Jornal da ABI 400

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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Os sócios da ABI em todo o Brasil terão oportunidade, pela primeira vez, de escolher livre e democraticamente os novos dirigentes da Casa. PÁGINA 3 ABRIL 2014 VIDAS RODOLFO KONDER • LUCIANO DO VALLE • GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ • HENRY MAKSOUD VOTO ELETRÔNICO COLOCA A ABI NO SÉCULO 21

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Esta é uma edição especialíssima: o Jornal da ABI chega ao número 400 com muito ânimo e recebendo os parabéns de seus leitores. Destaque também para a continuação da série de matérias que lembram os 50 anos do golpe militar de 1964. E a tristeza sem fim pelas perdas irreparáveis de Rodolfo Konder, Luciano do Valle e Gabriel García Márquez.

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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Os sócios da ABI em todo o Brasil terão oportunidade, pela primeira vez, de escolher livre e democraticamente os novos dirigentes da Casa. PÁGINA 3

ABRIL2014

VIDAS RODOLFO KONDER • LUCIANO DO VALLE • GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ • HENRY MAKSOUD

VOTO ELETRÔNICO COLOCA A ABI NO SÉCULO 21

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2 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

EDITORIAL

os antigos tratados de Demonologia, Sa-tanás, Efialta ou Asmodeu, tambémconhecido como “o pai da men-

tira”, só conseguia mover-se no territó-rio das trevas. Com suas mentiras pescava sem-pre carpas de verdade. Voltava para o inferno comcardumes de incautos. Suas melhores vítimas eramas almas ingênuas que não percebiam sua extra-ordinária habilidade em semear o ódio e a cizâniaentre os bons.

The devil is in detail, “o diabo está nos detalhes”,alertavam os mais velhos que conheciam comopoucos as misérias da condição humana. Comoexplicar a presença compungida de pessoas de bemem procissões de ar vaporoso como a elas se re-feriu certa vez Baudelaire ao escrever As Floresdo Mal? Apesar do ar empesteado de enxofre, eramincapazes de perceber que estavam sob a influ-ência do Canhoto que agia sempre à sorrelfa. Mastanto a mentira como a má-fé tem rabo, chifrese pernas curtas como o Cramulhano. Joseph Go-ebells, propaganderminister de Adolf Hitler, acre-ditava piamente nas mentiras e caretas que en-saiava no banheiro.

O discurso dos mentirosos contumazes tem aprofundidade da superfície de um espelho. Comonão dispõem de uma bússola moral, a agulha mag-nética está sempre apontada numa única dire-ção: a compulsiva conquista do po-der. Habituados a conviver com afraude e a falsificação da verdade,são constantemente obrigados a re-correr a velhos truques de presti-digitação na tentativa de legitimarsuas mentiras.

Obcecados por esse projeto, nãoperceberam que se transformaramem cópia grosseira do famoso perso-nagem infantil criado em 1883 peloescritor italiano Carlos Collodi. Esculpido em umtronco de árvore pelo entalhador Geppetto, Pinoc-chio não passava de um boneco de madeira que so-nhava em ser um menino de verdade.

As mentiras que Pinocchio inventava, todos osdias, faziam o nariz e as orelhas crescerem comoas de um burro. Os bonecos de carne e osso ceva-dos nos desvãos da ABI jamais exibiram a inocên-cia e a pureza do personagem que ganhou vida naspáginas do Giornale per Bambini, prestigiada pu-blicação para crianças, onde Pinocchio nasceu ecresceu no final do século 19.

história dos Pinocchios que passaram osmelhores anos de suas vidas acampados naABI não pode ser encontrada em livros in-

fantis por se tratar de leitura proibida para meno-res. O conjunto de episódios desconcertantes por

PINOCCHIOS

eles produzidos, que tanto envergonha a todos nós,está reunido nos autos do processo 0107472-04.2013.8.19.0001, da Justiça do Estado do Riode Janeiro. Ali estão as provas do crime. Nosquatro volumes do processo estão catalogadasas manobras insidiosas e os expedientes espú-rios, incompatíveis com o exercício da profissão,

que foram utilizados para impedirque a chapa Vladimir Herzog par-ticipasse das eleições da ABI, em abrildo ano passado.

Ao anular o pleito, a Justiça ape-nas cumpriu o que dela se esperava.A robustez das provas era tão signi-ficativa que os autos eram capazesde falar por si.

Apesar de terem recorrido e seremderrotados em todas as instâncias do

judiciário a que apelaram, os Pinocchios que trans-formaram a Casa dos Jornalistas num parque dediversões voltaram-se agora contra a própria jus-tiça de forma insultuosa. Acusam o Presidente Tar-císio Holanda de ter assumido a presidência da ABIna base do tapetão, quando era o vice do Presiden-te recém-falecido e seu legítimo sucessor. Escon-dem que quatro dias depois da morte de MaurícioAzêdo transmudaram, num passe de mágica, umaReunião Ordinária do Conselho Deliberativo daABI em sessão Extraordinária e cassaram o man-dato de Tarcísio Holanda. Na mesma sessão, aoarrepio do Estatuto e do Código Civil, elegeramFichel Davit Chargel Presidente da ABI até 2016.A Justiça pode ser cega, mas não é constituída depessoas idiotizadas como aqueles que votaram deforma açodada em um candidato que jamaispoderia ser eleito.

Naquela sessão tresloucada, que entrará para ahistória da ABI como uma das páginas mais deplo-ráveis da Casa, o Conselho parecia possuído porAsmodeu. Não se apiedaram da morte do Presi-dente que fora traído pelo coração quatro diasatrás. Não lhe prestaram qualquer homenagempóstuma. Não se ouviu nenhuma palavra de pe-sar diante do passamento do profissional talen-toso e orador brilhante, mas de gênio difícil, queescolhera a dedo cada um dos conselheiros pre-sentes naquela sessão. Ninguém estava preocu-pado com a dor e o luto. Não se pediu sequer umminuto de silêncio em memória do seu falecimen-to. Em nenhum momento pronunciou-se seunome. Era como se o Presidente morto há qua-tro dias jamais tivesse existido.

As cenas que se viram a seguir foram degradan-tes. As máscaras se desafivelaram e as ambições pes-soais afloraram, sem disfarces, exibindo-se de cor-po inteiro. A face mais deplorável do ser humanofoi exposta naquela tarde, sem nenhum pudor, nasala de reuniões do Conselho. Seus integrantes maispareciam bandos de hienas enlouquecidas que semoviam, em grupos, lutando entre si, em tornode uma carniça. Agiam como a mesma voracida-de e selvageria dos predadores que se acreditavaexistirem apenas nas savanas africanas.

o serem atingidos pela espada de Dâmoclesvoltaram-se, com a mesma fúria, contra opoder Judiciário e a Diretoria da ABI, reem-

possada diante das fraudes que cometeram. Apesarde apanhados em flagrante delito e punidos pelo rigorda lei não se deram por vencidos. Passaram a usar amentira como estilingue contra os diretores da Casa.

Esses Pinocchios de carne e osso são facilmenteidentificados.Não perceberam ainda que o narize as orelhas cresceram tanto que o excesso de peso

DOMINGOS MEIRELLES

N

No terreno em que osPinocchios plantamsuas mentiras jamaisnasce grama. Seusinsultos não podemtambém ser mais

tratados com palavrasaveludadas, comorecomendam os

manuais de etiqueta.

AA

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3JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

A GRANDE VIRADA

A Diretoria da ABI aprovou umnovo modelo de votação on-line paraas eleições gerais deste ano. Adota-do por várias associações do País, osistema permitirá que todos os as-sociados que vivem e trabalham emoutros Estados possam também semanifestar sobre a escolha dos di-rigentes da Casa. Será a primeira elei-ção nacional da história da ABI. Todoo corpo social se manifestará de for-ma livre, ampla e democrática sema necessidade de se deslocar até asede da entidade, no Rio de Janei-ro. Foi escolhido como parâmetroo modelo eleitoral utilizado pela Associação dosFuncionários do Banco do Brasil, consideradoum dos mais seguros diante das garantias queoferece, como transparência e auditagem ime-diata dos resultados contabilizados no proces-so de votação.

A proposta apresentada pelo Presidente Tar-císio Holanda foi acolhida pela Diretoria diantedo seu significado simbólico: estancar o proces-so de perda da credibilidade e do prestígio daentidade que se encontrava, há vários anos, dis-tanciada do corpo social e divorcidada da reali-dade em que vivemos. No momento em que ainstituição experimenta intenso processo de de-mocratização interna, com o arejamento de todosos espaços da Casa, entendeu-se que não se podiacontinuar bloqueando a participação de expres-sivo contingente do corpo social na escolha dosrumos da ABI por exercerem o ofício em outrasunidades da federação. A Diretoria qualificoucomo indigna a exclusão desses associados quesempre foram tratados pelas antigas adminis-trações como “jornalistas de segunda classe”.Eles jamais tiveram o direito de votar ou se ma-nifestar sobre os destinos da instituição.

Após longo e tenebroso ocaso, a ABI começafinalmente a alargar seus horizontes e a se co-nectar com o mundo modermo. Não era maispossível manter uma postura contemplativadiante dos desafios do futuro que colocavamem risco sua própria sobrevivência, além de ig-norar os problemas que também ameaçam osdestinos da profissão. Seu passado e sua histó-ria não podiam continuar reféns de um univer-so em decomposição. A Casa dos Jornalistas dei-xou o quintal onde refugiou-se nas dobras de

um tempo que não existe mais. A ABI não po-dia continuar refratária às inovações tecnológi-cas sob pena de ser reduzida a escombros diantedas demandas de uma época em permanenteprocesso de transformação. Não adianta acoe-lhar-se para escapar da agenda de compromissosimpostos pela modernidade e pelas grandesmudanças que se avizinham.

A entidade criada por Gustavo de Lacerda, em1908, não pode ter medo do novo. Ela só voltaráa crescer e a resgatar o prestígio perdido a partirdo momento em que assumir e se transformarem uma entidade verdadeiramente nacional. Esseobjetivo só poderá ser alcançado quando voltara espelhar as legítimas aspirações da categoria querepresenta. O primeiro passo para atrair as levasde associados que desertaram em massa, nos úl-timos anos, é permitir que possam ser ascultadoslivremente sobre os rumos que desejam para ainstituição. Uma entidade que defende as liber-dades e o direito de expressão não pode continu-ar amordaçando seus próprios associados. O mo-delo de votação aprovado pela Diretoria rompevelhos liames e se transforma em autêntica cartade alforria para centenas de profissionais que ja-mais foram ouvidos ou convocados a se manifes-tar sobre os rumos da Casa.

A ABI não pode contrariar um dos princípios sa-grados da biologia que se aplica tanto aos seres vivoscomo às instituições. Quem não cresce e se de-senvolve enfrenta um destino trágico e irreversí-vel: atrofia e morre. A entidade revigorou-se coma nova gestão e deixou de respirar com a ajuda deaparelhos. A Casa de Herbert Moses voltou a seerguer, como no passado, quando sua sombra alon-gada confundia-se com a dos seus dirigentes.

DOMINGOS MEIRELLES

Associados de todo país poderão votar napróxima eleição da Casa dos Jornalistas.os obriga a caminharem curvados. O nariz pare-

ce uma vara de pescar. Chega a ser melancólicoobservá-los, mesmo de longe, orelhas imensas ar-rastando-se pelo chão, tropeçando no próprio narizque não pára de crescer.

Na luta encarniçada que promovem contra aDireção da ABI, na tentativa de voltarem a des-carnar a entidade por eles desossada de formaselvagem, violam os mais sagrados princípios quenorteiam o exercício da profissão. Borram as fron-teiras que separam a ética da infâmia sem ne-nhum constrangimento. Não existem mecanis-mos capazes de disciplinar os excessos que co-metem, distorcendo fatos, produzindo menti-ras que nem o personagem de Carlos Collodi teriacoragem de assumir.

s eleições da ABI não podem continuar sen-do transformadas em cenas diárias de pu-gilatos verbais, dignas de um ringue de

MMA. Mesmo nessa modalidade de luta marcialexistem regras que devem ser obedecidas. Os lu-tadores que extrapolam determinados limites sãopunidos e desclassificados pelos excessos cometi-dos. Não se pode violar impunemente os mais no-bres princípios da profissão como o acesso à verdadee o direito à informação e, ao mesmo tempo, se apre-sentar como vítimas dos crimes que cometeram.

Um dos aspectos fundamentais em qualquer pro-cesso verdadeiramente democrático é a aberturade espaços para a livre discussão e circulação dasidéias. Esse não é o campo da eleição dos Pinocchi-os que freqüentavam a ABI. Não é possível que jor-nalistas obscuros, refugiados em trajetórias anô-nimas, aproveitem-se da escuridão que circuns-creve suas vidas para apedrejar a reputação de pro-fissionais com currículos impecáveis como Tarcí-sio Holanda. A Casa dos Jornalistas não pode maisabrigar personagens de desenho animado que en-lameiam o Código de Ética da Profissão.

No terreno em que os Pinocchios plantam suasmentiras jamais nasce grama.

Mentiras morrem sempre muito cedo porquenão vivem o suficiente para envelhecer. Essa é amaldição dos Pinocchios de papel machê que su-garam as últimas energias de uma instituição quese encontrava em estado comatoso. Como pre-dadores contumazes, eles continuam rondandoa ABI, famintos, com os caninos afiados à mos-tra, em busca de alimento farto, como no passa-do. Eles não sabem, entretanto, que estão comos dias contados. A história e o destino lhes re-servou vida curta, como a própria mentira, quetem uma perna menor que a outra, o mesmo aleijãoque tanto incomodava o velho Goebbels. A quemesses seguidores do propaganderminister de Hi-tler pensam que estão enganando?

A Os sócios da ABI poderão votar com toda segurança e comodidade pelainternet, acessando o site da entidade, como exemplifica este layout.

INOVAÇÃO

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A implantação do Voto Eletrônico on-line, através da internet, e do serviço te-lefônico 0800 na próxima eleição da ABI,tem a mesma significação do clássico deStanley Kubrick, 2001: Uma Odisséia noEspaço, que aborda a questão da evoluçãodo conhecimento e a pequenez humanadiante do desconhecido. Consagrado pelacrítica e pelo público, o filme lançado em1968 antecipava experiências inimaginá-veis que só ocorreriam anos depois comoa descida do homem na lua. O simbolis-mo do bumerangue lançado no ar, no iní-cio do filme, mostrava que, a cada movi-mento, ele deixava um passado de som-bras para trás, sempre em busca do futu-ro, na conquista do progresso e de seusavanços tecnológicos.

Ao lançar também seu bumerangue,através de um moderno e revolucionárioprocesso de votação, a ABI procura resga-tar o tempo perdido quando exercia im-portante papel de vanguarda na vida po-lítica e social do País, sempre na linha defrente das grandes questões nacionais.Com o “Voto Eletrônico” e o “0800” elapermanecerá fiel aos princípios que a fi-zeram respeitada e lhe deram, um dia,papel de destaque entre as entidades re-presentativas da sociedade civil. Ao ado-tar esse moderno processo de votação elaestará também construindo e pavimen-tando um caminho em direção ao novo.

O Presidente da ABI, Tarcísio Holan-da, que arejou a entidade, nos últimos me-ses, não esconde seu entusiasmo diantedessa escolha conectada com o mundomoderno: “Fiquei muito orgulhoso e gra-tificado em ver aprovada, pela Diretoria,a proposta que sempre defendi, como a dese utilizar esse recurso digital nas próxi-mas eleições da Casa. Ele tornará a vota-ção mais democrática e justa. Esse é o ver-dadeiro papel da ABI, ao permitir a par-ticipação de todo o corpo social da Casanas próximas eleições. Ao eliminar osentraves que impediam o corpo social dese manifestar livremente, através do voto,estaremos dando um salto significativoem direção ao futuro. Não é justo que so-mente aos eleitores do Rio de Janeiro sejapermitido votar e decidir sobre os rumosda ABI. E aqueles que residem em SãoPaulo, Brasília, Curitiba, Salvador ? Sãotodos obrigados a manterem suas mensa-lidades rigorosamente em dia, sob pena deserem desligados da entidade, mas não po-

dem participar da escolha dos dirigenteda Casa. Honram seus compromissos as-sociativos com a ABI mas estão impedidosde votar. É justo e democrático que perdureesse tipo de discriminação geográfica quedá apenas a um grupo de sócios decidir osdestinos da Casa, de acordo com seus in-teresses, em detrimento dos interessesmaiores da instituição? O Brasil não éapenas o Rio de Janeiro, ele se estende doAcre ao Rio Grande do Sul”.

Tarcísio sustenta que ninguém “em sãconsciência pode ser contrário a essa me-dida que corrige antiga e inominável injus-tiça com os sócios que residem em outrosEstados. Aqueles que vierem a combateressa idéia estão comprometidos com o pas-sado ou com interesses meramente pesso-ais. São os mesmos que se manifestam,através da internet, contra o intenso pro-cesso de modernização que está mudandoa imagem da ABI. Amparada em uma sériede iniciativas, entre elas a inserção da en-tidade no campo tecnológico da comuni-cação e do mundo digital, a Casa voltou afixar sua imagem num mundo marcadopor intensas transformações de natureza,econômica, política e social.”

Na sua visão, com a experiência demais de meio século como repórter polí-tico, Tarcísio afirma que a Casa dos Jor-nalistas não podia ficar indiferente a esseirreversível processo de mudança. “Osque se posicionarem contra o novo mo-delo de votação mostrarão o quanto estãoatrasados no tempo. E mais: o quanto aABI também perderá ao continuar atre-lada àqueles que pregam idéias retrógra-das e ultrapassadas, os mesmo que foramresponsáveis pela perda da expressão quea entidade teve um dia no passado”.

Solução seguraA eleição on-line, via internet, ou atra-

vés da ligação 0800, adotada em todo omundo moderno, é uma solução segura,sem qualquer possibilidade de fraude. Elapermitirá que o corpo social da ABI votecom seu CPF e a sua matrícula, de acordocom o banco de dados existente no cadas-tro da entidade. O associado receberáuma carta da ABI com um Código Uno In-dividualizado (uma espécie de inscriçãoeleitoral como a do TRE) que o habilita-rá a acessar o banco de dados da institui-ção para poder votar.

Caso opte pela solução on-line, atra-vés da internet, o eleitor deverá acessaro site da ABI e clicar o botão de cor ver-

melha, localizado no lado direito da tela,onde estará escrito: “Vote Aqui”. Ele vaiorientar o associado como votar. Ao cli-car o botão vermelho, será aberta umaoutra janela onde haverá três campos aserem preenchidos. Neles, o eleitor deve-rá escrever o CPF, o número da matrícu-la e o seu Código Uno. Ao preencher es-ses três campos, uma nova tela se abrirácom os nomes das chapas que concorremà eleição. Após escolher a chapa da sua pre-ferência, o associado deverá clicar o bo-tão “Votar”. Pronto: sua participação noprocesso eleitoral estará concluída.

O sistema gravará o IP do computador,ou seja, o registro do equipamento utili-zado e ele não poderá mais ser usado paravotar. Mesmo que o associado tente par-ticipar novamente da votação, através deoutro computador, o sistema do banco dedados bloqueará seu Código Uno, que so-mente poderá ser utilizado uma única vezdurante todo o processo eleitoral.

O equipamento que vai monitorar aeleição on-line tem 128 bits e é conside-rado o melhor e o mais seguro do merca-do. O mesmo método de votação eletrô-nica é adotado pela Associação dos Fun-cionários do Banco do Brasil e outras en-tidades nacionais do mesmo porte. Mui-tos bancos, entre eles o Itaú, um dosmaiores do País, também utiliza o mesmosistema para consultas nacionais on-linede caráter confidencial. Ao implantaresse novo sistema de votação, a ABI esta-

UM SALTO PARA O FUTUROVoto via internet e ligação 0800 modernizam e tornam

mais democrática a próxima eleição da Casa.

POR ARCÍRIO GOUVÊA

INOVAÇÃO

rá dando seu primeiro grande passo em di-reção à modernidade, além de iniciar aconsolidação da imagem de uma institui-ção verdadeiramente nacional.

Pelo telefoneCaso o associado não queira votar pela

internet, poderá fazê-lo pelo serviço deligação telefônica “0800” conhecido como“URA” (Unidade de Resposta Audível).Essa opção será também vinculada ao siteda ABI como no processo on-line. Ao li-gar para o serviço 0800, o associado seráinicialmente recepcionado por uma gra-vação eletrônica. Em seguida, digitará emseu telefone fixo ou celular, o CPF, o nú-mero da matrícula e seu Código Uno. Opróximo passo será teclar o número 1 paravotar. Em seguida digitará o número cor-respondente à chapa da sua preferência.Concluída a votação, teclará zero para en-cerrar a ligação. Uma gravação eletrôni-ca agradecerá sua participação.

A terceira opção é a votação na sede daprópria entidade ou nos locais indicadospela Diretoria, como estabelece o Estatu-to da Casa. O método será também atravésde uma ligação 0800, ou on-line, por meiode um computador colocado à disposiçãodos eleitores. A quarta opção será por meioda tradicional cédula de papel com o nomedos candidatos que concorrem à eleição.Caso o eleitor já tenha votado via internetou por meio da ligação 0800, o sistemarevelará que já participou da eleição e nãopoderá votar novamente. O aplicativo dovoto eletrônico oferece muita segurançasendo ao mesmo tempo uma ferramentafácil, rápida e transparente.

Como o sistema é todo interligado,como qualquer processo digital, assimque for concluída a votação, a empresaresponsável pelo monitoramento daeleição saberá o resultado imediatamen-te e poderá logo divulgá-lo, ou aguardara apuração dos votos em cédulas de pa-pel, realizados tanto na sede da entida-de como em outros locais indicados paravotação. Como se trata de um processode contabilização instantânea, a Comis-são Eleitoral poderá solicitar que o resul-tado da contagem seja suspenso, durantemeia hora, até que sejam dirimidas asdúvidas, porventura, existentes. Osvotos apurados manualmente serão en-tão somados à votação on-line ou vialigação 0800, obtendo-se o resultado fi-nal da manifestação eleitoral dos asso-ciados da ABI em todo o País.

