternizacao, municipaliza-

cao, nacionalizacao, panteonizacao, utilizacao ...6 E civilizacao

impoe-se tanto que Sebastien Mercier, em 1801, nao a considera

mais como urn neologisrno.' A palavra, entao, com muita rapidez

deixou de aparecer como nova.[1) Termo de jurisprudencia [Segue-se a definicao de 1743].

[2] 0 amig? dos homens' empregou essapalavra por sociabilida-

de. Vede essa palavra. A religiao e incontestavelmente 0primeiro e 0

mais util freio dahumanidade; eo primeiro move! da civilizacao, Ela

nos adverte enos lembra continuamente a confraternidade, abran-

da nosso coracao,

I I

Essa palavra, que esteve em uso apenas na pratica, para dizer que

uma causa criminal e torn ada civil, e empregada para exprirnir a

acao de civilizar ou a tendencia de urn povo a polir ou, antes, a cor-

rigir seus costumes e seus usos produzindo na sociedade civil uma

moralidade luminosa, ativa, afetuosa e abundante em boas obras.

Nada, nesse momento, parece invalidar 0 que J . Moras e de-

pais E. Benveniste avancavarn: em 1756, Mirabeau, em L 'A mi d es

hommes (pp. 136, 176,237), e 0primeiro na Franca a utilizar civili-

zafClo no sentido nao juridico que devia rapidamente fazer carrei-

ra. B Littre, que atribui essa paternidade a Turgot, que teria criado a

palavra em urn fragmento de seu Di scour s sur l 'h is to ir e un iv e rs e ll e

em 1751, deixou-se prender na armadilha de Dupont deNemours,

comentador e editor muito livre das Obrasde Turgot (1811).9

Os autores de Trevoux nao escolheram s~u exemplo ao acaso.

Ai encontravam urn argurnento oportuno para sua luta contra a

Em 1798, 0 Dicionario da Academ ia , 5' edicao, sera mais pre-

ciso: "Ac;:aode civilizar au estado do que e civilizado" Mas, ja em1795, encontrava-se em 1.Snetlage ( No vo d ic io na rio fr an ce s c on -

t en do n ov as criacoes do povo f ran c es , Gottingen, 1795):

* No original,francisation. (N. T.)

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filosofia das Luzes e contra os Enciclopedistas. A religiao, longe de

ser excluida pelas "virtudes sociais" ou pela "moral natural", e con-

siderada por Mirabeau como 0"principal m6vel" da civi l i zacao, ela

mesma assimilada a sociabilidade, A palavra CIVlLIZAt;:J . .O aparece

portanto, por ocasiao de urn elogio da religiao, ao mesmo tempo

como poder de repressao ("freio"), de reuniao fraterna ("confra-ternidade") e de abrandamento.

Diderot, par volta de 1775, redige para a H istoire des deux

Indes, do abade Raynal, consideracoes sabre a Russia em que a pala-

vra civilizacao reaparece varias vezes: "A emancipacao, ou 0 que e a

mesma coisa sob urn outro nome, e uma obra demorada e diftcil'."

Corneca-se a adivinhar que, em uma data posterior, a civiliza-

cao podera tornar-se urn substituto laicizado da religiao, uma

parusia da razao.

III

rnateriais, morais - da civilizacao. Entre essas analises, uma das

mais importantes continua a ser a de Guizot (1828):

Dois fatos estao compreendidos nesse grande fato; ele subsis-

tc em duas condicoes e se revela por dais sintomas: 0 desenvolvi-

menta da atividade social e 0 da atividade individual, 0 progresso

da sociedade e 0 progresso da humanidade. Por toda parte onde a

condicao exterior do homem se amplia, se vivifica, se aperfeicoa,

por toda parte onde a natureza intima do homem se mostra com

brilho, com grandeza; por esses dois sinais, e muitas vezes a despei-

to da profunda imperfeicao do estado social, 0 genero humano

aplaude e proclama a civilizacao."

A palavra civilizaciio, que designa urn processo, sobrevern na

historia das ideias ao mesmo tern po que a acepcao moderna de pro-

gresso. Civilizacao e progresso sao termos destin ados a manter as

mais estreitas relacoes, Mas esses termos, embora possam ser

empregados de maneira global e vaga, nao tardam a exigir uma

reflexao genetica, preocupada em distinguir os momentos sucessi-

vos: importa determinar com precisao as etapas do processo civili-

zador, os estagios do progress 0das sociedades.A hist6ria , a reflexao

de historiador, conjeturais ou empiricas, poem maos a obra para

chegar a urn "quadro dos progressos do espirito humano", a uma

representacao da marcha da civilizacao por meio de diversos esta-

dos de aperfeicoarnento sucessivos.

Benveniste dizia excelentemente:

A palavra civi l i zacao pede ser adotada tanto mais rapidamen-

te quanta constituia urn vocabulo sintetico para urn conceito pree-

xistente, formulado anteriormente de maneira multipla e variada:

abrandamento dos costumes, educacao dos espiritos, desenvolvi-

mento da polidez, cuItura das artes e das ciencias, crescimento do

comercio e da industria, aquisicao das comadidades materiais edoluxo. Para os individuos, as povos, a humanidade inteira, ela desig-

na em primeiro lugar 0 processo que faz deles civilizados (termo

preexistente), e depois 0 resultado cumulativo desse processo. E

urn conceito unificador.

Nao sera surpresa que, depois de se haver im posto por sua vir-

tude de sintese, esse termo tenha sido imediatamente objeto de

reflexoes analiticas: desde 0 fim do seculo XVllI, inumeros escritos

se esforcarao em discriminar as condicoes e os constituintes-

Da barbarie original a condicao presente do hornern em sociedade,

descobria-se uma gradacao universal, urn lento processo de educa-

cao e dedepuracao, em suma, urn progresso constante na ordern do

que a civilidade, termo estatico, ja nao bastava para exprimir e,que

era preciso chamar de civilizacao para definir-lhe simultaneamente

o sentido e a continuidade. Nao era apenas uma visao histories da

sociedade; era tambern uma interpretacao otimista e decididamen-

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te nao teologica de sua evolucao que seafirmava, por vezes mesmo a

revelia daqueles que a proclamavarn."

nIHISSt'aU,oprocesso da civilizacao nao e sustentado por urn de-

III~nj() conscierite e constante, constroi-se por meio das conse-

'IUt\ncias imprevistas dos conflitos, dos trabalhos, das inovacoes

pontuais, corn 0concurso de "circunstancias" que oshomens domi-

nu m apenas imperfeitamente. 0 que ocorreu na historia, diz Fer-

j(lIson, e "0 resultado, seguramente, da acao humana, mas nao a

exccucao de urn designio humano qualquer","

Ferguson, influenciado pelas aulas dadas em 1752 par Adam

Smith, parece ter sido 0 primeiro na Inglaterra a empregar a pala-

vra civilizacao; e tambem quem expos mais daramente a teoria dos

quatro estagios de organizacao das sociedades humanas, em fun-

y a O de sua atividade econornica e de seus modos de subsistencia:

selvagens (vivendo de coleta e de caca), pastores nomades, agricuI-

tores sedentarizados, nacoes industriais e comerciantes. Millar

seguira seu exernplo." Rousseau, Goguet, sem recorrer a palavra

civilizadio, propoem urn mesmo modelo evolutivo, que lhes per-

mite estabelecer correlacoes entre modo de subsistencia e estrutu-

ra do poder. Diderot, como seviu, encara a historia da civilizacao

como a historia da Iiberdade ern marcha. Mais tarde, como sesabe,

Condorcet distinguira nove epocas a partir da origem das primei-

ras tribos ate a Republica francesa, reservando a decima epoca aos

"progressos futuros do espirito human 0".Cornte, mais tarde ainda,

formulara sua "lei dos tres estados'."

o importante nao e lembrar as diferentes teorias au filosofias

da historia, mas sublinhar 0 fato de que, ao charnar civilizacao 0

processo fundamental dahistoria, eao designar com amesma pala-

vra 0 estado final resultante desse processo, coloca-se urn termo

que contrasta demaneira antinornica com urn estado supostamen-

te primeiro (natureza, selvageria, barbaric). Isso incita 0 espirito a

imaginar os caminhos, as causas, os mecanismos do percurso efe-

tuado aolongo das eras. 0 sufixo de acao em - a r a o obriga a pensar

urn agente: este pode confundir-se com a propria acao, que se

torna, assim, autonorna; pode remeter a urn fator determinante

(Mirabeau diz: a religiao: Rousseau diz: a perfectibilidade; outros

dirac: asLuzes), pode tarnbern se pluralizar, serepartir ern fatores

multi pIas, escalcnados na duracao; para Ferguson, com0alias para

IV

E a civilizacao urn processo coletivo ininterrupta, com 0 qual

a humanidade inteira seteria comprometido desde assuas arigens?

Consist iria sua (mica variacao apenas em seguir,um ritmo oralento, ora rap ida, segundo oslugares e asepocasi Aoler a producao

abundante do marques de Mirabeau, nao se consegue fixar urn

emprego univoco dotermo. Ern L'Ami deshommes (1756-7, p. 176),

ele da a entender que a civilizacao, nao sendo urn pracesso univer-

sal e linear, constitui apenas uma curta fase de apogeu na vida dos

povos: evoca "0 c i rcu lo na tural da barbaric a decadencia pela civili-

zacao e pela riqueza" A historia comportaria cidos, dos quais cer-

tas nacoes teriam percorrido todas as etapas, deixando grandes

exemplos.No mesmo sentido, dirigindo-se ao rei no comeco desua

Theotie de l'imp6t (1760, p.99), a marques de Mirabeau invoca "0

exemplo de todos as irnperios que antecederam a vosso e que per-

correram 0 c ir cu lo da c i vi li za iao". . ..

Ao contrario, Mirabeau nao se priva de empregar a palavra

civilizacao para designar, nao mais urn processo, mas urn estado de

cultura e de equipamenta material: "As riquezas mobiliarias de

uma nacao dependem [.. .J nao apenas desua civilizacao, mas tam-

bern da de seus vizinhos" (Ephemerides du citoyen, 1767, v, p. 112).

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Como se ve, desde os escritos de seu primeiro uti lizador, a

palavra civilizacao e suscetivel de receber uma acepcao pluralizada.

