JOGOS_COOPERATIVOS
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"O homem não aprende apenas com
sua inteligência, mas com seu corpo e
suas vísceras, sua sensibilidade e
imaginação."
Paulo Freire
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
1 O JOGO ........................................................................................................................................ 3
1.1 JOGO COOPERATIVO ...................................................................................................................... 5
1.1.1 O QUE É COOPERAÇÃO ................................................................................................................. 7
1.1.2 ORIGEM DOS JOGOS COOPERATIVOS ..............................................................................................10
1.1.3 O JOGO COOPERATIVO NO BRASIL .................................................................................................14
2 CULTURA DA COOPERAÇÃO .......................................................................................................17
2.1 O FOCALIZADOR...........................................................................................................................20
2.1.1 CAV (CICLO DE APRENDIZAGEM VIVENCIAL)....................................................................................21
2.1.2 PROCEDIMENTOS ..........................................................................................................................23
2.1.3 FONTES PARA ESTUDO DE JOGOS COOPERATIVOS .................................................................................24
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................................24
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................27
SUMÁRIO
1
“Você e eu, podemos ser o que determina a guerra, e depois, se estivermos interessados em sustá-la, começar a transformação de nós mesmos, que somos os causadores da guerra”. Krishnamurti.
Tudo o que estiver escrito nesta apostila será feito sobre o ponto de vista de um
indivíduo assim como tudo que é humanamente manifesto. O jogo cooperativo tem sua
história, desenvolvimento e pressupostos teóricos, no entanto, o que será apresentado aqui
é o meu olhar sobre essas coisas. Portanto, enquanto escrevo exponho um pouco sobre a
minha forma de ver o mundo e a cooperação. Com isso, eu também faço um convite ao
diálogo.
Um pouco de mim…
Minha formação acadêmica é artística, sou bacharel em direção teatral pela
Universidade de São Paulo.
O meu interesse pelo teatro começou no dia em que li “200 exercícios e jogos
para o ator e não-ator com vontade de dizer algo através do teatro”(Boal, 1980). Eu era
muito pequena, tinha uns 11 anos, e encontrei o livro na estante da minha irmã do meio,
Kátia. A primeira vista, aquele pareceu um livro de exercícios para o trabalho de ator, não
tinha como ter consciência que estava diante de uma importante metodologia de animação
de coletivos: o Teatro do Oprimido. Bem mais tarde, já na faculdade, participei de um grupo
de estudo sobre Bertolt Brecht, quando passei a me aprofundar na técnica de jogos teatrais
e retornei ao Boal e suas propostas de criação coletiva.
Quando o grupo acabou, decidi-me por multiplicar o conhecimento.
Como voluntária, dirigi vários grupos amadores em comunidades diversas. Não tinha o
objetivo de realizar uma montagem, mas me preocupava em conduzir um treinamento de
criação coletiva: o importante era fazer com que as pessoas conseguissem se observar e se
respeitar o suficiente para criar coletivamente e de improviso.
Várias coisas mudaram, tornei-me mãe em 2005, e, em 2008, fui convidada pelo
Senac a participar como agente de um projeto chamado Programa de Desenvolvimento
Local. É um trabalho feito em comunidades, que parte do pressuposto de que se sonharmos
juntos, somos capazes de transformar o mundo, e isso começa com a formação de uma
rede.
INTRODUÇÃO
2
Nesse contexto, o trabalho do agente de desenvolvimento local é manter a rede
forte, ou seja, as pessoas unidas, comunicando seus objetivos, criando projetos e
estratégias de ação conjunta.
A metodologia empregava várias ferramentas de mobilização comunitária, dentre
elas, o jogo cooperativo.
Uma coisa puxa a outra e fui fazer a pós-graduação criada pelo Projeto
Cooperação, que era feita em parceria com a Unimonte em Santos. O que, em um primeiro
momento, apresentou-se como uma formação foi uma das maiores TRANS-formações pelas
quais passei ao longo dos meus 41 anos.
Hoje não concebo o teatro com um jogo que não se apresente como
cooperativo, aliás, não concebo mais nada sem que haja a cooperação. Não significa que
sempre tenha atitudes que se alinhem com esse desejo, mas esforço-me para seguir esse
caminho. É um aprendizado constante.
A cultura de dominação, na qual todos estamos mergulhados, criou um ethos
que orienta para a intolerância. Há uma clara cisão do mundo em duas metades: a correta e
a errada, sendo que a correta está ligada a valores que privilegiam o dinheiro, a exploração,
a manutenção de um modelo humano ideal a ser atingido tanto física como
psicologicamente. É considerado errado tudo o que não segue esse modelo. E não existe
diálogo entre as partes: ou se está certo e, portanto, têm-se todas as suas ações
justificadas, ou se está errado e deve ser condenado à marginalidade e execração.
Assim como o teatro possibilita que eu olhe e me indigne com a perfídia humana,
o jogo cooperativo me apresenta a re-conexão deste indivíduo com ele mesmo e com o
coletivo, de forma que ele se coloque como agente e não como um obediente cumpridor de
regras. Assim como Antígone, que Sófocles coloca em cena como uma mulher desprovida
de forças e exércitos, mas que manifesta seu exercício de cidadania na simbologia de um
enterro, ela refaz o jogo fúnebre a fim demarcar seu posicionamento revolucionário diante
dos ditames de Creonte1. Uma revolução pacífica que provoca o movimento da depreciação
à apreciação das diferenças.
1 A tragédia narra a história de uma guerra em que dois irmãos se enfrentam: Etéocles, então rei de
Tebas, e Polinice, seu inimigo. Ambos morrem em combate e, no entanto, por desígnio do novo rei, Creonte, apenas Etéocles tem direito às cerimônias fúnebres, de acordo com os costumes da localidade e da época. A irmã de ambos, Antígona, personagem título e heroína do drama, a fim de garantir a honra a ambos os irmãos, realiza sozinha o ritual fúnebre de Polinice, contrariando assim a determinação do governo. Em um dos embates mais cultuados da dramaturgia universal, Antígona defende a necessidade de tratar-se com respeito todos os mortos e não apenas aqueles que fazem parte do status dominante e afronta, destemida, o poder e a cólera do próprio rei. Ao desobedecer ao decreto e ainda se orgulhar do ato, a heroína argumenta que os deuses exigem que se apliquem os mesmos ritos a todos os mortais. E ao ouvir de Creonte que nunca um inimigo lhe será querido, mesmo após a sua morte, profere uma das mais belas falas da dramaturgia universal: "Não fui gerada para odiar, mas para amar!" (SÓFOCLES, 2009 p. 41)
3
“Fica decretado que agora vale a verdade Agora vale a vida, e de mãos dadas, Marcharemos todos pela vida verdadeira.” Thiago de Mello.
Há inúmeros estudos sobre o que vem a ser o jogo. Nenhum é absolutamente
conclusivo e o termo tem uma abrangência que o direciona para diferentes áreas; da
educação à antropologia, da filosofia à arte. Brincadeira, diversão, esporte, encenação são
algumas de suas acepções, mas um único aspecto é comum: o jogo é um dado da
humanidade, como diz Schiller: “De uma vez por todas, em jeito de conclusão, o homem só
joga quando é homem na verdadeira acepção do termo e só é verdadeiramente homem
quando joga” (SCHILLER, Friedrich, IN: CALLOIS, 1990, p. 188).
Para o historiador neerlandês Johan Huizinga (2000 p. 3), jogo “é toda e
qualquer atividade humana”.