Tarcísio Holanda: “Gratificado em veraprovada a proposta de se utilizar o voto

eletrônico nas eleições da ABI, eliminandoentraves que impediam o corpo social de se

manifestar livremente, através do voto.”

FRANC

ISCO

UC

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5JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

COMEMORAÇÃO

400 númerosde História

Ao completar marca histórica, Jornal da ABI reafirma seu compromisso em defesada liberdade, recebe mensagens de felicitações e aponta em direção ao futuro.

Desde sua fundação,em 1908, a AssociaçãoBrasileira de Imprensa defendevalores e princípios fundamen-tais como a democracia, a liber-dade de expressão e pensamento, e os le-gítimos interesses nacionais. No últimos60 anos, a Casa dos Jornalistas contousempre com um órgão oficial de comuni-cação que transcende o papel de funcio-nar apenas como elo de ligação entre a ins-tituição e seu corpo social. O Jornal da ABIchega este mês à sua edição número 400para orgulho de todos nós. Uma publica-ção que sofreu profundas modificações,desde o lançamento da sua primeira edi-ção, em 1952, mas que jamais se afastoudos ideais que nortearam a sua criação. OJornal da ABI manteve-se em permanen-te processo de transformação e moderni-zação, incorporando sempre às suas edi-ções as novas técnicas de editoração. Asmudanças que ocorreram, do ponto de vis-ta gráfico e editorial, nas últimas décadas,não o afastaram, entretanto, dos princí-pios que pautaram sua existência desde asua primeira edição. As modificações li-mitaram-se apenas a alterar seu formatosem jamais lhe retirar a essência. A preo-cupação em manter-se fiel aos seus com-promissos, acabaria por transformá-lo namais rica fonte de consulta sobre a histó-ria da imprensa contemporânea, ondedesempenhou diferentes papéis.

Lançado inicialmente como Boletim daAssociação Brasileira de Imprensa, o jornalteve sua primeira edição publicada no dia31 de maio de 1952, um dia após o vigé-simo-primeiro aniversário da gestão Her-bert Moses na ABI. Com apenas oitopáginas, o boletim afirmava em editori-

al de capa que seu objetivo seria “antes detudo espelho das atividades de nossa casa,hoje tão variadas, mas todas intimamenteligadas aos anseios e aspirações de nossaclasse” e que sua função era “zelar menospor si do que pelo conjunto de esforçosque representa a ABI, a sua regra de apar-tidarismo e tolerância”.

Dentro desse espírito, o primeiro nú-mero trazia reportagens diretamente vin-culadas ao interesse dos jornalistas – porexemplo, sobre o movimento financeiroda ABI, a mais recente assembléia geralda entidade, o relatório da Diretoria so-

bre o ano anterior e assuntos específi-cos da categoria.

Na segunda edição, de 30 de ju-nho, o boletim destacava em man-chete “O Pichamento da ABI”, “pro-va do furioso ‘amor’ dos comunis-

tas à liberdade”. Na página 3,uma foto mostrava a paredeprincipal da entrada da ABI, no

centro do Rio, pichada com asinscrições “FORA ACHESON – GOHOME!”, reação à entrevista coletiva queo então secretário de Estado norte-ame-ricano, Dean Acheson, daria na sede daassociação. A pichação serviu de mote, na-quela e nas edições seguintes, para diver-sas reportagens e artigos defendendo a li-berdade de imprensa, sempre acompa-nhados de matérias com informações ge-rais para a categoria jornalística.

Pouco a pouco, o Boletim foi ganhandouma conotação mais marcadamente po-lítica. A edição de agosto de 1954 traziana capa uma reportagem sobre o atenta-do da Rua Tonelero contra o jornalistaCarlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa. Ado mês seguinte, após o suicídio do Pre-sidente Getúlio Vargas, destacava tambémna capa uma foto de Getúlio, “Presiden-te de Honra” da ABI, e ampla matéria emsua homenagem.

MARIO MOREIRA

A partir de meados daquela década, di-versos escritores, poetas e intelectuais deprestígio passaram a colaborar com o Bo-letim da ABI, como Gilberto Freyre, Ma-nuel Bandeira, Carlos Drummond de An-drade, Antônio Olinto, Rubem Braga eStanislaw Ponte Preta (pseudônimo deSérgio Porto). Em março de 1958, já com12 páginas, o Boletim destacou os 50 anosde fundação da ABI.

O segundo número do Boletim (esquerda) e duas edições notáveis: o assassinato do jornalista Nestor Moreira e o suicídio de Getúlio Vargas.

Desde sua primeira edição, há exatos 62 anos,o Boletim da Associação Brasileira de Imprensa

esteve ao lado dos interesses dos jornalistas.

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6 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

Voz contra a ditaduraA centésima edição foi lançada em

agosto de 1960. Mas, no início de 1962,o Boletim sofreu uma longa interrupçãoque duraria até agosto de 1974, quandovoltou a ser editado. Apesar da violentacensura imposta aos meios de comunica-ção pela ditadura militar, a publicação co-meçava outra vez a mudar de cara e deconteúdo. A diagramação passa a ficarmais arejada, a linha editorial também semodifica, desaparecem as atas e os balan-ços financeiros. O Boletim abre espaçopara novos temas. Começam a ganhardestaque reportagens sobre atividadesjornalísticas e culturais, além de abordarquestões mais ligadas à profissão como adefesa do diploma e do ensino de Comu-nicação nas faculdades. A publicação tam-bém passa a exibir um novo perfil. Mani-festa-se com extremada coragem contrao arbítrio, a intolerância e a opressão.Transforma-se na mais importante trin-cheira em defesa das liberdades.

A edição bimestral de setembro/ou-tubro de 1975 destacava as duas cartasenviadas pelo então Presidente da ABI,Prudente de Morais, neto, ao Ministroda Justiça, Armando Falcão, pedindo ofim da censura à imprensa. Trazia tam-bém a reportagem “O que pensam os jor-nalistas”, cuja linha-fina era: “Pesquisanas Redações (Rio) revela suas aspira-ções: melhores salários, jornada mais hu-mana, liberdade de imprensa”. Aspira-ções que, ao menos em parte, continuamatualíssimas...

O número seguinte, de novembro/dezembro, trazia foto e chamada decapa para o assassinato do jornalistaVladimir Herzog, torturado e mortopor agentes da repressão na sede do Doi-Codi, em São Paulo. Cada vez mais, o ve-ículo oficial da ABI vocalizava os pro-testos contra a ditadura militar e os an-seios da sociedade brasileira por liber-dade, não só a de imprensa.

Com a abertura política e a agonia daditadura, a publicação dá eco e apoio aosgrandes movimentos populares de con-testação ao regime, surgidos na primei-ra metade dos anos 1980, como a campa-nha das Diretas e pela convocação de umaAssembléia Nacional Constituinte. Emjulho de 1988, uma mudança importan-te: o Boletim passa a se chamar Jornal daABI, nome mais de acordo com o espíri-to da publicação, que há tempos deixa-ra de ser um mero veículo corporativo.

Pelo impeachmentEm 1992, o Jornal da ABI se engaja

com todo o ímpeto na campanha pelo“impeachment” do Presidente FernandoCollor de Mello. Signatário do pedido dedestituição de Collor com o então Pre-sidente da Ordem dos Advogados do Bra-sil, Marcelo Lavenère, o Presidente daABI, Barbosa Lima Sobrinho, escreve

editorial da edição 231 (setembro/ou-tubro de 1992) festejando a aprovaçãofinal do processo de “impeachment”pelo Congresso.

Após a queda de Collor, o jornal en-fatiza a luta contra o receituário neoli-beral em geral e as privatizações em par-ticular, bem como a defesa das empresaspúblicas, pela liberdade de imprensa e,mais tarde, contra o instituto da reelei-ção para Presidente da República, apro-vada durante o primeiro mandato deFernando Henrique Cardoso.

A edição de janeiro e fevereiro doano 2000 trazia a última grande entre-vista de Barbosa Lima Sobrinho, com otítulo “Ainda tenho esperança”. A dejulho e agosto destacava a repercussãodo falecimento do grande jornalista,aos 103 anos.

Outra morte que mereceu destaque noJornal da ABI foi a do repórter Tim Lo-pes, da Rede Globo, executado por tra-ficantes durante a realização de uma re-portagem. “Tim não morreu. Viva o re-pórter!” era a manchete da edição 291, dejulho/agosto de 2002. O jornal traziaextenso material sobre o caso, com a re-produção de artigos publicados na im-prensa por nomes de peso como AlbertoDines, Zuenir Ventura, Carlos HeitorCony, Eugênio Bucci e Affonso Romanode Sant’Anna.

Outra edição histórica foi a número296 (julho/agosto/setembro de 2004), quenoticiava o NÃO da ABI à criação doConselho Federal de Jornalismo, inicia-tiva do governo Lula para “orientar, dis-ciplinar e fiscalizar” o exercício da ativi-dade jornalística.

Nova faseO Jornal da ABI voltou a ganhar im-

pulso com a reforma gráfica e editorialpromovida a partir da edição 299, emabril de 2005. Com ela, a publicaçãoganhou uma roupagem mais bonita edinâmica, aproximando-a dos leitores.Também passou a contar com uma equi-pe praticamente permanente de jorna-listas colaboradores.

O número inaugural dessa nova fasedenunciava na capa o descaso da direçãoda Fundação Biblioteca Nacional comdiversas obras literárias que faziam par-te do acervo da instituição. Trazia, tam-bém, a chamada para uma reportagemsobre o dia-a-dia dos profissionais quebatalhavam na editoria de Cidades dosprincipais jornais brasileiros.

Além de um visual mais atraente e deuma melhor seleção das pautas, o Jornalda ABI passou a investir em grandes edi-ções especiais temáticas, destacando tan-to assuntos de interesse geral, como acrise econômica internacional de 2008 eos protestos de junho de 2013 no Brasil,quanto áreas específicas da comunicação,como fotojornalismo, televisão, quadri-nhos e caricaturas. Temas relacionados àsnovas mídias, como jornalismo na inter-net, tv digital e a democratização dosmeios de comunicação, também passarama integrar permanentemente o cardápiooferecido aos leitores. Nem por isso ofaltaram matérias sobre formas de comu-nicação mais tradicionais, como teatro,cinema e literatura.

O jornal começou ainda a investir emgrandes entrevistas com profissionaisconsagrados do jornalismo, sempre soba vinheta “Depoimento”. Murilo MelloFilho, José Hamilton Ribeiro e Mário de

COMEMORAÇÃO 400 NÚMEROS DE HISTÓRIA

A História recente do Brasil nas páginas dojornal: a destruição da Tribuna da Imprensa, o

assassinato de Herzog e o impeachment de Collor.Abaixo, homenagem a Barbosa Lima Sobrinho.

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Moraes foram os primeiros de uma lon-ga lista que incluiu ícones da imprensabrasileira como Marcos de Castro, Wil-son Figueiredo, Armando Nogueira, Sér-gio Cabral, Mino Carta, Alberto Dines,Ana Arruda Callado, Ziraldo e tantosoutros nomes igualmente importantes.Mas os entrevistados não se limitam aouniverso dos jornalistas. A edição 391,de junho e julho do ano passado, porexemplo, trazia como furo jornalísticoa primeira entrevista exclusiva do mo-çambicano Mia Couto a um veículo bra-sileiro após a indicação do autor de Ter-ra Sonâmbula para o Prêmio Camões,principal premiação para escritores delíngua portuguesa.

Cenário diferente“O jornal dos dias de hoje reflete uma

fase bem diferente do período de violên-cia e opressão em que fui seu editor”,explica o jornalista Domingos Meirelles,atual Diretor Econômico-Financeiro daABI. Editor do Boletim da ABI entre 1975e 1977, Meirelles lembra que o País, na-quela época, vivia um dos momentos demaior repressão política contra a im-prensa. A censura impedia a publicaçãode qualquer notícia que pudesse ser in-terpretada como manifestação de hosti-lidade contra o governo militar. “Naque-le momento, o Boletim da ABI tornou-seum veículo de resistência. Ao lado de OSão Paulo, da Arquidiocese de São Paulo,eram as duas únicas publicações do Paísque não passavam pelo crivo dos censo-res. Tínhamos, naquela época, uma equi-pe brilhante, com devotada capacidadede doação, apesar dos riscos que enfren-távamos. O Boletim transformou-se numaextraordinária trincheira em defesa daliberdade de imprensa e das liberdadesindividuais. Nós publicávamos matéri-as que os jornais estavam impedidos deveicular. Recebíamos textos censurados,

enviados pelas grandes Redações, paraque fossem divulgados pelo Boletim “.

Para Meirelles, aquele período de tre-vas foi também um duro aprendizado.Ele permitiu que sobre as cinzas do an-tigo Boletim se erguesse o novo Jornal daABI, editado com o mesmo vigor peloentão Presidente Maurício Azêdo. “Atu-almente, mantemos a mesma posturacombativa, só que em outro cenário,onde enfrentamos novas formas de in-tolerância política. Ou seja, continua-mos denunciando as pressões sofridaspelos veículos de comunicação e as vio-lências cometidas contra os profissio-nais de imprensa em todo o País. O jor-nal atual é mais arejado, exuberante, es-pelha a grandeza e o respeito que a ABIconquistou ao longo de sua existência.Hoje existem outras formas dissimula-das de intimidação da imprensa. Cadavez mais são criadas manobras e falsosconceitos com o objetivo de reduzir oespaço e o papel dos jornalistas dentrodas Redações. Naquela época, essa trucu-lência vestia farda e tinha cheiro depólvora”, lembra Meirelles.

Para ele, o fato de o Jornal da ABI man-ter os mesmos compromissos funda-mentais da época do Boletim mostra queo tempo não teve nenhuma influênciasobre a sua trajetória. “As grandes trans-formações que ocorreram nos veículosde comunicação e os desafios que a im-prensa enfrenta, nos dias de hoje, au-mentaram a importância e o significadodo papel exercido pelo Jornal da ABIcomo atalaia das liberdades”, completaMeirelles, que voltou a ser um dos seusatuais editores, 37 anos depois de exer-cer a mesma função no glorioso e com-bativo Boletim da ABI.

“Que bom que existe,que bom que chega a estenúmero quatrocentão;que referência importan-te que é este jornal dosjornalistas. Importante, emuito, não só pela defesadas liberdades e dos inte-resses que trazem justiçaà categoria. Mas, sobretu-do, pela batalha perma-nente e intransigente quetrava em favor da Ética – da Ética pro-fissional e da Ética da comunicaçãoem geral; batalha decisiva na elevaçãoe no fortalecimento dos valores mo-rais da sociedade brasileira. Vida longaao Jornal da ABI!”SARTURNINO BRAGA

“O Jornal da ABI é o único jornalindependente da imprensa brasileira.Assim é que deve ser um jornal feitopor jornalistas.”ZIRALDO

“Com crise, sem crise, se houvesseapenas um motivo para a marca da As-sociação Brasileira de Imprensa hon-rar e manter viva sua história, este éo Jornal da ABI. Leitura obrigatória,

“Se houvesse apenas um motivo para a marcada Associação Brasileira de Imprensa honrar e

manter viva sua história, este é o Jornal da ABI”

O Jornal da ABI vem se renovando desde sua última reforma gráfica, de abril de 2005, comedições temáticas, além de manter sua corajosa linha editorial de denúncias.

trincheira sempre resis-tente, um jornal além dasobrevivência, luz per-manente do bom jorna-lismo. Ninguém que oleia deixa de perceberque é feito com a garra dequem vê nele a missão demanter acesa a luta pelamemória da imprensa epelo presente e futuro daliberdade de expressão.

No momento em que discutimoso papel dos jornais em papel, este, oda ABI, faço questão de ler pegandocom as mãos – gentileza que devo,agradecido, ao representante de nos-sa associação na Paulicéia, o amigohá tempos distante, mas sempre tãopróximo, Rodolfo Konder. Vida lon-ga ao Jornal da ABI. Que venham mais4 mil edições!”JUCA KFOURI

“Leio o Jornal da ABI com a absolutaconvicção de que estou lendo o meujornal, o nosso jornal. Não conheçoqualquer outra possibilidade de sen-tir com mais clareza a certeza de quenão há ninguém entre mim e o leitor.”SÉRGIO CABRAL

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“Gosto de receber e ler oJornal da ABI porque ele trazsempre reportagens quenão leríamos em outros jor-nais, na chamada grandemídia, que está cada dia maispequena mídia. Corajoso,bem feito, com paginaçãocaprichada, nosso jornal tra-ta de assuntos e de pessoasque não interessam apenasaos jornalistas, mas a qual-quer cidadão consciente.Correto politicamente, sem fugir de umapostura crítica e de afirmação clara deprincípios democráticos. É uma leiturainformativa sem nunca resvalar para achatice. E sua qualidade não cai. Cada nú-mero confirma este perfil. Agradeço aoseditores e à direção da ABI a persistênciaem sua publicação.”ANA ARRUDA CALLADO

“A Associação Brasileira de Imprensa– ABI tem uma trajetória de atos patrió-ticos, desde Herbert Moses, até os diasatuais com Tarcísio Holanda. Da campa-nha do ‘petróleo é nosso’ ao ‘pré-sal’, aABI e o Brasil estão irmanados e sua lumi-

te, com muito prazer. Inclu-sive porque nas suas páginaspodemos recolher depoi-mentos riquíssimos da his-tória da nossa imprensa,com ênfase nos ‘heróis’ quese destacam na defesa da li-berdade conquistada a tan-to custo. O jornal deve serpreservado e, se possível,enriquecido com novas co-laborações. Sou inteiramen-te favorável à sua existên-cia e felicito seus editores e repórterespelo que têm realizado até aqui. A minhacuriosidade é estimar como será a ediçãode nº500".ARNALDO NISKIER

“O Jornal da ABI é uma das melhorespublicações do gênero no País. Bem escri-to, atualizado e instigante. Eu sei o quantohá de paixão naqueles que fazem este jor-nal acontecer. Parabéns aos meus colegas porservirem de estímulo para todos nós.”SIDNEY REZENDE

“A grande graça do Jornal da ABI é serfeito por jornalistas falando de jornalis-

COMEMORAÇÃO 400 NÚMEROS DE HISTÓRIA

“Correto politicamente, semfugir de uma postura crítica

e de afirmação clara deprincípios democráticos”

nosa caminhada nos dá a certeza de queela contribuiu de forma objetiva para res-pirarmos, hoje, o ar da liberdade. Cumpri-mento, na figura de Domingos Meirellese Francisco Ucha, os jornalistas que du-rante todos esses anos fizeram do Jornalda ABI um modelo de jornalismo no Bra-

sil e que, com brilhantismo,chegaram à edição de nº400. Meu respeitoso abraçoa todos!”SAULO GOMES

“O Jornal da ABI tem enor-me importância, não só co-mo veículo corporativo, mascomo jornal mesmo. É um veí-culo que sempre caminhounas mãos de gente compe-tente, feito por profissio-

nais, mas por amor à causa. Quando cola-borei com o jornal, trabalhei sempre commuito carinho. E o jornal continua emponto alto. Recebo invariavelmente todosos meses e leio tudo, de cabo a rabo. A li-nha editorial é toda muito boa, nem dápara destacar um ponto específico.”MARCOS DE CASTRO

“Uma das minhas alegrias é pertencerà ABI e ser seu sócio remido. Seguramente,um dos mais antigos da Casa de HerbertMoses, que conheci pessoalmente. Vejono Jornal da ABI um veículo pujante, co-rajoso. As suas matérias despertam inte-resse e são lidas por mim, sistematicamen-

tas para jornalistas, uma raça que estámais habituada a falar dos outros.”CLOVIS ROSSI

“Esta edição comemorativa de nº400 éa continuação da importância da sua linhaeditorial, na qual se insere, sobretudo, a li-

berdade de imprensa e deonde decorre a defesa detodas as outras liberdades.Por isso mesmo, valho-me damemória ao relembrar osempre saudoso BarbosaLima Sobrinho – Presidenteda Casa – quando a conviteda Ordem dos Advogadosdo Brasil, Seccional de Per-nambuco, asseverou – comtoda a sua grandeza – que aliberdade de imprensa de-

nuncia todas as prisões ilegais, evidenciatodas as torturas, combate o fanatismo,preserva a liberdade religiosa. E mais – di-zia ele – é uma sentinela incansável na pro-teção dos Direitos Individuais e está sem-pre a serviço da própria comunidade, noinstante em que condena os excessos ecorrige os abusos. É nessa linha que semantém o Jornal da ABI, o que me leva acolocar em relevo – o que tenho feito aolongo da minha vida profissional – queuma imprensa controlada pelo Estado oupelas elites dominantes pode permitir aeclosão de não apenas uma, mas duas oumais ditaduras numa mesma região.”BERNARDO CABRAL

“O Jornal da ABI é umadas melhores publicações dogênero no País. Bem escrito,

atualizado e instigante”

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E a imprensatambémcomemorou...Em seus primeiros momentos, há50 anos, a ditadura teve nas elites dosprincipais grupos de comunicaçãoum de seus maiores aliados.

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

uando se fala nas relações entre Imprensa e dita-dura, um dos primeiros conceitos que nos vêm àcabeça é o de resistência. Lembramos dos herói-cos tablóides constantemente censurados e apre-

endidos por divulgarem informações contrárias aos inte-resses dos militares. Reverenciamos O Pasquim, Opinião,Movimento e tantos outros que eram comprados e lidospraticamente às escondidas. Recordamos até das recei-tas de doces e trechos de Camões que eram publicadosacintosamente em O Estado de S.Paulo e no Jornal da Tar-de, sinalizando um protesto mudo de que, naquele espa-ço, deveria haver matéria que censores autoritariamen-te vetaram. Nos vêm à cabeça imagens de Redações in-vadidas, com jornalistas presos e gráficas empasteladas.