Se design a urn processo, este se produziu por diversas vezes no

curso das eras, para dar lugar, a cada vez,a uma decadencia inelu-

tavel. Sedesigna urn estado mais ou menos estavel, ele pode diferir

de uma nacao a outra. Existem as civilizacoes,

Sem duvida, a hist6ria antiga e aqui, tacitamente, provedora

demodelos. Roma eurn grande exemplo deimperio que percorreu

"0 circulo da civilizacao" Por meio de Her6doto ou por meio de

Polibio, Plutarco, Tacite, Amiano Marcelino, aprendemos a com-

parar gregos e persas, gregos e romanos, romanos ebarbaros,

Percebe-se, de saida, que 0 sentido da palavra podera bifurcar

em uma acepcao pluralista, etnologica, re1ativista, enquanto con-

serva, a titulo mais geral, algumas implicacoes que fazem dele urn

imperativo unitario, e que atribuem urn sentido unico a "rnarcha"

do genero humano inteiro.

civilizacao, e na ausencia do qual todo 0c6digo das boas maneiras,

toda a soma do saber nao passam de mascara:

Admiro a esserespeito 0quanta nossas ideias de investigacoes falsas

em todos os pontos 0 sao sobre 0 que consideramos como sendo a

civilizacao. Seperguntasse a maioria no que consiste a civilizacao, a

resposta seria: a civilizacao de urn povo e 0 abrandamento de seus

costumes, a urbanidade, a polidez e os conhecimentos difundidos

de maneira que as conveniencias ai sejarn observadas e facam as

vezes de leisde detalhe; tudo isso nao me representa senao a masca-

ra da virtudee nao sua face, ea civilizacao nao faz nada pelasocieda-

de se nao lhe da 0 fundo e a forma da vir tude: foi do seio das socie-

dades abrandadas portodos osingredientes que seacabade citar que

nasceu a corrupcao da humanidade."

v

Considera-se entao que a palavra civilizacao, tao logo escrita,

pode constituir 0 objeto de urn mal-entendido. Urn outro texto de

Mirabeau fala de "falsa civil izacao":" em outra parte ainda, ele

chega a anular a oposicao entre barbara e civilizado, ao denunciar

"a barbaric de nossas civil izacoes" ." - Examinemos por urn ins-

tante este ultimo exemplo: 0 valor dinamico do sufixo de acao

( -ac; ii o) desapareceu; a palavra designa nao mais urn devir, mas urn

estado, e urn estado que nao merece seunome. 0 plural da a enten-

der que as diferentes nacoes da Europa contemporanea tern cadauma sua civilizacao propria, mas que, em vez de abolir a violencia

das sociedades "primitivas", Ihes perpetua a brutalidade sob apa-

rencias enganadoras. Em lugar de uma barbaric de face descober-

ta, as civilizacoes conternporaneas exercem uma violencia dissi-

mulada.

Como seve, a palavra civilizacao, em seu "inventor" frances,

nao e de maneira alguma urn termo univoco. 0 conceito, em sua

forma mesma, e inovador, mas nao e considerado a primeira vista

Antes que seforme ese difunda a palavra civi l i zacao, toda uma

critica do luxo, do refinamento das maneiras, da polidez hip6crita,

da corrupcao provocada pela cultura das artes edas ciencias estajainstalada. E de Montaigne a Rousseau, passando por La Hontan e

rnuitos outros viajantes do Novo Mundo, a comparacao entre 0

civilizado e0selvagem (aindaque canibal) nao acaba em vantagem

do civilizado. Dai, no marques de Mirabeau, a preocupacao dedis-

tinguir verdadeira e falsa civilizacao, ora na ordem dos fatos consi-

derados, ora na ordem dos valoresatribuidos aotermo. No manus-

crito intitulado L 'Am i d es f emm es , ou Traite de l a c i vi li sa t ion (data

provavel: 1768),Mirabeau insiste no criterio moral que autentica a

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como incornpativel com a autoridade espiritual tradicional (a reli-

giao); ao contrario, dela pro cede; designa um processo de aperfei-

coarnento das relacoes sociais, dos recursos materiais e, a esse ti tu-

lo, enuncia urn "valor", determina 0 que se chamara urn "ideal",

conjuga-se com 0 imperative de virtude e de razao. Mas, sob a

mesma pena, reveste uma funcao puramente descritiva e neutra:

designa 0 conjunto das instituicoes e das tecnicas que os grandes

imperios possuiram no momenta de seu apogeu, e que perderam

por ocasiao de sua decadencia. Admite-se que diversas sociedades

tenham podido diferir em sua estrutura, sem por isso desmerecer

o conceito geral de civilizacao, Enfim, 0 termo aplica-se a realidade

conternporanea com tudo que ela comportade irregularidades ede

iniusticas. Nessa ultima acepcao, a civilizacao e 0 alvo visado pela

reflexao critica, ao passo que na primeira acepcao evocada seu

carater ideal fazia dela urn conceito normativo que permite discri-

minar e julgar os nao-civilizados, os barbaros, os menos civiliza-

dos. A critica se exerce, entao, em duas direcoes: critica dirigida

contra a civilizacao: crit ica formulada em nome da civilizacao.

~. so ser habitante das cidades, seja para se gabar de uma civilidade

su pcrior.seia paralamentar, em versos melodiosos e supremamen-

Il'cstudados, a felicidade pastoral, a tranquil idade arcadica.

As maneiras do carnpones (vi l lanus) sao vilania em compara-

~'l\()com os usos da corte (cortesia).

o descredito do mundo rural e ainda abertamente legivel nasdcfinicoes que os dicionarios da epoca classica dao da civil idade:

Puretiere, Dicionario (1694):

Civilidade: rnaneira honesta, suave e polida de agir, de conviver.

Deve-se tratar todo mundo com civilidade. Ensina-se ascriancas a

civilidade infantil. Apenas os camponeses, as pessoas grosseiras,

carecem de civilidade.

Civilizar: tornar civil e polido, tratavel e cortes. A pregacao do

Evangelho civilizou os mais selvagens povos barbaros, Os campone-

ses nao sao civilizados como osburgueses.

A epoca classica pode mesmo produzir eglogas sern renunciar

a reprovacao da grosseria rustica. Escutemos Fontenelle:

VI

[ . .. J A poesia pastoral nao tem grandes encantos, se e tao grosseira

quanta 0natural, ou seversa apenas precisamente sobre ascoisas do

campo. Ouvir falar de ovelhas e de cabras, dos cuidados que e preci-

soter com essesanimais, isso nao tem nada por simesmo que possa

agradar; 0 que agrada e a ideia de tranquilidade Iigada a vida daque-

les que cuidam das ovelhas e das cabras...

Porque a vida pastoral e a mais preguicosa de todas, e tarnbem a

mais pr6pria para servir de fundamento aessas representacoes agra-

daveis. Falta muito para que lavradores, ceifeiros, vinhateiros, caca-

dores sejam personagens tao convenientes a'Seglogas quanto ospas-

teres: nova prova de que 0atrativo da egloga nao esta ligado ascoisas

rusticas, mas aoque hi de tranquilo navida do campo."

Civi l izacao faz parte da familia de conceitos a partir dos quais

urn oposto pode ser norneado, ou que cornecam a existir, eles pro-

prios, a fim de se constituir como opostos.

"Grego" e "barbaro" sao nocoes casadas. "Sern grego, nao hi

barbaro", escreve Francois Hartog." E preciso que existam comu-

nidades dotadas da verdadeira linguagem para que outros povos

sejam considerados como "mudos", homens que nao sabem falar

(barbaros).

E preciso que existam cidades, e citadinos, para qualificar 0

rusticuse a rusticitas, em oposicao ao urbanuse a urbanitas. E e pre-

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o termo que constitui a objeto de uma valorizacao positiva-

"aprazer tranquilo" - estaligado a arte, ao artificio, ao esforco. Os

"encantos" sao 0produto do que Fontenelle chama urn "espirito

cultivado". Eles "exigem espiritos que sejam capazes de elevar-se

acima das necessidades urgentes da vida, e que se tenham polido

por urn longo habito da sociedade"," Comportam, portanto, uma

parcela de ficcao, que a essetitulo podera ser oposta desfavoravel-

mente (por outros) a verdade ou a natureza. Isso podera conduzir

a reabilitacao do termo antonimico, que vera a ele atribuido 0 con-

trario daduplicidade, isto e:a pleni tude. No final do seculo, reabili-

tar-se-a a"grosseria rustics" e sezombara dos finos encantos caros

a Fontenelle. Diderot ousara declarar: "Apoesia quer algo de enor-

me,de barbaro e de selvagern"."

Uma outra estrategia consiste em introduzir, ao lade de urn

termo de inicio altamente valorizado, depois considerado como

cumplice do desdobramento mascarado (civi l idade) , urn segundo

term a inocentado de toda suspeita, que podera vantajosamente

substituir 0 primeiro, doravante desvalorizado, Ao segundo sera

atribuido urn mais alto titulo de autenticidade. Assim ocorre com

a pol idez; de inicio quase sinonimo de civi l idade, depois preferida

pelos lexic6grafos e pelos moralistas, ate que seja por sua vez atin-

gida pela suspeita.

overbete "civilidade" do Trevoux de 1752acumula os exem-plos: eles sao contradit6rios e muitos deles estabelecem atributos

pejorativos:

11111 desejo de ser aceito, e de ser considerado polido em certas oca-

~ifJCS (La Rochefoucauld).

Acivilidade, muitas vezes,nao e mais que urn desej 0depassar por

pol ido, e urn receio de ser considerado como urn hornem selvagem

C grosseiro (M. Esprit).

o descredito relativo da civilidade torna desejavel urn outro

couceito, de melhor quilate. A sinonimia aparente, aos olhos do

espccialista, deve dar lugar a uma partilha dos valores, a atribuicao

de LImacondicao moral diferenciada. Beauzee esclarece:

Ser polido diz mais do que ser civ il. 0 homem polido e necessaria-

mente civil; mas 0 homem sirnplesmente civil nao e ainda polido: a

polidez supoe a civilidade, mas ela lhe acrescenta."

A relacao da civilidade com a polidez torna-se analoga a do

fora e do dentro, da aparencia e da realidade.

A civilidade e em relacao aos homens 0 que e 0 culto publico em

relacao a Deus, urn testemunho exterior e sensivel dos sentimentos

interiores e ocultos; nisso mesmo ela e preciosa: pois afetar exterio-

res de benevolencia e confessar que a benevolcncia deveria estar no

interior.

A polidez acrescenta a civilidade 0 que a devocao acrescenta ao

exercicio do cul to publico, asmarcas de uma humanidade mais afe-

tuosa, mais ocupada com os outros, mais requintada."

A civilidade e urn certo jargao que os homens estabeleceram para

ocultar os maus sentimentos que tern uns pelos outros (Saint-

Evremond).

A civ ilidade nao passa de urn cornercio continuo de mentiras

engenhosas para se enganar mutuamente (Flechier). A civilidade e

IS80 nao impede de manter a oposicao com osindividuos rus-

ticos e grosseiros. Uma simples defasagem terminol6gica concede-

lhes a civilidade, mas nega que sejam capazes de polidez:

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Urn hornern do povo, urn simples campones mesmo, podem ser ci -

vis: apenas urn homem do mundo pode ser polido.

A civilidade nao e demaneira alguma incompatrvel com uma rna-

educacao: a polidez, ao contrario, supoe uma educacao excelente,

pelo menos em muitos aspectos.

Acivilidade demasiado cerimoniosa e igualmente fatigante einu-

til; a afetacao a torna suspeita de falsidade, e aspessoas esdarecidas

baniram -na inteiramente, Apolidez esta isenta desse excesso; quan-

tomais se e polido, mais se e amavel.i."

didudc, 0 campo livre aos seus contraries: a malevolencia, a rnalig-

nidudc, em suma, a violencia de que, na realidade.jamais abdicou.