Seguindo essa definição, o jogo faz parte da essência das relações humanas e,
caminhando nesta mesma progressão, e tomando como base a conceituação adotada por
Humberto Maturana(2009) na qual a cultura é dada pela rede de conversações na qual o
indivíduo está inserido, provocando um emocionar específico, temos que o jogo é agente da
construção da cultura. Entendendo que a cultura é a soma de comportamentos passados de
geração a geração e que estabelecem normas e valores entre os indivíduos que participam
da mesma rede de conversações. Esses valores são transmitidos por meio das emoções
geradas.
O jogo dá-se na relação entre os indivíduos, ele é oriundo de um determinado
contexto cultural, no entanto, é um evento aberto às infinitas variações cabíveis ao
relacionamento humano; há nele um elemento subversivo que é a imprevisibilidade. E o
1 O JOGO
4
imprevisível não se localiza em uma reação oposta apenas, mas em um sem número de
ações que não correspondam exatamente ao protocolo.
Acontece que a emoção que ocorre no momento de cada jogo acaba por gerar
um novo jogo, diverso do anterior não nas regras, mas na emoção. Esse emocionar, aos
poucos, transmite-se pela rede de conversações e, a cada novo jogo, este emocionar vai
sendo reproduzido até que finalmente tenha sido transformado a ponto de ter estabelecido
um novo dado cultural. E esse dado é passado de geração a geração e passível de
transformar-se infinitas vezes nesta passagem.
Segundo James P. Carse (CARSE, 2003), o jogo da vida é infinito uma vez que
as mudanças no emocionar são transmitidas às gerações futuras, que continuam jogando
com cada novo dado apreendido.
Esse argumento demonstra a real dimensão do jogar e a sua importância como
elemento constitutivo da cultura.
Tendo isso em mente, a emoção promovida pelo jogar da vida é capaz de
conduzir o emocionar que orienta as relações humanas.
O sociólogo Roger Callois(1990) acrescenta ainda um importante dado ao jogo
que é o caráter de voluntariedade:
Porque só existe jogo quando os jogadores querem jogar e jogam, mesmo que seja o jogo mais absorvente ou o mais extenuante, na clara intenção de se divertirem e afugentar as preocupações, ou seja, de se afastarem da vida de todos os dias. Acima de tudo, e sobretudo, urge que tenham a possibilidade de se irem embora quando lhes aprouver, dizendo: “Não jogo mais.”(CALLOIS, 1990 p. 26)
Ao lado do voluntariado, também há outro aspecto essencial ao jogo que é a
espontaneidade, abordada por Viola Spolin(SPOLIN, 2003). A teatróloga postula que, uma
vez em jogo, o jogador age de acordo com os seus primeiros impulsos, ou melhor dizendo,
com os elementos da cultura que já fazem parte indissolúvel do seu caráter, uma vez que,
como esse jogador está indivisivelmente conectado à rede de conversações que o circunda,
5
ele, ao mesmo tempo que responde como indivíduo, representa a totalidade do seu
ecossistema.
No entanto, ao contrário da vida cotidiana, o jogo acontece em um universo finito
e em tempo limitado, o que o torna um extrato da vida, uma pequena parte que pode ser
observada. Deste modo, o jogador avalia a sua postura no jogo e essa reflexão não
necessariamente se restringe ao desempenho, mas também às emoções vividas e,
sobretudo, ao comportamento ético.
Por isso, o Jogo é tão importante para o desenvolvimento humano em todas as idades. Ao jogar não apenas representamos simbolicamente a vida, vamos além. Quando jogamos estamos praticando, direta e profundamente, um Exercício de Co-existência e de Re-conexão com a essência da Vida(BROTTO, 1999 p. 28).
Agora existe uma escolha, se o jogo tem esse potencial de amplificação dos
dados culturais e revelação do ethos de uma rede de cultura, ao mesmo tempo que se
posiciona como exercício de co-existência. Pode-se jogar para que sejam apurados valores
ligados à equidade, à solidariedade, ao respeito mútuo e demais emblemas de uma cultura
voltada à parceria ou, na direção oposta, pode-se jogar de forma à ampliar os valores da
intolerância e dominação.
Qualquer jogo serve aos dois propósitos de acordo com o posicionamento do
jogador, no entanto, há um tipo específico de jogo cujo foco está na formação de parcerias:
os jogos cooperativos.
1.1 JOGO COOPERATIVO
Conceituar os jogos cooperativos fica mais simples a partir do exemplo de
transformação de um jogo bastante popular em diversas culturas: a dança das cadeiras.
Como é o jogo em sua forma habitual (competitiva):
Dispõem-se cadeiras agrupadas de uma forma que os jogadores possam dançar
ao seu redor. Quando inicia o jogo, há a mesma quantidade de cadeiras e jogadores; para
6
uma rodada de treinamento, quando a música pára, todos deverão se sentar: um indivíduo
para cada cadeira. A cada nova rodada, no entanto, há a eliminação de um jogador e de
uma cadeira até que reste uma única cadeira e dois jogadores. O vencedor será aquele que
sentar primeiro na cadeira.
Como é a dança das cadeiras cooperativa:
A organização das cadeiras e o início do jogo é basicamente igual, no entanto, a
diferença é quando inicia uma nova rodada, uma cadeira será retirada, mas nenhum jogador
é eliminado. O jogo continua até que haja apenas uma única cadeira para todos os
jogadores se sentarem e, quando isso acontecer, todos vencerão.
Isso é um jogo cooperativo: um jogo cujos objetivos, execução e resultados são
coletivos.
As características fundamentais dos jogos cooperativos são:
Não há eliminação de jogadores durante o jogo;
Não há solução única, a estratégia é traçada ao longo do jogo (cada grupo irá
desenvolver uma nova forma de sentar nas cadeiras de acordo com as suas
peculiaridades);
Não há distinção pela performance (os mais rápidos não são mais aptos);
O jogo é totalmente inclusivo (não há quem não possa jogar uma vez que a
estratégia é definida pela diversidade dos participantes. Na dança das cadeiras
cooperativas, por exemplo, a participação de um cadeirante, muletante ou de
uma pessoa com outro tipo de deficiência é viável).
Orlick(1993 pp. 123-135) dividiu os jogos cooperativos em quatro categorias
básicas:
Jogos cooperativos sem perdedores
Jogos de resultado coletivo
Jogos de inversão
Jogos semicooperativos
Jogos cooperativos sem perdedores
Estes jogos são o strictu sensu do que vêm a ser os jogos cooperativos, o foco é
cumprir a missão junto com o grupo. A dança das cadeiras cooperativa é um exemplo.
Jogos de resultado coletivo
Trabalham com a premissa de que todos precisam trabalhar juntos obter
resultados.
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Bater e fugir depressa: O jogo começa com dois times de cerca de sete2 jogadores
cada um, em lados diferentes de uma rede de voleibol. Sempre que um jogador bate na bola para arremessá-la sobre a rede, passa correndo por debaixo da rede para outro lado. Os jogadores tentam fazer uma alteração completa dos times com o mínimo possível de quedas de bola, ou sem deixar a bola cair.(ORLICK, 1993 p. 126)
Jogos de inversão
Subvertem o conceito de times, uma vez que os jogadores podem se alterar
entre os dois lados, e também o de resultado, uma vez que o resultado não
necessariamente será direcionado para quem marcou o ponto.
Há várias maneiras de se criar um jogo de inversão, a idéia contida nestes jogos
é que os jogadores não se atenham à performance individual, mas ao jogo em si, à troca
que ele proporciona entre as equipes. Um jogador que marcar um ponto, por exemplo,
deverá ser destacado para o time adversário, o mesmo ocorrendo com o time adversário.