Tudo isso foi verdade. Mas, não num primeiro momen-to. A derrubada de João Goulart, “um dos maiores gatu-nos que a história brasileira já registrou” [Tribuna da Im-prensa, em 02/04/1964] foi festejada por uma imprensaque comemorou este “movimento pela paz e pela demo-cracia” [O Estado de Minas, em 02/04/1964], e abriu seusbraços e suas páginas aos “bravos militares” [O Globo, em02/04/1964], feliz por eles terem afastado o “caudilho ali-ado dos comunistas” [Jornal do Brasil, em 01/04/1964]“pelo bem do Brasil” [O Povo, de Fortaleza, em 03/04/1964]e “em nome da legalidade” [O Globo, em 04/04/1964].

QPOR CELSO SABADIN

FOLHAPRESS

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Mais que comemorado, o golpe foi ex-plicitamente exigido pela grande impren-sa. No editorial intitulado simplesmen-te Basta!, publicado na capa de O Correioda Manhã, do Rio de Janeiro, em 31 demarço, a demanda era agressivamenteclara: “Até que ponto o Presidente da Re-pública abusará da paciência da Nação?Até que ponto pretende tomar para si, pormeio de decretos-leis, a função de PoderLegislativo? Até que ponto contribuirápara preservar o clima de intranquilida-de e insegurança que se verifica presen-temente na classe produtora? Até quan-do deseja levar ao desespero por meio dainflação e aumento do custo de vida, aclasse média e a classe trabalhadora? Atéque ponto quer desagregar as forças arma-das por meio da indisciplina, que se tor-na cada vez mais descontrolada?”.

Salvo raras exceções, este foi o tom dagrande imprensa brasileira naquele mo-mento. Ufanista, apavorado pelas medi-das supostamente socializantes sinaliza-das por Goulart. Comemorativo e alivi-ado pelo fato do Brasil ter, finalmente,“corrigido” a sua rota que o alinhava aCuba. Se um desavisado marciano (na-quela época ainda não se falava “extra-terrestre”) folheasse os jornais da pri-meira semana de abril de 1964, certa-mente pensaria ele ter chegado ao nos-so país em pleno reinado de Momo, oudurante as comemorações de mais umaCopa do Mundo.

De acordo com o jornal carioca O Dia,de 2 de abril daquele ano, “a população deCopacabana saiu às ruas, em verdadeirocarnaval, saudando as tropas do Exército.Chuvas de papéis picados caíam das jane-las dos edifícios enquanto o povo dava va-zão, nas ruas, ao seu contentamento”.Isto porque “desde ontem se instalou noPaís a verdadeira legalidade (...) A legali-dade está conosco e não com o caudilhoaliado dos comunistas”, nas palavras doeditorial do Jornal do Brasil de 1º de abrilde 1964. Que festa, que alívio! Afinal, “fu-giu Goulart e a democracia está sendo res-taurada (...) atendendo aos anseios nacio-nais de paz, tranqüilidade e progresso, as

Talvez até mais que um Carnaval, oepisódio também se assemelhava à Sema-na Santa, pois havia até Judas a ser malha-do, como deixa claro o editorial de A Tri-buna da Imprensa daquele mesmo 2 deabril: “Escorraçado, amordaçado e aco-vardado, deixou o poder como imperati-vo de legítima vontade popular o Sr. JoãoBelchior Marques Goulart, infame líderdos comuno-carreiristas-negocistas-sin-dicalistas. Um dos maiores gatunos que ahistória brasileira já registrou, o Sr. JoãoGoulart passa outra vez à história, agoratambém como um dos grandes covardesque ela já conheceu”. Da mesma forma, oJornal do Brasil do dia 1º levanta seu dedoinquisidor: “Aqui acusamos o Sr. JoãoGoulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nosna luta fratricida, desordem social e cor-rupção generalizada”.

Basta! Fora!De acordo com o estudo “A Ditadura

Militar e a Grande Imprensa’, desenvol-vido pelo professor Eduardo ZayatChammas na Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da Usp, “osdias 31 de março e 1º de abril marcam oauge das críticas do Correio da Manhã aogoverno João Goulart. Nos dois editori-ais de capa que se tornaram célebres,Basta! e Fora!, o jornal acaba por defen-der a deposição imediata do Presidente”.Chammas defende em sua obra que os ar-gumentos do jornal são “fundamental-mente institucionais: o Presidente teriadesrespeitado o Congresso ao tentar gover-nar por decretos-leis, usurpando as funçõesdo Poder Legislativo; estaria levando adi-ante uma política continuísta, no que seriauma tentativa de permanecer no poder,sem respeitar a Constituição de 1946 e aseleições de 1965; e teria, por fim, destru-ído a disciplina das Forças Armadas. O Cor-reio da Manhã coloca-se a falar em nomeda opinião pública e em defesa das ins-tituições”.

Chammas ressalta em seu estudo queo jornal fala em “intranqüilidade, insegu-rança, desordem, anarquia, crise política,social, militar e financeira, e usa a seu fa-

vor o discurso da legalidade (...). O prin-cipal argumento contra Goulart é de queele gostaria de permanecer no poder aqualquer preço, instaurando para tanto ocaos no País, mas o próprio editorial pa-rece ter dificuldades em apontar o nãocumprimento da Constituição, que seriaa mais sólida das justificativas para a sa-ída do Presidente. O efeito da permanên-cia de Jango no cargo presidencial seria oinício de uma ditadura, mas há uma pas-sagem reveladora no próprio editorial: ojornal admite ser contra a perspectiva daditadura. Neste mesmo editorial do Cor-reio da Manhã, no dia 1º de abril, reaparecetambém o jornal que fala em nome dopovo, porta-voz da opinião pública: ‘opovo depois de uma larga experiência re-age e reagirá com todas as suas forças nosentido de preservar a Constituição e asliberdades democráticas’ ou ‘a Nação, ademocracia e a liberdade estão em perigo.O povo saberá defendê-las. Nós continu-aremos a defendê-las’”, conclui.

“Foi uma oposição sistemática”, dizMaria Helena Capelato, professora deHistória da USP, em entrevista concedi-da à repórter Mônica Teixeira, na TVUnivesp. “Como Samuel Wainer, que erabraço direito do Getúlio, fundou o jornalÚltima Hora, nós temos neste momentouma batalha acirrada da imprensa, com aÚltima Hora defendendo o governo Jan-go, e todos os outros contrários. A gran-de imprensa toda sempre se colocou con-tra o governo João Goulart”, afirma.

Contudo, nosso amigo marciano, pen-sando que os jornais cariocas, represen-tantes de uma população festeira por na-tureza, pudessem estar fazendo um Car-naval (ou um Sábado de Aleluia) à toa,resolveu folhear os matutinos de outrascidades. E nada viu de diferente. “Multi-dões em júbilo na Praça da Liberdade.Ovacionados o Governador do estado echefes militares. O ponto culminante dascomemorações que ontem fizeram emBelo Horizonte, pela vitória do movi-mento pela paz e pela democracia foi,sem dúvida, a concentração popular de-fronte ao Palácio da Liberdade. Toda área

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE E A IMPRENSA TAMBÉM COMEMOROU...

Tropas do 1º Exército em frente ao Ministério daGuerra.

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Forças Armadas chamaram a si a tarefa derestaurar a Nação na integridade de seusdireitos, livrando-a do amargo fim que lheestava reservado pelos vermelhos quehaviam envolvido o Executivo Federal”,festejava o editorial de O Globo, no mes-mo dia 2.

Dois dias depois, o jornal volta à car-ga: “Ressurge a Democracia! Vive a Naçãodias gloriosos. Porque souberam unir-setodos os patriotas, independentementedas vinculações políticas simpáticas ouopinião sobre problemas isolados, parasalvar o que é de essencial: a democracia,a lei e a ordem. Graças à decisão e ao he-roísmo das Forças Armadas que, obedien-tes a seus chefes, demonstraram a falta devisão dos que tentavam destruir a hierar-quia e a disciplina, o Brasil livrou-se dogoverno irresponsável, que insistia emarrastá-lo para rumos contrários à suavocação e tradições (...). A legalidade nãopoderia ter a garantia da subversão, a ân-cora dos agitadores, o anteparo da desor-dem. Em nome da legalidade não serialegítimo admitir o assassínio das institui-ções, como se vinha fazendo, diante daNação horrorizada”.

Tropas do 1º Exército em frente ao Ministério da Guerra.

O Globo: Ressurge a Democracia!

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localizada em frente à sede do governomineiro foi totalmente tomada por enor-me multidão, que ali acorreu para feste-jar o êxito da campanha deflagrada emMinas (...), formando uma das maioresmassas humanas já vistas na cidade”, alar-deava O Estado de Minas.

Vitória também era a palavra de ordemde O Povo, de Fortaleza, naquele 3 de abril.Uma vitória da ‘causa democrática’, dizo jornal, que “abre ao País a perspectiva detrabalhar em paz e de vencer as graves di-ficuldades atuais. Não se pode, evidente-mente, aceitar que essa perspectiva sejatoldada, que os ânimos sejam postos afogo. Assim o querem as Forças Armadas,assim o quer o povo brasileiro e assimdeverá ser, pelo bem do Brasil”, reforça oeditorial. Goulart não passou incólumenem no seu Rio Grande do Sul natal,onde houve uma “vibrante manifestaçãosem precedentes na história de Santa Ma-ria para homenagear as Forças Armadas”,conforme publicou o jornal local A Razão.

Indescritível entusiasmoPelo que se lia, o País era uma festa só.

Até no “túmulo do samba”, apelido queVinicius de Moraes, meio carinhosa, meiomaldosamente, atribuiu à capital paulis-ta. Mesmo porque, como destaca MariaHelena Capelato, “os jornais do Rio e deSão Paulo tiveram atitudes muito simila-res”. É curioso notar como o tradiciona-líssimo O Estado de S.Paulo ignorou com-pletamente o assunto na capa de sua edi-ção de 1º de abril, onde só aparecemmatérias internacionais. A “crise”, segun-do o termo utilizado pelo jornal, só seriaabordada a partir da página 3, e aindaassim sem contornos definidos. Na Folhade S.Paulo, ao contrário, a grande manche-te de capa era “II Exército domina o Valedo Paraíba”, e logo abaixo, em corpo me-nor, a informação tranquilizadora davaconta que “calma é completa no Estadode São Paulo”.

Nos dias subseqüentes, porém, o Esta-dão escancara uma postura onde abando-na completamente qualquer possibilida-de de jornalismo imparcial, e passa nãomais a noticiar os fatos, mas sim a come-morá-los em gigantes manchetes. Entreelas, “São Paulo e Minas levantam-se pelaLei”, “Indescritível entusiasmo mobilizoua população paulistana”, “Júbilo no Rio ena Capital de Minas com a vitória do mo-vimento pela legalidade” ou “Vitorioso omovimento democrático”. Percebe-se apostura mais do que clara do jornal emsempre posicionar a tal “revolução”, comose dizia na época, como um movimento aolado da lei, da legalidade e da democracia,conseqüentemente classificando seus opo-nentes como foras-da-lei. “Subversivo”será a palavra constantemente utilizadapor quem por acaso tivesse o atrevimen-to de ser a favor de João Goulart.

Ironicamente, contudo, quem lesse OEstado de S. Paulo naqueles dias, e nele acre-ditasse, terminaria sua leitura com a total

certeza que não havia ninguém que fossecontra o golpe. Como sempre aconteceneste tipo de situação, a imprensa em ge-ral (e, neste caso, o Estadão em particular)toma para si o baluarte de falar em nomede todos. Não da maioria, mas da totalida-de. O jornal julga ter uma procuração as-sinada por absolutamente todos os cida-dãos brasileiros, e comete manchetes como“Democratas dominam toda a Nação”,“Une-se todo o povo de São Paulo na gran-de tarefa de reconstrução” ou “Irrestritoapoio à causa libertadora – Pronunciam-se todos os setores da vida privada”. É im-prescindível usar, nas manchetes, palavrasque representem uma suposta “totalidade”de brasileiros a favor do golpe.

Oposição subversiva? Só se for no ex-terior, como sugere a matéria intitulada“Comentários da imprensa dos países co-munistas revelam a decepção dos cons-piradores”. Sim, ”conspirador” é um ou-tro termo usado para designar quem forcontra o “movimento libertador”. Sim-plesmente suprime-se do imaginário co-letivo a idéia que possa existir um opo-nente, já que “toda” a população apóia a“revolução”.

Em sua tese de doutorado denomina-da O Bravo Matutino, a professora MariaHelena Capelato dedicou-se a estudar afundo o tradicional diário da família Mes-quita. Na já citada entrevista à TV Uni-vesp, ela afirma com toda a segurança que“O jornal O Estado de S.Paulo é de uma co-erência impressionante. Se você ler ojornal, hoje, você se remete à lembrançado que eles escreviam na época que eu es-tudei. Na época da ditadura Vargas, as po-sições do jornal O Estado de S.Paulo, e deoutros também, eram muito semelhantesao que se repetiu na época do golpe de1964, porque eles sempre tiveram uma ati-tude conservadora. A ideologia do jornalé conservadora, liberal-democrática, masde uma democracia das elites. Eles se di-ziam representantes das elites bem pen-santes do País, e que tinham, então, pormissão, formar o povo brasileiro, incul-to e despreparado para a política”.

Capelato explica a coerência do Esta-dão lembrando que o jornal “sempre foicontra Vargas, e fez uma oposição muitoforte a este governo, chamado de populis-ta. E, na seqüência, depois da queda e davolta de Vargas (inclusive o jornal foi ex-propriado na época da ditadura, quandoa normalidade democrática voltou), elessempre foram um dos baluartes da oposi-ção ao Getúlio. Esta oposição a um regi-me dito populista continua no período dogoverno Jango Goulart, que é consideradoo principal herdeiro de Vargas. A idéia éde que estes governantes ditos populistasconseguem o apoio das massas desrespei-tando a chamada Grande Política”.

Fazendo coro e eco a O Estado de S. Paulo,na capital paulista, o Diário de S. Paulo tam-bém se regozijava com a queda de Goulart.E nem poderia ser diferente, pois o jornalfazia parte dos poderosos Diários Associ-ados, comandados com mão de ferro porAssis Chateubriand. Era o próprio Chatôquem, quase diariamente, disparava seusferinos editoriais anti-Jango. Na manhã de31 de março, ou seja, antes mesmo da de-flagração total do golpe, os leitores doDiário de S. Paulo já puderam ler, em textoassinado por Chateubriand, a seguinte pro-fecia: “Pode afirmar-se que o PresidenteGoulart já perdeu o jogo, que não tinha.Desde setembro de 1960 que jogava semcartas, que lhe garantissem a banca. Àmaneira de Vargas, em 1945 e 1954, e Jâ-nio Quadros em 1961, ele blefava. Fingia,como os falsos banqueiros anteriores, quea banca era sua”.

No dia seguinte, já com os tanquesnas ruas, Chateaubriand dispara no títu-

lo de sua matéria de capa: “Todo o poderao glorioso Exército do Brasil”. E, notexto, contabiliza que este é o pedido detodos os “70 milhões de brasileiros”.Ainda segundo o editorial de Chatô, ”acrise que vivemos e cujo desfecho não épossível prever, mostrou-lhe [referindo-se ao Governador mineiro MagalhãesPinto], como mostrou a todos os homensque não toleram a desfiguração de nos-so País, que chegara a hora de proferirum basta que soasse forte para ser ouvi-do por todos os cidadãos livres da terrabrasileira. O laço do comunismo interna-cional está armado, e para ele nos impe-lem indivíduos que atraiçoam seguindoplano traçado fora de nossas fronteiras.Impunha-se uma corajosa defesa das ins-tituições que livremente escolhemos. Ur-gia mostrar, por atitude inequívoca, quesomos realmente democratas, que nãoqueremos governo de um só partido ou denenhum partido, que sabemos, por expe-riência, o que se pode esperar de figurascarismáticas e de ‘iluminados’ de figurasprovidenciais, em suma”.

Prossegue Chatô: “O Governador Ma-galhães Pinto tomou posição, uma posi-ção clara, desassombrada, própria de umhomem de caráter. Não admite o chefe doexecutivo mineiro que o Brasil siga as pe-gadas de Cuba, uma Cuba em ponto gran-de e que por isso mais trágica seria, sefosse bem sucedida a trama que se desen-rola”. Enquanto isso, no mesmo jornal, nomesmo dia, matéria de teor científico in-forma, ironicamente com fontes de labo-ratórios soviéticos, que novos estudos re-velaram que a intensa radioatividade da

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Tanques diante do Congresso Nacional na manhã do dia 1º de abril.

Última Hora apoiava Jango e foi empastelada.

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Lua poderia impossibilitar a tão sonhadaviagem de um ser humano até lá...

Campanha anticomunistaRussos à parte, a posição de direita as-

sumida por Chateubriand extravasa nes-te momento os próprios limites do jorna-lismo e ganha contornos publicitários: oempresário desenvolve e manda publicar,em todos os veículos dos Diários Associ-ados, uma campanha anticomunismo que“denuncia”, entre outros, que nesse regi-me, quem decide quantas pessoas mora-rão na mesma casa que você é o governo(Leia a íntegra do texto na página 13).

Ainda em São Paulo, o jornal ÚltimaHora, de apelo popular, opta abertamentepor uma posição apenas informativa, limi-tando-se a descrever os fatos, e raramen-te entrando por algum viés opinativo.Quando o faz, prefere uma posição con-fortável, sem posicionamento político, eescrevendo, de certa forma, aquele tipo de“verdade” fácil que opta por nunca sair dazona de conforto. Davi Barreto, por exem-plo, na edição de 1º de abril, discorre lon-gamente sobre a necessidade de se “evitara todo custo um derramamento de sanguepara que uma luta fratricida não venha aenvolver a Nação”. Apenas parte da capae duas páginas internas falam sobre a mu-dança do poder no Brasil. Uma pequenanota informa também que desde as 23horas do dia anterior, 31 de março, as emis-soras de rádio e tv do estado de São Paulopassaram a operar sob censura do governoestadual, segundo determinação do gene-ral Aldésio Barbosa de Lemos.

O jornal também publica, lado a lado,tanto um manifesto assinado pelo Go-vernador Miguel Arraes, como outro as-sinado pelo General Kruel, um dos pila-res do golpe. Na edição de 8 de abril, acoluna Opinião do UH, sem assinatura,intitula-se “Os Atributos da Paz”. E, total-mente em cima do muro, limita-se a dizerque o mais importante neste momento éque o País siga pelos caminhos da Paz, in-dependendo de quais sejam os desdobra-mentos políticos dos fatos. O texto pre-fere digredir sobre assuntos relacionadosa Deus e à Páscoa, e finaliza com a frase“Que a paz esteja convosco”. Ao lado,

uma matéria parece minimizar a questãoda escolha do próximo mandatário naNação, manchetando: “Eleição do novoPresidente é apenas problema político”.

Lista negra dos apátridasPouco mais de uma semana após o gol-

pe, uma edição especial, digamos, “come-morativa” da revista O Cruzeiro chegavaàs bancas. Um pouco menor que o forma-to tradicional, e com tiragem de 425 milexemplares, a edição grafava a palavra“EXTRA” em destaque, ao lado de seu lo-gotipo. A capa mostrava um sorridenteGovernador de Minas Gerais, MagalhãesPinto, um dos grandes articuladores dogolpe, “logo após a vitória que comandoucontra a comunização do País”, segundose lê na legenda estampada nas páginasinternas da revista. Na foto, ele recebiaum beijo carinhoso de sua nora. Umatarja diagonal destacava: “Edição Histó-rica da Revolução”. Naquele momento agrande imprensa jamais usava a palavra“golpe” para definir o acontecimento.

O amplo editorial de duas páginas, in-titulado “Saber ganhar”, assinado por Da-vid Nasser, trazia uma foto do próprio edi-torialista ostentando um verdadeiro arse-nal de pistolas e munição, com uma legen-da explicando que o jornalista “continuouna Guanabara, em sua trincheira não ape-nas de palavras”. O texto tece longos elo-gios aos nomes mais famosos que fizerama “revolução”, de Adhemar de Barros aCarlos Lacerda, do general Amaury Kruelao Magalhães Pinto da capa.

“Sabíamos todos que estávamos na lis-ta negra dos apátridas, que se eles consu-massem os seus planos, seríamos mortos.Sobre os democratas brasileiros não pai-rava a mais leve esperança, se vencidos.Uma razzia de sangue vermelha comoeles atravessaria o Brasil de ponta a pon-ta, liquidando os últimos soldados da de-mocracia, os últimos paisanos da liberda-de”, vocifera Nasser em seu editorial.

Com muitas fotos e pouco texto, comomandava o padrão editorial das revistas bra-sileiras da época, este O Cruzeiro Extra tra-zia informes e relatos de vários pontos doPaís, através de suas sucursais, todos unâ-nimes ao registrar um suposto imenso e

mocrática e seu principal estrategista, querecebe agora a missão de consolidar a vi-tória, devendo permanecer na presidên-cia da república até janeiro de 1966”.

A matéria de capa, com texto de Ubi-ratan de Lemos, alardeia que Castelo Bran-co foi “escolhido pelos comandos civil emilitar e governadores que participaramda revolução”. E o classifica como “umintelectual com experiência de guerra”.

A edição também exibe uma grande re-portagem mostrando João Goulart e suafamília já no exílio no Uruguai, e as pri-sões do Governador Miguel Arraes, e doex-chefe da casa militar de Goulart, AssisBrasil. Curiosamente, nenhuma das deze-nas de propagandas da edição faz sequeralusão, comentário, brincadeira ou refe-rência à troca do comando no País.

Na edição de 2 de maio, a capa é dedi-cada ao “General Costa e Silva, o Executorda Revolução”. Na foto, o futuro sucessorde Castelo Branco posa diante de um qua-dro de Duque da Caxias, em óbvia inten-ção da revista em tentar relacionar o su-posto passado de glórias (ainda que ques-tionáveis) do Exército Brasileiro com umigualmente suposto heroísmo atual.

O editorial de David Nasser afirma,em letras garrafais, que Goulart “Caiu deBurro”. A revista abre quatro páginas parauma entrevista exclusiva que o Presiden-te deposto concedeu ao repórter Tabaja-ra Tajes, e na seqüência abre mais duas pá-ginas à resposta oficial do próprio Costae Silva, que se assina em nome do que elechama de “Comando Supremo da Revo-lução”. Mesmo com Castello Branco ain-da no comando.

