João Pedro Camus_O Espírito e Doutrina de St Fco Sales

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ESPIRITO E DOUTRINA DB SÃO FRANCISCO DE SALES DOUTOR_OA SANTA IO�A POR JOAO PEDRQ C·AMUS http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

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Ainda que a intenção do Ilustríssimo Bispo de Belley nas suas obras foi dar a ver o espírito do grande S. Francisco de Sales; contudo, como uma pena tão fecunda e tão rápida, como a sua, nem sempre se conteve nos limites deste assunto, estendendo-se várias vezes a outras matérias (que não obstante a serem excelentes, fazem perder o fio do principal objeto), pareceu justo, e de grande utilidade para todos os fiéis, extrair unicamente daquela obra as ações e palavras que formam um agradável ponto de vista do heróico espírito deste admirável Santo.

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ESPIRITO E DOUTRINA

DB

SÃO FRANCISCO DE SALES

DOUTOR_OA SANTA IO�BJA

POR

JOAO PEDRQ C·AMUS

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

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PROLOGO

Ainda que. a intenção do Ilu.strísstmo Bispo de Belley naa suas obras foi dar. a ver o espírito do grande S. Fran­e'-'co de Sales; contudo, como uma pena tão fecunda e tão ráptda, como a sua, nem sempre se con·teve nos limi­tes dêste. assunto, estendendo-se várias vêzes a outras matérias (que não obstante o serem excelentes, fazem perder o fio do principal objeto), pareceu justo, e de grande utilidade para todos os fiéis, extrair unicamente daquela obra as ações, e palavras, que formam um agra­dável ponto de vista do heróico espirito dêste admirável Santo.

corrigiram-se alguns têrmos, que já não estão em uso: porém com tal sobriedade, que não diminuíssem a 'Unção e energia das expressões assim do prodigioso Sales, como do seu virtuoso discípulo. E como êste compôs a • sua obra de várias passagens avulsas, que não têm liga­ção entre si .mesmas, ;uZgamos, que d.evia seguir-se o mesmo método, que pela variedade, clareza e brevidade, instrui, recreia, e não fatiga.

Pode-se dizer, que aquí se trata de tódas as virtudes com a competente extensão: e que não há pessôa alguma, de qualquer estado que seja, que não ache abundante matéria, com que· se instruir e edificar na .atenta lição do presente livro. Praza a Deus abençoar a nossa intenção, de modo que bem sirva para sua maior glória.

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VIDA ADMI RÁVEL DE SÃO FRANCISCO DE SALES

Cada santo tem suo Iisionomio particular, como cada 'flôr de um jardim. tem suo fragrância próprio. O distintivo especial de São Francisco é o doçura, virtude celestial à qual foi devido o encanto ·sem igual de seu rosto e que lhe mereceu durante a vida e merece-lhe ainda hoje um ascendente incomparável sôbre os almas.

Francisco nasceu a 28 de agôsto de 1567, no castelo de Sales. Seus pais, depois de seis anos de matrimônio, viram-se favorecidos com êste primeiro filho, ao qual se �eguiram outros doze. dos quais cinco morreram no berço. Francisco foi ofe­recido a Deus antes de nascer e apenas chegado ao mundo. Deus aceitou o oferecimento e o menino, desde seus mais tenros anos, deu sinais visíveis de s'ua predestinação.

Pequenino, reunia seus coetâneos ·ao som de uma campai­nha, e levava-os à igreja para rezar com êles ou paro lhes repetir as l ições de catecism�.

Tendo passado dois anos no colégio de La Rache, esteve um lustro no colégio de Annecy, onde fez o suo primeira ccmunhão e recebeu a confirmação das mãos de D. Angelo Justiniani que o tinha apelidado o "anjo visível da pátria".

Terminados seus estudos de literatura em Annecy, seu pai o mandou a Paris, ao colégio de Clermont, dirigido então

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pelos podres do Companhia de JeS�,�S, -poro aí. cursor os huma­nidades. Acompanhavam-no o podre Déoge, seu preceptor, e Jorge Rollond, que lhe devia servir de criado até o morte.

Francisco fez o curso de retórico com grande aplicação e- brilho, edificando se1.1s mestres e condiscípulos pelo emi� nêncio de s1.1o virtude, �modo e venerado de todos pelo suo bondade sempre humilde e suo inolterâvel doçura.

Deus poro temperar seu valor, enviou-lhe uma horrível tentação: Francisco convence1.1-se que estava condenado, e, perseguido por esta idéio fixo, perdeu o sono e o apetite. Redobrou os orações e austeridades, porém o demônio lhe .repe­tia sem cessar: "Se rãs condenado".

"Senhor, exclamava então o santo jovem, se não vos posso amor no outro vida, concedei-me ao menos que opro­

. veite poro vos amar todos os momentos da minha breve exis­tência terrestre".

Torturado dêste modo durante seis semanas, entrou um dia no igreja de Santo Estevão des. Gres, e rezou o "Lembrai-vos" perante o imagem do Santíssimo Virgem venerado ainda hoje na capela dos Domas de Santo Tomoz de Villonovo; e, depols d(• ter rezado o dito oração, renovou seu -voto de castidade. Caiu-lhe no mesmo instante o véu que lhe obscurecia o espírito, e o provo terminou poro sempre. Apenas acabados, em Paris, seus .. estudos l iterârios e filosóficos, Francisco após breve per--

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monêncio entre os seus, foi enviado pbr seu poi poro estudar Direito no Universidade de Pâduo, onde chegou em i Sli6.

Ali suo piedade sempre crescente, grongeou-lhe t6dos os vontades. Contudo, alguns libertinos, aos quais seus exemplos e conselhos não tinham lógrodo conduzir oo bem, resolveram fazer-lhe perder o estimo geral, expondo-o oo ridículo de possor por covarde. Tendo-se colocado alguns dêles riumo ruo deserto, por onde Francisco devia possor, cercaram-no simu­lando um atentado à suo vida. Poré·ni, o santo jovem, usando o direito de legítimo defeso, desembainhou o espada, pôs-se em guardo e ameaçou· utilizar-se do armo se não se retirassem. Intimidados por tal atitude, os tolos desapareceram e não mais molestaram Francisco quando passava pelo meio dêles.

Uma grave 'enfermidade veio interromper', tempCJ!r!ário­mente, seus estudos. Chegou-se o temer pelo suo vida, e no momento em que o perigo era maior, êle mesmo expressou ao podre Dêoge o desejo de que seu corpo fôsse levado ao· anfi­teatro poro os pesquisas de anatomia. Deus, movido por esta humildade- e destinando Froncisco o uma alto posição, resti­tuiu-lhe o saúde· quosi subitamente.·

Em .s de setembro de 1591, tendo olconçodo o título de dout�r em Direito, . dirigiu-se O· visitar Roma· e Lor-e.to. Solvo milagrosamente em Roma de uma mol"te certo1 Francisco deveu

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tambén"! ao ompa_ro divino o . não ser devorado pelo ma�. Resolvendo viajar de Ancona a Veneza, uma doma napolitano pretendia. ter reservado para si e poro seu séquito o embar­cação �m que Francisco tinha tomado passagem. Apesar dos razões do jovem, a domo insistiu com tanta arrogância e tei­mosia que o santo julgou oportuno ceder.

Mal o navio afastara-se da costa, uma tempestade, que de súbito se desencadeou, tragou-o com todos os. seus passageiros.

Após uma breve demoro em Veneza, Francisco voltou para Sabóia, e reuniu-se à suo família depois de uma ausênCia de vãrios _anos; contava vinte e cinco anos.

Suo inteligência, sua virtude, e ainda o compostura de �uo pessoa, causaram uma indizível alegria a seus pois. O Senhor de Boisy e de Sales, persuadido de que seu filho havia de ser o orgulho da família e dos pais, quis que procurasse a, dignidade de advogado no Parlamento de Sabóia.

Francisco, sempre submisso, partiu poro Chombery, onde, depois das provas solenes, foi recebido e proclamado advo­gado. Porém, em consideração o um prodígio, três vezes renovado, Francisco, convencido de que tinha chegado para êle o hora de Deus, e aconselhado pelos mais sãbios conse­lheiros, dispôs-se a solicitar ·a autorização paterna poro ,abra­çar o estado sacerdotal.

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Tão longe estava o senhor -de' aoisy de· imaginar que 'Seu filho pudesse abandonar o ·mw:tdo, que prfmeiro pe-nSO\I em arranjar-lhe ·um· matrim&nio e lago instou cóm éle p::Jl'a que aceitasse as altas funções de senador com que então à quise­ram brindar.

Luiz de Sales, pr.imo de nosso Santo cônego do cabido - -

de Genebra, imaginando as dificuld�des que Francisco ti�ho que enfrentar no conflito com a vontade paterna, ideou grangear-lha com o sinal de uma �onra pouco comum. Estando vago o lugar de deão no di�o cabido, Luiz insinuou ao bispo de Genebra, o i lmo. sr. Claudio de Granier, a nomeação do santo jovem, a quem o Prelado conhecia e admirava desde muito.

Entrando nos caminhos da Pr9vidênéia, o bispo de Gra­nier apressou-se em aceitar a proposta e alcançou a aprova­ção do Santa Sé. FranciSco, provisto _dÇJ_ bula pqpal e acom­panhado de seu primo, foi prostrar-se ao� pés de seu pai para lhe suplicar lhe concedesse a única cousa CjUe no mundo cons­titula o objeto cte seus desejos e esperanças: consagrar-se a Deus.

O sr. de Boisy-, vivamente comovido, opôs a princípio al­gumas objeções, porém, cedendo às lágrimas de sua espôsa e

às instâncias de Francisco, fez generosamente o, sacrifício e deu sua bênção ao fi lho. que entregava a Deus, aos pobres, à

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Igreja, e que, com suo santidade, devia ilustrar· o suo linha­gem com uma gl6rio muito superior o tôdos os humanos.

Tão universalmente era reconhecido o santidade de Fran­cisco, ·que· ninguém protestou. contr.o o dignidade de deão com que, tão jovem oindo, fôro investido.

Acolhido com entusiasmo pelo cabido e a povoação de Annecy, · Francisco otroíu em breve paro si tôdo a benevolência do bispo que, inspirado do alto, viu naquele jovem seu futuro sucessor. Imediatamente lhe conferiu o subdiacanoto, e seis meses depois ordenou-o sacerdote, o 16 de dezembro de 1593.

Preparado com tontos virtudes ao sagrado minis�ério, Francisco consagrou-se sem reservo oo servl,ço das olmos, de­dicando-se de preferência aos pobres e desvalidos, que êle con­solava e confortava com o mois oito bondade.

Procurando os mais desprezados, oquêles cujos chagas os, tornavam mais repugnantes, irifundio-lhes alento e prodigali­zava-lhes seus cuidados.

Poro com os pecadores mostrava-se particularmente com­passivo: levava-os o Deus pelo doçura e ascendente de suas virtudes e chegava oté o iri'ipôr ci si o penitência dos pecados dos mesmos, não desejando 'dêles· outro obrigação o não ser o

do arrependimento. Não se poupando oo tnobolho, quase· todos os· dias pregava

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a palavra de .Deus, multiplicando seus esf6rços a favor dos protestantes arrastados e seduzidos pelo cisma de Lutero e Calvino, conduzindo-os pelos seus sermões do grêmio da Igreja.

Cumpre advertir que sempre se achava disposto o prati­car isto perante um auditório de poucas pessôas comp ante o mais numeroso -público.

Depress� preparou o Providência ao zêlo de Francisco um campo mais vasto, eriçado de sarças e espinhos, que, porém, devia ser fecundado pelos seus trabalhos e lágrimas. E;ro o provjncio do Choblois, cujos cidades, sucessivamente tomados pelos Berneses e retomados pelo Duque de Sabóia, estavam, havia pouco tempo, sob o domínio dêste último.

Os habitantes jogados durante· sessenta anos do erro à verdade e vice-verso, tinham-se fixado no erro e o calvinismo exercia sôbre êles suo autoridade despótico.

O duque Carlos Manoel de Sabóia e o bispo de Genebra, desejosos de restituir o verdadeiro fé àquelas povoações ex­traviados, procuraram um apóstolo que o elos pudess.e ser en­viado com proveito. Francisco, sem levar em conto os trabalhos e os perigos do empresa, ofereceu-se ao bispo poro executá-lo, e apesar das lágrimas de seu pai, cujo Õposiçõo conseguiu outro vez vencer com. seu generoso denodo, partiu sem tardar poro o missão que acabava de lhe ser confiado.

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Foi à fortaleza dos Allinges, castelo situado o 6 quilôme­tros de Tonon, onde Francisco o principio, fixou o_ suo resi­dência. Indo tôdos os manhãs o Tonon, reunia os poucos ca­tólicos que ali restavam. Mos, apenas conhecido o suo chegado, os ministros protestantes amotinaram o povo contra êle. Uma tarde e� que Francisco regressava ao castelo dos Allinges, lançaram-se contra êle, espada em mão, dois fanáticos. Fran­cisco aproximou-se, falou-lhes com doçura e outoridáde sobre­humano, excitou neles o orrependÚnento e lhes abriu os braços. Os a&sossinos cairom de joelhos e juraram converter-se.

Por motivo do cilada em que Francisco estivera o ponto de perecer, o sr. de Boisy, unindo seus rogos aos do barão de Hermonn, governador do costeio dos Allinges, suplicou-lhe não ·tomasse o se expor de tal maneiro; porém o Santo não se

deu por entendido. Confiando em Deus, por quem trabalhava e padecia, resolveu, pelo contrário, com o fim de tornar suo missão mais eficaz, morrer em Tonon, no próprio centro do heresia. Alugou um quarto no coso de uma piedoso viúv�. e corno não havia no cidade nenhuma capela católico, o após­tolo co�ovo diàriomente suo jornada indo oferecer o sonto socrificio no igreja de Morin, o pequeno distância da cidade.

Poro chegar ci dito Igreja tinha que passar uma pontezi­nho, pouco sólido, por fim levado pelo degelo. Foi substituida por um tronco ele árvore, que o geada e o neve tomaram tão

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escorregadio, que Francisco tinha de atravessar de gatinhes êsse pcsscdouro improvisado, suspenso sôbre o -abismo.

O exemplo de tantos virtudes produzia já frutos abun­dantes, porque os almas vinham c êle, os pecadores se con­vertiam, e dia por dia voltavam c Deus alguns protestantes. Abriram c marcha os IJObres e os humildes, mas muito em breve os con:versões famosos, c de Pedra Poncet, advogado de grande conceito, e c do barão de Avully, o primeiro persona­gem do Chcblcis, cccbcrcm de resolver muitos fracos e vaci­lantes c abandonar c heresia.

Um dós- principais ministros calvinistas de Genebra, cha­mado Lo Foye, cometeu c imprudência de escrever co barão de Avully taxando-a de vítima do engano de Francisco e com­prometendo-se c convercer o Sento de êrro.

�ste, contendo com · o auxíl io de Deus, aceitou o desafio, e como o ministro não aparecesse em Tonon, conforme c sue promessa, Francisco foi c êle acompanhado do sr. de Avul ly e grande número de protestantes. Realizou-se c conferência publicamente, e com tente lógico refutou Francisco os erros do hereje que êste rematou a discussão com uma descarga de insultos. Imenso foi o efeito em todo c país: comoveu�se tôdc o povoação, registrarem-se centenas de conversões e aldeias inteires voltarem à unidade de fé.

Sobremodo satisfeito ficou o duque de Sabóia com estes

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maravilhas; en\liau Francisca a Turim e se propôs facilitar com tôdas as veres o restabelecimento do culta católico em seus estados. Ordenou que se restituísse aos párocos do Chablais os bens eclesiásticos que lhes. tinham sido arreba­tados pelos cplvinistas e devolveu as igrejas ao culto católico.

Francisco, de volta a Tonon, teve a consolação de cele­brar ali a missa da Noite de. Natal, apesar das ameaças dos protestantes, que quiseram impedí-lo pela violência, e desde oquêle dia ofereceu-se ininterruptamente o santo sacrifício naquela feliz povoação, onde a heresia tinha triunfado por mais de sessenta anos.

Entretanto Deus continuava abençoando o zêlo e as vir­tudes de seu servo e as mais estrepitosas conversões, como a <le Pedro Fournier, prefeito de Tonon, recompensava os es­forços do apóstolo. Insistindo a Santa Sé para que fôsse a Genebra afim de conferenciar com Teodoro de Beza, sucessor <le Calvino e cabeça da heresia, Francisco, não vacilou- um momento. Depois de várias travessias perigosas em que esteve .em risco de perecer no lago de Genebra, o apóstolo do Cha­blais chegou finalmente á casa do ilustre protestante em 8 <le abril de 1597. Contava então o ministro setenta e sete .anos. Grande foi seu assombro quando, <;�presentando-se-lhe

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Francisco, lhe expôs seu desejo e sua atrevida empresa; porém subjugado pela santidade de seu visitante, aceitou ·discutir com êle.

Nesta primeira conferência, Beza viu-se forçado a con­fessar que é possível alcançar a salvação na Igreja romana; porém insistiu em atribuir aos abusos exteriores que nela se haviam introduzido, os revoluções, guerras, matanças e in­cêndios provocados pelos calvinistas, e se estendeu, poro de­fender sua causa, sôbre o grande princípio elo protestant'lsmo: que a fé sem as obras é suficiente para a salvação.

Duas vezes mais Francisco voltou a Genebra, porém todos os seus esforços esfacelaram-se contra a endurecimento do ancião, o qual via a verdaqe, mas não tinha, para segui-la, a fôrça de lhe sacrificar suas honras e fortuna. Conta-se que_ tentou fugir de Genebra, porém, foi tão bem guardado pelos protestantes, que escravo, até o fim, dêstes sectários, morreu sem se atrever a abjurar a heresia.

Nem para todos foi perdida a passagem de Francisco por Genebra. Sabendo o apóstolo de que um católico estava ago­nizando na· casa de um calvinista, correu para lá, e tendo mandado sair a todos do aposento do enfermo, pôde confes­sá-lo e administrar-lhe o santo viático, que tinha levado con­sigo naquela viagem; e assim o deixou consolado -e preparado para a morte.

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No albergue em que se alojava, vrvro uma pobre filho do campo, chamado Jacobo Coste, que desempenhava o hu­milde ofício de servente. Deus, que o destinava poro ser um dia uma dos primeiros filhos de São Francisco de Soles rio futuro Ordem do Visitação, tinha-o levado com tal fim o Genebra.

Todos os domingos ia elo à missa num povoado perto do cidod'e, porque em Genebra estava rigorosamente proibido o exercício do culto católico, e a celebração da missa era um crime castigado com a morte; ali, como em todo lugar onde dominava o Reforma, êste era o primeiro ·artigo do código do liberdade religiosa· inaugurada pelo protestantismo.

Apenas Francisco se retirou o seu quarto, apresentou-se-lhe Jacobo, que o tinha reconhecido. Recebeu-a com bondade, ouviu-o em confissão, e, depois de ter anoitecido, deu-lhe a santo comunhão. Perguntou-lhe elo ingenuamente: "Como fareis, padre, pois não tendes clérigos que vos assistam?" -"Minha filha, respondeu, não repore nisto porque os nossos anjos aqui presentes lhes farão os ve.zes, porque seu oficio é orar no presença do Santo Sacramento". Deixou o pobre e santa donzela contente e consolada, e êle por suo vez tirou da entrevista o pressentimento de· que mais adiante haveria de encontrar nela uma ajudo paro o cumprimento do vontade de Deus.

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De volto o Tt:>non, Francisco obteve de seu bispo três zt>losos missionários poro trabalharem com êle no evongeli: zoção do Choblois. Os novos missionários puseram logo mãos à obra e recolheram abundantes frutos do messe semeado e preparado por Francisco. Um dos seus primeiros pensamentos foi o de celebrar com o maior solenidade posslvel o ceremônio dos Quarenta Horas, no localidade de Annemosse, o uma légua de Genebra.

Para lá se tronsladou Francisco, no dia fixado, precedido do fiel Rolando, que levava o cruz, e seguido de uma multidão de católicos, cujo número ia crescendo em cada povoação por onde passavam. Continuaram-se os procissões durante três dias e só cessaram com o mesmo. solenidade.

A ereção do cruz com que se rematou o ceremônia, foi ainda mais comovedora. No momento em que o sagrado signo do salvação, levado pelos penitentes de Annecy, foi ele­vado nos ores e fixado no solo, frente à herético Genebra, um estremecimento passou por tôdo aquela gente que não contava menos de trinta mil católicos. Os protestantes asso­ciados à multidão diziam com lágrimas: "Aí está Deus e nós jamais vimos coisa parecido". Converteram-se muitos, muitos ficaram profundamente impressionados, e uma porte dos ministros de Tonon e dos arredores, renunciando o lutar contra o corrente geral e contra os missionários, ausentaram-se do lugar.

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Tendo ido Fronciséo o Annecy poro pôr em ordem diver­sos assuntos, encontrou tado o região consternado por uma en­fermidade contagioso, que causava espantosos estragos, cei� fondo cada dia novos vítimas. Em vez de tomar um descanso de que tonto necessitava, o santo sacerdote pôs-se o lutar com tôdas os suas fôrças contra o terrível flagelo. Noite e dia visitava os doentes, servia-lhes pessoalmente, consolava e pre­parava-os à morte. A suo saúde, já exgotado pelos inauditos fadigas do apostolado, não pade resistir o tal prova, e, em 4 de janeiro de 1598, viu-se Francisco atacado do mal que o levou em poucas horas às portos do túmulo. O bispo Gronier, desolado pelo iminente perda de quem era seu braço direito, entregou-se à oração com a cidade inteira paro pedir a Deus o cura do Santo. Aplacado o céu, o enfermo recobrou subita­mente a saúde.

Francisco aproveitou disso para regressar logo a Tonon, onde o graça de Deus obrava maravilhas, porque o P.e Hu­moeus, do Companhia de Jesus, tinha convertido êle só dez mil herejes. A mais célebre destas conversões foi o de um senhor chamado Bouvier, o quem uma extronho circunstância tinha posto em relação cÇ>m nosso Santo. Certo dia caçando nos bosques do Chabloís, viu que os cães voltavam paro êle, e tendo saído ao descampado, viu Francisco o falar o um _grupo

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de eompones.es. A prático daquele" desconhecido, sua fé e seu zêlo chegaram-lhe á olmo. Averigou seu nome, foi ter com êle e abjurou publicamente em suas mãos.

·- O mérito e a honro de tôdas estas conversões, ante o� homens e Deus, pertenciam o Francisco. Um milagre es­tro11doso, produzido por suo intercessão, veio o impnmrr .um como sêlo à suo fomo de santidade. Num dos arrabaldes de Toncn vivia uma senhora protestante que até então, apesar de tudo, tinha permanecido na adesão ao calvinismo. Deu à luz um· menino o quem não se apressou em batizar;· o menino morreu pouco tempo depois. A pobre mãe, errlouquecido de dor, quis levar .nos próprios braços o filho ao cemitério. En­contrando-se por ocaso no cominho com São FranCisco, corre poro êle exclamando: "Meu podre, devolvei-me meu filhinho, ao menos pelo tempo suficiente paro que possa ser batizado, e eu me farei católica�. Francisco coi de joelhos e oro. Apenas terminado o aroçãp, o menino abre os olhos, movimenta os membros e volto à vida. A mãe, fora de sí de alegria, fá-lo batizar na mesma momento pelo Santo que está rodeado por imenso turbo de gente. A r:nãe converteu-se pouco depois com tôdo o família.

O duque de Sabóia tinha procurado ir em pessôo organizar no Choblois o religião católica e castigar os perseguidores de outrora. Mas Õ$ instâncias do. sr. bispo Granier e de Francisco

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que advogaram pelos culpados e pelos membros do consistório; renunciou o infligir-lhes castigo. Tanta clemência acabou por ganhar todos os corações: trinta mil almas 'voltaram à Igreja Católico.

A obro do apóstolo estava cumprida; Deus o chamava a outros trabalhos.

Dom Granier, consumido pelas fadigas e alquebrado pelos enfermidades, resolveu tomar Francisco por coodjutor, com di­reito à sucessão, no bispado de Genebra. Às primeiras palavras do santo bisptl sôbre isto, Francisco, cheio de temor e pertur­bação, declarou-se incapaz de desempenhar semelhante cargo e decididamente recusou aceitã-lo. O bispo então encarregou seu capelão de lhe dor o ordem formal de aceitar: Francisco viu-se constrangido a ceder. Foi imensa a alegria de tôda o diocese, porém, de pouco duração porque- se apoderou do Santo uma febre molígna que o levou às portas do sepulcro. Á mesma hora em que Annecy consternada aguardava a notícia de sua morte, Deus, pela terceira vez, devolveu-lhe subitamente a saúde. Apenas restabelecido, partiu paro Roma com o fim de resolver diversos assuntos. O Papo prodigalizou-lhe as maio­res atenções e quis que se sujeitasse em suo presença ao exame imposto naqueles tempos aos bispos. Francisco causou admira­ç-ão o todos os cardeais por suo ciência e humildade e voltou

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poro Annecy com o título de bispo de Nicópolis; porém o suo modéstia fez-lhe odiar o ceremônia do consagração episcopal .

Ao cabo d e alguns meses Francisco teve d e apresentar-se perante Henrique IV, que chegara o declarar o guerra ao .duque de Sabóia. A benevolência e respeito do rei foram tais, que o enviado do duque obteve primeiro o paz, e · logo, apesar dos esfôrços dos protestantes, tudo que solicitou poro o opôio do religião católico no Choblois.

Voltando poro Annecy, Francisco teve de ir ao castelo de Soles, onde o senhor de Boisy, seu pai, estava gravemente en­fermo. Depois de tê-lo consolado e fortalecido poro o último transe, voltou o pregar o quaresma já começado e não demo­rou em receber o notícia do morte do piedoso ancião.

Terminado o pregação, o Santo dirigiu-se o Paris, o pedido de seu bispo, páro defender perante o rei · o causo do culto catól ico no país de Gex. Henrique IV, cada vez mais impres­sionado pelo santidade do apóstolo, concedeu-lhe tudo que pedia. Recusando Francisco um bispado importante e os favores reais, disse-lhe o monarca: "Vosso modéstia vos elevo sôbre mim. Eu me considero acima daqueles que pedem meus benefícios, porém abaixo· dos que os recusam."

Enquanto vo_ltovo Francisco poro suo querido diocese, fale­ceu Dom Claudio de Gronier, e · nosso Santo teve por f.im de

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resolver-se o aceitar por inteiro o ministério episcopal, de cujas dignidades havia fugido até então.

Suo consagração foi assinalada com um prodígio: ao ajoelhar ante o prelado consagrante, iluminou-se seu rosto, viu claramente a Santíssimo Trindade· e cada uma dos três Pessôos divinas deu-lhe uma bênção particular, enquanto o Santíssima Virgem, São Pedro e São Paulo, igualmente visíveis o seus olhos, tomavam-no sob o seu amparo.

O ·fervor e a piedade de Francisco aumentaram ainda mais pelas graças do consagração; o nosso bispo, resolvido o entregar-se sem medida ao serviçp de Deus, começou o or­ganizar por tôda a porte o obra dos catecismos, que êle con­siderava o primeira de tôdas; e, para pregar com o exemplo, êle mesmo o dava às crianças • de sua cidade episcopal, jul­gando seu dever ensinar-lhes os princípios de nossa sanla fé, as primeiras virtudes ·da infância e da juventude. Então ins· tituiu para seus sacerdotes reuniões sinodais que lhe permitis­sem conhecê-los melhor e os entusiasmassem a dedicar-se mais ao estudo.

Rogado paro pregar a quaresma em Dijon, aceitoy, dllpois de se ter aconselhado com o Papa e o duque de Sabóia. Antes de partir poro o cidade mendonada, quis fazer um retiro no castelo de Sales. Foi alí onde, por inspiração divi­na, viu em espírito a senhora Joana Fremiot de Chontat

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que devia ser, por meio dêle, instrumento da Providênci.J para conduzir muitíssimas · almas à sant1dade. Dom Fremiot, célebre arcebispo .de Bourges, era precisamente o irmão da se­nhora de Chantal. Após ter resolvido com êste diversas di­ficuldades concernentes à sua diocese, o apóstolo entregou-se à pregação com o zêlo já costumado.

Tôda a povoação agrupava-se ao redor de seu púlpito. Acudiu também a senhora de Chontol, e encontrando-se

com o Santo à mesa de seu irmão, entregou-lhe o direção de. suo vida e travou ·com êle tJmo dos amizades mais afetuoso;; e angelicais que jamais tenham existido.

A senhora de Chontol, que tinha então trinta e dois anos, era o modêlo dos espôsos. Consorte durante oito anos do intrépido e piedoso barão de Chontol, morto casualmente por um dos seus amigos durante uma caçado, tinha con­sagrado a sua vida aos pobres e aos meninas. Desejando preparar esta olmo eleito aos desígnios de Deus, que êle já pressentia sem conhecer, Francisco levou� pelos suas cortas, a senhora de Chontol o uma piedade mais elevado. Porém, enquanto se empenhava, no recolhimento e oração, o planejar esta Ordem com que Deus queria, por seu intermédio, adornar a Igreja do terra e o do céu, não descuidava nenhuma dós obras de suo diocese.

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Amado por todos, o todos se prodigalizava. Logo que saio de casa, os meninos corriam o. êle, seguiam seus passos e t"ecolhiam-se, por assim dizer, em seus braços paternais; os pobres, por sua vez, encontravam nele o mais seguro e fiel apôio, e os pecadores o mais prodigiosa misericórdia. Todo poro cada um, esforçava-se por atrair o Deus os almas que Deus lhe havia confiado. O dom do profecia iluminov-:1 amiude suo direção espiritual, e penetrando o segredo das corações, arrojava seus penitentes à fogueira do divino amor.

A seus trabalhos juntavam-se êle fêz até o morte com perfeito igual, falando a todos, recebendo fissões, as lágrimas, reanimando e feito objeto de admiração universal mildode do que pela suo abnegação.

as visitas pastorais, que exatidão e caridade sem as confidências, as con­fortalecendo os corações, não menos pela sua hu-

Livrou publicamente mais de oitenta possessos; sua bon­dade para com os · doentes, que êle se comprozia em visitar e ainda muitos vezes em cuidar dêles pessoalmente, chegou o alcançar de Deus estrondosos milagres de cura.

Durante o quaresma de 1606, que Francisco pregou em Chombery na presença do Senado e de numeroso auditório, um dia em que falava do amor divino, tanto se acendeu sua palavra e inflamou seu rosto que se teria dito que ·-percebia daromente a majestade de Deus. Ao mesmo tempo tim cru-

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cifixo que pendia sôbre êle raios de aquela palavra cujo digios retumbantes.

do parede fronteiro ao púlpito, projetou glória. A multidão ouvia com devoção santidade era proclamado por tontos pro-

Antes de deixar essa cidade, Francisco· conferiu as sa­grados ordens o cem eclesiásticos, os quais quis êle próprio confessor antes de ordená-los. E como q repreendessem, por tol motivo de não cuidar de si, respondeu: "Não devia eu lc:vor pessoalmente· estas pobres ovelhas, quando eu mesmo era quem os devia tosquiar?" Com estas doces e encantado­ras formas de linguagem velava suo austeridade e os santos excessos de suo caridade.

De volto o Annecy, encontrou o cidade tôdo sobressal­tada: os Genebrinos, deviam vir poro assaltá-lo. Faziam pressão sôbre Francisco poro que se pusesse o salvo com a fuga; êle., porém, recusou-se a fazê-lo, querendo permanecer no perigo no meio de seu rebanho, ao qual só suo presença 1nfundio coragem. Vieram, com efeito, os Genebrinos até os muralhas do cidade; num domingo quon�o começavam os Véspe­ras. Francisco assistiu, sem se perturbar, ao Ofício divino, " suas orações, mais poderosos que um exército, foram su­ficientes poro que os protestantes, tomando melhor partido arredassem do empresa.

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Seu valor, haurido vézes pelo temeridade.

nos divinos mononc1o1s, raiava às Tendo recebido ordem de Henrique

IV poro se transladar o Gex e conferenciar com o lugar-tenente geral sôbre os medidos tocantes ao exercício do culto, partiu imediatamente. Porém, não sendo possível vadear o Ródono por coüso de uma enchente, tinha que passar pelo ponte de Genebra. Francisco não vaci lou: "Vamos, disse, e juntos à mão de Deus" Ao chegar às portos de Genebra, pergun­taram ao séquito o quem acompanhava. "Ao bispo do diocese", responderam os interrogados. Não sabendo o ofi­cial o que significava o palavra diocese, deixou-o passar De tal sorte, Francisco e os seus atravessaram o cidade onde o esperava o morte, se tivesse sido prêso. Grande foi o des­peito e o raiva dos calvinistas quando soubl(!rom deste ato heróico. Declararam ainda que se Francisco voltasse, lhe fariam cortar o cabeça no praça de Molord, onde êle um dia numa' conferência tinha convéncido de mentira e heresia aos ministros dissidentes.

No meio de todos os seus trabalhos apostólicos, não esquecia Francisco os belos artes e ciências.

Assim é que fundou em Annecy uma academia de filo­sofia,- teologia e literatura. A reputação desta academia, composto de quo[ento membros cpmo o froncesd, à qual

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serviu de modêlo em muitos pontos, difundiu-se muito de­pressa, por tôda a Sabóia e cabe dizer de São Francisco de Sales que, tanto por seu estilo como pela fundação dest3 academia, foi um dos pais da literatura francesa.

Essa ciência da linguagem primorosa e êsse incompa­rável encanto da palavra que brilham nas cartas do Santo, campêam sobretudo nos a9miráveis livros que nos deixou e que atravessam os séculos como monumento imperecível de sua ciência e virtude.

Referimo-nos ao "Tratado do amor de Deus" que compôs nos seus últimos anos, e à "I ntrodução à vida devota", com que principiou sua carreira de escritor. �ste último é, dépois da "Imitação" o livro mais formoso saído das .mãos �umanas.

Foi escrito a pedido de seus amigos e às instâncias encarecidas de Henrique IV, que, digam o que quiserem as numerosas historiadores, transformou-se depois da sua conver: são em um cristão convicto e praticante.

A ressonância desta obra foi imensa e maior ainda o bem que ela faz. Papas, cardeais, bispos, príncipes cristãos, fizeram dêle seu l ivra ·de leitura habitual, livro em que en­contravam, como os mais humildes fiéis, a ciência de servir o Deus e a fôrça de amá-lo. Tpdo o rumor feito por êste l:vro tornava pesaroso o nosso Santo, que não procurava senão humilhar-se. "Eu quisera que me conhecêsseis bem, escrevia

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á senhora de Chantal; então em pouco me terleis. Havfeis de dizer: Eis aí um junco em que Deus quer que me apeie: esteja bem segura, porque Deus o quer; porém o junco ·nada vale". "As águas da graça, dizia outro vez, correm paro as olmos humildes e deixam sêcos os cimos dos montanhas, isto é, as olmos soberbas". Tais eram o simplicidade e a humil­dade admiráveis deste homem todo divino, no qual o gênio igualava o santidade.

Se Fr:oncisco procurava e amava Deus em tôdos os coisas, bendizia sobretudo o mão paternal do mesmo Deus nos provas que se dignava enviar-lhe. No ano de 1 � 1 O repe­tiram-se sôbre êle os mciis terríveis golpes, sem lhe arrebatarem o .serenidade no meio dos padecimentos mais duros poro seu cora­ção amante. A senhora de Boisy, suo mãe, aproximava-se do termo de seus dias. Movido por um pressentimento desconhe­cido, tinha vindo poro fazer, junto de seu filho, um retiro de um mês poro se preparar à morte. Apenas de volto o seu cas­telo de Soles, foi acometido por um ataque de apoplexia. Fran­cisco correu o suo cabeceira. A santo mãe reconheceu o filho, tomou-lhe o mão, e beijando-o piedosamente, disse: "Eu vos dou êste testemunho de respeito como o meu pai". �le; beijan­do-o na fronte, respondeu: "E eu vos dou êste sinal de carinho

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como a minha filha". Recebeu lago os últimos sacramentos e adormeceu placidamente no Senhor.

Ainda a chorava Francisco quando perdeu o P.e Déage, seu preceptor e amigo, que lhe morreu nos braços.

Nunca tinha deixado o mestre de repreender o aluno quan­do se lhe oferecia o ocasião, e o aluno, sempre humilde, nunca havia deixado de escutar os conselhos de seu mestre.

Enfim o morte trágico de Henrique IV acabou de fazer poro Francisco dêsse ano de 16 1 O, o época mais doloroso de suo vida. Seu afeto, reconhecimento e admiração poro com o grande monor.co, tinham conquistado desde muito tempo ao rei de França um grande lugar no coração do santo bispo.

Nesse mesmo ano de I 6 1 O viu na$Cer na dor a Ordem dos Religiosos da Visitação. Francisco, que desde seu encontro em Oijon com a senhora Chantal, tinha-lhe ido formando r1

olmo com esmero, com vistos na fundação de tal Ordem, mon­dou-a chamar por ocasião da festa do Espírito Santo, e lhe disse: Deus vos destinou a fundar. uma Ordem em que pre­sidirão a caridade e doçura de Jesus Cristo,. em que serão ad­mitidas as débeis e doentes, e que se ocupará em cuidar dos enfermos e visitar os pobres.

Meu padre, respondeu o Santa, estou pronta o obedecer ..

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Segundo se vê, o Santo pensava em dar à sua nova Ordem um fim de caridade; porém Deus, que reservava esta glória c

São Vicente de Paulo, dispôs de outra maneira e a Ordem da Visitação devia responder a outros necessidades.

Desde o ano precedente, Santa Joana de Chantol tinha comunicado a seu pai, o presidente Frémiot, o desejo de cansa-. grar-se a Deus. Devendo o barão de Thorens, irmão de Francis­co, casar-se com a filha mais velha da santa viúva, apresenta­va-se a ocasião de ver ao santo Prelado e tratar com êle. Depois que o bispo de Genebra expôs e demonstrou que tal era a von­tade de Deus, o pai e o irmão de Santo Joana deram-lhe seu consentimento, e, tendo-se tomado a respeito dos filhos as providências de família que reclamava a nova situação da mãe, fixou-se a saída desta para fins de novembro. Um novo prazo pedido então pelo pre_sidente Frémiot fez prorrogar a dita saído até a Páscoa se�uinte.

A hora de Deus sôo infalivelmente: podem os homens crer que a retardam, porém, apesar de tudo, chega no instante assi­nalado pela Providência.

Poucas cenas mais comovedoras do que esta separação, encerra a história do dor humana. Achava-se tôda a família reunida na casa do presidente Frémiot. O pai dominado pela emoção, soíu improvisomente de seu aposento para dar largas ao pranto.

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Igualmente Joana, com a rasto banhada em lágrimas, dava �lnais da mais viva comoção. Seu filho Benigno que a amava apaixonadamente, arrojou-se-lhe aos pés e chamando-a com os nomes mais amáveis, suplicava-a entre soluços que desistisse de \eu prop.ósito. Desolada, ainda que sem titub.ear, ela o estreitou rm seus braços e lhe expôs as razões de sua partida, que ne­nhum alívio, porém, causaram ao filho.

Quando, esgotadas as fôrças, dirigiu-se a pobre rnõe para \Oir do aposento, Benigno estendeu-se diante da porta: "Já que não vos consegui convencer, exclamava, saiba-se ao menos que calcastes aos pés vosso filho". A êste grito, ante semelhante atitude, a santa mulher detém-se por um momento, eleva ao céu os olhos rasos de lágrimas e soltando um gemido que re­percute no coração de todos os assistentes, passa por cima do corpo, e pára na' porta, transida de dor e como vencida por sua própria .vitória.

Estava consumado o sacrifício! A senhora de Chantal, acompanhada de suas filhas e seu genro, chegou a Annecy, onde Francisco a aguardava e a recebeu saindo-lhe ao encontro com alguns notáveis da cidade. Em 6 de junho de 161 O, Joana Frémiot de Chantal e suas duas companheiras, as senhoritas de Bréchard e Favre, tendo-se despojado de todos os seus bens dêste mundo, entravam na pequena casa que lhes· tinha sido apare-

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lhodo. O Santo deu-lhes o comunhão e dirigiu-lhes palavras caídos do céu; o seguir' abençoando-os, deixou-os com seu Deus.

Começaram logo os três religiosos seu noviciado e durante êste primeiro ano vieram dez novas irmãs poro aumentar o nú� mero dos noviços. '

Em 1"6 de junho de 16 1 1, o senhora de Chontol e suo! primeiros companheiros emitiram seus votos e consogrorom-s� imediatamente ao cuidadÓ dos pobres e dos doentes, segundc Francisco projetara desde o princípio.

Ao cabo de cinco semanas, a Madre Chantol recebia u1 golpe muito cruel com a morte de seu pai, o presidente Frémiot, Teve de ir, seguindo as instruções do Santo, deixar em regr( o concernente o seus filhos. 1

Fê-lo com grande tino e voltou paro suas irmãs para si dedicar de novo ao serviço dos pobres.

Em breve, vencida de cansaço, caiu doente; porém, Fron cisco fê-lo sarar imediatamente ordenando-lhe tomar umas r� líquias de São Braz; sobrevindo uma recalda mais grave, o Sontq vendo-a nas últimas, deu-lhe para tomar uma poção com url pouco de pó das relíquias de São Carlos Borromeu, e fez vot� de ir, se a madre de Chantal sarasse, o Milão,. em peregrinaçã� à sepultura do santo bispo. Com isto o enferma recobrou en seguida perfeito saúde.

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Tão rapidamente .desenvolveu-se a Ordem da Visitação. que Francisco, a pedido do cardeal de Marquembnt, arcebispo rio Lião, consentiu em fundar nessa cidade uma segunda casa. Foi o ponto de partida de uma importante transformação. Ce­dendo aos rogos do cordial, Francisco modificou as. constituições de suo Ordem e converteu-a numa comunidade de clausura, Inteiramente animada do espírito de mansidão, amor e suavi­dade, sem austeridades corporais consideráveis, porém, com absoluta mortificação do coração e da vontade. Nos "Entreteni­mentos Espirituais" do Santo com suas filhas, campeia o duplo l1m do Fundador: o a...,or de Deus e o despreendimento de si mesmas.

�ste despreendimento de si, o Santo, inspirava-o a suas filhos, não somente pelas palavras, senão muito mais ainda pelas obras.

Pregações, confissões, visitas aos pobres e conversõ.es dos herejes, viagens incessantes em sua diocese e formação dos sa­cerdotes, tudo realizava, como êle mesmo ·dizia "sem se apressar Jamais".

·Não deixou ficar .no esquecimento seu voto e dirigiu-se n MÜõo para rezar junto ao túmulo de S. Carlos Borromeu; foi também a Turim, onde venerou o Sonto Sudário. Tendo realizado a viagem, voltou para Annecy. Enquanto celebrava

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a missa pontificai no dia de P'entecostes, uma pomba, qu voou da abó6ada, foi pousar no sua cabeça.

Igual prodígio operou-se no dia de Natal.. O povo con

penetrado da virtude do prelado, viu nestes fatos extraordin� rios a provo do santidade que Francisco procurava debald ocultar aos olhos de todos.

Nõo passava dia sem que Francisco convertesse algur hereje ou algum grande pecador. Seu porte, seu olhar, um palavra suo enterneciam os corações mais endurecidos. A mesmo tempo em que curava os olmos, sarava os corpos afugentava os demônios com sua bênçõo. Um dia, em qu lhe tinham trazido muitos doentes ao palácio episcopal, fiel Rolando suplicou-lhe os curasse: "Alegro-me, disse so1 rindo, de que o senhor Rolando me ensine o fazer milagres" Logo orou sôbre êles, e abençoando-os, curou {] todos.

Sem embargo, êste poder sôbre os demônios e os alma pecadoras tropeçava às vezes, com um obstáculo insuperá vel daquelas mesmos olmos. Um advogado de Genebra hovi concebido um ódio implacável contra o Sonto e, sempre qu o encontrava prorrompia em injúrias e calúnias contra êle Tendo-se Francisco encontrado com êle,. acercou-se e lhe cfisse ""Vós me quereis mal, e contudo se me arrancardes um off,(: nõo deixarei de -vos olhar carinhosamente com o outro".

Tal doçura nõo foi capaz de desarmar êste inimigo, qu<

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chegou o ati rar, de noite, com o pistola contra as janelas do palácio episcopal e o ferir com espada o vigário geral. Preso 11 condenado à morte, ia ser executado, quando os rogos de Francisco. alcançaram-lhe o graça.

O Santo foi-lho levar ao cárcere e ajoelhond«;�-se pediu­lhe perdão pela ofensa que lhe tivesse podido causar sem

o saber. Êste prodigio de caridade não enterneceu o desditoso

que morreu pouco depois, impenitente e "'iserável. A admirável caridade do santo bispo poro com seus ini­

migos estendia-se o todos que o rodeavam: seus . domésticos, os pobres, os pequenos e os pecadores de modo especial, des­frutavam amplamente de suo inexgotável bondade, cheio de del icadeza e .·agrado. Um dia em que lhe trouxeram um moço afim de que o repreendesse, fê-lo com tonto amabili­dade que. alguma� pessôos lançaram-lhe isto em rosto: ·- "Que quereis? rj!spondeu-lhes: fiz quanto pude para me armar daquela cólera que não peco. Tomei o coração com ambos os mãos e não tive fôrça poro lho atirar. Demais temia derramar num quort? de hora êsse pouco mansidão que desde há vinte anos estou trotando de como um orvalho, no vaso de meu coração".