Assim ocorre, ao menos, sob a "tocha" da critica, treinada em de-

Nl'nlocar, por toda parte em que possa, a contradicao do ser e do

parccer, da face oeulta e da mascara vantajosa. Para ond~ que~ q~e

dirija sua inspecao, 0pensamento acusador desentoca 0 inautenti-1.'0.Assirn, no plano da substancia moral, 0 olhar exigente ve habi-

tualmente sobrevir uma inversao completa entre 0 "civilizado" eo

"selvagem" E Voltaire quem melhor exprime essa reviravolta,

quando faz seu huroniano dizer, no momento em que acaba de ser

encerrado na Bastilha: "Meus cornpatriotas da America jarnais me

tcriarn tratado com a barbaric que experimento; dela nao tern

ideia, Sao chamados de selvagens; sao h ome ns d e b er n g ro ss ei ro s, e os

homens deste pais sao pat if es r ef in a do s" ( L'in g en u , cap. x): os adje-

tivos (grossei ros , re fi nados) exprimem 0 acidente, a aparencia, saoacoplados a substantivos que definem a realidade subjacente

(h om en s d e b ern , p atifes) radicalmente diversa dos qualificativos

ilus6rios com que sefantasiaram.

Contudo, a vantagem moral da polidez, embora francamente

proclamada, nao e ela propria a toda prova. A polidez pode passar

a condicao de mascara, por sua vez: Encontra-la-ernos suspeita em

muitas ocasi6es. Beauzee prossegue:

[ . . . J Mas tambern pode acontecer, e acontece com m uita frequencia,

que essapolidez tao amavel nao seja mais que aarte deprescindirdas

outras virtudes sociais que ela afeta falsamente imitar,"

Se a civilidade e apenas a expressao exterior da polidez, se e

apenas sua imitadora artificiosa, a polidez, uma segunda vez,pode

ser percebida como uma arte enganadora, imitando virtudes

ausentes. Pode-se condenar a polidez nos mesmos termos em que

se eondenou a civilidade. La Bruyere escrevia, ja : "Apolidez nem

sempre inspira a bondade, a equidade, a cornplacencia, a gratidao:

delas apresenta ao menos as aparencias, efaz0hom em parecer, no

exterior, como deveria ser interiorrnente" ( D e l a s oc ie te , 32)...Nao

e necessario multiplicar osexemplos. 0 modelo da desqualificacao

e sempre 0mesmo: consiste em reduzir a uma fragil aparencia - a

urn simulacra - a virtude que deveria impregnar, de alto a baixo,

o individuo, 0 grupo, a sociedade inteira, Reduzidas a aparencias

superficiais, a polidez, a civilidade deixam, no interior, em profun-

VII

Poli (polido), police (policiado) sao palavras foneticamente

muito proximas, Os auto res franceses dos seculos XVII e XVllll

exploram sua similitude, tratando-as por vezes de maneira inter-

cambiavel. No entanto, raros sao aqueles que ignoram a diferenca

de suas etimologias: para uma, 0 latim polire, a acao depolir; os ter-

mos gregos pol is , pol ite ia , as palavras francesas po li ti e, po li ce (poli-

cia) para a segunda. Ora, a atracao entre elasnao e apenas fonetica,

e tarnbem semantica, Abramos 0Didonar io de Richelet (1680). 0

que e polir? Seis usos sao propostos:

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1.Limpar , Tornar mais belo, mais claro emais polido. A eq ua re , a da e-

quare. Polir urn marrnore [...J .

2. Termo de polidor, E dar mais lustro aos vidros de espelho,

toma-les mais luzentes [... J Polire.

3. Termo de cuteleiro e de amolador. Passar pelo polidor, Polir

uma navalha, Poliruma faca.

4.No sentido figurado: Civilizar, tornar mais civil, rnais galante e

mais honesto. A d u rb an it at em i nf or ma re .

5.No sentido figurado. Essa palavra e dita ao se falar de discurso

e de estilo. L im ar e, p ol it iu s o rn a re , e xc ol er e. ( Po li rum discurso. Polir

seu estilo [...] E torna-lo mais exato e mais apurado.)

6.No sentido figurado. P ol ir a si mesmo. E tornar-se mais perfeito.

ANpt' ra a superficie; tornar claro, luzente a forca de esfregar [...J .IJiz-sc particularmente das coisas duras" (Trevoux). Pouco falta

paru que, figuradamente, polir setome aclarar, no sentido da filo-

MOna das Luzes. 0 tratamento que se opoe ao granule das coisas e

dns individuos nao esta ele pr6prio isento de certa violencia, Polir

seu estilo nao e , segundo Richelet, chatier (castigar, apurar)! Issoncm sempre ocorre sem esforco: na palavra polidot, 0 mesmo

Richelet da como exemplo: "0 polidor tem dificuldades". Contudo,

u dispendio de energia, necessario para produzir 0 polido e a poli-

dez, e compensado rnuito amplamente, em sentido inverso, pela

economia que resulta do abrandamento dos costumes edasmanei-

ras, As relacoes humanas sao doravante reguladas por urn c6digo

simb6lico no qual os sinais tern valor deatos.

Por complicadas, por absorventes que possam ser as obriga-

coes da polidez, empenham os interesses dos individuos no plano

dojogo depalavras, e nao mais dabrincadeira de mao, mesmo com

orisco deque uma palavra, sentida como uma ofensa,de Iugar aurn

retorno da violencia - retorno no qual, a despeito da codificacao

que regula 0 proprio cornbate, urn dos contendores pode deixar

sua vida. Urn desrnentido e a oportunidade de urn duelo. Peio

rnenos 0 combate civilizado (lembranca da epoca em que a civili-

dade se chamava tambern cortesia) tern lugar, depois das cartesias

depraxe, "no campo dehonra". Nao e nern uma rixa nem urna bata-

lha eonfusa. Mas averdade da morte violenta vern acusar ahipocri-

sia de uma polidez que pretende que a afronta seja lavada no san-

gue. E nao faItam protestos, nos seculos XVII e XVIII, contra a

barbaric dos duelos.

Os exemplos do sentido figurado dados por, urn dicionario

do seculo XVlll (que retoma a definicao: polir e civilizar) variam,

e preciso reconhece-lo, entre a ideia da di ficuldade do polimento

e a de um resultado obtido na docura e pela docura. Preste-se

Pelaassociacao da imagem "literal" do luzente e do liso com a

ideia de perfeicao, 0 gesto manual do p ol im en to (e xp ol it io , e xo rn a-

tio) estabelece, no plano figurado, a equivalencia de polir e de civi -

lizar. Civilizar seria, tanto para os homens quanta para os objetos,

abolir todas as asperezas e as desigualdades "grosseiras", apagar

toda rudeza, suprimir tudo que poderia dar lugar ao atrito, fazer de

maneira a que os contatos sejam deslizantes esuaves. A lima, 0poli-

dor sao os instrumentos que, figuradamente, asseguram a trans-

formacao da grosseria, da rusticidade em civilidade, urbanidade,

cultura. (Nao introduzo ao acaso a palavra "cultura". Le-se no

Dicionario da Academia, 1694, no verbo polir: "Diz-se figurada-

mente de tudo que serve para cultivar, ornar, suavizar 0 espirito e

os costumes, e para tornar mais proprio aocomercio ordinario do

mundo".) Trabalho de escultor (na ordem do esmero das formas e

dos volumes), de cuteleiro (na ordem do afiamento, da fineza e do

corte), deespelheiro (na ordern da limpidez refletora). Polir, dizem

outros dicionarios, mais precisos do que Richelet sobre 0sentido

literal, e "tornar urn carpo uniforme em sua superficie, tirar-lhe

todas as irregularidades, tirar as pequenas partes que the tornam

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atericao, no caso, a serie dos agentes considerados capazes de

polir os individuos:

Nao se consegue facilmente polir as barbaros, ordena-los em uma

forma desociedade humana ecivil. Outrora ospovos do Norte eram

ferozes; 0 tempo e as letrasospoliram e tornaram instruidos. Diz-setarnbern que a Cortepule bern os homens deprovincia [...J

"Cabe a arte polir a que a natureza tern de demasiado rude." A

conversacao das damas pule bern urn jovem, torna-o mais galante e

mais delicado (Trevoux).

. ,I V "l (l 'm " , o povo rural, 0 genic espontaneo da infancia. A palavra

, , , , I r implica urn devir, uma acao progressiva, da i sua equivalencia

cu m civilizar. Falta simplesmente a polir urn substantivo de acao

(.C'l1do pol id ez o nome de uma qualidade, enao de uma acao, enao

Ifaplicando pol imento fora do sentido literal) , ao passo que civili-

"trtlll podera designar 0 processo transformador.

H ) U r e civilizar as individuos, suas maneiras, sua linguagem.

' 1 ' 1 1 1 1 to 0 sentido proprio quanta 0 sentido figurado podem condu-

» 'l r ~ ideia de ordem coletiva, de leis, de instituicoes que assegurem

..brandura do comercio humano. A passagem e feita pelo verbo

pClliciar, que diz respeito aos individuos reunidos, asnacoes:Se ha aqui urn inventario das instancias "civilizadoras" (0

tempo, as letras, a corte, a arte, a conversacao das damas), tem-se

tambem, nesse verbete, toda uma lista de candidatos it transforma-

cao polida: os barbaros, os provincianos, os jovens, em suma, anatureza "feroz" e"grosseira" antes que a arte setenha encarregado

dela para aperfeicoar, isto e , para altera-la em urn processo de sua-

vizacao, de ornamento e de educacao. A colocacao em pe de igual-

dade de tudo que e suscetivel de ser polido (epoliciado) nao deixa

de ter importancia.barbaros, selvagens, gente de provincia (a for-

tiori: camponeses), jovens (a fortiori: criancas) se apresentam

como uns tantos paradigmas substituiveis. Em cornparacao com a

perfeicao do po l ido , 0barbaro e uma especie de crianca, a crianca e

uma especie de barbaro, Para quem acentua 0 perigo da barbarie,nao sera dificil discerni-la no meio de nos, no povo das distantes

provincias, nas criancas entregues a simesmas, por toda parte onde

o polimento educativo nao pode intervir; para quem confia nos

poderes da educacao, nao sera dificil, correlativamente, considerar

os selvagens como criancas, que urn benevolo e paciente polimen-

to tornara semelhantes a nos. E sese recusa, ao contrario, a insipi-

dez e ahipocrisia das convencoes polidas, os argumentos da retori-

ca "primitivists" servirao para celebrar conjuntamente 0 "born

Fazer leis, regulamentos de pohcia para manter a tranquil idade

publica. L egi bu s i nf ormar e, i ns ti tu er e (Trevoux).

Pelaatuacao do antonimo comum (que e barbaric), a palavra

pollcia alinha-se ao lado de civilidade, polidez, civilizacao:

Policia: Leis,ordem econduta a observar para asubsistencia emanu-

tencao dos estados e das sociedades.