Difícil dizer se conscientemente ounão, a Volkswagem publica um anúncio depágina inteira onde mostra dois motoresidênticos, um ao lado do outro, com o tí-tulo “O da esquerda custa 50% menos”.

Em O Cruzeiro de 16 de maio, as chama-das de capa destacam “CGT - Império daCorrupção” e “Brizola Queria Banho deSangue”. Ambas contrastam com a fotode um garotinho sorridente mordendouma espada de brinquedo (vermelha). Sódentro da revista que é revelado que o talgarotinho da capa é João Pinga Fogo, netodo presidente Castello Branco.

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE E A IMPRENSA TAMBÉM COMEMOROU...

massivo apoio da população às mudançaspolíticas do Brasil. “O paulista sabia o quequeria quando apoiou, integralmente, acampanha de volta à Democracia, lança-da pelo Governador Adhemar de Barros.Por isso, na hora em que a notícia da vitó-ria foi dada, o povo de São Paulo rebentouno mais puro entusiasmo democrático”,comemora um dos textos da revista. Nafoto que o ilustra, vê-se a fachada do entãoprédio do jornal O Estado de S.Paulo, na RuaMajor Quedinho, envolto por uma chuvade papel picado, com pessoas comemoran-do nas janelas... da Redação.

Há também espaço para vários depoi-mentos de políticos importantes, desdeque favoráveis: “É com o pensamentovoltado para Deus, grato à sua proteção aoBrasil e ao seu povo, que saúdo a nossagente pela restauração da paz com legali-dade, com disciplina e com a hierarquiarestauradas nas Forças Armadas. No augeda crise, quando era próxima a possibilida-de de derramamento do generoso sanguebrasileiro, o apelo à paz, com legalidade,disciplina e hierarquia, tinha de ser ouvi-do. E foi ouvido. A paz está restaurada” (...)O perigo comunista não estava, como seviu, no comportamento do povo e dostrabalhadores, ordeiros e democratas. Operigo comunista estava na infiltração decomandos administrativos”. Assina oentão Senador Juscelino Kubitcheck.

A revista aproveita o clima de euforiae anuncia, na quarta capa desta edição es-pecial, uma série de reportagens intitulada“História das Revoluções Brasileiras”, aser iniciada no próximo número. Signi-ficativamente, o número de páginas destetão festivo O Cruzeiro foi... 64.

Retornando ao seu formato original,a edição de 25 de abril de O Cruzeiro con-tinuaria firme e forte em sua campanhapró “revolução”. Na capa, figurava agoraum carrancudo Castelo Branco (comapenas um “l” em “Castelo”) ao lado da fi-lha Antonieta. O olhar duro e mal-enca-rado do novo dirigente da nação pareciapreconizar os tempos que estavam por vir.A legenda das páginas internas informa-va que o “General Humberto CastelloBranco” (desta vez com duas letras “l” emCastello) era o “cérebro da revolução de-

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PORQUE O COMUNISMOÉ CONTRA VOCÊ... O Comunismo é contra sualiberdade de locomoção: pois vocênunca pode sair da cidade que mora,sem o salvo-conduto da polícia políticaque só o concede depois de meses deinvestigação dos motivos da viagem.

... o Comunismo é contra sualiberdade de morar: você só podemorar onde lhe determinarem quemore; e o Estado (o Partido) é queindica quem deve morar com você noscômodos da mesma casa ouapartamento, pois há uma “cubagem”de moradia determinada pelo Estado,de acôrdo com a “hierarquia partidária”.

... o Comunismo é contra sualiberdade de opinião: você nadapode dizer contra os erros, os abusos,as violências ou as desonestidades degovernantes ou chefes comunistas,inclusive dos capatazes de fábrica ou“donos” dos sindicatos.

... o Comunismo é contra sualiberdade política: pois não existeoutro partido a não ser o P. Comunista,cujos chefes limitam, deliberadamente,o número de “sócios”, para não dividir opoder com o povo e, portanto, com você.

... o Comunismo é contra sualiberdade de trabalhar: pois você sópode ter o emprego que o Estado (P.Comunista) “se dignar”a lhe dar. Vocênão tem direito de escolha.

... o Comunismo é contra sualiberdade de progredir: pois você sópode produzir aquilo que o mandaremfazer. O que você criar por aí pertenceao Estado (o Partido), e pode levá-lo àcadeia ou mesmo ao “paredão”, sevender diretamente.O COMUNISMO BASEIA-SE NUMADOUTRINA POLÍTICA OBSOLETA EULTRAPASSADA, FRAGOROSAMENTEDESMENTIDA PELO PROGRESSOTECNOLÓGICO E PELA DEMOCRACIA.Uma campanha dos Diários Associados

Texto da campanha dos Diários Associadoscontra o Comunismo (com a grafia da época)

Na noite anterior ao golpe, o Governa-dor de São Paulo, Adhemar de Barros, en-trou nos lares paulistas através das pouquís-simas emissoras de televisão que os anti-gos seletores de canais ofereciam aos teles-pectadores, naquele 1964. A programaçãonoturna foi interrompida para que o gover-nador tranqüilizasse a população, anunci-ando que não haveria golpe nenhum.

“Esta noite mais uma vez compareço àtelevisão para lhes dizer que chegamos aolimiar dos acontecimentos. Entramosnuma fase extremamente perigosa, poisestá ameaçada a nossa terra, o regime fe-derativo, as liberdades humanas, que dia adia estão sendo reduzidas. Mesmo a minhapalavra, esta noite, está sendo limitada”.(...) Nós envidaremos todos os esforços nosentido de garantir a família, o trabalho,a ordem e a tranqüilidade (...) Não voufazer revolução, não vou dar golpe algum.Apenas estamos cansados de golpes (...)Há uma oficina de boatos em cada capitaldo estado, para gerar a confusão”.

Na manhã seguinte, como se sabe, to-dos perceberam que o Governador estava,como sempre, sendo honesto: não houvegolpe algum. Apenas uma “revolução”.Naquele mesmo 1º de abril, por mais irô-nica que a data possa parecer, Carlos Lacer-da, colega carioca de Adhemar, tambémfez uso de sua prerrogativa de invadir oslares de seus eleitores, via televisão. Naque-la noite, Lacerda interrompeu um dos se-riados norte-americanos de maior suces-so na época, Aventuras Submarinas, estre-lado por Lloyd Bridges, e quase chorando,com voz trêmula, anunciou: “Deus é bom.Deus teve pena do povo”. E sem entrar emmuitos detalhes, mesmo porque a situaçãoainda não permitia, discorreu breves mi-nutos sobre a nova ordem da Nação. Eufó-rico e emocionado, Lacerda perdia mais ofôlego que o Capitão Mike Nelson em suasaventuras debaixo d’água.

Naquela era pré-satélites de comuni-cações, transmissões em rede pelo Paísainda eram um sonho distante. Princi-palmente via televisão. Já pelo rádio,mesmo com todas as dificuldades, aindaera possível algum tipo de imediatismona comunicação graças ao poderio de-senvolvido pela Rádio Nacional. Aindaem 1º de abril, as transmissões da RádioNacional, em conjunto com outrasemissoras, acabaram formando umacadeia em defesa da legalidade do man-dato de Goulart. Tratava-se de um dosraros focos de resistência ao golpe, nummomento em que a grande imprensa es-crita já havia pedido a cabeça do Presi-dente e orquestrado a festa pelas ruas.

A resistência era comandada pela “Rá-dio Nacional do Rio de Janeiro”, confor-me anunciava solene a voz forte do locu-tor, “de plantão pelo Brasil comandandouma grande rede de emissoras integradasna Guanabara pela rádio Ministério daEducação e Cultura; em São Paulo pelaRádio Nacional de São Paulo, e em Brasí-

Adhemar e Lacerda usam a televisão. Rubens Paiva corre para o rádioBrasil, naquela época, estava “absolutamen-te fora de questão”, segundo as palavras deMaria Helena Capelato. Sinalizar queGoulart poderia ser capaz de tornar o Bra-sil comunista, apavorava a classe média que,assim, tendia a tomar uma atitude de apoioa um golpe militar.

“Os jornais da época constróem um dis-curso no sentido de justificar os seus inte-resses de derrubar um governo que estavatendo um apoio popular muito forte. Popu-lar no sentido de ser contra a elite”, diz a pro-fessora e historiadora. “Goulart acenava comreformas de base; o limite eram as reformasde base”, prossegue. “E o João Goulart nuncafoi comunista, era um proprietário de ter-ras muito bem sucedido, mas ele acenavacom reformas de base que tinham como ob-jetivo fazer o País avançar e ter uma maiorparticipação política, pois era um País muitofechado, do ponto de vista político, de par-ticipação ínfima, e esta é uma questão recor-rente na história social e política brasileira:a participação sempre fica muito restrita àselites políticas e bem pensantes. E essaselites ditas liberais na verdade são conser-vadoras. Elas não são progressistas, nemdemocráticas, pois têm muito receio e seopõem a qualquer forma de alargamento departicipação popular na esfera pública, sem-pre com o discurso que o povo não estápreparado para participar, para votar”.

Como se percebe com facilidade, a im-portância de se conhecer o nosso passadoé diretamente proporcional à verdadecontida na boa e antiga premissa de que “aHistória é cíclica”.

lia pela Rádio Nacional do Distrito Fede-ral, além de muitas outras emissoras dointerior, às quais, inclusive, pediríamos agentileza de nos telegrafar, enviando seusprefixos, para que pudéssemos mencio-ná-los aqui”.

Alternando palavras de ordem e men-sagens que tinham como objetivo tran-quilizar a população, a rádio abria tam-bém seus microfones a personalidades epolíticos contrários ao golpe. Entre eles,o Deputado Rubens Paiva, representan-

te do Estado de São Paulo no Congres-so Nacional, que naquela madrugadaconclamou trabalhadores e estudantespara uma greve geral. Uma greve quejamais aconteceu. (A íntegra do depoi-mento de Rubens Paiva na Rádio Nacionalpode ser conferida na página 14).

De qualquer maneira, fosse na formaescrita, radiofônica ou televisiva, a gran-de imprensa usava o exemplo de Cubaapenas para atemorizar a elite brasileira,posto que uma revolução comunista no

Com sua conhecida verve, Lacerda discursou na tv: “Deus é bom. Deus teve pena do povo”

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14 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

Governo Federal que teremos condiçõesrealmente de integrar todos os brasileirosneste processo. E com isto lucram os tra-balhadores que terão melhores condiçõesde emprego, com isso lucram os industri-ais que terão a quem vender os seus pro-dutos, e com isso lucram os comerciantese toda a população deste País.

“Rádio Nacional do Rio de Janeiro deplantão pelo Brasil, comandando uma gran-de rede de emissoras integradas, na Gua-nabara, pela Rádio do Ministério da Edu-cação e Cultura; em São Paulo, pela RádioNacional de São Paulo, e em Brasília pelaRádio Nacional do Distrito Federal, alémde muitas outras emissoras do interior, asquais inclusive pediríamos a gentileza detelegrafar enviando os seus prefixos paraque pudéssemos mencioná-los aqui.

E senhoras e senhores, continuandocom esta série de depoimentos ao micro-fone da Rádio Nacional do Rio de Janei-ro, nesta madrugada de primeiro de abril,vamos trazer o Deputado Rubens Paiva,representante do Estado de São Paulo noCongresso Nacional:

‘Meus patrícios, me dirijo especial-mente a todos os trabalhadores, a todosos estudantes e a todo o povo de São Paulo,tão infelicitado por este governo fascis-ta e golpista que, neste momento, vemtraindo o seu mandato e se pondo ao ladodas forças da reação. Desejo conclamartodos os trabalhadores de São Paulo, to-dos os trabalhadores portuários e meta-lúrgicos da Baixada Santista, de Santos,da Capital e das cidades industriais de SãoPaulo em especial. Todos os universitári-os, que se unam em torno de seus órgãosrepresentativos, obedecendo à palavra deordem do Comando Geral dos Trabalha-dores, do Fórum Sindical de Debates, dossindicatos, da União Nacional dos Estu-dantes, das uniões estaduais e dos grêmiosestudantis, para que todos, em greve ge-ral, dêem a sua solidariedade integral à

Em defesa da legalidadeEm discurso transmitido ao vivo pela Rádio Nacional no dia primeiro de abril de 1964,

Rubens Paiva conclama que o povo se mobilize “tranqüila e ordeiramente” contra os golpistas.

O que se diz que o governo pretende– acabar com o direito de propriedade, es-tabelecer o confisco de tudo que existecomo propriedade privada – é uma gran-de mentira, uma grande farsa. O que sepretende realmente – trabalhadores e es-tudantes de São Paulo – é tornar este go-verno incompatibilizado com a opiniãopública sob uma onda de mentiras e umaimagem deformada. O Presidente JoãoGoulart, em suas reformas, visa tão so-mente dar ao povo brasileiro uma parti-cipação na riqueza deste País.

Este momento nacional é um momen-to decisivo, em que o povo brasileiro podeter a felicidade de ver realizada toda a suarevolução dentro do processo da legalida-de democrática, prestigiando o Presiden-te da República e esta legalidade.

É indispensável, entretanto, para isso,que o Presidente e o governo contem comtoda a mobilização da opinião pública, to-dos os trabalhadores, todos os estudantes,os intelectuais e o povo em geral, para quepacífica e ordeiramente digam um ‘não’ eum ‘basta’ a esses golpistas, que preten-dem cada vez mais prestigiar a pequena mi-noria privilegiada.

Está lançado inteiramente para todoo País o desafio. De um lado, a maioria dopovo brasileiro, desejando as reformas edesejando que a riqueza se distribua, aolado da legalidade do Presidente JoãoGoulart. Os outros são os golpistas, quedevem ser repelidos, desta vez definitiva-mente, para que o nosso País veja realmen-te o momento da sua libertação raiar.Muito obrigado.’”

legalidade que hora representa o Presi-dente João Goulart.

O nosso Presidente, ao tomar as medi-das tão reclamadas por todo o nosso povo,medidas que nos conduzirão, indiscutivel-mente, à nossa emancipação política eeconômica definitiva, realmente prejudi-cou os interesses de uma pequena minoriade nossa terra. Pequena minoria, entretan-to, que detém um grande poder, todo opoder econômico deste País, todos os ór-gãos de divulgação, os grandes jornais e asestações de televisão. É indispensável, por-tanto, que todo o povo brasileiro, os tra-balhadores e os estudantes de São Paulo emespecial, estejam atentos às palavras de or-dem que emanarem aqui da Rádio Nacio-nal e de todas as outras rádios que estejamintegradas nesta cadeia da legalidade.

Julgamos indispensável que todo o povose mobilize, tranqüila e ordeiramente, emdefesa da legalidade, prestigiando a açãoreformista do Presidente João Goulartque, neste momento, está com o seu go-verno empenhado em atender a todas aslegítimas reivindicações de nosso povo.É indispensável que se processe, de umavez por todas, a divisão da riqueza brasi-leira entre todos os seus habitantes. Nãoé possível que nós tenhamos marginali-zados mais da metade dos habitantesdeste País, mais da metade dos habitantesdo Brasil sem condições de trabalho, semsaber, de manhã, para que local se dirigi-rem para ganhar o seu pão e alimentar asua família.

É uma estrutura de reforma. É exata-mente com as medidas preconizadas pelo

Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lagee Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), MiltonCoelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, SylviaMoretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, JoséGomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, FranciscoPaula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce deLeon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

Rubens Paiva: “O povo brasileiro pode ter afelicidade de ver realizada toda a sua revoluçãodentro do processo da legalidade democrática.”

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O DISCURSO

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15JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

POR PINHEIRO JUNIOR

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

Na subestimada Juiz de Fora aconte-ceu que o Governador de Pernambuco,Miguel Arraes, do PSB, teve um comíciopró-reformas interrompido por adversá-rios na noite de 30 de março de 1964. Foiarrancado do palanque armado na fren-te da Câmara dos Vereadores na Praça Co-ronel Halfeld (depois Parque Halfeld). Amuito custo, Arraes escapou da turbamul-ta que gritava:

– Morte à canalha comunista! Fora osvendidos de Moscou! Morra Jango!

As informações chegaram à Redação daÚltima Hora ainda na madrugada do dia 31.Tudo de forma tumultuada. Porque tumultoera a expressão que melhor definia a situa-ção política. E assim, aos arrancos, o ataquea Arraes sairia na edição vespertina. Care-cia portanto de uma “suíte em regra”, segun-do recomendava o editor Flávio Brito, in-vestido também em pauteiro especial.

De volta ao Hotel Glória, no Rio, Ar-raes fôra “devidamente entrevistado”:

– Mas estava alarmado como o diabo!– informara em off, ele próprio, ao plan-tonista de polícia da madrugada repenti-namente, que fizera o papel de repórterpolítico. A partir do “affair Arraes”, todosos repórteres passaram a cuidar, direta ouindiretamente, de política. Tudo o maisdesceu a segundo plano.

No dia 31 quem estava na chefia de re-portagens era o tranqüilo cearense PeryAugusto. Quando me aproximei da mesaque até 25 dias atrás era minha, ele meolhou com a inconfundível cara de SãoFrancisco de Assis. Eu estava vindo deférias. Férias que eu aproveitara não paraviajar ou descansar. Mas para fazer umbico na Rádio Mayrink Veiga como reda-tor do Repórter Petrobrás, um noticiáriocompacto editado por Francisco BaleixeFilho. O programa tentava rivalizar como Repórter Esso, da Rádio Nacional. O con-fronto era tão mais evidente porque oDeputado e ex-Governador do Rio Gran-de do Sul, Leonel de Moura Brizola, ha-via arrendado a Mayrink Veiga. “E man-dava brasa” todas as tardes, como se fos-se “uma Ave Maria política, com aquelecarregado sotaque de padre das coxilhas”.

O arrendamento da Mayrink Veigapoderia repetir, se preciso fosse, a famo-sa rede gaúcha da legalidade. Essa integra-ção radiofônica pela segunda vez emdefesa de Jango incluiria a Rádio Nacio-nal do Rio de Janeiro, que era a principalemissora oficial. Outras rádios locaistambém eram do governo. E todas se in-tegrariam à nova rede tal como aquela li-derada por ele – Brizola – no Rio Gran-de do Sul. Foi uma “mobilização históri-

ca” que acabou decidindo a posse de Jan-go na Presidência, estando Jânio já re-nunciante e Jango ainda se movimentan-do de volta da missão comercial que Jâ-nio o encarregara na China. Uma missãologo na China comunista! Jango só che-gou ao Brasil – entrando pelo Uruguai –depois de passar pela Europa e América doNorte. Uma longa e estratégica rota. Su-ficiente para dar tempo e garantia à suainvestidura presidencial.

A Mayrink Veiga fazia uma radical pre-gação nacionalista. Enquanto o RepórterEsso não escondia a veiculação de notíci-as da UPI (United Press International),combinando marca e sigla, associadas pelaesquerda ao imperialismo americano.

Eu voltava daquelas férias agitadas parareassumir uma Chefia de Reportagens ain-da mais agitada. Mas Pery Augusto, cansa-do demais, mal me cumprimentou. A falarouca sumida na garganta, ele foi curto:

– O Samuel quer que você pegue um fo-tógrafo e vá a Juiz de Fora fazer uma ma-téria... Uma suíte...

– Sobre a tentativa de linchamento doMiguel Arraes?

– Isso. Você sabe...– Sei.O setorista militar Batista de Paula es-

tava ouvindo:– Procura o General Olympio Mourão

Filho – interferiu – Diz que fui eu. Eu queo mandei procurar. Faz uma entrevista

com ele... É o comandante da Quarta Di-visão de Infantaria. A sede da ID4 é emJuiz de Fora... Entendeu?

Entendi. E como sabia que a comunica-ção de Juiz de Fora com o Rio podia ser di-fícil com os obsoletos telefones da CTB(Companhia Telefônica Brasileira) sem-pre congestionados, lembrei de fazer con-tato com o Coronel Dagoberto Rodrigues,diretor do DCT (Departamento de Correi-os e Telégrafos, atual Empresa Brasileira deCorreios). Dagoberto era um militar lega-lista, amigo de Jango e admirador de Sa-muel. Perguntei se ele podia me franque-ar o telégrafo em Juiz de Fora para me co-municar com UH enviando textos pron-tos que o DCT entregaria na Redação dojornal com a urgência de telegramas:

– Estamos à sua disposição – garantiuo diretor do DCT, cuja sede ocupava par-te do Paço Imperial na Praça Quinze.

Garantida a comunicação, passandodas 14h, em minutos eu e o fotógrafo AdirMera (irmão do repórter Acyr) estávamosna Rio-Petrópolis. Depois, na sinuosa BR-3 (atual BR-040) a caminho de Juiz deFora. Nosso jipe era o de número 7. Comtanque cheio. Nosso motorista era...Quem mesmo? Não importa mais. Cercadas 16h chegamos à primeira curva antesda ponte sobre o Rio Paraibuna, divisanatural com Minas. Nossa atenção vol-tou-se para a esquerda da estrada. Umgrupo de soldados com metralhadora detripé e fuzis com baionetas caladas apa-recia sobre um barranco, tendo por trássacos de areia. Um ninho de metralhado-ra? Uma casamata? Barricada? Contraquem? Por quê? Como não soubéssemoso que viria pela frente, paramos o carro.A cena poderia ilustrar qualquer que fossea situação que encontrássemos. Merasaltou para fazer uma foto:

– Alto lá! – gritou um dos soldados pu-lando do barranco.

Aliás, um terceiro sargento, via-se pelacurta divisa na manga do uniforme de cam-panha. Mera fez uma foto com a Canon-35.Ajoelhado para um melhor ângulo, pediu:

– Só mais outra foto, sargento.– Vocês estão presos – disse ele.Olhamos um para o outro sem acredi-

tar. Nem entender. E seguimos o sargen-to, que nos apontava sua submetralhadoraINA, até uma guarita de beira de estradaapós a curva:

– Vocês ficam aí dentro – ordenouapontando a guarita.