Num jogo de inversão de pontuação, por exemplo, é possível que uma bola na trave inverta
o placar.
Jogos semicooperativos
São jogos cuja competição é mantida, no entanto, o foco não está no resultado,
mas no jogo. Um bom exemplo é o futebol de pares: as regras são a do jogo de futebol
tradicional, no entanto, os jogadores deveram ser enlaçados dois a dois. Há inúmeras
maneiras de se fazer isso, uma delas é usando uma única camisa com duas golas, onde os
jogadores colocarão as suas cabeças. O foco do jogo é completamente deslocado pela
superação e/ou pela diversão de se jogar dessa maneira.
Independente da categoria, o jogo cooperativo promove uma rede de
conversação onde os valores são de crescimento tanto coletivo quanto individual. Citando
palavras de Brotto (1999): “Gostaria de destacar, dentre as várias dimensões da convivência
oportunizada pelo Jogo, aquela que nos permite aperfeiçoar a convivência com os outros
existentes dentro de nós mesmos.”
1.1.1 O QUE É COOPERAÇÃO
Existe um verso na música Diariamente de Arnaldo Antunes que diz “para todas
as coisas: dicionário”. Trago para mim este mesmo espírito e, sempre que não sei algo, ou
2 É possível com um número diverso de jogadores.
8
que algo se torna nebuloso, corro ao pai dos burros. Atualmente adotei o Houaiss
eletrônico(HOUAISS, 2009) como meu companheiro de aventuras. De onde tirei o
significado do verbo cooperar:
Atuar, juntamente com outros, para um mesmo fim; contribuir com trabalho, esforços, auxílio; colaborar. Exs.: os atores cooperaram com o diretor para o sucesso da peça.
Li o significado várias vezes, mas achei o exemplo particularmente interessante, não
porque sou uma pessoa de teatro, muito pelo contrário, mas pela questão hierárquica tão
sutilmente introduzida. Existe um diretor, um chefe, que precisa ser obedecido, portanto
todos precisam cooperar para que ele tenha o que quer. A vontade dele se coloca sobre as
demais. Tem o mesmo sentido de cooperar com os ladrões no caso de assalto, a fim de
evitar violência (mais violência!), cooperar com os regimes totalitários para não ser morto ou
torturado, enfim cooperar com o sistema opressor para que ele se perpetue.
Essa é a prova de que o óbvio é uma coisa bastante obscura.
Parecia-me óbvio, antes de consultar o dicionário que a cooperação era instituída por
uma relação horizontal, no entanto, há um sentido elíptico criado pela cultura de dominação
que faz com que a palavra, mesmo tendo em seu cerne uma rede de relações horizontais,
apareça como justificável dentro de um sistema hierárquico.
Isso só reforça a sensação da potência da cultura em que vivemos.
O filósofo francês David Hume (in: ARAÚJO, 2010 p. 17) estudou o comportamento
humano no século XVIII, e sua tendência ao egoísmo, e criou uma interessante parábola
sobre dois agricultores de trigo:
Um deles tem sua produção pronta para colher e se não o fizer perde o alimento básico para o “pão” do resto do ano. E não tem condições de colhê-la a tempo sozinho, precisa de ajuda. O vizinho, cujo trigo ainda não está maduro, reflete: “Eu podia ajudá-lo na colheita e daqui uns dias, quando o meu estivesse maduro, ele me ajudaria. Ambos teríamos salvo nosso sustento e o de nossas famílias. Mas, depois que eu o ajudar, ele vai querer mesmo retribuir?” Na dúvida, na desconfiança, decide não cooperar e com isso ambos perdem a colheita.
Para Humes isso não reflete ignorância, mas um cálculo racional de risco.
Maurício Abdalla(ABDALLA, 2004) propõe que para vivermos novamente em redes
integradas e cooperativas, temos que praticar uma nova racionalidade, não apenas uma
nova forma de pensar e agir, mas de apreender e se comunicar.
Mas há um dado bastante animador neste caminho: a essência humana é
cooperativa, o que nos levou ao desenvolvimento foi a cooperação entre os seres de nossa
9
espécie. Uma experiência com os macacos vervets, da África Oriental, revelou que eles têm
diferentes grunhidos e vocalizações distintas para situações diferentes: quando encontram
alimento ou quando um predador se aproxima, por exemplo. Vejamos o que Abdalla(2004 p.
110) postula sobre isso:
A cooperação em avisar aos semelhantes sobre a iminência de um perigo e a integração coletiva de um bando é que dão fundamentação a essa forma rudimentar de comunicação.
Essa provavelmente tenha sido a origem da linguagem entre os primeiros homo
sapiens sapiens. Abdalla(2004 p. 111) continua:
A linguagem certamente surgiu da necessidade de colaboração entre os seres humanos e não da competição ou da hostilidade.
Aqui é aberto um raciocínio chave para entendermos a diferença entre essa
cooperação a serviço dos interesses de um superior e a cooperação pelo bem comum:
todos os indivíduos são considerados. O grande alvo é o bem comum sem desconsiderar as
adversidades.
Chico Buarque(1978) na Ópera do Malandro conta, entre outras, a história de um
travesti chamado Geni, em uma linda canção, que salvou uma cidade que a execrava. Geni
– Genivaldo durante o dia – era a “rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos” e, por
isso, vivia à margem da sociedade, no entanto, surpreendentemente um temível
comandante ameaça destruir a cidade (uma referência ao governo estadunidense e o
imperialismo), no entanto, encanta-se com Geni e revoga o ataque, caso ela durma com ele.
Neste momento Geni torna-se santa, digna de ter as mãos beijadas pelo “bispo de olhos
vermelhos”. Aquele que era seu principal defeito, acaba por se transformar no capital
humano necessário para a manutenção do status. Geni se entrega ao homem, mesmo
enojada, porque “também tinha seus caprichos e, ao deitar com homem tão nobre, tão
cheirando a brilho e a cobre, preferia amar com os bichos”. Ao final de seu sacrifício, a
cidade volta ao normal e vocifera: “Joga pedra na Geni! joga bosta na Geni! Ela é feita para
apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá para qualquer um. Maldita Geni!”.
Geni não pode ser Geni para ter o respeito da cidade, mesmo que a sua diferença
seja um grande bem social. O status vigente orienta que todos devam ter a conduta prevista
pela moral, mesmo que isso fira princípios éticos. Era de se esperar que a marginal Geni
não se sacrificasse pela cidade que sempre a humilhou, mas talvez ela tenha visto nisso
uma oportunidade de reconhecimento que não existiu.
10
Isso nos ilumina para vermos que a cooperação pura, em sua essência é uma via de
mão dupla onde os vários lados envolvidos agem juntos para o bem da coletividade. Não eu,
mas serei apenas eu se integrada ao coletivo.
Nesse sentido o jogo cooperativo nos reintegra a essa nova racionalidade uma vez
que não possibilita a hierarquização, a experiência de poder individual sem que isso se dê
no coletivo.
Voltando ao estudo que Putnam(2002) fez na Itália, ele observa que há uma
diferença de formação de laços de confiança na parte Sul, que foi no passado mais rica e
mais fortemente influenciada pela hierarquia católica, em oposição à parte norte do país.
D’Áraujo (2010 p. 16) faz uma transposição de algumas expressões utilizadas no Sul para a
língua portuguesa:
“Se a barba do teu vizinho pegou fogo, põe a tua de molho” (quer dizer, não o ajuda a apagar o fogo, cuida da tua); “Quem empresta não melhora”; “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, e assim por diante.