·o mais, licôr de recolher.

Suo ,beneficência para corri os pobres parecia crescer de ano paro ano a por de sua dignidade e das demais virtudes.

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Todo dinheiro que possuia, seus recursos pessoais, e até os cas tiçais de sua capela, tudo· ia caír nas mãos dos indigentes apesar dos protestos de seus domésticos. Num dia de fri1 glacial, vi�t�" entrar em seu ,quarto um homem tão pobrement' vestido, que tiritava. Movido de compaixão, o Santo foi exa minar o guarda-roupa; mas como não achasse nada nele, des pojando-se das roupas que levava d�baixo de sua batina, deu-a ao pobre. Tendo ocultado muito bem o fato aos seus, perma neceu deste modo até a noite, exposto ao frio de que havi1 preservado seu visit�nte.

Sabendo que o ·sacerdote vive do altar, o bispo de Genebrc aceitava com singeleza aqueles pequenos presentes com qu1 os do lugar o brindavam na ocasião de seu ministério: eran nozes, castanhas, outras frutas, ovos, queijos. Dava aos pobre o dinheiro que recebia e queria que o resto servisse para se1 próprio sustento, repetindo com alegria esta .palavra da Escri tura: "Ditosos sois porque comeis o fruto de vosso trabalho''

Fazia mais do que dar seu dinheiro: dava-se. a si mesma prodigalizando ·seu tempo, sua saúde, seu coração e não pou pondo nada quando se tratava do ?erviço de Deus e das almas

Reprovava-o um 'dia seu irmão por ter concedido umc audiência demasiado longa a uma pqbre criada que tinha id1 ter com êle. - "Nclio sabeis, vós, disse-lhe Francisc:;o, . que. o bispos são coma grandes bebedouros públicos, de

"onde todo

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têm direito de tirar e onde vão matar a sêde, não só os homens, �enão também os animais?"

Enfim, para re\lumir a vida de nosso Santo, servir-ncís-emos do expressão de S. Vicente de Paulo, que tão be,.traduzia a opinião unânime dos povos: "Que sereis vós, ó -meu Deus se o bispo de Genebra, que não. é mais que homem, é tão bom?"

- Em Paris, para onde Francisco teve cte voltar para tratar do matrimônio do príncipe do �iemonte corri a princesa Cristina de França foi que Vicente de Paulo viu e qpreciou o santo bispo. Nesta ocasião Francisco . pediu a São Vicente de Paulo aceitasse a direção do mosteiro da Visitação que- êle acabava de fundar em Paris.

Não obstante os maiores esforços feitos para retê-lo na r-:rança, Francisco de Sales, apenas combinado êsse matrimônio, apressou-se a voltar o sua amada diocese, muito em breve, para novas viagens a Pinerolo e a Turim, e fin!;!lmente para a últyna a Lião ande iria morrer. Conhecia por .inspiração di­vina que a marte o (!guardava no têrmo de sua viagém. Depoi� de ter regulado todos os assuntos de sua diocese com "João Fran­cisco de Sales, seu coadjutór e i rmão, pôs-se a caminho, rodea­cto de todos os notáveis da cidade que choravam .a saída da­qlele 'CI quem não voltcir.i�m a ver neste .mundo. De Avinhão, para onde se dirigi'-! primeiro, chegou a Lião com o rei Lt�;z

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XIII e o duque de Sobóio. Alojou-se no convento do Visitação, numa pobre olcovo da casa do jardineiro.

Quase ao �esmo tempo chegou a Li�o Santa Joana de Chantal, que andava então visitando os mosteiros de sua Ordem. Três anos já se tinham passada que- não via seu pai espiritual. Entreteve-se com êle quatro horas e recebeu, como de Deus mesmo, suas instruções que haviam de s�r ·os últimos.

A madre Chontol tinha prosseguido o curso de suas v isi­tas, e Francisco, por suo porte, dispunha-se a deixar o cidade de Lião, que tinha edificado com suas virtudes, e onde, entre outros predições, tinha anunciado à senhora de Olier que ·seu filho havia de ser um dia uma dos glórias do Igreja do França, quando, em 27 de dezembro de 1622 pelos duas horas do tarde, foi acometido de um ataque de apoplexia.

Os solicitas cuidados com que o socorreram imediatamente, fizeram-no voltar o si; porém, Francisco bem sabia que tinha chegado poro êle o hora· do recompenso.

Preparou-se, portanto, à morte com o mais intenso fervor, recebeu o extrema-unção e aguardou, tronquilo e impossível até o fim, o instante de adormecer no ósculo do Senhor.

- O santo enfermo não cessou até o ultimo transe de consolar, aos que o cercavam, abençoando-os e exortondo:os a submeter-se à vontade divino. Em 29 de dezembro, ao cair da noite, pronunciou o nome de Jesus, e, enq�.:�onto se rezavam os

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últimas orações, entregou sua alma ao Creador. Desde oquele momento começou para o Santo um culto público que Deus mes-·

mo favoreceu com, inumeráveis milagres. O corpo foi transportada paro Annecy, onde descansa até hoje. Dez onos mais tarde, quando foi aberto o ataude na presença de Santa Chantal e dos comissários do Papa, encontrou-se o 'corpo inteiro, como no momento em que a olmo o tinha deixado para o céu. Santa Chantal, tomando a mão do Santo, colocou-a sôbre a própria cabeça, e a mão, animando-se, estreitou-lha como em uma c9rícia paternal.

As insistentes e renovadas súplicas dos bispos aceleraram o canonização, 'que foi decretada em 19 de agôsto de 1 665. Em 1877, Pio IX proclamou São Francisco de Sales Doutor da Igreja, e Pio XI em 1923 designou-o autêntica e solenemente patrono celestial dos escritores católicos.

A influência de São Francisco de Sales irradia-se ainda como no dia da morte do ilustre Con'fessqr.

Aí estão essas admiráveis filhas da Ordem da Visitação, os Salesianas, cujos conventos formam como outras tantas co­lunas vivas de orcçqes e penitência elevados entre a terra e o céu, para conter a ira divina pronta a descarregar-se sôbre a humanidade culpável; aí estão tôdas essas obras que o reconhe­cem como fundador, inspirador e patrono.

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Aí está · finalmente o Obro Solesiono, de São João Bosco. 'Extroimos do volume 1 1 dos suas Memórias Biográficos: Al­guém poderio perguntar aqui: - Como e porque · O Oratório foi dedicado o São Francisco de Soles e honrado com seu nome? - Dom Bosco, achando-se ainda no Instituto Eclesiástico (poro aperfeiçoar-se nos estudos e no sagrado ministério) já tinha for­modo o propósito de pôr tôdos os suas obras debaixo do pro­teção do Apóstolo do Choblois; mos esperava que o P.e Co­fosso lhe manifestasse seu pensamento sôbre êste particular. O P.c Cofosso pronuncio�-se e escolheu São Francisco de. Soles poro patrono do Oratório. Dom Bosco aprovou a eleição por três razões: Primeiro, porque no local que o marquesa Barolo lhe tinha cedido poro iniciar o suo obro mondara pintor um quadro do santo bispo de Genebra. Em segundo lugar, porque o missão que Dom Bosco tinha empreendido poro com o ju­ventude, requeria grande colmo e mansidão, e por isso o que­rio pôr sob o proteção de um santo que fôsse modêlo perfeito desta virtude.

Uma terceiro razão tinha também suo fôrça: Vários erros, especialmente o protestantismo, começavam o insinuar-se insi­diosamente no povo e de modo particular no cidade de Turim. Oro, recebendo-o por patrono, Dom· Bosco quis gronge-ar poro si o f�vor daquele santo, poro lhe alcançar do céu aptidão es­pecial no emprêso de ganhar os olmos poro o Senhor; luz e

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coragem poro combater com êxito os mesmos inimigos do6 quais São Francisco tão gloriosamente tinha triunfado durante sua vida mortal poro glória de Deus e do Igreja, e poro proveito de inumeráveis cristãos. Em uma palavra, julgava que o es­pírito de São Francisca de Sales era o mais adaptado aos tempos paro o educação e instrução popular.

A São Francisco de Sales dedicou São João Bosco sua pri­mei ra igreja; com grande solenidade celebrava suo festa, data na qual reunia, nos primeiros tempos, todos os diretores de sua.s casas poro ouvir relações e propostas e comunicar instru­ções. Quis que sua família religiosa, tivesse; em vez do nome do fundador, o do santo bispo e doutor da Igreja, intitulando-se Pia Sociedade de São Francisco de Sales ou Pia Sociedade Sa­lesiana.

Continue o Santo a exercer sua proteção sôbre o Obra de Dom Bosco com a maravi lhosa eficácia com que .o tem feito até o dia de hoje!

A. R • . R.

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PRIMEIRA PARTE

§ I

Da Verdade Caritativa

Falando da correção fraterna o nosso glorioso S. Francisco de Sales com seu discípulo o Bispo de Belley, lhe deu esta excelente doutrina, que pode ser útil para todo o gênero de pessôas, e principalmente para os que têm súbditos a seu cargo : A verdade que não é caritativa, procede de uma caridade, que não é verdadeira. Palavra fiel, digna de ser bem recebida, e frequentemente me­ditada.

Êle sabia com certeza que aquêle seu discípulo nos primeiros tempos do seu ministério episcopal se portava nas visitas com demasiado zêlo, e, falando mais

·clara­

mente, verdadeiramente indiscreto; fazendo com êste es­pírito repree·nsões ásperas, acompanhadas de palavras duras. E discorrendo com êle a êste propósito em uma particular conferência, com a sua prudência costumada, e singular destreza (que não eram menos admiráveis do que a sua mimosa doçura) concluiu repetindo aquela grande II).áxima, digna de andar bem impressa na me­moria : A verdade que não é caritativa, procede de uma caridade que não é verdadeira.

Com efeito, as pessoas de autoridade, constituídas na obrigação de corrigir os súditos repJreensíveís : devem, quando proferem verdades de dura digestão, tirar-lhes primeiro tôda amargura e aspereza no fogo da caridade, e nas águas da prudência; porque de outro modo serão

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um fruto mal maduro, que por insípido e indigesto, nada terá de bom alimento.

§ 11 Como se pode conhecer se tem a verdade

a · raiz na caridade

Perguntando o Bispo de Beley ao nosso Bem-aven­turado, como se poderia investigar, se procedia da cari­dade a fraterna correção? Êle lhe respondeu com a solidez de juizo, que servia de fundamento a tôdas as suas ações e de luz ·a tôdas as suas palavras : A verdade procede da caridade, quando a mesma verdade se diz só por amor de Deus, e pelo bem da pessoa que é repreen­dida. Resposta notável, que toca o verdadeiro termo, e último fim de tôdas as nossas ações. Porquanto a· quali­dade própria da· caridade (entre os- muitos sinais que a distinguem das outras virtudes) é não procurar os seus interêsses.

O fim principal das outras virtudes é o bem da creatura : só a caridade, como S. Paulo ensina, tôda se dirige. pata Deus, e para o que lhe diz relaçã,o, como seu último fim. E portanto, se o que repreende a outro não tem por motivo a honra de Deus, e a felicidade eterna do que é repreendido : a verdade da sua correção não pro­cede da raiz da caridade. Donde se deduz que melhor é calar uma verdade com prudência, do que intimá-la com aspereza. Como seria .sem dúvida apresentar uma boa iguaria, porém mal preparada; ou dar fora do tempo uma boa medicina.

§ III

Outro sinal de a verdade proceder da caridade

Como o coração do nosso Santo era todo cheio de mansidão : O espírito de doçuro, dizia êle, é o que jaz a correção animada da caridade, a qual, como diz S.

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Paulo, é benigna, sofre e tolera tudo. E Deus, que e Caridade por essência, conduz com doçura os seus :juizos, e ensina os seus s�gredos aos benignos. Acha-se o seu espírito em um vento suave, gracioso,· e não no estrondo da tempestade, nem no rumor de muitas águas.

Proc·ura pois; aconselhava sempre ao seu discípulo, ser o mais doce que pudéres, e produzirás maior fruto; porque mais moscas se caçam com uma colher de mel, que com cem. barris de vinagre. Nada é mais amargo do que a noz verde, porém confeccionada com açucar, é, sôbre doce, amiga do estômago. Assim a repreensão, que é áspera de sua natureza, modificada. com a doçura., e cozida no jogo da caridade, se jaz tôda cordial, e por isso mesmo deliciosa.

Mas a verdade, replicou o discípulo, sempre é ver­dade, por · tôda a forma que se diga, e de qualquer modo que se tome. E o Apóstolo S. Paulo d.izta a Timóteo: "Préga a palavra, tnsta, oportuna e importunamente, re­preende, e conjura em tôtkJ, a paciência e doutrina".

Assim é, respondeu o Santo, e o espírito dessa lição Apostólica consiste naquelas duas palavras, "em tôda a paciência e doutrina.". Porque a. DOUTRIN.I\. significa a verdJade, e esta verdade deve ser intimada com paciência, suportando qualquer repulsa; como quem não ignora que nem sempre a verdade é bem recebida. Porque assim como o Filho de Deus esteve exposto à contradição, tam­bém a sua doutrina (que é a verdade) tem de ser mar­cada com o mesmo sêlo.

E todo o homem, que tem de ensinar aos outros o caminho dd justiça, deve estar pronto para receber, como seu salário, ingratidão, sem razões e desordens.

§ IV .

Da caridade -e castidade

Nos primeiros tempos da sua direção dizia o Bispo de Belley ao nosso Santo: No meu espírito combatiam

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duas virtudes, quais eram a caridade e a castidade. Por­qUanto a caridade, como forte e robusta, se avança a grandes emprêsas paro honra e glóriq de Deus. Ela não teme a fome, a sêde, a nudez, a perseguição, os cárceres, os suplicios, nem ainda a mesma morte, e o que é mais, nem também a todo o inferno,· contanto que não perca a gra94 dO ·seu Divino Amado, e lhe ofereça hóstias vivas, santas e agradáveis qos seus puríssimos olhos.

E pelo contrário a castidade, que é uma virtude tenra, tímida e delicada, qualquer vista a espanta e uma simples palavra o, inquieta, por isso mesmo que anda, como coberta de olhos e ouvidos; ou como aquêle que levando muito ouro ·e d'hamantes pelo meio de um espêsso bosque, ao menor rumor se esconde, temendo ser acome­tido roubado e morto pelos inimigos ladrões.

Em suma a caridade manda socorrer ao próximo, ou seja são, ou enfermo, pobre o·u rico, moço, ou velho, sem atender à idade, nem ao sexo, nem ao · estado; respei­'bando somente a Deus. Em tôdas as coisas, e a tôdas as coisas em Deus. E pela outra parte, a castidade, sabendo que traz num vaso de vidro um precioso tesouro, que pode perecer em qualquer encontro, anda numa perene ansiedade, e temor contínuo. Logo como poderão con­cordar-se em 'um só sujeito estas dwas diferentes virtudes?

A esta proposta deu o nosso Oráculo uma solução tôda celeste, como sua. E' necessário, .disse êle, distin­guir as pessoas constituídas em dignidade, que têm súdi­tos a seu cargo, dos que se o,oham em uma vida parti­cul!ar, sem outros cuidados, que de si mesmos. O que suposto, devem as primeiras encomendar a sua castidade à sua caridade: a qual, sendo verdadeira, lhe servirá de ]orte escudo, e invencível defesa. E as pessôas parti­cu�ares obrarão com ma:s acêrto, e maior proveito,· come­tendo a guarda da caridade à sua própria castidade.

E a razão disto vem a ser: porque os superiores, que pelo seu cargo, se vêm obrigados a expôr-se aos perigos inseparáveis dias ocasiões, são assistidos da divina graça,

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contanto que não tentem a Deus por temeridade. O quE 1140 gozam os particulares, expondo-se aos acasos, sem llgit�ma vocação; senão sempre certo, QUE o QUE AMA c I'IRIGO (e muito mais o que o procura) PEQCERÁ NiLE

§ v

Notável paciência

Oferecendo-se o no.sSo .Santo por fiàdor de uma soma considerável de um fidalgo seu parente e amigo, chegad.(J u termo prometido, quis logo o credor impaciente r�bel o seu dinheiro do santo Bispo. O qual com todo o bom n1odo lhe representou que o fidalgo devedor não tardaria muito em vir do Exército, para onde partira por ordem do Rei ; e que êle tinha em bens livres mais .de cem vêzes do que importava o seu principal. ·

Mas o credor, ou par se ver em alguma consterna­çlo, ou talvez pelo seu mau humor, não se dando por 1o.tlsfeito com aquelas escusas tão justas, instava forte­mente pelo se� dinheiro, e declamava a êste respeito por tOda a parte, sem conceder tempo ao venerável bispo para poder avisar o fidalgo.

Disse-lhe então o mesmo Santo com admirável bran­dura: Monsieur, eu sou· vosso pastor: e vós, senão ovelha mtnha, tereis animo para -me tirar o pão àa bôca? Vós bem sabéis que eu estou reduzido a tal penuria, que ape­nas me posso sústentar com a mais estreita parcimonia. E também não ignorais, que só por motivo àe caridade me �onstitui por fiador deste meu amigo: ao qual, se­ounào tôàq a boa rozão e justiça, deveis executar primeiro;

o que tudo não obstante, ·eu tvos abandono, além ào pouco patrimônio que, . 71Z.e resta, todos os móveis que possúo : contanto porém que vós .me ameis por Deus, e o nc!o ofenàais com o vosso furor. Porém aquêle mau ho­meni, .... absolutameilte implacável, prosseguia sempre em vomitar mil calúnias contra o seu virtuoso Prelado : o

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qual recebia tôdas aquelas injúrias, como se fõsselll pé-rolas e .rosas.

·

Até que por último penetrado o Santo de ver a Deus com tal excesso ofendido; e para que não servisse a sua paciência de continuar a ocasião a tantos pecados, disse ao credor

. sem a �enor alteração : Conjessó, mon­

sieur, que a minha indiscreta fiança veio a ser causa da vossa ira. Mqs eu vou jazer tôdas qs possíveis diz·;gências para satisfação vossa. E quero que estejais na certeza, de que ainda que me tirásseis um, dos meus olhos, eu pelo outro vos veria com tanto ajéto, como ao maior amigo do mundo.

Ouvindo isto aquêle protervo, retirou-se mal contente. insultando ainda ao santo bispo com palavras soltas, e não menos picantes. E avisado logo o fidalgo de todo aquêle sucesso, veio com ·presteza exonerar o .seu amigo. pagando prontamente aquêle mau homem. O qual cheio de pejo e confusão, veio limçB.ll-se aos pés do servo dê Deus pedindo-lhe mil perdões : e êle sem o menor reparo não só o recebeu com os braços abertos,_ mas ainda � tratou depois com particular ternura, chamando-o sem� pre o seu conquistado amigo.

§ VI

Sua destreza em desculpar ao próximo

Censurando-se na presença do nosso Santo a certos, indivíduos, que sendo pobres como Job, se inculcavam! por grandes senhores, referindo a cada passo as heróicas

·

ações dos seus maiores . . . replicou êle com bela graça;· dizendo : Pois que querei8 vós? Que es948 pobr13s gentea sejam duas vêzes pobres? Se êles são ricos de honra. pensarão menos na_ sua pobreza; e poderão jazer como� aquêle mancebo de Atenqs, que perdendo o juizo em. uma grave molé-stia, se reputava depois pelo mais rico do seu '

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pa.fs. E sendo cura.do daquêle d�lírio pela. diligência dos aeus amigos, os fez citar a todos pa� que lhe restituíssem 1JOr justiça a sua JJgradável Zoucur.a.

Falando-se outra vez na presença do santo varão com srandes exclamações, e invectivas fortes sôbre Um. crime de fragilidade, cometido por uma pessoa religiosa, êle· só dizia, repetindo de quando- em quando : Miseria humana, mtseria· humana! . . . E que se pode . esperar de nós, senão clelinquir7 . . . Muito pior obraria q'IJ)qlquer de nós dUtros, se nos fa�tasse o divino auxílio.

Por último, continuando ainda a censura e detrações picantes sôbre aquêle delito, exclamou o Santo com espí­rito profético : Oh venturosa quéda, que será ocasião ãe um grande bfr!Tt/ Se aquela alma se não perdesse agora, ctepola se perderia com outras mais. Mas a sua perda será motivo para um grande lucro.

Alguns não deram crédito, nem fizeram aprêço deste expresso vaticínio : mas o sucesso depois o mbstrou ver­dadeiro. Por quanto a confusão da pecadora deu glória &. Deus, não só pela sua conversão, que foi notória; senão também pela que inspirou com o seu exemplo a tô4a a Comunidade, que com geral escândalo andava em desordem.

§ VII

Da Repreensão

Ce�surando o santo padre alguns defeitos a· seu discípulo, lhe dizia : Eu bem presumo, que não será isto contra o vosso agrado,· porque estas s4Q as provas maio­res, que posso dar-vos do meu aféto para ·convosco; e se vós me fizéreis outrotanto, eu conheceria melhor o vosso amor para comigo. Porém e·u vejo-vos a meu respeito demasiadamente circunspécto, e quisera na .verdade; que o não fôsseis tanto.

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Eu dq minha parte vos protesto, que vos amo com extremo, e não posso ver em vós nem o menor defeito. Quisera sim, que fôsseis tal, como desejava S. Paulo ao seu Timóteo. Quisera-vos inteiramente irrepreensível: e por isso as faltas que em qualquer Clutro talvez me pare­cessem ligeiras moscas, reputo-as nq vossa pessôa por gigantes desmarcados.

Impio sem dúvida 3eria o mau cirurgião, que deiXasse perecer uma pessoa, por lhe não curar, como pudéra, uma perigosa ferida. E não será pior nêste supo3to o que (po­dendo, e devendo) omitisse a censura, que seria talvez em ocasião oportuna um vigoroso remédio para a saúde ela alma? o certo é, que assim como a sangria dada a bom tempo, pode restabelecer a temporal vida, fxLmbém uma repreensão feita a propósito, pode livrar da morte eterna.

§ VIII

Das palavras de humildade

N�o aprovava o nosso Santo que se proferissem pala­vras de humildade, quando não procediam de um senti­mento sincero, e verdadeiro, porque em tal caso, dizia "êle, em vez de humildade pura, eram dissimulada soberba. A humildade sincera é tão delicada, que até da sua som­bra tem medo, não podendo ouvir o seu nome, sem temer algum perigo.

O que a si mesmo se censura, não sendo a sua humil­dade verdadeira:, por certo que não gostaria de que se desse inteiro crédito ao mal que êle diz de si mesmo. Donde se deduz que êste só por soberba quer parecer humilde, dirigindo-se pelo oposto extremo à estimação da própria pessôa; bem como aquêle que remando em um batel, vai com as costas voltadas para onde caminha com tOdas as fôrças. - 52 -

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§ IX

Da obediência dos superiores

Perguntando ao nosso santo o· seu discípulo, como podiam Os superiores praticar a virtude da obediência? Respondeu êle : Podem múíto melhor, e mais heróica­mente do que os mesmos súditos. Porque éstes, de modo ordinário� tém sõmente um supemr, a quem obedecem, e sem (:Uja permissão não devem obedecer a outro.

E a obedimcia dos superiores é tanto mais extefWI quanto m�is repetida; pois constituidos por Deus na frente dos outros para sua direção e govêrno: quantlo mandam obedecem. ao divino Superior, que dispõe por. iste modo lhe.s sirva o seu próprio mandar por um verdadeiro ato de obedecer.

§ X

o seu amor à justiça, e seu desprezo das coisas· temporais

Pretendendo certo fidalgo conseguir do noSso santo um violento monitório: procurou êle com as mf!,is ' doces palavras persuadi-lo, a que desistisse daquela emprêsa, que nada tinha de justa. Mas o soberbo pretendente, ofendido da repulsa, clamou dizendo em alta voz - que nAo esperava de um amigo· uma tão clara injustiça! Eu ntfo sou · amigo, repllcou modestamente o santo, se não até o altar, e até onde O· serviço de Deus, e a liberdade da minha consciéncia me ·concedem permissão,. Pedi-me pois o que tôr justo, e sereis- logo Jl,eferido.

Então o supllcanté sobremodo irritado, recorreu ao 1enado de Chambery, c;Ic;mde alcançou um decreto contra o santo bispo, obrigando-o a passa.r o monitório. E per­everando êle, qual rocha firme entre as ondas· na sua primeira negativa, passou-se ordem expressa para se lhe

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fazer apreensão em todo o seu temporal; que todavia • se não executou.

Serenada a tempestade, disse o santó ao seu dis­cípulo, falando-lhe a êsse respeito: Se êles me tirassem o meu temporql, me causariam Q maior bem que jamais me pudera acontecer, tazendD-mt: todo espiritual. E nêste caso eu mesmo os julgaria,· pois como âiz S. Paulo; ...:..

o ·homem espiritual julga tudo, e de ninguem é julgado. - E por outra parte estou bem ce_rto que os meu.s fiéis diocesanos por · sua grande bondade não. me deixariam morrer de tome.

§ XI

Sua humildade modestíssima

Obedecer aos superiores é menos humildade que justi­ça; condescender com os iguais, é civil decência. Mas su­jeitar-se aos inferiores, é sublime ponto de humildade : porque esta virtude observada por êste modo, nos faz conhecer que nada somos, e nos mete debaixo dos pés. de todo o mundo.

Observava pois o nosso santo esta virtuosa prática tanto à risca, que obedecia sempre ao seu criado, quanto ao despir-se e recolher-se, levantar-se e vestir-se, como se · êle na verdade fôsse seu próprio servo. E tendo de éntrar pela noite, além das costumadas horas, ou para estudar, ou responder a cartas: dizia-lhe, que se fôsse recolher, para não ter a moléstia de esperar.

E querendo em certo dia levantàr-se mais cêdo para expedir u:r�a sentença de grave importância, chamou o criado para o ajudar _a vestir-se. Porém êle se achava de todo surdo ; porque estava submergido em um pro­fundo sono. Levantou-se logo o vigilante pastor, para saber onde estava o tal criado ; e vendo-o dormir a sono solto, não o quis despertar, por lhe não ser molesto; e se foi- a orar, estudar e escrever.

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Levantando-se pois o mancebO no seu t�po costu­mado, e vendo ao entrar no quarto do amo, que êle estava trabalhando, já de todo compostã, lhe perguntou seca­mente, quem o ajudara a vestir-se? Eu mesmo, respon• deu o santo prelado, eu só; ·que 1á não sou menino, e tenho parct isto o vigor que bast4. - Pois custava-vos muito, replicou o maneebo, o chamar por mim, segundo o costume? - .O' meu fliho, disse o santo v.arão, eu assim o fiz mais àe uma vez. Porém vós não me respondeste&.

Eu pois querendo saber onde estáveis� e vend�-vos dormir com tão bela graça, ;uzguei que o despertar-vos seria matéria de consciência. - Vós senhor, . replicou o criado pouco atento, teríeis ainda melhor graça, se não Jizésseis de mim zombaria. - O' meu amigo, respondeu o paciente e humilde prelado, eu talo sério, e não gracejo. Mas eu vos prometo, que não deixarei de vos chamar até que acordeis: e quando não, eu mesmo vos farei levantar, E como o quereis assim, nunca mais me tornarei a vestir, sem q.ue vós me ajudeis.

§ XII

Sua doçut:a para com os domésticos

Entre os famiiiares do nosso santo achava-se 'um de hela presença, virtuoso, simpático e de tão amáveiS quali­dades, que · muitas pessoas distintas o de8e]aYam pará seu genro. O que sabido por êste mancebo, e :nãO lhe sendo desagradável aquêle pensàmento fez que se falasSe a seu amo para. haver de prestar o ·seu· beneplàcito.

E o servo de Deus lhe disse logo: O' meu caríssimo, eu creio que vós não duvidais à� qu� amo a v03sa alma, como a minha própria, e que não há bem algum, que eu 110s não saiba desejar. O que suposto, como sois um man­rebo de boas qualidades, pode ser que essas pessôas pre• tendam d-everas a vOBBa aliança. Mas o meu conselho de Ctmigo é, que

· penseis primeiro com madureza na

·preSente

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matéria po_rquanto, depois do embarque, tOdo arrependt­mento é inútü, � o matrimônio é uma certa ordem, que se tivesse primeiro um ano de aprovação, como se pratica nos claustros, contaria depois poucos professas.

Além de que, que mal vos fiz eu, para me quererdes dei:Dàr! Eu como já ve'Uto, não tenho de viver muito; e deixando-vos recomendado a meu irmão, êle vos dará um bom cômodo, que nada será interior ao que agora pode­reis ter. Ouvidas estas palavras prostrou-se aquêle man­cebo aos pés de seu amo, pedindo-lhe perdão do seu pensamento, e fazendo-lhe muitos protestos de o se.rvir até a morte. E o santo lhe disse logo: Não, meu filho, eu nada empreendo sôbre a vossa liberdade : mas dou-vos um conselho de amigo, como eu faria com meu irmão, se êle fôsse da vossa idade. Assim tratava o servo de Deus aos seus domésticos, como verdadeiro pai de família; reputando e estimando a todos; como seus próprios filhos.

§ XIII

Caridade da castidade, e castidade da caridade

Falando-se na presença do nosso santo sôbre certa donzela de ilustre casa que caira numa ·falta escandalosa, ãisse êle : E' para admirar que haja tanto zêlo e cari­·dade pelo que respeita à castidade; havendo tão pouca pelo que diz rela,ção à castidade da caridade! E explicou dêste modo o seu sentido :

E' tãO certo, que todos têm zêlo para com a conser­vação da castidade, que ainda a,quêles mesmos que a não amam, a louvam; e os que a não observam, a fazem guardar pelas pessoa,s, que dêles dependem. No que sem dúvida sáQ louváveis; fazendo-se precisa tôda a boa dili­gência para a conservação de táQ rico tesouro, em que muito se interessa a honra das famílias e a decência pública.

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. . . . Mas prouvera a Deus, <fUe nós tivéssemos outro tanto cllo pela castidade da caridade; que consiste na pureza e perfeição desta virtude, e mãe e rai11,ha � tôdas as outras; sem a qual não são virtu4es verda.deiras, nem ttm mérito algum para com Deus. E destas caridades falsas há muitas, com que se ofende a Deus, e ao próximo com o simulado pretexto e indiscreto zêlo da mesma caridade.

E portanto se costuma dizer, que o zêlo é uma vir­tude perigosa que- poucos s�bem praticar como é devido; �mitando muitos nesta parte aquêles me�us pedreiros, que entrandO a COn$ertar um telho,do, ciqusam maior ruína. O certo é, que só vendo q Deus em tódas as coisas, e tódas as coisas em Deus, se observa a castidade da caridade com o legítimo zêlo, qúe deve pro,ticar um fi.el cristão.

Com esta diversão prudente desterrou o nosso santo aquela prática murmuradora, e� que Deus era ofendido e a criatura injuriada.

§ XIV

Sôbre o procedimento pomposo

Mandado o ·nosso santo no ano de 1619, acompanhar até París ao Cardial de Saboia (que tinha de assistir aos desposórios do príncipe do Piemonte, seu irmão, com a Infanta Cristina de França, irmã do Rei �enrique, · o Grande) um fidalgo protestante foi a sua casa por modo de visita. E introduzido à sua presença, sem mais clllil­primento, lhe perguntou logo : Vós sois o Bispo de Gene­bra? - Assim me chamam, respondeu o prelado.

Quisera eu pois, continuou o fidalgo, saber de vós, a quem todos· veneram por um varão apostólico, se os Após­tolos andavam · em carruagem? Andavam, respondeu pronto o servo de Deus, - andavam em carruagem, quttn­do · a ocasião se oferecia. - E consta isso da Sagrada Escritura? p�guntou o fidal;o. - Sim, disse o sant:o;

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Lêde o capítulo 8 dos Atos Apostóllcos: e vereu; ao Diá­cono S. Filipe viajando em carruagem com b eunuco da Rainha Candace.

Oh! replicou o protestante-, a carroça era do eunuco, e não do diácono. - A3sim é, respondeu o santo, mas eu não vos disse, que a carruagem era sua; senão que ofe­recida, a ocasião, andavam os santos ooquele tempo em carruagem. Contudo, replicou o fidalgo, - não eram car­ruagens douradas, como aquelas em que vos vejo. E se assim se pode ser santo, não há caminho mais cômodo para. chegar ao ParaJ,so.

Ah Monsieur, exclamou o nosso santo, os governado­res de Genebra, que retêm os bens do meu bispado, me constituíram· em tal pobreza, que. ainda que eu quisera, não podia ter carruagem própria. - Pois· a carruagem em que vos tenho visto, instou o protestante, tão majes­tosa e magnífica, não é vos�? ·- Não, respondeu o santo bispo, e vós tendes razão para a denominar majestosa, pertencendo ela a sua Majestade, como bem podeis co­nhecer pelas librés dos condutores.

Estou satisfeito, concluiu o fidalgo, e já vejo, que soiS um varão santo: e me compadeço de serdes um pobre bispo. - Eu não 111J:. queixo da minha pobreza, disse o servo de Deus, porque tenho o que basta para viver com parcimonia. Nem devo, nem posso ressentir-me d� uma coisa, que o Divino Salvador praticou neste mundo, vi­vendo e morrendo entre os braços da maior pobreza.

§ XV

Aceita o desafio de um ministro protestante

Pregando o nosso santo na cidade do Grenoble os sermões da Quaresma e Advento, houve tal conc�rso ho seu auditório, que as igrejas dos protestantes ficaram desertas. Então pois um dos_seus predicantes, homem tur-

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bulento e soberbo, depois de muitas invectivas e uecla­mações injUriosas contra o servo de Deus, o desafiou n trevido para uma conferência publica num dia certo na'

presença do magistrado. Aceitou- o santo o desafio. E dizendo-lhe uma pessôa

de mérito, que se não expusesse àquêle encontro, porque o tal ministro, sendo de um humor insolente, a sua bôca era do inferno, a sua Iígua a mais contagiosa do mundo . . . Bom (respondeu o bem-aventurado) estimo essa notícia. E declarando-lhe mais o amigo, que o tal ministro o tra­taria indignamente, reputando-o por um homem de nada. - Ainda melhor, acrescentou o santo bispo, isso é o que cu desejo; porque da minha contusão resultará m'Uita olória a ·Deus.

Pois vós tazeis gôsto, replicou o amigo, de que venha a cair a vossa qualidade em bpróbrio? - E porque não, respondeu o servo de Deus, o Divino Salvador não recebeu outros m·uitos, e incomparavelmente maiores? Ah meu bom amigo! Eu vivo na certeza, de que quanto mais formos indignamente abatidos, tanto mais será Deus magnificamente exaltado; porque é prática, do mesmo Senhor tirar a sua honra, da nossa humilhação.

Mas o infernal inimigo temendo perder naquele jôgo, sugeriu tantas e tais razões de prudência humana àquêle ministro e seu aliado,- que desconfiando das próprias fôr­ças fizeram suspender a proposta conferência pelo Tenente cio Rei, que era também da sua crença e de seu partido.

§ XVI

Estimação que fazia o santo de um eclesiástico que fôra seu mestre

A êste virtuoso eclesiastico, que lhe ensmara as pri­meiras letras, e depois o acompanhára nos estudos maio­res, que fez em Saboia, París e Pádua, tinha o servo de

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Deus todo o respeito, como a seu pai, diretor e mestre. E chegando depois a ser bispo, lhe deu logo uma conesia, conservando-o sempre em casa e à sua mesa.

Tinha pois êste bom padre, justamente agra.decido, um tal zêlo da honra do seu discípulo, que- não podia suportar se dissesse na sua presença uma só palavra em seu desabono. Mas o servo de Deus (cuja grande b,umil­dade n� quisera que o virtuoso eclesiástico fôsse tão sen­sível a seu respeito> lhe disse uma vez: Vós fazei:3 juizo de que eu sou todo perfeito, ou que já sou santo? - Se o não sois, respondeu o mestre, desejo Cfue o sejais.

Para cujo efeito o sincero eclesiástico lhe censurava em tôda a ocasião várias coisas (que êle sem razão repu­tava por faltas) com uma tal liberdade, que alteraria sem dúvida a qualquer outra paciência; e que só poderia ter escusa pelo zêlo ardente do mestre, e doçura incom­parável do discípulo.

§ XVII

Sôbre a verdadeira perfeição

Tenho ouvido a muitos, dizia o Santo, falar da per­feição; mas vejo que são poucos os que a observam, como deve ser. Cada qual discorre a seu arbítrio, fabrica uma pt:rfeição de vida a seu modo. Porque uns a constituem na austeridade dos vesticUJs; o·utros na, parci7nonia do alimento, outros na prestação da esmola, outros na fre­quentação dos Sacramen,'tos; outros nos exercícios da

oração, outros nas graças extraordinárias, denominadas gratúitas: e todos êstes se enganam: tomando os meios pelo fim, ou os efeitos pela causa.

Eu, pois, quanto a mim, não sei, nem conheço outra perfeição verdadeira, fora de àmar a Deus com todo o coração, t: ao próximo como a st mesmo. Tôda a perfei­ção, sem esta, é •uma perfeição falsa. A caridade é o

próprio laço da perfeição entre os católicos, e a única

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virtude, que nos une a Deus e ao próximo, como é justo; em que consist� o nosso último termo e consumação final. E portanto, os -que nos designam outras perfeições sem esta, nos enganam.

Tôdas as virtude,s, por maiores e mais excelentes que pareçam, nadq são sem q caridade. Porque tudo o que se não funda nesta virtude, está na morte, como diz o Apóstolo S. João. E consequentemente, tôdas as obras, por qualquer bondade aparente qu� tenham, são obras mortas e de nenhum valor para a eternidade.

Eu sei, que as austeridades, a oração, e outros exer­cícios de virtude, são muito bons meios para chegar a perfeição; contanto que se façam em caridade, e por motivo desta virtude. O que suposto, como indubitável e certissimo, segue-Sf: por consequência, que se não deve colocar a perfeição nos metas, mas só no fim, a que êsses meios conduzem; porque de outra sorte seria parar no caminho, em vez de chegar ao têrmo.

§ XVIII

Conferência do Santo com o seu discípulo, a respeito do p�nto precedente

Perguntando ao nosso santo e ilustríssimo bispo seu discípulo, - Que coisa era necessária para chegar à per­feição verdadeira ! E' preciso, lhe respondeu, ama; a Deus sôbre tudo, e ao próximo como a si mesmo. - Eu não vos pergunto, replicou o discíp�o, qual é a perfeição; senão quq.l é o caminho para a conseguir?

A caridade, respondeu o santo mestre, é uma virtude admirável e em tudo sublime. Ela é o meio e o fim, o caminho e o termo sendo o caminho · próprio para se chegqr a ela mesma, e fazer progressos na perfeição. Ninguém, faitando-�he a caridade, chega ao último fim, que é Deus; porque ela é a mesma verdade. Ela é a vida

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da alma; porque nos transfer� da morte do pecado à vid�J da grar;a. Ela, enfim, nos participa a fé, a esperança e tôdas as outrqs virtudes inteiramente vivas e animadas. Por onde, assim como a alma dà vida, e robustez ao corpo : também a oa,ridad� é a vida e perfeição da alma,.

·

Tudo isso confesso, instou o discípulo, mas desejo instruir-me sôbre o que devo fazer para amar a Deus sôbre tudo e ao próximo como a mim mesmo? - E' pre­ci3o, repetiu o Mestre, amar a Deus sôbre tudo, ao pró­ximo como a si mesmo. Ainda fico na me.mw dúvida. replicou o discípulo, porq·ue de,sejo saber um meio pró­prio para amar a Deus sôbre tudo, e ao próximo como a mim mesmo. - Sim, respondeu o santo, o meio mais pró­prio, mais útil, mais breve, e mais cômodo .para amar a Deus sôbre tudo é amar à Deus com todo o coração . . .

Assim teve o santo e sábio Mestre suspenso ao seu discípulo, até que por fim se explicou, dizendo: Muitos, como vós, me têm perguntado pelo método e meio par­ticular para conseguir a perfeição. E eu sern.pre lhes res­pondi que não sabia outro meio mais eficaz, nem mais próprio do que amar a Deus sôbre tudo, e ao próximo como a si mesmo.

Assim pois, todo o grande segredo para chegar a este amor, é amar. Porque assim como se aprende a estudar. estudando; a falar falando; a correr, correndo; a tra­balhar, trabalhando; etc., assim também se aprende a amar a . Deus e ao próximo, amando.

&im, meu caríssimo, e firmai-vos bem neste ponto. Amai a Deus e ao próximo. Amai muito e em todo o tempo. Amai a tôda hora e cada vez mais. Amai, amai. e não descanseis. Fazei cada dia novos progressos .em tão suave exercício; porque a caridade neste mundo, por mais sublimes que sejam os seus vôos, nunca chega a tão alto ponto, q'Ue não possa receber aumento. Razão pela qual ainda os mais adiantados, considerando-se sem­pre, como no princípio, vão dízendo como Davi: - Agora começo.

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§ XIX

Prossegue-se a conferência do assunto precedente

Eu bem sabia, disse ao nosso Santo o seu virtuoso discípulo, que a perfeição cristã consiste na caridade pura, que é amar a Deus por amor dêle mesmo e ao pró­ximo por amor de Deus. Mas se o amor é a paixão pri­meiro do coração humano, que nos leva a querer o bem para o objeto amado: que_ bem podemos nós querer a Deus, que em si não tenha, sendo :tle a Bondade essen­cial, e Q Bem sumo?

Podemos, respondeu o Santo, podemos desejar a Deus duas sortes de bem: um que :tle sempre possue: gozando­nos com amor de complacência de ser :tle o que é, sem faltar coisa alguma à suma grandeza· da sua perfeição infinita. E podemos depois com o nosso amor de bene­volência desejar a Deus outro bem, que em certo modo lhe- falta; dando-lhe na realid,ade, e com efeito, se está em nosso poder o · procurá-lo; ou só por afeto e desejo, .�e não está na nossa mão o consegui-lo.

E' este precioso bem (denominado exterior J o que provém da honra e glória que lhe rendem as creaturas tôdas, principalmente as racionais e virtuosas. E por­tanto, amando nÓ6 verdadeiramente a Deus, lhe oferece­mos o se·u maior bem· por nós mesmos, gozando-nos da. sua eterna felicidade, e referindo para sua maior glória todo o nosso ser, e tôdas as nossas operações, até as _mais indiferentes. E aplicamos depois todos os nossos esforços para conduzir os outros . ao seu amor e serviço, a fim de que :tle em tudo e por tudo haja de ser glorificado.

E nesta mesma conformidade, amar ao próximo em Deus, é gozarmo-nos do bem que êle possue, em quanto­póde servir para glória do mesmo Senhor: é prestar-lhe todo o possível, que êle .nos pede na sua necessidade: e é ter zelo da sua salvação, procurando-a como a nossa, pelo motivo principal de que Deus assim o quer. Eis àquí

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pois o que é ter legítima caridade, a.mando sinceramente a Deus por amor dêle mesmo, e ao próximo também por amor do mesmo Deus, em que sempre consiste a verda­deira perfeição.

§ XX

Do amor dos inimigos

Dizendo ao nosso santo uma pessôa de sua amizade, que nada achava no Cristianismo mais dificultoso do que amar aos inimigos, lhe respondeu êle : E eu não sei como é o meu coração; ou como Deus foi servido crear-me um de novo, pois que não só não encontro dificuldade em praticar êste preceito, senão que tenho tal prazer, e sinto nêle uma suavidade tão deliciosa, e tão particular, que se o preceito jôsse o não amar os inimigos, me custaria obedecer.

Com efeito sendo o santo consideravelmente ultra­jado por um fidalgo soberbo, depois 'de muitas razões que lhe expõs com a· maior doçura para lhe aplacar o furor, concluiu dizendo : Sabei de certo,. que eu sou tanto vosso, que ainda que vós me arrancásseis um dos meus olhos, eu pelo outro vos veria sempre oom tanto afeto, como se fôsseis o meu maior amigo no mundo.

E' bem verdade, dizia o santo · a seu amigo, que nin­guém deve amar o vício do seu adversário, nem o seu ódio, ou a sua inimizade com que êli� desagrad.-z c ofende a Deus. Mas tudo bem se pode jazer, separando o pre­cioso do vil, e não confundindo jamais a semrazão do pecado com a pessoa do pecador.

Ah meu bom amigo! Assentemos de uma vez neste ponto. Que ninguem deve isentar-se de amar ao seu inimigo, por mais e mais que se lhe oponhq a semrazão da ofensa recebida. Pois porque não olharemos com bom afeto aqúêles a quem o mesTnD Deus suporta? E muito mais tendo aquêle grande exemplo diante dos olhos, a

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Jesus Cristo na Cruz orando pelos seus inimigos, que não eram sómente os que o blasfemavam, e lhe pregavam os cravos: senão também aquêles, que o maltratam e perseguem em nós outros, por Ble muito amados, como seus místicos membros.

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SEGUNDA PARTE

§ I

Da humildade e castidade

Instruindo o nosso santo ao seu amável dis-cípulo, lhe· disse em certa ocasião : Há duas grandes virtudes -a humildade e a castidade - que merecendo ser estima­das, e praticadas por todos, contudo, se possível tosse, não se deveriam nomear; -ou tão poucas vêzes, que a sua mesma raridade passasse por verdadeiro 6ilêncio.