Um soldado foi postado na estreitaporta. E o sargento foi embora. Logo sur-giu outro sargento. Desta vez um primeirosargento, com o braço pleno de divisas.Então, argumentamos com ele que só que-ríamos passar até Juiz de Fora onde nosmandaram para entrevistar o GeneralMourão Filho. A referência ao coman-dante da ID4 produziu algum efeito. Eranossa missão, argumentamos:

– Temos perguntas para fazer ao gene-ral e ele pode até estar esperando.

O primeiro sargento pareceu sensível.E explicou:

– Olha, vocês são repórteres. Os pri-meiros que passam por aqui. Só quempode liberar vocês é o Capitão Felix.

– E quem é o Capitão Felix?– É o chefe de relações públicas do Re-

gimento Tiradentes.– Regimento...?–... Tiradentes. Décimo Primeiro Re-

gimento de Infantaria de São João DelRey. Eu também sou do 11º RI. E o Capi-tão Felix está andando por esses lados. Éo nosso oficial de ligação. Quando passarpor aqui, vocês falem com ele.

UMA REPORTAGEM QUASE MORTALAcompanhe o relato de uma aventura marcada por desencontros de informações e seguidos anúnciosde prisões arbitrárias. Uma espécie de prenúncio do caos em que o Brasil estava prestes a mergulhar.

No dia 1º de abril, a sede do jornal Última Hora amanheceu completamente depredada.

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Nossa atenção voltou-separa a esquerda da estrada.

Um grupo de soldadoscom metralhadora de

tripé e fuzis com baionetascaladas aparecia sobre

um barranco, tendopor trás sacos de areia.

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16 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

Não demorou em vermos se aproximarum oficial que tinha três estrelas brancasno capacete. Mais perto divisamos seu cra-chá: era o Capitão Felix. Falamos com ele,que se mostrou acessível. Explicamos arazão de estarmos ali. Ele ouviu em silên-cio. Depois tirou do bolso um papel comumparecendo uma folha destacada de caderne-ta. E escreveu nossos nomes. Sob nossos no-mes colocou a permissão para seguirmosviagem até Juiz de Fora. A permissão dizia:“Salvo conduto para se apresentar no QGda ID4”. Estava datada e assinada. Quandonos despedimos, o Capitão reforçou:

– Apresentem-se no QG.A esta altura, já estávamos achando

tudo estranho demais. Ao entrarmos emJuiz de Fora, a prudência e a desconfian-ça mandavam que deixássemos o jipe emlugar bem resguardado fora do Centro. Apé fomos em direção à Rua Halfeld – oCentrão de Juiz de Fora. De longe já podí-amos ouvir rumores. Depois alaridos e porfim gritaria. Mal alcançamos a rua, perce-bemos que havia brigas e correrias. De vezem quando alguém era agarrado e espan-cado. Não faltou quem nos informasse:

– Estamos dando uma esfrega na cana-lha comunista que apóia Jango!

Diziam isso e faziam pose para fotos.Atravessamos toda a Halfeld. Foi quandonos deparamos com o próprio GeneralMourão Filho carregado nos ombros emtriunfo. Era tal a disputa na multidão paratê-lo acima das cabeças que o general aca-bou deixando cair o boné bico de pato comas insígnias bordadas. Quem achou oboné no chão mostrou-o a Mera comouma espécie de troféu. Mera fotografou.O general seguiu sem a cobertura doboné, a farda descomposta. Era evidenteque ele estava amando aquele momentode glória suprema. Subiu ao palanque – omesmo ocupado na véspera por MiguelArraes – e discursou. Do que disse restouapenas uma contundência:

– Declaro Juiz de Fora a capital revo-lucionária do País!

Era a primeira vez que ouvíamos refe-rência a uma “revolução” para traduzir omovimento militar. Depois daquela noi-te, o General Mourão Filho haveria de ex-plicar em sucessivas entrevistas comoacabara posto à frente desta revolução.Não se confessou propriamente um “boide piranha”. Mas uma “vaca fardada”. Sig-nificando que era um ingênuo. Um igno-rante político-ideológico. Embora comserviços prestados no combate ao comu-nismo desde o histórico Plano Cohen.

Saímos do meio da multidão que nãoparava de comemorar “o início da revolu-ção” e fomos para a agência do DCT. Iden-tificamo-nos para os funcionários. Fala-mos do Coronel Dagoberto Rodrigues. Odiretor da agência estava instruído. Disseser amigo do Coronel Dagoberto. Mas semostrou muito preocupado. Quase roen-do as unhas:

– Vocês que são repórteres do Rio, o queacham que vai acontecer?

Quis tranqüilizar o homem. E aventei:– Logo os pára-quedistas do Regimen-

to Santos Dumont vão estar aqui.– E acabar com essa festa?! – exultou ele.

Colocaram uma máquina datilográficapara nós numa boa mesa. Escrevemos tudoque havíamos visto. E fiz o seguinte lead:

– O General Mourão Filho acaba de de-clarar Juiz de Fora a capital revolucioná-ria do País.

Fomos lá fora comer alguma coisa, to-mar café, e quando voltamos o diretor daagência nos mostrou um telegrama em res-posta ao nosso. Não esperávamos por isso,embora tivéssemos pedido instruções aofim da matéria enviada. O telegrama-res-posta era de Samuel. Dizia:

– Voltem imediatamente.Olhei para Mera e para o motorista:– Vamos primeiro dar uma passada no

QG da 4ª RM. Mostrando o salvo-condu-to do Capitão, quem sabe não arrancamosuma boa matéria sobre essa confusão toda?

Sem discussão, fomos ao local onde dei-xáramos o jipe. E logo nos vimos diante dosportões fechados da 4ª RM/ID4. Uma sen-tinela veio correndo ao nosso encontro.E gritou:

– Fora! Fora! Vocês não podem parar aqui!Adiantamos um pouco o jipe. Só então

descobrimos que eram barreiras-cavale-tes. E caminhamos para explicar à senti-nela que ainda nos espreitava:

– Queremos falar com o General Mou-rão. Temos um salvo-conduto para nos apre-sentar aqui no QG.

A sentinela foi falar com outra sentine-la que pegou um telefone de campanha nochão, por trás dos portões. Apareceu umtenente. Sem crachá. Inteirou-se do que sepassava. Mandou abrir os portões e falou:

– Entrem – disse – Mas deixem o carroaí fora mesmo.

Com o nosso salvo-conduto balançan-do entre os dedos, seguiu-nos até o prédio

baixo onde certamente funcionava o Co-mando. Fez-nos entrar. Sentar em poltro-nas de couro escuro. Logo voltou acompa-nhado de um major – duasestrelas simples e uma ge-mada nos ombros, mastambém sem crachá – quenos falou quase cuspindo:

– Onde vocês arran-jaram esse papel?

O papel era o salvo-conduto.

– Está assinado aí –expliquei – Olha só: aassinatura é do CapitãoFelix.

– Mas a data é do dia primeiro – mos-trou o major – E hoje é dia 31.

Ficamos mudos. Ele insistiu para que vís-semos a data. Para nós, porém, ela havia sidoescrita de forma errada. Evidentemente.

– Engano do Capitão Felix – disse afinal.O major concluiu:– Esse salvo-conduto é falso. Vocês es-

tão presos. Não saiam desta sala!Voltou-se para a porta que havia usado

ao entrar. E sumiu por ela, trancando-apor dentro.

Era perto de meia-noite do dia 1º. Dasala onde estávamos – presos! – podíamosouvir o que diziam do outro lado da pa-rede em voz alta – às vezes alterada, às ve-zes entre risadas. Eram oficiais. Sem dú-vida. Quantos eram? Cinco? Talvez seis.Possivelmente, aquele era o gabinete decomando do General Mourão Filho. Demadrugada, já passando das duas, estáva-mos cansados de tentar ouvir e adivinharo que acontecia na sala ao lado de nossa“prisão”. Não nos passava ainda pela ca-beça que aquelas vozes tão perto se comu-

nicavam com outras vozes no Rio e SãoPaulo decidindo o futuro político do País.Foi quando ouvimos nitidamente o nomeAmaury. E, ligada a este nome, uma infor-mação também clara:

– Ele acaba de aderir.Amaury só podia ser Amaury Kruell, o

general comandante do 2º Exército em SãoPaulo, que se posicionava mais ou menosem cima do muro até aquele momento,quando resolveu se juntar aos colegasconspiradores de Minas. Mais uma hora deexpectativa e a porta de comunicação como gabinete de comando da 4ª RM foi aber-ta. Entrou um general. De brigada? Eraainda jovem. Mas quem era ele? Dias de-pois descobrimos que o Marechal (refor-mado) Odylio Denys – que se intitulariao chefão militar do golpe – estava naquelasala. Ele liderava o grupo integrado pelosgenerais Mourão Filho, Carlos Luiz Gue-des e Andrade Muricy, mais o CoronelJoão Batista da Costa, chefe do Estado-Maior da 4ª RM. Seguramente, porém,não foi nenhum deles quem nos comuni-cou o seguinte:

– Olha: a oficialidade está revoltadacom a presença de vocês da Última Horano quartel...

– Como?– Para a segurança de vocês, saiam da-

qui agora.Pensamos: se estávamos presos, agora

estamos sendo libertados. Ato seguinte:o jovem general chamou um soldado. Emandou que ele nos escoltasse até a rua.Seguimos o soldado, que se juntou a outro

que esperava do lado defora da sala. No caminhoouvimos que ele, o primei-ro soldado, resmungavaou cochichava algo como companheiro sobre al-guém que nos pareceu sero jovem general:

– O que foi? – tenta-mos saber.

O soldado se fechouem silêncio. Só nos dei-xou quando nos viu en-

trar no jipe, já fora do QG.Eram umas quatro da madrugada. To-

camos o mais rápido que podíamos atravésda BR-3. Já clareava o dia quando fomosdetidos na altura de Bicas ou Mar de Espa-nha. Nosso jipe azul com as grandes letrasbrancas do logotipo de Última Hora era pordemais escandaloso. E perigoso:

– Vocês trabalham nesse jornal comu-nista? – perguntou um tenente tambémsem crachá.

Dali pra frente ia ser difícil encontraralgum militar identificável. Explicamostudo ao tenente o mais calma e convin-centemente possível. Ele, porém, nos fezdescer do jipe. Tomou a chave de igniçãoque estava com o motorista e disse o quejá estava virando rotina para nós:

– Vocês estão presos– Mas tenente...Logo surgiu um capitão de farda desbota-

da, o rosto cansado. Voltamos a explicar tudode novo. O capitão pegou a chave da mão dotenente. Até com certa brutalidade. E disse:

– Caiam fora! Chispa!

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE UMA REPORTAGEM QUASE MORTAL

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Durante a madrugada, manifestantes enfurecidos incitados por Carlos Lacerda, incendiarama Kombi e o jipe do jornal e saquearam a garagem, levando até as baterias dos carros.

– Vocês são todoscomunistas!

Trabalhando nessejornal, só podem sercomunistas! Vocês

deviam é ser levadospara o paredão!

Fuzilados!

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17JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

Pulamos no jipe. Ganhamos razoávelvelocidade, de novo na estrada. Mas ha-via muitas tropas por todos os lados. Pru-dentemente fomos avançando. Em Parai-buna uma barricada improvisada comtambores e pneus nos deteve. Resolve-mos nos aproximar. Soldados vieram emnossa direção. Um deles de metralhadora.E com eles estava um oficial. Vimos queera um capitão:

– Tomem o jipe deles – ordenou o ca-pitão.

Não foi preciso. Nosso motorista ma-nobrou vagarosamente para fora da estra-da sem acostamento. Posicionamo-nos ostrês em atitude submissa. O que pareceuagradar ao capitão:

– Vocês são todos comunistas! Traba-lhando nesse jornal, só podem ser comu-nistas! – declarou ele – E estão presos.

– Ah! Não! – murmu-ramos – De novo, não!

– Que é que vocêsfalaram?

– Só queremos voltarpra casa. Tivemos no QGda 4ª RM. E o comandan-te nos deu permissãopara voltar para o Rio.

Nossa argumentaçãosó fez irritar ainda maiso capitão.

– Vocês deviam é serlevados para o paredão!Fuzilados! – deteve-se por algum tempoe concluiu – A divisa com o Estado doRio está fechada. Não passa ninguém!

Depois que o furibundo capitão foiembora, perguntei ao motorista como es-távamos de gasolina. Com todos os pos-tos de combustível interditados, a situa-ção para nós era ainda mais complicada:

– Temos gasolina para chegar ao Rio?– Que nada! – informou o motorista –

Estamos com bem menos de meio tanque.Mera se desesperou:– Vou me virar e voltar sozinho.– Como?Ele saiu para conversar com uns mora-

dores do local, atraídos à beira da estradapela movimentação militar. Voltou coma novidade:

– Vou alugar um cavalo. E voltar pro Rio.Sou bom cavaleiro... Não vou ficar esperan-do pra levar um tiro. Esse negócio de pare-dão pode ser sério e acabam me matando.Ou me levando preso pra outro lugar.

Foi o que Mera fez. Antes, porém, con-venci-o a deixar os filmes operados comigo.

– Chego no jornal na frente de você,garanto.

Ele não discutiu. Me deu um punhadode rolos de filmes. Eu e o motorista sen-tamos à beira da estrada. Passavam maistropas em caminhões GMC.

– Vocês vão ter que tirar esse terno, pai-sano! – gritou um soldado embarcado.

Só então reparei que estava de paletó...e gravata! Começava a chover fino. Fui meproteger por trás de uma barraca de cam-panha. Cerca das oito da manhã, outro te-nente dirigiu-se a nós:

– Vamos abrir a cancela – informouquase amistosamente – Vocês todos acan-tonados aqui têm dez minutos para atra-

vessar a ponte. Depois vamos fechar acancela de novo.

Os pneus e tambores foram afastadosda estrada. Por trás deles havia uma velhae quase apodrecida cancela, que foi ergui-da. Saltamos de novo para o jipe. E lá fo-mos com o coração menos apertado. Em-bora sem o Mera, que se aventurava a ca-valo por caminhos desconhecidos. Ele sóchegaria ao Rio dois dias depois.

Eu e o motorista, já em solo fluminen-se sob controle do até então legalista Re-gimento Sampaio (1º RI) da Vila Militar,só pararíamos de novo na localidade deSerraria. À margem da estrada, avistamosum galpão ocupado por soldados. Pedi-mos a um suboficial, talvez subtenente,que nos levasse ao comandante:

– Que vocês querem com ele?– Entrevistar.

– Vou falar com oCoronel Ferreira.

– Quem é mesmo oCoronel Ferreira?

– Coronel Raimun-do Ferreira de Souza,comandante do 1º RI.

O suboficial se afas-tou. Voltou o que nospareceu muito rápido.

– O Coronel Ferreiramandou dizer que vocêsjá têm reportagem de-mais. Não estão vindo de

Juiz de Fora? Pois é. Podem ir embora.Foi o que fizemos. Mais tarde saberí-

amos que o Coronel Ferreira deteve-secom o Regimento Sampaio em Serrariadepois de uma conversa telefônica como Marechal Odylio Denys. Comprome-teu-se com o Marechal – “por amizade” –a não enfrentar as tropas de Minas. Era aúltima das adesões decisivas. Pois Denyssabia que o Sampaio era algumas vezesmais poderoso que seu regimento-irmão,o Tiradentes.

Então, já bem perto de Três Rios, omotorista avisou:

– A gasosa vai pifar!Com o jipe em marcha reduzida para

economizar combustível ao máximo,chegamos onde a estrada se bifurca paraTrês Rios. Sobre uma elevação avistamos– “oh! grande felicidade!” – dois jipes deÚltima Hora. Azulzinhos, brilhantes,como se estivessem ali para nos recepci-onar. E nos salvar. Em um dos jipes esta-va Iram Frejat. No outro, Henrique Ca-ban. Contamos rapidamente o que nosacontecera. Falamos da reportagem quetínhamos para escrever. Mostramos osrolos de filme operados. Caban nos cedeuo carro que estava com ele: o jipe 10 de-vidamente abastecido. Rumamos rápidopara o Rio. Chegamos à Redação por voltade duas da tarde. Fomos a uma máquinade escrever e começamos a datilografartudo o que tínhamos. Só paramos para co-mentar com Moacyr Werneck:

– Essa manchete, greve geral, é contraquem?

Aquela era a manchete do dia 1º deabril em UH: “Greve geral!”. Corpo 144ampliado em oito colunas.

Enquanto escrevíamos a reportagem de

Juiz de Fora, ouvíamos através da porta en-treaberta do gabinete de Moacyr Werneck,que alguém esbravejava pela televisão:

– É Lacerda – reconheci a voz.Quando terminei de datilografar a re-

portagem, disse a Moacyr:– Tá pronta. Entrego a quem?Moacyr já vestia o paletó:– Deixa por aí. E cai fora! Samuel vai

se asilar na Embaixada do Chile. Telefo-nou pra todo mundo abandonar a Reda-ção porque Lacerda está arregimentandogente pra vir empastelar e incendiar o jor-nal Quem ficar por aqui pode morrer!

– E Jango? E o dispositivo do GeneralAssis Brasil, chefe da Casa Militar? E oGeneral Moraes Âncora, comandante do1ºExército? E o General Jair Dantas Ri-beiro, ministro da Guerra?

Desfiei aquela tropa de generais que apoi-avam Jango para um Moacyr Werneck im-paciente e até bestificado com minha in-gênua insistência.

– Entregaram os pontos! Todos!Ia perguntar ainda pelos esquadrões

da FAB e pelos fuzileiros da Marinha, fi-éis a Jango no Rio.Moacyr já havia sumi-do escada abaixo.

Na verdade, àquelahora Jango já deixara oPalácio das Laranjeiras.Estava voando paraBrasília. Onde o Sena-dor Áureo Moura An-drade, Presidente doCongresso Nacional, sóesperou que Jango en-trasse de novo no aviãocom destino a PortoAlegre para declarar avacância da Presidênciada República. Em PortoAlegre, Jango seria garantido pelo GeneralLadário Teles, comandante do 3º Exérci-to. Mas o Presidente se consideraria depos-to e não resistiria. “Porque não era de lu-tar”. Dizem que quando soube que os EUAhaviam reconhecido o Deputado RanieriMazilli – Presidente da Câmara Federalempossado às pressas no Planalto – comochefe do novo governo brasileiro, Jangoviu que nada mais havia a fazer. Brizolaainda insistiu. Mas Jango achou por bemcontinuar fugindo. Iria para o Uruguai. Emterras de além-fronteiras tinha estância epasto verde para suas ovelhas. Além de paze garantias para sua mulher e filhos.

Via das dúvidas, enquanto Moacyr su-mia da Redação, abri uma gaveta segura daChefia de Reportagens e botei lá meu textoe os filmes operados por Mera. Desci as es-cadas. Vi o jipe 10 parado na rua. Depois overia de novo transformado em ferroscalcinados pelos incendiários que saque-aram também a garagem levando até ba-terias dos carros desprotegidos.

Caminhando rápido em direção à Pra-ça da Bandeira, alcançamos o repórter sin-dical Nilson Azevedo que havia saído daRedação um pouco antes. Ele informouofegante que havia instruções do Sindica-to dos Jornalistas: todos deviam se reunirna ABI. Chegamos à Praça da Bandeira.Éramos um grupo de cinco ou seis. Em

JOSÉ ALVES PINHEIRO JUNIOR é jornalista, conselheiroda ABI e membro da Comissão de Ética do Sindicatodos Jornalistas Profissionais do RJ. Este texto foiextraído do livro A Última Hora (Como Ela Era), dePinheiro Junior (Editora Mauad X).

frente da Estação Lauro Muller, vimosbandos passarem empunhando porretes earmas que exibiam pelas janelas dos carros.Os bandos se dirigiam sem dúvida para asede de UH. E a quebrariam toda. Por den-tro e o que puderam por fora. Telefones, má-quinas de escrever e mesas foram estraça-lhados minuciosamente. Só não entraramnas oficinas à direita e à esquerda do De-partamento do Pessoal. Não entraram pordesconhecimento da importância dessessetores. Ou porque grossas barras de ferrogradeavam suas entradas.

UH carioca voltou a circular no dia 3 deabril. A edição paulista só conseguiria vol-tar às bancas 21 dias depois do golpe. SuaRedação esteve virtualmente abandona-da, embora sem ter sido invadida e depre-dada. A proteção oferecida pelo GeneralAmaury Kruell, comandante do 2º Exérci-to, à sede do Vale do Anhangabaú funcio-nou como presença ainda mais ameaçado-ra. Kruell prometera a Samuel Wainer pro-teger a integridade da UH paulista e man-dou postar soldados da PE à porta do jor-nal. Custou para os funcionários acredi-

tarem que não seriampresos quando voltas-sem a trabalhar. E quan-do voltaram, foi aque-le marasmo desfigu-rante da combativida-de e autenticidade dojornal. Samuel, tão logopôde, começou a tran-sacionar a venda daUH de São Paulo para oGrupo Frias da Folha deS. Paulo. Em 1965, fe-chou o arrendamentodo título com OctavioFrias. Em breve a edi-ção paulista seria defi-

nitivamente extinta.Em Pernambuco, com a Redação trans-

formada em ruínas e o Chefe da RedaçãoMilton Coelho da Graça preso depois deagressões e torturas, a UH de Recife sim-plesmente acabou. O empastelamentofoi um troféu exibido aos camaradaspelo General Justino Alves Bastos, co-mandante do IV Exército.

No Rio, com a Redação também destro-çada, improvisaram-se lugares para se es-crever no terceiro andar, onde funciona-va a administração. Nosso relato sobre oque testemunhamos em Juiz de Fora saiuna página 3 da edição do dia 3. Título: “Re-pórter de UH nas primeiras trincheiras darevolução”, isso em três colunas, uma fotode soldados por trás de sacos de areia e umametralhadora de tripé ponto 50. Manche-te que Miranda Jordão, editando a pri-meira página, mostrou a todos como aespera de aprovação ou desculpa:

– Acabou o comunismo!Era claro que a manchete estava carre-

gada de ironia, ao mesmo tempo em quebuscava ir ao encontro das pretensões dosnovos donos do poder.

Sobre uma elevaçãoavistamos – “oh!

grande felicidade!” –dois jipes de UltimaHora. Azulzinhos,brilhantes, comose estivessem ali

para nos recepcionar.E nos salvar.