Em contraposição, as expressões utilizadas no norte ficariam assim: “Uma
andorinha só não faz verão”; “O mais importante na vida é ter amigos”; “Uma mão lava a
outra”.(ARAÚJO, 2010 p. 16).
A cooperação voluntária, baseada na confiança, só é possível em sociedades
que convivem com regras culturais de reciprocidade.
1.1.2 ORIGEM DOS JOGOS COOPERATIVOS
Jogar cooperativamente se confunde com a própria história da humanidade. Não
é difícil de imaginar os inúmeros jogos promovidos dentro de uma sociedade cuja
sobrevivência era determinada pela cooperação.
No entanto, com a evolução da cultura de dominação e com a conseqüente
exacerbação do espírito competitivo, alguns grupos sentiram a necessidade de criar jogos
cooperativos, inclusive para atuar na formação ética de crianças. Segundo Fábio
Brotto(1999 p. 71):
Os Jogos Cooperativos surgiram da preocupação com a excessiva valorização dada ao individualismo e à competição exacerbada, na sociedade moderna, mais especificamente, pela cultura ocidental. Considerada como um valor natural e normal da sociedade humana, a competição tem sido adotada como regra em, praticamente, todos os setores da vida social.
11
É importante compreender quais foram as motivações que levaram à
sistematização dos jogos cooperativos.
Em meados da década de 70, o atleta de elite canadense, Terry Orlick, ficou
absolutamente incomodado com as constantes notícias de violência, agressão e desrespeito
que via nos jornais. Ele observava que uma onda encobria não apenas as grandes cidades,
mas se deslocava para as circunvizinhanças promovendo emoções coletivas como medo,
raiva, culpa. Observando mais de perto, ele percebeu que havia uma ética que justificava
essa atmosfera:
“quando as decisões importantes de uma sociedade são baseadas no lucro material, em vez de no lucro de caráter humanitário, não é de surpreender que estejamos nos afastando dos valores humanos.” (ORLICK, 1993 p. 13)
Orlick notou que os atos de corrupção e fraude deflagrados por um núcleo de
pessoas acabam por afetar toda a população, uma vez que todos estamos inseridos no
mesmo sistema.
No cenário em que se encontrava “a ética competitiva de vencer tornou-se tão
intensa que está ameaçando destruir nossa sociedade” (Orlick 1978: pag. 12)
Observando a relação sistêmica entre as pessoas, concluiu que se promovesse
ações que impactassem algumas pessoas na construção de uma ética calcada sobre a idéia
de vencer junto, esse movimento poderia agir como uma onda cooperativa contrária aquela
existente.
Começou por estudar pesquisas sobre jogos tradicionais de povos primitivos,
como os aborígenes australianos e os inuit tradicionais canadenses.
Num jogo de crianças, chamado Furar o disco, os jogadores se formavam em dois grupos e assumiam posições a uma distância de 5 metros um do outro. Enquanto um disco de cortiça era enrolado de uma extremidade a outra entre eles, cada grupo se revezava na tentativa de furar o disco com lanças.
(…)
Não parecia haver qualquer espírito de competição, fosse entre meninos ou entre os grupos; o prazer de todos estava em conseguir furar o disco de cortiça…(ORLICK, 1993 p. 171)
No mesmo estudo, Orlick observa um movimento de aculturação entre os jogos
modernos do ocidente e dos aborígenes australianos.
Quando ensinávamos às crianças a jogar futebol, o jogo invariavelmente terminava empatado. Somente depois de muito instigadas elas aprendiam a jogar para vencer. O espírito de competição logo começou a violar outros aspectos da cultura asmat. Todos os anos os homens de Erma construíam canoas novas, e cada uma delas era ocupada por um clã numa corrida. Os melhores remavam entusiasmados suas canoas, para atravessar o rio, mas chegavam à margem oposta quase no mesmo instante. Entretanto, durante uma dessas corridas anuais, alguns chegaram duas canoas à frente dos outros. A consternação foi tão grande que a corrida não foi mais realizada. (ROBERTSON, I. IN: ORLICK, 1993 pp. 106-107)
12
Estava posto que as emoções competitivas proporcionadas pelos jogos eram
capazes de influenciar a cultura, portanto a idéia era criar jogos que promovessem emoções
de cooperação. A progressão dessas emoções pode ser observada no Quadro 2.
Os estudos promoveram a motivação necessária para a criação dos jogos
cooperativos.
(…) por que não desenvolver jogos que criem uma miniatura das utopias em que gostaríamos de viver? Por que não criar e participar de jogos que nos tornem mais cooperativos, honestos e atenciosos para com os outros? Por que não usar o poder transformador dos jogos para ajudar a nos tornarmos o tipo de pessoa que realmente gostaríamos de ser?(ORLICK, 1993 p. 107)
Segundo Brotto(1999 p. 73):
Os Jogos Cooperativos foram criados com o objetivo de promover, através das brincadeiras e jogos, a auto-estima, juntamente com o desenvolvimento de habilidades interpessoais positivas. E muitos deles, são dirigidos para a prevenção de problemas sociais, antes de se tornarem problemas reais.
13
QUADRO 1 Sequencial de competição-cooperação
TABELA SEQUENCIAL DE COMPETIÇÃO – COOPERAÇÃO
CATEGORIA DE
COMPORTAMENTO
ORIENTAÇÃO MOTIVAÇÃO PRINCIPAL
Rivalidade competitiva Anti-humanista Dominar o outro. Impedir que os outros alcancem
seu objetivo. Satisfação em humilhar o outro e
assegurar que não atinja seus objetivos.
Disputa competitiva Dirigido para um
objetivo (contra os
outros)
A competição contra os outros é um meio de atingir
um objetivo mutuamente desejável, como ser o
mais veloz ou melhor. O objetivo é de importância
primordial, e o bem estar dos outros competidores
é secundário. A competição é às vezes orientada
para a desvalorização dos outros.
Individualismo Em direção ao ego Perseguir um objetivo individual. Ter êxito. Ar o
melhor de si. O foco está em realizações e
desenvolvimento pessoais ou o aperfeiçoamento
pessoal, sem referência competitiva ou cooperativa
aos outros.
Competição cooperativa Em direção ao objetivo
(levando em conta os
outros)
O meio para se atingir um objetivo pessoal, que
não seja mutuamente exclusivo, nem uma tentativa
de desvalorizar ou destruir os outros.O bem-estar
dos competidores é sempre mais importante do
que o objetivo extrínseco pelo qual se compete.
Cooperação não
competitiva
Em direção ao objetivo
(levando em conta os
outros)
Alcançar um objetivo que necessita de trabalho
conjunto e partilha. A cooperação com os outros é
um meio para alcançar um objetivo mutuamente
desejado, e que também é compartilhado.
Auxílio cooperativo Humanista-altruísta Ajudar os outros a atingir seu objetivo. A
cooperação e a ajuda são um fim em si mesmas,
em vez de um meio para se atingir um fim.
Satisfação em ajudar outras pessoas a alcançar
seus objetivos.
Fonte: Terry Orlick (1993 p. 106)
Mas Orlick não foi o único que se aventurou na sistematização do jogo
cooperativo, inúmeros educadores identificaram no jogo um caminho para desenvolvimento
do ser, dando início à formação de uma rede mundial de cooperação.
14
1.1.3 O JOGO COOPERATIVO NO BRASIL
O Brasil, atuando como nodo da rede, dentro movimento mundial no caminho da
paz e da cooperação, também teve importantes iniciativas a partir da década de 70, com
encontros e oficinas, de maneira ainda muito tímida.