Ouvindo ê�te misterioso paradoxo, exclamou logo o sincero discípulo, dizendo abertamente : O' meu venera­veZ mestre, e·u não posso neste ponto concordar com o vosso JUtzo. Antes eu quisera, que soassem · por tôda a parte êstes belissimos nomes :i:ruMILDADE E CASTIDADE; quisera que se escrevessem com letras de ouro em todos os mármores, e que até se vissem impressos nos mesmos troncos das arvores.

Por uma parte dizeis bem, replicou o santo varão, mas o meu sentido é êste: Que se . não podem nomear essas virtudes, nem ainda louvá-las tanto em si mesmM, como em qualquer pessôa, sem lhes alterar de algum modo" a sua subStância. Por tôda8 as razões seguintes:

1. Como não há língua humana, segundo o meu parecer, que possa dignamente exprimir o seu 7'usto valor, servirá um baixo elogio para diminuir de algum modo o seu preço.

2. Louvar a humildàde, é jazê-la desejar por um secreto amor próprio, ou que se entre nela por uma porta falsa: o. que é contra a sua substância.

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3. Louvar a humildade em alguma pessoa, é tentá� la de vaidade com perigosa lisonja; porque será tanto expô-la a ser menos humilde, quanto mais vir que a estimam por tal.

Por outra parte: 1. Louvar a castidade em si mesma, é deixar nos espíritos uma oculta e quase imper­ceptível idéia do vício contrário, ele que se pode originar algum fatal perigo.

2. Louvar esta virtude em alguma pessoa, encarecen­do-lhe o seu valor, e não menos a suq fragilidade, será também de algum modo, como pôr-lhe diante dos pés um tropeço; para cair depois no precipício.

3. Porque ninguém jamais deve confiar na castidiade passada; sendo esta virtude uma joia, qu� tendo os en­gastes de vidro, pode perigar sempre em qualquer encon­tro futuro.

Ora eu não. digo que o escrúpulo nesta matéria deve chegar a tal ponto que ninguém se atreva q nomear estas virtudes, de que uma é o mqts precioso ornamento do espírito e outra o mais belo esmalte do corpo. Antes, devendo ser elas em todo o tempo estimadas, deveriam ser à tôda a hora aplaudidas. Digo sàmente e recomendo muito a maior cautela, para que se não exponha a risco a sua prática; porque tôdas as folhas dos maiores elo­gios não podem suprir o valor do menor dos seus frutos .

. § li

Como se portava com os enfermos

Indo o nosso santo a visitar uma senhora já decrépita, que estava perigosamente enferma, lhe assegurou ela que se achava no ânimo com inteiro sossego; e que sõmente a inquietava o ver que seus filhos aflitos empregavam todo o tempo em lhe procurar · algum alívio.

Poi8 eu, minha caríssima, lhe disse logo o servo de Deus, nunca, estando · enfermo, me sinto mais satisfeito,

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que quando vejo os meus parentes e domésticos, todos desvelados por motivo da minha moléstia; porque tenho por sem dúvida, que Deus Zhes compensará os seus trabalhos.

De resto, o nosso santo consolava os enfermos de pe­rigo com suaves e doces palavras, cheias de amor e con­fiança .n·a divina misericórdia. E de espaço em espaço lhes propunha umas breves j aculatórias para que as pro­ferissem com o coração, se o falar lhes causava incômodo.

O' meu bom Jesus, lhes dizia, eu me entrego todo a Vós. - O' Soberano Deus, salvai esta pobre creatura, para vossa maior gloria. - O' me·u amante. Pai, eu ponho nas vossas mãos a minha alma, o meu corpo e todo o meu ser. - O' clementíssimo Deus, seja feita, em tudo e por tudo, a vossa santa vonbade. - Sim, senhor Jesus, a vossa vontade, e não a minha; etc.

E entre uma e outra jaculatória intercalava sempre um . breve espaço, para descanso do enfermo e utilidade do seu espírito. E portanto censurava muito que se ator­mentasse um agonizante com exortações e orações largas.

Isto mesmo observava êle com alguns réus de pena última, a que piedosàmente assistia, e a sua prática era esta: Depois de ouvir as suas confissões, os �eixava des­cansar um pouco. Depois com intervalos competentes, lhes sugeria os atos de fé, de esperança e de amor ; e depois, de arrependimento, de resignação na vontade de Deus, e de confiança na sua misericórdia, sem ajuntar à sua aflição a da importunidade, inseparável de um longo discurso.

E todos êstes e outros afetos lhes inspirava o nosso santo por um modo tão suave, que todos êles sem repug­nância abraçavam a morte e alguns publicavam que nunca tiveram igual prazer em todo o curso da sua vida.

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§ III

O seu juizo sôbre uns sermões

Encomendando o nosso santo ao Bispo de Belley, seu discípulo, um sermão particular para um dos Mosteiros da Visitação, se preparou êle o melhor que pôde, por saber que naquela função seriam inumeráveis os seus ouvintes, e entre êles o mesmo santo.

Concluído pois o sermão com aceitação geral daquêle auditório, voltou o pregador todo cheio de prazer para casa do nosso santo. O qual lhe disse logo : E' certo que tôdas as religiosas daquele mosteiro. e tôdas as demais pessôas que alí se acharam gostaram muito de vos ouvir. Porém eu, que vos não devo lisonjear, digo-vos que não gostei do sermão.

- Ah, meu venerável mestre, repiicou o fiel discí­p"ulo. Eu antes quisera só a vossa aprovação, do que os aplausos daquêle numeroso auditório. Dizei-m"e pois para emenda minha o que achastes digno de censura.

- Eu vos amo com extremo, respondeu - o santo, e por isso não devo nem posso lisonjear-vos. E se vós amás­seis desta sorte as nossas Irmãs, não vos ocuparíeis em lisonjear os seus espíritos, em vez de os edificar; nem louvar as suas virtudes, em vez de lhes ensinar alguma doutrina humilhante e mais saudável.

O' meu bom amigo, tomai este conselho: Guardai­·vos sempre de subir ao púlpito sem um particular desígnio de edificar por alguma parte os místicos muros da espi­ritual Jerusalém, ensinando .a práticq de alguma virtude, ou a fugir de algum vício; porque todo o fruto da pre­gação sempre deve ser désterrar a c·ulpa e estabelecer a justiça. "O' Senhor, dizia Davi, e·u ensinarei os vossos caminhos aos ímpios: e êles, mediante o vosso auxílio, se converterão para Vós".

- Mas que conversão, perguntou o discípulo, poderia .e'U · persuadir a umas almas santas, livres já dos seus inimigos, mundo, dem6nio e carne?

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Podíeis, respondeu o santo mestre, e deveríeis inti­mar-lhes que por "isso mesmo qu� estavam em pé vigia$ .. sem sempre, para não cair. E suposto que a vossa inten-

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ção jôsse animá-las, e dar-lhes fôrça. para continuarem a santa emprêsa e perfeição da viàa, contudo, esta exortação para a virtude sempre se deve jazer, sem pe­rigo de pre3unção e àa própria vaiàaàe.

· M!Uldou logo o santo, quase como em penitência, ao seu discípulo pregar no dia seguinte na igreja de wn Mosteiro das Religiosas de S. Clara, aonde não e).'a menor o concurso. com efeito, êle fez o seu discurso com uma grande simplicidade de palavras e pensamentos, dirigin­do-se não mais que a uma espiritual edüicação.

Voltando pois para · casa, o santo o abraçou com ter­nura, e lhe disse logo :

--'- Eu ontem vos amava muito, hoje porém muito mais. Vós sois na verdade

'segundo Q meu coração,· e,

se me não engano, também como Deus quer que sejais, os vossos ouvintes não vos aplaudiram tanto como ontem; mas também aquêle que então se não agradou elo vosso discurSD, vos declara, hoje, que se dá por plenamente satisfeito.

Continuai pois desta maneira e jareis grandes ser­viços ao Senhor d·a v_inha. Segui este modo, ou êste estilo com fidelidade; e Deus fará os vossos trabalhos frutuosos e honoríjic.os. E que devemos nós saber, nem procurar no noss9 santo ministério, senão q, Jesus Cristo crucificado?

§ IV

Aversão aos seus louvores

Disse bem S. Gregorio que louvar a um homem sábio na sua presença é atormentar-lhe os ouvidos, e ferir-lhe o coração . • o nosso santo assim o reputava; e por isso, abraçando êle afetuo.samente ao� qu& lhe diziam inj\Íl'ias proferiria outras tantas, ae lhe fôsse - ltcito, contra os que

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lhe davam o menor elogio. Prova-se bem pelo seguinte e:lremplo.

·

Pregando o Bispo de Belley na catedral de Anneey, e lembrando-se de umas palavras, que em certa ocasião lhe dissera o Bispo de Saluces : - Tu sal es; ego vero, neque sal neque lux: Tu és sal, e eu nem sal, nem luz : quis acomodar estas mesmas palavras ao seu santo Mestre, que estava presente; dizendo que êle era o sal (Sàl-es) que preservava da corrupção todo aquéle povo etc.

Mas o humilde santo ficou tão mal satisfeito daquele inopinado elogio, que repreendendo-o depois, lhe falou assim :

- Vós que procedíeis com acêrto na vossa doutrina, que motivo tivestes para jazer aquela digressão? Cor­rompeu aquela pala,vrq todo o vosso disc'urso; introdu­zindo no ouro puro da palavra de Deus as indignas fezes da palavra dos homens.

Eu .serei sal: mas um sal insípido e corrupto; Que como tJa,l, merece ser lançado na rua e pisado aos pés tias gentes. Tenho grande desprazer, de que sufocásseis a boa semente da vossa doutrina arrojando sôbre ela 'um pouco de joio. Mas se o jizestes pa,ra me confundir, aeer­tastes com o segredo naquela injusta digressão.

§ v

Sua grande hummlldade

Não podia ·ignorar o prodigioso Sales a grande esti­mação, com que o tratava o seu povo, e o alto coneeito, que todos faziam da sua piedade, ·e vendo-se êle reputado por um santo e fiel servo de Deus, confundia-se na pre­sença do mesmo Senhor, e muitas vêzes se envergonhava diante dos homens.

me, quando falaw. de si mesmo não . dlzia palavras de humildade ; antes fugia delas, como de tropeços, em

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que perigava esta virtude. E por isso 'dizia algumas vêzes que falar qualquer de si próprio (tanto no bem, como no mal) sem alguma culpa, não era menos difícü, do que dançar bem sôbre uma corda; necessitando de grandes circunspecções, como indispensável contrapeso, para não cair em algum defeito.

Quereis vós saber, dizia êle, o que me poderá resultar de todos os louvores e estimação dessas boas gentes? Será talvez o padecer mais tempo no Purgatório; porque depois de eu morrer, não orarão a Deus pela minha pobre alma; tendo para si, como de certo, que ela irá logo direta­mente ao Paraiso. Eis aqui todO o fruto, que produzirá o conceito com que me reputam por santo.

Eu pois mais quisera , achar em todos o fruto de boas obras fl o óleo da misericórdia do que as tolhas e flores de tantos aplausos e fantásticos elogios.

§ VI

Lembrança dos mortos

Quando falecia algum dos amigos do nosso santo, era Insaciável em dizeJ:'I bem dêle, orar pela sua alma, e pedir por sua intenção as orações dos outros. E costumava dizer a êste respeito:

- Nós nÕJ) nos lembramos dos nossos mortos, quanto é justo; antes desviamos desta parte o nosso discurso, como de um desagradável objeto. Assim deixamos aos mortos sepultar os se1-ts mortos, e perecer q .ma memória entre nós outros com o som dos fúnebres sinos.

Mas a amizade, que com a morte acaba, n'Unca foi verdadeira; antes, a Escritura nos ensina, que o amor tem mais fôrça do que a morte. E por outra parte, o refe­rir as boas qualidades do próximo falecido, é um vig_o­roso estímulo para imitar-se o seu exemplo; assim como o exercitar a piedade para com os mortos é uma obra de misericórdia, que compreende as outras tôdas.

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Porquanto, dizia êle, o impetrar com as no.çsa.o; orações o alívio das almas, que estão no Purgatório, não é em certo modo visitar uns pobres enfermos? Não é dar de beber a quem tem tão grande sêde da visão de Deus entre as mais vivas chamas, o subminist1·ar-lhe com as nossas orações um swavíssimo refrigério?

E não é isto ao mesmo passo dar de comer a quem tem tome, visitar os presos, vestir os nús, e hospedar os peregrinos, introduzindo-os felizmente nas etemas mora­das? - E quanto às outras obras de espiritttal misericór..: dia: Que grande consolação, ou poderoso auxílio se usará com os necessitados neste mundo, que se possa compa­rar, com o que recebem pelas nossas or-ações e sufrágios aquelas pobres almas extremamente afligidas?

§ VII

A sua resignação

Sabendo o nosso santo, que o bispo de Genebra o pro­curava para seu coadjutor e futuro sucessor, foi tal a sua comoção com esta notícia, que o fez cair perigosamente enfermo. E dizendo-lhe os médicos a situação em que se achava, recebeu êle o anúncio com tão sereno aspecto e interior júbilo, como se visse os céus abertos para o rece­berem naquela hora.

E dizendo-lhe depois, que êle devia desej ar a vida, não só para servir a Igreja, senão ainda para fazer peni­tência, respondeu êle: Nós todos, o� tarde o1t cedo have­mos de morrer: em qualquer tempo que seja, necessitamos sempre da misericórdia de Deus. Asstm pois . melhor é catr nas .mãos da' swq clemência hoje, 4o que amanhã. Porque sendo :tle sempre bom, e nós outros máus, meLhor é · c_onsumar ·cedo o prazo da vida, para ter menos . de dar conta na última hora.

Eu vejo, que se me quer impor uma carga, nada menos formidável do que a mesma morte. o que não

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obstante, eu me conservo, q·uanto posso entre os dois ex­tremo3 indiferente, como de todo entregue à Providência de Deus, que sabe mais do que nos convém, do que nós mesmos. �le tem as chaves da vida e da morte; e os que nêle esperam, não serão jamais contundidos. ·

E a outro, que lhe disse ser muito para sentir o morrer êle na flôr da sua idade (porque era então de trinta anos) respondeu logo : O nosso Salvador morreu mais moço. O numero dos nossos dias não lhe é incogni­to; e em tôdas �s sortes de estações sabe recoLher os frutos, que são seus.

Conformemo-nos pois em tudo e por tudo com a sua santa vontade. Seja êle a única estrêla, que nos conduza em todo o espaço da nossa vida: e sua luz indefectível disszpará !sempre tôdas a� trevas at;é a nossa última hora.

§ VIII

Do seu amor à pobreza

Tem uma grande renda (dizia S. Paulo a seu discípulo Timóteo) a piedade, que se contenta só com o ·que basta. o que bem se verificava no nosso santo, que se dava por satisfeito com o pouco rendimento do seu bispado. · ·

Prouvera a Deus, dizia êle, que nós ·fôssemos priva­dos ainda dêste pouco resto contanto que a Religião Ca­tólica tivesse em Genebra pelo menos um 'l!equeno Ora­tório! Se assim fôsse, ela em pouco tempo faria um grande progresso, porque a disposição -daquele povo para e.ste efeito é mais do que se pensa; reinando alí a razão de estado coberta de uma imaginária liberdade, mais que a substtincia da religião.

· Ocupava nosso santo · em Annecy uma bela casa de­aluguel, cuj a sala de visitas estava dec'entemente ador­nada; mas a sua ordinária residência era um pequeno quarto, um pouco escuro, que êle denominava a Câmara

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de Francisco, em contraposição à dita sala, chamada por êle Câmara do Bispo.

Falando êle uma vez com o bispo de Belley seu discí­pulo, mostrando-lhe a roupa, que trazia debaixo da ba­tina, lhe disse com a sua graça costumada : As minhas gentes jazem uns pequenos milagres: porque de uma ro·upa velha me formaram esta nova. E o discípulo acrescentou logo dizendo : Pa1"ece-me êsse milagre seme­lhante aos dos filhos de Israel, cujos vestidos não tiveram consumo em todo o espaço de quarenta anos, que habi-taram no deserto. .

Com efeito, parecia coisa milagrosa sustentar-se com tão pouca renda a sua casa. E perguntando-lhe o discí­pulo, como isto se fazia, respondeu êle:· Se isto se pu­desse dizer, não seria milagre, como vós pensais. E não somos nós felizes em viver por milagre? Se e·u ·posSttisse mais, teria maior cuidado em ponderar onde bem o gas­taria. E aquêle que mais tem, maior é a conta que deve dar.

§ IX

Das importunidades

Entre as virtudes de que o nosso santo fazia grande aprêço, era a que nos faz sofrer tranquilamente as im­portunidades do próximo; para cuja tolerância basta sem­pre um pouc� de modéstia, moderação e doçura.

Q'uando se fala de paciência, ensinava o santo bispo, julgareis vós, que só deve ser . reservada para aquêles males, cujo sofrimento nos causa glória. E contudo, é certo que enquanto esperamos por essas grandes ocasiões (que poucas vêzes acontecem na vida) desprezamos as

-menores, que nos sobrevêm a cada hora. Nós outros imaginamos, que •a nossa própria paciên­

cta é muito capaz de sofrer as mais vivas dores e as . maú>res injúrias; e a experiência depois nos mostra, que

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tácilmente nos alteramos com as mais leves importuni­dades. Parece-nos, que poderemos servir, e aliviar o pró-· ximo nas suas· grandes enfermidades; e vemos depois, que não sabemos, ou não queremos dissimular as suas gros­seiras incivilidades, rústicos gênios e melancólicos humo­res. E' logo necessário ter o espírito mais justo, e mais tolerante das importunidades do próximo.

§ X

Sôbre as tentações

Se nós fizéssemos bom 'Uso das tentações do demônio, dizia o nosso bem-aventurado, em vez de as temermos, as provocaríamos. Porém como a · nossa fraqueZa, e la­xidão é tal, quanto de lastimosas quedas nos tem mos­tradQ a experiência: justamente pedimos a Deus, que não nos deixe cair em tent.ação.

E se a esta desconfiança de nós mesmos ajuntarmos a confiança no mesmo Senhor (que é muito mais forte para nos livrar da tentação, do que nós somos fracos para nela cair) elevaremos qs nossas esperanças sôbre a dimi­nuição dos nossos temores. E diremos com o Projeta: com o vosso auxílio, meu Deus, venceremos todos os obstáculos, que se -opõém à nossa salvação: pois com um tal socórro andaremos seguramente entre úspides e basi­liscos, e pisaremos aos pés o leão e o dragão.

Como nas grandes tentações se prova o nosso valôr e a nossa fidelidade para com Deus, também nestas oca­siões se utiliza o nosso espírito, jazendo progressos na virtude. Porque então aprende11Ws a manejar as armas da nossa milícia, que são todas espirituais contra as mi­lícias dos nossos inimigos que são invisíveis. E no mesmo tempo a nossa: alma, portegtda peia graça, lhes parece tão terrível, como um exército ordenado em batalha.

Pensam alguns a êste respeito, que tudo pàra êles vai perdido, quando se vêem tentados com pensamentos

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{le blasjêm1Ja, de impiedade e outros semelhantes. Mas contanto que êstes pensamentos lhes desagradem, não lhes podem causar dano, antes lhes vêm a servir para lançar profundas raizes na fé, e jazem-se mais agradá­veis MS olhos do Divino Senhor.

§ XI

Sôbre a conversação com as mulheres assim de palavras, como por esc�tos

Não querendo um prelado que entrassem mulheres em sua casa, de qualquer qualidade que fôssem, tinha mandado fazer uma espécie de locutório; com suas gra­des, numa capela, onde lhes falava. o que sabido pelo nosso santo, que amava aquêle prelado e não aprovava tanta severidade, somente disse que tal · prelado, não pas­sava de ser meio pastor quando assim se separava da metade do seu rebanho.

E falando-lhe depois a êste propósito, êle procurava defender-se com representar os seus poucos anos; o temor dos juizos alheios e mais ainda da sua própria fragili­dade, o conselho dos padres antigos a êste respeito, o bom exemplo para com os seus eclesiásticos, e outros se­melhantes motivos. Mas o nosso bem-aventurado, depois de louvar a sua zelosa precaução, lhe declarou, que sem praticar aquela severidade exterior, tinha um meio mais fácil, mais seguro, menos incômodo, e até menos exposto a ser censurado.

Não faleis jamais, lhe disse, a mulheres senão em presença de muitos; e encarregai aos vossos domésticos, que vos não percam de vista, quando alguma quiser con­ferir convosco. O que j.arão de modo, que não ouçam as vossas palavras; porque podem ser coisas que pertençam às suas consciências. E crêde, que esta prática vos serà mais proveitosa ·do que o arbítrio das grades, ainda que t6ssein armadas com .pontas de ferro.

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Ora êste aviso do santo era o mesmo que êle usava; porque ainda que a sua casa estava aberta para todo o mundo e a tôda a hora, contudo, êle nunca falava a mulheres, em qualquer lugar que fôsse sem ter sentine-' las, que atentamente o observassem. E pelo que respeita à correspondência por escrito, concluiu com êste do­cumento :

Sem urgente necessidade, nunca escrevais a mulhe­res de próprio movimento, senão sómente em resposta. E dessa regra geral só devem excetuar-se as que forem tsentas de t�da a suspeita, como uma mãi, uma irmã, uma mulher de muita idade, e isto ainda poucas vêzes e brevemente. Porque na verdade, quando se . escrevesse a uma mulher, seria necessário, a bem dizer, formar a letra com a ponta de um canivete, antes que com o bico da pena, para não dizer coisa supérflua.

§ XII

Dos que se humilhavam na presença do �anto

:ll:le de modo ordinário se portava com aquêie ou aquela que diziam palavras de humildade na sua pre­sença, confirmando-as, e ainda acrescentando alguma coisa, afim de procurar uma saildavel confusão a quem as proferia ; estando na certeza, de que - a maior parte daquelas pessôas não quereriam que se formasse juizo .· de serem tais como diziam. E eis aqui dois exemplos : -

Desej ando · o nosso bem-aventurado que o bispo de. Belley, a quem êle multo ámava, não tivesse nem o me­nor defeito, lhe dava documentos da mais alta ·perfeição. Sôbre o que lhe disse uma vez êste seu discípulo : O' m'eu Pai, vós não sabets, que e·u saindo há pouco do mundo, me vejo constituído mestre, quando apenas começo a ser discípulo? E sendo isto assim, porque me falais, como a um varão de virtude eminente, e capaz de ensinar aos outros?

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Dizeis bem (replicou o sábio mestre) e isso creio eu mais do que vós: e pode ser que eu veja, e conheça melhor tudo o que vós protestais. Eu vos considero como um homem, que escapou das ruinas,· e que saiu de um incêndio, de que ainda sente o fumo.

Porém vendo-vos agora bispo, considero tambem, que deveis ter sentimentos de pai, e dirigir os vossos passos para a mais alta perfeição. Já vos não podeis contentar só com beber a água da vossa, cisterna: deveis também comunicá-la aos outros; porque Deus, a razão, e o vosso emprêgo assim o pedem, e para isso vos ajudam. Se vós pois confiais em vós mesmo, nada de bom tareis. Mas se confiais em Deus, que não !areis vós? Tudo podert:is.

O segundo exemplo é de uma religiosa, que sendo eleita s_uperiora, recusava aquêle emprêgo, alegando e pro­pondo deveras ao nosso santo os seus poucos .anos, e a sua muita indignidade. Sôbre o que tomando-lhe êle a palavra, e encarecendo ainda sôbre o que ela propunha lhe dizia: Que na verdade entre filoo e tolha havia pouca diferença.

Com o que lhe dava a entender, que bem conheciam as religiosas a sua insuficiência, a pequenez do seu espí-: rito, a fraqueza do seu juizo, a grosseria do seu gênio, e sobretudo o seu mau exemplo. O que não obstante, podia ser que permitisse Deus a sua eleição, para se emendar

. . dos seus defeitos ; ou pelo menos para que tratasse de os ocultar e regular bem os seus passos; vendo que estava :eonstituida em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens.

E. como tal se persuadisse, que se não confiava a ela a sua comunidade, mas a Deus, que elege algumas v�es as pessôas loucas para conduzir e confundir as sábias; :6:le que nos quis salvar pela estultícia da Cruz, como diz S. Paulo. Mas por outra parte entendesse bem, que assim cana fragil, como era, conservando-se e con­fiando na onipotente mão de Jesus Cristo, poderia fazer­se uma forte coluna do seu templo.

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§ XIII

Da política

O bispo de Belley disse uma vez ao nosso santo, com a confiança de discípulo amado, qu� se admirava muito, de que o sereníssimo Carlos Manuel, Duque de Saboia, sendo u� dos mais excelentes príncipes do seu tempo, de um profundo juizo e talento igu!ll na mais sólida poli­Lica, o não chamasse para seu ministro, e lhe encarre­gasse o manejo dos negócios :. que por mais difíceis que fôsse, a sua prudencia e destreza e mais afuda o geral conceito da sua virtude, os faria concluir com feliz sucesso !

Certamente, respondeu o santo, vós, dizeis muito, e a vossa retórica é excessiva. Vós imaginais que eu estou na estimação dos outros, como na vossa; divisando as minhas ações e q minha pessoa por um microscópio apai­xonado, que engrandece os objetos. Mas deixemos-isto, pelo que é.

O meu sentimento q respeito do nosso Príncipe é bem diferente do vosso; descobrindo no mesmo que vós dizeis a grandeza do seu juizo. Porque, além de eu não ter a destreza e a prudência no manejo dos negócios políticos, que vós me considerais;· eu devo dizer-vos, que até �s mesmas palavras de secular prudência em negó­cios políticos me causam horror!

E, para de uma vez vos dizer tudo, fiarei de vós esta palavra de amigo: Eu totalmente ignoro, nem jamais quererei aprender a pernicio&a arte de mentir, de dissi­m·ular e fingir com destreza, que é a mola real do ma­nejo político, e a arte das artes �m matéria de prudência humana.

Eu não diriJa de propósito uma mentira, ainda que me fizessem senhor de todos os Estados do Império, da França, e da Saboia. O que eu profiro com a língua, é o que tenho no pensamento; e todos que tratam comigo,

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conhecem logo este meu carater, que nadq tem de pró­prio para um cortesão político. E, quando assim não jôsse, devêra sempre lembrar-me aquela divina máxima do Apóstolo S. "Paulo: "O que é consagrado a Deus, não deve intrometer-se nos negócios seculares".

§ XIV

. '

Sua grande caridade com uma moribunda

Uma religiosa da Visitação, depois de haver tolerado quase por tôda a vida uma penosa enfermidade, não só com a maior paciência, senão ainda com prazer e ale­gria, por último chegando a sua molestia ao final extre­mo, fez chamar ao nosso santo, para que lhe a.s$istisse naquele passo.

Ora esta boa religiosa, que sempre seguira o · cami­nho ·da Cruz com admirável constância, depois de haver feito, sempre em seu perfeito juizo, os atos de fé, de amor, de contrição, de humildade, de confiança, de resignação e conformidade com a vonta'tle de Deus, começou a sentir (duas horas antes do seu trânsito) novas dores, f! tão agudas, que pondo-a no maior abatimento, disse ela ao nosso santo com um profundo suspiro : O' meu padre, será mal jeito? E calou-se.

Então o bem-aventurado, temendo que ali ·hÕuvesse alguma tentação do espírito maligno, lhe perguntou : Que mal, caríssima? Ao que ela respondeu : Não, meu padre. não; isto seria uma grande infidelidade. E aquí parou.i

Mas que tnjidelidade? replicou o santo, entrando em maior apreensão. E quem vos tirou aquela grande con­fiança, que o Senhor vos tinha dado em mim? Serão: talvez os meus pecados?

'

Não, meu padre, respondeu a moribunda ; e·u tenho presentemente maior confiança na vossa oaridade: porém isto é coisa de tão pouca subst4ncta� que não merece a

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vossa aflição. - Pode ser (replicou o santo) que exceda ao que vós pensais; porque as indústrias Q,o tentador s�o finíssimas e muito mais nas extremidades da vida, para ruina das almas. Rogo-vos, pois, e vos conjuro que nada me oculteis do que tendes no vosso ânimo.

Ah meu bom pai, disse ela, isso seria uma grande in­fidelidade para com Deus; e principalmente nesta hora, em que lhe devo ser mais obediente, e mais fiel. - O' minha· filha, (instou o bem-aventurado) vós não fareis ato de maior submissão, nem mais agradável a Deus, que o dizer-me agora com simples candura a causa dos vossos suspiros.

Eu, meu padre, disse ela, que tenho assaz padecido até o ponto desta hora, devo agora mais suspender a meu respeito tôda a queixa e tôda a ternura. - Não, minha amada füha, replicou o santo, não deve ser assim. Vós bem sabeis que o sacrifício da obediência é superior a todos os mais. E suposto que me não atrevo a mandar­vos em nome do Senhor, que me declareis a vossa inquie­tação, rogo-vos contudo, quanto posso, que me tireis a pena em que estou; porque na verdade é tal, que se bem a conhecêsseis, teríeis compaixão de mim.

O' meu padre, disse ela, vós tendes muito grande inteligência, para vos ajligirdes por cousa tão pouca. -Teto pouca cousa chamais vós, replicou o santo, a salvação de uma alma, pela qual Jesus Cristo sacrificou a sua pre­ciosa vida? Eu desfaleço, considerando o perigo da vossa, talvez por uma bagatela. - Tendes razão, meu padre, disse ela; porque isto é nada. - Mas que nada, replicou o santo, 'um nada, que Deus pode punir com pena eterna! O' minha boa filha, será preciso que eu aplique os últimos remédios, para apartar de vós êsse demônio fatal, que vos prende a língua, e vos Jaz muda.

Com efeito, ia o santo prelado mandar pôr em oração tôdas as religiosas, quando a moribunda lhe disse com sutimissa voz : Meu padre; se vós me mandais em virtu­de da santa obediência, eu direi o que é. - Sim, minha

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filha, disse logo o santo, e q·ue grande alívio me dais! Vós me tirais o gravíssimo pêso que tinha s6bre o .meu coração.

Mas, meu padre, disse ela, dlqts-me agora a certeza, de que nisto não há culpa? - Eu vo-lo asseguro, respon­deu o santo, na minha consciência s6bre a minha própria alma. - MC13 eu vejo-me assim · precisada, replicou ainda a moribunda, a jazer um ato '!e laxidão no extremo da minha vida. Eu sinto-me bem oprimida do mal; e o dizer eu isto não é uma laxidão insigne e uma infideli­dade grande para com o Senhor?

Vendo então o santo pastor ser êste todo o veneno, que tinha aquela pobre moribunda sôbre o seu coração, exclamou em alta voz : Não, não, dei parte de Deus; não, minha amada filha, aí não há -laxidão, nem infidelidade alguma. E nada mais tendes? - Não, meu padre, respon-deu ela, nada, nada mais.

·

Pois, minha caríssima, concluiu o santo padre, vós bem �beis, que o Filho de Deus, nosso Salvador e nosso Mestre, estando· na Cruz oprimido de dores, exclamou di­zendo ao Eterno Pai: "Meu Deus, meu Deus, porque me desamparais?" E daquí deduzo eu, acrescentando ainda, que a santa virtude da verdade, . simplicidade e c_andura. nos obriga (principalmente quando o mal é forte} a ma­nifestar o que padecemos aos que nos assistem, e nos podem aplicar algum remédio.

- O' meu Pradre, dísse então a moribunda, segundo êsse vosso ditame, bastantes faltas tenho eu cometido; .. porque há muitos anos que estou enferma, e me não lem­bro de haver passado 'um só dia sem alguma dor, de que nunca me queixei. Agora pois sentindo-me já sem vigor, e padecendo aflições muito maiores, temia dizê-las, e queixar-me; parecendo-me que seria demasiada ternura para comigo e laxidão e infidelidade para com meu Senhor Jesus Cristo, que padeceu na -Cruz outrns penas muito maiores a me·u respeito.

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Movida pois deste pensamento a humilde religiosa, pediu ao nosso santo a sua bênção e absolvição geral daquelas imaginadas faltas. E a pouco espaço, desfale­cendo-lhe os sentidos, depois de uma meia hora de suave agonia, rendeu a sua bela alma nas mãos do divino Es­pôso, com inexplicável consolação do nosso ·Bem-aventu-rado, depois da suma opressão, que ali padecêra.

·

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TERCEIRA PARTE

§ I

Das Virtudes menores

Ainda que o nosso bem-aventurado teve as - virtudes mais eminentes, êle contudo tinha um particular amor àquelas vil'ltudes, que · são de menor consideração aos olhos dos homens, ainda que tôdas elas devem denomi-nar-se grandes na presença de Deus. ·

Cada qual, dizia o santo, quisera ter virtudes üustres e de grande ostentação no alto ·da sua cruz para · que de longe fôssem vistas e admiradas. E poucos se empenham em cultivar aquelas, que como o. serpão e o rosmarinho, crescem à sombra da árvore. da vida, não obstantt: o serem

estas mais odorifera,s, e mais regacla.s com o sangue do Salvador, que as indicou por primeira lição aos seus discí­pulos, dizendo-lhes: � Aprendei de mim, que sou dócil e humilde de. coração.

Com efeito, nem todos podem praticar aquelas gran­des virtudes de magnificéncila,, de martírio, de paciéncia, de valor e constância; e até as ocasiões de as exercitar são raríssimas. Sem embargo do que, muitos pretendem conseguí-las e de modo ordinário por caminhos falsos que a elas não conduzem. E, portanto, assim como as ocasiões de lucrar grossos cabedais nem sempre se encontram; e por outra parte, é facü haver muitos meios de ganhar cada dia alguns tôstões, que bem manejados podem com o tempo chegar a -Produzir importantes somas: também nós outros ajuntaríamos m·uitas espirituais riquezas, se

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com legítimo zêlo aproveitássemos as miudas ocasiões, que se nos apresentam a cada passo no serviço de Deus.

Não basta pois praticar ações de heróica virtude, não sendo feitas com grande caridade, que é a que dá funda­mento, pêso e valor às boas obras diante de Deus. E pelo contrário, uma ação de .pequena virtude, feita com grande amor de De·us, é de maior mérito e muito mais excelente, que qualquer outra que não tenha os mesmos quilates do amor divino.

E na verdade um copo de água fria, dado com este amor, merece a vida eternct; como também dois dinheiros de valor mínimo, dados com êste amor por uma pobre viuvez, sabemos qu�: tiveram maior aceitação na divina presença, ào que vários donativos consideráveis, que ofe­receram os ricos para a fábrica do Templo, segundo nos declara o Evange'Lho.

Faça-se logo o devido apreço, e pratiquem-se como é justo, aquêles atos virtuosos, que frequentemente se nos oferecem; como vem a ser, o modesto sofrimento de um· máu gênio, de um leve desprêzo, de uma pequena injus­tiça; o falar com agrado a quem nos trata com aspereza, o receber com doç·ura a negação de uma graça pedida; o tratar com amor a.os nossos inferiores, e domésticos, etc. Porque de tudo isto, ainda que parecem coisas de pouca entidade, se pode bem firmar na wesença de Deus, me­diante o seu divino amor, um grande tesouro.

§ li

Do temor da castidade, e da castidade do temor

Entre os combates dos cristãos (diz S. Jerônimo) são os da ca�tidade os mais fortes; e com serem os mais co­m�s, a vitória nêles é mais rara. A melhor defesa da castidade é o temor; e, portanto, quem só se confia na sua castidade passada, não estã longe de cair contra a santa pureza.

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Se assim pois, dizia c nosso santo, o temor se jaz tão preciso para a conservação da castidade, também a castidade do temor nos é igualmente necessária para ha­vermos de conseguir a nossa eterna salvação.

E, perguntando-lhe o bispo de Belley, que era o que êle entendia por CASTIDADE no TEliiJOR? Respondeu-lhe : O temor casto, denominado SANTa pelo real Projeta, é o que procede do amor divino, como animado da caridade; a qual nos jaz atender aos interêsses de Deus mais do que aos nossos; e consequentemente a temer mais a ofensa cometida do qu� a sua pena futura.

De maneira que, quando nós tememos ofender a Deus, porque Rl� é bom em si mesmo, e não por ser Deus das vinganças; então o nosso temor é castQ e puro; semelhante a uma espôsa fiel, que teme ofender ao seu consorte, a quem ama e reconhece que é dêle· amada. Numa palavra : o temor casto e santo é um temor de reverência, de amor e respeito; não servil, nem mercenário; mas ftlial e afe­tivo, como é próprio dos santos.

§ 111

Esperar sempre bem dos pecadores

A bondade do nosso santo chegava a tal excesso, que ainda para com muitos ímpios não sabia ter maus sen­timentos. l!:le procurava, quanto podia, cobrir as faltas do próximo, umas vêzes alegando a humana miséria, outras a violência da tentação e,. por último, o grande número dos que cometem outras semelhantes.

E quando os crimes eram tais e tão públicos, que se não podiam encobrir, nem desculpar, apelava para o fu­turo e dizia : Quem 8Clbe que ·êsse pecador se não há de converter? E quem somos nós outros para julgar os nossos irmãos? Se Deus não nos sustivera com a sua graça, agiríamos pior ainda, e estaríamos já no inferno.

Dos maiores pecadores têm saído heróicos penitentes,

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como vemos em Daví, Manassés e outros muitos, q·ue edi­ficaram mais com a sua penitência, do que arruinaram com o seu escândalo. Deus sabe jazer das mesmas pedras filhos de Abraão, e preciosas peças de honra dos mesmos vasos de ignomínia.

Não queria pois o nosso bem-aventurado, que j amais se desesperasse da conversão dos pecadores até a seu último suspiro ; dizendo que a vida presente era uma voz continua da nossa última sorte, podendo sempre a im­pulsos da natureza corrupta, cair 6s que estão em pé e levantar-se também com o socôrro da graça, os que hou­verem caído.

E passava mais adiante ; porque ainda depois da morte não ccmsentia que se j ulgasse mal, até daqueles, cuja vida fôra perversa, senão só dos que a Escritura declara por condenados. Por quanto, dizia êle, só podemos ter nesta matériq umas simples conjecturas, fundadas sôbre o exte­rior, em que até os mais hábeis e de melhor juizo se podem enganar.

§ IV

Animava muito aos pecadores penitentes

Apresentando-se-lhe no tribunal da penitência uma pública pecadora, e fazendo-lhe ela uma inteira confissão da sua indigníssima vida lhe disse depois :

- O' meu Padre, que conceito fa�eis agora de mim? - De uma santa, lhe respondeu êle. - E podeis jazer essa afirmativa, replicou ela, se-

gundo a vossa ciência, e na vossa consciência? - Sem a menor dúvida, respondeu o bem-aventu­

rado. E continuou dizendo :

- Eu sei o que digo. E não so·u tão ignorante do que se passa no mundo, que não haja tido notícilq bastante das vossas desordens; o que me causava sumo desprazer,

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assim pela ofensa de Deus, como pela vossa reputação, que eu não podia desculpar. Porém qgora que vejo a vossa alma reconciliada com o Divino Salvador por 'Uma boa confissão, já tefl,ho com que vos defender e negar todo o mal, que se poderia dizer de vós.

- Porém, meu Padre, instou a penitente, sempre fica lugar paro, a censura, olhando para o tempo passado.

- Nada, respondeu o santo. Porque, além de nos não ser isto permitido, como empregarei o meu juizo no que já se acha aniquilado? Tirai de vós essa idea, pelo que toca à minha pessoa; porque eu a vosso respeito lolL­varei sempre a Deus, unindo-me com os santos anjos, que celebram no céu à vossa feliz conversão.

§ v Que não há verdadeira desconfiança de si mesmo,

sem uma legítima confiança em Deus

Perguntando o Bispo de Belley ao nosso santo - Que era necessário para conseguir uma perfeita desconfiança de si mesmo? Respondeu êle :

- Confiar perfeitamente em Deus. Porqüe as duas virtudes, confianÇ(l, em Deus e desconfiança de si mesmo, são como os dois pratos de uma balança; em que a ele­vação de um é o abatimento do outro. Pois quanto mais desconfiamos de nós mesmos, tanto mais confiamos em Deus. E pelo contrário, da mesma sorte.

- Mas eu não posso, replicou o discípulo, desconfiar tnteiramente de mim mesmo por um claro conhecimento da minha miséria, e .da minha impotencia, sem p6r em Deus a minha confiança?

- Não, respondeu o santo Mestre, se estiverdes firme na oaridq,dé, e agirdes por esta virtude. E não ·sendo assim, a desconfiança de vós mesmo não seria cristã, nem 11obrenatural.

A desconfiança, pois, de que vós falais só produziria em vós desprazer e !Jaxidão; quando, pelo contrário, a le-

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gítima desco'l]jiança de si mesmo, fundada na caridade, é uma desconfiança alegre e animosa, que nos jaz dizer ao mesmo passo: EU NÃO, .MAS A GRAÇA DE DEUS COMIGO, sem a qual nada posso, nem ainda formar um bom pen­samento. E com essa posso tudo; pois o que é impossível ao homem é m'uito jacil a Deus, que póde tudo o que quer, tanto no céu, como na terra.

§ VI

Estimação que fazia o santo da virtuosa simplicidade

Acabando o nosso santo de pregar a quaresma na cidade de Grenoble, foi visitar o mosteiro da Grão Car­tuxa, em que era prior e geral de tôda a Ordem D. Bruno de Afrinques, varão de profunda doutrina e de humil­dade e simplicidade ainda mais profunda. O qual o re­cebeu com todo o bom acolhimento, digno da sua piedade e candura.

E depois de o conduzir a um dos cubículos destinados para hóspedes de seu carater, e alí praticarem mutua­mente em matérias de espírito, se despediu o bom prior do nosso santo, com o pretêxto de se dispor para as ma­tinas seguintes de um particular santo da ordem.

Aprovada pelo _ nosso bem-aventurado aquela exata observância, e dirigindo-se o religioso prelado para a sua cela, encontrou um dos procuradores da casa, que lhe perguntou logo onde deixára o Monsenhor de Genebra.

- Eu, disse êle, o deixei no seu cubículo, e me des­pedi dêle, por me querer dispor na n.ossa cela para ir nesta noite a matinas.

- O' me·u reverendo Padre, lhe disse então aquêle religioso, perdoai-me o dizer-vos que entendeis pouco das cerimônias do mundo. Sim é grande a testa seguinte; mas a nossa ordem não tem outras semelhantes? E nós nestf: deserto temos todos os dias prelados de igual mere­cimento como o Bispo de Genebra? E' vergonha da casa,

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e muito mais vossa, que assim o deixeis sem lhe jazer compqnhio,.

- Meu filho, respondeu o sincero prelado, creio que tens razão e reconheço que obrei mal. Voltando pois para o nosso santo, lhe disse ingenuamente o que passára com o seu procurador. E lhe pediu humildemente perdão da­quela sua falta, protestando-lhe que a cometêra sem reflexão alguma.

Edificou-se muito o nosso bem-aventurado da ingênua candura daquêle virtuoso varão, e afirmou depois ao refe­rí-la, que lhe. fizera impressão · maior do que se o vira fazer um milagre.

§ VII

Dos Escrúpulos

O nosso bem-aventurado costumava dizer, que a raiz dos escrúpulos era a soberba mais fina. E dava-lhe o nome de fina, por ser tão subtil e delicada, que se escon­dia e enganava esta perniciosa moléstia à mesma pessôa que a padecia. Sendo para isto a principal causa, o não resolver-se a tal pessôa a conformar-se com o j uizo alheio, ainda daquêles que são ilustrados nos caminhos do Senhor.

Sempre querem que prevaleça o seu próprio parecer ; e êste é todo o seu mal, que em certo modo se faz indigno de compaixão. Pois se êles quisessem submeter e renun­ciar o seu próprio juizo, ficavam logo curados. Porém são enfermos, que absolutamente não querem usar dos remédios que lhes são oferecidos, e com infalivel certeza proveitosos. E quem há de ter compaixão daquele que porfiadamente quer morrer de fome e de sêde tendo na sua presença, e a seu arbítrio com abundância, o que pode bem satisfazer tôda a sua indigência?

O Espírito Santo na Sagrada Escriptura nos ensina que a desobediência é um crime semelhante ao dos idóla­tras e feiticeiros. E que diremos nós dos escrupulosos, que são idolatras dos seus próprios sentimentos e escravos

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das suas erradas opiniões, e se conservam sempre afer­rados às suas falsas idéias, por mais exortações que se lhes façam contra o suposto fundamento dos seus temores, imaginando sempre, que ou os lisongeam, ou não os per­cebem, ou êles não bem se explicam? Deus nos ilustre e nos preserve de tão perigoso e pernicioso mal que quase fecha inteiramente a porta à mais zelosa deligência, ne­gando teimosamente a entrada a tôda espiritual medicina.

§ vm

De um réu que desesperava da sua salvação

Convidado o nosso santo para assistir na prisão a um miseravel réu condenado à morte, o achou resoluto a não confessar-se, dizendo que pelos seus enormes crimes era vítima do demônio e devia passar do suplício ao inferno.

- O' Deus, disse então o bem-aventurado em seu coração, lembrai-vos das vossas antigas misericórdias. Vós que não quereis a morte do pecador, mas que se con­verta, e viva: tazei venturosos os últimos momentos a esta pobre alma.

- Pois vós, meu· irmão, lhe disse o santo, não tendes por melhor, abandonar ao demônio, do que a Deus?

- Quem o duvida, respondeu o réu, porém isso não é para um homem como eu.