Politia:" Em geral, e oposta a barbaric. Os selvagens da America

nao tinham leisnem policia, quando foram descobertos (Trevoux),

Unidos por urn antonimo comum, foneticamente vizinhos,

diferentes por sua etimologia, polido e policiado podem fazer par

em urn dicionario de sinonimos, isto e , dar lugar a finas discrirni-

nacoes semanticas, Ver-se-a entao reproduzirem-se, entre polido e

policiado, as consideracoes que desempatavam os meritos respec-

tivos da civilidade e da polidez. Uma outra relacao de valores inter-

• Emlatim no original. (N. T.)

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vern: ao opor civilidade e polidez, Beauzee fazia pesar a suspeita de

inautenticidade essencialmente sobre a civi l idade; na oposicao

entre polido e policiado, a desconfianca, a imputacao do"falso",da

exterioridade ligam -se a pol ido, que nao tern a solidez institucional

de pol iciado; le-se em Beauzee:

Entre osbarbaros, asleis devem formar oscostumes: entre ospovos

policiados, os costumes aperfeicoam asleis, e algumas vezes as su-

prem; uma falsa polidez asfaz esquecer,"

Pol ido, pol ic iado

Esses dois termos, igualmente relativos aos deveres reciprocos dos

individuos na sociedade, sao sinonimos por essa ideia com urn: mas

asideias acessorias colocam entre eles uma grande diferenca.

Polido nao suporta senao sinais exteriores debenevolencia, sinais

sempre equivocos e, infelizmente, muitas vezes contraditorios com

as acces, policiado supoe leis que constatam osdeveres reciprocos da

benevolencia comum, e urn poder autorizado a manter a execucao

das leis."

Em urn outro capitulo de sua obra, Duclos (que nao emprega

ainda a palavra civi l i za~ao) subordina nitidamente a pol idez, ador-

no do comercio individual, a s virtudes sociais, que fazem prevalecer

asobrigacoes ditadas peIo interesse geral.Averdadeira polidez pode

reduzir-se, segundo ele, a outros sentimentos; por siso,nao passa de

uma arte de imitacao: e a par6dia estetu:a das exigencias eticas da

razao; em certas condicoes, a polidez torna-se superflua; 0interesse

bern compreendido e a simples humanidade a substituirao:

Ospovos rnais polidos nao sao tambern os mais virtuosos. Oscostu-

mes simples e severos sose encontram entre aqueles que a razao e a

equidade policiaram, e que ainda nao abusaram do esplrito para 0

corromper. Os povos policiados valem mais que os povos polidos.

Nao se deve [.. .]lamentar os tempos grosseiros em que 0 hornem,

unicamente atingido por seu interesse, buscava-o sempre par urn

instinto feroz em prejuizo dos outros. A grosseria e a rudeza nao

excluem nem a fraude nem 0 artificio, pois que os observamos nos

animais menos disciplinaveis,

Foi apenas policiando-se que os homens aprenderam a conciliar

seu interesse particular coI? 0 interesse comum; que compreende-

ram que, par esseacordo, cada urn tira mais dasociedade doquenela

pode por,

Os homens entao se devem consideracoes, pais que todos se

devem reconhecirnento. Devem-se reciprocamente uma polidez

digna deles, feita para seres pensantes, evariada pelos diferentes sen-

timentos que devem inspira-la. [...J

o mais infeliz efeito da polidez de praxe e de ensinar a arte de

prescindir das virtudes que ela imita. Que nos incuta na educacao a

humanidade e a beneficencia, teremos a polidez, ou entao nao tere-

mos mais necessidade dela.

Na falta de poder confiar na polidez dos individuos, tanto

menos confiavel quanta todo "refinamento" anuncia a corrupcao

pr6xima e a perda da primitiva veracidade, e preciso preferir asdis-

posicoes legais, as estruturas sociopoliticas asseguradas par uma

boa policia;e respeitadas pelos cidadaos,

Por certo, a coincidencia perfeita dos costumes e das leis cons-

tituiria a melhor garantia de felicidade e de estabilidade. Mas seos

costumes de urn povo polido ja estao corrompidos, e tempo aindade reforcar as leis que fazem dele urn povo policiado? Le-se em

Duclos esta advertencia contra os perigos que ameacarn a coesao

social, isto e, a policia:

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Senao temos aquela que seanuncia pelas gra<;:as,eremos aquela

que anuncia 0homem de bern eo cidadao, nao teremos necessida-

de de recorrer il. falsidade."

Urn termo carregado de sagrado demoniza 0 seu antonirno.A

pulavra civiiizacao, seja nao designa urn fato submetido aojulga-

mento, mas urn valorincontestavel, entra no arsenal verbal do lou-

vor ou da acusacao. Nao se trata rnais de avaliar os defeitos ou os

meritos da civilizacao, Ela propria setorna 0 criterio por excelen-

cia:julgar-se-a em nome da c iv il iz ac a o, E preciso tomar seu parti-

do, adotar sua causa. Ela se torna motivo de exaltacao para todos

aque!es que respondem ao seu apelo; ou, inversamen te, fundamen-

tauma condenacao: tudo que nao e a civilizacao, tudo que Ihe resis-

te, tudo que a ameaca, fad. figura de monstro ou de mal absoluto.

Na excitacao da eloquencia, torna-se perrnissivel redamar 0 sacri-

ficio supremo em nome da civilizacao. 0 que significa dizer que 0

service ou a defesa da civilizacao poderao, eventualmente, legiti-

mar 0 recurso a violencia, 0 anticivilizado, 0 barbaro devem ser

postos fora de condicao de prejudicar, senao podem ser educados

ou convertidos.

Citemos aqui apenas urn exemplo, ilustrativo entre todos;

refere-se a legitimidade da colonizacao,

o pensamento das Luzes, tal como se exprime no Esquisse

(1794) de Condorcet, condena a conquista colonial, e sobretudo 0

proselitismo das missoes cristas de ultramar. Os epitetos tradicio-

nalmente reservados aos barbaros ("sanguinarios", "tiranicos',

estupidos") aplicam-se aos colonizadores, aos missionaries, aque-

Ies que, no velho continente, permanecem presos asantigas "su-

persticoes" Mas uma nova tarefa aparece: educar, emancipar,

civilizar. 0 sagrado da civilizacao substitui 0 sagrado da religiao.

Entretanto, 0 texto de Condorcet mostra muito daramente que 0

objetivo ultimo permanece 0mesmo: a reabsorcao e 0 desapareci-

mento das outras culturas no seio da catolicidade das Luzestomam

o lugar da empresa mission aria que procurarareunira humanida-

de inteira sob a bandeira de Cristo.

Vale a pena, aqui, citar urn pouco longamente:

Recusando simultaneamente a natureza selvagem e a"polidez

de praxe",Duclos destaca qualidades cujo sucesso sera crescente no

espirito das elites pre-revolucionarias: humanidade, beneficencia,

civismo.

Esses valores sao precisamente aqueles que, na linguagem da

epoca revolucionaria, estarao associados a palavra civilizacao. Per-

tencerao a serie de suas conotacoes insistentes. Ao menos entre os

te6ricos do progresso, em urn Volney ou urn Condorcet. E preciso

constatar, com J . Moras, que a palavra civilizat;aoquase nunca figu-

ra nos textos de luta de Mirabeau (filho), Danton, Robespierre,

Marat, Desrnoulins, Saint-Just, que alegam mais comumente a

patria eo povo, recorrem aos grandes valores civicos -liberdade,

igualdade, virtude - e celebram osprogressos decisivos da Revo-

lucao por meio das metaforas da luz.

o que convem sublinhar muito particularmente eque, gracas

aos seus valores associados, grac;asa sua alianca com a ideia de per-

fectibilidade e de progresso, a palavra civtlizacao nao designata

apenas urn processo complexo de refinamento dos costumes, de

organizacao social, de equipamento tecnico, de aumento dos co-

nhecimentos, mas secarregara de uma aura sagrada, que a tamara

apta, ora a reforcar os valores religiosos tradicionais, ora, em uma

perspectiva inversa, a suplanta-los. A observacao que se impoe (e

que a hist6ria da palavra civilizaaio nos ajuda a form ular) e que, tao

logo uma nocao adquire uma autoridade sagrada, e, em conse-

quencia, exerce urn poder mobilizador, nao tarda a suscitar 0con-

flito entre grupos politicos ou escolas de pensamento rivais, que se

pretendem seus representantes e defensores, reivindicando, a esse

titulo, 0monop6lio de sua propagacao,

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Percorrei a historia de nossas empresas, de nossos estabelecimentos

na Africa ou na Asia, e vereis nossos monopolies de cornercio, nos-

sas traicoes, nosso desprezo sanguinario pelos homens de uma

outra cor on de uma outra crenca, ainsolencia de nossas usurpacoes,

o extravagante proselitismo ou asintrigas de nossos padres destruir

esse sentimento de respeito e de benevolencia que a superioridadede nossas luzes e asvantagens de nosso cornercio haviam de inicio

obtido,

Mas sem duvida seaproxima 0 instante em que, deixando de lhes

mostrar apenas corruptores, ou tiranos, nos tornaremos para eles

instrumentos uteis, ou generosos libertadores.

Entao os europeus, limitando-se a um comercio livre, demasiado

esclarecidos sobre seus pr6prios direitos para zombar dos de outros

povos, respeitarao essa independencia que ate aqui violaram com

tanta audacia [.. .] .A esses monges que nao levavam a esses povos

mais que vergonhosas supersticoes, eque osrevoltavam ao arneaca-

los com uma nova dominacao, ver-se-a suceder-se homens ocupa-

dos em difundir, entre essas nacoes, asverdades uteis a sua felicida-

de, em esclarece-las sobre seus interesses, assim como sobre seus

direitos. 0 zelo pela verdade e tambem uma paixao, e deve dirigir

seus esforcos para essas regioes afastadas, quando nao vir mais a sua

volta preconceitos grosseiros por combater, erros vergonhosos por

dissipar.

Esses vastos paises the oferecerao, aqui, povos numerosos, que,

para se civilizer, pareeem apenas esperar reeeber de nos os meios, e

encontrar irmaos nos europeus, para setornarem seus amigos eseus

discipulos; ali , nacoes escravizadas sob despotas infames ou con-

quistadores estupidos, e que, depois de tantos seculos, pedem liber-

tadores; alhures, tribos quase selvagens, que a dureza de seu clima

afasta das docuras de uma c i v il iz a cao aper jei coada, enquanto essa

mesma dureza repele igualmente aqueles que desejariam faze-los

conhecer-lhe as vantagens; ou hordas conquistadoras, que nao

conhecem lei a nao ser a forca, oflcio a nao ser a pilhagem. Os pro-

gressos dessas duas ultimas classes de povos serao lentos, acompa-

nhados de mais tempestades; e possivel mesmo que, reduzidos a urn

menor nurnero, a m edid a q ue se v ire m r ep el id os pe la s n ac oe s c iv il iz a-

das, ac ab em por desaparec er ou se p erder em seu seio.