No entanto, na década de 80, a difusão dos jogos começou a ganhar corpo e
inúmeros eventos foram articulados tendo os jogos cooperativos como estratégia ou como
finalidade.
O Quadro 3, elaborado a partir de informações de Brotto(BROTTO, 1999 pp. 78-
83) apresenta uma síntese da movimentação dos jogos cooperativos no Brasil de 1980 a
1998.
QUADRO 2 Jogos cooperativos no Brasil 1978-1998
QUANDO ONDE QUEM O QUÊ
1980 Brasília – DF Escola das Nações
Fundada tendo como filosofia a Educação para a Paz e como um de
seus principais pressupostos pedagógicos, os Jogos Cooperativos e a
Aprendizagem Cooperativa.
1988 Brasil Universidade Espiritual
Mundial Brahma Kumaris
Publica a edição piloto do manual Cooperação na sala de aula: um
pacote para professores, trazendo atividades cooperativas para a
construção de um Mundo Melhor.
1989
São Paulo – SP Editora Círculo do Livro
Publica o livro Vencendo a Competição, de Terry Orlick, primeira obra
lançada no país sobre o tema.
1989
Brasília – DF
Comunidade Bahá’i do
Brasil
Encaminha, para a Rede Globo de Televisão uma proposta para
inclusão de Jogos Cooperativos no programa Xou da Xuxa
1990
Belo Horizonte –
MG
III Simpósio Internacional
de Psicologia do Esporte
Fábio Brotto ministra a palestra Competir ou Cooperar, qual a melhor
jogada? iniciando um diálogo que mais tarde resultaria na produção de
outras publicações e realização de programas em Jogos Cooperativos.
1991
São Paulo – SP
Centro de Práticas
Esportivas da USP
(CEPEUSP)
Fábio Brotto e Prof. Jofre Cabral de Menezes oferecem um programa
semestral de Jogos Cooperativos aberto à comunidade universitária
1992
Santos – SP
Projeto Cooperação –
Comunidade de Serviços
Fábio Brotto e Gisela Sartori Franco criam a primeira organização
brasileira plenamente dedicada a difusão dos Jogos Cooperativos e da
Ética de Cooperação.
1992 Santos – SP Projeto Cooperação e
Athenas Promoções Realização da primeira Oficina de Jogos Cooperativos para Educadores
1992 Santos – SP Colégio Positivus I Gincana Cooperativa para um Mundo Melhor, envolvendo alunos,
pais, professores, funcionários e a comunidade.
1993 Salvador – BA IV Congresso Holístico
Brasileiro
Primeira realização de uma Oficina de Jogos Cooperativos em um
evento nacional.
1994 São Leopoldo –
RS Editora Sinodal
Publicação do segundo livro no Brasil: Jogos Cooperativos: teoria e
prática de Guilhermo Brown
1994 Salvador – BA
Suryalaya - Centro de
Pesquisas
Transdisciplinares e
Projeto Cooperação.
I Encontro Jogos Cooperativos e Jogos Essenciais
15
1995 São Paulo – SP CEPEUSP
I Clínica de Jogos Cooperativos. Simultaneamente é Lançada a Rede
de Jogos Cooperativos para reunir estudos e experiências realizadas no
Brasil.
1995 São Paulo – SP CEPEUSP Publicação do primeiro livro de autor brasileiro: Jogos Cooperativos: se
o importante é competir, o fundamental é cooperar, de Fábio Brotto.
1995 Brasília – DF
Instituto Nacional para o
Desenvolvimento do
Desporte (INDESP)
Lançamento do Programa Esporte Educacional, tendo os Jogos
Cooperativos como uma de suas Pedagogias.
1995 Santos – SP Secretaria de Esportes
Apresentação do projeto piloto Jogos Escolares Cooperativos, que mais
tarde influenciou outras experiências em diferentes localidades, como
por exemplo, no projeto Jogos Cooperativos: uma proposta
experimental, da Secretaria de Estado da Educação de Rondônia.
1996 Santos – SP Projeto Cooperação
Através de um intercâmbio com o grupo canadense Family Pastimes,
liderado por Jim Deacove, lança o Jogo da Terra e o Lugar Bonito,
primeiros Jogos Cooperativos de Tabuleiro produzidos no Brasil.
1996 Guarujá – SP Gisela Sartori Franco
A psicóloga do Esporte aplica os Jogos Cooperativos na preparação
psicológica da equipe de vôlei feminino da BCN-Guarujá, vice-campeã
brasileira e base da Seleção Olímpica daquele ano.
1998 São Paulo – SP
Cooperando: Consultoria
em Dinâmicas
Cooperativas
É constituída a segunda organização dedicada ao desenvolvimento de
programas e serviços para a promoção da Cooperação e Jogos
Cooperativos
1998 São Paulo – SP Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo
O livro Jogos Cooperativos: se o importante é competir, o fundamental
é cooperar é adotado como bibliografia básica no Concurso Público
para Professor de Educação Básica II, na disciplina de Educação
Física.
Fonte: Jogos Cooperativos: o jogo e o esporte como exercício de convivência.
A principal responsável pela difusão dos jogos cooperativos em solo nacional foi
a fundação do Projeto Cooperação em 1992. Tendo como estratégia a realização de
oficinas, palestras, eventos, publicações e produção de jogos e material didático. Inúmeras
ações partiram dessa criação que nasceu a partir do sonho de Fábio Brotto de realizar algo
que promovesse a cooperação no mundo.
A primeira clínica de jogos cooperativos, realizada no CEPEUSP (Centro de
Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo), produzida pelo Projeto Cooperação, em
parceria com a Universidade de São Paulo, foi um marco na difusão dos jogos cooperativos
para outras áreas além da educação física. Como era um evento aberto à comunidade de
estudantes da universidade, atraiu alunos da pedagogia, psicologia, filosofia, administração
16
dentre outras, que reconheciam nos jogos as ferramentas de práticas de alinhamento de
grupos, e passaram a difundir os jogos cooperativos em seus respectivos setores3.
Em 2000, foi criada a pós-graduação em Jogos Cooperativos, uma parceria do
Projeto Cooperação e da Unimonte, com o objetivo de ampliar a difusão dos jogos e iniciar
um processo de produção científica a partir da publicação das dissertações. Atualmente a
pós-graduação conta com três pólos: São Paulo, Brasília e Florianópolis. Os alunos pós-
graduados em jogos cooperativos destacam-se por seus trabalhos dentro e fora do Brasil.
Atualmente os jogos cooperativos estão inseridos no cenário nacional tanto
dentro do ensino de educação física, fazendo parte da grade curricular dos cursos de
graduação e pós-graduação de diversas universidades, quanto como ferramenta no trabalho
de alinhamento de equipes no mundo corporativo e parte de projetos de educação
comunitária.
Nos anos 2000 os jogos cooperativos passam a ser apresentados como
ferramentas de desenvolvimento de capital social e tornam-se integrantes de tecnologias
sociais.
Uma importante tecnologia social é o Jogo Oasis(INSTITUTO ELOS, 2011), que
tem como objetivo o desenvolvimento de comunidades a partir da observação apreciativa do
local. O jogo foi criado em 2003, por arquitetos e urbanistas da cidade de Santos, dentre
eles Edgard Gouveia, criador do Instituto Elos, pós-graduado em Jogos Cooperativos e
focalizador do Projeto Cooperação e tem como objetivo convidar uma comunidade a
promover a transformação do seu local por meio de recursos próprios. O planejamento é
feito em quatro semanas e a execução em 3 dias.