- Sim, para os homens como vós, replicou o bem­aventurado, é que o Padre Eterno · enviou seu Fi'tho ao mundo. E paroa piores ainda, tais como Judas, e os mesmos que o cfucificaram; porque Jesus Cristo veio salvar os pecadores, e não os justos.

- E assegurais-me vós, disse o réu, que da minha parte não ha insolência em recorrer à sua misericórdia?

- Ah meu irmão, respondeu o Santo, grande iniqui­dade seria pensar que a misericórdia, de Deus não seja imensa e infinitamente superior a todos os pecados ima­gináveis; e assim mesmo, que a s·ua redenção não seja tão copiosa, que jaça superabundar a graça, onde tras-

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bordou a malícia. E pelo contrário, a sua clemência se eleva sempre sôbre sua justiça, e se realça muito com o perdão dos nossos pecados, servindo-lhe a nossa mesma miséria, como um glorioso trono à sua benigna miseri­córdia.

Assim com êstes discursos, fundados sôbre os prin­cípios da fé, que não estava de todo extinta naquela pobre alma, foi avivando a sua esperança, que se achava como amortecida, até se resignar e abandonar inteira­mente nas mãos de Deus, assim para a vida como para a morte, tanto temporal, como eterna.

- Porém Deus, dizia ainda o réu, certamente que me condenará, porque é justo.

- E porque vos não salvará, replicava o santo, sendo tle in/initament� misericordioso; e havendo prometido o perdão a qualquer que lho pedisse com ânimo contrito e humiLhado?

- Ora seja como fôr, concluiu o padecente, condene­me, ou salve-me o Senhor, como quiser; porque eu sou todo seu, e me entrego nas suas mãos.

E confessando-se logo com íntimo pesar, e contrição, continuou até a morte no arrependimento das suas culpas e resignação com a vontade de Deus, sendo as últimas palavras, que o nosso bem-aventurado lhe fez proferir : O' meu Jesus, eu me entrego de todo na vossa santa vontade.

§ IX

Que tudo sucede por vontade de Deus

Exceto o pecado, dizia o nosso santo, tudo vem p�r vontade de Deus, ou seja bem, ou seja mal. BEM, porque Deus é fonte original donde ·procede tudo o que é bom. E MAL, porque segundo a sentença do profeta Amós, "não há mal na cidade, que não seja ordenado pelo Senhor". O que se deve entender pelo MAL DE PENA ; pois sendo Deus a suma Bondade por essência, não pode querer o

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mal da culpa, ainda que o permite, deixando agir a vontade humana, segundo a liberdade natural, que Ele mesmo lhe deu.

Pensemos pois, como é justo, nesta importante ver­dq,de, respeitando sempre a Deus, em todos os sucessos, e a todos os sucessos em Deus ou sejam prósperos, ou adversos; e será grande a consolação e felicidade nossa, se assim recebermos tôdas as coisas da benigna mão pa­terna daquele poderoso Senhor, que abrindo-a de qual­quer modo, felicita com a sua bênção a tudo o que tem vida.

§ X

Honra que davam todos à virtude do nosso Santo, e particularmente Monsieur de Lesdiguieres

Como a grande virtude do glorioso· Sales era bem reconhecida, não só pelos católicos, mas também pelos Protestantes, fazia-se universalmente venerada.

No ano em que êle pregou o Advento, e Quaresma na cidade de Grenoble, Monsieur de Lesdiguiêres, que ali era lugar-tenente do Rei, e marechal de França, não estava ainda convertido à Igreja Católica. Porém respeitava muito ao nosso santo, e lhe fazia honras extraordinárias, convidando-o frequentemente para a sua mesa, visitando­o também na sua casa, e assistindo algumas vêzes aos seus sermões ; porque estimava muito a sua doutrina, e :fazia grande conceito de sua virtude.

Causou tudo isto os maiores zelos aos da religião pre­tendida reformada, e principalmente as ocultas e longas conferências que tinha o santo bispo com aquêle grande :fidalgo, o qual o elogiava em tôda a ocasião, denomi­nando-o sempre o Monsenhor de Genebra, de que todos se admiravam !

Ameaçaram naquêle tempo os ministros da reforma aos do seu partido que haveriam por excomungados aos que assistissem aos sermões do santo bispo. - Porém

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nada- bastou para que não fôssem muitos dêles ouvir as suas doutrinas, de que saíam todos edificados, e alguns também convertidos.

Tiveram depois aquêles ministros vários consistórios para descobrirem os meios mais eficazes com que repre­sentassem a Monsieur de Lesdlgulêres o escândalo que causavam a todos os protestantes, de que êle era a principal coluna, a honra que dava ao bispo de Annecy, a familiaridade que com êle tinha, a assistência e elogios grandes que dava aos seus sermões. E para êste efeito destinaram alguns mais distintos do seu partido.

Mas advertido aquêle Senhor desta intenção logo que os tais deputados chegaram ao seu palácio, antes de os admitir, lhes fez dizer : Que se êles o procuravam para algum seu particular negócio, ou da república, de boa von­tade os receberia. Mas se vinham com intenção de lhe propor alguma exortação consistorial, tivessem logo a cer­teza, de que entrando pela porta, sairiam pela janela.

Vendo então aquêles ímpios frustrado êste meio toma­ram o expediente de move:r a um dos principais senhores da província, que era da sua mesma crença, para expor em uma particular conferência a Monsieur de Lesdiguiêres; o que os ministros consistoriais se não atreveram a fazer pessoalmente, pelo temor da sua indignação.

Feito isto, assim respondeu aquêle senhor :

- Dizei a esta gente que eu tenho idade bo,stante para saber como hei de viver no mundo. Até a idade de trin"ba anos, em qué me fiz protestante, vi como os cató­licos-romanos tratam os seus bispos, ainda os mesmos reis e príncipes, que os respeitam e veneram. E entre nós outros, (depois de rejeitada a dignidade episçopal, ainda que bem fundada na Escritura) não passam os nossos ministros de uns desprezíveis c·ur.ados.

E dizei particularmente a tal ministro . . . (que sõbre ser de baixo nascime.nto, tinha sido seu doméstico, e subira :Por favor à dignidade de governar a igreja pre­tendida reformada de Grenoble) que quando ett vir feitos

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ministros entre nós outros os filhos dos reis, e ,piíncipes, como 08 vejo . Ós card

.eais, arc�bispos e blspos éntie 08

. católicos romanos, então considerarei a honra ciue �lhes devo dar.

E pelo que tocq qo I;Jispo de Annecy, se eu iôsse, .como êle 'é, _ bispo ,e príncipe de Genebra, eu me iar.�a . ser : obedecicio, e que se reconhecesse o meu principado', Eu �ei· muito. bem quais 'são os seu:; direitos e os seus títulQs, meihor ainda. qÚe um tàl . . . e seus colegas e asSiStent�s. E sei assim mesmo, que m� perttmce o cor,rigí-los quando antes se não calem, como sábios. gles sãQ muito peque­nos e muito moços para ensinarem a viver a 'Um homem do meu caráter e da minha idade . .

:à:le depois disto duplicou as honras e obséq'!lios ao santo bispo, só com despiazer dos _pretendidos reforma­dQS. E as frequentes comunicaç()es, que com êle teve lhe fiz.eram tais im.pre&&õe_s sôbre a verdade pura da nos&a santa religião, que por fim, sendo chamado parà. o cargo de condestá vel, ab}urou os s�us erros, cori:i.o bom cp._tólico, e m!'lreceu ter uma morte edificante e feli­císsima.

§ XI

Ardente desejo . do eéu num homem do povo

Andando . o nosso bem-aventurado em visita e sa­bendo, que um camponês enfermo. desejava receber a sua. bênção, o foi procurar sem demora. 'Disse-�he então aquêle bom homem.

- Monsenhor eu louvo e agradeço muito a Deus o conceder-me· antes de passar desta vida, o poder receber 00 vossa mão q preciosa bênção episcopal e absolvição ge�al das minhas culpas.

Cqncluipa pois a confissão, lhe perguntou o en�ermo: .- Monsf(nhor, eu morrerei? Ju_lgando então o santo - b�Q­,que o temor da morte o consternava, lhe disse : Meu -ttUto:

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um médico responderia melhor d:o que eu ao que vós me perguntais. -Mas o que eu vos posso dizer, é que ve_jo a vossa alTML em boa disposição; e que sendo vós chamado em _ outro tempo, . talvez não estaríeis tão bem prepa­rado para partir.

Nestes têr71Ws, o melhor que d.eveis praticar, é aban­donlir o cuiialiô e. desejo de viver, entregq,ndo-vos inteira­me.,;te· d providéncit:t e misericordia ·a,e Deus, afim de que disponha da vossa pessôa, segundo a suez: vontade san­tíssima.

- O' Monse.nhor, :.;:epllcou o enfermo, não é o temor àa morte o q·ue me obriga a jazer-vos essa pergunta: mas antas é o temor de ·não morrer; · porque eu, por vontade nitnha não quis'era mellwrar desta moléstia.

Adnlirou-se muito o santo bi.l;po de ouvir falar por êste modo aquêle · enfermo sabendo muito bem que o desejo de morrer. excetuando as almas que tem subido a �JÍl alto gráu de perfeição, é todo próprio das imper­feitas, ou das que propendem quase para a desesperação, ou pelo menos das que se acham no estado de uma pro­funda melancolia.

Perguntou-lhe pois o nosso bem-;:tventurado, - visto ser-lhe tão penoso viver neste mundo, - em que se fun­dava o seu desgôsto da vida, cujo amor era para todos tão natural.

- Monllenhor, respondeu o bom homem, é êste mun­do cousa tão pouca, que não posso compreender, como tanta gente lhe tem amor! Eu por mim posso dizer, que se o próprio homicídio não fora pecado, eu há muito tempo não seria vivo.

Imaginando então o santo Prelado, que teria aquêle enfermo algum desprazer grave, que lhe fizesse abor.recer a vida, e desejar a morte com tanta eficácia, lhe per­guntou, se tinha alguma incomodidade oculta, ou nos bens, ou no corpo

- Não, meu senhor, lhe respondeu, eu gozei sempre uma saude perfeita até esta· minha idade septuagenaria.

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E pelo que toca, aos bens temporais, eu, graças ao ceu, sempre os possuí com abundância, de modo que nunca vi a cara à pobre2o,.

Perguntou-lhe ainda o nosso santo se tinha algum desprazer dos seus filhos, ou da sua mulher.

- Tenho de todos os meus, respondeu êle, a melhor satisfação, que justamente se pode desejar. E se eu tivesse pena por deixar agora êste mundo, só dêles, ou por êles me poderia nascer, o motivo.

Ora, não podendo adivinhar'

o santo bispo, donde vinha àquêle enfermo o desgosto da vida lhe disse :

- Pois, meu irmão,. qual é o motivo, porque _desejais a morte? - E', meu senhor, lhe respondeu, por ter ouvido nas pregações, ta2er tanto aprêço do outro mundo, e das glórias do Paraiso, que reputo o assistir na terra, como viver num cárcere e prisão penosa.

E continuando a falar sôbre êste agradável assunto, disse tão belas coisas, que o santo bispo admirado se banhou em lágrimas de ternura, vendo que a maravi­lhosa locução daquêle virtuoso enfermo não lhe fôra su­gerida pela carne e sangue, mas pelo magistério do Divino Espírito.

E logo o mesmo enfermo, descendo daquelas altas especulações celestes, entrou a descrever a bal..xeza des­prezível das mais eminentes grandezas, das riquezas mais suntuosas e dos prazeres mais exquisitos do mundo, tanto ao natural, e com tão vivas côres, que até .imprimiu a êste respeito um desprêzo novo no mesmo coração do nosso bem-aventurado.

Mas, para maior segurança, concluiu a prática com :fazer muitos atos de resignação e conformidade com a vontade divina, assim para viver, como para morrer. E dali a poucas horas (depois de receber a extrema unção pelas mãos do santo bispo) expirou, sem se queixar de alguma dor; e ficou depois da morte ainda com mais agradável presença do que a boa, que tivera em vida.

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§ Xll

Eserápulos de um homem rico e grande esmoler

Na viagem que o nosso Santo fez a Paris em o ano de 1619, procurou-o um fidalgo cheio dos bens da for­tuna, mas

· ainda mais rico em piedade e misericórdia

para com os pobres. O qual temendo o perigo da sua salvação por causa dos seus bens, lhe perguntou, se po­deria alcançar o céu, sem embargo de suas riquezas?

- E sôbre que se tunda êsse vosso temor? lhe disse o santo prelado. - E' por ser eu muito rico, lhe respon­deu. E vós bem sabeis que o Evangelho ém tais circuns­tâncias põe a salvação quase como impossível.

Então o bem-aventurado não podendo ainda formar juízo certo sôbre esta resposta, lhe perguntou ainda: Tendes vós alguns bens que fôssem mal adquiridos?

- Não, meu senhor, respondeu pronto : Os meus pais, que eram bons cat_ólicos, nada me deixaram dessa natu­reza. E tudo o mais que eu agreguei, foi pela minha economia, e pelos justos réditos dos meus empregos. E nada nesta parte me acusa a consciência.

Fazet.� vós, perguntou mais o santo pastor, algum uso criminal das vossas riquezas? - Meu senhor, respondeu logo, o meu tratamento é segunao a minha qualidade; e cuido que nada tem de supérfluo. O que me jaz algum pêso, vem a ser que ainda que socorro aos pobres, poderá talvez não ser quanto devo. - E tendes vós filhos, per­guntou o santo, ou parentes necessários? - Não senhor, lhe respondeu; porque todos os que tenho, se acham bem providos, e nada carecem do meu soco"o.

Ora eu não sei, replicou o santo, donde procedem os vossos escrúpulos. Vós sois o primeiro que eu tenho en­contrad,o a quem seta oneroso o possuir muitos bens néste mundo. Vendo pois o santo bispo em tão boa· disposição aquêle fidalgo, lhe foi muito fácil sugerir-lhe bons con­selhos para os melhores exrcíclos de piedade e misericór­dia, que praticou no restante da sua vida; até que por

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último, além dos muitos legadqs pios, que deixou em seu testamento, instituiu a Jesus Cristo por seu principalJler­deiro, aplicando o resto das suas rendas para bem dos pobres enfermos ; e coroou tal vida com a morte mais ditpsa.

§ XIII Das securas na oração

Quando alguma religiosa se lhe queixava das de·s­consolações interiores e securas que padecia no exerc1c1o da oração, respondia com graça: Eu quanto a mim, sem­pre tive por melhores os doces secos que os líquidos. E repetia logo aquêle texto de Daví : "Na terra deserta, sein caminho e sem água, assim me apresentei diante de vós, como no lugar santo para contemplar o vosso poder e a vossa glória":

Poucos se persuadem desta verdade, não obstante o ser infalivel, que a união com Deus de urna ·alma justa e fiel, é mais intimamente estreita nos desamparos e se­curas, do que nas consolações e delícias. Pois, quanto mais a alma se �ntretém na consolação com Deus, tài:ito menos se chega a unir com o Deus das .consolações. E as . abelhas que aj untam menos porção de mel, são as gue fazem mais cera. _

Quanto mais, quem pode imaginar maior desamparo que o que padeceu na CrUZ o Salvador? E ninguém ·cíu­vida, de (!Ue êle então estivesse sumamente unido à voji'­tade � seu Pai. União, na qual consiste o fim de tôda a consumação : pela qual êle exclamou, que tudo estava consumado, e nesta consumação perfeita entre-gou êle o seu espírito nas maos cio

"mesmo Senhor.

Oh como é venturosa a alma que · se porta com fide­lidade e - resignação nos desamparos e . securas sensíveis ! Aqui estâ o crisol, onde perfeitamente se refina o Óuro da caridade mais pura. E bem-aventurado aquêlé .. ciüe sofre com pac�ência esta .prova; porque, send·o assim de­purado, receberá .Por fim a preciosa coroa, que Déus tem promêtido aos

· que deverâs o amam e são por êle amados.

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QUARTA PARTE

.§ I

Da singularidade

Procurava o nosso santo desterrar a singularidade, não só das casá:s religi_osas, sénão ainda dos que profes­sam devoção nó século, 'dizendo ·que êste defeito· fazia sua; piedade não sàmente odiosa senão tambéin: ridícula.

Desejava êle, que cada qual, quanto lhe fôilse· · pos'"' sível, se portasse conforme aos da sua ·profissão, :sem alguma singularie!-ade; · propondo o exemplo · do mesmo Salvador, que rios dias da· sua vida · mortal sempre se quis parecer em tudo com seus 'irmãos. . . . . !

Isto mesmo praticava o nosso sahto côm a· maior exa:' tidão,.· como refere o vEméravel bispo·. 'de Belley'; que · ·no espaÇo de catorze ànos, assistindo corii: êle· 'e · recebendo as suas doutrinàs, ·teve · tôdà a oportunittáde ·para bbser'­var .têÍdas as suas · ações aindá ás riíínnn��:s·; e principal.; ment{ nos oito 'dias, em que à'nuahne'nté o :inesrlí.o santo o 'vinha visitar, e assistir com êle ·na sua própria resi-dência. •

E para maior comoâldade a Mte respéitó, . tinha· o indústrioso discípulo feito alguns 'furos imperceptiveiã·.�m várias ·partes do aposento, ·onc:l�· se recolhia o santo;: ,po'r· onde · petcebia como êle sé ·portava, orando, lendo, e8cre� vendo:;. 'tleítando ... se; levanfàrido-'Sé' e em' .quâ;isqrier outras aÇOee; · que cada um pratiCa:· estandô::Só. E obsehtóu. sen'l'­p�e. que nunca. êle se dis-pensou da exata - leí de tão :vli-.:.. túOS"a: modéstia, éólrio sé estivesse: no · meio- da 'nútis . res--pl'§}�l companhia. · -.� ·. ·

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Por isso êle costumava dizer, que a nossa conversa­ção, e comportamento exterior devia ter as qualidades da água corrente, que é sempre a mesma; e a melhor é a mais clara, mais simples, e que não tem no seu próprio sabor gõsto algum particular.

§ II

O seu parecer a respeito das dignidades e a residência dos bispos

O Sumo Pontífice Clemente VIII estimou muito ao glorioso Sales, e mais ainda o seu sucessor Paulo V, que pensou por várias vêzes em o fazer cardial ; de cuja inten­ção sendo o mesmo santo advertido protestou logo, q\,le seria aquela promoção muito contra sua vontade.

E dizendo-lhe seu discípulo, que ainda que não o cen­surava, contudo se admirava muito a êste respeito lhe respondeu o santo e sábio mestre : E pensa,is ·vós que me serila útil aquela dignidade para servir me�hor · a Deus, e à sua Igreja? Roma seria o lugar da minha residência; e seria ela para isto mais conveniente do que a assistên­cia no meu bispado? Eu ali ter'ba mais trabalhos que su­portar, mais inimigos que combater, mais almas que in­fluir, mais exercícios de piedade, mais visitas e mais fun­ções pastorais que fazer. Que vos parece?

- Vós então, lhe respondeu o discípulo, vos ocupa­reis no cuidado de tôdas as igrt7as; e da direção de uma igreja só passaríeis d maior e mais importante adminis­tração da Igreja universal, com o Sumo Pontífice e car­deais vossos colegas. - Poderia ser, replicou o santo; porém vós não ignorais, que os cardeais dos nossos dias mais distintos em piedade e ciência, logo que foram bis­pos, deixaram a residência de Roma, que é só de direito eclesiástico, e se foram para as suas dtoceses fazer a ordi­nária residência, que é d� dirftto divtno, pela razão do pa.storal ofício, que os obriga a velar sóbre o seu rebanho.

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§ ID

Recusa o santo ser Arcebispo de Paris

No ano de 1619, indo o glorioso Sales à Corte de Paris com os Príncipes de Saboia, no espaÇ(l de oito mêses, que ali se demorou, fez heroicos serviços a Deus e de grande utilidade às almas, com inexplicável consolação do car­dial de Rets, que alí era Arcebispo, e possuia tôdás as qualidades precisas para um verdadeiro e virtuoso prelado.

Pois a suavidade dos costumes e amável conversação do nosso bem-aventurado, a todo� atraía, como um per­fume de celestial fragrância ; e agradou tanto àquele insigne prelado, que tomando a firme resolução de o.

fazer seu coadjutor e futuro sucessor, dispôs para êste efeito o ânimo do rei, supondo no mesmo tempo que por parte do santo não encontraria repugnância alguma.

Porém êle com admirável destreza soube evadir àquêle golpe, alegando (entre outras excusas) que não devia deixar uma espôsa pobre por uma rica ; e só se resol­veria a deixá-la, para não tomar outra.

§ IV

O seu desejo de retiro

O desígnio do nosso santo (se voltasse de Lião, onde morreu) era retirar-se para a solidão, e empregar alí o

resto dos seus dias nas contemplações de Maria, depois de ter gasto os seus anos nos ofícios de Marta.

Tinha êle para êsse efeito mandado fazer uma resi- . dência em um sitio muito agradável, próximo ao lago - de Annecy, com uma capela bem adornada e cinco ou sei8 cubículos no .circuito de um belo claustro. O que tudtt estava junto a um célebre mosteiro de Beneditinos, em que pelos seus cuidados se introduzira a mais perfeita reforma.

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Intentava pois retirar-se a êste deserto, depois de entregar ao bispo de Calcedônia, seu irmão e coadjutor seu, o govêrno do -bispado. E falando várias vêzes dêste retiro com o prior do mosteiro vizinho, dizia : Q'uando nós estivermos na nossa amada solidão, alí serviremos a Deus com o nosso breviário e rosário, e também com � nossa pena.

Oh quem me dera, dizia muitas vêzes, quem me df3ra ásas ·de p011iba, para voar àquêle espiritual deseanso; onde pudesse respirar à sombra da, santa cruz; até chegar o feliz momento da minha final mudança,' ou total' �aida dêste mundo. :tstes eram os desejos do nosso bem-aven­turado; porém Deus lhe preparava no mesmo tempo outro descanso, que era o fruto dos seus trabalhos.

§ v

Que se devem ocultar as virtudes

Visitando ao nosso -santo um prelado seu amigo, êle, segundo o seu costume, o recebeu com todo o bom aco­lhimento, e o teve por hóspede alguns dias. Chegando pois a uma sexta feira, perguntou-lhe o santo, se queria vir para a mesa, onde a cêia estava pronta. Hoje não é dia de cear, respondeu o hóspede, e não é muito em cada semana um dia de jejum. Ouvindo isto o santo, mandou qÚe lhe trouxessem a colação ; e êle foi cear coni os do­ftléáticos dáquêle prelado e· co:trt - os da sua própria famíl�a-. � · ; Então o s fari'liliares daquêle prelado lhe disseram, que êle era tão exato e pontual nestes exercícios de mortifi­·cação, que por mais respeitavel que fôsse o hóspede que êntão ·tivesse, êle nada alterava do seu costume ; .porque áinda que se punha com todos à mesa, comia sõm�nte o qhe o j ejutn lhe· ·permitia. ' · ·

, :· Depois, · falando o santo com o bispo de Belley sôbre tdiberdade· de espírit� referindo..:lhe êste passo lhe ·disse que a condescendência era filha da caridade, assil'll'!Coíno

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o jejum era irmão da obediência. E- nesses têrmos, se a obêdiêncià. era maior· que o sacriiício, não havia dif�cul;. dade · em preferir a condescendência e a· hospitalidade ao. j ejum.

E por aqui vereis, concluiu dizendo, que não se de1.1e. ter tanto apêgo, ainda aos exercícios mais pios, que se não hajam de interrompqr algumas vêzes. Porque do con­trário pode suceder que, com o pretexto de fidelidade e jirineaa de espírito, se introduza um finíssimo amor pró­prio, que jaz deiXar o fim pelo meio, quando em lugar de sé unir a. Deus, se une ao meio que a .tle conduz.

E pelo qlle respeita ao fato, de que se falou acima, �: certo qué aqU:êle j ejum da sextJt-feira, por então inter-, rompido, ocultaria os outros; e ocultar tais -virtudes não é virtude menor do que as mesmas que se ocultam. Po-­dia pois aquêle prelado reservar o seu j ejum de sexta­feira para o dia ou semana seguinte. E podia não menos omiti-lo inteiramente, substituindo em seu lugar a vir­tude da condescendência. Exceto se a obrigação proce­dia de voto ; pórque nêste caso a fidelidade para com Deus precede a tudo.

§ VI

Do jejum ,··. :'

Perguntou uma vez o nosso santo ao bispo de B.eUey seu discípulo, se tinha facilidade em j ejuar. Tanta, lhe respondeu, 'como quem nunca tem: fome; e quando me ponho à mesa., é quase sempre --sem a.petêneia. -'- · Visto isso, lhe disse o. bem-av.enturado; jejuai_ .só nos dias -de precéito.

- Logo, para quem , se dispôs, rêplicou o discípulo, . esta espécie ·de mórtijicàção tão recomendctda nas. Es--­crituras? - Para a.quêles, respondeu· o_ santo; que têm melhor ou maior apetite· do que vós. E portanto; comu­tat· ·o jejum em. outra obra àe mortificação,. ·quanto per­mitir ·a prudência� segun·cto . . a vossa débil natureza.

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Com efeito, o nosso santo, que não aprovava os j ejuns imoderados, costumava dizer: O espírito não pode supor­tar o· corpo m-uito nutridO: nem também o corpo mace­rado com exce83o pode suportar bem o espírito. Amava pois o santo igual tratamento; dizendo, que Deus queria ser honrado com juizo.

E acrescentava, dizendo que pode cada um quando quer, diminuir as fôrças do próprio corpo, mas não póde com igual facilidade repará-las, depois de abatidas; por­que o ferir é mais facil que o curar. Em suma, a regra geral na presente matéria vem a ser esta : - o espírito deve tratar ao corpo como a seu� filho, sem o oprimir, ttuando lhe obed�ce ; e dar-lhe o castigo, como a vassalo rebelde, quando 8e lhe revolta i segundo -dizia e p�:aticava S. Paulo : "Castigo o meu corpo, e o faço obedecer como servo".

§ VII

Diversas espécies de humildade

Distinguia o nosso santo a virtude da humildade em exterior e interior. Sem esta, a EXTERIOR era perigosa, podendo degenerar em hipocrisia; e com ela, é muito boa para quem a exercita, e de grande edificação para o próximo.

Distinguia a humildade interior em humildade do entendimellto e da vontade. A primeira é assás comum, pois é raro o que ignora, que por si mesmo é um mero nada. Mas a segunda é bem rara, e tem tres gráus. O primeiro é amar a humilhação; o segundo é desejá-la; e {) terceiro é praticá-la, procurando as ocasiões de humi­lhação e melhor ainda, recebendo de boa vontade as que nos sucedem sem as :procurarmos.

· E isto é o que o nosso santo mais estimava ; reco­nhecendo maior abjeção- �abatimenta em sefr.er, amar e receber com alegria as humilhações, que nos sobrevêm

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sem eleição nossa, do que naquelas que nós escolhemos e talvez viciamos com o nosso amor próprid e ordinárias paixões da natureza humana.

§ VIII

Da pobreza de espírito

Pela pobreza de espírito, dizia o nosso santo, devem-se entender três excelentes virtudes: 1. a simplicidade; 2. a humüdade; 3. a ,pobreza cristã.

A SIMPLICIDADE consiste em referir de coração tôdas as coisas a Deus. _. HUMILDADE consiste em qualquer se reputar por um verdadeiro nada e um servo inútil. E a POBREZA CRISTÃ distinguia O santo em três classes, a sabef; em AFETIVA e não EFETIVA; em EFETIVA e nãc> AFETIVA; e em AFETIVA e EFETIVA.

A pobreza AFETIVA e não EFETIVA é excelente e se pode exercitar entre as maiores riquezas, como fizeram· Abraão, Isaque, Davi e outros heróis na lei antiga; e assim tam­bém vários reis, príncipes santos da lei da graça, inteira­mente dispostos para receber a pobreli!Xl, não só ·sem re­pugnância, senão ainda com louvor a ação de graças, se Deus assim o permitisse.

A pobreza EFETIVA e não AFETIVA faz duas vêzes des­graçada � pessôa que a padece; tendo as incomodidades, que traz consigo a indigência, e a pena que procede da privação dos mesmos bens ardentemente dese;"ados.

Por último, a pobreza AFETIVA e EFETIVA, muito louva­da no Evangelho, ou provém da indigência dos nossos pais, ou de algum revés de fortuna (quando não venha de alguma desordenada paixão da natureza humana) . Então pois, se de boa vontade recebemos a pobreza. con­formando-nos, louvando a Deus n&te estado, imitamos a

Jesus Cristo, e aos seus Apóstolos, que nasceram e vive­,·am pobres nêste mundo.

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§ IX

Uo amor para com os _.pobres

Amar verdadeiramente o próximo, não é só desejar­lhe o bem, mas é fazer-lho eom efeito, segundo a própria possibilidade. De outro modo tem lugar a censura que faz o apostolo São- Tiago aos que só dão aos pobres pala­vras de consolação sem lhes dar o socorro que pedem e com· qué dS podem favorecer..

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Tinha com efeito nosso santo tão particular amor aos pobres, que só nisto parecia fazer exceção de- pessôas, pre-1erind6 os pobres aos ricos, assim no espiritual como no temporal ; portando-se nesta pai'te, �omo os .bons médi­sos, que atendem e cur.am primeiro aos mais enfermos.

§ X

Recusa uma pensão que o rei lhe oferecia

O grande Henrique IV, rei da França fazia grande -�prêço· da vittude do nosso santo. E esperando que vagasse. algum bispado mais rendoso que o de Genebra, qrie era assáz diminuto, lhe ofereceu entretanto uma pensão considerável.

Mas o discreto e modesto bem-aventurado, que - não qu_eria deixar a sua Igreja, nem dar zêlos ao seu príncipe nacional, fazendo-se pensionãrio de outro senhor, desco­hriu um expediente, éom que evadiu no mesmp tempo aquêles dois golpes : rendendo humildes graças a SU!!- ma­-jestade pela honra que lhe fazia de o conservar na sua lembrança, e cuidar no seu cômodo; e suplicando-lhe _ao

-mesmo passo, que o não privasse do pôsto em que Deus o colocára na sua Igreja; porque êle julgava, que os bis­pados não se faziam estimáveis à proporção das rendas, mas pelo maior serviço que nêles se podia fazer. a Deus ; e pensava também, que nêst�articular a sua diocese excedia a muitas.

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li: quanto à pensão oferecida, como vinha de mão tão respeitável, ·não podia · recusar, Ma$ CJ,J.le suplicava a. sua Majestade o· haver por bem que ficasse em depósito n� mãos do tesoureiro, até lhe ser n�essária Pl\1-ra o serviçp da �religião . católica, ou remédio c!.os pobres. :Pois quanto ·a.-:-súa 'própria péssôa tin,h"a. · o · que past!J,va para passar ,� vida.

Admirou o generoso monarca a sua destreza, juizo e desinterêsse. E louvando também sua grande prudência, disse: Ejs. aqui a mais agradável � màis bem temperada repulsa, que até agora se me tem jeito. �ste homem é tora de tôda a corrupção e excede a todos 'os mais.

§ XI I

Que alimentos se podem permitir ·aos sold!Ldos no tempo da quaresma em caso de necessidade?

Achando-se a guarnição militar em tempo de qua'­resmfJ. no bispado de Belley, foram os capitães pedir fa:.. culdade ao bispci para os seus soldados poderem comer ovos e queijo. E como aquêle bispo (que era discípulo ·do nosso santo) não costumava dar estas permissões, senão aos enfermos, achou-se embaraçado com a proposta sú­plica; principalmente por ser em uma terra onde a qua­resma é tão estritamente observada, que os . habitantes se escandalizavam muito, quando por falta de azeite se lhes permitia usar de manteiga.

Despachando pois um correio ao nosso bem-a.ventu­rado para o consultar na presente matéria, teve dêle esta resposta :

Venero muito a piedade e boa fé dêsses capitães, cujo requerimento me parece justo, e como tal, de11e ser aten­dido. O que suposto, dissera eu, que o que pedem se lhes pode conceder e ainda ampliar. De maneira que além de_ .se lhes permitir o us� de ovos e de queijo, se lhes con­cedesse também o poderem servir-se de manteiga � carne

· de vaca.

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Ora vós, meu cansslmo, tendes boa graça em me consultar sôbre o que os soldados poderão comer na qua­resma; como se .a lei da guerra e da necessidade não fôs­sem mais violentas, que tôdas as outr'laS. E prouvera a Deus que êles não praticassem coisas piores! De maneira, que não causando tão grandes desordens e criminais excessos, não h·ouvesse contra êles tão justas queixas!

§ XII

Sôbre o ocultar as sue.s austeridades

O nosso bem-aventurado em tôda a sua vida soube ocultar com tanta destreza os instrumentos de penitên­cia, de que êle se servia, que só a morte revelou êste se­grêdo; inteiramente incógnito até ao mesmo criado, que ao recostar-se e levantar-se quotidianamente o servia no seu cubículo.

Por uma casualidade se julgará o restante. Aquêle seu criado achou uma vez na bacia de lavar uma pequena porção de água, como tinta de sangue. E não podendo adivinhar a causa disto, porque havia pouco tempo, que �le trouxera água naquela mesma bacia para lavar o santo as mãos, veio depois a conhecer que naquela bacia lavara êle as disciplinas tintas em sangue ; e despejando logo � água, ficára por acaso aquela porção que deu lugár ao reparo, e por êle à conjectura.

§ XIII

Saber gozar a abundância e padecer a penúria

Esta sentença de S. Paulo agradava muito ao nO&'!O santo; o qual contudo dizia, que saber com paciência tolerar a penúria era menos 'que saber com justiça gozar a abundância; porque, se caem mil à esquerda da·

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sorte adversa, caem dez mil à direita da fortuna próspera.. Tanto é difícil o caminhar sem tropeço na estrada da abundância. E por isso dizia Salomão a Deus "Senhor não me deis pobreza nem rigueza: dai-me só o que fôr necessário para o meu sustento".

Com efeito, saber guardar a moderação entre as ri­quezas, tem semelhança com a sarça, que ardia sem se queimar, e com os três mancebos de Babilônia, que saíram ilesos da fornalha. E assim como a humildade corre perigo entre as honras, e a castidade entre as delícias, também têm ambas grande risco entre as riquezas.

E por outra parte, saber gozar a abundância, padecer a penúria com igual coração, é sinal evidente de que aquêle que assim se porta atende só a Deus, tanto na pobreza como nas riquezas; pois nem os espinhos da pobreza o lastimam, nem as comodidades das riquezas o entumecem.

§ XIV

Da recreação e como lhe servia, assim como tudo o mais para se elevar a Deus

Não tomava jamais o nosso santo recreação alguma, senão por condescender com algum amigo. Assim pois nunca saía a passeio, senão quando a companhia o obri­gava, ou lhe ordenava o médico para sua saúde; porque era muito pontual nesta obediência.

O nosso bem-aventurado, com o seu espírito de do­çura, não recusava alguns breves entretenimentos depois da mesa. Quando o bispo de Belley seu discípulo o vi.Iiha visitar, cuid.ava muito em o divertir depois do trabalho da pregação. E da mesma sorte, quando o glorioso Sales o ia vis�tar na sua residência, não recusava outros tais divertimentos, que o bom discípulo lhe oferecia. Porém, como fica dito, nunca êle os procurava, nem· a êle se con­duzia por seu próprio movimento.

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Quando se lhe falava de edifícios, pinturas, plantas, flores, caça, música etc., êle não censurava os que a isto se aplicavam. Quisera, sim, que êles se servissem de tôdas estas ocupações, comQ de outros tantos meios para elevarem o espírito e o coração a Deus. Sôbre o que lhes dava êle o exemplo, deduzindo de tudo isto virtuosoe afe­tos, que o seu espírito lhe excitava; como quem via tôdas as coisas em Deus. Ou, para o dizer melhor, como quem não via mais, do que uma só coisa, a qual era Deus.

§ xy Nada pedir e nada recusar

Segundo esta grande máxima, costumava o nosso santo receber os pequenos donativos, que as gentes pobres lhe ofertavam pela administração dos sacramentos. E era coisa bem edificante vêr o bom a.grado, com que o santo bispo naquelas ocasiões recebia um punhado de nozes ou de castanhas, de ovos ou queijos pequenos, que os meninos e pobres lhe presenteavam, e quando muito, algumas mínimas moedas de cobre. E êle por tudo isto, com benigno aspecto se lhes mostrava obrigado e agradecido.

E o que se lhe da v a em dinheiro o distribui a por si mesmo aos pobres, logo ao saír da igreja. Ma.S o que era coisa de comer, o levava nos seus bolsos; e colocando-o nas prateleiras do seu aposento, recomendava ao seu mor­domo, que lhe fôsse apresentado à mesa, verificando por êste modo na sua pessôa, o que lhe dizia o real profeta: Tu, que comerás o fruto de teus trabalhos, és feliz, e tudo te sairá bem.

§ XVI '

Nada recusava do que justamente se lhe pedia

Na última viagem, que o nosso santo fez a Paris onde assistiu oito mêses, foi tão de�ado de varias partes, que quase todos os dias tinha de pregar; o que lhe causou

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uma enfermidade p�rigosa se. bem que sarou dela com presteza.

Disseram-lhe então algumas pessoas de respeito e amantes da sua conservação, que não se encarregasse de tantas emprêsas superiores às. suas fôrças, para não cau­sar ruína à tua própria saúde. Ao que êle respondeu, que todos aquêles que eram por ofício, luz do mundo, deviam consumir-se como as tochas, até se acabar a cera.

- Mas as pregações . tão frequentes, instaram os mesmos, jazem a palavra de Deus menos preciosa; porque o mundo só estima o que é raro. - Pois se i3to assim é, replicou o bom prelado, será preciso nomear-me um vi­gário destinado para as escusas; porque a mesma pala­vra que eu anuncio, me ensina, que somos devedores a todos, para lhes darmos o que nos· pedem com justi9Q.; e a escusa nestes casos, além de grosseira incivilidade, seria inteiramente oposta à caridade fraterna.

§ XVII

Da devoção para com a Mãe de Deus

Como o nosso santo nasceu num dos dias do oito.vario da Assunção de Nossa Senhora (21 de agôstõ do ano de 1567) teve sempre uma especial devoção para com a San­tíssima Virgem; honrando-a com frequentes obséquios desde os seus primeiros anos, e consagrando por voto a Deus, em llonra e amor da mesma Senh.ora, não só a sua virginal pur.eza, senão. também o rezar-lhe todos os dias o seu rosário.

Chegando pois esta notícia a uma pessôa · devota, de­sejou praticar o mesmo quanto ao voto do rosário, porém não o quis fazer, sem tomar primeiro a êste propósito o seu conselho. E o santo lhe disse logo que tal não apro­vava. Então aquêle devoto lhe replicou admirado : Pois vós recusai3 aos outros, o que para vós escolhestes na vossa mocidade?

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Sim, respondeu o saqto, e a palavra MOCIDADE decide e satisfaz �C� pergunta. Porqut: agora sem dúvida não fizera eu aquêle voto, que então ofereci com menos con3ideração e madureza. E, se vai a dizer tudo, mais de uma vez me tem embaraçado e ainda ocorr�do o fazer-111,e dispensar o tal voto, ou com·utá-lo em outra obra de igual importância, mas de menor sujeição.

Aconselho-vos, pois, e vos exorto, quanto mais me é possível que não passeis algum d� sem . o rezar; por ser uma deiJoção muito agradavel a DeU3 e· à Santíssima Vir­gem. Porém seja sempre como um propósito firme e nunca por voto; para que tendQ alguma vez de omitir, não vos exponhais a perigo de pecm·.

§ XVIII

Tentação fortíssima, que .Padeceu o nosso bem-aventurado

Entre as grandes tentações, que servem de prova à nossa fé a que respeita a predestinação, é uma das mais penosas, por ser um abismo profundo, em que tôda a sa­bedoria humana e submergida. E Deus, destinando IW nosso bem-aventurado para conduzir as almas no cami­nho do espirito, permitiu, que fôsse tentado com fôrça a êste respeito, para que aprendesse a ser enfermo com os enfermos.

Acabára êle os . seus estudos em Paris na idade de dezesseis anos. E o espírito maligno intrometendo-lhe na imaginativa, que êle era do númerp dos condenados, im­primiu\;e esta tentação tão vivamente . na sua alma, que fazendo-lhe perder o descanso e nem poder comer, nem beber, ia a grandes passos dessecando-se e caindo num total desfalecimento.

Vendo-o pois o seu mestre assim macerado, :pálido e sem fazer gôsto de coisa alguma, lhe perguntava muitas vêzes, qual era a causa de tão estranha melancolia? Mas o cruel demônio, que lhe introduzira a tremenda ilusão,

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era daquêles chamados mudos, pelo total silêncio que fazem guardar aos miseráveis possessos, sôbre os quais se lhes concede poder, para mais os afligir.

E o mais ·é que êle no mesmo tempo, se viu privado da suavidade do am_or divino, a:inda que não ·da fid,eli­dade, por meio da qual, como com um escudo impene­trável, procurava repulsar, ainda que sem o perceber, os ardentes impulsos e sugestões do inimigo. Então as de­lícias, espirituais que góstara com tanto prazer antes desta tempestade, lhe vinham na memória e lhe duplica­vam a pena.

Em vão, dizia êle a si mesmo, esperava eu algum tempo ser inebriado com a abundância das doçuras da casa de De·us, e ver-me .submergido na torrente dos seus inefáveis prazeres. O' amaveis tabernáculos e deliciosos aposentos do templo do. Senhor! Eu não terei de ver-vos jamais, nem ser um dos vossos teliz�s moradores? Que desgraça}

Um mês inteiro padeceu o nosso santo estas amargas agonias, que êle podia comparar às dores da morte e aos perigos do inferno; passando os dias em gemidos dolo­rosos, e assim também as noites sem descansar nem dor­mir, regando o próprio leito com amargos e copiosos prantos.

Até que por fim, movido de wna divina inspiração, entrou na igrej a de S. Estêvão para invocar a misericór­dia de Deus sôbre a sua miseria. E pôsto de joelhos diante de uma imagem da Santíssima Virgem, rogou fer­vorosamente a esta Mãe de misericórdia, que fôsse advo­gada sua para com Deus, e lhe obtivesse de sua bondade, que, se êle miserável tinha de ser tão infeliz, que hou­vesse de ficar eternamente' separado do mesmo Senhor, pudesse ao menos amá-lo com todo o seu coração en­quanto lhe durasse a vida. E cóncluiu a sua súplica com a seguinte oração de S. Bernardo :

"Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria, d e que "nu,nca se ouviu dizer que de todos os que têm recorrido

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"à vossa proteção, pedindo o vosso socorro e implorando "o vosso patrocínio, fôsse algum rejeitado. Animado eu "pois com esta confiança ó Virgem, Mãe das virgens, "corro e venho a vós; e gemendo com o pêso dos meus "pecados, me prostro aôs vossos pés. O' Mãe do Divino "Verbo, não desprezeis as minhas rogatlvas; mas recebel­"as benignamente, e fazei com a vossa intercessão, que "Deus me atenda e me perdõe as minhas culpas. Amen".

Acabada esta oração, sentiu o nosso bem-aventurado o desejado efeito do socorro da Mãe de Deus, e o poder do seu patrocínio na presença do mesmo Senhor. Porque, sem mais demora, aquêle dragão maligno, que lhe en­chera o coração das suas ilusões funestas, se retirou total­totalmente ; e o santo ficou posSuindo tal prazer e con­solação, que onde abundaram as trevas, superabundou a luz.

·

Êste combate e esta vitória, êste cativeiro e êste . livra­mento, esta tempestade e esta bonança lhe deram depois tanta prudência e destreza no manejo das armas espiri­tuais, que era êle �omo um arsenal, que subministrava defesas, armas e indústrias a todos os que lhe manifes­tavam as tentações e opressão das suas almas, aconse­lhando-lhes sobretudo, que recorressem ao patrocínio da Mãe de Deus; a qual era sempre contra todo o inferno, como um exército ordenado em batalha.

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QUINTA PARTE

§ I

Como se portou o santo perdendo um anel de grande prêço

lnd!J o nosso bem-aventurado no ano de 1619 acom­panhar o cardial de Saboia para a cerimônia do casamento do príncipe do Piemonte, com a Sereníssima Cristina de França, te·ve-lhe tal veneração esta ilustríssima princesa, que o destinou logo para seu capelão: o que êle com difi­auldade aceitou e. ainda com a condição de que êste em­prego em nada prej udicaria ·ao . seu dever episcopal e assim também à sua residência, que êle afirmava ser de direito divino.

Obrigado, pois, pela decência dêste novo cargo, acom­panhou a sereníssima Princesa até o Piemonte ; pnde, passados !ilguns dias, pediu permissão para restituir-se ao seu bispado, em que delxára .por substituto ao bispo de Calcedônia, seu irmão e coadjutor seu. Concedida esta licença, ainda que a pesar de tôda a côrte, fez-lhe a princesa vários donativos, dignos da sua reai pessôa, e entre êles de um · anel, com um diamal'tte c;le extraordi­nário valor.

Viajando pois o santo a cavalo pelo alto dos montes Alpes, ao tirar de uma luva, caiu-lhe o anel, se� êle o pressentir, senão quando chegou à primeira hospedaria ; onde percebendo a !alta, não se alterou, antes louvou a Deus, por duas razões, dizia êle. A primeira por não ter

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motivo de empregar o seu afeto em uma peça tão pre­ciosa. E a segunda, porque a divina Providência forma­ria talvez o. fortuna de alguma pessôa mais pobre, que achasse o tal anel, com que houvesse de passar mais comodamente o resto dos seus dias.