[... ] Chegara entao esse momento em que0

Sol nao iluminaramais, sobre a Terra, senao hom ens livres e que s6 reconhecem como

senhor a sua razao; em que os tiranos e os escravos, ospadres e seus

estupidos ou hip6critas instrumentos existirao apenas na hist6ria e

nos teatros [... ] . ) 1 )

Condorcet retoma, mas distorcendo-a, a argumentacao que

Gibbon avancara em proveito de uma teoria mais moderada do

progresso dos costumes: segundo este ultimo, as povos barbaros da

Asia, se deviarn ainda uma vez mostrar-se superiores aos europeus,seriarn obrigados, para chegar a isso,a adotar nossa arte militar, nos-

sa industria e,consequenternente, a entrar na civilizacao ..l1 Con-

dorcet, como acabamos dever, imagina demais boa vontade a civi-

lizacao repelindo os povos selvagens e nomades, ate sua extincao

fisica au cultural: a imagem da expansao das Luzes permanece para

ele urn modelo dinamico, mesmo depois da condenacao das con-

quistas territoriais.

J e i que a civilizacao e simultanearnente urn devir e urn valor

sagrado, ja que eluz em expansao, e preciso saber onde seencontra,

nesse momenta precis 0, sua ponta avancada ou, Sese prefere a

metafora da irradiacao, em que ponto se situa seu foco. A lingua-

gem pos-revolucionaria consagrava-se a identificar os valores

sagrados da Revolucao com os da civilizacao e, em consequencia,

consagrava -se igualmente a reivindicar para a Franca, pais daRevo-

lucao, 0 privilegio de ser a vanguards (ou 0 faroI) da civilizacao,

Esse papel nacional, Condorcet ja 0 afirma. Sera, bern mais

ainda, urn tema da ret6rica napole6nica:

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Soldados! ides empreender uma conquista cujos efeitos sobre a civi-

lizacaoe 0 cornercio do mundo sao incalculaveis."

Esses dois livros dao a replica ao Progresso. 0 primeiro the diz Simi

o segundo the diz Nao.

oProgresso e 0 andar de Deus."

Pode-se seguir esse tema, simultaneamente nacional e ligado

a lembranca da Revolucao de 89, ao longo do seculo XI X inteiro. A

substituicao da religiao pela civilizacao, da Igreja pela Franca e seupovo, e claramente afirmada em toda uma serie de textos. Em 1830,

Laurent de l'Ardeche escreve:

Nobre povo da Franca, essempre eleito eamado de Deus entre todas

asnacoes; pois seteus reisnao sao mais primogenitos da Igreja [. ..J,

tu mesmo nao deixaste de ser 0 primogenito da civilizacao."

Pelo jogo das antigas oposicoes verbais, 0 contrario da civili-

zacao pode ser denorninado barbaric. E, de maneira mais geral, as

nacoes que nao sao tao diretamente identificaveis com 0 pr6prio

espirito da civilizacao nao estarao isentas - sobretudo em tempo

decrise internacional- da suspeita debarbaric, Depois davitoria

alema, em l- de marco de 1871,Hugo declara a Assembleia Nacio-

nal sediada em Bordeaux:

o povo frances foi 0missionario da civilizacao na Europa."

E enquanto a nacao vitoriosa, a Alemanha, baixara a fronte sob seu

pesado capacete de horda escrava, ela,a vencida sublime, a Franca,

tera sobre sua cabeca a coroa do povo soberano.

E a civilizacao, recolocada frente a frente com a barbaric, buscara

seu caminho entre essas duas nacoes, das quais uma foi a luz da

Europa e a outra sera a noite.

[.. .] Senhores, em Estrasburgo ha duas esta tuas, Gutenberg e

Kleber. Poisbern,sentimos em nos uma voz que seeleva e que jura a

Gutenberg nao deixar sufocar a civilizacao e que jura a Kleber nao

deixar sufocar a Republica."

Em 1831,Michelet reivindica para a Franca "0pontificado da

civilizacao nova"," Hugo, mais do que qualquer outro, trabalha em

sacralizar a palavra civilizacao, enquanto atribui a Franca 0 papel

sacerdotal supremo:

E a mais completa expressao desse monop6lio nacional da

civilizacao, epifania do sagrado da Era Moderna, sera lida em urn

dos discursos de Hugo posteriores ao ex:ilio:

Pode-se dizer que em nosso seculo ha duas escolas. Essas duas esco-

las condensam e resumem as duas correntes contrarias que carre-

gam acivilizacao emsentido inverse, uma para 0 futuro, aoutra para

o passado; a primeira das duas escolas se chama Paris, a outra se

chama Roma.

Cada uma dessas duas escolas tern seu livre; 0 livro de Paris e a

Declaracao dos Direitos do Hornern; 0 livro de Roma e 0 Syllabus.

Esse emprego - frances, republicano, carregado de intensi-

dade sagrada - da palavra civilizacao prosseguira no seculo XX

diante do adversario alernao," ate encontrar, no hitlerisrno, uma

barbarie capaz de constituir incontestavelrnente seu ant6nimo

encarnado.

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VIII Essa inversao dos termos esta carregada de consequencias. 0

sugrado da civilizacao e designado como urn sagrado ameacado. E

it ameas:a e sentida como urn perigo interior. A barbarie reside no

igualitarismo preconizado pelos demagogos, ou na revolt ada "mul-

udao grosseira". Em suma, 0mundo "selvagern" ji nao esta situado

no exterior, em urn distante litoral ou em urn profundo passado;

csta dissimulado ali mesmo e apenas espera irromper do fundo

tenebroso da sociedade: 0 argumento sera retomado por Mallet

du Pan:

Nada surpreendera menos do que constatar, diante da apro-

priacao pos-revolucionaria da palavra civilizacao e de seu sagrado,

uma apropriacao inversa da parte dos adversarios da Revolucao,

Seu exemplo e dado, desde 0 fim de 1790, por Edmund Burke, para

quem a civilizacao se confunde com os valores tradicionais da reli-

giao e da cavalaria - precisamente aqueles que 0 pensamento

revolucionario reprovava como grosseiros e barbaros:

Nada ernaiscerto do que 0 fato de que nossos costumes e nossa civi-

lizacao [... J dependiam, ha seculos, de dois principios, e eram segu-

rarnente 0 resultado da cornbinacao dos dois. Quero dizer 0 espiri-

to de fidalguia eo da religiao."

Os hunos e os herulos, os vandalos e os godos nao virao nem do

Norte nem do mar Negro, es tao no meio denos ."

Dir igindo-se ao seu destinatario f rances , Burke evoca aspio-

res eventualidades: a derrocada econornica, que acompanha 0 ani-

qui lamento das est ruturas sociais e rel igiosas:

E Chateaubriand, no final das Memories d'outre-tombe (livro

44, cap . 2), d ira0

mesmo, transportando0

perigo inter ior para0

dominio do espirito:

[ . . . J Seas ar tes e 0 cornercio viessem ase perder em urna experien-

cia que fosse feita para provar como urn Estado pode subsisti r sem

nobreza e sem religiao, esses dois antigos principios fundamen-

tais, que especie de coisa seria entao um a n acdo com posta de bar-

b aro s g ro sseiro s, e stup id os, [ero zes, e a o m esm o te mp o p ob res e 5 6r-

d id os ? [ .. . J

Desejo quevos sejapossivel nao chegar bern depressa epelo cami-

nho mais curto a essahorrivel e repugnante situacao. Reconhece-se

ja em todos osprocedimentos da Assernbleia e de todos aqueles que

a doutrinam que sua concepcao e pobre, grosseira e vulgar. Sua

liberdade e uma tirania, seu saber uma presunc;:osaignorancia, esua

humanidade uma b ru t al id ade s el v ag em .' "

A invasao das ideias sucedeu it invasao dos barbaros; a civilizacao

atual, decomposta, perde-se em simesma; 0 vasa que a contern nao

verteu seu l ieor em urn outro vaso; foi 0 vaso que sequebrou.

operigo interior logo tomara 0aspecto das "classes perigosas"

e do proletariado, dos "apaches" e dos "moicanos" oriundos das

grandes metr6poles industriais; ora sera percebido como a conse-quencia da libertacao dos instintos provocada pelos movimentos

intelectuais de emancipacao e de revolta ("indiferenp em materia

de religiao" etc.), ora no individualismo que, pela consideracao do

exclusivo "interesse pessoal ', autoriza 0 crime e 0 retorno a luta de

todos contra todos, ate colocar em pe de igualdade a t rapaca refina-

da e 0 vulgar assass inato." A selvager ia nao e apenas habitua l nas

classes inferiores: permanece a espreita no coracao de todos os

homens, sob aparencias que inspiram confianca."

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o perigo interior, uma vezlevado em consideracao, exige uma

resposta, Eessa resposta, como era de esperar, nem sem pre semani-

festou nos mesmos terrnos. Em sua forma mais simples, consistiu

em "reagir", isto e, em proteger os valores sagrados da civilizacao

crista por meio de todas as medidas possiveis de represamento, de

protecao da ordem, de educacao e de propaganda."

de seus gozos quanta essa civilizacao lhos torna mais faceis, Vede

quantos ensejos ele oferece a corrupcao, Pensai nessa flexibilidade

da linguagem que 0 cerca de desculpas, e coloca 0 pudor do egois-

mo sob protecao [... J. Todos os sistemas sereduzem a dois. Urn nos

determina 0 interesse como guia, e 0 bem-estar como objet ivo, 0

outro nos propoe como objetivo 0 aperfeicoamento e, como guia,

o sentimento Intimo, a abnegacao de nos mesmos e 0 espirito do

sacrificio."

IX

Por mais intensa e tenaz que tenha side a sacralizacao do

termo, foi diflcil para os homens da Restauracao persistir em nao

reconhecer, nos proprios perigos que ameayam a civilizacao por

dentro, ora os produtos e as efeitos desta, ora urn residua da natu-

reza selvagem que permaneceu irredutivel, E, consequentemente,

foi-lhes dif ici l nao valtar contra urn aspecto da propria civil izacao

a acusacao que seu valor sagrado autorizava a dirigir contra 0 que

a nega ou a compromete. Alguma coisa, na civilizacao, trabalha

contra a civilizacao, Causara admiracao a maneira como Benjamin

Constant, no prefacio de sua obra De l a r el ig io n (1827), con cilia

duas atitudes aparentemente contraditorias: a vantade de crer em

uma perfectibilidade quase ilimitada da especie humana" e, em

cantrapartida, a auto-acusacao, a severidade desencorajada em

relacao a derrocada das conviccoes e da forca maral- derrocada

inevitavelmente suscitada pelo refinamento e pela debilidade das

civilizacoes avancadas. A imagem da opulencia romana, provo-

cando a queda do Imperio, constitui urn paradigma decisive. De-

fendendo a causa da religiao (ou, antes, do sentimento religioso),

Constant escreve:

Se adotamos 0 "sistema" do interesse e do bern-estar, em VaG

faremas do harnem "0 mais habil, a mais destro, 0 mais sagaz dos

animais', em vao 0 calocaremas "no topo dessa hierarquia mate-

rial; ele nao deixara de permanecer abaixo do ultimo escalao de

toda hierarquia moral". A partir dai, sera inutil apelar ao hornem ...