Samuel vai se asilar naEmbaixada do Chile.Telefonou pra todomundo abandonara Redação porque

Lacerda estáarregimentando gentepra vir empastelar eincendiar o jornal

Quem ficar por aquipode morrer!

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18 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

Não demorou para que boa parte dachamada grande imprensa brasileira – for-mada por jornais e revistas de projeçãonacional – fosse responsabilizada histo-ricamente pelo importante papel que de-sempenhou como fomentadora do golpemilitar de 1964. Raras foram as publica-ções que se mantiveram a favor da lega-lidade, como o diário Última Hora, de Sa-muel Wainer (1910-1980). As chamadasMarchas da Família com Deus e pela Pro-priedade, realizadas nas maiores cidadesdo País em 22 de março daquele ano, e quelevaram a classe média conservadora, em-presários e a Igreja a pedir a intervençãomilitar, foram estimuladas por manche-tes estampadas com alarmismo nas capase primeiras páginas. Diziam elas que oBrasil estava muito próximo de cair nasmãos dos comunistas. A imprensa, na ver-dade, foi um instrumento ideológico napreparação e na instalação das ditadurasmilitares latino-americanas, resultado dacrise de desestabilização política que osEstados Unidos, aliados a forças locais, pro-moveram em quase todo o continente,após a Revolução Cubana de 1959. Dis-torcia-se tudo: as políticas do governo,pregava-se abertamente o golpe militarnos seus editorais, apelava-se para a mo-bilização das famílias contra a ameaçafantasma do socialismo.

O que parece condenado ao limbo dahistória, porém, foi o papel de uma sériede veículos hoje considerados obscurosou mesmo esquecidos, mas que foram im-portantes no processo, criados especifi-camente para conspirar de modo abertopara levar o pânico ante uma ameaça co-munista que seus editores e patrocinado-res acreditavam ser próxima e real. Títu-los como as revistas Ação Democrática eEdição Extra, além das multinacionaisnorte-americanas Seleções do Reader ’sDigest e Américas, criavam uma situaçãoque beirava o desespero, com um jorna-lismo alarmista e panfletário ao extremo.Suas reportagens forjadas e artigos ten-denciosos se amparavam na idéia de quea democracia estava em perigo e só uma“revolução” por meio de um golpe militarpoderia manter o País em um regime de li-berdade e progresso, em que a religião ofi-cial, o catolicismo, estaria protegido e,conseqüentemente, as instituições da fa-mília e da propriedade – leia-se os latifún-dios rurais, muitas vezes improdutivos.

Com tiragens que chegavam a 500 milexemplares, como era o caso de Seleções

combatê-lo datava dos tempos da Segun-da Guerra Mundial. Seleções, por exem-plo, chegou ao País em 1942. Nesse mes-mo ano, foi criada nos Estados Unidos AVoz da América, um engenhoso sistema depropagação dos ideais americanos tão ou-sado que, a partir de 17 de fevereiro de 1947,deu início em suas transmissões para aUnião Soviética – a idéia era atingir opo-sitores do regime stalinista e incentivá-los a se tornarem espiões.

Antes disso, seu propósito inicial foitransmitir notícias e propaganda políti-ca para países da Europa e Norte da Áfri-ca, todos sob ocupação militar da Alema-nha Nazista. Para isso, utilizava transmis-sores de ondas curtas das potentes rádi-os comerciais CBS e NBC. Durante o pe-ríodo da Guerra Fria, de 1945 a 1991, A Vozda América esteve sob controle da Agên-cia de Informação dos Estados Unidos-CIA, praticamente como uma arma deguerra. A partir de 1951, o serviço esten-deu seus tentáculos para os impressos ecomeçou a distribuir pelas capitais detodo Brasil, através de embaixadas e con-sulados, uma revista com a programaçãomensal, enviada pelos Correios. Impres-so em papel especial, o boletim Voz daAmérica revelaria, com sua coleção, um in-teressante roteiro histórico das ativida-des americanas contra o comunismo emtodo o mundo. Era o que os soviéticos cha-maram de expansão ideológica, principal-mente na América Latina.

Assim como A Voz da América, outra re-vista, Américas, tinha um estilo sutil depropaganda ideológica capitalista. Ao in-vés de publicar matérias sobre os malefí-cios do regime comunista soviético, pro-curava valorizar a grandiosidade cultural,social, econômica e política dos EstadosUnidos. O país era retratado como a ter-ra da liberdade, das oportunidades e, prin-cipalmente, uma nação irmã dos seus vi-zinhos americanos. Ou seja, tinha o pro-pósito maior de promover a integração nocontinente. A revista foi lançada no Bra-sil em 1949, com o selo da Organizaçãodos Estados Americanos-OEA. A versãobrasileira tinha como editor-chefe Gerô-nimo Jardim e o resto da equipe apareciaenvolta de mistérios. O endereço da Re-dação, por exemplo, era uma caixa postalno Rio de Janeiro, apenas. O direciona-mento para os Estados Unidos se via naedição de julho de 1965, com a reporta-gem “Washington se renova”, escrita porWolf Von Eckardt. Na foto principal, o gi-gantesco prédio do Pentágono, em umavisão aérea.

Falta de controle institucionalA partir de 1961, em especial, com a cri-

se que se seguiu à renúncia de Jânio Qua-dros, em agosto, e o empenho para impe-dir a posse do Vice-Presidente João Gou-lart – um latifundiário e grande criador degado, mas apontado falsamente como co-munista –, esses veículos começaram a re-ceber generosos aportes de grandes empre-sários brasileiros e executivos de empresasamericanas para ampliar suas tiragens ealcance. Precisavam formar a idéia primor-dial de impor a ordem em uma situaçãoque a imprensa propagava como falta decontrole institucional do governo, inca-paz de por ordem frente a uma situação su-postamente pré-revolucionaria.

Desde o governo Juscelino Kubistchek,entre 1955 e 1960, segmentos conserva-dores perceberam a necessidade de umacontra-propaganda por causa da ameaçacomunista. A revolução cubana redimen-sionou o pânico que existia. Não por acasofoi lançada nesse ano a revista Ação De-mocrática, identificada como “BoletimMensal do Instituto Brasileiro de AçãoDemocrática-Ibad”. Seu slogan era “Opreço da liberdade é a eterna vigilância”.E o que era o Ibad?

Desde o primeiro momento comoPresidente da República, Goulart de-monstrou “contrariar interesses das clas-ses dominantes” com propostas de mu-danças em favor dos trabalhadores urba-nos e rurais – ampliação de direitos tra-balhistas e reforma agrária. Antes da possede Jânio Quadros, em janeiro de 1961, umacontecimento mostrou que estava emmarcha um movimento pela moralidadepolítica, social e religiosa, dentro de umcontexto de Guerra Fria, contra a expan-são do comunismo pelo mundo.

Foi criada em 26 de outubro de 1960 aSociedade Brasileira de Tradição, Famíliae Propriedade, que ficaria mais conhecidapela sigla TFP. Seu fundador, o advogadoPlínio Correa de Oliveira (1908-1995),vinha de uma família tradicional de fazen-deiros de Pernambuco e era um jurista deprestígio nos meios acadêmicos de SãoPaulo, estado onde nasceu. De fundamen-tação católica radical, a TFP se lançou naluta contra o comunismo com foco na ju-ventude, considerada mais vulnerável einfluenciável. Por todo o País, a entidadepassou a organizar cursos gratuitos de for-mação doutrinária, ministrados por pro-fessores universitários, jornalistas e inte-lectuais simpatizantes da causa.

Para Oliveira, o comunismo tinha umaconcepção materialista destrutiva do es-

Conspiração de papelEntre 1953 e 1964, diversos jornais e revistas hoje pouco lembrados conspiraram abertamente e de modo

alarmista contra a ameaça comunista que seria falsamente personificada pelo Presidente João Goulart.

POR GONÇALO JÚNIOR

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE

(veja texto na página 23), esses veículosnão podiam se queixar da falta de recur-sos, vindos principalmente da publicida-de de grandes companhias norte-ameri-canas multinacionais como General Ele-tric, Firestone, Ford e muitas outras.Assim, atingiam o público certo e, embo-ra isso ainda não tenha sido devidamen-te estudado, sem esses veículos certa-mente não teria sido possível a criação doclima de desestabilização política peloterror, indispensável para aparentementelegitimar a intervenção dos militares. Naverdade, essa preocupação americanacom o comunismo e o uso da mídia para

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pírito e pela supressão da livre iniciativana ordem econômica, da propriedade pri-vada e da tradição familiar cristã. Em1961, a organização ganhou um impor-tante aliado, com a criação do Institutode Pesquisas e Estudos Sociais-IPES, for-mado pela nata do empresariado. Esta sedefinia como uma agremiação apartidá-ria, “com objetivos essencialmente edu-cacionais, e voltada para os estudos dosproblemas brasileiros”. Na sede do IPES,que ocupava treze salas do edifício Ave-nida Central, no Rio de Janeiro, reuniam-se diariamente grandes empresários e mi-litares do Grupo de Levantamento eConjuntura-GLC, um dos setores do IPESdestinado a acompanhar os acontecimen-tos políticos, levantar informações e fi-xar diretrizes de ação. O GLC era entãoliderado pelo General Golbery do Coutoe Silva (1911-1987), que se revelaria oprincipal estrategista da organização efuturo cérebro da ditadura iniciada a par-tir de 1964. A entidade chegou a ter, às vés-peras do golpe, cerca de 400 mil associa-dos em todo o Brasil.

Com características semelhantes, foi cri-ado na mesma época o Ibad, diretamente

ligado ao IPES, que viria a formar com aTFP uma frente articulada contra a supostaimplantação do comunismo no governobrasileiro. O movimento conspiratórioque se seguiu resultaria nas Marchas da Fa-mília com Deus e pela Liberdade, que an-tecederam e sucederam o golpe militar de-flagrado em 31 de março. O papel da im-prensa conservadora e dirigida foi funda-mental nessa mobilização. Das mulherestambém. Elas, que até então tinham sidomantidas restritas ao espaço privado do lar,passaram a ser vistas como um novo ele-mento político, capaz de avalizar uma pos-sível intervenção armada.

Estatuto da Mulher CasadaPara se ter uma idéia do quanto as mu-

lheres eram reprimidas, somente em1962, com o Estatuto da Mulher Casada,elas puderam trabalhar sem autorizaçãodo pai ou do marido. Ao mesmo tempoem que patrocinava uma ampla campa-nha desgastante do governo, o movimen-to liderado pelo IPES/Ibad apelou paraque os homens das classes dirigente emédia incitassem suas mulheres a se po-sicionar como mães e figuras santificadas

em defesa de seus lares e de seus filhos,contra o “comunismo ateu” e na defesa dainstituição “família”.

Impresso em papel de alta qualidade,nas cores preta, verde e amarela e com 20páginas, em média, a revista Ação Democrá-tica era editada por Gladstone Chaves deMelo, auxiliado por Denio Nogueira (Re-dator Econômico) e Vicente Barreto (Se-cretário). Gustavo Corção (1896-1978)era o consultor de Redação. Escritor epensador católico brasileiro, Corção eraautor de diversos livros sobre política econduta, além de um romance. Na época,era membro da União Democrática Naci-onal-UDN e um expoente do pensamen-to conservador no Brasil. Ivan Hasslocher,Presidente do Ibad, assinava como diretorresponsável da publicação. A maioria dostextos não era assinada. Alguns artigostraziam os nomes de Jacques Maritain,Guido Gonella, J.Fernando Garneiro eJosé Carlos Barbosa Moreira, entre outros.A revista tinha correspondentes em todoBrasil. Uma de suas principais seções eraRonda dos Jornais, com trechos de reporta-gens da grande imprensa que seus redato-res achavam importante destacar.

O boletim do Ibad tinha um esquemade distribuição diferenciado, dirigido a to-dos aqueles que consideravam sua causajusta. O envio era feito para todo País pormeio dos Correios e jamais foi vendido embancas de jornal. Em cada edição, vinhauma ficha para que o assinante indicasseuma pessoa que pensasse como ele a respei-to da ameaça do comunismo e estivessedisposto a se posicionar contra essa “ame-aça”. Embora anunciasse no expedienteque cada exemplar custava Cr$15, nãohavia informação de custos de assinaturaou compra em separado. De acordo com aficha de inscrição, bastava enviar o ende-reço e o exemplar seguiria sem custos.

Em um momento dos mais curiosos,em sua edição de agosto de 1961, mesmomês de renúncia do Presidente JânioQuadros, a revista criticou a americanaTimes que, em sua edição do mês anterior,afirmou em reportagem que Jânio preten-dia se tornar ditador – teoria hoje maisaceita, ele teria renunciado para tentarvoltar com poderes absolutistas. “O im-possível acontece: Time abraça os comunis-tas. Os comunistas abraçam a Times”. Se-gundo Ação Democrática, a publicação ame-

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ricana teria “deturpado” palavras e fatos eprovocado “desprestígio” para o Brasil e seuPresidente em todo o mundo.

No artigo “Os cristãos e o comunismo”,publicado na edição de agosto de 1961, umretrato da postura política da revista: “Osredatores desta revista vêm, ultimamen-te, discutindo com certa freqüência a ati-tude dos cristãos em face do comunismo.Têm sido procurados ora por pessoas quese mostram inquietas com os progressosdo esquerdismo nos meios religiosos, orapor jovens cristãos que declaram não en-tender nossa posição de combate ao tota-litarismo comunista e de apoio à empresaprivada, em nome da dignidade humana.Procuraremos mostrar neste artigo qual éde fato a atitude dos que crêem em Deuse dos cristãos diante da revolução totali-tária”, disse o autor anônimo. Muitas ve-zes, prosseguiu ele, “o esquerdismo é umaforma de ódio ao estrangeiro, ao america-no, que tem por fonte um recalque psico-lógico, um trauma de infância mal cicatri-zado. Esses tais mal conseguem disfarçarno rosto o estigma de uma triste inferio-rização de ordem psíquica que lhes afloraa consciência sob o disfarce cativante deamor à pátria e zelo pela justiça”.

Comunista fichadoFolheando a coleção da revista Ação

Democrática, fica claro que o alarmismocontra a ameaça comunista já era inten-sa em 1961. E que o Governador da Gua-nabara era um dos principais nomes quefomentavam a polêmica. Na edição denovembro daquele ano, a manchete decapa alardeava: “Na luta pela democracia,Lacerda não está só – Chefe do EstadoMaior e Arcebispo de Porto Alegre tam-bém denunciam perigo comunista.” ODeputado Gladstone Chaves de Mello,secretário geral do Partido DemocrataCristão, afirmou: “Estamos convencidosde que a Encíclica (do Papa João XXIII)inaugura uma atitude simpatizante daIgreja com o socialismo. A grande sedu-ção que os sistemas socialistas exercemsobre povos em via de desenvolvimentoé a de se apresentarem como sistemas deprodução mais eficientes e de distribui-ção mais justa”. Na mesma edição, a revis-ta escandalizava: “Denúncia gravíssimae silêncio do governo – comunista ficha-do, confesso e categorizado em cargo daestrita confiança do Sr. João Goulart”. Opersonagem, no caso, era o secretário par-ticular do Presidente, Raul Ryff.

Uma curiosidade que aparecia na pá-gina 2 de todas as edições era a lista das 34emissoras de rádio que retransmitiam oprograma radiofônico A Semana em Revis-ta, produzido e patrocinado pelo Ibad, oque mostrava um alcance bem maior quea revista. Como dizia seu slogan, a atra-ção trazia no mesmo tom “comentáriose análises sobre o que acontece no Brasile no mundo”. O programa trazia curiosi-dades como a seção “Você sabia que...”, re-produzida na edição impressa. Em um dosinformes, ouvia: “Você sabia que enquan-to as nações democráticas, a partir da úl-tima guerra, tiveram a preocupação cons-tante de libertar as nações até então sob

ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE CONSPIRAÇÃO DE PAPEL

seu controle, os comunistas – que tantogostam de falar em imperialismo – man-têm sob seu tacão mais de 100 milhões deseres humanos, exatamente a partir dofinal daquela guerra?”

Monitorando a influência comunistaCom seu formato mais comedido nos

meses que se seguiram a seu lançamento,a revista Edição Extra se dedicou a monito-rar a influência comunista no País, prin-cipalmente entre políticos importantes.Tinha o mesmo formato das semanaisManchete e O Cruzeiro, e pertencia a um gru-po de políticos e jornalistas ligados ao en-tão Governador Adhemar de Barros(1901-1969). Oficialmente, era publicadaem São Paulo e pertencia à CompanhiaEditora Mundial, cujo diretor-presidenteera Maurício Loureiro Gama e, vice, JoséCarlos de Moraes. Sua Redação ficava naRua Avanhandava, 234, Vila Madalena. Naedição de 28 de julho de 1962, por exem-plo, publicou uma entrevista com o Gover-nador pernambucano Miguel Arraes, comdestaque na capa – “Arraes e o Comunis-mo” –, em que ele afirmava, de modo con-victo, não ter qualquer envolvimento comas idéias pregadas por Moscou.

Com a proximidade do golpe, a publica-ção começou a se assumir inteiramente an-ticomunista e passou a ter um papel de des-taque na consolidação do que chamava de“revolução democrática”. Em 15 de feverei-ro, na reportagem “Greves param o Brasil”,a revista curiosamente defende esse instru-mento de reivindicação com o propósito deressaltar que o mesmo não existe em um re-gime comunista: “Em uma ditadura de qual-quer cor, de qualquer tipo, de qualquer dou-trina, greves não seriam permitidas. Porquegreve é um direito exclusivo dos povos quevivem em regime de liberdade. A democra-cia reconhece e defende o direito de greve.Nem todas as greves, porém, são justas”, res-saltou Jairo Pinto de Araújo. A revista de-dicou um número inteiro às comemoraçõespelo novo governo imposto à força.

Na capa, um trocadilho sobre o tal pla-no comunista para tomar o País: “Depoisda fortaleza vermelha, só mesmo um CAS-TELLO BRANCO”. Em destaque, não afoto do novo Presidente, mas do Governa-dor de São Paulo Adhemar de Barros, umdos líderes civis do golpe e que entraria paraa história política nacional por causa da ex-pressão “rouba, mas faz”. No editorial, Edi-ção Extra ressaltava o valor histórico das pá-ginas a seguir. “Este documento pertenceà história. Não é ele apenas o pronuncia-mento de um dos seus mais autênticos lí-deres, mas a palavra decisiva de São Paulo,através do seu governador. ‘Começamos asentir a comunização do povo. Começa-mos a perceber por informes recebidos dosserviços secretos, a extensão da trama, daconspiração para um golpe de Estado, vi-sando à instauração da República Socialis-ta e Sindicalista entre nós’”.

Liberalismo astuto e suicidaEm sua coluna de 9 de maio, Maurício

Loureiro Gama defendeu a repressão mai-or aos inimigos, porque uma verdadeirarevolução não brincava em serviço: “Al-

geu todos os setores da vida nacional. Aimprensa. O rádio. A televisão. O cinema.A universidade. As escolas de todos osgraus, inclusive a escola primária. A igre-ja.” Em seguida, Gama alertou que os Ge-nerais precisavam ampliar sua ação re-pressora com mão de ferro contra os opo-sicionistas do regime – embora não se sou-besse exatamente quem eram eles. “Se ogoverno da República contemporizar, seo governo recuar para um liberalismo as-tuto e suicida, os totalitários da esquerdalogo mais estarão criando condições parao retorno”. Para ele, era preciso conside-rar que o Exército não tinha saído dosquartéis “para uma revoluçãozinha epi-dérmica ou para brincar de revolução”.

O primeiro número da Edição Extra asair depois do golpe militar chegou às ban-cas no dia 11 de abril. Na capa, uma fotoaérea da marcha da vitória, passeata reali-zada seis dias antes, no centro de São Pau-lo, com uma bandeira do Brasil e uma cruzvermelha no canto esquerdo. O título so-aria irônico com o tempo: “32 motivospara dizer não ao totalitarismo”. Os edi-tores da revista, claro, subestimaram asambições dos militares que, desde o levan-te do Forte de Copacabana, em 1922, so-nhavam em tomar para si o poder no Bra-sil. O editorial era curto e margeava outraimagem da festa da vitória. “Verde e ama-relo, sem a foice e o martelo: Do ‘Show’ ver-melho ou avermelhado da Central, quecustou cerca de 300 milhões, à mobiliza-ção autêntica do povo – Resposta dosdemocratas ao soviete que intentou pro-clamar a República Sindicalista”.

Em 5 de maio, mais de um mês depois,a revista anunciava um novo tempo, coma matéria de capa “O Brasil passado a lim-po”. Com Castello Branco já empossado,a reportagem afirmava que a caça às bru-xas continuava na ordem do dia dos revo-lucionários e sem prazo para acabar. Abaixoda foto do Presidente, que governaria oPaís por um longo tempo, uma imagem em-blemática de oito oficiais de alta patentefardados e de quepe. No roteiro da posse,dentro da revista, Castello aparecia aolado do ex-Governador mineiro Maga-lhães Pinto (1909-1996), um dos líderescivis que ajudaram a derrubar Jango. Nacontracapa, uma linda foto de Maria Te-reza Goulart trazia um texto que procura-va ridicularizá-la: “A Bela Exilada”.