Porém não sucedeu assim ; porque achado o anel por um pobre que ignorava o seu valor, e sendo mostrado na vila . que lhe ficava mais próxima, onde era já sabida aquela .pêrda, foi logo restituído ao santo

' prelado, que

premiou com liberalidade grande, não só ao que o achou senão também ao que lho trouxe.

Por aqui se deixa vêr, quanto o coração dêste bem­aventurado não fazia aprêço das coisas que os homens tanto estimam, como quem esperava gozar no Céu mais sólidos e preciosos bens.

§ li

A sull. oculta .mortificação

Achando-se o nosso santo em casa de seu discípulo o bispó de BeiÍey, lhe apresentou êste na mesa um prato delicado. E vendo que o santo dissimuladamente o punha de parte para comer de outro mais grosseiro, lhe di�e: O' meu Padre, onde fica o preceito evangélico: Comei do que vos é apresentado?

- . Vós dtzeis isto., respondeu o bem-aventurado gra­ciosame.nte, por não saberde.s, que eu tenho um estômago tão rústico e de camponês, que se não como alguma coisa mais forte, não fico satisfeito.

O' meu bom mestre, replicou o discípulo, sei que êsses são os disf�ces: com que paliaís a vossa austeridade.

- Não, meu caríssimo, respondeu o santo ; eu ftJ,lo­t•os tão sincero, que até vos confesso, que gosto mais dos aliment9s delicados, que dos grosseiros. Porém, como a mesa não é para satisfação da sensualidade, senão só para o nutrimento necessário, deve·-se comer para sus­tentar a vida, e não para lisonjear o apetite.

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Mas ainda assim para mostrar:.me agradecido à vossa boa vontade, prontamente vos satisfarei a êste mesmo respeito. Porque depois de haver tomado os alimentos mais fortes e mais nutritivos, receberei também uma pe­quenf!- porção dêstes mais delicados, que agora me· apre­senta o vosso generoso amor.

Oh quanta& virtudes entram nesta breve ação, que à primeira vista nada excede ao comum. A sinceridade, a verdade, a candura, a simplicidade, a- temperança, a con-. descendência, a· benevolência, a doçura, a benignidade, a prudência, a igualdade ! O certo é que as almas puras, como sempre agem pelo impulso da graça, nada pro­duzem que não seja grande. Porque as obras de Deus, cíirigidas pela sua graça, tôdas são perfeitas e têm a glória por corôa. E por isto dizia S. Pauío na sua pri­meira carta aos fiéis de. Corinto : Vós outros, ou comen­do, ou bebendo, e geralmente em qualquer coisa que jizer­des, fazei tudo para glória de De'us.

§ rn

Sinais da graça santificante

Uma das grandes penas, que pode padecer qualque1· alma- que ama a Deus, é entrar na dúvida sôbre se está na posse da sua graça- e se é por :ll:le verdadeiramente amada. Pois, _como diz o Espírito Santo no capítulo do sagrado livro do Eclesiastico, ninguem sabe (com certeza de fé, sem v-erdadeira revelação) se é digno de amor, Otf de ódio.

Contudo, o Doutor Angélico aponta alguns sinais a êste respeito. O primeiro vem a ser não sentir remorso algum de. pecado mortal ; isto é, não ter algum na. alma, de qu& se não haja purificado pelo sacramento da penitência.

O segundo é, quando cada qual sente em si, que ama a Deus, e se compraz nas coj.sas que pertencem ao ser-

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viço do mesmo Senhor. Porque é sem dúvlda, que agrada a Deus, e é por Éle amado, aquêle a quem Deus agrada; segundo está definido pelo mesmo Senhor no sagradG Livro dos Provérbios : Eu amo aos que me ama7it.

O terceiro vem a ser, quando em comparação do Criador nada estimamos as creaturas. O que no Evan­gelho se exprime com o nome de ódio, dizendo Jesus Cristo no capítulo 10 de S. Lucas : Aqu�le que não tem ódio a · seu pai, a sua mãi e ainda a si mesmo (isto é à sua vida) não é digno de ser meu discíptllo.

E o nos8o glorioso santo reduz tudo isto a êstes dois pontos. O primeiro é examinar, se no fundo da alma, l'eside uma firme e invariável resolução de não ofender jamais a Deus com algum pecado mortal ; porque nêste particular consiste a nossa grande união com a vontade de Deus. .

E o segundo ponto é examinar, se temos um firme e

constante desejo de amar a Deus; isto é, com um desejo eficaz, firme e resoluto, e não por impulso daquelas von­tades imperfeitas, que se apelidam veleidades.

§ IV

Obedecer aos poderes seculares

O sereníssimo Duque de Saboia, estando em guerra atual e oprimido das necessidades públic.as e urgentes, obteve um breve do Sumo Pontífice para poder nos seus �stados extrair uma contribuição pecuniária dos bens eclesiásticos; e o enviou aos bispos, para cada um fazer a derrama, ou a finta na sua diocese; à proporção dos rendime-ntos, que tivessem os benefícios.

Congregando pois o nosso bem-aventurado os bene­ficiados da sua diocese, e vendo-os pouco dispostcs para satisfazer o que lhes era ordenado por Sua Santidade, alegando uns e outros diversas escusas, que ao santo ·pa­reciam multo leves para contrabalançar umas tão graves

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urgências, como eram as do Duque, entrou logo em wn

ardente zêlo,. assim pela Casa de Deus, como pela do seu Príncipe; e impelido do seu religioso fervor, lhes falou desta maneira.

- Meus reverendos senhores e meus caris si mos irmãos! · Quem nos de·u autoridade para nos opormos com razões aôs decretos de dois soberanos, que concorrem uniformes no mesmo preceito? Nós, que não devemos entrar nos seus conselhos, podemos perguntar-�hes os motivos?

Não o fazemos nós assim, pelo que toca às ordens da Côrte, e dos tribunais, e ainda quanto aos despaehos e sentenças difinitivas dos juizes inferiores conformando­nos, como é. justo com as decisões do seu juizo. E falando aquí dois oráculos supremos, que só têm de dar conta a Deus do que ordenam, quereremos nós indagar os seus sentimentos, como se fôssemos seus indicantes? Eu por mim declaro, que tal não aprotJo, nem tal consinto.

o certo é, que estamos bem remotos da pura perfei­ção dos cristãos primitivos, aos quais dizia. S. Paulo: Vós vistes com prazer todos os vossos bens roubados, sabendo no mesmo tempo, que tínheis outros muitos, e mais exce­lentes, que não perecerão jamais.

Se assim pois falava o Apóstolo àquêles fiéis do in­justo roubo de todos os seus bens; repugnaremos, e nega­remos nós outros um leve donativo do nosso rendimento anual, podendo aliviar por êste modo o nosso bom Prín­cipe, amavel Pai da Pátria, a cujo valor e zêlo deveremos o estabelecimento da religião católica em todo o bailia­do, ou bailiados de Chablais?

E, por fim, sendo. a 1!0ssa ordem q primeira das três que compõem os Estados dos príncipes cristãos, é m·uito justo, que todos nós, quanto mais pudermos contribua­mos, não só com os nossos bens, senão ainda com as nossas orações, para q defesa dos nossos altares, das nossas vidas e do nosso descanso; quando para isto mesmo concorre também o povo com os seus dinheiros, e

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a nobre.ca com o seu sangue. Ah meus caríssimos/ Lem­hrai-1JCI.• das guerras passadas, e temei que -a vossa deso­hlldi,.IIC·Ia e grosseira ingratidão não vos jaça ainda pa­tfcwtlr mais/

A estas vivas palavras ajuntou o Santo o seu exem­plo , fazendo por si mesmo a sua taxa tão excessiva em eomparação de sua diminuta renda, que não só não houve depois quem se atrevesse a queixar-se, senão ainda que não tivesse pêso de haver repugnado. Assim é que êle obedecia e ensinava os outros a obedecer ; como pode­roSo em palavre.s e obras ; podendo dizer, como Gedeão : Fazei b que me virdes jazer".

§ v

Excelências do voto

E' sem dúvida que o jejum (sirva de exemplo) feito por voto, é mais perfeito, do que outro, que se faz sem essa obrigação,' segundo a doutrina do Doutor Angélico, compreendida nas razões .seguintes:

1. Porque o voto é um ato da virtude da religião, nobilíssima entre as morais; e sendo por sua natureza mais excelente do que o j ejum, aumenta-lhe o valor e perfeição.

2. Além disso, o que j ejua por voto, dá não sômente o fruto do j ejum , · senão também a árvore e o fundo in­teiro, que é a vontade resoluta, e obrigada por voto.

3. Porque o voto, aj untando uma obrigação estreita ao ato do j·ejum, liga mais a vonJ.ade e a faz para a execução mais firme, mais resoluta, e "mais constante ; e um bem j unto a outro, é sem dúvida, que se aumenta.

Sem embargo do que, deve-se confessar, que · o que jejuar sem voto, mas com um amor grande, fará uma obra mais perfeita, do que outro que jejuasse por voto, mas com menor caridade ; porque essa sublime virtude

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é a que dá o prêço às nossas obras diante de Deus. E .por ,isso as pessôas que fazem boas obras por voto, devem amiudar, e aumentar os atos da caridade, para não per­derem o merito.

§ VI

Da pontualidade

Esta era uma das suas máximas que a grande fideli­dade para com Deus se vê nas coisas pequenas. Por­quanto, aquêle que bem sabe governar os dinheiros míni­mos, melhor se portará, sendo. fiel administrador, no ma­nejo das moedas grossas.

E isto que êle dizia, exatamente o praticava ; não só nos ofícios divinos, no altar, e no côro, senão também quando rezava as suas horas em particular, e assim tam­bém nas demonstrações de civilidade sem faltar a coisa alguma.

Queixando-se-lhe uma vez o seu discípulo da sobrada honra com que o tratava, respondeu pronto : Eu honro a Jesus Cristo na vossa pessôa. E tornai daquí exemplo para observardes fielmente aquêle preceito de S. Paulo: "Tudo se taça entre vós outros com decência e justa ordem".

§ VII

Desprezo que fazia o santo dos bens da terra e zêlo que tinha da salvação das almas

Ainda que os de Genebra lhe retinham as rendas da mesa episcopal e as do seu cabido, nunca o glorioso Sales formou sôbre ·essa matéria nem a menor queixa;. porque nada se apegava· às coisas da terra. Todo o seu desejo se dirigia à conversão daquelas almas rebeldes à luz da ver­dade. E dizia algumas vêzes, suspirando, a êste propó-

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sito : Dai-me as pessôas e tomai o restante; falando da sua Genebra, que êle chamava sempre a sua pobre, a. sua amada, não obstante a sua rebeldia.

Prouvéra a Deus, acrescentava êle que aquelas gentes tomassem também o rendimento diminuto, que me ficou de resto; contanto que naquela deplorável cidade possuis• semos livremente, como os católicos na Rochella, uma capela pequena, onde celebrássemos os ofícios diviJWs e .as mais .junções da nossa religião! Se assim fôsse, estou certo que em breve espaço veríamos aquêles prevarica­dOres voltarem ao seu coração, e nós têrmos a deliciosa alegria da .s·ua reconciliação com a Igreja Romana.

E como êle não perdia_ de todo, antes nutria no seu seio esta gostosa -esperança, sempre que se cantava no côro o salmo Super Ilumina Babylonis . . . lembrava-se daquela cidade infeliz, capital dos bispos seus predeces­sores; não porque desejasse viver com mais abundância, senão porque o penetrava a dôr interna, pela pêrda de tantas almas. .E da mesma sorte, quando rezava o seu oficio em particular com o seu capelão, ao rezar aquêle Salmo, lhe corriam as lágrimas dos olhos.

§ VIII

Sua paciência nas enfermidades

Sofria o nosso santo ãs dôres de qualquer moléstia com ta,l paciência, e com tanto amor e doçura, que se lhe não ouvia jamais nem a minima queixa, nem ainda o

menor desejo, que não fôsse conforme à santa vontade de Deus.

De maneira que nem mostrava sentimento .pelos ser­viços, que pudéra fazer a Deus e ao próximo no tempo da saude; querendo só padecer, por Deus assim o ordenar. Como êle, costumava dizer, sabe me�hor o que · nos con­vêm, devemos deixar agir a tão bom · Senhor, segundo :tle mais quiser. Sim, meu Celeste Pai, eu nada mais quero, que seguir em tudo vosso agrado.

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Quando · se lhe perguntava, se queria tomar um re­médio ou um caldo, ou sangria, .ou coisas semelhantes, respondia : Deus me entregou . à disposição dos médicos: e eu estou pronto para o que êles me ordenarem. Assim honrava a Deus nos médicos; como quem não ignorava, que l!:le fizera a medicina; e esta honra que lhes dava era inseparável da obediência.

l!:le dizia simplesmente o seu mal, sem o aumentar com excessivas queixas, e também sem o diminuir com afetada dissimulação. E suposto que a parte inferior da alma se achasse oprimida com o pêso das veementes­dôres, contudo a parte superior da mesma mostrava sem­pre· no rosto, e principalmente nos olhos .uma perfeita serenidade, apesar das dolorosas nuvens, que lhe assom­bravam e molestavam o corpo.

§ IX

Do seu comportamento com os domésticos

Nunca o nosso bem-aventurado falou com aspereza, nem altivez aos seus domésticos. E quando sucedia algumas faltas: êle temperava as suas correções com tanta doçura, que êles se -emendavam logo por amor, sem teme­rem a vara de ferro, de qu� sabiam, que êle não usava.

E dizendo-lhe o seu discípulo a êste respeito:

Que a familiaridade gerava desprêzo . . . - Assim é, respondeu, mas é só a familiaridade inde­

cente, grosseira, e repreensível; e de nenhuma sorte a que é civil, honesta e virtuosa. . Pois como ela procede do amor, este gera o seu semelhante; e o amor verdadeiro nunca é sem estimação, e consequentemente sem respeito para com a pess6a amada.

- Logo, será necessário, replicou o discípulo, deixá­los agir, como êles quiserem.

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___, Não por certo, respondeu o santo. Mas se- a cari­dade estiver senhora do coração, saberá dar lugar à pru­dência, à justiça à moderação, à magnanidade, e assim também à humildade, abjeção,� paoilência, tolerância e

'doçura. Eu digo sempre a respeito dos noS3os domésticos que

os devemos amar, como a nós mesmos, por. serem nossos irmãos, e nossos próximos que vivem conosco debaixo de um mesmo teto, e como tais os devemos tratar segundo quiséramos que se usasse a nosso respeito, se nos achás­

-semos na mesma situação e circunstâncias. E' bem verdade, que não se devem dissimular as s'uas

faltas notáveis, nem poupar-lhes a correção; mas tam­bém por outra parte devemos reconhecer agradecidos o bem que por êles reeebemos; e ainda mostrar-lhes algu­mas vêzes o nosso agrado pelos seus serviços. Pois, assi'"!­como 'uma rajada de bom vento nas velas de uma embar­cação a jaz vkl,jar muito mais do que o impulso de muitos remos, assim também uma demonstração de amizade, e benevolência tirará mais e melhor serviço de um domés­tico, do que muitos preceitos a,ltivos; ou rigorosos castigos.-

§ X

Vitória do bem-aventurado sôbre as suas paixões

O glorioso Sales com a sua candura e simplicidade ordinária confessava ingenuamente, que entre as suas paixões as que mais lhe custaram a domar foram as duas do amor e da ira. E que vencendo a do amor com indús­tria, a da ira, fôra só à viva fôrça, e bem assim, costu­mava dizer, como se tomasse .o seu coração com ambas as mãos.

A indústria pois de que se valeu para domar a paixão do amor, foi o mudar-lhe o emprêgo. Porquanto, não po­dendo estar a alma sem alguma sorte de amor, todo o segrêdo nêste particular consiste em não lhe permitir

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senão o puro, santo e bom. E .por isso vemos, que todos os escritos do nosso bem-aventurado respiram amor san­to; porque as suas expressões, ainda que ternas, são tão castas, que se justificam por si mesmas.

E quanto à paixão da ira a que era inclinado, êle a venceu com tanta fôrça e valor, ou com tanto esfôrço e constância, como ·nêle se viu depois de morto ; em que lhe acharam junto ao fel umas tantas pedrinhas, que, segundo o juizo dos médicos, se formaram pelas santas vio­lências, que êle a cada . passo fazia sôbre si mesmo.

§ XI

Da simplicidade

O nosso bem-aventurado reputava por uma grande traição diante de Deus e dos homens a dissimulação do próprio interior por uma continência externa de diversa figura ; e apelidava aos que por êste modo se encobriam, pessôas mascaradas, contrafeitas e perigosas.

Queria, pois, que o exterior bem composto, procedesse de .um interior bem ordenado, para que sempre fôsse a causa melhor ainda que o seu efeito; porque da raíz deve sair a beleza das flôres e· fôlhas, tôda a bondade dos frutos.

Queria também que o interior fizesse nascer o exte­rior, e que depois o exterior nutrisse e conservasse o in­terior. E para inteligência disto se explicava com a pró­pria comparação do fogo, o qual forma a cinza, e esta serve depois para entreter, conservar o mesmo fogo.

E suposto que a parte de Maria, que é o interior, seja muito boa, também a que é de Marta, e tôda ocupada no exterior, não deixa de ter sua bondade particuiar. E quando estas duas irmãs estão de boa inteligência no serviço do Senhor, tudo anda em paz no manejo e eco­nomia da alma cristã.

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Aprendamos pois do nosso bem-aventurado a ligar bem o nosso interior com o exterior por uma justiça pru­dente, afim de evitar ainda. o menor dólo. Porque assim como pela boa disposição do rosto se faz juizo da· que há por todo o corpo; da mesma ·sorte, pela bondade das nossas ações externas se pode bem julgar da santidade do nosso interior.

§ XII

Do adiantamento na virtude

O nosso bem-a:venturado recomendava sôbre tudo o evitar o defeito da precipitação no agir porquanto o apro­veitamento virtuoso não consiste em fazer muito, mas em fazer bem o que se faz. E por isso costumava dizer : Vale mais jazer pouco e bem, do que muito e sem perfeição. Porque não depende da multidão das coisas, que jazemos o adiantarmo-nos na perfeição, mas do fervor e pureza de intenção, com que as jazemos. Donde se vêm a dedu­zir t6das estas cons�quências.

1. Que o nosso progresso no oaminho do espífito não depende tanto, como fica dito, da m?fltidáo das nossas obras, quanto do fervor do -santo amor, com que as pra­ticamos.

2. Que uma ação boa, feita com grande fervor, vale mais· e é mais agradavel a Deus, do que muitas da mesma e3pécie, feitas com frouxidão e tibieza.

3. Que a pureza da intenção exalta o mérito da boa obra; porque dando o fim o prêço à obra, quanto o fim é mais puro, tanto mais a obra é excelente. E que fim mais alto podemos ter em as nossas obras do que a glória de Deus?

Nas conversações particulares queria que se falasse pouco e bom. E quanto às obras aconselhava que se não empreendessem muitas; mas que o pouco que se fizesse, se fizesse com perfeição, segundo do proloquio :

Assáz depressa, se assáa bem.

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SEXTA PARTE

D I

Sua gr.ande h�ildade

Eu 'não sei, dizia o santo, porque me chamam insti­tuidor e fundador das religiosas da Visitação! Tinha eu espírito para estabelecer uma ordem nova? como se 1á não houvesse bastantes institutos monásticos. Todo o meu intento foi estabelecer uma só casa em Annecy, de don­zelas � mulheres viuvas sem votos e sem clausura, que se aplicassem à visita e alívio dos pobres enfermos, des­tituídos de socorros, e a outras obras de piedade e mise­ricórdia, tanto espirituais como corporais.

E presentemente é uma ordem formada debaixo da Regra de S. Agostinho com votos e cllqusura, coisa incom­patível com o rtteu primeiro desígnio, em que elas vive­ram alguns anos. E desta sorte mais venho a ser seu pa­drinho, do que seu instituidor; visto que a minha institui­ção ficou como destituída.

Ninguem ignora, que o cardeal Marquemont foi a causa principal, depois de Deus, desta m·udança; e por isso êle só, devia ser reputado por fundador. E se eu redigi as suas constituições segundo a sua regra, isto só foi por comissão da Santa Sé, que mandou erigir em Mos­teiro a Casa de Annecy, que veto a servir de modêlo às que se fundaram depois em diversos lugares.

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1 n

Da perfeição do estado

Dizia o nosso bem-aventurado, que a ocupação mais séria na vida do verdadeiro e fiel cristão, era procurar continuamente a perfeição do seu próprio estado, isto é, de se aperfeiçoar cada vez mais no estado que tiver.

Assim, p�is, a perfeição do estado de cada um é diri­gir os meios ao seu fim, e servir-se dos que são próprios ao seu mesmo estado, para fazer progresso na caridade. Sim na caridade; na qual consiste a verdadeira, e essen­cial perfeição do cristianismo; e sem a qual, nada se pode chamar perfeito.

Pois se uma coisa, a que nada falta, se diz :perfeita, e por outra parte, nenhuma virtude pode chegar ao seu último fim, que é a glória de Deus, senão por meio da caridade, bem se vê, que sem caridade nenhuma virtude pode ter o nome de virtude perfeita, nem também nós sem ela podemos chegar à verdadeira perfeição do nosso �stado.

§ III

Da lição dos bons livros

. Parà se l�r com utilidade, deve-se usar de um só livro, e não de muitos no mesmo tempo. E este método,· além de ser útil, é também agradavel ; sucedendo-nos, como aos viandantes, que se recreiam com a . descoberta e

observação atenta de novos objetos, e diversas perspecti­vas na viagem que vão fazendo.

E pelo contrario, os que não tem leitura certa, mas vão como saltando de um a outro livro, se desgostam logo, e se enfastiam daquêle exercício, que. é o mais suave nutrimento, e uma das mais doces delicias da vida espi­ritual, e se pode apelidar o óleo da lâmpada da oração.

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.os médicos temporais dizem que para a conservação da saúde do corpo é bom usar de um só alimento ; porque a variedade das iguarias costuma alterar os humores. O mesmo pois podem dizer �s médicos espiritúais pelo que toca ao alimento espiritual que da _ lição se tira; porque a multiplicação dos livros pode ser mais prejudicial que proveitosa.

§ IV

Resposta que deu o santo a um bispo que queria

abandonar o seu bispado

Pediu um certo bispo ao nosso santo o seu conselho sôbre o desígnio que formava de abandonar o seu em­prêgo para viver em retiro, alegando-lhe o exemplo de S. Gregorio Nazianzeno, que largou nada menos de três bispados (Sazimo, Nazianzo e Constantinopla) e foi aca­bar os seus dias retirado em Arienzo.

O nosso bem-aventurado lhe respondeu, dizendo: Nós devemos presumir, que êle e outros grandes santos nada fizeram em tais casos sem um particular movi­mento do Espírito de Deus. E por isso não devemos julgar as suas ações só pela aparência exterior. Quanto mais que o mesmo S. Gregorio não cedeu por vontade, mas foi obrigado co.m violência a deixar a- sua oadeira de Cons­tantinopla.

E replicando o bispo, que a grandeza do cargo o es­pantava, tendo que dar conta de tantas almas . . . Ah! respondeu o santo : E que diríeis ou faríeis vós, se tivés­seis um pêso como o meu sôbre as vossas costas? E con­tudo, eu sempre confio na misericórdia de Deus.

Instava o bispo, queixando-se de ser como a tocha, que se consome alumiando os outros; e de ter tantas ocupações para o serviço do próximo, que quase lhe não ficava tempo para cuidar em si e na sua salvação. E vós, replica o santo, podeis conseguir vossa salvação, sem pro-

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curar a dos outros, depois de serdes chamado para isto mesmo?

Aquí disse então o bispo, que tratando de conduzir os outros à santidade, se expunha ao risco de a perder. Mas o santo replicou dizendo-lhe : Vós bem sabeis pela história eclesiastica, que em nenhuma outra ordem há tantos santos, como na dos bispos; porque nenhum o'utro estado nq igreja de Deus subministra tantos meios de santificação e perfeição, pelo caminho de instruir aos outros com a palavra e com o exemplo, a que os bispos estão obrigados pelo seu eniprégo.

Perseverai pois na, embarcação, em que Deus vos pôs para fazerdes a passagem desta vida; a qual com efpto é tão curta, que não há precisão de m'Udar de baixel. E se a vossa cabeça se vos perturba, · em um navio grande, muito mais padecerá em um pequeno, sujeito ao movi­mento das ondas. Eu quero dizer, em outra menor con­dição, que, suposto seja menos ocupada, e na aparência mais tranquila, não será menos exposta.

Estas e outras razões fortes persuadiram aquêle bispo a continuar no mesmo emprêgo, seguindo o conselho do apóstolo na vocação a que Deus o destinara.

§ v

Do .. amor de Deus

Sem êste amor, reputava o nosso bem-aventurado tôdas as mais virtudes por um montão de inúteis pedras. E por isso recomendava êle sôbre tudo que nada se fizesse sem caridade, inculcando sempre, sem se cansar, o que dizia S. Paulo, que sem caridade nada serve : nem a fé, nem as -esmolas, nem a ciência, nem ainda o martírio mais penoso.

Oh quantas boas obras, exclamava· o santo, ficam inúteis, por não serem animadas com êste motivo I E com ser esta a mesma verdade, isto é, de modo ordinário,

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o_ em que menos se pensa, como se a intenção não fosse a alma das nossas ações; e como se Deus tivesse pro­metido recompensar as obras que não são feitas por 1l:le, e referidas à sua honra.

A salvação, ensinava o santo, é mostrada à fé, prepa­rada para a esperança, m�s dada só à caridade. Porque a fé mostra o caminho da terra prometida, como a co­luna de nuvem e de fogo, clara e escura. A esperança nos alimenta com o seu maná de suavidade. Mas a caridade como q arca clq aliança, é a que introduz na Pátria celes.­te, prometida aos verdatJ,eiros israelitas; onde a coluna da fé já não serve de guia, nem de alimento o maná da esperançq.

§ VI

Tudo por amor, nada por fôrça

Esta era a sua grande sentença e o primeiro movei de todo o seu govêrno. Assim, pois, dizia o nosso santo que os que pretendem forçar as vontades humanas, exer­cem uma tirania extremamente odiosa a Deus e aos homens. E por isso êle não aprovava aquêles espíritos absolutos, que a todo o custo "querem ser obedecidos e que tudo ceda ao seu império. E dizia que se por êsse modo êles amam O' fazer-se temer, j.usto é que temam o fazer-se amar; · e que temam mais que todos os outros; porque os outros só a êles temem e êles a todos os mais.

O certo é, concluia o santo, que na galera real do amor divino não há forçados; porque todos os remeiros são voluntários. E fundado nêste princípio, intimava os seus preceitos por forma de persuasão, ou de· súplica ; como quem no govêrno das almas queria sempre imitar a Deus e aos anjos.

A Deus, que com ter na mão os corações dos homens, sofre as suas resistências e rebeliões ·às suas luzes; con­sente que se · oponham às suas inspirações; e até deixa

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perder os que pela dureza de seus corações impenitentes ajuntam tesouros de ira para o 'dia das vinganças. E mais não deixa o mesmo Senhor de nos solicitar com inspira­ções, por mais que rejeitemos os seus atrativos ·e não quei­ramos seguir os seus caminhos.

E assim também aos nossos Anjos custódios, que imi..: tam a respeito de nós outros os procedimentos divinos. De maneira, que ainda que abandonemos a Deus pelas nossas iniquidades, êles sempre �os assistem, nos inspi­ram e nos socorrem. Não há maiores nem melhores exemplos para regularmos santamente a nossa prática para com os nossos inferiores.

§ VII

Da cautela nos olhos

Falava-se um dia de uma fidalga de sua terra, e parenta sua, dizendo-se que. era a senhora mais formosa de tôdas aquelas terras. E o santo, voltando-se para o seu discípulo, que ali se achava, lhe disse : Assim o tenho ouvido afirmar a muitos. - Assim o tendes ouvido? replicou o discípulo. Pois ela não é parenta vossa, e vós não lhe falais com jrequênçia?

Sim, respondeu o santo mestre, eu a tenho visto, e falado com ela muitas vêzes; o que não obstante, afirmo novamente que não a tenho visto; por ser ela de um sexo, 'que se há de ver, sem se divisar. Isto é, deve-se ver superficialment� e em geral, para distinguir que é uma mulher a quem se jaZa e não um lwmemi e no mesmo tempo acautelar-se de a contemplar com olhos fixos e demasiadamente curiosos.

§ VIII .

Da sinceridade

Aquela máxima do mundo, que se há de amar como quem tem de àborrecer, e aborrecer como quem tem de

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amar, era abominada pelo nosso santo. E' bem verdade, dizia êle, que a segunda parte desta máxima é mais su­portavel do que a primeira; por ser menos mal aborre­cer mediocremente, e como pensando em renovar a ami­zade, do que nutrir no coração aquêles ódios implacáveis, fomentados pelo demônio. E pela outra, parte, aborrecer como tendo ainda de amar, é uma espécie, que dispõe para a futura reconciliação.

Perguntando-se pois ao nosso bem-aventurado, que entendia êle por sinceridade verdadeira? O mesmo que a palavra sôa, respondeu isto é sem cera. E não enten­dida ·a resposta, declarou êle, dizendo : Vós não sabeis o qu� é mel sem cera? E' o que se tira do favo, total­mente puro. E o mesmo é o espírito purificado de todo o refôlho; porque então merece o nome de puro, cândido e sincero.

§ IX

Da ciência e da consciência

A ciência é um grande orpamento para a piedade, como vemos nos antigos padres e doutores da Igreja, que uniram uma insigne ciência à sua excelente virtude. Mas comparada uma com outra, não haverá quem não pre­fira a consciência reta à ciência mais profunda, e a cari­dade que edifica à ciência que desvanece.

Louvando-se pois uma vez em presença do nosso santo a certo pároco pela sua

· exemplar· vida e censu;.

rando-se ao mesmo passo a sua falta de ciência, disse êle: E' certo, que a ciência e a piedade são os dois olhos de um bom eclesiástico. Mas assim como se não deixam de ordenar os que só tem um dos olhos, principalmente o esquerdo, que fica na missa para a parte do canon, assim também qurzlquer pároco não deixa de ser um bom servo para o seu 'ministério, contanto que olhe nos costu­·mes para q parte do canon; isto é, que a sua vida seja exemplar e canônica, ou bem regulada.

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E' bem verdade, que ha um gráu tal de ignorância crassa e tão grosseira que é inexcusável, e faria um cego condutor de outro cego. Porém quando se louva a pie­dade de um homem, é sinal de que êle tem a verdadeira luz, que conduz a Jesus Cristo. E se êle não tem os grandes talentos, que o façam brilhar no púlpito e na cátedra, basta que possa (como o Apóstolo dizia) exortar com doutrina sã, e corrigir os que se apartam do seu dever; porque enfim vale mais uma onça de consciência boa, do que muitas arrobas de vaidosa ciência.

§ X

Da paciência nas dôtes

Foi chamado o nosso santo para assistir a uma pessõa extremamente eflferma, da qual se dizia, que no meio das mais terríveis dores se conservava com uma prodigiosa paciência. Mas como êle amava as virtudes· sólidas e verdadeiramente perfeitas, quis logo sondar, se aquela paciência era cristã; isto é, se a tal pessôa padecia pura­mente por amor de Deus · e por sua glória; ou se era só pela estimação das creaturas.

Começou pois a louvar a sua constância, encarecer as suas penas e admirar o seu valor, o seu silêncio e o seu bom exemplo ; como quem sabia, que por este meio poderia logo conhecer os verdadeiros sentimentos do seu coração.

E com efeito, não se enganou porquanto aquela pes­soa verdadeiramente virtuosa e provida daquela paciên­cia, chamada na Escritura "obra perfeita", prontamente lhe disse : O' meu padre vós falais çlêste modo, porque não vêdes as revoltas dos meus sentidos e da parte in­terior da minha. alma, onde está tudo em desordem.

De maneira, que se a. graça de Deus e o seu temor .santo não me formassem na parte superior uma valente fortaleza, há muito tempo que seria geral Q meu delíquio,

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e a minha revolta, universal. Seriam grand�s os meus gritos, ·sensíveis os meus a,batimentos, e talvez as minhas maldições notórias. Porém Deus mEl prende os lábios por tal modo, que não posso queixar-me debaixo dos golpes da sua mão benigna, que tudo ordena para sua maior glória, e utilidade nossa.

Retirando-se pois o nosso santo disse aos que o con­duziram : Á enferma tem a verdadeira paciência cristã. E ·nós devemo-nos alegrar, mais do que sentir as suas dôres; porque a 1Jerdadeira, virtude se aperfeiçoa nas en­fermidades, jazendo-se como ali vêdes, não somente ani­mosa, senão também no mesmo tempo afetuosa e humilde.

Porém guardai-vos, de lhe referir o que acabo de dizer; para, que lhe não resulte alguma vaidade, e se lhe venha a perverter a bela economia da, graça; cujas águas só correm claras no vale da humildade. Deixai-a pois possuir tranquilamente a própria alma na sua paciência, perseverando em paz ná sua extremosa q.margura.

§ XI

Das hospedarias e esta.Jagens

Tinha o nosso Santo um particular afeto aos bons estalajadeiros; reputando-os por santos, se eram civis e afáveis. Porquanto (a seu parecer) não havia estado, que subministrasse mais e melhores meios para servir a Deus no próximo, e fazer para o céu caminho direito, exercitando alí continuamente a misericórdia, ainda que

. recebendo, como os médicos, o estipêndiÔ do seu trabalho. Achando-se pois em certo dia com uns amigos à mesa,

ocorrendo na conversação o falar sôbre as hospedarias, disse um dêles, que eram tôdas umas infames ladroeiras. Desagradou êste livre dizer ao santo. Por�m, como o lugar e o tempo não permitiam a correção, nem a tal pessoa estava disposta para a receber, divertiu e tem­

·_perou o discurso, referindo a história seguinte.

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Um peregrino espanhol, pouco provido de dinheiro ohegou a uma hospedaria, onde depois de ser assáz mal­tratado, tudo se lhe descontou por tão alto prêço, que êle cheio de furor exclamou com aspereza contra a injus­tiça, que se lhe fazia ! Mas foi-lhe preciso conter-se, porque não podia despicar-se.

Saindo pois da hospedaria, que estava f;onteira de outra casa do me�mo ministério' e entre ambas havia uma praça, em cujo meio estava colocada uma grande cruz, alí com esta reflexão desafogou êle a sua dôr dizendo assim : Verdadeiramente esta praça é um calvário, onde �:e plantou a cruz do Senhor entre dois famosos ladrões.

Ouvindo isto o estalajadeiro d!!- outra casa, que suce­deu estar à porta e percebeu logo que lhe tocava uma parte daquêle impropério, chegou-se ao peregrino e lhe perguntou magoado, que mal lhe tinha êle feito, para o injuriar daquêle modo. Então o peregrino, a quem o furor não ofuscára o ·juizo respondeu pronto : Calae-vos, meu amigo; vós que me não fizestes mal, sois o bom ladrão. Mas que quereis que diga do outro, que me esfolou vivo?

Depois disto, passou o santo suavemente a dizer que assim como o tal peregrino terminou a sua ira com aquela graça, assim era necessário, como pedia a prudência, evi­tar a geral censura, como que se dizia das nações e dos estados, que todos eram ladrões, arrogantes, traidores. Porque,_ ainda que se não apontasse algum particu.l.ar, os particulares das nações e dos estados se interessavam e se ressentiam daquelas mesmas censuras. '

Com efeito, o nosso bem-aventurado era tão parcial pelos estalajadeiros, que quando viajava proibia aos seus domésticos o contestarem com êles sôbre o preço que pe­dissem, qualquer que fôsse. E, dizendo--se-lhe uma vez que êles se pagavam com três dobros, respondeu, que ainda isso era pouco; havendo de pagar-se-lhes o cui­dado, as fadigas, às vigílias que padeciam, e a prontidão. e boa vontade que mostravam, etc.

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§ XII

Do espírito de pobreza nas riquezas; e do espírito 'de mapificência na pobreza

Isto se viu cla_ramente em dois exemplos opostos; de S. Carlos Borromeu •e de S. Francisco de Sales. S. Carlos, que era sobrinho do Papa .Pio IV, recebeu dêste seu tio copiosas riquezas, até chegar a ter cem mil escudos de renda, além do seu patrimônio, que era assáz conside­rável. O que não obstante, entre tantos bens conservava o espírito de pobreza; porque além de não admitir em casa tapeçarias, nem baixela de prata, nem . móveis pre­ciosos, a sua mesa, ainda para os hóspedes, erà tão parca, que não excedia os têrmos de uma rigorosa austeridade. �le, em suma, destinava tôdas as suas rendas para os pobres; e vinha a ser pobre entre copiosas riquezas.

E pelo contrário, o glorioso S. Francisco de Sales era magnífico na pobreza, que era bem conhecida pelo pouco que lhe restava das rendas do seu bispado, e por haver deixado o próprio patrimônio a seus irmãos. Sem em­bargo do que, êle não rej eitava as tapeçarias, nem a bai­xela de prata, nem os belos móveis, principalmente os que pert�nciim ao serviço do altar, segundo o grande zêlo que tinha pelo adôrno da casa de Deus e das peças que tocavam ao seu culto.

E recebendo por hóspedes a alguns grandes senhores, êle os tratava com tanto esplendor, que causava admi­ração o vêr que · com tão pouco rendimento se pudesse portar com tanto aparato. O que tudo êle fazia para exaltar o seu ministério, e dar a devida glória ao Divino Senhor, a quem servia. E por isso algumas vêzes se afligia de que os :Príncipes soberanos só reputassem os bispos por seus vassalos, sendo êles os seus pais e pas­tores, quanto ao espiritual, que é bem superior a todo o temporal.

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Atendidos pois e combinados aquêles dois extremos, deve-se dizer, que é de espírito magnânimo usar de pratos de barro, como se fôssem de prata; por ter o coração tão bom, que faz da necessidade virtude, ·estando tão satis­feito na penúria, como na abundância. Mas al�da assim parece maior, e mais digno de estimação, o que servindo­se de pratos de prata, faz dêles -tão pouco aprêço, como se fôssem de barro.

§ XIII

Da Paixão do Senhor

A êste respeito dizia o nosso bem-aventurado, que não havia mais JIOderoso estímulo para nos fazer adiantar no amor santo, do que a consideração atenta da morte e tormentos do Salvador ; que êle chamava o mais doce e o mais violento entre todos os motivos de religiosa piedade.

E perguntando-se-lhe como se podiam unir a doçura com - a violência? Respondeu, que pelo modo, com que se diz na Escritura, que o amor é tão forte como a morte, porque nada é tão forte nem tão constante como a sua doçura"; e nada mais doce nem mais amavel do que a sua fôrça.

Com efeito, o Salvador na Cruz é o leão. da tribo de Judá, e o enigma de Sansão, em cujas fericjas se encon­tra o favo de mel da mais forte caridade; que com a fôrça da sua mesma doçura produz

·a nossa maior con­

solação. E por isso, como a Paixão e morte do nosso di­vino Redentor é o mais alto efeito do seu amor para conosco deve ser também o mais forte de todos os moti­vos do nosso amor para com 1!:le.

§ XIV

Do Rosário

Um,a pessôa de virtuosos costumes, sabendo que o nosso santo na sua mocidade havia feito voto de rezar

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cotidianamente o Rosário, intentou praticar .o mesmo porém não o quis pôr em execução, sem ouvir o seu pare­cer. O qual foi absolutamente, que não aprovava tal.

Admirada então aquela pessôa desta não esperada negativa, lhe disse : Pois vós recusais aos o·utros o que para vós tomastes na vossa mocidade? Sim, respondeu êle'; e a palavra mocidade satisfa2 à pergunta; porque isso que então ji2, foi com menos pondero.ção.

Aconselho-vos, pois, quanto posso e efica2mente vos exorto, a que não passeis nem um só dtq sem que re2eis o rosário (e quando menos o seu terço) por ser uma oração agradável a Deus, e à Santíssima Virgem. Porém seja somente por virtude de um propósito firme e não por expresso voto; para que sucedendo alguma ve2 não o cumprir, fiqueis livre da ofensa de Deus. Porque não está o ponto em votar; mas em cumprir com fidelidade, o que se tem prometido.

Eu da minha parte vos afirmo que isto me tem bas­tantes vêzes embaraçado; e que já estive para me fa2er dispensar, ou pelo menos com·utar esta obrig<Íção, por outra obra de içual importância, mas de menor sujeição.

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SETIMA PARTE

§ I

Da prudência e sinceridade

Eu não sei (dizia o glorioso Sales) que mal me tem feito q pobre virtudE: da prudência; vendo que me não custa pouco t�r-lhe amor! E ainda qwando a amo, é como necess�tado, por ser ela o sal � a luz da vida. E pelo con­trár�o, a beleza da sinceridade me arrebata; de maneira, qUe eu daria sempre cem serpentes por uma pomba.

Eu não ignoro ser útil a alternativa destas duas vir­tudes, e o Evangelho a recomenda. Mas parece-me, que se deve imitar aos compositores da triaga; que com uma pequena porção de víboras lhe metem muitas mais drogas saudáveis. Mas se a parte de víbora jôsse igual com a dJa pomba, eu temêra; porque a víbora podia matar a pomba, e não a pomba a víbora. O que vem q tJ/,zer que há urna prudência humana qur: serve só para jazer mal, por caminhos ocultos e nada retos.

E' bem verdade que, em um século tão corrupto. como o nosso, necessita-se de prudência para evitar os danos da malícia. Mas eu seguirei semp1·e, que o bom cristão deve querer em todo o tempo ser antes bigorna, do que marte:o; antes roubado do que ladrão; antes mártir, do que tirano;� antes morto do que homicida; e em suma, antes bom e sincero, do que astuto e malicioso.

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§ li

Do amor ao prQximo em Deus

O amor sobrenatural da caridade, que o Espirlto Santo infunde em nossos corações, nos faz amar a Deus, por ser quem é, e ao próx:mo tamb�m com um amor de amizade, respeitando a Deus, que assim o quer, e nêle por este modo é dignamente glorificado. Isto é, pois, amar propriamente ao próximo em Deus e por Deusi porque em. tal caso não se procura a própria conveniência, senão a do próximo neste sentido.

Amando-se pois ao próximo dês.te modo, bem longe de se amar menos, se ama muito mais e mais perfeita­mente; porquanto, referido a ' Deus êste amor, faz que a nossa amizade se transforme de h:umana em divina, e de temporal em eterna. Razão pela qual dizia o nosso bem­aventurado, que as amizades naturais eram de pouca duração; por que sendo a sua causa frágil, qualquer con­tradição as dissolve. O que não sucede às que são funda­das em Deus; porque a sua causa é sólida, e permanente.

A êste proposito formava uma bela comparação a glo­riosa S. Catar.ina de Sena : Se tornardes uma taça (dizia) e enchendo-a em uma fonte, dela fôrdes bebendo, sem a retirar da mesma fonte, onde a enchestes, ainda que be­bais q tôda vossa satisfação, nunoa q taça ficará vazia. E, pelo contrário, as amizades naturais, logo que se apar­tam da sua fonte, se diminuem, e se acabam.

Veja-se pois (conclui .o nosso santo) · veja-se ao pró­ximo no peito do Salvador; e logo se amará com pureza, constância e igualdade; e tenha-se entendido, que todo o amor tora dêste, ou não é, ou não merece o nome de amor.

§ m

Sôbre os sinais de benevolência

Os sinais de benevolência que praticamos, não tanto para com os parentes, patrícios e amigos, quanto para

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com aqu-elas pessõas, que nos fizeram alguma ofensa, são muito melhores e mais excelentes :por isso mesmo que são forçados e mostram o império da razão sôbre os sen­tidos ; formando aquela santa violência, que merece o prê­mio do céU, pelo multo que agrada a Deus.

Com efeito, uma breve porção dêste amor forte e racional vale muito mais que todo o outro amor terno e sensível, que nos é comum com os brutos. Porquanto o que nós fazemos por Deus com repugnância da parte sensível da alma, faz bem conhecer a superabundância da graça e a maior perfeição da obra que dela procede.

E pelo contrário, o que fazemos com prazer a ' favor do próximo, pode ter muitos motivos, que nos apartem do santo amor de Deus, quais são a simpatia, a compla­cência, e o interêsse honorifico, útU e deleitável, que são outros tantos ladrões que nos roubam a vista de Deus e, apartando-nos do seu amor, nos fazem terminar na carne e sangue, depois de havermos começado por impulso do espírito.

E' pois muito bom amarmos em Deus a uma pessôa, que nos é agradavel; contanto porém que a amemos mais por causa de Deus, do que pelo motivo de que ela nos agrada. Porque assim como é dificultoso (por não dizer impossível) olhar quálquer para tim espêlho sem se ver a si próprio, e ver-se, sem se contemplar, e contemplar­se, sem se amar; ass:m também é difícil não nos contem­plarmos e amarmos a nós mesmos, quando amamos ao nosso próximo ; por ·conseguinte para o amarmos pura­mente, o devemos amar só em Deus, e por Deus; isto é, porque Deus está nêle, ou a fim de que o esteja.