"Vossas instituicoes, vossos esforcos, vassas exortacoes serao inn-

teis; ainda que triunfasseis de todos os inimigos exteriores, a inimi-

go interiorseria ainda invencivel," Segue-se a evocacao da decaden-

cia romana - precipitada pelo reinada do interesse egoista: "Ia

uma vez a especie humana parecia mergulhada no abisrno. Entao

tambern uma langa civilizacao a enfraquecera" Mas 0 principia

antagonista surgiu com 0 cristianismo:

o mundo estava povoado de escravos, explorando a servidao au

sofrendo-a os cristaos apareceram: colocaram seu ponto de apoio

fora do egoismo. Nao disputaram absolutamente 0 interesse mate-

r ial, que a forca material mantinha acorrentado. Nao mataram,

morreram, e foi morrendo que triunfararn."

Contemplai 0homem dominado por seussentidos, perseguido por

suas necessidades, debilitado pela civilizacao, e tanto mais escravo

A essa argumentacao, que parece favorecer a religiao em detri-

mento do conceito de civilizacao, responde uma nota que devolve

todas as suas possibilidades a esperanya do progresso e que restitui

a ideia de civil izacao a validade que the parecia recusada:

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Os efeitos da civilizacao sao de duas especies. De urn lado, ela

aumenta as descobertas, e cada descoberta e urn poder, Com isso

amplia a massa dos meios com a ajuda dos quais a especie humana

seaperfeicoa, De outro, torn a os gozos mais faceis, mais variados, e

o habito que 0 homem contrai desses gozos faz deles uma necessida-

de que0

desvia detodos ospensamentos elevados e nobres. Em con-sequencia, cada vez que 0 genero humano chega a uma civilizacao

exclus iva, e le parece degradado durante a lgumas geracoes. Em

seguida, recupera-se dessa degradacao passageira e,recolocando-se,

par assirn dizer, em marcha, com as novas descober tas com que se

enriqueceu, atinge urn grau mais alto de aperfeicoamento, Assim,

somos, guardadas asproporcoes, talvez tao corrompidos quanto os

romanos do tempo de Diocleciano; mas a nossa corrupcao e menos

revoltante, nossos costumes mais brandos, nossos vicios mais vela-

dos, porque, de menos, ha 0 politelsmo, que setornou licencioso, e a

escravidao sempre horrlvel. Ao mesmo tempo, fizemos deseobertas

i rnensas. Ceracoes mais felizes do que nos sebeneficiarao tanto da

destruicao dos abusos de que nos l ibertamos quanta das vantagens

que adquir imos. Mas para que essas geracoes possam avancar na

estrada que lhes esta aberta, ser-lhes-a necessario 0 que nos fal ta,e 0

que nos deve faltar, a conviccao, 0 entusiasmo e 0poder de sacrificar

o interesse a opiniao.

Disso resulta que nao e de modo algum a civilizacao que e preci-

so proscrever, e que nao se deve nem se pode dete- la , Ser ia querer

impedir a crianca decrescer porque amesma causa que a faz creseer

a fara envelhecer, Mas e preciso avaliar a epoca em que seesta, ver a

que e possivel e,secundando a bern parcial que pode ainda ser feito,

trabalhar sobre tudo para lancar as bases de urn bern por vir , que

encontrara tanto menos obstaculos e sera pago tanto menos caro

quanta houver sido mais bern preparado."

Constant convoca implicitamente novos cristaos, capazes de

sacrificio e "de entusiasmo"," Outros, ao contrario, bern antes de

Rimbaud, haviam reclamado novos barbaros. Jacobi, em 1779,

nao lhes pedia ainda que trouxessem "sangue novo", "sangue pa-

gao" (Rimbaud); contentava-se em esperar os beneficios de uma

energia torrencial: "0 estado atual da sociedade apresenta-meapenas urn mar morto e estagnado e eis por que desejaria uma

inundacao, ainda que de barbaros, para varrer esses pantanos

infectos e descobrir a terra virgern'." 0 voto de recristianizacao,

formulado por Constant, teve como corolario e correspondente

urn voto de rebarbarizacao - ele tarnbem legitimado pelo senti-

mento de lassidao e de perda vital, e ele tarnbem inspirado pelos

mitos interpretativos projetados sobre 0 fim do mundo antigo e

sabre a aurora da era crista . ..

Como seve,Constant (eoutros, namesma epoca) nao sepodeabster de criticar a civilizacao como Jato atual, a fim de salvar, na

longuissima duracao, 0 principio da civilizacao como valor asso-

dado as epifanias do sentimento religioso; ele imagina urn pro-

gresso intermitente, interrompido por longas fases de fraqueza

moral e de servidao politica. Por mais desolador que seja0presen-

te, sua confrontacao com 0 passado antigo permite acreditar no

progresso geral, que adquire a evidencia de urn fato constatavel,

Saint-Simon, conternporaneo de Constant, vera 0 progresso da

hist6ria ritmar-se em periodos "organicos" e periodos "entices"A verdade e que, nesse corneco do seculo XIX, 0 conceito de

civilizacao nao contern 0 sagrado como urn receptaculo estanque.

o conteudo escapa. 0 descontentamento, a ironia, a insatisfacao

nao podem impor respeito indefinidamente. A ret6rica oficial

transforma-os muito rapidamente em lugar-comum. (A civiliza-

cao, entre outros cliches, tera direi to a sua copla derris6ria, em

Mad am e B ov ary , no grande dia das Assembleias agricolas.) Isso

significa dizer que, sese procura fundar a ordem social, e preciso

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reunir todo urn conjunto de valores complementares que deverao

reforcar-se mutuamente , sem chegar a estabelecer uma autoridade

a toda prova. Claude Lefort faz observar muito jus tamente:

o discurso que sepode imputar a ideologia burguesa se exerce nos

primeiros tempos da democracia a prova da ameaca de uma decom-

posicao da sociedade como tal.As instituicoes, os valores procIama-

dos: a Propriedade, a Familia, 0 Estado, a Autoridade, a Patria, a Cul-

tura sao apresentados como muralhas contra a barbaric, contra as

forcas desconhecidas do exterior que podem destruir a Sociedade, a

Civilizacao. A tentativa de sacralizacao das instituicoes pelo discur-

soestana medida daperda da substancia dasociedade, daderrota do

corpo. 0 cul to burgues da ordem que seapoia na afi rrnacao daauto-

ridade, em suas multiplas figuras, no enunciado das regras e das jus-

tas distancias entre aqueles que ocupam aposicao do senhor, do pro-

prietario, do hom em cul tivado, do homem civilizado, do homem

normal, adulto, diante do outro, todo esse cul to testemunha uma

vertigem diante da escancaro de uma sociedade indefinida. 51

ponder lealmente - mas que, afinal, permanecem contradit6rias

c mal ajustadas enquanto a justica, a liberdade, a moralidade nao

acompanham a acumulacao dos bens e 0 desenvolvimento com-

plexo das leis e das instituicoes publicas. Guizot, como vim os,

insiste no aspecto duplo da civilizacao: para sat isfazer a exigencia

completa da vida civilizada nao basta instruiros hom ens, is to e, de-

senvolver suas aptidoes instrumentais, mas e preciso ainda, de

maneira complementar, educa-los, 0 que significa fazer deles seres

livres e racionais, capazes de nao se deixar dominar pela exclusiva

preocupacao com a producao material. Ora, ocorre que a socieda-

de industrial aumenta a distancia entre os dois componentes da

civilizacao ideal, cujo desequilibrio vai se agravando: torna-se

cada vez mais dif ic il manter 0 postulado de uma civilizacao sem

conflito interno ... A reprovacao, para desconsiderar a sociedade

industr ial e democra tica, a atacara sob 0nome de civilizacao, apre-

sentando-a , como 0 faz Baudelaire, como uma "grande barbaric

i luminada a gaS".S2Correlativamente, Baudelaire pode fazer 0 elo-

gio do selvagem americano, ornando-o de todas as qualidades que

a civilizacao-valor deveria promover:

x Por sua natureza, por necessidade mesrno, [0 selvagem] e enciclope-

dico, ao passo que 0 homem civilizado se encontra confinado nas

regioes infinitamente pequenas da especialidade. 0 homem civili-

zado inventa a filosofia do progresso para consolar-se de sua abdica-

c;:aoe de sua decadencia, enquanto 0 hornem selvagem, esposo temi-

do e respeitado, guerrei ro obrigado a bravura pessoal , poeta nas

horas melancolicas em que 0 sol poente convida a cantar 0 passado

e os ancestrais, roca demais perto a aria do ideal. Que lacuna ousa-

remos nos reprovar-lhe? Ele tern 0 sacerdote, terrro feiticeiro e 0

medico. Que digo eu? Ha 0 dandi , suprema encarnacao da ideia do

bela transportada para a vida material... 5,

Como acabamos de observar, a palavra civilizaciio, em Cons-

tant, aparece como urn termo composto: implica 0 crescimento

dos recursos, da seguranca, dos gozos etc. (0 que corresponde, na

ordem do Jato, ao genero de vida que levam as classes abastadas da

sociedade ind ustr ial moderna) mas im plica tam bern 0aperfeicoa-

mento interior dos individuos, 0desenvolvimento de suas qualida-

des afetivas e intelectuais, 0 alargamento e 0 aprofundamento feliz

de suas relacoes rmituas, sem os quais a civilizacao nao poderia ser

concebida como valor. Face exter ior e face interior que (como ante-

riormente no caso da civilidade, da polidez) se deveriam corres-

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A forca moral, 0 refinamento estet ico, que deveriam comple-

tar a civilizacao material, devem ser buscados fora de nossa civili-

zacao, entre os selvagens. Mas os valores enumerados por Baude-

laire implieam tao vigorosamente uma ideia da civilizacao (isto e,

ao mesmo tempo urn ideal de civilizado e uma civilizacao ideal)

que Baudelaire po de escrever, desta vez utilizando 0 termo de

maneira nao pejorativa: "A Civ i l izacao talvez se t enha refugiado em

alguma pequena tribo ainda nao descoberta"; a Franca, assim co-

mo a Belgica, foi previamente declarada "pais muito barbaro","

A palavra civilizacao suporta entao dificilmente 0 desdobra-

mento de suas implicacoes ou pressupostos: estes, quando nao

concordam, conduzem a urn emprego contradit6rio de urn unico

e mesmo termo. A nao-concordancia entre 0 fato eo valor ineita a

reservar a palavra civtlizacao para 0 fato, e abuscar urn outro ter rno

para 0 valor (da mesma maneira que, no seculo anterior, se tentara

opor a polidez a insatisfat6ria civ ilidade) . Seguramente , urn pri-

meiro recurso consistira em recorrer a uma marca epitetica de

autenticidade , e em falar de "verdadeira civ ilizacao" Mas os espiri-

tos sisternaticos procurarao urn apoio lexical mais acentuado. Eo

caso de Charles Fourier ao escolher a palavra harmonia para desig-

nar 0 estado social aperfeicoado, cujo sonho ut6pico se aplica em

detalhar 0modo de funcionamento, gracas ao qual as miserias e as

injusticas da civilizacao presente serao vitoriosarnente superadas.