Segundo o Instituto Elos a missão do Jogo Oasis é:
Despertar e cultivar um espírito de empreendedorismo social cooperativo nos membros da comunidade, restaurar e/ou fortalecer as relações e ligações afetivas e cultivar o senso de oportunidade e responsabilidade para cuidar do local e das pessoas que vivem nele.(INSTITUTO ELOS, 2011)
3 Informação obtida a partir de entrevista pessoal com Fábio Brotto.
17
Augusto de Franco e Cacau Guarnieri desenvolveram o jogo O melhor lugar do
mundo (FRANCO, 2011) que, com uso de ferramentas da internet, tem como objetivo
promover ações reais de desenvolvimento sustentável nas comunidades.
Segundo a socióloga Riane Eisler(2007), desde que os primeiros nômades indo-
europeus invadiram os vales férteis a fim de se alojarem e estabelecerem uma operação de
guerra contra as populações que ali viviam, há aproximadamente 6500 anos, teve início uma
cultura cujo maior valor era a posse. Não importavam as atitudes tomadas para manter a
propriedade, os que se opunham, deveriam ser eliminados.
Mas de que forma aconteceu a passagem de uma cultura sistêmica e de
parceria para outra de dominação?
O biólogo chileno, Humberto Maturana (2009 pp. 50-62) formula uma teoria
bastante coerente sobre esse processo, que irei resumir aqui:
No início, todos os povos do paleolítico eram nômades e faziam constantes
movimentos migratórios a fim de conseguirem abrigo e alimento. Eram basicamente
coletores, mas também dedicavam alguma atividade para a caça. Essas populações
humanas, que não passavam de pequenas tribos, acompanhavam as manadas no seu
deslocamento e, com isso, tinham uma certa garantia de subsistência. No entanto, não eram
os humanos os únicos predadores a acompanhar essas manadas, havia outros animais que
também tinham na caça sua principal fonte de alimento, dentre eles os lobos.
Lobos e homens partilhavam harmonicamente o espaço, sem disputá-lo, ora os
homens abatiam a caça, ora eram os lobos. É importante lembrar que eram tempos difíceis
e o fato de não ser bem sucedido em uma caçada podia representar a morte de alguns
indivíduos no bando, de cá ou de lá.
2 CULTURA DA COOPERAÇÃO
18
Eis que um dia, na disputa pelo alimento, algum humano resolve afugentar os
lobos, a fim de que ele se afaste da manada.
Este ato determina uma mudança no emocionar daquele ser humano que,
naquele momento, reconhece o sentimento de posse.
A sugestão de Maturana é que, até ali, as populações humanas não tinham
experimentado o emocionar da apropriação e que reconheciam os direitos dos lobos como
comensais.
O ato de um único homem de afugentar os lobos, não determina uma
transformação da cultura, mas é o início de um processo que se instala na rede de
conversações.
Na próxima caçada, este homem orienta seu companheiro a auxiliá-lo para que
afugente os lobos. Esse ato vai se tornando mais vultoso até que seja uma prática de caça.
Note que há uma mudança no emocionar, não apenas o sentimento de posse,
mas também o de superioridade, do “eu tenho mais direito a essa caça que você”, começa a
florescer.
Essa rede de conversações evolui, a prática passa a ser cotidiana, até que
alguém mata o lobo a fim de negar-lhe a caça. É importante que se observe não a morte em
si, mas o emocionar que a acompanha: os homens estavam acostumados a matar animais,
esse é o pressuposto da caça, no entanto, o emocionar muda completamente, o respeito
pelo animal morto, pelo que ele representa. Matava-se pela subsistência e não pela
exclusão. A emoção que acompanha o ato de matar um lobo para negar-lhe o alimento é
completamente diferente de matar-se um animal e usá-lo como alimento. No segundo caso,
a morte faz parte de um sistema ecológico, no primeiro faz parte de uma relação de
domínio.
A partir daí os homens passaram a cercar suas manadas e transformaram-se em
pastores.
Maturana(2009 p. 55) observa o seguinte:
Com efeito, acho que com a origem do pastoreio surgiu o inimigo – aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa.
Essa mudança no emocionar pastoril passa a contaminar todas as operações da
vida humana por meio de uma rede de conversações que suscitam:
19
a) Relações de apropriação e exclusão, inimizade e guerra, hierarquia e
subordinação, poder e obediência;
b) Desconfiança ativa e desejo de dominação e controle;
c) Abundância unidirecional, valorização da procriação e o crescimento
ilimitado;
d) Fragmentação em relação ao sistema ecológico.
O mais importante é observar que essa mudança no emocionar constrói
paulatinamente princípios éticos.
Acabo de ler na internet (Agência Estado, 2011) a notícia de um homem em
Goiânia que, após ter sua propriedade invadida oito vezes pela mesma pessoa, “montou
uma engenhoca utilizando fios, um pedaço de cano, ratoeira, munição utilizada em
espingarda e pólvora”. Assim que o assaltante abriu a porta, a armadilha foi acionada. Ele
morreu imediatamente no local. O dono do imóvel poderá ser condenado a 30 anos de
prisão por homicídio doloso duplamente qualificado.
Pare um momento e perceba a emoção que isso causa.
Aproveito esse espaço para reproduzir uma história contada por Maurício
Abdalla (ABDALLA, 2004):
Dois amigos andavam na floresta quando apareceu um leão e pôs-se a
persegui-los com intuito de devorá-los. Um deles interrompe a carreira para calçar um tênis
de corrida. O outro se surpreende e pergunta ao amigo se ele acha mesmo que com aquele
tênis vai conseguir correr mais do que o leão, ao que o amigo responde: Eu não preciso
correr mais do que o leão. Basta-me correr mais do que você.
Por essas duas histórias percebe-se que não é uma questão da moralidade, mas
da ética, afinal são os valores que determinam as leis. No caso ocorrido em Goiânia, parece
justificável, dentro da rede de conversação, que se tire uma vida humana para não ter o
imóvel invadido.
O que permitiu que evoluíssemos como espécie foi o fato de vivermos em
bando, em comunidade. E agora é aquilo que nos empurra vertiginosamente para a
extinção.
Posto desta forma evidencia-se a defectividade desse modelo bipolar: quando a
sobrevivência de uma espécie requer a eliminação ou escravização da outra, aproxima-se o
colapso, uma vez que tudo faz parte de um mesmo sistema. A violência urbana é gerada por
nada mais que a manifestação uma casta marginalizada (os lobos), que, uma vez expulsa
da cadeia produtiva regular, porque está fora do modelo, procura um meio alternativo de
subsistência. As catástrofes naturais, as guerras, a violência doméstica e todas as demais
manifestações violentas, de qualquer espécie, obedecem a mesma lógica.
20
Mas como reverter os valores dessa rede de conversações?
A confiança mútua é mais provável de ocorrer quando as pessoas são
positivamente orientadas para o bem-estar do outro. E o desenvolvimento dessa orientação
positiva é incentivada pela experiência da cooperação bem-sucedida. De acordo com
Orlick(1993 p. 31): “A cooperação exige confiança porque, quando alguém escolhe
cooperar, conscientemente coloca seu destino parcialmente na mão dos outros”.
O jogo cooperativo é uma atividade de transformação de uma rede de
conversações, uma vez que promove “artificialmente” uma recolocação do indivíduo diante
da rede a qual pertence. É como um laboratório, um micro-universo para a experimentação
de valores cooperativos e avaliação da ética individual.