O IV

Do amar ser aborrecido, e aborrecer ser amado

Queria o nosso Santo, que se estimasse o ser aborre­cido, por motivo d� Deus, segundo aquêle texto do Evan­gelho : "Sereis venturosos, quando os homens vos abor-

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recerem, e disserem de vós todos os males por meu res­peito . . . ; porque a vossa recompensa é grande no céu". Deste modo pois se deve amar o ser aborrecido. E no mesmo tempo se deve aborrecer o ser amado (não sendo em Deus, ou por Deus) pelas razões seguintes :

1. Por causa do grande perigo, de que a amizade humana (por mais honesta e legítima que seja na sua origem) degenere em criminal, principalmente versada em pessoas de diferente sexo.

2. Porque o querer &er amado, sem ser em Deus, é uma especie de latrocínio, com que se rouba ao mesmo Senhór aqu•ela parte do coração, que para 'nós queremos, e é devida a Deus por innumeráveis títulos.

3. Porque é ferir de zêlos a Deus, que não admite companheiro, nem competidor na esfera do nosso cora­ção. E portanto, se o nosso amor para com l!:le não é todo, é nenhum.

4. Porque é uma vaidade assáz grosseira em qual­quer o pensar, que tem por si algum mérito, pelo qual possa ter

' direito sôbre o amor de cada um.

- Oh como são venturosos (dizia o glorioso Sales) aquêles que nada têm de amável! Porque nestes supos­tos estão certos, de que o amor, com que os tratam, é excelente, verdadeiro e puro; por ser todo fundado em Deus .

. A·h!, piedoso Senhor! Ou tirai-nos do mundo, ou tirai o mundo de nós. Arrancai o nosso coração do mundo, ou arrancai o mundo do nosso coração. Tudo o q·ue não é Deus, é menos do que pouco, é -nadia. E que é o que nós queremos, ou devemos querer. na terra, e no céu, senão a Deu.p"'

§ v

Dos espíritos demasiadamente reflexivos

O nosso bem-aventurado não aprovava aquêles espí­ritos nimiamente reflexivos, que costumam fazer con­tinuas ·considerações sôbre coisas de nada. E assim se

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parecem (dizia êle) com os bichos da seda, que a si mesmos se prendem, e se embaraçam no seu trabalho.

Estas reflexões contínuas sôbre si · e sôbre as suas obras, levam muito tempo, que se empregaria melhor em agir do qae em tanto refletir sôbre o que se tem feito; por­que sucede muitas vêzes, à fôrça de indagar se se agiu bem, agir-se mal.

Pergtmtando ao grande abade S. Antão, como se po­deria conhecer, quando se orava bem? Não o conhecendo, respondeu êle; porque aquêle ora bem, que está tão ocupa­do em Deus, que não percebe que ora. Ao contrário da­quêle, que viajando ·contasse e medisse os seus passos : em todo o espaço de um dia, não faria ·grande jornada.

Aquêle (diz o nosso bem-av·enturado) que pretende em tudo e a tôda a hora agradar a Deus, não tem des­canso, nem lhe fica espaç·o para refletir sôbre si mesmo; porque o seu espírito, atendendo sô e caminhando sem· pre para onde o amor o leva, não lhe deixa lugar para refletir no que jaz.

E' bem veràade, que devemos refletir sobr� o que fa­zemos principalmente no que toca, ao serviço de Deus; dizendo-nos a Escritura, que tôda a terra está em deso­lação, porque nenhum pensa em seu coração, o que sem própria reflexão se não pode jazer. Mas é preciso dis­tinguir os tempos para concordar estas veràades.

A.ssim pois, não se diz, que ·não deve oada qual re­fletir sôbre as s·uas operações; porque seria ·viver como bruto, não usando de .sua razão, como é devido. Mas cada coisa a seu .tempo, como diz o Sábio; porque há tempo para agir e tempo para refletir o que se age. Assim_ como o pi'Tltor, que por intervalos, e não a cada pásso, suspende o pincel, para jazer bom juizo sôbre os progressos da sua pintura.

Com efeito, os frequentes exames da c"onsciência são muito bons, pela manhã, ao meio dia, e à noite. E todo o oatóli�o amante da s·ua salvação, deve _de tempo em tempo olhar para a situação em que se acha. Porém �ão

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ter outra ocupação tora de refletir sôbre o que faz, não aumenta a glória do Pai Celeste; antes é uma atenção, que por fim se taz incõmod� e de modo ordinário se dirige ao nosso próprio interêsse. Em suma, o sal e o açucar, ainda que por si são coisas boas, devem,-se usar com moderação.

§ VI

Da mortificação das inclinações naturais

Costumava o nosso santo repetir muitas vê2'1es esta sentença espiritual : Aquêle q'!Le mais mortifica as suas naturais inclinações, merece e concilia melhor as inspi­rações sobrenaturais.

E na verdade, a mortificação interior e externa é um poderoso meio para atrairmos sôbre nós os favores do céu; contanto porém que ela se pratique em caridade e por caridade. E aquêles, que (como diz S. Paulo) trazem a mortifica,_ção de Jesus Cristo em seu corpo e em seu coração, são semelhantes à vítima do profeta Elias, sôbre a qual desceu o fogo do céu e àquela água crassa, de que se diz no Livro dos Macabeus, que tomou fogo dos raios do Sol.

Mas, assim como o celeste maná se deu aos israelitas no_deserto, só depois de consumidas as farinhas, que trou­xeram, do Egito; assim também os favores do céu só são concedidos aos que se não conduzem segundo as incu.:.

nações terrenas. O meu espfrito (diz o Senhor) não resi­dirá no -homem, que todo é carne.

§ vn

Das reformas

O nosso bem-aventurado estimava muito e praticava sempre a êste respeito aquela excelente mâxi.ma, apressar

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lentamente; querendo que tudo se fizesse com fervor e bem, mas pouco a pouco. E, suposto que a graça não consente demoras, contudo, êle não .aprovava o fervor imprudente, que conduz às extremidades, e não faz o bem, como é justo, pelo querer fazer todo junto.

A sua grande palavra era esta: Pouco . a pouco; que­rendo que se ganhasSe terra passo a passo, e repetindo frequentemente aquela sentença do Sábio, que o· caminho do justo é semelhante à luz da aurora, que vai crescendo pouco a pouco, até chegar a ser luz perfeita.

O legitimo progreSso (dizia êle) faz-se do menos ao mais. E até o mesmo Deus (que não precisa de tempo para l-evar as coisas à sua última perfeição) usa de dis­posições suaves, e às vêzes tão morosas, que são quase imperceptíveis.

O nosso bem-aventurado, quando tinha de introdu­zir a reforma em algum mosteiro, se era de homens, só lhes intimava o eX'ercício da oração mental, da lição espi­ritual e a frequência dos sacramentos da penitência e eucaristia. E com isto(dizla êle) tudo se faz sem estré­pito, sem contradição e com suavidade.

E sendo de mulheres o mosteiro, propunha-lhes só duas coisas, uma para o corpo, e outra para a alma. Para o corpo, a clausura do convento e decência dos lo­cutorios, afim de viverem com reputação e decoro. E para a alma a oração mental de meia hora, duas vêzes no dia. Com o que (dizia êle) se podia facilmente reduzir as religiosas ao seu O.ever e a sua legítima observância.

Não, lhes falava de austeridade e mortificaçõeR cor­porais; nem lhes recomendava outros jejuns, fora dos que manda a Igreja, nem a descalcez, abstinência da carne, vigílias noturnas, privação de roupa de linho e outras mais mortificações, santas na verdade, mas que por si mesmas atendem somente ao exterior.

E, consultando-se em certa ocasião ao nosso santo sôbre a descalcez, que se procurava introduzir em uma

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casa religiosa . . . respondeu êle : Permitam-se-lhe os sa­patos; por ser necessário reformar a cabeça e não os pés.

§ VIII

Excita com suas lágrimas um pecador á compunçã<J

Apresentou-se uma vez ao nosso santo certa pessôa ilustre para confessar-se; o que entrou a fazer com tal desembaraço e tão pouco sentimento (por não dizer com desaforo) que mais parecia referir t�ma história de que se comprazia, do que uma confissão que o magoava._

Conhecendo então o bem-aventurado o estado interior daquela alma (que das três partes do sacramento da pe­nitência .só tinha uma, que era a confissão de bôca, e essa ainda muito imperfeita, por falta daquêle �anto pejo, que lhe deve fazer companhia) êle sem lhe interromper a narração, começou a chorar, suspirar e gemer.

O que vendo aquela pessôa, lhe perguntOu, se padecia alguma molestia? Não, meu caríssimo, (respondeu o santo) eu estou bom de saúde, graças a Deus; porém vós estais muito mal.

Não certamente (respondeu êle) porque eu não sinto em mim moléstia alguma.

Continuai pois lhe disse o Santo. E êle prosseguindo com a

· mesma liberdade foi referindo sem pejo algum os

seus enormes delitos. E continuando o bem-aventurado • a chorar e suspirar com abundância, respondeu à nova pergunt�. que lhe fez o penitente a êste respeito : - Eu choro, porq·ue vós não chorais.

Vendo pois o miserável, que as suas gravíssimas culpas causavam tão largos prantos àquêle inocente, foi tal a sua dôr com golpe da divina graça, qu.e caindo sem alento, esteve em têrmos de perder a vida. E, recebida a graça do sacramento, deu-se todo a Deus e se fez um modêlo de penitência. E dizia depois aos seus amigos

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referindo-lhes este passo : - Os outros confessores jazem algumas vêzes chorar aos seus penitentes; mas eu fiz chorar ao meu confessor, donde procedeu todo o me·u bem.

§ IX

Consola o santo a outro penitente

Um particular distinto e conhecido do nosso bem­aventurado, havendo feito um extremo esfôrço sôbre si mesmo para fazer com êle uma confissão geral, e fazen­

. do-a na vel'dade com tôdas as boas circunstâncias, lhe representou ·o mesmo santo, que ficava cheio de grande prazer e satisfação.

- Isso afirmais vós (lhe disse o penitente) para me consolar. Porém na vossa alma podeis estimar a um tão grande pecador?

- Sim (respondeu o Santo) · e depois da vossa absol­vição, eu seria um verdadeiro tariseu, se ainda vos repu­tasse pecador. Vós me pareceis mais branco do que a

neve e semelhante a Naaman, saindo do Jor�ão; e por­tanto sou obrigado a ter-vos dobrado amor.

E venào eu a confiança que Deus vos deu para co­migo reputo-vos por meu filho gerado em Jesus Cristo pelo meu ministério. E assim vos· estimo com duplicado amor; vendo-vos convertido de vaso (te ignomínia .em vaso de honra e santificação, por virtude e clemência do Divino Salvador. O qool não mudou o desígnio, que for­mara de constituir a S. Pedro cabeça de Igreja, depois do seu pecado; atendendo mais às suas lagrimas do que à sua quéda; e mais ao seu arrependimento, do que â sua culpa.

Em suma, eu seria mui'U) insensível, se não unisse o

meu júbilo ao glorioso festejo, que agora se jaz no céu entre os anjos de Deus pela inteira mudança e santifi­cação da vossa alma. Crêde-me, meu caríssimo, que as

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lágrimas, que eu vi correr dos vossos olhos, causaram no meu espírito o q·ue jaz a água lançada pelos terreiros sôbre os carvões; que acende e não extingue o jôgo deu suas fornalhas.

Com efeito, aquêle penitente foi tão satisfeito do tribunal da clemência, que depois (como declarou a um dos seus amigos) não havia para êle maior delícia, que o voltar ao mesmo tribunal; o que êle fàzia com tal fre­quência, que chegava a importunar os sacerdotes com as suas repetidas confissões; dizendo a cada passo com fervoroso espírito : Lavai-me, Senhor, lavai-me cada vez mais.

§ X

Da Congregação das Religiosas da Visitação

Falando em certo dia com o nosso santo uma pessôa ilustre sôbre a Congregação daquelas religiosas (presen­temente denominadas Salésicu) lhe disse com liberdade: Que quereis jazer com essa congregação; ou de que ser­virá ela na Igreja de Deus? Não ha já outras muitas, a que poderiam destinar-se estas mulheres?

E vós não agirieis com maior acêrto, instituindo uma congregação de eclesiásticos? O tempo que vós ga..stais na instrução dessas religiosas (as quais para perceberem uma coisa, se lhes deve repetir cem vêzesJ seria aplicado com utilidade maior à instrução dos eclesiásticos. Além de que, essa vossa congregação é um tesouro desconheci­do; e procurar que produza, util�dade sólida � querer pin­tar sôbre as águas, é semear sôbre as areias.

Ouvindo isto o nosso santo, sorriu-se graciosamente, e respondeu logo com a sua costumada serenidade : -Não sei trabalhar em materiais tão relevantes. E se per­tencem aos ourives as obras de ouro e prata, é próprio dos oleiros Q trabaLhar em barro. Crêde-me: Deus é um grande artífice, que com pobres instrumentos jaz grandes

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obras. tle escolhe o fraco, para contundir o forte, a igno­rdncia, para confund�r a ciência e Q que é nada, para destruir o que parece ser alguma coisa.

Que não fez tle com uma vara na mão de Aarão? com uma queixada na mão de Sansão? Por quem venceu a Holofernes, senão pela mão de uma mulher? Quando creou o mundo donde tirou a matéria, senão do nada?

Além de que, por isso mesmo que o sexo feminino é mais fraco, necessita de maior auxílio e deve-se-lhe ter mais compazxao. O Divino Salvador não se dedignou, nem proibiu às m'ulheres a sua assistência. tle de modo ordinário era seguido de muitas, ainda, até ao mesmo Cal­vário, onde exceto o Evangelista amado, o abandonaram os discípulos. E a Santa Igreja, que dá a êste sexo o nome de devoto, bem mostra que o estima muito.

De resto não é considerável o exemplo, que. elas po­dem produzir onde o mesmo Deus as chamar? Das duas qualidades que devem ter os eclesiásticos pastores (a pa­lavra, e o exemplo) qual é, segundo o vosso juizo, a que merece maior aprêço? Eu por mim çonfesso, que est�mo mais uma onça de exemplo santo, do que muitas libras de eloquência. A ciência instrui,· mas ao que a tem sem a boa vida, se converte em escandalo e se lhe diz justa­mente: Médico, cura-te q ti mesmo.

É bem verdade, que há outras congregações na Igreja, em que poderiam ser religiosas algumas que professam nesta. Mas também é certo, que muitas aquí professas não ser�m admitidas nas outras, por causa dos seus anos, das. suas moléstias, com que · não poderiam cumprir as austeridades corporais daquelas ordens. E por outra parte, se nesta congregaÇão se ·aceitam algumas mulheres for­tes, é com o desígnio de servirem às enfermas, para as qUais principalmente foi esta ordem instituída.

E pelo que respeita à exortação que me fazeis para eu instituir uma congregação de. eclesiásticos devo dizer­vos que já lançou mão dessa alta emprêsa o grande e fiel servo de Deus, Monsieur de Berulle, que tem maior

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talento para isto e muito mais tempo do que eu, que tenho a carga de uma diocese tão pesada, e que é como o centro dos erros que perturbam a Igreja. Deixemcu; pois aos grandes operários os grandes desígnios; e Deus ta r á o que fôr servido dêste pequeno emprêgo do meu trabalho.

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OITAVA PARTE

§ I

Do desprezo da estima

O cuidado que tinha o nosso Santo da reputação de sua pessôa, era só pelo que tocava ao serviço de Deus, não por sua própria honra; e mais para evitar .o escân­dalo, do que para aumentar a sua glória. Para o que praticava êle primeiro o que ensinava a êste propósitc como vou a dizer.

Uns espíritos apaixonados interpretando sinistra­mente um conselho muito santo que êle dera em Paris a umas pessôas de· singular virtude, tomaram daí motivo para o difamar. Sôbre o que disse êle a um seu amigo : Escreve-se-me de París, que alí se me faz muito bem a barba; mas eu espero em Deus, q'llle ma fará crescer

-mais povoada, se assim for necessário para o seu serviço, que é só o que estimo, e de que faço aprêço; pois, con­tanto q·ue Deus seja servido, que importa que seja pela nossa boa, ou má fama, pelo aplauso, ou pelo abatimento da nossa reputação?

Quanto mais, que o que chamamos reputação, é tlm sonho, uma sombra, uma opinião, um fumo, um louvor, cuja memória se desfaz no ar, e finalmente 1J.ma estima­ção, de modo ordinário tão falsa, que muitos se admiram de ver-se louvados por virtudes, quando não ignoram ter os vícios contrários, assim como censurados por defeitos, que n·unca tiveram.

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São logo êsses delicados os que se ressentem de qua1s­quer murmurações, que por si mesmas não são mais do que uma· pequena cruz de palavras, que o vento leva. E é necessário que tenha os o·uvidos nimiamente mimo­sos todo o que não pode tolerar por um pouco o imper­tinente som de um mosquito.

§ li

Da verdadeira humildade

Queria sempre o glorioso Sales, que a virtude da hu­mildade, ou procedesse da vontade, ou do entendimento, tivesse em todo o caso a principal raíz na caridade; por­que não. sendo assim, era praticar as virtudes como um pagão.

Desejava, pois, que se amasse o abatimento, para agradar a Deus com as humilhações, em que tivesse menos parte a nossa eleição; porque as cruzes, que nós formamos, sempre são mais delicadas: e por isso vale mais uma onça de padecer sem se exasperar, do que muitas libras de agir, só por impulso do próprio querer.

A tolerância dos opróbrios, abjeções e abatimentos, era, segundo o parecer do nosso santo, a legítima pedra de toque da verdadeira humildade, pela conformidade que tem com Jesus Cristo, divino modêlo de tôda a só­lida virtude.

1!:le m-etia depois a diligência voluntária das humi­lhações e desprêzos procurados por própria indústria. Porém queria nisto mesmo muita discrição, prudência; porque o amor :próprio se póde imperceptivelmente intro­duzir com subtileza nesta mesma dlligência.

Reputava também como um profundo gráu de humil­dade o gostar das humilhações e desprêzos, e consequen­temente o desagradar-se dos aplausós e honras, pondo por exemplo a Moisés que preferiu a . baixeza do povo de

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Israel à glória da côrte de Faraó; a Davi, que dançando diante da Arca, gostava de parecer vil aos olhos de sua mulher Micol; e os Apóstolos, que recebiam com graride prazer os opróbrios que padeciam pelo nome de Jesus.

Desejava igualm·ente que a obediência acompanhasse a humildade, sem a qual não há obediência verdadeira. Porque a; obediência requer submissão e o verdadeiro hu­milde se considera como inferior a tôda a creatura pelo amor de Jesus Cristo que era reputado, como opróbrio dos homens e abjeção da plebe.

Recomendava não menos, que se praticassem as boas obras em espírito de humildade, ocultando-as quanto pos­sivel fôsse, aos olhos dos homens, para serem só vistas por Deus. Mas ainda que desejava que nada se fizesse pelo baixo fim do louvor humano, queria contudq que se não deixasse de agir bem pelo temor de se receber depois devido aplauso e estimação.

E recomendava sôbretudo, que ninguem falasse de si mesmo, nem bem, nem mal, senão em caso de pura necessidade, e ainda então com grande parcimônia : j ul­gando êle j ustamente, que· o louvar-se, ou censurar-se cada qual a si mesmo procedia da mesma raíz da vai­dade. Pois quanto ao louvor, é evidente, que nasce da vaidade o que sae pela própria bôc�. E no que respeita à própria censura, se ela não procede de um espírito per­suadido da sua extrema miséria, em tal caso é uma vai­dade finíssima; porque rara vez sucede, que ci que a si se censura, se repute pelo que diz, e deseje, que os que o ouvem, tenham por tal.

Antes o que pretende qualquer dêstes, é ser estimado por humilde; parecendo-se com os remeiros, que v�lltam as costas ao lugar, para onde se dirigem.

§ m Do sentimento da divina presença

Quando Deus nos priva das suas· consolações e do sua.ve sentimento da sua presença divina devemos dar-

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lhe graças com todo o humilde reconhecimento; como um valente soldado, que agradece ao seu capitão, quando lhe -comete alguma difcil e perigosa emprêsa; porque então lhe mostra a estimação, que faz do valor do seu afeto e .fidelidade.

Devemos pois dar graças a Deus no tempo dessas subtrações e securas por tôdas as razões seguintes.

1. Porque Deus deve ser louvado em todo o aconte­,cimento, e sf! deve adorar em tudo a sua vontade, as suas <llsposições, e as ordens da sua Providência.

2. Porque :li:le nada faz que não seja para nosso bem e utilidade maior.

3. Porque tudo se converte em bem para aquêles que � amam, e que :li:le ama.

4. Porque nós, como filhos da cruz, devemos parti­·Cipar alguma porção dos tormentos do Salvador.

5. Porque na desconsolação e securas temos meios mais próprios para mostrar a Deus a nossa fidelidade.

6. Porque a doçura das consolaÇões gera algumas vêzes a corrupção da complacência, e por ela a soberba, -que é o veneno da alma.

7. Finalmente, porque no tempo das doçuras sucede não poucas vêzes, que em lugar de amarmos ao Deus das -consolações, amamos somente as consolações de· Deus.

O certo é, que assim como Jacó tirou sem custo as _peles, que não eram suas, sendo-lhe dadas por sua mãe para cobrir a garganta, e as mãos; e pelo contrario, se arrancassem a própria pele de Esaú, o fariam gritar, pela vemllimcia da dor; assim .também as queixas que forma­mos, quando Deus nos retira as consolações sensíveis, bem mostram que estavam pegadas ao nosso coraçao, ou o nosso coração pegado a elas. E consequentemente, quando nós suportamos aquela pr�vação sem queixa, é muito bom .sinal de que só Deus e não a creatura, tem a posse do nosso coração.

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§ IV

Utilidade das moléstias

Uma pessôa ilustre, mas de procedimento libertino e com grandes riquezas, que êle dispendia em suntuosidades e magnificências e principalmente numa esplêndida mesa, caindo por suas desordens em uma perigosa enfermida­de, mandou recomendar-se às orações do glorioso Sales, dizendo-lhe que estava de. cama e sumamente aflito.

Ao que respondeu o bem-aventurado, dizendo logo ao mensageiro : - Aquêle q·ue. zombava algumas vêzes do mérito das obras boas, recebe ago714 o efeito que lhe mere­eeram as suas más. Os médicos lhe protestam QUe pelos seus criminais excessos arruinou êl� a própria saude. E eu rogo a Deus, flue a ruina do corpo lhe sirva de proveito à sattde da alma.

Dizei-lhe pois, que tenha grande confiança porque essa enfermidade não lhe será paro; morte.

Consolaram muito as primeiras palavras ao miserável enfermo. Mas o aguilhão da ameaça que vinha no favo àe mel, penetrou a sua carne com um tão santo temor, que verificou a profecia do nosso bem-aventurado com à sua conversão; mudando por tal fórma os seus costumes, que os que o tinham visto antes da sua moléstia, quase que o não conheciam depois de convalescido.

Êle com efeito, recobradas as fôrças perdidas, foi logo à igreja render graÇas a Deus, e também agradecer ao nosso Santo o precioso benefício· das suas orações, que ainda: se aumentou coin esta suave admoestação: --:- Agora vêdes, meu caríssimo, comó semelhantes males :noS' sUCe"' dem por uma justiça de Deus, acompanhada de· miseri­córdia; que como nós não fazemos pe'bqs nossas culpas as devidas penitências voluntárias, é justo que as façamos por êste modo necessárias.

É pois venturoso Q qw: sabe aproveitar-se e fazer da necesSidade virtude; porque peus não dá a todos està

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graça, nem lhes manifesta os seus juizos com tanta bon­dade. E por isso deveis reconhecer o favor que vos fee, em vos castigar com tanto amor.

§ v

Da resignação perfeita na vontade de Deus

Estando o nosso bem-aventurado em París no ano de 1619, uin senhor ilustre, que acompanhâra os Prín­cipes de Saboia na viagem que fizera àquela côrte, caiu tão gravemente enfermo que julgaram os médicos não poder escapar daquela doença. O qual vendo-se em tão perigoso. estado desejou e conseguiu ser assistido pelo nosso santo.

Com efeito o enfermo suportava a 'dor da sua mo­léstia com assás firmeza : e perturbava-se ao mesmo tempo por coisas que não mereciam o seu aprêço. Sôbre o que disse o nosso bem-aventurado a um seu amigo : Oh como é deplorável a fraqueZ;iJ, humana/ :tste fidalgo era tido por um grande homem de guerra e de estado, e por pessôa de excelente juizo; o que não obstante vêde as bagatelas, com que s� embaraçava o seu espfrito.

:a:le se queixava não tanto por estar enfermo e pró­ximo a morrer, quanto por estar fora de sua terra e da sua casa. Lastimava-se dos pesares que teria sua mu­lher, de faltar-lhe a sua assistência, e de não ter pre­sentes os seus filhos, p·ara lhes dar a sua bênção. :a:le suspirava pelo seu médico ordinário, que conhecia a sua compleição desde muitos anos. Recomendava �;om Vivas instâncias, que se levasse o seu cadáver para o jazigo dos seus antepassados, que se lhe pusesse no túmulo um hon­roso epitáfio; com tal aparato ; que se lhe fizessem as

exéquias por tal modo, etc. l!:le se queixava do ar de París, da água, dos medica­

mentos, dos médicos, dos cirurgiões, dos boticários, dos.

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criados, do palácio, do seu quarto, do seu leito, de tudo; protestando sempre, que não podia morrer em paz, por não acabar no lugar, onde desejava morrer.

E quando se lhe dizia, que êle tinha tôdas as assis­tências necessárias, tanto pàra o corpo, ·como para a alma, e que todos aquêles, cuja ausência o penalizava, lhe aumentariam com a presença pessoal . o seu desprazer, tinha contra tôdas estas representações admiráveis répli­cas com que aumentava o seu mal e exasperava a sua pena. Mas ainda que estas indignas perplexidades lhe duraram até o fim da vida, êle recebeu os sacramentos com muita . devoção e morreu bem resignado com a von­tade d·e Deus.

Sôbre o que deu ·o nosso bem-aventurado esta dou­trina ao seu amigo : Nãp basta querer o que Deus quer, para se ter uma boa resignação; deve-se querer como �le o quer, com tôdas as suas circ·unstâncias. Por exemplo: No estado de moléstia, deve-se querer estar enfermo por­que Deus assim o quer; e com tal moléstia e niío outra, e em tal sítio, em tal tempo e entre tais pessoas, porque o Senhor o quer assim. E.m suma, deve-se � tudo, e por tudo seguir, como propria lei, a santíssima vontade de Deus.

§ VI

Bonança na tempestade

Não é difícil o conduzir uma embarcação, quando o mar está em sossego, e o vento é favorável; o que porém não sucede, quando se alteram as ondas com o furor da tempestade, se lhe falta a destreza de um bom piloto. E assim também os espíritos vulgares viwm retamente quando tudo lhes sucede ·à sua vontade; mas entre as contradições e adversidades o que se porta como deve, dá bem a conhecer a verdadeira virtude.

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Quanto mais o nosso bem-aventurado se achava opri­mido, tanto se mostrava com maior sossego; sendo como a palmeira, que quando mais combatida dos ventos, lança mais profundas raízes. �e encontrava as rosas nos es­pinhos, as pérolas no mar, o- óleo nas penhas, a salvação nos inimigos, e até as mesmas tempestades o conduziam ao pôrto; oferecendo-lhe, como a outro Jonas, segu,ro asilo no próprio ventre das baleias.

Desde algum tempo (diz êle mesmo) a,s secret;as con­tradições que sobrevieram à minha tranqutlidade me cau­sam tão suave e doce paz que excede a tôda q compara­ção: e me vaticina1111 um próximo esl;!abelecimento da minha alma em seu Deus. E esta vem a ser, rião sõmente a maior, senão ainda q única ambição e paixãc grande da minha 'qlma e do mlh.t coração.

§ VII

Dos que desejam a morte

Dizia o nosso bem-aventurado sôbre êste propósito a um seu amigo : Sempre é perigoso desejar a morte; por­que êste desejo, de modo ordinário, não se encontra senão naqueles que têm chegado a um alto gráu de perfeição, ou em alguns espíritos sumamente melancólicos, e não nos medit;znos, como i;lo,lvez sejamos nós outros.

Sei que pela o·utra parte se alega á Daví, a S. Paulo, e a outros santos, que tiveram tal desejo. Porém devo dizer, que seria demasiado, presunção querer falar como ttquêles santos, não tendo a sua santidade; êomo o .pensar qualquer que a tem, seria uma vaidade inexcusavel. E . o lleseto,r a morte por tristeza, de8prazer, o·u desgosto da presente vida, é o-utro extremo assaz vizinho à final. deses­peração.

Aqui dizem alguns, que desejam morrer para não ofender a Deus. ·Mas é preciso que o ódio elo pecado_ seja extraordinário numa alma, para lhe produzir êste .d.et�ejo;

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visto que os santos só o tiveram para gOZILr de Deus e o glorificar mais, e não afim de o não ofender. E se há_ quem assim o diga, eu sempre julgo que não é êste o único motivo que lhe jaz desejar a morte; outr(L coisa sem dúvida lhe jará aborrecer q vtda.

Haverá talvez quem afirme, que deseja q morte par� entrar mais cedo no paro,iso. Mas para isto não basta o não pecar; é necessário agir bem por moàQ que agrad,t!_ a Deus e consiga, tanta graça que se jaça benemérito daquela eterna recompen�. Finalmente haverá quem pretenda sair dêste mundo para entrar logo no p·urga­tório? Eu tal não creio, antes me asseguro, que se êsse tal chegasse à sua porta retrataria logo (sendo-lhe pos­sível) o seu desejo, e suplicaria o seu regresso a esta vida para uma austera penitência por todo um século, antes do que residir por po·uoos ·horas naquele jogo devorante, naqueles formidáveis ardores.

§ VIII

Das boas inclinações

Há pessôas, que de si mesmas têm natural propensão para certas virtudes, como a sobriedade, modéstia, com­paixão, humildade, silêncio, paciência e outras .semelhan� tes, nas quais, com pouco trabalho, podem fazer um con­siderável progresso,

Os filósofos gentios se fizeram famosos pela práticll. de -várias virtudes morais. para cuja aquisição se valeram das fôrças naturais, que empregaram na repetição de fre­quentes atos. E assim como a aprendizes de certl!-8 art�s · lhes serve muito a boa disposição do corpo, assim também para os grandes progr-essos nas virtudes morais e adquiri­das conc·orre não menos a boa disposição do espírito ..

Mas de que pode servir a um cristão a adquirir tõdas as

· virtudes morais, se vier a perder a sua alma; isto é, se

tôdas essas virtudes não forem animadas e vivificad,�s

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ela graça e caridade? Tudo isso lhe serà inutil, dls o apóstolo; porque sem aquela circunstância de nada serve para o céu.

Aquêle, pois, (diz o nosso bem-aventurado) que tem boas inclinações naturais, lembre-se que são bens de que deve dar conta a Deus. Tenha pois, perene cuidado de bem os empregar no zeloso serviço do mesmo Senhor que nos deu.

§ IX

Que se pode ser devoto e muito mau

Não vos enganeis (dizia o nosso bem-aventurado ao seu discípulo) pode-se ser muito devoto (ainda falando da verdadeira devoção) e no mesmo tempo ser muito mau. Porque a devoção por sua natureza é uma virtude moral eadquirida, não divina e infusa; pois de outra sorte, seria virtude teologal e o não é,· sendo só uma virtude subordinada à que se chama religião, a qual é compreendida em uma das quatro cardiais, denominada justiça. Assim pois, como se pode ter f é, com que se f açam transportar os montes, sem ter caridade, e se pode ser profeta e mau homem, como foram Saul, Balaão e Caifaz; e se podem fazer milagres como se diz os fez Judas, e ser

mau como êle; e se podem repartir pelos pobres todos os próprios bens, sem ter caridade, muito mais facilmente e pod erá ser devoto e muito devoto, e no mesmo tempo ser mau e muito mau; porqua�to a devoção é uma virtude de sua natureza menos estimável, do que as outras agora referidas.

Assim pois não se deve estranhar o dizer-se que se pode ser devoto e muito ma·u, quando se pode ter fé, misericórdia, paciência e constância, ainda tend o muitos vicios capitais, como soberba, inveja, ódio, intemperança e outros semelhan-

·tes segundo a doutrina do Doutor das Gentes.

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Ora tal devoção, ainda que verdadeira, é morta. Pois Cl3sim como o corpo morto, inteiro e perfeito de um ho­mem, é verdadeiro corpo de um homem verdadeiro, mas privado da alma, assim também a devoção sem a cari­dade, qu� é a alma. da virtude, é devoção verdadeira, porém morta,· é devoção sem alma, devoção informe e nada viva.

o homem, pois, pela devoção pode ser devoto; porém como só pela cariclqde é bom, faltq.ndo-Zhe esta pode ser devoto e· juntamente mau; pois pelo pecado mortal não se perdem os hábitos adquiridos nem ass.sim mesmo a fé e a esperança senão só pelos atos contrários plenamente formados de infidelidade e desesperação.

§ X

Da devoção, com a vocação

Uma das grandes máximas do nosso bem-aventurado era, que a devoção não conforme ou oposta ao estado e vocação de cada um, era falsa devoção ; e que a devoção verd�eira era conveniente a todo o estado; por ser como um licor, que toma a forma do vaso onde é metido.

Ser pois devoto cada qual . no seu estado é cumprir fielmente as s.uas respectivas obrigações com fervor, ati­vidade e alegria, por amor, honra e glória de Deus. :ll:ste culto é ato de religião ; e aquêle fervor, p�ontidão e amor da devoção é efeito da caridade. Agir pois assim é ser perfeitamente devoto na sua própria vocação, J:l servir a· Deus por a�or, executando, como é justo, as suas vontades.

O Angélico Doutor S. Tomaz distingue três classes dos que praticam a devoção, animada da caridade; a saber, dos princtpiantes, dos proficientes e dos perfeitos.

Os' primeiros, são os · que se abstém do pecado, que rebatem as · tentações, e ·praticam as interiores e exte­

riores� mortificações; e os mais exerctcios. da. virtude com trabaÍho e dificuldade.

·

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Os segundos, sã_o os que exerc1tam estas me�as coisas com mais facilidade, marchando no caminho de Deus com prest�za e prontic;lão.

E ·os terceiros, são o.s que praticam as mesmas obras com júbilo, alegria e um prazer extremo. Os primeiros, agem por Déus com algum pêso ; os segundos caminham com presteza ; e os terceiros correm e voam com prazer e alegria ;· observando, não só os mandamentos da lei de Deus, mas também· os conselhos e inspirações do céu.

Do recolhimento interior e aspirações

Apelidava o nosso santo ao recol�imento interior, um retiro das potências da alma ao coração, para alí tratar cóm -Deüs, só · a só. E dizia que isto se ;podia fazer a tôda a hora e em todo o lugar, sem que as companhias, · nem as ocupações impedissem um tal e tão proveitoso retiro.

Com efeito, estas frequentes relações entre Deus e nós, ou estas vistas de Deus em nós e de nós em Deus, prodigiosamente_ nós conservam no nosso justo dever, im­pedindo-nos o cair em culpa, ou fazendo, que depois de caídos,' prontamente nos levantemos.

E da mesma forma as aspirações são umas elevações do espírito para Deus, como uns impulsos da

-nossa

· alma,

que vão direitos ao coração do mesmo Senhor, e santa­men� o ferem, como se c;liz �o Livro �os Cant3:res:

Desejava pois .o nosso bem-aventurado, que �es- .pois exercícios nos fôssem tão familiares e frequentes� c�o ô respir�;�.r e a.spirar. E ·por isso dizia, que todos os exercí­cklf? . espirl�Úais, sem 9 recolhmiento interior e :�pir�Çõe�. eram holocaustos sem- medul� um céu sem estrelas1 e uma árvore sem folhas.

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Pelo que, quando se não fazia oração mental ou vocal, por causa de ocupações necessãrias, queria que se suprisse esta falta com o retiro interior e mais frequentes aspi­rações. E assegurava que por êste modo se reparavam tôdas as ruínas, e se podia fazer um grande progresso na virtude.

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NONA PARTE

§ I

Do amor da Palavra de Deus

Dizia o glorioso ·sales, que entre os sinais de predes­tinação era um dos melhores o ouvir com prazer a pala­vra do Senhor. Porquanto (como se diz no Evangelho) aquêle que é de De'us, gosta de ouvir a palavra de Deus; e o que ama a Deus ama a sua palavra e a guarda no seu coração. E na

' verdade, gost�r de ouvir a voz do pró­

prio pastor, é sinal de ser boa ovelha, e de que estará à direita no ultimo dia, para ouvir da bôca do Salvador : Vem para mim, bendito do meu Pai . . .

Poréni. desejava o santo, que se não recebesse em vão, nem se tornasse inútil a divina palavra, por falta da le­gítima observância. E por isso dizia, que Deus' se dispunha a atender às nossas rogativas, quando nos esforçávamos para cumprir o que :i!:le nos propunha pelos seus embai­xadores e intérpretes das suas vontades.

Porque, assim como nós lhe pedimos na oração domi­nical (ou do Padre nosso) que nos perdôe as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedor�s; assim também está disposto o mesmo Senhor a fazer o que lhe pedimos na oração, estando nós prontos para executar o que de nó� pretende pela sua palavra.

§ Il

Da leitura espiritual

o glorioso Sales a recomenda, .como um alimento. da alma, que nos acompanha por tôda a parte, e em tod9

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o tempo; uma vez que nem sempre temos pregações, condutores, e diretores espirituais ; e nem sempre a nossa memória nos subministra o que temos ouvido nas exorta­ções públicas e particulares.

Desejava pois o glorioso Santo que se fizesse provisão de livros de piedade, como de outros tantos estímulos do santo amor; e que se não passal)se dia algum, sem tomar dêles alguma refeição ; lendo-os com devoção e respeito, como se fôsse cada um dêles uma carta enviada do céu, para nos ensinar o caminho da

. nossa salvação.

Com efeito, não há mais seguros diretores do que estes mortos, que 1,1os falam tão '\fivamente -nos seus escrf­tos. :6:les foram pela maior parte · os intérpretes das von­tades. de Deus, e seus fiéis embaixadores na administra­ção da sua palavra pelas suas próprias línguas, que lhes serviam de penas; e depois da morte as suas penas lhes servem de línguas com que perenemente nos falam e san­tamente nos ensinam.

Entre os livros dêste gênero inculcava o glorioso Sales os_ que descrevem as vidas. do� santos; dizendo que eram o Ev:angelho posto em obra, donde pelo menos se extraía um. grande gõsto de piedad�, com tanto que se lessem COJll religiosa humildade e sincero desejo · de imitar, em todo o possível

·, aos mesmos santos.

P!J.rec�-se esta leitura com o maná dos Israelitas, que se aeomodava a todos os gostos. E assim, de tão dife­rentes flores é fácil formar, como abelhas industriosas, o favo -de mel de uma �xcelente piedade.

·E, suposto que as qualidades do espírito de Deus sejam mais diferentes nas ahpas do que nos corpos .os •

rostos, contudo, é certo, que das obras· dos santos pode­mos extrair muitas para imitar ; e quando menos, para admirar a graça d_e Deus, qu� .fe?: nêsses grandes heróis tão prodigiosas coisas; servindo-nos sempre. de um exce­lente mOdêlo para louvar .os ·excessos da divina benefi­cência, e as maravilhosas operações da sua graça.

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§ Ill

Da ·Penitência e Eucaristia

Dizia o nosso bem-aventurado, falando dêstes dois sacramentos, que eram como dois polos da vida cristã; com que renunciamos pelo primeiro a todo o pecado, des­truimos todos os vícios, vencemos tôdas as tentações, e desterramos todos os maus costumes; e pelo segundo, com o socorro da divina graça, caminhamos pela estriuia da justiça e da santidade, indo de virtude em virtude até o monte da perfeição cristã.

Por isso o mesmo Santo louvava muito aquêle ditame de S. Bernardo, que queria que os seus monges atribuis­sem a estes sacramentos de vida as vitõrias, que alcan­çavam áos vícios e os progressos que faziam no cami­nho da virtude. E dizia que os que procuravam escusas para não comungar com frequêncía, imitavam aos convi­dados da parabola, contra os quais se irou o pai de fa­mílias, ainda que as suas recusas pareciam razoáveis.

Porque uns dizem (à sua imitação) que não são assáz perfeitos. E como o serão êles, apartando-se da fonte pura da perfeição? Outros alegam, que são muito frá­geis . . . E este é o Pão dos fortes. Outros representam, que são enfermos . . . E fogem do Divino Médico. Outros protestam, que não são dignos . . . E por isso a igreja lhes �nsina aquelas santas palavras : senhor, eu não sou digno, de que entreis na minha casa.

Outros se escusam, pela opressão dos seus negocias. Mas o Senhor com esta exortação os anima: Vinde a mim todos os que estais oprimidos: e eu vos aliviarei. Outros dizem, que temem receber a sua condenação. . . Mas não devem êles temer o ser condenados pelo não receber? Outros afirmam, que por humildade o não recebem. Mas de modo ordinário esta humildade é falsa, como a de Acaz,. que· sé opunha à glória de Deus, fingindo temer de o tentar: Mas, assim como se não pode aprender a fazer

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bem uma cousa, senão fazendo-a, como se ap-renderá a receber bem a Jesus Cristo, senão recebendo-o?

§ IV

A verdadeira devoção nos deveres de cada estado

Costumava o glorioso Sales censurar uma desordem assáz comum entre algumas pessoas, que, fazendo par­ticular· profissão de piedade, se aplicam às virtudes menos convenientes ao seu . estado, e desprezam as que por todos os títulos lhes são mais conformes. Esta desordem (dizia êle) procede do ordinário desgôsto que tem a maior

parte das gentes contra as condições anexas ao seu pró­prio dever.

Há pessôas que para darem um bom elogio a uma casa secular, dizem que alí se vive e tudo alí se observa, como em um convento; sem pensar, que isto é querer colher· figos nos silvados e uvas entre os espinhos. Não porque os tais exercícios não sejam santos e bons, senão porque é preciso atender e considerar as circunstâncias dos lugares, dos tempos, das condições e das pessoas.

Com efeito, a caridade fora da ordem, não é caridade, antes é como um peixe fora da água, ou como uma árvore em terra que lhe não é própria. Esta desigualdade de espítito, tão falta de razão e prudência, parece-se com aquêles glutões, que apetecem cerejas frescas pelo Natal, não se contentando de comer cada coisa na sua estação própria. E tais c.érebros assim pert�bados, precisam mais de limpeza que de raciocínio.

§ v

.Juizo que fazia sô�re as virtudes o glorioso Sales

1. i:le preferia aquelas de que se fazia uso mais fre­quente e ordinário,_ às outras, cujas ocasiões

. para as

meter em prática eram mais raras.

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!. ·Não queria que se julgasse da grandeza ou pe­quenez sobrenatural de uma virtude pela sua ação exter­na; porquanto uma pequena na aparência podia ser pra­ticada com muita graça e caridade, que é a regra do preço e valor diante de Deus.

3. Preferia sempre as virtudes mais universais às qlie eram mais particulares, excetuando em todo o caso a ca­ridade. Por exemplo : Estimava mais a oração, que é a luz de tôdas as outras; a devoção, que consagra e dirige as nossas ações ao serviço de Deus; a humildade, que nos faz ter um baixo sentimento de nós, e das nossas obras; a doçura, que nos faz ceder a todos os mais: a paciência, que nos faz sofrer tudo com sossego.

4. As virtudes notórias lhe eram um pouco suspei­tas; porquanto (dizia êle) davam com o seu público res­plendor um poderoso incentivo à vanglória, que é o per­nicioso veneno das virtudes.

5. rue censurava os que só fazem aprêço das virtudes estimadas pelo vulgo, tão mau avaliador a êste proposito, que de modo ordinário prefere a esmola temporal à espi­ritual, o cilicio ao jejum, e as austeridades corporais à doçura, à modestia, e à mortificação do espírito, que são na verdade muito mais excelentes.

6. rue enfim, repreendia aquêles que 13ó queriam exercitar-se nas virtudes, que eram do seu gôsto, sem tratar daquelas, que eram mais próprias ao seu cargo e ao seu dever, servindo assim a Deus pelo seu modo, e não segundo . a vontade do mesmo Senhor, abuso tão vul­gar nos seus tempos, que compreendia inumerâvets pessôas.

§ VI

Quem se quejxa peca

Esta era uma das ordinárias . sentenças do nosso santo. Não porque não seja permitido a qualquer o

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queixar-se à j ustiça das injúrias, e ofensas que se lhe fi­zerem nem também porque nW� suas moléstias ninguém possa queixar-se e dizer o seu mal ao médico e ainda aos a�stentes, para receber algum alívio ; pois persw:�.dir o contrãrio seria demasiado rigor. ·

Falava :pois o santo daquelas queixas que vem a dar em murmurações, e dizia que ordinariamente os que assim se queixam, pecam: ; porque o nosso amor próprio costuma engrandecer as ofensas que se nos fazem, usando de têr­mos excessivos para exprimir umas injúrias assãz ligeiras, que talvez reputaríamos por coisa de nada, se as divjsãs­semos em outra pessôa.

Contudo, êle não reprovava (como fica dito) que se denunciassem à justiça, com paz e sem paixão, as injúrias feitas aos nossos bens, aos nossos corpos e a nossa honra. Mas é tal a fraqueza humana, que lhe não é facil, ainda na face da mesma justiça, contêr o próprio espirito, e observar a equidade necessãria. Donde nasceu· o provér­bio que nã!> se acharã uma onça de amizade em cem libras de processos.