Dessa maneira, a civilizacao, acusada sem reserva, serve para por

em destaque a felicidade esperada da sociedade "harrnoniosa" 0

par lexical civilizacaa=harmonia exterioriza e proje ta alhures e no

futuro as tensoes internas dificeis de ordenar no interior apenas da

nocao de civilizacao, Essa nova oposicao nao deixa de ter conse-

quencias: nao atinge somente a palavra civil izacao com urn valor

pejorativo; tern como resultado, alern disso, reservar-lhe urn

campo temporallimitado: a civilizacao nao e coextensiva a historia

humana inteira. Representa apenas sua fase presente, com seu sis-

lema de coercoes impostas as paix6es humanas (monogamia etc.).

o mesmo se dara no vocabulario de Engels. Para ele, com base nas

teorias de Lewis H. Morgan, a civil izacao e poster ior ao estado sel-

vagem e a barbaric, e a civilizacao que inventa 0Estado, a proprie-

dade, a divisao do trabalho, a exploracao das classes inferiores. 0

momento ulterior da dialetica hist6rica nascera da supressao

desse modo de organizacao social: a sociedade sem classes (em que

o Estado ten! declinado) abolira os males da civilizacao, redesco-

brira, em urn plano superior, a comunidade dos bens de que goza-

va a humanidade pre-civilizada." Esse emprego, em suma fourie-

rista, da palavra civilizacao nao prevalecera na literatura marxista

do seculo xx.

De maneira muito rna is gera l, esem implicacao politico- revo-

lucionaria direta, 0 mundo gerrnanico estabeleceu, desde 0 inicio

do seculo XIX, urn rival do conceito de civilizacao: a cul tura (die Kul-

tur) . E aqui que irrompe a s claras, e em urn lange debate, sob 0

aspecto do conflito entre nocoes concorrentes e diferenternente

nomeadas, a oposicao interna, que Constant e Guizot haviarn pro-

curado conter no interior do conceito unico de civilizacao, entre

componentes cornplementares." Nietzsche nao eo prirneiro a

intervir na discussao, mas, segundo seu genic proprio, da aos ter-

mos antiteticos uma expressao veemente: a civilizacao nao passa de

adestramento, repressao, encolhimento do individuo; a cultura, ao

contrario, pode ir de par com a decadencia das sociedades, pais

consiste na expansao das energias individuais:

Cu lt ur a c o nt ra C iv il iz a ca o - Os apices da cul tura e da civil izacao

estao muito afastados uns dos outros: epreciso nao seenganar, eles

estao separados par urn antagonismo profunda como urn abismo.

Os grandes momentos da cultura sernpre foram, rnoralmente falan-

do, tempos de corrupcao: e,ao contrario, asepocas da dornesticacao

intencional e forcada do hornern ("Civiliza~ao") foram tempos de

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intolerancia para as naturezas mais espirituais e mais audaciosas. A

civil izacao quer uma coisa diferente do que a cultura quer: talvez

alguma coisa de inverse."

XI

acuidade. Mas subsiste ainda. Chamam-se culturas, ora certos de-

senvolvimentos sociais limitados, coerentes e sem realizacoes

monumentais, que nao atingiram a amplitude deuma grande civi-

lizacao, ora subgrupos devalores e de comportamentos diferencia-

dos, que podem coexistir no interior de uma unica e mesma civili-

zacao: cultura popular, cultura erudita, cultura urbana, e mesmo

"contracultura" etc. No limite, admitir-se-a que uma civilizacao

pode integrar urn numero bastan tegrande demicroculturas ...5 " No

uso relativista que dela faz a etnologia, a civilizacao especifica-se

em civilizacoes distintas, das quais cada uma possui sualegitimida-

de propria; cabe ao saber determinar-Ihes as areas, as marcas dis-

tintivas, asdatas desurgimento e de aniquilamento. No inventario

quase cartografico das civilizacoes, e 0 tracado de seus limites mo-

ventes e 0 quadro de seus valores part iculares que importa, e de

maneira nenhuma 0 julgamento qualitativo que delas poderiamos

fazer ao aplicar-lhes ingenuamente os valores de nossa civilizacao.

As civilizacoes opoern-se umas as outras como organismos, em

relacoes que sao alternadamente asda vizinhanca, da concorrencia

e do conflito. Nao podemos atribuir, a nenhuma delas, nem supe-

rioridade, nem inferioridade, reservando-se a possibilidade de

constatar, como urn fato, 0 sucesso de umas, 0 fracasso de outras;

ternos apenas urn interesse cientifico em conhecer ascausas de seu

aparecimento e de seu desaparecirnento." E nossa boa-fe chegara

aoponto de reconhecer, sem fazer disso urn rnotivo deorgulho, que

a "nossa" civilizacao e a unica a ter esseinteresse pelas outras civili-

zacoes, e mesmo a seacusar de ter, em muitas circunstancias, acar-

retado prejuizo aestas, quando opunham urn obstaculo aos nossos

apetites de poder ...

Arna consciencia deque seacompanha, demaneira urn pouco

inconsequente, 0 nosso relativismo cultural atesta que as antino-

mias nao deixaram de escoltar 0 conceito de civilizacao. E sob 0

aspecto da ameaca, do perigo, do medo que a antinornia sernani-

Para perrnanecer no plano puramente terrninologico, desta-

quemos urn fato muito significativo: quando Freud dedarar que

nao quer diferenciar asnocoes de cultura e de civilizacao, sera para

reencontrar dentro do dorninio unitario da cultura (que implica

entao igualrnente a civilizacao) a ameaya interior que resulta do

conflito de dais elementos: de urn lado, a pulsao erotica, que visa

estender a cornunidade, estreitar seus laces e, de outro, a pulsao

agressiva, ligada ao instinto de morte." Em Freud, a supressao da

antitese cultura=-civilizacao levaa restabelecer uma relacao antite-

tica nao mais sob forma aberta, mas sob a forma do afrontamento

inevitavel de dais principios dinarnicos intrapsiquicos de que as

condicoes da vida moderna tornam a coexistencia ainda mais dift-

cil- embora nossa sobrevivencia seja funcao dessa coexistencia.

Em suma, Freud nao precisa da dualidade cultura-s-civilizacao,

desde que dispoe do par eros-thanatas. A antinomia, suprimida

em urn registro terrninologico que setornou banal, renasce sob a

forma da invencao conceitual aplicavel ao plano "metapsicoI6gico".

A palavra civilizacao circula hoje em diversas acepcoes, para-

lelas ou contraditorias, todas mais ou menos familiares, todas

igualmente fatigadas. A usura e manifesta. Mas a palavra esta longe

de estar fora de uso, e resta colocar algumas quest6es a seu respei-

to.O uso atual apagou asantinornias internas ou externas que per-

cebemos ao percorrer a historia semantics da palavra civi l i zacao;

Par certo, a distincao entre cultura e civilizacao perdeu algode sua

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festa. Fala-se d o s ma le s d a c iv il iz aa io , no duplo sentido que a gra-

matica autoriza a conferir a expressao. A civilizacao e percebida, no

discurso contemporaneo, ora como fonte do mal, ora como a viti-

rna de urn mal. A civilizacao (rnecanica, industrial, ocidental etc.)

faz pesar urn perigo: sobre 0mundo vivo, sobre as outras culturas

e civilizacoes, sabre a alma dos individuos que dela usufruem ou

que safrem seus imperatives .. .Os argumentos e a legitimidade do

discurso ecologico, das acusacoes de etnocidio etc. sao suficiente-

mente conhecidos para que nao seja necessario expo-los. Basta

constatar que tendem a designar "nossa" civilizacao como insepa-

ravel de uma hybris que e preciso conter a qualquer custo, e cujas

tendencias e preciso, sepossivel, inverter. Pensar a civilizacao como

ameacadora faz desfilar sob 0nosso olhar alarmado asimagens da

devastacao que a tecnica civilizada causa a tudo 0 que submete as

suas norm as (eficacia calculada, rendimen to etc.). Mas nos aeonte-

ceigualmente de pensar a civilizacao como ameacada e entao sao

outras antinomias que nos vern inquietar. Sem duvida, e entao

mais do interior mesrno da civilizacao que a arneaca nos parece

provir, ja que a civilizacao industrial cobre a terra inteira e ja nao

tern urn outro exterior a que se opor. Experimentamos urn senti-

menta de inquietude diante do desenvolvimento das subculturas

selvagens, das retomadas do pensamento magico, dos fen6menos

de regressao intelectual e moral que colocam os instrumentos da

civilizacao (esuas armas) entre asmaos deindividuos incapazes de

domina-los, de lhes compreender 0 sentido, de reconhecer-Ihes os

fundamentos historicos: ao ver desaparecer uma dim ensao de

memoria que assegurava oslacos do mundo presente com 0passa-

do, tememos que 0 esquecimento comprometa-lhe a continuacao

futura. Alern disso, perguntamo-nos se nossas ciencias, nossas

artes, nossas filosofias conservarn hoje 0 poder de inventar sem 0

qual a nossa civilizacao deixaria de ser 0 que foi: 0 teatro de uma

incessante transmissao de autoridade, segundo uma aposta em

favor da autonomia da razao hurnana, tal como a encarna, em seu

principio, a instituicao democratica.Ai estao apenas dois temas, eles

proprios antiteticos, entre varies, cuja expressao tornou-se insis-

tente. Ameacadora ou ameacada; au ainda, em urn encontro dos

contraries, ameacadora e ameacada, simultanearnente perseguido-

rae perseguida, acivilizacao nao e mais urn lugar seguro para aque-Ieque habita sob 0 seu teto. Leio em urn artigo de Czeslaw Milosz,

relativo a desilusao dos artistas poloneses da ultima geracao:

Adesconfianca ea zombaria foram dirigidascontra toda a heranca

da cultura europeia, E por isso que,varies anos depois da guerra,

uma peca deStanislasWyspianski, Akropolis, escrita em 1904, foi

encenada por IerzyGrotowski de umamaneira muito particular.A

peo;:acompostade cenastiradas deHomero eda Btblia eassimresu-

me os constituintes principais da cultura ocidentaL Na versaodeGrotowski, essas cenas sao representadas por prisioneiros de

Auschwitzcomuniformes listados,eo dialogo e acompanhado por

torturas, Apenasas torturas saoreaise a lingua sublimedosversos

recitadospelosatores e colorida pela leimesma do contraste.'

o marques deMirabeau, inventor do termo, falavaja, lembra-

rna-nos, da "barbaric de nossas civilizacoes", falava tambern de

"falsa civilizacao" No momento mesmo em que 0 termo faz sua

primeira aparicao possui pelo menos uma dupla acepcao: e, emambas as acepcoes, esta ligado a uma atividade critica.