Ação Democrática, Edição Extra e Sele-ções, em especial as duas primeiras, sumi-ram no limbo da história. Mas os poucosexemplares restantes publicados entre1961 e 1964 mostram que elas se tornaramporta-vozes nos bastidores dos projetos deruptura da democracia e de apelo aos mi-litares para que, por meio de uma interven-ção, derrubassem o Presidente a qualquerpreço, mesmo com o vermelho do sanguesobre as calçadas. Elas saudaram o golpecomo a salvação da democracia, pronun-ciaram-se abertamente a favor da instau-ração da ditadura e apoiaram a repressãocomo se fizesse parte desse esquema desuposta libertação. Podiam estar bem in-tencionadas, mas jogaram o País em umaditadura na expressão completa do termo.Um equívoco que durou 21 anos.

guns dos líderes mais notórios, na áreapolítica, foram afastados e arquivadosatravés da cassação dos direitos políticosaté 1974. Mas isso, apenas, não basta. Ainfiltração ideológica foi terrível e abran-

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Em novembro de 1964, sete meses de-pois do golpe militar que derrubou o Pre-sidente João Goulart, a edição brasileirada revista americana Seleções do Reader’sDigest publicou um longo artigo dirigidoa seus mais de 500 mil assinantes – quan-do o Brasil tinha apenas 80 milhões de ha-bitantes – com um balanço sobre a crisepolítica em que mergulhou o País nos qua-tro primeiros meses daquele ano. Intitu-lado “A nação que se salvou a si mesma”,com o complemento “A rendição totalparecia iminente... e então o povo brasi-leiro disse: Não!”, o texto foi escrito pelojornalista americano Clarence W. Hall etambém publicado em todo o mundo, nasmais de 20 edições internacionais da re-vista. A reportagem pretendia reafirmarque o maior país da América Latina forasalvo do comunismo por um triz. E de-fender que, de fato, o acontecimento quelevou à queda do Presidente civil foi mes-mo uma “revolução democrática”, com aparticipação de vários setores da socieda-de brasileira. Leia-se as classes dominan-tes conservadoras do País.

O texto fez tanto sucesso nos meiosmilitares que, para comemorar um dosaniversários do “movimento”, o 14º, aEditora Biblioteca do Exército o relançouem formato de livro – impresso na gráfi-

por edição para denunciar a falta de liber-dade dos cidadãos, de religião e do direi-to à propriedade nos países que se iden-tificavam como comunistas. Seleções ti-nha um esquema eficiente de ação e, gra-ças principalmente a vários artigos sobreo assunto escritos por americanos, quechegavam aos brasileiros por ela traduzi-dos e reproduzidos, ajudou a difundir oalarmismo e, mais adiante, a campanhagolpista pela queda de Jango.

Lançada no Brasil em fevereiro de1942, a publicação de circulação mensaltrabalhou desde o início para se tornaruma das mais influentes revistas e deleitura obrigatória pelos formadores deopinião brasileiros. Considerada a maisinfluente publicação anti-comunista dahistória da imprensa mundial, Seleçõesreunia em suas páginas uma rigorosa es-colha de reportagens, matérias jornalís-ticas e artigos publicados na imprensaamericana e européia.

Seu projeto editorial funcionava comouma espécie de “revista das revistas”, comresumos cuidadosamente preparados edirecionados à conveniência de sua linhaeditorial, especializada na propagandaanti-comunista, justificada pela preocupa-ção em preservar o “modo de vida ameri-cano”. Seu público alvo era principalmen-te a família, com foco na preocupaçãosobre a formação moral da “juventude”,

como tanto se dizia. “Tinha-se pouca ounenhuma autonomia em relação ao Digestamericano, para se produzir as matériasnacionais”, lembrou em entrevista ao jor-nal Gazeta Mercantil, em 2002, o escritore jornalista Ruy Castro, que trabalhou naSeleções entre 1972 e 1974. Segundo ele, “otrabalho consistia em selecionar o quefosse aproveitável da edição americana ecombinar esse material com o que nos eraoferecido pelas outras 16 edições interna-cionais da Digest (francesa, japonesa, delíngua espanhola, a chinesa de Taiwanetc.)”, explicou o ex-editor.

A história do impressionante sucessoda Digest contada pela própria revista deforma heróica e com doses de romantis-mo é fundamental para ilustrar o climahistérico de ameaça comunista que come-çou a se propagar nos Estados Unidos apartir da década de 1920, após a revolu-ção bolchevique da Rússia de 1917. Tudocomeçou em 1921, com um rapaz chama-do DeWitt Wallace. Após cursar o Colé-gio Macalester, da cidade de Saint Paul,estado de Minesota, do qual seu pai erapresidente, Wallace concluiu o curso deEducação na Universidade da Califórnia.Suas ocupações seguintes foram se dedi-car à publicidade em uma editora e servirno Corpo Expedicionário Americano, naFrança, durante a Grande Guerra Mun-dial, entre 1914 e 1918. Desde os temposem que trabalhou com propaganda, oastuto Wallace vinha desenvolvendo umprojeto que estava lhe “consumindo osócios e monopolizando o interesse”. Noprimeiro ano da década de 1920, ele de-cidiu que chegara o momento de publicarum novo tipo de revista, atraente e combaixíssimo custo de produção. Uma idéiaoriginal e promissora. “Wallace dispunhada sua idéia, da sua capacidade, e um pou-co mais”, relembrou um empolgado reda-tor de Seleções, ao romancear sua história.Suas economias mal passavam de mildólares o que, para a época, não era umaquantia tão desprezível, mas insuficientepara estruturar uma revista.

Galinha dos ovos de ouroEm seu projeto ele defendeu a força da

idéia: “Proporcionar às urgentes necessi-dades do grande público um serviço de lei-tura como ainda não existia”. Uma argu-mentação nada objetiva. Mas o raciocíniode Wallace era oportunista. As inúmeraseditoras americanas lançavam todos osmeses uma esmagadora quantidade de re-vistas, livros e publicações para o grandepúblico. “Ora, DeWitt Wallace acreditavaque as pessoas muito ocupadas, mas ávidasde saber, reservariam bom acolhimento aum serviço de escolha de leituras que pu-sesse à disposição delas o melhor, mais útile agradável de quanto fosse aparecendoimpresso, e que, sem o veículo dum talserviço, ficaria talvez fora do seu alcance”,observou o historiador de Seleções. Na prá-tica, seu plano era reunir grandes e impor-tantes textos de cada mês já publicados emuma só revista no mês seguinte. O jovemeditor descobrira a galinha dos ovos deouro – uma fórmula de ganhar muito di-nheiro gastando o mínimo possível.

A revista que queria‘salvar’ o mundo

Em circulação há 92 anos, Seleções se transformou, a partir da década de 1940,em uma bandeira de combate ao comunismo em todo o mundo,

durante a guerra fria, financiada por empresários e pela Fundação Rockfeller.

POR GONÇALO JÚNIOR ca do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística-IBGE com uma pequena mu-dança no título: A Nação que se Salvou aSi Mesma – 31 de Março: 1964-1978. Noverso dessa edição, os editores pediampara que, após sua leitura, seu proprietá-rio passasse o texto adiante para que to-dos soubessem a importância do regimemilitar: “Por se tratar de documento designificação especial, mas editado emnúmero reduzido, leia-o e faça-o chegaràs mãos de outras pessoas”.

O artigo de Seleções pode ser conside-rado o marco fundador nos diversos es-critos memorialísticos de militares pu-blicados após a posse do general Humber-to de Alencar Castello Branco na presi-dência do Brasil, em 15 de abril de 1964.O artigo, em especial, pretendia colocarum ponto final na dúvida se de fato o Paíssofria nova ameaça comunista que levouao fim do governo Jango, ou tudo nãopassava de exagero de militares golpistas,alarmados com o “perigo vermelho” aserviço dos interesses americanos e de seumilitarismo. Uma simples volta no tem-po mostra que essa não foi uma atitudeisolada da revista americana.

Campanha golpistaDesde o final da Segunda Guerra

Mundial, principalmente, Seleções publi-cava de um a dois artigos ou reportagens

HISTÓRIA

Periquitos na capa da edição de novembro de 1964, que veio comum caderno especial sobre o golpe: ‘o povo brasileiro disse: Não!’

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Aos poucos, ele foi formatando melhora publicação que queria lançar. Seu proje-to pretendia reunir em uma única revistaos melhores e mais conceituados jornalis-tas e articulistas da imprensa americana aum custo próximo de zero. Ao editor res-tava apenas um pouco de trabalho, pois, àsvezes, seria preciso fazer condensação deum ou outro texto, de modo a adequá-lo.Esse trabalho aparentemente simples esem qualquer compromisso se revelaria,no futuro, a principal arma da revista paraatingir seus fins políticos. Em muitos ca-sos, essas condensações levavam seus re-datores a escolher e direcionar somente oque era conveniente aos interesses moraise ideológicos de Seleções, embora ninguémreclamasse porque ser escolhido por eleera um prêmio, a oportunidade de ser lidopor milhões de pessoas em todo o mundoSe não mudavam o conteúdo do artigo,não raro, os redatores realçavam algumasidéias convenientes.

Essas condensações “necessárias” fo-ram justificadas por DeWitt Wallace emvárias oportunidades. Ele explicou que “aleitura mais excelente redunda com fre-qüência em tarefa, devido ao peso mortodos excessos verbais”. E completou afir-mando ter feito “várias experiências nosentido de aligeirar certos artigos, semlhes sacrificar nem a tese nem o sabor, edescobrira assim que, longe de danificá-los com essa poda de palavras inúteis, osmelhorara consideravelmente”.

Na verdade, não raro, Seleções realmen-te selecionava fragmentos de textos quemais lhe eram convenientes, dando-lhesaté entonação alarmista. Do seu entusi-asmo pela idéia de fazer uma revista “di-gestiva” participava Lila Bell Acheson,sua amiga desde os tempos de colégio e suafutura esposa. Os dois se conheceram nacasa da própria Lila, onde Wallace forapassar umas férias de Natal na compa-nhia do colega BarclayAcheson, irmão deLila – e que depois ocuparia o cargo deredator-viajante do Reader’s Digest. Lilafora formada na Universidade do Oregon.Após a guerra, dedicara-se às obras de as-sistência social.

Com o projeto na cabeça e uma cane-ta na mão, Wallace redigiu uma carta cir-cular a seus supostos futuros leitores, da-tada de 9 de julho de 1921, na qual expu-nha os propósitos da revista que preten-dia fundar em alguns meses. Além dedescrever como seria a publicação, pediaa confiança do público, convidando-o afazer uma “assinatura de fundador”. O es-quema imaginado era simples. O assinan-te apenas confirmava seu interesse em re-ceber o primeiro número da revista e nãoprecisava fazer qualquer pagamento pré-vio ou assumir o compromisso de fazê-lo.Ao receber o exemplar, se não ficassesatisfeito, o assinante poderia desistir daassinatura e rasgar a conta, sem ficar de-vendo um único centavo. Caso contrário,se achasse a revista de seu interesse, oleitor deveria pagar pela assinatura.

Para os editores de Seleções, esse mo-mento decisivo foi marcado pela “ro-mântica” decisão de Wallace e Lila. “Maltinha caído na caixa do Correio a última

rido o segundo ano, duplicara uma vezmais, e assim continuou “milagrosamen-te”, durante oito anos seguidos, “dispon-do apenas de recursos modestos para o fo-mento das vendas’. Um dos segredos parao sucesso da revista estava no preço. Aomesmo tempo em que conseguiu excelen-te padrão gráfico para a época – impressaem papel de alta qualidade, capa coloridae mais de 200 páginas por edição –, Seleçõeschegava ao leitor por um valor bem abai-xo das demais revistas de variedades. Issofoi possível, principalmente, por causa dasconstantes injeções de subsídios e anún-cios feitas por fundações e empresas quejá nos primeiros anos se identificaramcom a explícita posição anti-comunista dapublicação dos Wallace.

No final de 1922, o casal transferiu asede da revista para uma povoação rural,a cerca de 40 quilômetros do centro deNova York. No local, passou a funcionaruma espécie de pequena cidade da Seleções,onde os dois construíram moradias e es-critórios numa pequena vivenda de pe-dra, situada entre deliciosos pinheirais nopé de uma colina. As instalações e o pes-soal foram crescendo à medida que TheReader’s Digest se expandiu por vários pa-íses. Logo a editora ampliou seus negóci-os por toda povoação de PleasantVille.

“Partindo de uma origem modesta, semauxílio de estranhos, de bancos, socieda-des, ou departamentos do governo, TheReader’s Digest é o exemplo claro dos fe-lizes resultados a que pode atingir umaempresa individual e independente, diri-gida com iniciativa e originalidade”, dissea revista em uma de suas edições de ani-versário, comemorado todos os anos,sempre no mês de janeiro, cada vez maiscom versões fantasiosas. A história real,no entanto, não aconteceu exatamenteassim, de acordo com a pesquisadora rus-sa Karen Katchaturov.

Apoios financeirosÀ medida que se tornava uma publica-

ção cada vez mais conservadora, o apoiofinanceiro de seus simpatizantes aumen-tava, em forma de anúncios de grandesempresas. E o negócio cresceu a passos lar-gos no decorrer dos anos de 1930. A pro-dução de Seleções na década de 1940 mo-bilizava, apenas na sua Redação america-na, 61 redatores permanentes. Pratica-mente todos eles vieram de antigos car-gos de diretores-gerentes de revistas co-nhecidas nacionalmente, jornalistas no-táveis e colaboradores especializados depublicações literárias, científicas, religi-osas, comerciais e educativas.

A preparação do material para um úni-co número exigia 8.235 horas de leiturapor mês. Ou seja, mais de 1.029 dias úteisde oito horas. Essa leitura mensal, levadaa cabo por um grupo de especialistas,equivalia ao que leria uma só pessoa emtrês anos de leitura constante. Mais de92% dos seus 402 empregados da matrizamericana viviam, em 1941, nas imedia-ções dos terrenos da empresa. ‘Modernoe gracioso’, o edifício dos escritórios foiconstruído em 1939, e substituiu a pri-meira Redação fundada nos anos 1920.

Ficava a cerca de três quilômetros do cen-tro de povoação mais próxima.

Nesse momento, a revista alcançou o re-corde de ter assinantes em exatos 105 pa-íses. Como estratégia de marketing, Walla-ce e Lila criaram uma série de serviços gra-tuitos para leitores carentes. Entre eles, o dasassinaturas-prêmio, oferecidas todos osanos aos estudantes que mais se destacavamem cada uma das classes graduadas das 29mil escolas superiores dos Estados Unidose do Canadá. Mais de 600 mil exemplareseram concedidos com um desconto escolarespecial aos professores e alunos das esco-las que usavam a revista para fins docentes,o que também era o caso de 400 colégios euniversidades conceituados.

Todas as grandes multinacionais ameri-canas anunciavam nas edições internacio-nais de Seleções. Esse apoio permitiu à revistaum fenomenal e meteórico crescimento.Antes mesmo do lançamento de uma novaedição em algum país, toda a estratégia demarketing do grupo entrava em ação, ga-rantindo previamente uma boa quantida-de de anúncios por até anos seguidos. To-das as fases desse desenvolvimento foramfinanciadas com os lucros do Digest. Osanúncios publicados em quase todas as edi-ções ajudavam a colocar a revista ao alcancede todos, a preços razoáveis.

Segundo dados da própria revista, maisde 1.700 anunciantes figuravam regular-mente em suas várias edições multinaci-onais. “Esses anunciantes empregam mi-lhões de dólares anualmente, porque jáverificaram que os leitores inteligentes eprogressistas, que encontram idéias no-vas e estimulantes nos artigos do Digest,são os consumidores mais cobiçados emtodo o mundo”, observou um de seus edi-torialistas. Em carta à revista, um leitorresumiu a importância política de Seleçõescomo formadora de opinião internacio-nal. “Apesar de exprimir-se em muitas lín-guas, no fundo a revista fala a linguagemuniversal da dignidade humana, da de-cência, da esperança e da liberdade”. Paratornar suas edições politicamente maisleves, Seleções mesclava textos científicos,de economia, de comportamento, curio-sidades e resumos de um ou dois livros “re-comendáveis” por edição. Os leitores detodo o planeta, por exemplo, conheceramas maravilhas da Nova Zelândia ou as pro-priedades mágicas do silicone, graças aum de seus artigos condensados.

Crescimento editorialOutra arma eficiente de Seleções foi o

seu eficaz auto-marketing, em uma épocaem que a propaganda não tinha a ousadiaque a concorrência ia exigir no futuro.Foram comuns, por exemplo, sucessivasautopromoções que ocupavam várias pá-ginas de um único número. Com regulari-dade, a revista publicou matérias sobre seucrescimento editorial em todo o mundo.Cada nova edição estrangeira mereciamatéria de duas ou mais páginas. Aindanessa estratégia, era comum ouvir a opi-nião da elite intelectual e política de cadapaís. O aval dessas autoridades garantia aopúblico comum que quem detinha o poderera também leitor da publicação.

circular, deram os dois jovens balanço aosseus recursos, que aos poucos se iam esgo-tando; encararam a vida a sério... e resol-veram se casar”. Ao regressarem da lua demel esperava-os uma animadora quanti-dade de cartas-resposta recheadas de umcheque cada uma, como pagamento pelaassinatura de Seleções.

Em janeiro de 1922, “cheios de espe-ranças”, a partir do seu apartamento emNova York, Wallace e Lila embalaramtodos os exemplares do primeiro núme-ro do Selections of the Reader’s Digest e osremeteram a cinco mil “assinantes-fun-dadores”. Praticamente todos aprovarama revista, devolvendo a confirmação daassinatura. No final do primeiro ano, a cir-culação havia duplicado a tiragem. Decor-

HISTÓRIA A REVISTA QUE QUERIA ‘SALVAR’ O MUNDO

A “ameaça vermelha” nos artigos da Seleções.

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Os elogios vinham dos mais altos esca-lões da política e da cultura locais. “O êxitoda edição japonesa atesta o interesse uni-versal pelo Reader’s Digest e o seu valorcomo veículo de intercâmbio cultural en-tre as nações”, disse o Primeiro Ministrojaponês Shigeru Yoshida. “Quando umapublicação dedicada a informar e esclare-cer atinge as proporções internacionais,a sua importância se multiplica tantas ve-zes quantas forem as línguas em que elaé publicada em todo o mundo”, afirmouo Vice-Presidente brasileiro, João Café Fi-lho. O imortal e conservador Paul Clau-del, da Academia Francesa de Letras (ir-mão da escultora Camille Claudel), che-gou a fazer um apelo a seus leitores paraque “leiam o Reader’s Digest. O ar damontanha, o ar do campo, perpassa emsuas páginas. Com o Digest aprendemosque Deus, como diz a Bíblia, não nos deumãos para ficarem debaixo dos braços, eque os cristãos não foram feitos para aamargura e o desânimo”.

Auto-proclamada anti-comunista, nodecorrer da década de 1950 e cada vezmais, Seleções não abriu mão do cuidado noprocesso de escolha dos textos, geralmenteconservadores quanto a valores da famí-lia e da tradição e do catolicismo. De for-ma religiosa, pelo menos três textos emcada edição eram relacionados a críticascontra o comunismo. As edições interna-cionais de Seleções funcionavam mais oumenos a partir do princípio de que o queera bom para a família americana tambémo era para as famílias de todas as nações dooriente e do ocidente. Não faltaram, paradifusão desses ideais, pesados incentivosfinanceiros da Fundação Rockefeller, fa-mosa instituição anti-comunista – a mes-ma que intermediou a vinda de Disney eOrson Welles para o Brasil durante a Se-gunda Guerra.

Seleções passou a ser editada para a Amé-rica Latina, em espanhol, a partir de de-zembro de 1940, batizada de Secciones delReader’s Digest, com uma tiragem inicialde 150 mil exemplares. Dezoito mesesdepois, sua tiragem passou dos 400 milexemplares. Essa circulação era superiora de qualquer outra revista ou magazineda América Latina. Dois anos depois, saiuem português para o Brasil. No quarto deséculo seguinte, com o crescimento doconflito ideológico entre Estados Unidose União Soviética, a revista chegou a teruma tiragem de 1,7 milhão, apenas da sua

edição latino-americana. A edição espa-nhola de Reader’s foi lançada em dezem-bro de 1940. Até sair em língua portugue-sa, Selecciones foi distribuída regularmenteem todo Brasil.

Versão brasileiraComo praxe, antes de sair a edição bra-

sileira, o quartel-general da revista en-viou uma equipe de pesquisadores para es-tudar a possibilidade de aceitação da re-vista entre os leitores brasileiros e defi-nir o investimento a ser feito. Segundo aprópria revista, foram entrevistados edi-tores de jornais e revistas, além de comer-ciantes e simples cidadãos – seus leitores.Os técnicos de Seleções estudaram desdea média salarial do brasileiro, seu poder deaquisição, os hábitos de leitura da popu-lação e o preço normal das principais pu-blicações. Com essas estatísticas cuidado-samente elaboradas, foram fixados preçose descontos para a promoção do númeroum. “Sabíamos que só à base de baixo pre-ço Seleções poderia atingir grande expan-são”, disse seu editorialista ao justificar aedição brasileira. Para possibilitar a publi-cação da revista em português ficou deci-dido que “o trabalho e o custo da seleçãode materiais correriam por conta da re-vista mãe”.

A edição feita no Rio de Janeiro, comoo original Reader’s Digest norte-america-no, só aceitaria um número limitado deanúncios. Assim, “todos os arranjos rela-tivos a papel e impressão da edição emportuguês foram feitos tendo-se em vis-ta as possibilidades de uma grande circu-lação”. Essa conclusão apresentada pelaprópria revista levou à injeção de recur-sos, no sentido de transformar a publica-ção numa campeã de vendas.

A pesquisadora Karen Katchaturov ga-rante que parte desses investimentos erapatrocinada pela Fundação Rockefeller.Os Wallace escolheram pessoalmente ocorpo redatorial da Seleções em português.O cargo de redator-secretário foi ocupa-do a partir de New York pelo baiano du-blê de médico e escritor Afrânio Coutinho(1911-2000). Respeitado internacional-mente como ensaísta, crítico e professorda Faculdade de Filosofia da Bahia (queseria incorporada depois à UniversidadeFederal da Bahia), Coutinho chamara aatenção pelos seus inúmeros artigos pu-blicados em revistas e jornais de todo paíse pelos livros A Filosofia de Machado de As-

sis (1940) e Le Exemple du Métissage emL’homme de Couleur, da coleção francesa“Présces” (Plon, Paris, 1939).