Queria também o glorioso Sales que no tempo da en­fermidade dissesse cada um simplesmente o seu- mal aos que lhe podiam dar remédio ; por ser esta a vontade de Deus, que creou a medicina, e manda honrar ao médico, por êste respeito.

Porém fora do caso da justiça e de moléstia, êle repu­tava as· queixas não só por inúteis, senão de ordinãrio por injustiças; sendo extremamente difícil, que o ofendido ao. queixar-se, não exceda os limites da retidã-o e verdade.

Porque ou seja que nos sobrevenham os males por coisas ímpias ou inocentes, sempre se deve atender à causa primeira, que é a vontade de Deus; ó qual costuma servir-se de umas e outras : das inocentes, absolutamente e das ímpias, por pemtissão, ou para nos corrigir a ini­quidade, ou para nos aumentar a virtude. E por isso as quejxas que formamo.s, sempre de algum . modo (ti:mdas as exceções · referidas) são ofensas de Deus.

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Com efeito, vanas pessôas, que assistiram ao bem­aventurado nas suas moléstias até na mesma de que morreu; publicamente atestaram que j amais lhe ouviram formular ainda uma só queixa; dizendo êle só simples­mente o seu mal, como o sentia, sem aumentar, nem di­minuir; abandonando-se inteiramente às disposições dos médicos, tomando sem repugnância tudo o que se lhe mi­nistrava e ainda com algumas demonstrações de alegria.

§ VII

Uso das ofensas recebidas

Dizia o nosso santo, que a seara das virtudes era sofrer bem as afrontas e injúrias; porque nesta santa prática concorriam outras muitas.

1. A justiça: pois qual é aquêle, que não peca, e consequentemente não é digno de correção? Se vós fostes ofendido, considerai logo, quantas vêzes ofendestes a Deus; e vereis como é justo que as creaturas vos casti.:. guem, como instrumentos da suà j ustiça.

2. Se vos acusam justamente, deveis reconhecer a vossa culpa; e pedindo perdão a Deus e aos homens, agradecer àquêle que vo-la apresenta. Pois ainda que o faça com mau ânimo e desagradável modo, devemos lem­brar-nos de que as medicinas, por não serem gostosas, não deixam de ser saudáveis.

3. E se a acusação é falsa, deve-se, com paz e sem alteração, dar testemunho à verdade. Porque assim o pede esta vir.tude e a edificação do próximo, que poderia reputar por uma tácita confissão o nosso mesmo silêncio.

4. Feito assim, se ainda se continúa a nos acusar e arguir, não nos defendamos mais ; perseveremos no exer­cício da paciência, do silêncio e da modéstia.

5. A prudência e a discreção vêm a praticar o seu ofício, que é a virtuosa moderação.

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6. A fôrça e grandeza de ânimo aqui vencem tudo, unindo-se com a temperança, que refreia as paixões, para lhes impedir os excessos.

7. A humildade tem neste caso uma porção grapde fazendo-nos conhecer e amar a nossa abjeção.

8. A .fé nestàs circunstâncias nos faz lembrar de Jesus Cristo Salvador nosso, carregado de opróbrios e ignomínias e aos mesmo passo observando um profundo silêncio.

9. A esperança, que nos faz ter por nada qualquer tribulação que nos oprima.

10. Finalmente a caridade concorre muito e põe a corôa ao nosso sofrimento; pois como benigna, paciente e graciosa, dissimula, padece e tolera tudo. ·

Como, pois, são amaveis as ofensas e injúrias, consi­deradas pela parte com que nos subminlstram os meios mais próprios para exercitar no mesmo tempo tantas ações agradáveis a Deus!

§ vnr \

Resposta do bem-aventurado sôbre o mal que diziam dêle

Avisado o glorioso Sales de que alguns ímpios murmu­ravam dêle, denegrindo alguns .seus fates por indignos modos, ·respondeu êle, sem se defender, replicando só com tranquila doçura e· perguntando assim : Não dizem mais do que isso? O certo é que não sabem tudo.

'Rles me fazem mercê tendo piedade de mim, quando me quiseram melhor do que sou. Bendito seja Deus, que assim me faz ver, quanto me devo corrigir/ Pois dado ainda que pelos defeitos que me censuram não deva ser acusado, não deixo de o merecer por o·utro· motivo; e um castigo tão leve s.empre é misericórdia, grande.

Depois, sabendo que havia quem tomava a sua defesa, provando que tudo era falso, dizia êle : Eu reconheço a

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benevolência dos meus amigos; mas tcimbém devo agra­decer a advertência, que tacitamente me fazem os meus adversários, para que eu me acautele de fazer os se·us ditos verdadeiros.

E continuando os tais amigos a fazer mais notória a sua inocencla, lhes dizia o santo : Eu dei-vos procuração 'liara advogardes a meu respeito? Deixai dizerem o que quiserem essas gentes, porque dos seus impropérios só se me foT1TUI, uma cruz de palavras, cuja memória acaba com o seu mesmo som.

Tanto mais que, como ninguém se deve reputar por de todo irrepreensivel, bem pode ser, que êsses meus con­trários me conheçam melhor do que eu e todos os mais que me têm amor; o qual não poucas vêzes dá o nome de murmurações às verdades que nos desagradam.

E sôbretudO, que injúria se nos faz, quando se tem má opinião de .nós? Não a devemos nós mesmos formar de nós outros assim? :Rsses tais indivíduos não são nossos adversários; antes são nossos pªrtidários, procurando a destruição do nosso amor próprio; e é muito para estimar quem nos dá socorro contra um tão poderoso inimigo.

Assim zombava o santo das calunias, com que o difa­mavam .e de feitos que lhe atribulam ; julgando êle que o silêncio e a modéstia bastavam para lhes resistir; sem que lhe fôsse necessário empregar a paciência ·em coisa, a seu parecer, de tão pouca ponderação.

§ IX

Como se deve falar de Deus

O nosso bem-aventurado dizia a êste propósito : Não se deve falar de Deus e das cot.sas que pertencem ao seu culto, por modo de conversação � passatempo; mas sem­pre com um respeito grande, · e uma estima profunda. E por· isso acrescentava dizendo : Falai sempre de De·us.

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como de Deus; isto é, com piedade e reverência, com espírito de doçuro, de caridade e humildade.

O primeiro a viso, pertence aos que fa�m das coisas da religião, como de qualquer assunto de conversação e divertimento, sem atender ao tempo, ao lugar e às pessôas. Miséria de que já no seu tempo se lamentava S. Jerônimo, dizendo que tendo tôdas as artes e ciências pessôas prá­ticas e instruidas, às quais pertencia o falar como mes­tres, só a Escritura santa e a sagrada Teologia, com serem a raíz das ciências, eram tão indignamente tratadas, que muitas vêzes se resolviam decisivamente as suas questões mais altas, não só nas casas particulares, mas ainda nas mesmas tavernas e praças públicas.

O segundo aviso é para aquêles a aquelas, que nas suas conversações familiares querem passar por pessôas de grande instrução em

·matéria de ciência mística e

�oral, sustentando as suas opiniões com . o maior calor e teimosa soberba e voz estrondosa; como se o clamar mais alto pudesse dar maior pêso e solidez a um bem fundado raciocínio.

·

· E; por isso o nosso bem-aventurado concluía dizend� : Não faleis jamais de Deus nem da devoção por modo de conversação e passatempo; mas sempre com atenção, hu­mildade e reiJpe�to. E por êsse modo evitar·eis a indigna vaidade que se acha em muitos, que parecendo devotos, a qualquer propósito acomodam palavras do sagrado texto, para se mostrarem instruidos na divina escritura.

§ X

Contra a zombaria

Quan�o o glorioso Sales em alguma assembléia ou.via que se zombava de qualquer pessôa, mostrava logo o seu desagrado, e procurava introduzir na conversação outro assunto. E não podendo ·praticar êst-e meio, levantav.a-se,

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dizendo por êste ou semelhante modo : Quem nos deu direito para nos divertirmos à custa dos outros? Quiséra­mos nós, que nos tratassem desta sorte, fazendo anato­mia das nossas misérias com o trinchete da língua?

Suportar as fraquezas do próximo, e os seus defeitos é perfeição grande ; e .consequentemente o zombar dêle é tão grande imperfeição, que uma das maiores criminais qualidades, que qualquer pode ter, é ser mofador ; vício que Deus extremamente aborrece, como tem mostrado em muitos com rigorosos castigos.

Uma senhora ilustre, falandó na presença do glo­rioso Sales de outra senhora, que nada tinha de bela e motejando-lhe alguns naturais defeitos com que ela viera ao mundo, lhe dis.se o santo modestamente, que Deus, Criador nosso, nos fizera e que tôdas as suas obras eram perfeitas . . . Sôbre o que, sorrindo-se a outra por modo de zombaria, lhe disse o santo prelado : Crêde-me, que essa criatura é perfeita e formosa na alma, como vos posso dizer com certeza. E assim a fez calar.

Outra vez, rindo-se certa pessôa na presença do santo de um ausente, que era corcunda, acudiu logo em suá defesa, alegando a mesma sentença da Escritura : Que as obras - de Deus eram perfeitas. Como perfeitas, (replicoú o outro) , em um talhe tão disforme? Sim por certo, (disse o santo, referindo-se à perfeição interior) , porque

hã corcundas tão perfeitos, como aquêles que o não são. O que eu digo é verdade. Porém basta ; tratemos de coisa melhor.

§ XI

Não julgar !LOS outros

A vista do homem não passa do exterior, e só Deus pode sondar os corações, porque só :J!:le conhece os pensa.:. mentos. E o nosso bem-aventurado dizia, a êste propó.:. sito, que a alma do próximo era a áJ;vore da ciência do

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bem e do mal, em que era proibido tocar por expresso preceito de Deus.

E notava também uma desigualdade de espírito mul­to ordinária entre os homens : querendo julgar o que não conhecem, que é o interior alheio e fugindo de julgar o que conhecem, ou devem conhecer, que é o seu próprio interior. O primeiro lhes é proibido, e o segundo lhes é ordenado.

E' bem verdade, que se não proíbe o formar suspei­tas, fundadas sôbre fortes e boas conjecturas; porque o suspeitar deste modo não é julgar, sendo só discorrer com fundamento. Mas ainda assim é necessária muita vigi­lância, para que se não intrometam indícios falsos, que façam antecipar e precipitar o juizo; porque este é o tro­pêço em que naufragam muitos com os seus j uizos temerários.

Para evitar na presente matéria tôda a desordem, dava o nosso bem-aventurado estas excelentes regras: Se uma qção criminal pode ter mais aspectos, veja-se sempre por onde é menos má. Se a ação é tal, que se não pode desculpar a quem a fez, excuse-se cio menos, adoçan­do-lhe a intenção. E se nem ela se pode excusar acuse-se em tal caso a violência da tentação, ou ignorância ·e fra­gilidade humana, para a fazer menos escandalosa.

§ xn

Contra a maledicência

Costumava dizer o glorioso Sales, que tirada do mundo a murmuração, desapareceria mais da terça parte dos pecados. E com razão; porque pecando-se de três modos, por pensam�ntos, palavras e obras, os mais frequentes delitos e alguma vez os mais perigosos, são os que se executam de palavra, mediante a prática da maledicên­cia, por três principais motivos.

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1. Porque os pecados de pensamento só se fazem notórios a. quem os comete ; e não causam escândalo, nem mau exemplo. Só Deus é por êles ultraj ado ; e depois, por um . regresso para o mesmo Senhor no tribunal da penitência, com arrependimento verdadeiro, ficam intei­ramente abolldos. Porém os de palavra na detração ma­ligna, passam mais adiante; porque saída a palavra da bôca, só pode ser avocada, por uma retratação humilde e ainda assim fica o coração do próximo envenenado pelos ouvidos.

2. Porque os pecados de obra, quando são notáveis estão sujeitos ao castigo público ; e a murmuração, se não é extremamente atroz e infamatória, passa livre; o que faz que tantas pessôas, ainda das mais distintas, caiam com frequência nesta culpa.

3. E' a pouca restituição, ou falta de reparação, que se faz, ou não faz a êste respeito; talvez por serem os condutores das almas indulgentes com excesso, por não dizer relaxados, sôbre êste artigo.

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DÉCIMA PARTE

§ ·I

Não contradizer sem razão

Não há espíritos mais inimigos da sociedade humana, que os que são teimosos e propensos para contradizer aos outros. · São êles as pestes das conversações, os flagelos das companhias e semeadores das discórdias. E pelo contrário, os espíritos condescendentes, flexíveis e tra­táveis são uns laços vivos que prendem os corações de todos.

O nosso bem-aventurado louvava muito a prática de S. Luiz, que era de não cdntradizer a pessoa alguma, quando não havia pecado ou notável prejuízo. E o Santo Rei não se portava assim por prudência humanà (da qual era inimigo) nem segundo a máxima daquêle imperador pagão, que tinha por indispensável, que nin­guém saísse mal contente da presença do- seu príncipe ; senão só por um sentimento verdadeiramente cristão, afim de evitar tôda e qualquer contenda, como aconselha S. Paulo.

E suposto que a condescendência nunca deve dirigir­se para participar do êrro ou pecado alheio; contudo, quando seja necessário contradizer a algum e opor-se à sua errada opinião, deve-se usar de grande doç�ra e igual destreza, sem lhe fazer violência ; pórque nada se lucra pela pratica da aspereza. O espírito humano deve ser persuadido e não obrigado. Constrangê-lo, é revol­tá-lo; e a correção verdadeira como diz o profeta, entra pela porta da doçura.

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§ 11

Sôbre as aversões

Tem havido muitos, que à viva fôrça, com o socorro da divina graça, arrancaram de seus corações o mortal ódio, que haviam concebido contra os que os tinham agra­vado. Mas, assiffi como depois de cortada inteiramente uma árvore, ainda lhe ficam as raízes na terra que para se arrancarem de todo pedem maior trabalho, assim não menos ao ódio sucede a aversão; a qual tanto mais custa para se destruir totalmente, quanto parece menos censu­ravel, do que o ódio.

Todos sabem, que devemos perdoar ao inimigo, por maior ofensa que nos haja feito, se quere�os que Deus nos perdôe, como lhe pedimos na oração do Padre Nosso. Mas, assim como depois de uma furiosa tempestade, ainda ficam em grande movimento as ondas, assim também, depois de repudiado o ódio que se tinha ao inimigo, e com efeito não lhe desejando algum mal, julgam muitos (contra o preceito do Evangelho) que a nada mais estão obrigados.

Algum também persuadido destas razões, diz assim : Eu não só tenho perdoado ao meu irmão a ofensa que me fez ; senão ainda, sôbre lhe não querer algum mal, lhe desejo os mesmos bens da natureza, da fortuna, da graça e da glória, como para a minha pessoa; porém não posso determinar-me a vê-lo, nem a conversar com êle, porque a sua presença altera � minhas potências, e temo que se renove o meu furor contra a injúria que me fez.

Esta desculpa à primeira vista mostra ser bem fun­dada, suposta a fragilidade humana. Porém não é assim diante de Deus, que manda a cada um recorrer a êle, desconfiando da própria fraqueza e confiando na sua graça. De maneira que, havendo-nos li:le dado auxílios para perdoarmos ao no�o adversário, para lhe não que­rermos mal e ainda para lhe desejarmos todos os b�ns,

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devemos também confiar, que o mesmo Senhor nos dará fôrça para resistir às tentações, que se possam excitar na parte inferior da nossa alma à vísta daquêle que nos ofendeu, contanto que lhe hajamos perdoado com sin­cero e bom �oração.

Outros haverá, que capacitados pelo presente discurso, dirão dêste modo: Eu não porei dúvida ao vêr ao meu amigo, e ainda achar-me na sua companhia, porém fa­lar-lhe isso não� porque me podem escapar na conversa algumas palavras picantes, que suscitando as passadas injúrias, acendam novamente o fogo do ódio, e venham a fazer o último êrro pior ainda do que o primeiro.

Ora certo é, que todo o enfermo, que ao parecer, já livre da febre, bebe ainda com demasiada ansia um copo de água fria, dá bastante sinal," de que ainda lhe resta algum calor oculto no interior das veias. E portanto tal modo de falar e proceder em tôdas essas pessôas, saídas a seu pesar do Egito do . ódio, é convincente indício, de que se conserva ainda não pouca aversão no mais fundo dos seus corações.

Devem pois êsses tais tomar o seu coração (a bem de dizer) com ambas as mãos; e tirar dêle medi�nte o divino auxílio, aquela aversão secreta com generoso es­fôrço, para haverem de praticar, como é justo, a santa doutrina do evangelho : de fazer bem aos que lhe querem mal, suplantando o mal com o mesmo bém.

§ m

Da presença de Deus

Comparava o nosso santo o exercício da divina presença ao uso do pão cotidiano; porque, assim como êste se mistura com tôda a sorte de alimentos, assim também a presença de Deus deve sempre acompanhar a todos os nossos exercícios temporais.

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Ah! (dizia o glorioso Sales) _esta é à ocupação sua­víssima de todos os cortesãos celestes; ou antes o contínuo exercício da sua perene bem-aventurança, como atesta o Salvador no evangelho de S. Mateus : Vêm os anjos sem interrupção a face de meu Pai, que está no Céu.

E se a Rainha de Sabá reputava por felicíssimos aos domésticos de Salomão, que estavam sempre à sua vista, e ouviam as palavras da sua bôca, quanto serão mais venturosos, os que atendem . continuamente à presença daquêle Senhor, que os Anjos desejam vêr, depois de o ver sem cessar. O certo é (concluía o nosso Santo) que a maior parte dos defeitos, que cometem as pessoas pias, é por falta do exercício da presença de Deus.

§ IV

Do amor próprio e do amor de nos mesmos

Há; grande ·diferença entre êstes dois amores ; porque ainda que todo o amor próprio é amor de nós mesmos, nem todo o amor de nós mesmos é amor próprio.

o amor próprio sempre é máu; e não -há pecado grande, nem pequeno, sem anior próprio ; isto é, sem uma resolução voluntária, tomada pela creatura contra a vontade do Creador.

Mas o amor de nós mesmos não é desta natureza porque sendo êle ordenado pelo Céu, não pode deixar de ser bom, e por isso nos devemos amar em Deus, e como Deus quer, procurando merecer e conseguir os bens da natureza, da graça e da glória.

Assim pois êste amor de nós mesmos pode ser natu­ral, ou sobrenatural ; naturol, quando se dirige aos bens temporais, e regulado em · forma, que não desagrade· a Deus. E sobrenatural, quando diz respeito aos bens da, graça e da glória; sendo assim tanto mais precioso que o outro amor, quanto os bens da graça e da glória exce­dem incomparàvelmente aos da natureza.

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Ora, o amor sobrenatural de nós mesmos pode pro­ceder ou da esperança ou da caridade. O amor da espe­rança não é tão puro; porque leva seu interêsse, amando nós a Deus, como a nosso sumo bem e não como a bem sumo em si mesmo, e por si mesmo. Ji:ste é o amor de caridade : amor disinteressado e perfeití�simo, com o qual amamos a Deus só por Ji:le ser quem é, e a nós outros nêle e por Ji:le, referindo tudo à sua glória.

Donde se segue, que o amor legítimo de nós mesmos, ainda que nem sempre se refere a Deus, sempre contudo se lhe pode referir. E o amor santo da caridade, como puro e isento de todo o interêsse� tanto virtual, como atualmente, sempre se refere e vai dirigido a Deus.

O Divino Salvador, que nos remiu pelo seu sangue, desej a infinitamente que nós o amemos, para que seja­mos eternamente venturosos. E desej a que nos salvemos, para o amarmos sem fim ; dirigindo-se por êste modo o seu amor à nossa salvação, e a nossa salvação ao seu amor. Deve-se pois estender a nossa salvação no seu total, tanto para a glória, que Deus nos dará no Céu, como para aquela, que nós lhe daremos, na proporção da mesma glória.

E nisto se enganam os que falam da salvação eterna, pensando só no seu interêsse ; isto é, na glória que Deus lhes dará no céu, e não naquela que êles darão a Deus; pois esta é o principal, e o último fim pelo qual fez Deus o paraiso ; pois só glorifica a Deus no Céu aquêle a quem Deus glorifica, para ser nêle glorificado.

§ v

Da medida no_ amor de Deus

A medida dêste amor, é não a ter; porque sendo infinito o seu objeto, não pode ter liinites. Por isso o glorioso Sales chamava relaxados e preguiçosos aquêles

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espíritos, que pretendiam encerrar êste amor em uns tan­tos deveres, fora dos quais não queriam estender-se ; como se houvessem de enclausurar o espírito de Deus nas suas mãos.

Donde bem se deduz, que na prática dêste amor, quem não ganha, perde; quem não sobe, desce ; e se na dificuldade não fica vencedor, é vencido. Nós vivemos entre batalhas, que nos apresentam vár�os inimigos, onde se não resistimos, perecemos. Porém semp-re que amamos, resistimos; e se sempre resistimos, .triunfamos. Por isso, pois, o não adiantar, é retroceder; por que navegando nós em um mar tempestuoso, se não remamos com tôdas as fôrças, seremos levados pela corrente das águas.

§ VI

Da mortificação e oração

Dizia o glorioso Sales que a mortificação sem oração era um corpo sem alma; e a oração sem mortificação era uma alma sem corpo. Por isso êle não queria, que estas duas virtudes estivessem separadas; senão que, como Marta e Maria, se conservassem de bom acôrdo no der­viço do Senhor. E comparando-as também aos dois pratos da balança (dos quais, quando um se abate, o outro se levanta) dizia, quê para elevar o espírito na oração, s·e deve abater o corpo pela mortificação ; por­que de outro modo a carne oprimirá o espírito e lhe ser­virá de impedimento para se não elevar a Deus.

E dizia mais que o lírio e a rosa da oração e contem­plação só se conservam e se nutrem bem entre os espi­nhos das mortificações. Nem se vai ao monte do incenso, símbolo da oração, senão pelo monte da mirra, figura da. mortificação. E que assim como o mesmo incenso exala o seu perfume só depois de queimado ; assim tam­bém a oração, para subir ao Céu com boa fragrância, deve sair de uma pessôa mortificada.

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§ VII

Sôbre o ponto essencial da caridade

O nosso bem-aventurado fazia consistir o ponto prin­cipal do nosso amor para com Deus, na preferência que damos à sua vontade sôbre tôdas as l:Oisas e consequente­mente afirmava, que a mais evidente prova que podemos ter de estarmos em graça de Deus, é não termos vontade alguma contrária à do mesmo Senhor e dar-lhe- sempre a preferência em tôdas e sôbre tôdas as coisas, de modo que no trono do nosso coração Só :mle haja de r�inar.

E' bem verdade que se podem e devem amar muitas coisas com Deus; pois :mie nos manda, que nos amemos a nós e ao próximo como a nós mesmos. Porém amar al- · guma coisa mais do que a Deus, ou com igualdade a Deus, é de todo incompatível com a pura carida.de; a qual faz, que em um coração possuido .por ela tôdas as cria­turas à vista do seu Criador desapareçam, como as estrêlas diante do sol.

§ VIII

Diversas qualidades de obras

Dis�inguem os teólogos quatro sortes de obras com o nome de vivas, de mortas, de mortificadas e vivificadas.

As obras vivas são as que têm o princípio da vida eterna, que é a divina graça, como feitas na intenção, ou pelo motivo da. verdadeira caridade.

As obras mortas são aquelas, que, faltas daquêle prin­cípio, são feitas em tempo de pecado mortal, com que não têm fundamento, nem raíz na caridade. E suposto que sejam boas em si, por uma bondade moral, contudo, como diz S. Gregório, o ramo da boa obra não pode pro­duzir diante de Deus algum bom fruto, sem estar unido à raíz da caridade.

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As obras mortificadas são as que se fizeram em estado <l.e graça, e tiveram a raíz na caridade ; mas sobrevindo o pecado mortal, as despojou de todo o vigor, _deixando-as .como planta no inverno, as quais se êle sempre durasse, de todo morreriam. Mas o sol da primavera, dando novo calor à terra, lhe faz produzir flôres, folhas, e frutos e por uma espécie da 'ressurreição lhes renova a primeira vida.

E estas são as obras, que se deno�inam vivijicadas; isto é, renovadas, e reevocadas da morte à vida. O que sucede, quando ao sair do pecado mortal, se entra na vida da graça. Porque então tôdas as obras santas, que -estavam mortificadas pela culpa mortal, tornam a viver e recobram o primeiro vigor.

·

§ IX

Sua gravidade e sua doçura

O nosso bem-aventurado sabia acompanhar com tão suave doçura aquêle resplandor de maj estade e de honra qqe a divina graça derramára no seu rosto, que parecia outro Moisés, encobrindo o seu rosto luminoso, ;para tra­tar familiarmente com seus irmãos. Porque �endo êle tantos atrativos para se fazer amar, tinha no mesmo tempo tanta gravidade e modéstia, que todos o tratavam com a mais profunda veneração, e tôda cheia de amor, -com que em tudo e a todo o custo procuravam merecer o .seu agrado.

·

Eu confesso ingenuamente (escreve ó seu discípulo) .que era tal o meu desejo de fazer alguma coisa que lhe .agradasse e merecesse a sua aprovação, que quando assim o conseguia, me sobrevinha um prazer extraordinário. E .se o Santo me não houvesse ensinado a referir tudo isto a Deus, como o último fim de todo o bem, muitas das minhas ações ficariam no meio do seu caminho.

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E algumas pessôas de alta qualidade, cuja conver­sação ordinária era com os maiores príncipes e princezas, protestavam que sempre se compunham com mais aten­ção, quando estavam diante do glorioso Sales do que fa­Zi!Uil na presença daquêles deuses da terra ; porque divi­savam no seu rosto uma gravidade tal, e uma como es­pécie de resplendor que os obrigava ao maior respeito, e à mais profunda veneração.

E quanto à sua doçura {que só ignoravam os que nunca o tinham visto) parecia nêle esta virtude tão presente que era mais a mesma doçura revestida de uma forma humana, do que um homem, que ali falava. E isto lhe dava tal ascendente s�bre os coraçõ�s dos outros, que era raro o que lhe não cedia. E como êle condescendia a cada qual, fazendo-se todo a todos; assim também se acomodavam todos ao seu desejo, que era só de os ver entrar no serviço de Deus e no c�minho da salvação.

§ X

O amor é o que dá valor às obras

Seguia o nosso santo invariàvelmente esta regra, que o àmor de Deus é a medida que pllsa nossas obras; e que quanto mais se acha dêle em nossas obras, tanto se fazem elas mais estimaveis. Porquanto, as nossas obras não são como as peças de ouro, de que as mais pesadas são as mais preciosas; sendo antes como a chama, da qual a mais pura e a mais remota da matéria.

Alguns há, que medem a bondade e excelência das obras de virtude só pela sua bondade natural, ou pela dificuldade que nelas se encontra, amando sômente as virtudes de pompa e resplendor; por não advertirem, que em matéria de virtudes cristãs infusas, deve-se tomar a · medida d a graça e não da natureza.

E' bem verdade, que enquanto a glória denominada acidental, a dignidade, ou dificuldade da obra boa, feita

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em graça, é de alguma consideração : porém quanto à glória essencial tôda a medida deve tomar-se da caridade.

Censurando-se, pois, por alguns mundanos ao glo­rioso Sales a Congregação das Religiosas, ou o instituto que êle lhes prescrevêra, pelo reputarem muito suave, e não menos cômodo; êle só re�ndeu, que o prêço é dado ao amor; e assim, quem mais amar, será mais amado, e quem fôr mais amado, sel'á mais glorificado.

O que é bem conforme à doutrina do Espírito Santo, ditada por S. Paulo ; o qual não dava algum valor, nem à fé, nem à esmola, nem ainda ao martirio de fôgo, sem a união da caridade, por ser ela o laço da perfeição, sem o qual tôdas as virtudes são imperfeitas e incapazes por si mesmas de nos introduzirem de�ois no celestial Paraíso.

§ XI

Paciência notável do glorioso santo

Vindo certo dia uma pessôa. de quaüdade pedir-lhe um benefício para um eclesiástico, que êle protegia, res­pondeu-lhe o bem-aventurado que :para a colação dos beneficios êle voluntàriamente havia ligado as mãos, remetendo-os todos a concurso ; no qual, ainda que era o presidente, não tinha mais do que um voto. E nesses termos lhe prometia atender à sua recomendação, apre­sentando-se o seu afilhado entre ·os outros ao exame.

Ouvindo isto aquêle fidalgo, que era de humor so­berbo e demasiadamente colérico, rompeu logo em várias ameaças e palavras descompostas contra o virtuoso pre­lado. O qual, como insensível a tão escandalosos dicté­rios, soube logo conservar-se firme no mais profundo si­lêncio. E dizendo depois ao fidalgo algumas palavras brandas para lhe aplacar a ira, êle respondia sempre

·que

não gostava de papinhas ; e que aquêles seus discursos eram só bons para acalentar as crianças.

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Passou logo o santo a propor ao mesmo fidalgo, que ao menos houvesse por bem, que êle examinasse em par­tkular ao pretendente. Porém êste, que era fraco licen­ciado, não quis aceitar o partido. Disse então o nosso Santo ao injusto patrono : E quereis vós que en com olhos fechdos �he entregue as almas, que me estão come­tidas? Porém nada disto bastou para a,placar aquêle so­berbo; antes se pôs a gritar mais alto, e a vomitar injú­rias, indignas de escrever-se, contra o nosso bem-aven­turado.

Perguntou-lhe então um Eclesiástico, que ali se achou, depois que se retirou aquêle insolente, como pôde êle sofrer tôdas aquelas indignidades com tanto sossêgo? Porque não era êle (respondeu o santo) o que falava; era a sua cólera, que o pervertia. E quanto a êle, t6ra disto, 6 um dos meus melhores amigos; e vós vereis que ainda o meu silêncio me dará maior lugar no seu agrado.

Com efeito, assim sucedeu; porquanto aquêle fidalgo entrando em si, e refletindo nos termos indiscretos, com que tratára indignissimamente ao santo prelado, o foi logo procurar para pedir-lhe perdão com as lágrimas nos olhos e com tal desprazer, que custou muito ao santo o poder consolá-lo ; e veio a ser depois muito mais seu amigo.

§ XII

Diferença entre o pecado venial e a imperfeição

Dizia o nosso bem-aventurado a êste respeito, que o pecado venial procedia sempre da vontade livre e reso­luta; sem cujo consentimento não havia pecado. E que a imperfeição, propriamente falando era só um movimen­to defeituoso, que previne o pleno consenso da mesma vontade.

Por exemplo : Rir com demasia, sem modéstia e com prazer deliberado (ainda que sem grande ate1,1ção para

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o exemplo injusto, que recebem os circunstantes) é culpa venial. Mas o rir sem reflexão ainda que com excesso, por causa de um repentino e veemente desejo, é sàmente uma imperfeição.

Uma ira leve mas deliberada e que mostra algum principio de aversão, é pecado venial. Porém quando so­brevém de repente e sem deliberação, como um relâm­-pago, que se extingue quase no mesmo instante em que aparece, é não mais do que uma imperfeição; etc.

Ora tais imperfeições não são matéria suficiente para a absolvição, ainda que o pecado venial o seja, se bem que não necessária; como disse o nosso Santo a uma alma boa, que achou na confissão só com semelhantes ·imper­feições, reputadas por êle como pecados veniais. O que serviu de motivo para lhe tira;r êste engano, ensinando­lhe a diferença .que há entre uma e outra cousa.

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UNDÉCIMA PARTE

§ I

Converte o glorioso Sales a um eclesiástico escandaloso; e confessa-se depois a êle

Visitando o nosso santo o seu bispado, denunciaram­lhe um eclesiástico de vida escandalosa, cujas desordens não correspondiam à sua ciência .mais que ordinária. Fa­zendo-o pois chamar o santo bispo, êle se expôs na sua presença com tão livre desembaraço, como se de todo. esti­vera inocente, protestando ao mesmo passo, que tôdas as culpas que lhe

·impunham eram calunias formadas pelos

seus inimigos. O santo o recebeu com todo o agrado, cheio da sua

ordinária benignidade. Porém vendo a injusta constân­cia, com que o réu se defendia, abaixou os olhos, como envergonhado ; o que só foi bastante para comover o co­ração daquêle impenitente. E querendo êste prevenir a face do seu Juiz por meio da confissão, pediu ao santo bispo, que tivesse a bondade de o ouvir no tribunal da penitência. O que sendo-lhe prontamente concedido, saiu logo daquela saudavel piscina, revestido já com a preciosa túnica da graça, qU:e introduz os pecadores peni­tentes ao magnifico banquete da eterna glória.

Disse-lhe então o venturoso eclesiástico : Ah! Mon­senhor, e que pensais VÓS agora do 1'fl.ICIJor pecador da terra? Que o misericordioso Deus (lhe respondeu o santo) derramou sôbre vós a sua grande misericórdia, com que pareceis aos meus olhos todo brilhante com os resplen­dores da sua gra,ça.

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Pois vós, meu senhor, (replicou o penitente) não vos lembrais do que eu fui? Não (respondeu o bem-aventu­rado) nem eu posso guardar 711q minha memória o que Deus tem pôsto em esquecimento. E de outra sorte eu imitaria aquêle jariseu, que reputava a Madalena por aquela que antes tôra, e não pela que já era, quando regava com .suas lágrimas os venerandos pés do Salvador.

E para saberdes com evidênci(L o juizo que eu formo, de q·ue recebestes na alma U'1114 copiosa torrente de graças, rogo-vos com instância, que me participeis uma parte dando-me a vossa bênção . ·. . E dizendo isto, se prostrou a seus pés, de que o outro ficou atônito e con­fuso. Porém o santo na mesma postura lhe disse ainda : Aqui não há tingimento; e portanto vos rogo, que me jaçais o mesmo ofício que agora recebestes de. mim, O'Uvindo-me e1n confissão.

Ainda o sacerdote repugnava; mas o santo prelado o obrigou, e confessando-o com efeito, recebeu uma edifi-:­cação inex,plicavel. E o mesmo santo para melhor lhe mostrar a boa estimação em que o tinha, ainda se con­fessou com êle duas ou três vêzes em públlco; dei­xando para decidir, qual era mais para admirar, ou � humildade profunda do santo bispo, ou a conversão mila­grosa do venturoso eclesiástico?

§ li

Da pobreza contente

Repetindo o glorioso Sales aquela sentença do filósofo Sêneca : "A pobreza . é um grande bem mas pouco conhe­cido", costumava dizer : Um eclesiástico, que tendo o necessário para comer e vestir, não está satisfeito, não merece o nome de eclesiástico, nem que Deus seja a parte de sua herança.

O meu bispado acrescentava o santo, na verdade . é tenuíssimo; mas pÔde-me servir, como o·utro mais opu-

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lento; pois qualquer dêles me podem levar ao paratso e também ao inferno, se fizer dêles máu uso.

· o certo é que, tendo eu o que basta para o que me é preciso, todo o restante e supérfluo. Todos os que têm mais, não é para êles mas para, os muitos criados e des­pesas inúteis; com que talvez no fim se acham lastimosa­mente obrigados à satisfação de grossas divida,s.

Deve-se ter por grande riqueza o nãO. dever coisa alguma. E assim como é bom preservativo contra a ambi­ção o considerar sàmente os que ficam abaixo de nós; também é remédio contra a avareza olhar sàmente para os que são mais pobres.

Nós outros, de modo ordinário, não somos pobres em nós mesmos, senão comparados com outros. Pois se nós não quiséssemos, senão o que é necessário à natureza, nunca seríamos . pobres; assim como. querendo viver se­gundo a opinião do mundo ninguém chega, a ser rico.

Com efeito, para enriquecer em pouco tempo e com pouco trabalho não é preciso amontoar bens, mas dimi­nuir a cobiça; imitando aos escultores, que fazem as suas obras, extraindo ; e não aos pintores, que as formam ajun­tando. E por outra parte, é sem dúvida, que t:J.Unca terá quanto deseja aquêle a quem o que basta não basta.

Por isso o glorioso Sales não levava a bem o queixar­se de pobreza um eclesiástico, que ao receber as ordens tinha para seu sustento um suficiente patrimônio. Pois se êle produziu um falso título, ou recebeu um benefício insuficiente, o seu dolo, ou a sua imprudência foi a causa, e não deve queixar-se da pobreza.

Portanto, pojs, lembre-se do que êle mesmo disse e protestou na face da Igreja triufante e militante, ao receber a prima tonsura : que Deus era a parte da sua herança. E quem tem da sua parte a Deus, e a sua Providência, que lhe póde faltar? E quando não, ou não sendo assim, que é o que pode bastar, a quem Deus não basta?

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§ 111

Do justo aprêço do próprio estado

Uma das felicidades da presente vida é estar cad� um contente na situação em que se acha ; pois quem deseja outra mais comoda, não pode viver com descanso ; nem jamais se trata bem o hóspede que se quer despedir.

Mas ainda assim, deve-se amar a própria condição com prudente medida, removendo tôda a cegueira. Por­que a estimação excesiva da situação oportuna, em que cada qual se considera, sempre leva alguma sorte cí.e vaidade, que facilmente se descobre nos louvores frequen­tes e excessivos, que se proferem em seu abono; e muito mais ainda quando se desprezam os outros estados, para se exaltar o próprio. .

Eis aqui pois, como o nosso bem-aventuardo ensinava as suas religiosas a êste respeito. - As filhas da Visita­ção, lhes dizia, falarão sempre da sua congregação com muita humt1dade, � lhe preferirão tôda,s a,s outras, quanto à honra e estimação, aindq que não quanto ao amor, que lhe devem ter confessando francamente e dizendo: Tõdas as outras são melhores, e em si mais excelentes, porém não para nós mesmas, que temos aquí a nossa morada.

A êste respeito louvava muito .o nosso bem-aventu­rado ao célebre bispo de Saluces, seu amigo particular e prelado de santa memória; que havendo sido sacerdote do Oratório de Roma, ou rara vez fJ:I.lava da sua con­gregação, ou se falava, era com têrmos muito humildes, ainda que em seu coração a honrava e estimava tanto, que a deixou com muita,s lágrimas, quando por ordem do Papa se viu na precisão d� abraçar a dignidade epiSco­pal. Porém, quando falava das outras ordens, o 'rama sempre com elogios grandes.

Esta é a prática dos santos; para os quais tudo é grand!!, fóra dêles mesmos e do que lhes pertence; bem longe do procedimentO daquêles, que não sabem louvar

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o celibato, sem censurar o matrimônio; nem a vida co­mum, sem diminuir a estimação da vida particular, etc.

§ IV

Da injustiça dos homens a respeito da salvação

Os filhos dos homens, diz o profeta-rei, são mentirosos nas suas balanÇas; porque a vaidade dos seus sentidos os engana. A injustiça (para tirar o temor de Deus diante dos seus olhos) diz em si mesma por bôca dos libertinos, que Deus por sua bondade suma não olha, nem se o'fende pelas culpas, dos homens; ponderando, que cercados d� misérias, de paixões e concupiscências, e ao mesmo passo tentados pelo demônio, naturalmente se precipitam no pecado.

Pelo contrário os escrupulosos, caminhando por outro extremo, imaginam um Deus que, armado de raios, só gosta de castigos. Tudo lhes faz sombra; e não pensam que a misericórdia de Deus, quanto aos seus efeitos, é superior à sua justiça, que ela excede a tôdas as suas obras; e que quase não pode conter-se, ainda nas suas maiores iras.

Suposta, pois, esta desigualdade do espírito humano, o nosso bem-aventurado tomava daqui algumas vêzes ocasião para formar as suas exortações públicas e par­ticulares ; dizendo a êste propósito, que todos aquêles que se obstinavam no mal até o deplorável extremo de não terem cuidado algum da sua própria sálvaçã� ou faziam muito, ou muito pouco.

Muito, se êles acreditavam que havia um inferno. Porque em tal'caso (ao menos pelo seu amor próprio) não �eviam querer aumentar as suas penas, carregan­do-se de novas dívidas contra a justiça de Deus; visto que· �inda 'os mais ímpios não fazem na república todo o mal que lhes inspira a sua malignidade, pelo temor dos

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castigos temporais. E pela outra parte, fazem muito pouco, se êles têm abandonado tôda a crença das penas da outra vida, de modo que não cheguem a tem-er <J que lhes propõe a fé contra todo o seu mal.

E a respeito daqueles que ainda têm algum cuidado da sua salvação, protestando que se não querem perder, certamente (dizia o nosso santo) uma grande parte dêles, ou fazem muitp, ou quase nada. Muito, se êles não obser­vam os seus passos, imaginando que não . precisam ser tão pontuais nem tão exatos para conseguir a vida eter­na, suposta a divina misericórdia. Ou fazem quase nada pelo pouco bem que fazem; e ainda êsse pouco tão im­perfeitamente e com tanta negligência, quanta é a sua contínua tibieza. E não há muitos dêstes, ainda entre aquêles que fazem profissão de praticar uma vida devota?

§ v

Das pre�ações eloquentes

QUando se falava dos pregadores que faziam mara­vilhas, dizia o nosso bem-aventurado : Quantas gentes se converteram pelos seus sermões? Isto só é o que se deve aplaudir, e tanto mais admirar ; quanto a conversão das almas é uma opera9ão que excede a ressurreição dos mortos ; s�ndo uma passagem milagrosa da morte do pe­cado à vida da graça.

E respondendo.-se que ·por aquelas maravilhas se en­tendia a eloquência, a· ciência, a memória, a beleza das ações, a doçura e clareza da voz o o o Essas qualidades, re­plicava o santo, são próprias de um orador profano ; porém não daqueles em que o Divino· Espírito derrama a ciência da salvação e dos santos.

Assim pois, se, ao sair da pregação, virdes alguns, que ferindo os peitos, exclamam dizendo : Verdadeira­mente "pela bôca daquêle homem fala Deus; êle prega a Jesus Cristo crucificado, e não a si mesmo; êle nos ensina

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a detestarmos os nossos pecados e, retrocenermos dos nossos máus caminhos; oh ! quanto a penitência é neces­sária para merecer a salvação eterna! Como é bela a virtude; amável o pêso da cruz, leve o jugo da lt�i, mons­truoso e aborrecivel o pecado ! E, em suma, ainda sem tantos discursos, se os ouvintes mostram o fruto das pre­gações pela pronta emenda, e total reforma das suas vidas, julga então por muito bom e louvável o pregador não para glória sua, mas de Deus, que o enviou e 'falou por sua bôca depois de o encher do seu espírito.

Um célebre pregador, referia o santo a êste propósito, chegando a Annecy, lhe pediu licença ,para pregar um sermão na sua catedral, o que facilmente lhe concedeu. E o famoso pregador o fez com tão altos e tão �ublimes conceitos, ,têrmos tão pomposos, e tão magnífica eloquên­cia, que admirou a todos os bons montanheses, que ali concorreram em grande número.

Acabada a pregação, tudo eram exclamações de assombro, louvor e aplauso, que exaltavam o pregador até as estrêlas. Mas o nosso bem-aventurado, que tam­bém assistira ao sermão e reconhecia quanto era ·êle su­perior à capacidade daquêles ouvintes, perguntou depois a alguns que particular doutrina haviam conservado, e que utilidade virtuosa haviam deduzido? Ao que não souberam responder coisa alguma.

Só um dêles mais cândido e de melhor juizo respon­deu dêste modo : Se eu percebesse, e compreendesse tudo o que ouvi naquêle sermão, êle nada teria que não fôsse vulgar. A nossa ignorância é a que nos excitou aquelas admirações; porque o sábio orador disporreu sôbre coisas tão altas e com têrmos tão sublimes, que totalmente excedem a nossa grosseira capacidade. E isso é o que nos obriga a fazer maior aprêço da grandeza dos mis­térios da nossa santa religião.

Ouvindo isto o nosso santo, louvou a probidade in­gênua daquêle bom homem ; achando com efeit� que êle tirára da pregação algum fruto. Mas concluiu dizendo

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que se o pregador não tem mais do que folhas de lingua­gem e belas idéias, está .no perigo de ser pôsto em o número daquelas árvores infrutuOsas, ameaçadas no evangelho com o machado, e com o fogo. E o Senhor disse a seus Apóstolos : Eu vos tenho escolhido para irdes, frutificardes, de modo que o vosso fruto permaneça.

§ VI

Do amor e respeito ·para com a palavra de Deus

Como o apetite é um dos melhores sinais da saúde corporal, também o gôsto e désejo espiritual da palavra de Deus dá indícios da bondade interna, ou saúde espi­ritual. Porque o tratar as coisas e palavras santas sem-pre é agradável aos justos. .

Com efeito, um grande sinal de p'redestinação em qualquer alma é o seu ambr para com a palavra de Deus. denotado por aquela fome e sêde de justiça, que é uma das oito bem'-aventuranças. Porque todo aquêle, que trabalha em se justificar mais e mais, gosta de ouvír aos que lhe mostram os meios de fazer progressos nos cami­nhos da justiça. E isto é o que executam todos os bons pregadores que bem cumprem o seu ministério.

Mas entre os que gostam iie ouvir a divina palavra anda muito introduzido o pernicioso defeito da acepção de pessôas : como se êste pão saudavel e esta água da sabedoria celeste não fôssem tão úteis à alma levados por um corvo, ou ministrados por um anjo; isto é como dizer. por um bom, ou máu pregador.