Reconhecida como urn valor, a civilizacao consti tui uma

norma politico-moral: ela eo criterio que permite julgar e conde-

nar a nao-civilizacao, a barbarie, Em compensacao, utilizada para

designar a organizacao presente das sociedades industriais, a pala-

vra civi l izacao nao e mais do que urn termo sintetico que designa

urn fato coletivo, que sejulgara recorrendo a outros criterios. Dessa

vez, a palavra civilizacao, em vez desero instrumento conceitual do

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pensamento cr itico, des igna urn dado sujeito it cri tica: ja nao basta

que uma civilizacao seja uma civilizacao, e preciso ainda que seja

uma verdadeira civilizacao: requer-se entao urn cr iter io do verda-

deiro e do falso em materia de civil izacao. E preciso necessariamen-

te que esse criterio seja escolhido em urn outro dorninio, e vimos

que Mira bea u fazia da re ligiao, em urn texto citado pelos j esui tas deTrevoux, uma condicao necessaria da civilizacao. Mas 0 mesmo

Mirabeau, sem excessiva preocupacao com logica, estabelecia 0par

normativo civilizacao-e-barbarie como criterio da civilizacao

como fato: 0 raciocinio torna-se circular. Nossa civilizacao e con-

denavel porque e"barbara", isto e, porque nao e a civilizacao,

A cisao da palavra civilizaiiio em uma acepcao "de direito" e

uma acepcao "de fato", eque permite it "consciencia nobre" invocar

a primeira contra a segunda, cai sob 0golpe da analise que Hegel,

em A fen om en olo gia d oespirito,

consagra it Bildung e a filosofia das

Luzes." Conhece-se a conclusao formulada por Hegel: e a civiliza-

<raoefetiva, com tudo que nela aparece de "barbaro" a consciencia

moral (moralidade abstrata de que 0 "fi losofo" se faz 0 advogado

em L e N ev eu d e R am ea u), que constitui a verdade do momento.

o momento historico no qual aparece a palavra civilizacao

marca a entrada em cena de uma auto-reflexao, a emergencia de

uma consciencia que ere saber de que e fei ta a sua propria ativida-

de, como se desenvolve a realidade coletiva, e como esta deve ser

regulada. Essa auto-reflexao nao se absorve em si mesma: logo que

se percebe reflexivamente, a civ ilizacao ocidental ve-se como uma

civilizacao entre outras. Tornando-se consciente de s imesma, aci-

vilizacao descobre imediatamente as civilizacoes, A critica ja nao

sel imitara, como outrora, a comparar nOSSOtempo ( no st ra t empo-

ra j e os tempos antigos i pr is tin a t empor a) ; atribui uma tarefa his-

t6rica as coletividades humanas, reservando-se, quanto a ela

mesma,o direito de examinar, de aprovar, de reprovar, ou de colo-

car em pe de igualdade, segundo as exigencies da razao esdarecida.

Para 0 pensamento critico, nada do que e imposto pela tradicao

possui doravante carater obrigatorio em virtude apenas da anti-

guidade. 0 pensamento critico disso decidira segundo seus crite-

rios proprios, Oeve-se dizer, sem excess ivo paradoxo, que a entra-

da em cena da palavra civil izacao (em uma epoca tardia do que

chamamos hoje ainda a civilizacao ocidental) , bern longe de ajudara ordem constitutiva da sociedade civilizada, marca 0 inicio de sua

crise. A pulver izacao do sagrado ins titucional, a impossibilidade

para 0 discurso teologico de continuar a valer como "concreto e

absoluto" CEricWeil) 63 convidam a maior parte dos espiritos a bus-

car com toda a urgencia absolutos substitutivos. E e entao que a

propria nocao de civiiizacao propoe seus services. Mas, como ela se

rompe e se cinde imediatamente entre urn valor (ausente) e urn

fa to (dificilmente aceitavel), revela-se inapta para preencher a fun-

c;:aoate entao destinada ao absoluto teologico, 0 conceito de civili-zacao viria, no declinio mesmo da civilizacao, anunciar a morte

daquilo que nomeia? Respondere i af irmando 0 contrar io: sea cri-

tica sabe reconhecer que ela propria eo produto da civilizacao con-

tra a qual dirige sua polemica, se consente em admitir que a civili-

zacao-valor nao pode ser formulada senao na linguagem presente

da civilizacao-fato, somos levados a imaginar urn modele concei-

tual novo, que escaparia a alternativa entre a univocidade do abso-

luto e 0 relativismo cultural: esse modelo ins tituiria uma relacao

complementar entre a razao cr itica , a civilizacao real simultanea-mente ameacada e arneacadora e a civilizacao como valor sempre

"a ser realizado", ousaremos dizer que esse modele tripartido esta-

belece 0 quadro esquernatico no qual se inscrevem todos os deba-

tes que a civilizacao susci tou desde a epoca das Luzes. E afi rmar-se-

a igualmente que const itui, se devesse ser plenamenfe reconhecido

e assumido, 0valor mesmo que define uma civilizacao que resta

ainda promover: uma civilizacao que supartasse em si sua propria

crise permanente, incluindo em si a liberdade critica mais desper-

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ta , arazao mais independen te, asquais reconheceriam 0mundo real

de que procedem, isto e, a civilizacao como fato adquirido, it qual

oporiam, contudo, de maneira polernica, 0projeto de uma civiliza-

cao mais conforme it exigencia de universalidade que sustenta a

razao critica em seu trabalho ... Surpreendo-me a teorizar, segura-

mente nao sem ingenuidade, a partir da hist6ria lexical: mas essa ea oportunidade de uma ultima observacao, que nos reconduz ao

plano lexical. A palavra ctvi l i zacao e uma grande indutora de teo-

rias. Descubro-rne em boa companhia. Tal como circula, essa pala-

vra carrega significacoes diversas, contradit6rias, exige esclareci-

mentos epiteticos (civilizacao crista, ocidental, mecanica, material,

industrial etc.). Ora, e evidente que, apesar de sua imprecisao, esse

termo designa 0meio humano no qual nos movemos, e em que res-

piramos 0 ar cotidiano: in eo m ov em ur et su mu s. Como nao ser ten-

tado a ai ver mais claro, elaborando uma teoria da civilizacao, que

fixaria, dai por diante, toda uma filosofia da historia."

Elevinha das florestas inextricaveis do javali e do auroque, Era bran-

co, alegre, inocente, cruel, leal a seu chefe e a sua tribo, nao ao uni-

verso. Asguerras cand uzem -naa Ravena,e alive alga que jamais viu,

au que nao viu com plenitude. Ve a luz do dia, os ciprestes e0mar-

more. Ve um conjunto que e multiple sem desordem; ve uma cida-

de, composicao feita de estatuas, de templos, dejardins, de casas, dedegraus, de jarros, de capiteis, de espa~os regulares e abertos. [... J

Talvez the baste ver uma unica arcada, com uma inscricao incorn-

preensivel em eternas letras romanas. Bruscamente, essa revelacao 0

deslumbra e0 transforma: a Cidade. Elesabe que em seusmuros sera

urn cao ou uma crianca, e que nem mesmo chegara a cornpreende-

la, mas sabe tarnbem que ela vale mais do que seus deuses ea fejura-

da e todos as pantanos da Cerrnania. Droctulft abandona as seus e

combate par Ravena.

XII

Borges opoe a essa historia urn relato de sua "avo inglesa". Esta

conheceu outrora uma outra inglesa, que os indios haviam levado

"durante urn ataque". A mulher raptada tornou -se a esposa de urn

cacique "a quem dera dois filhos e que era muito valente":

A teorizacao e certamente uma armadilha. A parabola pode

substitui-la com vantagem. Em "Historia do Guerreiro e da

Cativa", J . L.Borges conta duas historias: a do guerreiro barbaro

Droctulft que abandona os seus para defender a cidade que eles

atacavam: Ravena; a da inglesa que, raptada pelos indios, na

America do SuI, adota definitivamente os costumes "selvagens" de

seus raptores."

o que seduz Droctulft e faz dele urn transfuga e a ordem exi-

bida pela cidade, 0pol idodos marrnores, os valores que repertoria-

mas sob os nomes de urbani tase de pol idez:

[ , . . J Adivinhava-se uma vida sangrenta: astendas de couro de cava-

10 ,as fogu eiras de estrume, as festins decarne cham uscada au devis-

ceras cruas, asmarchas furtivas ao amanhecer, 0 assalto a s fazendas,

os clamores e a pilhagern, a guerra, a reuniao do gada em tumulto

par cavaleiros nus, a poligamia, a pestilencia e a magia, Em seme-

Ihante barbarie recaira uma inglesa.

Os dois personagens transpoem a l inha de separacao em sell-

tido inverso, sao transfugas que abandonam au que vao ao encon-

tro da barbarie. 0 comentario final de Borges e surpreendente:

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Mil etrezentos anos e 0mar separam 0 destino da cativa e 0 deDroc-

tulft. Hoje, urn e outro estao igualmente fora de alcance. Afigura do

barbaro que abraca a causa de Ravena, afigura da europeia que esco-

lhe 0 deserto podem parecem antagonicas, No entanto, urn irnpeto

secreto arrebatou osdois seres, urn Impeto mais profundo do que a

razao eambos obedeceram a esseImpeto que nao teriam sabido jus-

ti ficar, Ashistorias que contei sao talvez uma (mica historia, Para

Deus, 0 anverso eo reverse dessa medalha sao identicos,

o efeito dessas linhas eperturbador: a que e dado como iden-

tieo eo impeto nao racional da transposicao, do movimento para

o outro. E,na mesma oportunidade, a barbaric e a civilizacao apa-

recem elas proprias como identicas sob a olhar de Deus. 0 dentro

ea fora nao deixaram devalerum em relacao ao outro, mas nos dois

sentidos. - Por certo, hoje ja nao hibarbaros nem selvagens fora

dos muros, na floresta, na estepe, no pampa. Nao e a titulo aciden-tal apenas que esses destinos sao declarados "fora de alcance". A

inversao especular da barbaric e da civilizacao nos e contada como

uma historia do passado, conservada na memoria do escritor e na

consciencia divina. Significa dizer que a civilizacao ganhou a par-

tida, que a medalha doravante nao tern avesso?Longe disso.A sur-

presa perturbadora e descobrir que longe de necessitar da longa

duracao cara aos historiadores, as passagens da barbaric a civiliza-

cao,da civilizacao a barbarie sefazem porvezes em ur n 56 passo. Por

mais que a historia aqui contada implique apenas individuos deantigamente, sua moralidade final, contudo, possui urn alcance

mais vasto e poderia estender-se a todos as hom ens e a todos as

tempos. Borges e civilizado demais, habil demais na arte da elipse

para dela dizer mais. Restringe-se a lembrar a precariedade dos

limites, a igual facilidade da conversao e da queda. A oposicao entre

a civilizacao e abarbaric equilibra -se em uma suspensao inter roga-

tiva. Isso nao leva a renegar a civilizacao, mas a reconhecer que ela

e inseparavel de seu avesso.