Nesse sentido, os Jogos Cooperativos são uma maravilhosa prática da construção e invenção de si mesmo, da expansão da diversidade e do desenvolvimento individual, na medida em que é uma oportunidade de relacionar-se com outras pessoas, de maneira cooperativa e lúdica, sem perder de vista ou abrir mão de suas individualidades. É uma celebração coletiva de indivíduos exatamente como os rituais de iniciação celebravam o nascimento de novos seres no Espírito. (AGUENA, 2011)
Desta forma, o jogo cooperativo mostra-se como agente propulsor da
transformação dos princípios éticos individuais e conseqüente transformação da rede de
conversações que circundam este indivíduo. É a reversão da relação entre homem e lobo. E
isso parte do indivíduo que, indo no contra fluxo da cultura, acolhe o lobo e o recoloca como
participante do sistema. Observem que, ao recolocar o lobo, o ser humano também retorna
à rede.
E como o jogo cooperativo articula esta transformação?
É isso que veremos agora.
2.1 O FOCALIZADOR
À pessoa responsável pela aplicação dos jogos cooperativos dá-se o nome de
focalizador, cujo termo está ligado à etimologia da palavra foco, focus, que em latim quer
dizer fogo(HOUAISS, 2009), ou seja, ele tem a função de manter acesa a chama durante o
jogo.
O focalizador tem um papel importante para o jogo cooperativo, uma vez que ele
não apenas promove a ação como também serve como constante balizador da prática.
Para ter a abrangência do termo, é importante compreender a sua origem.
Falcão e Vila(2002 p. 12) esclarecem:
21
O termo focalizador define um tipo de liderança que surgiu na comunidade de Findhorn, Escócia, onde é dada uma atenção especial ao uso ético do poder de quem coordena e dos relacionamentos humanos. As decisões são tomadas a partir do uso tanto da mente lógica, racional e objetiva quanto da intuição, meditação e Inteligência emocional.
A postura do focalizador é de suma importância para o andamento do jogo
cooperativo, como dizem Falcão e Vila(2002 p. 13)
O focalizador também é responsável por estar ciente do propósito geral do grupo, do contexto da atividade sendo executada no momento, procurar equilibrar diferentes demandas de tempo, energia e dinheiro, fazer com que a situação de cada participante do grupo seja considerada, estimular a interação entre o grupo e agir como elemento de ligação com outros grupos.
Sua postura deve ser neutra e sem julgamentos em relação aos jogadores, mas
precisa ser precisa a fim de que a experiência de autodescoberta do grupo se concretize. De
acordo com David Platts(PLATTS, 1997):
1. Ajuda, dá apoio e permite que algo aconteça;
2. Aceita qualquer resultado como válido, útil e enriquecedor;
3. Focaliza-se principalmente nas pessoas e suas necessidades;
4. Respeita as pessoas e as aceita como de fato são.
O focalizador precisa aprender o máximo possível do grupo de jogadores, afim
de identificar seus medos e potencialidades de forma a criar um ambiente seguro em que
ambos se revelem.
2.1.1 CAV (CICLO DE APRENDIZAGEM VIVENCIAL)
Um dos elementos essenciais para a garantia de que o capital social promovido
durante o jogo extrapole a área restrita aos participantes daquele evento e contamine as
demais redes de conversações, influenciando assim em movimentos de alteração no
emocionar, é a compreensão de que a focalização precisa sustentar um ciclo completo que
atinja diferentes níveis de aprendizado, o Ciclo de Aprendizagem Vivencial que, de acordo
com a psicóloga Maria Rita Gamigna(2007):
Quando as pessoas vivenciam um jogo em todas as fases, além de maiores chances de alcançar a aprendizagem, têm a oportunidade de trabalhar os dois hemisférios cerebrais de forma harmônica, sem que haja predominância de um deles durante todo o tempo, como acontece nos métodos mais ortodoxos.
22
O ciclo de aprendizagem vivencial pressupõe cinco fases distintas e
complementares que serão resumidas a partir de Gramigna (2007) e Teixeira(2001):
1ª fase – vivência
O ato concreto do jogo que promove a ação diante do novo
2ª fase – relato
Após a execução do jogo, o grupo se reúne para dialogar sobre as experiências
vividas durante o jogo. Este é um momento de se compartilhar dificuldades físicas para a
execução, emoções vividas, memórias suscitadas etc. O relato pode ser feito em duplas,
pequenos grupos ou em plenária. É uma importante ferramenta para que o grupo se conecte
aos sentimentos vividos. O focalizador deve orientar para que as frases sejam proferidas
sempre em primeira pessoa estejam sobretudo ligadas às sensações.
3ª fase – processamento
Este é o momento fundamental para a percepção dos valores oriundos dos
participantes e aqueles suscitados pelo jogo. A fim de que o jogo seja processado é
importante que a visão sistêmica entre jogadores e jogo seja paulatinamente restabelecida
de forma a trazer luz à rede criada durante o jogo. Durante a Travessia, os jogadores estão
aparentemente separados em diferentes nichos, no entanto, no processamento reconstrói-
se a idéia de que todos permaneceram conectados durante todo processo uma vez que o
objetivo de atravessar a sala é uma meta coletiva.
Alguns aspectos que devem ser tratados durante o processamento:
Relação individual com a meta do jogo;
Sentimentos com relação aos parceiros;
Organização;
Liderança;
Comunicação;
Diversão;
Segurança.
Durante o processamento é importante acolher os comentários do grupo sem
que haja julgamento. O focalizador deve estará aberto a aprender sobre a cultura daquele
grupo e não impor comportamentos.
4ª fase – generalização
A generalização é a ampliação do ocorrido no jogo para situações análogas do
dia-a-dia. Aqui os jogadores colocam a suas experiências de vida e dividem com o grupo.
23
Esta experiência de diálogo precisa ser conduzida de maneira muito delicada uma vez que
cada jogador que pede a fala está se expondo para os demais, observando comportamentos
que vão além do jogo. Não há espaço para a ansiedade de diálogos rápidos e colocações
intensas. O processo de generalização pressupõe um aquecimento do grupo e fica mais rico
à medida que o grupo se conhece e joga cada vez mais.
5ª fase – aplicação
Este é o momento em que se propõe a aplicação das experiências benéficas no
cotidiano de cada jogador. Recolocar-se em posições que não tinham sido experimentadas
anteriormente, mas que geraram prazer e conforto.
A importante que se tenha a clareza de que o maior aprendizado é aquele que
acontece internamente nos jogadores que não poderão ser, num primeiro momento,
sistematizados e divididos com todos, mas que, aos poucos dão vazão a novas posturas e
comportamentos.
A mudança no emocionar não acontece com um único jogo, é a constância do
jogar junto, com objetivos comuns, que proporciona essa transformação.
2.1.2 PROCEDIMENTOS
O atuação do focalizador deve levar em consideração um caminho para a
construção de uma aprendizagem cooperativa, que deve levar em consideração os
seguintes procedimentos:
O Círculo e o Centro:
A forma de organização do grupo deve acontecer em círculo em torno de um
centro. Isso acontece para recuperarmos o sentido de Comum-Unidade, pois na roda todos
são vistos como iguais; todos se vêem e são vistos por todos; não há quem está acima, nem
abaixo; todos estão no Círculo, nem dentro, nem fora.
Assim, em Círculo, somos estimulados e estimuladas a manter atitudes e relações circulares, aquelas que são capazes de aparar as arestas, de arredondar os cantos, de harmonizar as diferenças e de encurtar as distâncias… Aproximando-nos do Centro Como-Um. Ao compor um Círculo, reconhecemos a existência de um Centro, de algo que está entre-nós, que é comum a todos e todas, sem exceção. Nele está aquilo que é essencial para o grupo… é o fogo que precisa ser mantido vivo no centro da roda. E por ser assim, é cuidado por cada um e cada uma… Todo o tempo. (BROTTO, 2006)
A construção do centro pode ser feita por meio da colocação de um objeto
simples e familiar ao grupo: vaso de flores, pedras, uma pequena toalha, ou qualquer coisa
que possa ter um sentido especial para a focalização.