A causa, pois, donde proced� o agradarem mais uns pregadores do que outros, 'não é o defeito, ou perfeição dos mesmos, é o juizo dos homens, cujo tribunal nestas matérias ordinaria,n:1ente é injusto. Porquanto, das três. partes do orador (quais são ensinar, mover e deleitar) o mundo, submergido no prazer, estima e procura sempre a terceira, ainda que menos importante e muito menos necessária.

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A maior parte dos ouvintes seguem aquêle que dizia a um profeta: An'unciai-nos coisas que nos agradem; e daquele rei, que se queixava doutro profeta por lhe vati­cinar só coisas fúnebres. Querem somente que se lhes fale de perdão e misericórdia, e não gostam de que lhes censurem os pecados, nem que os ameacem com os eter­nos castigos. Em suma todos os que tratam simplesmente de os admoestar e instruir são desprezados; e consequen­temente só os que se aplicam a recreá-los com artifícios retóricos são procurados e aplaudidos.

O nosso santo alegava a êste propósito um belo exemplo.

Quando eu, di2ja êle, escrevo a uma pessôa que me ama, em máu papel, e por consequência com má letra, ela. sem embargo disto, agradece a minha correspondên­cia com tanto afeto, como quandQ lhe escrevo em papel mais fino e com letra mais bem formada. E porque é isto, s_enão porquf: ela não atende à bondade do papel, nem à formosura da letra, senão a· mim somente, que por aquêle modo lhe falo?

Isto é pois o que se deve observar a respeito da pala­vra de Deus. Não se deve olhar para as qualidades de quem a profere, e no-la intima. Baste-nos saber, que De,us se serve daquêle pregador para nos ensinar. E, vendo nós outros que Deus Zhe concede a honra de falar pela sua bôca, como deimremos. de venerar a s·ua dou­trina e resptttar a sua pessôa?

§ VII

Da prosperidade ou boa fortuna

A palavra fortuna desagradava multo ao glorioso Sales julgando-a indigna de que . um cristão a tomasse na bôca. E por isso, ouvindo êle falar "fazer fortuna", têrmos frequentemente .usados, costumava diz�r: Eu me admiro de que êste ídolo da gentilidade ficasse ainda em

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pé, depois de arruinados os outros pelo cristiJanismo! Deus preserve de ser filhos da, fortuna, os que são da sua di­vina providencia; na qual somente devem colocar tôda a sua esperança.

Além de que, o puro amor de Deus é mais fácil de praticar-se nos · tempos adversos, do que na vida prósper·a. Porque a tribulação, fião tendo de si coisa amável mais do que a mão do Deus que a envia, dá melhor meio para irmos por ela imediatamente até à vontade do mesmo Senhor e virmos ao seu beneplácito, do que andando na prosperidade ; a qual por si mesm"a tem bastantes atra­tivos para lisonjear os nossos sentidos; e por êles (como outra Dalila) adormecer a nossa razão, de sorte que nos faça amar insen�velmente a mesma prosperidade, que Deus nos concede sem atendermos ao reconhecimento que devemos ao benigno Senhor, que assim nos quis favorecer.

E, dado ainda que sirva aquela prosperidade para glorificar a Deus referindo-a à sua ho!lra, sempre se mis­tura algum interêsse próprio com o do benfeitor supremo. que faz o nosso amor menos puro ou menos perfeito ; se­gundo a judiciosa sentença da águia dos doutores S. Agostinho: Menos vos ama, Senhor, do que deve, aquêle que ama alguma coisa convosco, se a não ama por amor de Vós.

§ VIII

Segurança do santo entre os perigos.

A insensibilidade atribuída aos filósofos estoicos é 11ma verdadeira quimera; porque a todo o homem nesta "ida mortal é naturalmente impossível não padecer as lmpressões molestas que produzem as paixões humanas. 1!:, portanto, o alto ponto da filosofia prática, é saber-lhes resistir, e reduzi-Ias ao império da razão.

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E' bem verdade haver um certo natural temor, que por si mesmo é indiferente, e se pode achar em pessõas de grande virtude e santidade. Como sabemos do angé­lico doutor S. Tomaz, não menos ilustre por sua piedade, qué por sua doutrina ; o qual temia coni o maior excesso os relâmpagos, trovões e raios. E de Júlio Cesar também se diz, ·que mostrando-se . mais que homem nos perigos da guerra, perdida não só todo o valor senão ainda todo o acõrdo nas oca.siões de tempestade.

Contudo, há e tem havido umas almas tão firmes e com tal confiança em Deus; que, parecidas com .o monte Sião (cuja parte mais alta está sempre superior as nuvens e tôdas as tempestades) , se conservam sempre numa serena tranquilidade, ainda no meio das maiores tor­mentas; de que temos um claro exemplo no nosso mesmo santo.

Ontem de tarde, dizia êle, escrevendo a um seu amigo, _passando nós pelos montes Alpes, houve muitos reldm­pagos e trovões formidáveis; de que atemorizadas CJ8 gentes da nossa comitiva não cessavam de benzer-se e invocar o Santíssimo Nome de Jesus. Mas ainda que o estrondo era tão grande, .como se caíssem e se despeda­çassem aquêles montes, eu no meu interior gozava de um inteiro sossego, sem padecer a menor alteração. Tanto é certo, de modo ordinário, que uma consciência pura sempre se conserva numa doce alegria.

§ IX

Do purgatório

O pensamento do purgatõrio, �egundo a oprmao do glorioso Sales, deve causar mais consolação do que temor. A maior parte, dizia o santo, dos que temem o Purgatório, é pelo seu interêsse e pelo amor que tem a si mesmos, mais do que pelo interêsse e gloria cie Deus. E isto p'ro-

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vém de que os pregadores de modo ordinário representam as penas daquele lugar e não a deliciosa paz, que ali se goza.

E' bem verdade, que os tormentos daquêle cárcere são tão grandes, que as mais dolorosas penas desta vida não lhe podem ser comparadas. Mas também é certo, que as satisfações internas, que ali se gozam, são tais e tantas, que não há prazer, nem prosperidade na presente vida, que lhe possa ter semelhança.

Primeiramente, as almas ali se acham em continua união com Deus. Elas têm a sua vontade transformada por tal modo na do mesmo Senhor, que só podem desejar o que êle quer. E tanto assim, que ainda que se lhes abrisse o paraíso, não quereriam entrar nêle, sem pri­meiro se purificarem no purgatório.

Elas ali são impecáveis; e por isso não podem ter o mais leve movimento de impaciência, nem a menor som­bra de imperfeição. Elas amam a Deus mais do que a si mesmas, com um amor puro e desinteressado. Os santos anjos as consolam e lhes dão tôda a certeza da sua sal­vação eterna.

E suposto que alí padecem uma como espécie de in­ferno, quanto ao rigor do tormento, gozam também como u� antecipado paraíso, quanto a. doçura que derrama a caridade em seus corações. Estado felicíssimo, mais de­sejável, que temível; sendo as suas chamas tôdas envol­tas em amor e caridade.

Mas com ser isto assim, j ustamente se recomenda a devota piedade para com as almas do purgatório; porque apesar de tão preciosas circunstâncias, é sumamente do­loroso, e não menos digno da nossa compaixão, o estado daquelas almas ; e também porque as suas penas retar­dam a. glória que elas darãq a Deus no céu. E êstes dois principais motivos devem sempre obrigar-nos a pro­curar-lhes sem descuido o seu pronto livramento com as nossas orações, nossos j ejuns, nossas esmolas, e tôdas as

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sortes de obras boas, e mais que tudo, com o santo sa­crifício da missa.

§ X

Prática virtuosa em ocasião de calúnias

Perguntando-se ao nosso santo se devia rebater-se a calunia com as armas da verdade respondeu, que em semelhantes ocasiões não só se podia e devia praticar a verdade, senão também outras mais virtudes.

Com efeito, a verdade é a primeira, que deve dar testemunho, pelo amor de Deus, e de nós mesmos em Deus; mas testemunho sem alteração, nem empenho, e sem cuidado do sucesso. Porque assim como o Salvador, acusado de ter demônio consigo, respondeu simplesmente : Eu não tenho demônio; assim também caluniados vós outros de algum enorme defeito, _se vós o não haveis co­metido, respondei com sossego: Eu não fiz tal pecado.

Se a acusação continúa, tem lugar a humildade, com que podeis dizer, que maiores culpas tendes feito, ainda que não conhecidas ; que sois miserável ; e que por isso mesmo vos fazeis digno de compaixão : que se Deus não sustivesse a vossa fragilidade, cometeríeis crimes mais enormes, etc.

Se a perseguição prossegue ainda, a melhor oposição é o silêncio imitando ao real profeta que em tais cir­cunstâncias dizia ; Eu me fiz como um homem que não pode ouvir, nem tem bôca para fq.lar. Pois se a réplica serve de azeite para a lâmpada da calu�a, o silêncio é água que extingue.

E se o silêncio é infrutuoso, entra em seu lug�r a paciência, que vos apresenta um .escudo para vossa defesa; e que junta à caridade, vos mete na posse da gloriosa bem-aventurança dos que padecem perseguição pela j us­tiça. E vindo em seu séquito a perseverança, consegue­se felizmente a corôa.

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§ XI

Da desconfiança de nós mesmos

É verdade sem a menor dúvida, que não há quem tenha de si próprio senão malícia e fragilidade. Porque, a respeito do verdadeiro bem sobrenatural não podemos ter por nós mesmos nem um só bom pensamento; porque tôda a nossa sujtciencia vem de Deus, de quem procede todo dom pertetto, como diz S. Tiago.

o nosso bem-aventurado, seguindo a doutrina do seu amado livro CoMBATE ESPIJUTUAL, tinha esta desconfiança por base do edifício da perfeição interior. E dizia que, assim como os volantins não dançam sôbre uma corda, sem usar de contrapeso, para evitarem o precipício; nós outros também na presente vida, em que há tantos des­penhadeiros, devemos andar sempre entre o temor e a esperança; ou com os dois misticos pés da desconfiança de nós mesmos, e da nossa confiança em Deus.

A mesma lembrança das nossas culpas nos deve re­presentar ao vivo a nossa suma fragilidade; persuadin­do-nos com evidência, que só pelo auxilio da divina graça não havemos recaido em nosso primeiro estado onde sem dúvida seria maior a nossa miséria; mostrando a expe­riência, que de modo ordinário as recaidas são mais peri­gosas do que as enfermidades.

Ninguém pois deve confiar-se na sua imaginada vir­tude, nem nos próprios bons hábitos, que pense haver adquirido; _por ser tanta a nossa miséria, fragilidade e fraqueza, que basta um só momento, para de uma vez perder tudo; como basta um quarto de hora para quei­mar-se um grande palácio, que para se fazer e adornar levou o espaço de muitos anos.

Um religioso de S. Pacômio, dizia a êste propósito o glorioso Sales, denominado Sllvano (que era no mundo comediante) havendo-se convertido e feito religioso, pas­sou nada menos de vinte anos uma vida exemplaríssima.

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Julgando, pois, que as suas pa1xoes estavam já de todo amortecidas, pareceu-lhe que poderia praticar alguma galanteria para recrear a seus irmãos. Mas enganou-se ; porque despertando-se a sua paixão antiga, passou pouco a pouco das galanterias a dissoluções tais, que o dester­rariam do mosteiro, se um bom irmão se não oferecesse por fiador da sua emenda, como assim sucedeu; vivendo dali em diante no perene exercício de tôdas as virtu­des até o ponto da sua morte.

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DUODÉCIMA PARTE

§ I

Da mudança de Confessor

Tanto a virtude, como a verdade andam sempre a êste respeito entre dois extremos e ambos repreensíveis, quais vêm a ser, mudar a cada passo de confessor, e abso­lutamente não o deixar. O primeiro, é veleidade e incos­tância ; e o segundo é fraqueza, ou contumácia.

E se agora me perguntais, qual · dêstes extremos é mais digno de censura? Direi, que é o segundo ; por ter muito de temor humano, de apêgo· à creatura e de escra­vidão, inteiramente contrária ao Espírito de Deus, que só. reside onde há santa liberdade.

·

O Santo Concílio Tridentino na sessão vigésima sexta ordenou, que três ou quatro vêzes no ano se dessem às religiosas confessores extraordinários, para lhes tirar a aflição, que talvez lhés poderia nascer da continuação sucessiva de um confessor ordinário.

E assim também quis o nosso bem-aventurado, que as suas religiosas da visitação o tivessem todos os anos na semana das quatro Têmporas. E ainda recomendou apertadamente às superioras, que francamente concedes­sem esta graça às religiosas, que expressamente lha pedissem.

A madre St. Teresa também cuidou muito em dar às suas filhas esta santa e justa liberdade. E o nosso bem­aventurado, escrevendo a uma superiora sôbre esta maté­ria, diz assim :

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Sem uma grande razão, não se deve permitir a varia­ção de confessor; mas também por outra parte não se deve ser invariável a êste respeito: podendo haver causas legítimas que jaçq,m justa esta mudança. E os superiores não SIJ devem ligar as mãos de tal sorte, que nif,o possam jazer esta graça,· quando tor expediente; e sobre tudo, quando a mesma Comunidade fizer tal requerimento.

§ II

Das desculpas

i; verdade que o j usto, como diz o sagrado texto, é o primeiro em acusar-se ; quando reconhecendo os seus de­feitos, claramente os confessa para haver de ser curado com exortações. Donde bem se segue ser mal o excusar­se ; porque tôda a desculpa, de modo ordinário, é pior que a culpa; dando por ela a. entender o culpado, que delinquiu com razão, o que é contra tôda a justiça.

Se os nossos primeiros pais se não desculpassem, Adão pela mulher, -e .esta _pela serpente, em vez de con,.. fess:úem simplesmente a sua culpa com legítimo arre­pendimento, Deus se haveria com êles mais benigno e misericordioso. E por isso o real Prof!'lta dizia : Ponde Senhor uma guarda à minha boca, e não permitais que o meu corar;ão se incline às palavras de malícia, procuran­do escusas aos meus pecados.

Devendo-se pois ser justo e verdadeiro, conservando a retidão da balança num e outro extremo, eis aquí o conselho que dava a êste propósito o nosso bem-aventu­rado : Sêde justos, dizia êle, não excusando, nem acusan­do sem madura 'Consideração a vossa pobre al'TTIJ(L; pois se a excusais sem razão, a tazeis insolente; e se a acusais com ligeireza, e tazeis pusilânime. Portai-vos pois com sinceridade e evitareis todo o perigo.

Em confirmação disto costumava. dizer o santo esta bela sentença : Aquêle que se excusa injustamente e cqm

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artifício, acusa-se expressamente e com verdade. E aquêle que se acusa com h'umildade e simplesmente, do­cemente se excusa e merece o perdão com benignidade.

Porquanto, como di2 S. Ambrósio, há uma confissão que traz contusão, e outra que dá glória. A confissão humilde e sincera é o remédio verdadeiro para o peni­tente arrependido.

§ lll

Alguns avisos sôbre as tentações

Por não sabermos discernir, se a tentação que nos sobrevêm está diante do nosso coração, ou dentro dêle, nos perturbamos e padecemos. Mas como se há. de co­nhecer, perguntareis vós, esta grande àiferença? Eis aqui a .pedra de toque, respondia o santo.

Vêde lá bem, se a tentação vos agradou ou se não foi do vosso agrado ; e sabei, que os pecados não vos podem ser nocivos, enquanto vos desagradam, e muito menos as tentações. Sim ; quando a tentação vos desa­grada, nada tendes que temer ; pois, porque vos desagrada ela, senão porque a não quereis?

- Mas se eu me demoro na tentação (perguntou o discípulo) ou por inadvertência, ou por alguma laxidão em lhe resistir, não haverá aq'uí alguma culpa de crimi­nal complacência?

- O mal da · tentação <re�ndeu o santo) não se mede pela sua duração; podendo ela continuar sem culpa nossa por tôda a nóssa vida. Enquanto ela rws desagra­da, não há culpa; antes por isso mesmo que ela nos desagrada, êste desprazer nos preserva · do seu veneno; e servindo-nos de matéria de virtude, nos 1:ai merecendo a corôa.

E se vós replicais, que sempre temeis o .haver-vos de algum modo agradado, respondo que êsse mesmo .temor é 'um sinal certo de que vos não agradou;· porque nada do

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que agrada se teme. E se vós pudesseis refletir, em que a teniJação era um mal, não vos podia causar prazer.

E no caso. de haver alguma, demora na tentação, deve-se saber que, se a tal demora foi sem advertência, não é de grande importcincia; pois para ser criminal a

deleit.açátJ chamada morosa, é sempre necessário, q'l4,e haja expresso consentimento e voluntária malícia.

Mas como hei de conhecer (instou ainda o discípulo) se tive em tal oaso êsse criminal consentimento?

- Ainda que não é fácil de conhecer (respondeu o santo) , contudo segui sempre esta regra. Quando vós duvidardes ·de haver consentido no mal, tomai essa vossa dúvida por uma e:Dpressa negativa; porque não pode haver 'culpa, sem concurso da vontade; e se êste concurso está duvidoso, e como tal não é conhecido, podeis ficar em sossego.

§ IV

Da vaidade

E' vaidade do entendimento o pensar cada um ser mais do que é. Mas há na vontade outra vaidade mais perigosa : quando se aspira a outra mais alta condição, que aqu�la que se tem, e se julga que a merece; e há dife­rença grande entre uma e outra vaidade.

Aquêle que imagina ser mais do que é, tem uma ale­gre imagem no seu pensamento, e consequentemente uma espécie de tranquilidade. . Mas aquêle que aspira a uma condição mais elevada que a sua, anda numa inquietação continua, reputando só por felizes aos que de algum modo lhe são superiores ; e assim passa a sua vida em multi­plicadas pretenções, sem gozar a posse de um completo descanso.

Pelo contrário o nosso santo, vendo-se colocado nas dignidades da Igreja, apetecia sempre o retiro da soli-

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dão, em lugar dos grandes empregos ; julgando-se indigno dêles, pelo baixo conceito que formava de si próprio.

E perguntando-lhe um amigo seu como se podia con­servar humilde entre tantos aplausos, e louvores respon­deu logo :

Vós me dais grande prazer em me recomendar a santa humildade; pois se o vento que discorre pelos vales murcha as flores e arranca as . árvores, quanto maior dano me poderá causar todo esse vento dos. aplausos, achan­do-me eu estabelecido no alto monte do episcopado?

§ v

Da paz do· coração entre grandes ocupações

E' grande abuso de certas almas (por outra parte pias e boas) imaginarem que se não pode conservar o descanso interior entre embaraços externos. Os navios no meio do mar nunca estão sem movimento ; e contudo, os que ali vão embarcados não perdem o seu descanso e necessário sono, nem a agulha de marear o seu norte.·

Quem não atende mais do que a Deus em tôdas as suas ações, sendo tôda a sua intenção referi-las para glória do mesmo Senhor, em tudo acha descanso, ainda nas agitações mais veementes; porque referindo-as para honra daquêle Senhor que as. permite ou as envia, chega ao fim dos seus intentos, que é honrar a Deus em tôdas �s coisas e por todos os modos.

Eu me admiro (dizia o glorioso Sales) de que alguns, que se dedicaram a Deus em voca-ções muito santas, che­guem a queixe:r-se de os destinarem para· certos empre­_gos, em que há movimentos e distrações contínuas! O certo é, que só o pecado nos separa de Deus ; e · portanto, qualquer ocupação legítima, que não for criminal, não pode produzir aquela fatal separação.

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Sei que no mar do mundo ha contínuos movimentos; mas também a solidão tem seus assaltos; e a fidelidade para com Deus mostra-se melhor nos casos adversos. Tudo enfim é mar tempestuoso ; mas contanto que haja em nós coração reto, intenção boa, valor firme, constância e confiança em Deus, não há perigo em qualquer em­prego.

§ VI

Da mortificação

Não se póde negar que as mortificações interiores são incomparavelmente mais úteis do que as externas, em que póde haver indiscreção, vaidade e hipocrisia. E as que nos vêm da parte de Deus, ou por mão dos homens com permissão ão mesmo Senhor, sempre são preferíveis às que procedem da nossa eleição, e são filhas da nossa vontade.

Mas há muitos, que fazendo eleição de várias morti­ficações, ainda que ásperas em si mesmas, estão prontos para executã-las, pela facilidade que lhes dá a sua pró­pria eleição. E, pelo contrário, se algumas lhes vêm por outra causa, lhes parecem insuportaveis, suposto que em comparação das outras na verdade sejam leves

Por exemplo : Haverá tal, que por sua propria eleição se entregue ao exercício das disciplinas, das ca­deias, dos cilícios e jejum . . . e será no mesmo tempo tão amante da sua reputação, que o menor motejo, ou detra­ção leve, perturbando-lhe à razão e prudente acôrdo, o fará precipitar em deploráveis extremos.

Outro se avançará com ardor às práticas da oração, da paciência, do silêncio e de outras virtudes ; mas en­trará em furiosas impaciências, murmurações e amar­gosas queixas, se decair numa demanda ou receber a,lgum dano na sua fazenda.

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Outro haverá também, que dará liberalmente consi­deraveis esmolas e concorrerá com mão larga para fun­dações magníficas . . . mas tremerá de horror, à vista da menor enfermidade, e ainda por uma leve dor corporal exa!ará contínuos gelllidos.

De maneira que, segundo uns ou outros são mais ou mencis apegados aos bens honoríficos, úteis, ou deleita­veis, portam-se com mais ou menos paciência na ocur­rência dos males contrários àquelas sortes de bens; sem considerar, que Deus os tira ou os concede, como é de seu agrado. E a razão ou sem razão do nosso máu modo de proceder é sem dúvida, por querermos servir a Deus, não conforme a sua vontade, mas segundo a nossa ; ao nosso modo, e não como é justo ; nem como �le quer e deve ser servido. Contente-se pois cada um (porque Deus assim o quer) e sofra as pensões do estado em que se acha, sej a êle mais ou menos aflitivo, mais ou menos penoso ; que com a graça divina tudo pode a humana vontade.

§ VII

Do amor do próximo

Todo amor, ou é mitural, ou sobrenatural. E não sendo dificultoso o introduzir e amor sobrenatural no natural, amando por amor de Deus aquêles, que estima­mos com um natural amor, contudo não é tão fácil o ele­varmos o nosso mesmo amor a um puro e único amor sobrenatural.

É bem verdade, que nada tem de máu amarmos ao nosso próximo pelo bem que há nêle ; e nisto se funda o amor natural, que se chama amizade. Mas se é dificul­toso o depurar o afêto · da amizade natural de todo o interêsse, com que amamos ao nosso amigo, porque nos agrada, ou nos é útil, ainda é mais difícil o querer elevar o amor de amizade sobrenatural, de modo que nada ame­mos nêle senão a Deus e a sua santa vontade.

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:t!:ste é um degráu de amor do próximo, ao qual �obem sàmente os adiantados na virtude. Aqui é que se acha o amor dos inimigos e daquêles que nos são onerosos ; porque amar aos que nos consolam e nos beneficiam, é coisa fácil, e que demanda pouca virtude. Mas amar aos que nos tem ódio e nos são incômodos, só porque Deus assim o quer, é amar ao próximo com um amor verda­deiramente sobrenatural, amando só em Deus e unica­mente por Deus.

§ VIII

Sôbre o temor da morte

Não deve ser a morte reputada por uni mal, nem considerada êomo funesta, quando a precede uma vida boà; porque nada a pode fazer ' formidável, senão as fatais consequências de uma vida perversa.

Mas contra os justos temores que nascem da apreen­são dos juizos divinos, temos o escudo da boa esperança, que nos of.erece a misericórdia de Deus, dando-nos tôda a certeza. de não serem jamais confundidos os que espe­ram na sua bondade.

Assim é, que todos nós havemos cometido muitas culpas; mas qual será o louco que se atreva a dizer que pode ma�s delinquir do que Deus pode perdoar? Ou que pretenda medir a grandeza dos seus crimes com aquela imensa misericórdia que os lança no mar do esqueci­mento, logo que nós os detestamos, e nos arrependemos por seu amor? Só os desesperados, como Caim, poderão dizer serem as suas culpas tais, que absolutamente não merecem perdão. A misericórdia de Deus é infinita, a sua redenção copiosa, e :t!:le sempre está pronto para remir a Israel de tôdas as suas iniquidades.

E' bem verdade, que a vista geral das nossas culpas nôs deve sempre · excitar um contínuo temor e amargura de coração. Porém não havemos de parar aqui; devemos

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passar adiante e chamar em nosso socôrro a fé, a espe­rança, e o amor da divina BÔndade; e logo a nossa amargura se converterá em doce paz ; o nosso temor servil se mudará em casto e filial ; e á desconfiança de nós mesmos, por mais amarga que seja, se poderá bem adoçar pelo açucar da confiança em Deus.

§ IX

Das queixas impacientes

Era opinião do nosso bem-aventurado, que nenhuma queixa se podia formar, por mais j usta que parecesse, sem alguma porção de amor próprio; e que por isso as grandes e longas queixas eram um sinal evidente de ternura própria demasiada, ou de uma laxidão manifesta.

Porque enfim, para que servem as queixas, senão para ferir o ar e mostrar a todos, que não há tolerância da inj úria, antes sempre se conserva um vivo desejo de vingança? A roda mal untada é sempre maiS sonora; e o que tem menos unção de paciência, exalta mais a sua queixa.

E'. bem verdade não ser absolutamente proibido o queixar-se cada qual entre grandes dôres do corpo ou do espírito, e assim também entre grandes e · conside­ráveis perdas; visto que o grande exemplar da paciência, o santo Jó, assim o praticou, sem ofensa da virtude, que o fez tão memoravel e tão .estimado de Déus.

E por outra parte, não deixaria de ser pecado o en­cobrir por tal modo uma dor grave do corpo, pelo motivo de não se queixar, que se não recorresse ao médico, nem aos remédios, com perigo evidente de se expor à morte. Deve-se pois sôbre este ponto observar um justo regula­mento.

De maneira que, sendo alguma vez preciso sofrer em silêncio, outras é necessário exprimir o que se padece. Sôbre o que nos dá o nosso bem-aventurado uma exce-

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lente lição : E' preciso _(diz êle) . evitar uma imperfeição imensivel, mas grandemente prejudicial de que poucas gentes se abstêm; e vem a ser que, censurando nós ao próximo, ou queixando-nos dêle (o que ra,ra vez se devia praticar J não acabamos jamais, antes começamos sem­pre, e repetimos de novo as mesmas r;tueixaB; o que é sinal de um coração ofendido, e que nada tem de ver­dadeira caridade.

E pelo contrário, os corações fortes e generosos não se afligem sem grandes motivos,· e ainda nestes casos se portam sem perturbação. e com sossego.

E estas últimas ,palavras, sem perturbação e com sossego, são a pedra de toque, que distingue as queixas justas das ímpias e excessivas; dando a conhecer os que são, ou não são como a pomba, que não tem fel e só se queixa com amor.

§ X

Das austeridades indiscretas

E' êste um dos tropj:!ços ordinários dos que entram a dar-se deveras à devoção. Parece-lhes que· nunca fazem o que basta ; como querendo à fôrça de braço reparar as faltas passadas; de modo que só reputam que agem com acerto, quanqo fazem mais do que é justo. O maligno espírito, que de tôda a matéria forma flechas para nossa perda, serve-se daqueles fervores imoderados, afim de os constituir depois inhábeis para o serviço de Deus, por falta de vigor corporal.

Advirta-se, pois, que Deus quer de nós um serviço razoavel, e que a sua honra requer juizo.

O glorioso S. Bernardo nos seus princípios tropeçou nesta pedra; queixava-se depois de tais excessos, chaman­do-os erros da sua mocidade.

E eu conheço (dizia o nosso santo) uma pessôa de insigne doutrina e virtude, que arruinou em si mesmo a

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mais vigorosa compleição; e que só depois de multo tempo, e jã tarde, veio a conhecer êste erro.

E a uma religiosa, que com o pretêxto de penitência praticava as maiores afij)erezas corporais, superiores em tudo ao seu delicado temperamento, deu o nosso mesmo santo este sábio conselho, digno da sua natural doçura e discreta prudência : - Não oprimais a fraqueza do vosso corpo com alguma austeridade, tora das que impõe a vossa regra. Guardai as vossas fôrças corporais para servir a Deus com fervor nas práticas espirituais, que são da vossq quotidiana obrigação.

Muito poucas pessôas (ainda entre as espirituais) conservam a balança igual nesta matéria; porque o espí­rito, que está pronto, carrega quase sempre a carne, que é. enferma; sem considerar que assim como o espírito não a pode suportar quando é muito pesada; também ela, quando está muito fraca não pode suportar ao espírito.

§ XI

Das tentações menores

Quando o maligno tentador vê que o nosso coração se acha bem firmado na graça; que nós fugimos do pecado, como de uma venenosa serpente; e que só a sua sombra (que é a tentação) nos causa horror ; deixa por então de nos tentar, vendo que por aquêle modo não pode vencer. Porém suscita logo uma multidão de tentações menores, que nos arroja, como pó, aos olhos da alma, para nos afligir e nos fazer desagradavel o caminho da virtude.

Ora ninguém duvida, que contra as tentações grandes é preciso correr logo às armas, bastando para expulsar as menores, o desprêzo delas; assim como contra a invasão dos lobos e ursos, todos se põem em defesa ; e contra a multidão de moscas, que nos perseguem no estio, ninguém se arma em postura da guerra.

Assim, pois, a uma alma que se inquietava e entrava

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em melancolia, por se ver assaltada de vários pensamen­tos contra a fé (ainda que sumamente lhe desagradavam> consolou o nosso bem-aventurado, respondendo-lhe desta sorte :

Desprezai as tentações que vos sobrevierem contra a fé, não lfls replicando, nem com uma só palavra; e não vos causarão nem o menor dano. Porém vós pensais muito nelas, vós temeis muito, vós as apreendeis com excesso; e daquí procede o vosso desassossego. Vós soÍS muito sensivel às tentações; e como amais a virtude da fé, de modo que não quiséreis contra ela tenta,ção alguma, uma 3Ó que vos toque, vos contrista e vos perturba, pare­cendo-vos talvez, que tudo a ofenda e corrompa.

Porém, não, minha jilJI.a, deixai correr o vento; e não penseis, que o reboliço das tolhas é estrondo de armas.

Estando eu qoondo menino junto a um cortiço de abelhas, e acometendo-me algumas ao rosto, levantei a mão para expulsá-las. Porém disse-me logo 'Um cam­pônio, que as deixasse sem as tocar e não me fariam dtano algum. Com ejetio, observando-o eu assim, nenhuma me picou. Crêde-me, pois, para não temerde3 as ten­tações, que se não as tocardes, e com elas não vos entre­tiverdes, passarão 3empre sem ofensa vossa.

§ XII

.Das distrações inseparáveis dos negócios

Uma religiosa, superiora de um mosteiro, suspi�ava pelo descanso, queixando-se de que os embaraços, inse­paraveis da prelatura, a distraíam da sua união com Deus. Mas o nosso santo lhe fechou a bôca, fazendo-lhe conhecer, que só o pecado nos pode separar do divino Senhor. O que é tanto assim, que o grande Apostolo e Doutor das gentes, no capítiulo a.o da sua Carta aos Remanos, desafia a tôdas as criaturas do céu e da terra, protestando-lhes sem a menor dúvida, que nenhuma será capaz de o separar da caridade e amor do seu DeU&.

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.E' pois um êrro manüesto pensar, que as ocupaçõe& legítimas nos apartam do divino amor. Antes pelo con­trário, não há meio mais forte para nos unir a Deus, do que o dirigir as obras puramente para sua glória. E pelo contrário, o deixar de as fazer para se unir a Deus pela oração, leitura, silêncio e recolhimento . . . é mais deixar a Deus para se unir a si mesmo e ao seu amor próprio. Qualquer pois que omite as obrigações do seu estado para se entregar às ocupações do seu gôsto, por mais pias que pareçam, nada faz que tenha valor ; e querendo servir a Deus pelo seu modo, nada faz por Deus, nem por si mesmo. Porque Deus quer ser servido segundo a sua vontade, e não segundo a nossa : e assim não podemos unir-nos a Deus separando a nossa vontade da sua.

Há grande düerença entre o estar distraído de Deus e distraído da doçura que se acha no sentimento da sua presença. E suposto que nas ocupações e cuidados in­separáveis do govêrno não se goza sempre desta suavi­dade, contudo, quem dela se priva por serviço do mesmo Deus, e dirige todos os cuidados à sua glória, nada perde, antes consegue maior lucro, deixando o suave pelo sólido. E se Deus está conosco na tribulação, segundo 1l:le mesmo nos diz pelo real profeta, como não estará também, e por um modo especial, quando só trabalhamos pelo servir e por única glória do seu amor?

§ XIII

Dos enfermos, que não podem orar

Tôdas as coisas têm seu tempo, diz o Espirito Santo no livro do Eclesiástico. Há tempo de padecer e tempo de orar. Ninguém busca frutos nas árvores na prima­ve·ra e no inverno. Para orar padecendo e padecer oran­do, seria necessário ter uma carne de bronze.

Assim, pois, quando Deus nos chama e nos conduz para padecer, Êle mesmo nos desobriga de tôda outra operação.

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Eu sei que há enfermos, que vendo-se obrigadas à cama, não S'e queixam tanto das suas dores, quanto da impossibilidade, em que se ·acham, de não poderem cum­prir as devoções, que praticavam no tempo da saúde.

Mas enganam-se muito a êste respeito; pois uma hora de sofrimento por amor e submissão à vontade de Deus, vale mais do que muitos di�s de trabalho, feito com menos amor.

E o êrro nesta matéria vem a ser, querermos servir a Deus pelo nosso modo e não como rue quer; segundo a nossa vontade e não conforme a sua.

E assim quando :a:1e quer que estejamos enfermos, queremos nós praticar a humildade, a oração e outras virtudes, não por serem do seu divino agrado, mas por se conformarem ao nosso gôsto.

De maneira, que só amamos a virtude temperada com açucar, e não com fel e vinagre. Nem o Calvário nos agrada tanto, como o Tabor, onde, e não naquêle, quiséramos estabelecer a nossa morada. Em vez de amar o amor de Deus, amamos a doçura dêste amor; quem ama só a Deus, ama-o igualmente em todo o tempo de enfermidade e saúde, de prosperidade e adversidade, de trabalho e descanso ; porque sendo Deus sempre igual a si mesmo, a desigualdade do nosso amor para com l!:le, só pode vir de coisa que não seja rue.

Por isto o nosso bem-aventurado dizia a uma alma, que por

·uma longa enfermidade se queixavm de não

poder aplicar-se à oração: Jl(ão tomeis t'tiste2a por êste motivo; porque os flagelos do nosso Salvador não são menor bem, do que o meditar.

Não, sem dúvida; porque o estar na Cru2 com o Sal­vador é muito melhor, do que o vê-la somente.

Portai-vos poi3 com sossego de tinimo; e quando os médicos vos prozõirem qwalquer exercício, o:u de oração mental ou vocal, ainda, o mesmo ofício divino (exceto as orações jaculatórias) rogo-vos, quanto posso, pelo respeito e amor, que me tendes, que obedeçais pronta-

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mente; porque Deus assim o quer. E quanto recobrardes a .saúde perdid!a, tareis no caminho do espzrito novos e maiores progressos.

§ XIV

A glória de Deus é o fim da nossa salvação

• Tudo o que se faz pela própria salvação deve ser dirigido, primeiro que tudo, ao serviço e glória de Deus.

Mas se perguntardes à maior parte dos Cristãos, que se exercita em boas obras, qual o motivo (Porque as fazem responderão todos a uma voz : Que é para ha­verem de conseguir, com a graça de Deus, a sua eterna salvação.

Mas se lhes perguntardes de novo : - Porque é tão ativo nesta parte o seu desejo? Vereis logo que falando a sua lingua pelo que tem no coração, ingenuamente vos confessam que o seu intento principal é chegar a possuir os gloriosos bens, que se gozam no Céu. E se lhes falar­des sôbre as circunstâncias maiores de glorificarem ali a Deus, vereis que não é êsse o seu fim principal.

Todos, pois, devem saber que o último fim porque Deus creou o Paraiso e tôdas as coisas, é . a sua glória ; como bem o entendeu o Profeta Real, quando ao falar da felicidade suma, que gozarão os bem-aventurados no Céu, não diz que serã pelas honras, pelas riquezas e delí­cias, que alí terão ; senão porque louvarão alí a Deus por todos os séculos dos séculos.

E' bem verdade, que o que nós fazemos para a nossa salvação é feito por serviço de Deus ; contanto que nós refiramos a nossa mesma salvação para glória do Divino Salvador, · como nosso último fim.

E' também certo, que o nosso Salvador nêste mundo operou a nossa salvação como nosso último fim, para gló­ria de seu Pai; �izendo 1l::le próprio que não viera pro-

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curar a sua glória, senão a daquêle que o enviára; pro­testando a êste respeito, que a sua glória seria nada, se não tivesse a glória de Deus por seu último fim.

E assim se deve entender o nosso Símbolo Creio em Deus Padre quando diz que Jesus Cristo, por amor de nós e da nossa salvação desceu dos Céus, se tez homem e foi crucificado. Porquanto, aquêle por amor de nós não se deve tomar, como se nós outros e a nossa salvação eterna fôsse o último fim da Incarnação e Paixão de Jesus Cristo e não a glória de seu Pai.

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I N D I C E PRIMEIRA PARTE

PÁG.

I. Da verdade caritativa 3 11. Como se conhecerá, se tem a verdade a raiz na

caridade 45 111. Outro sinal da verdade proceder da caridade 46 IV. Da caridade e castidade 4 7

V. Notável paciência 49 VI. Sua destreza em desculpar ao próximo 50

VII. Da repreensão 51 VIII. Das palavras de humildade 52

IX. Da obediência dos. superiores 53 X. O seu amor à justiça e seu desprêzo das coisas

temporais 53 XI. Sua humildade modestíssima 54

XII. Sua doçura para com os domésticos 55 XIII. Caridade da castidade e castidade da caridade 56 XN. Sôbre o procedimento pomposo 57 XV. Aceita o desafio de um ministro protestante . . . . . 58

XVI. Estimação que fazia o . santo de um eclesiâstico, que fôra seu mestre 59

XVII. Sôbre a verdadeira perfeição 60 XVIII. Conferência do santo com o seu discípulo a res-

peito do ponto precedente 61 XIX. Prossegue-se a conferência do assunto precedente 63 XX. Do amor dos inimigos 64

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SEGUNDA PARTE

P . .\.c.

I. Da humildade e castidade 67 .11. Como se portava com os enfermos 68 III. O seu juizo sôbre uns sermões 70 IV. Aversão aos seus louvores 71 V. Sua grande humildade 72

VI. Lembrança dos mortos 73 VII. A · sua resignação 7 4

VIII. Do seu amor à pobreza 75 IX. Das importunidades 76 X. Sôbre as tentações 77

XI. Sôbre a conversação com as mulheres, assim de palavras, como por escritos . . . . . . . . . . . . . . . . 78

XII. Dos que se humilham na presença do santo 79 XIII. Da política 81 XIV. Sua grande caridade com uma moribunda 82

TERCEIRA PARTE

I. · Das virtudes menores 87 II. Do temor da castidade e da castidade do temor 88

III. Esperar sempre bem dos pecadores 89 IV. Animava muito aos pecadores penitentes 90 V. Que não há verdadeira desconfiança de si mesmo,

sem uma legítima confiança em Deus . . . . . . . . 91 VI. Estimação que fazia o Santo da virtuosa simpli-

cidade 92 VII. Dos escrúpulos 93

VIII. De um réu, que desesperava da sua salvação 94 IX. Que tudo sucede por vontade de Deus 9.5 X. Honra que davam todos à virtude do nosso santo

particularmente Monsieur de Lesdiguieres 96 XI. Ardente desejo do céu num homem ordinário 98

XII. Escrúpulos de um homem rico e grande esmole{ 100

XIII. Das securas na oração 102

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I. II.

III. IV. v.

VI. VII.

VIII. IX. X.

XI.

XII. XIII. XIV.

XV. XVI.

1(VII. :VIII.

QUARTA PARTE

Da singularidade O seu parecer a respeito das dignidades e a resi-

dência dos bispos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Recusa o Santo de ser arcebispo de Paris O seu desejo de retiro Que se devem ocultar as virtudes Do jejum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diversas espécies de humildade Da pobreza de espírito Do amor para com os pobres Recusa uma pensão, que o rei lhe oferecia . . . . . . Que alimento se pode permitir acis soldados no

tempo da quaresma em çaso de necessidade. Sôbre o ocultar as suas austeridades Saber gozar a abundância e padec!'lr a penúria Da recreação, e como lhe servia assim como tudo

o mais para se elevar a Deus Nada pedir e nada recusar Na,da recusava do que justamente lhe se pedia Da devoção para com a Mãe de Deus Tentação fortíssima, que padeceu o nosso bem­

aventurado

QUINTA PARTE

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I. Como se portou o santo, perdendo um anel de grande preço 1 19

11. A sua oculta mortificação 120

III. Sinais da graça santificante 121

IV. Obedecer aos poderes seculares 122

V. Excelências do voto 124

VI. Da pontualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

VII. Desprêzo que fazia o santo dos bens da terra e

zêlo que tinha da salvação das almas 125

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VIII. Sua paciência nas enfermidades . . . . . . . . . . . . . . . . 126

IX. Do seu comportamento com os domésticos 127

X. Vitória do bem-aventurado sôbre as suas. paixões 128

XI. Da simplicidade 129

XII. Do adiantamento na virtude 130

SEXTA PARTE

I. Sua grande humildade 131

11. Da perfeição do estado 132

III. Da lição dos bons livros 132

IV. Resposta que deu o santo a um bispo, que queria abandonar o seu bispado 133

V. Do amor de Deus 134

VI. Tudo por amor, nada por fôrça 135

VII. Da cautela nos olhos 136

VIII. Da sinceridade 136

IX. Da ciência e da consciência 137

X. Da paciência nas dores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 XI. Das hospedarias ou estalagens 139

XII. Do espírito de pobreza nas riquezas: e do espírito do magnificência na pobreza 141

XIII. Da paixão do Senhor 142

XIV. Do Rosário 142

SJ!;TIMA PARTE

I. Da prudência e sinceridade 145

11. Do amor ao próximo em Deus 146

III. Sôbre os sinais de benevolência 146

IV. Do amar ser aborrecido, e aborrecer ser amado 147

V. Dos espíritos demasiadamente reflexivos 148

VI. Da mortificação das inclinações naturais 150

VII. Das reformas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

VIII. Excita com suas lágrimas a um pecador à com-

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punção 152

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IX. Consola o santo a outro penitente .153 X. Da Congregação das religiosas da Visitação 154

OITAVA PARTE

I. Do desprêzo da estima 157 11. Da verdadeira humildade 158

111. Do sentimento da divina presença 159 IV. Utilidade das moléstias 161 V. Da resignação perfeita na vontade de Deus. 162

VI. Bonança na tempestade 163 VII. Dos que desejam a morte 164

VIII. Das boas inclinações 165 IX. Que se pode ser devoto e muito máu 166 X. Da devoção, com a vocação 167

XI. Do recolhimento interior, e aspirações 168

NONA PARTE

I. Do amor da palawa de Deus 171 li. Da leitura espiritual 171

111. Da penitência e eucaristia 1?'3 IV. A verdadeira devoção nos deveres de cada estado 174 V. Juizo que fazia sôbre as virtudes o glorioso Sales 17 4

VI. Quem se -queixa, peca 175 VII. Uso das ofensas recebidas 177

VIII. Resposta do bem-aventurado sôbre o mal que di-ziam dêle 178

IX. Como se deve .falar de Deus X. Contra a zombaria

XI. Não julgar aos outros XII. Contra a maledicência

179 180 181 182

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D:E:CIMA PARTE

I. Não contradizer sem razão 185 11. Sôbre as aversões 186

111. Da presença de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 IV. Do amor próprio e do amor de nós mesmos 188 V. Da medida no amor de Deus 189

VI. Da mortificação e oração 190 VII. Sôbre o po�to essencial da caridade 191

VIII. Diversas qualidades de obras 191 IX. Sua gravidade e sua doçura· 192 X. O amor é o que dá valor às obras 193

XI. Paciência notável do glorioso santo 194 XII. Diferença entre o pecado venial e a imperfeição 195

UND:E:CIMA PARTE

I. Converte o glorioso Sales a um eclasiástico escan-daloso; e confessa-se depois a êle

11. Da pobreza contente III. Do justo aprêço do próprio . estado N. Da injustiça dos homens a respeito da salvação

v. Das pregações eloquentes VI. Do amor e respeito para com a palavra de Deus

VII. Da · prosperidade ou boa fortuna VIII. Segurança do santo entre os perigos

IX. Do purgatório • • • • o • • • • • • • • • o . o • • • • • • • • • • • • • •X. Prática virtuosa em ocasião . das cal�as

XI. Da desconfiança de nós mesmos

DUOD:E:CIMA PARTE·

I� Da mudança de confessor 11. Das desculpas

111. Alguns avisos sôbre as tentações

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197 �98 200 201 202 204 205 ·206 207 209 210

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PÁc.

IV. Da vaidade . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 V. Da paz do .coração entre grandes ocupações 217

VI. Da mortificação 21S VII. Do amor do próximo 219

VIII. Sôbre o temor da morte 220· IX. Das queixas impacientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221 X. Das austeridades indiscretas 222

XI. Das tentações menores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22� XII. Das distrações inseparáveis dos negócios 224

XIII. Dos enfermos que não podem orar 245 XIV. A glória de Deus é o fim da nossa salvação 227

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