24
A Ensinagem Cooperativa:
É o processo de ensino-aprendizagem de construção da inteligência coletiva.
Segundo Fábio Brotto (2006), é dividida em três movimentos:
Convivência: Ter a vivência compartilhada como o contexto fundamental para a
aprendizagem. É preciso experimentar para poder re-conhecer a si mesmo e aos outros.
Consciência: Criando um clima de cumplicidade entre os participantes,
incentivando-os a refletir sobre a convivência na Atividade e sobre as possibilidades de
modificar comportamentos, relacionamentos e até da própria Atividade, na perspectiva de
melhorar a participação, o prazer e a aprendizagem de todos.
Transcendência: Ajudando a sustentar a disposição para dialogar, decidir em
consenso, experimentar as mudanças propostas e integrar na Atividade e na vida, as
transformações desejadas.
Do mais simples para o mais complexo:
De certo modo, toda evolução ocorre de dentro para fora, do pequeno para o
maior, do mais próximo para o mais distante, do indivíduo para a sociedade. Assim,
aprendemos a correr, aprendendo a andar; aprendemos a escrever, aprendendo a falar, não
seria diferente o re-aprender a cooperar..
Começar e terminar com todos juntos:
O jogo cooperativo não exclui ninguém durante a sua ação. Todos começam e
terminam juntos.
2.1.3 FONTES PARA ESTUDO DE JOGOS COOPERATIVOS
Quando comecei a construir essa apostila, pensei em colocar alguns exemplos
de jogos cooperativos, mas a Revista Jogos Cooperativos (www.jogoscooperativos.com.br)
que é uma publicação on line traz um grande número de jogos para a pesquisa e utilização
dos focalizadores interessados em usar a ferramenta para desenvolvimento de grupos.
“O que há de excitante nos novos jogos é que eles permitem recomeçar.” Terry Orlick
Há alguns anos, focalizei o jogo Travessia em um grupo de jovens em situação
de risco social na cidade de Catanduva. Esses jovens participavam do programa PET
(Programa de Educação para o Trabalho) do Senac e tinham como característica coletiva
não ter iniciativa. A docente que trabalhava com eles já havia me avisado que seria difícil
CONSIDERAÇÕES FINAIS
25
promover qualquer tipo de jogo uma vez que eles eram completamente apáticos. Preparei
minha focalização de acordo com o protocolo, começando pelo mais simples e aumentando
a complexidade à medida que a sequência fosse evoluindo.
O primeiro jogo consistia em passar uma bolinha falando o próprio nome e
receber falando o nome de quem a tivesse passado, depois novamente passar dizendo o
seu. Foram dez ou doze rodadas e a bolinha não alcançava o meio da roda. Eles atiravam
sem o menor esforço. Coloquei uma peteca para introduzir um pouco mais de dinâmica,
mas nada aconteceu: a peteca batia por duas, três mãos e caia.
Alguma coisa me dizia que aqueles jovens precisavam ser desafiados. Tinham
ouvido inúmeras vezes, de todas as formas, que não tinham vitalidade, que não eram
capazes de gerir suas vidas, que eram marginais.
Quebrei o protocolo e, depois da peteca, introduzi Travessia4.
Apostei com eles que, se cumprissem todas as etapas do jogo5, eles ganhariam
uma caixa de bombons de uma marca famosa. Assim que propus o jogo, um menino subiu
em cima da cadeira e soltou um sonoro: “Já sei!” Foi a forma que ele teve de avisar a todos
que sabia como podiam se deslocar. De repente, eles começaram a subir nas cadeiras com
uma vitalidade incrível, como se algo tivesse se acendido dentro deles.
Eles cumpriram a primeira parte e, quando estavam formando o círculo, uma
jovem passou mal. Essa menina tinha em seu histórico duas tentativas de suicídio e um
quadro anoréxico grave.
Ela, no entanto, não quis parar o jogo, porque tinha consciência de que, se
parasse, todos perderiam. O grupo todo se mobilizou para pegar uma cadeira extra, que
estava fora do círculo e, para isso, eles precisaram refazer parte do caminho. Ela se sentou,
colocou os pés nesta cadeira extra e, a partir daí, todo jogo foi feito tendo essa jovem como
referência. A ordem alfabética dos nomes passou a ser organizada a partir do nome dela.
Quando eles completaram a travessia, todos comemoravam como na final de um
grande campeonato. Paramos para conversar sobre como tínhamos nos sentido a fim de
fechar o nosso Ciclo de Aprendizagem Vivencial. Para meu espanto, eu fui a única pessoa
que se lembrou dos bombons.
4 O jogo se desenvolve da seguinte maneira: em uma sala há apenas pessoas e cadeiras, uma
cadeira para cada pessoa, especificamente. As pessoas são divididas em quatro grupos com o mesmo número de componentes, ou o mais próximo disso. Os grupos deverão estar dispersos na sala de forma a cada grupo ocupar um canto, ficando o mais distante possível dos demais grupos. O objetivo é que as pessoas se desloquem pela sala de forma a trocarem de lugar com as dos grupos diametralmente opostos. No entanto, durante este percurso, nenhuma parte do corpo de nenhum participante poderá tocar o chão nem as cadeiras deverão ser arrastadas. 5 Há uma segunda parte em que, após atravessarem a sala, o grupo todo se organiza em um único
círculo em ordem alfabética
26
Durante os relatos, esses jovens usavam expressões como “Nossa!”, “Puxa!”,
“Legal!”, “Energia!” e umas tantas outras, menos adequadas nesta apostila, mas igualmente
legítimas e inequívocas.
Tive notícias de que esse mesmo grupo, em seu Plano de Ação na Comunidade,
uma das etapas da metodologia do PET, que aconteceu algumas semanas depois, quis
reformar um pequeno parque infantil. Dias depois passei por lá e vi o trabalho maravilhoso
que haviam feito: um parque que tinha sido abandonado há anos e se tornado ponto de
usuários de drogas estava lindo como em um filme: gramado, os brinquedos coloridos,
pinturas de dinossauros e outros personagens infantis na parede.
Não sei se aquele jogo os ajudou, mas gosto de pensar que foi responsável por
uma pequena parte da chama que eles levaram.
No dia da formatura deles, mandei a caixa de bombons com um bilhete: “É num
mundo com pessoas como vocês que eu quero viver.”
De acordo com estudos científicos, os seres humanos estão há 250.000 anos no
planeta e temos apenas 6.500 de cultura de dominação. Se compararmos as duas
grandezas, é observável que a humanidade tem muito mais experiências cooperativas do
que o contrário. A questão está em acordar tudo isso e transformar essa competitividade,
que aprendemos ser parte da nossa natureza, em passado.
Essa é uma decisão individual.
Assim como esses jovens, o meu trabalho não termina aqui. Levo comigo a
missão de espalhar a cooperação e mostrar o quanto ela pode ser um caminho de potência
para a transformação do mundo. Esse é um convite.
Como indivíduo, eu construo o coletivo que me devolve por meio da cultura, da
rede de conversações, quem eu sou. Eu sou fruto desse inevitável jogo que me circunda,
mas que, ao mesmo tempo, acolhe-me. E é desta forma que o jogo cooperativo se
estabelece como uma alegre guerrilha no caminho da paz.
27
ABDALLA Maurício O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade
[Livro]. - São Paulo : Paulus, 2004. - 2.a edição.
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