O cargo de co-redator foi entregue aJosé Rodrigues Miguéis, escritor português,cuja novela Páscoa Feliz obteve em 1932o Prêmio da Casa de Imprensa, de Lisboa.Ensaísta, Miguéis colaborou em várias re-vistas e jornais como Seara Nova e Revis-ta de Portugal. O jornalista colombianoEduardo Cárdenas ocupou o cargo de re-dator-gerente. Cárdenas ficaria durante14 anos na direção da Editor’s Press Ser-vice, reputada agência jornalística ame-ricana. Mesmo com o “respeitável” trio decolaboradores, os Wallace estabeleceramque o trabalho da equipe deveria ser sub-metido à rigorosa equipe de “consultores”de New York. A tiragem de estréia da Se-leções brasileira foi modesta e ficou em 50mil exemplares. Mas logo no primeiro nú-mero, a revista esgotou em poucos dias,exigindo uma reimpressão urgente demais 50 mil cópias. Na quinta edição, ul-trapassou a marca dos 150 mil exempla-res. Não por coincidência, a edição brasi-leira de Seleções foi lançada alguns mesesantes de o Brasil entrar na guerra, no augeda campanha de boa vizinhança coorde-nada por Nelson Rockefeller, cuja funda-ção era publicamente uma das patrocina-doras da revista.

O editorial de estréia não deixou dúvi-das sobre o papel que Seleções pretendia de-senvolver na vida política brasileira. Di-zia o texto de apresentação do segundonúmero que “os brasileiros recebem como mais intenso regozijo esta nova ediçãode Reader’s Digest, que muito poderá con-tribuir para desenvolver as boas relações en-tre os Estados Unidos e o Brasil, cuja ami-zade é tão antiga quanto a independênciade ambas as nações. E tem sido reforçada,no curso da história, por inaudíveis demons-trações de solidariedade e afeto”.

Como em outros países, a revista co-meçou a circular com a assinatura deapoio de respeitados nomes da culturalocal. Levi Carneiro, Presidente da Aca-demia Brasileira de Letras, foi enfático aoafirmar que “Reader’s Digest realizou o mi-lagre condensando, em cada edição men-sal, uma verdadeira biblioteca e oferecen-do uma súmula de empolgante interessede toda a atividade mental da humanida-de nos variados setores em que se desen-volve”. O então Presidente da ABI, Her-bert Moses, também deu suas boas vin-

das: “Agora uma revista de língua portu-guesa promove a realização de uma dasmais belas aspirações do Brasil: a difusãoda cultura universal nas Américas atravésdas três línguas”.

Sentido da união americanaAs boas relações com o Dip (Departa-

mento de Imprensa e Propaganda), da di-tadura do Estado Novo, e a censura garan-tiram certa tranqüilidade para a produçãoda versão brasileira da revista. CândidoMotta Filho, diretor-geral do Dip de SãoPaulo, por exemplo, recomendou que“com ela (Seleções), com certeza, o senti-do da união americana se fortificará aindamais porque é pela comunhão espiritualque se definem os interesses primordiaisdas nações cultas”. O ‘doutor ’ Assis Cha-teaubriand, Presidente dos Diários Asso-ciados, afirmou que “pode-se aferir das li-nhas de humanidade do indivíduo pelasua ânsia em assimilar o Reader’s Digest”.

Com mais de cinco milhões de assinan-tes em todo o mundo, em 1942, Seleções eralida mensalmente por nada menos de 15milhões de pessoas. Seu respeitável par-que gráfico, além da edição inglesa, impri-mia também a espanhola e a portuguesa.Para isso, Wallace contava com modernasmáquinas de última geração que imprimi-am 24 mil exemplares por hora. O empre-go de novos tipos de tinta de impressão,que secavam instantaneamente, permi-tiu às rotativas de grande velocidadeimprimir ao mesmo tempo várias coresnas duas faces do rolo de papel acetinado,cortá-lo e dobrá-lo em poucos segundos.

A possibilidade de um fim próximo daGuerra, a partir de 1944, fez com que Se-leções do Reader’s Digest se preparasse paraassumir seu mais nobre papel: dedicar-se“patrioticamente” e por completo ao com-bate ao único inimigo imediato da soci-edade cristã – o comunismo. Um de seuseditoriais ressaltou que a revista “contri-buirá para facilitar a um bom número depessoas, tanto na América Latina comona América de língua inglesa, uma com-preensão mais clara das correntes do pen-samento e dos problemas do mundo atual,concorrendo também para dar uma de-monstração inequívoca da comunhão deideais e interesses que liga as nações des-te hemisfério”. E ela cumpriria bem estamissão nos vinte anos seguintes, até de-saguar no golpe militar que cerceou as li-berdades no Brasil por 21 anos.

“A Nação Que Se Salvou a Si Mesma”: Um caderno destacável conta a “história inspiradora de como um povo se rebelou e impediu os comunistas de tomarem conta deseu país”. Em suas 28 páginas, o texto tendencioso elabora uma esquizofrênica teoria baseada na “ameaça comunista” no Brasil. Numa foto na qual aparenta histeria, Amélia Bastos questiona “quem tem

mais a perder do que nós mulheres?”. Noutra foto, Castello Branco com semblante lúgubre, é apresentado como “honesto, isento da temeridade tão marcante de muitos governantes latino-americanos.”

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Março de 1982. Sob o comando do Ge-neral Figueiredo, a ditadura militar brasi-leira implantada em 1964 comemorava asua “maioridade”, chegando aos 18 anos. Omandatário da nação, que nunca escondeupreferir o cheiro dos cavalos ao cheiro dopovo, promovia o que na época se conven-cionou chamar de “abertura lenta e gradu-al”, ao mesmo tempo em que prometiaprender e arrebentar quem fosse contraseu “processo de redemocratização”.

Naquele mesmo mês, setores da políti-ca, da sociedade civil, dos militares e da cul-tura do País aguardavam, apreensivos, aque-le que seria um dos maiores testes destealardeado processo de abertura: a estréiamundial de Prá Frente, Brasil, agendada parao Festival de Gramado. Já há alguns mesesse falava sobre o filme. Dirigido e roteiri-zado por Roberto Farias, a partir de um ar-gumento criado por seu irmão, ReginaldoFaria (sim, há uma pequena discrepânciaentre os sobrenomes dos irmãos) e PauloMendonça (hoje um dos sócios do CanalBrasil), Prá Frente, Brasil vinha com a pro-messa de denunciar e escancarar, comojamais acontecera no Brasil pós-1964, ostemas da repressão policial e da tortura po-lítica.

Ninguém duvidava do talento de Ro-berto Farias, que antes do golpe já haviarealizado o clássico Assalto ao Trem Paga-

dor, e que durante os anos mais difíceis daditadura teve a competência de manter oseu ofício dirigindo filmes com RobertoCarlos e a turma da Jovem Guarda. O quese questionava é se as forças da repressãoiriam permitir a estréia do filme e a suasubseqüente exibição nos cinemas doPaís. Permitiram. Prá Frente, Brasil não sófoi exibido no Festival de Gramado de1982, ano de Copa, como também ga-nhou o prêmio máximo do evento. Na se-qüência, sob forte interesse da mídia, o

filme entrou normalmente no circuitoexibidor brasileiro, sem maiores sobres-saltos, e conquistou um público de respei-táveis 1,3 milhão de pagantes.

Após um grande período de silêncio ci-nematográfico, estava dado o pontapé ini-cial para o cinema brasileiro voltar a abor-dar temas políticos. A abertura motivou ocineasta Eduardo Coutinho a retomarCabra Marcado Para Morrer, a princípio umaficção baseada no assassinato real de umlíder camponês paraibano, cujas filma-

64, a 24 quadrospor segundo

Restaurada a democracia, cineastas correm em busca do tempo perdido e filmam histórias reais, ficcionais oudocumentais que mostram às novas gerações (e relembram às antigas) como foi o terror dos anos de chumbo.

POR CELSO SABADIN

gens haviam sido interrompidas exata-mente em 1964, em função do golpe.Coutinho não só retoma a idéia como lo-caliza as pessoas envolvidas, volta a reu-nir sua equipe, e repensa o projeto, agorasob o formato de documentário. O filmeé lançado em 1984, conquista vários prê-mios nacionais e internacionais, e até hojeé considerado um dos melhores e mais im-portantes documentários da história docinema do Brasil. Se não o melhor.

Após tantos anos de escuridão, o brasi-leiro começa a querer saber um pouco maissobre sua história recente. Parece acordar.Há uma nova geração que já nasceu sob ojugo militar, e o cinema, ainda que timida-mente, passa a se apresentar como a ferra-menta ideal para jogar um pouco de luzsobre este passado. Também em 1984, Jan-go, de Sílvio Tendler (que já havia realizadoOs Anos JK, em 1980), se transforma numadas maiores bilheterias já arrecadadas porum documentário brasileiro, batendo acasa de 1 milhão de ingressos vendidos.

O mesmo 1984 marcaria ainda a estréiado drama intimista ironicamente batizadode Nunca Fomos Tão Felizes. Baseado no con-to Alguma Coisa Urgentemente, o filme nar-ra a angústia e a solidão de um jovem (Ro-berto Bataglin) que, sem saber os motivos,é retirado do colégio por seu pai (CláudioMarzo) e passa dias inteiros isolado numgrande e vazio apartamento. A frase “Nun-ca fomos tão felizes” vem de uma propagan-da do governo militar que o rapaz vê na te-levisão, em seus dias de solidão.

Antes da década terminar, em 1989,Lúcia Murat realiza um meio termo en-tre ficção e documentário em Que Bom TeVer Viva. Vencedor do prêmio máximo noFestival de Brasília, o filme mistura depoi-mentos verídicos de oito ex-presas polí-ticas que foram torturadas pelo regimemilitar, pontuados por uma personagemficcional interpretada por Irene Ravache.

A nova década traz finalmente a tãoesperada democracia. O Brasil volta àsurnas e escolhe o primeiro Presidente elei-to pelo voto direto desde 1961. Fernan-do Collor de Mello toma posse em mar-ço de 1990, e num de seus primeiros atosextingue a Empresa Brasileira de Filmes-Embrafilme e o Conselho Nacional de Ci-nema-Concine, órgãos responsáveis pelaprodução e distribuição de filmes realiza-dos no nosso País. A produção nacionaldespenca a quase zero. Instala-se no setorum desespero que dura quase cinco anos,até que os novos mecanismos de leis deincentivo à cultura comecem a surtir al-gum efeito.

A retomadaCreditam-se a Carlota Joaquina, Prin-

cesa do Brazil, de Carla Camurati, lança-do em 1995, os méritos de ter sido o pri-meiro grande filme do chamado períododa “retomada”, após sofridos anos devacas muito magras. Porém, subestima-sea importância de outra grande persona-gem da história brasileira que teve suavida filmada e foi também um forte res-ponsável pelo reencontro do públicocom as nossas telas: Lamarca, que SérgioRezende dirigiu em 1994.

CINEMAFOTOS: DIVULGAÇÃO

Premiado no Festival de Gramado, Prá Frente, Brasil denuncia, como jamais acontecera no Brasil pós-1964, a repressão e a tortura política.

Oito presas políticas torturadas durante o regime militar dão depoimentos emocionados emQue Bom Te Ver Viva, filme vencedor do Festival de Brasília, estrelado por Irene Ravache.

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um religioso francês que se tornou umaespécie de líder comunitário da região,onde desembarcou no início dos anos1960. A partir desta sua liderança, novospersonagens vão se incorporando àtrama, que procura destrinchar ossentimentos de dúvidas, inseguranças e asideologias daqueles jovens que acreditavamestar mudando a história do País. O filmeutiliza os recursos do semidocumentário,ou docudrama, misturando depoimentosde quem participou da Guerrilha comcenas ficcionais. Foi concluído em 2004,mas só conseguiu lançamento em cinemacinco anos depois.

QUASE DOIS IRMÃOS2004, DE LÚCIA MURAT

O filme narra a trajetória de doishomens ao mesmo tempo muito iguais ecompletamente diferentes entre si: Miguel(Werner Schünemann) e Jorge (AntonioPompeo), os quase irmãos do título.Convivendo desde a infância, os amigostomaram rumos diferentes na vida:enquanto Miguel se tornou um intelectualde classe média e, posteriormente,Deputado Federal, Jorge liderou oComando Vermelho. Miguel é advogado.Jorge é filho de sambista. Miguel é branco.Jorge é negro. Quase dois irmãos? Sim,mas separados pela fossa abissal brasileiraque existe entre ricos e pobres. E quetransforma nossas diferenças sociaisnuma surda e diária guerra civil.

As vidas dos dois personagens secruzam, se entrelaçam; eles se amam e seodeiam em diferentes momentos denossa história. Sem ordem cronológicanem maniqueísmos fáceis. O quetransforma Quase Dois Irmãos não sónum belo panorama histórico, social e

cultural do Brasil dos últimos 50 anos,como também num instigante exercíciocinematográfico. A ingenuidade do antigosamba de morro, o golpe militar, aresistência civil, a escalada brutal daviolência, tudo está no filme. Emlinguagem ágil, reconstituição de épocaadmirável, direção de arte soturna emagníficas interpretações.

O PROFETA DAS ÁGUAS2005, DE LEOPOLDO NUNES

Documentário que resgata a biografiade Aparecido Galdino Jacintho, conhecidocomo “Profeta das Águas”. Um religiosoque, em plena ditadura, liderou umexército de salvação para proteger o rioParaná da construção da hidrelétrica deIlha Solteira, o personagem foiacompanhado pelo diretor do filme de1986 até 2005. Em 1970, na fronteira deSão Paulo com Mato Grosso do Sul eMinas Gerais, ele pregava paz e justiça aosfiéis e queria impedir que a populaçãolocal fosse expulsa de suas terras. Jacinthoe seus seguidores foram reprimidos pelasforças militares, que o deixaram a cargodo temido delegado Fleury. Após serpreso e torturado no Dops e no Doi-Codi, Galdino, que não registrava nenhumdistúrbio psiquiátrico, foi internado nohospital psiquiátrico de Franco da Rocha.

VLADO: 30 ANOS DEPOIS2005, DE JOÃO BATISTA DE ANDRADE

Colega de TV Cultura e amigo pessoalde Vladimir Herzog, o cineasta JoãoBaptista de Andrade realizou estedocumentário como uma espécie dehomenagem indignada ao companheiromorto pela ditadura. Um dos casos maisconhecidos da época da repressão, afraude que foi o ‘suicídio’ de Vlado éanalisada pelo filme, que também abordaaspectos pessoais e profissionais dofamoso jornalista. O filme tem depoimentosde Clarice Herzog, José Mindlin, RuyOhtake, Dom Paulo Evaristo Arns, HenrySobel, Fernando Morais, Paulo Markun,João Bosco, Aldir Blanc, Alberto Dines,Diléia Frate e Mino Carta, entre outros.

CABRA CEGA2004, DE TONI VENTURI.

Não se trata de simplesmente “maisum filme sobre a ditadura militar”. Elecomeça mostrando a fuga desesperadade Tiago (Leonardo Medeiros), que vêseu “aparelho” (jargão da época para osesconderijos dos militantes antiditadura)ser estourado pelas forças do governototalitário brasileiro dos anos 1970. Comuma bala no ombro, Tiago se refugia nacasa do arquiteto Pedro (MichelBercovitch). O primeiro encontro entreestes dois personagens já inaugura oclima de tensão que permeará todo ofilme: ambos se estranham, mas parecemfazer parte de um código comum, serepelem ao mesmo tempo em quesabem que terão de se suportar.

Logo entram em cena mais doispersonagens: Rosa (Débora Duboc),ativista de bom coração, domina seusinstrumentos de enfermagem, mas nãosabe o que é pegar em armas. E Mateus(Jonas Bloch), estrategista, líder, maisvelho, pondera com vagar e cuidado osrumos que está tomando o movimentoguerrilheiro. São quatro faces de umamesma moeda. Quatro formas diferentesde lutar contra um mesmo inimigo que,no filme, mal aparece.

A pesquisa feita para o filme é umcapítulo à parte: mais de 40 nomes demilitantes da luta armada foramcontatados, sendo que deste total 11foram selecionados para longasentrevistas em vídeo, que resultaram em32 horas de gravação. Esse material nãoserviu de base apenas para o roteiro deCabra Cega; foi também utilizado naprodução do documentário No Olho doFuracão, exibido na tv.

Sem cair em clichês fáceis, Cabra Cegaradiografa, de dentro para fora, aspróprias contradições internas da lutaarmada daquela época. A direção de ToniVenturi (de Latitude Zero) é das maiseficientes. O filme se abre aos poucos, seauto-explica lentamente, se permite,devagar, aos planos mais abertos. Ou seja,ele se comporta, esteticamente, da mesmaforma que Tiago realiza seu rito depassagem de guerrilheiro radical, que nãopode sequer ser visto através da janela, ahomem completo que se permite amar ecomer uma macarronada a céu aberto.

E como se tudo isso não bastasse, trazuma trilha sonora emocionante, comreleituras de sucessos marcantes daqueleperíodo. Não por acaso, ganhou seisprêmios no Festival de Brasília.

ARAGUAYACONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO

2004, DE RONALDO DUQUE

Tendo como pano de fundo a Guerrilhado Araguaia, a ação é narrada a partir dopersonagem Padre Chico (Stephane Brodt),

Os maiores louros couberam a CarlotaJoaquina principalmente pelo seu inegá-vel feito de vender mais de 1 milhão de in-gressos, mas vale lembrar que Lamarca,onde Paulo Betti vive o personagem-títu-lo, foi o primeiro sinalizador de que o ci-nema brasileiro estava renascendo. As qua-lidades técnicas e narrativas do filme sãoindiscutíveis, a despeito de seu fraco resul-tado comercial. Curiosamente, Carla Ca-murati também participa de Lamarca, mascomo atriz, vivendo o papel de Clara, com-panheira do protagonista. Clara foi o pseu-dônimo escolhido por Rezende para repre-sentar Iara Iavelberg, já que a produçãoevitou utilizar nomes reais. Iara Iavelberg,por sua vez, foi biografada no documen-tário Em Busca de Iara, que acaba de serlançado nos cinemas, e foi tema de repor-tagem no Jornal da ABI 399, juntamentecom outro importante documentário quechegou recentemente em algumas salas decinema – Militares da Democracia: Os Mi-litares Que Disseram Não, de Silvio Tendler,– que denuncia a perseguição sofrida pe-los militares que se opuseram ao golpe.

Em 1997, três anos após Lamarca, sur-ge o primeiro filme sobre a ditadura mi-litar com ares de superprodução: O Queé Isso, Companheiro? Dirigido por BrunoBarreto, filho do produtor Luiz CarlosBarreto, e encabeçado por um elenco deatores globais (Pedro Cardoso, Luiz Fer-nando Guimarães e Fernanda Torres, en-tre outros), o filme se baseia no livrohomônimo de Fernando Gabeira pararecontar a história do seqüestro do em-baixador norte-americano Charles Elbri-ck, em 1969, por guerrilheiros antiditadu-ra. Chegou a estar entre os cinco finalis-tas para o Oscar de melhor filme estran-geiro, e abriu os olhares de uma camadamaior da população a respeito dos fatosacontecidos nos anos de chumbo.

No ano seguinte, 1998, o elogiado epremiado Ação Entre Amigos, de Beto Brant,destila, simbolicamente, uma significativavingança contra o regime militar. O temaé o encontro de um grupo de colegas quese reúnem, após um hiato de 25 anos, parafazer justiça com as próprias mãos contrao antigo algoz que os torturava nos porõesda repressão.

A chegada do novo século, principal-mente depois dos atentados de 11 de se-tembro, chamou a atenção do cinema domundo inteiro: os fatos reais estavam maisimpressionantes e mais espetaculares queos ficcionais, o que acabou provocandoum grande interesse por documentários.No Brasil não foi diferente. Além de enfo-car acontecimentos à beira do inacreditá-vel, os documentários também oferecemmaiores facilidades de execução, o que vemao encontro dos sistemas quase sempre de-ficitários de produção do cinema brasilei-ro. Assim, vê-se, a partir de 2000, que nossocinema continua, sim, a produzir filmessobre a ditadura militar, agora talvez comum distanciamento crítico mais criterio-so, mas cresce ainda mais o número de do-cumentários sobre o tema. Principalmenteapós a abertura de vários arquivos que atébem pouco tempo atrás estavam sigilosa-mente trancados. Vlado: 30 Anos Depois, de João Baptista de Andrade: homenagem a Vladimir Herzog.

O novo séculoOs anos 2000 reúnem vários e importantes exemplos de filmes brasileirosque têm no golpe de 1964, e em suas conseqüências, seu foco principal.

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HÉRCULES 562006, DE SILVIO DA-RIN

É como se fosse o filme O Que é Isso,Companheiro?, só que de verdade. Assimpode ser simploriamente definido estedocumentário. O filme registra os fatos queenvolveram o seqüestro do embaixadoramericano no Brasil, Charles Elbrick, emsetembro de 1969. A concepção da idéia,a luta armada, a ação propriamente dita, atroca do diplomata por presos políticos eaté a chegada destes mesmos presos aoexílio são assuntos levantados de formacriteriosa e minuciosa pelas pessoas quemelhor podem falar sobre o tema: ospróprios participantes.

Os protagonistas são os quinze presoslevados ao México no avião Hércules daFAB, prefixo 56. Todos os novesobreviventes foram entrevistadosindividualmente, e os seis já falecidoscomparecem por meio de materiais dearquivo. Para contemplar o seqüestropropriamente dito, foi produzida umareunião entre alguns participantes daoperação, como Franklin Martins, ClaudioTorres e Daniel Aarão Reis.

Uma terceira linha narrativa éconstituída por extenso materialaudiovisual de época, boa parte inéditono Brasil, pesquisado nos Estados Unidos,Cuba, França e México. As imagens dachegada dos presos ao México foramobtidas em agências noticiosas dos EUA enunca haviam sido editadas numa únicasequência, como se vê no filme. Cenas dealguns personagens falecidos vieram deum filme anônimo de denúncia detorturas, que havia sido conservado porJosé Luiz Del Roio, em Milão. O InstitutoCubano Del Arte y IndústriaCinematográficos-ICAIC contribuiu comimagens de Cuba, entre elas as dodesembarque dos brasileiros em Havanae a recepção por Fidel Castro. Outrospersonagens já desaparecidos apareciamem uma filmagem inédita feita em Romapor Hamilton dos Santos, enquanto aapresentação de cada um dospersonagens foi visualmente unificadagraças à série de fotos feitas pela políciamexicana, logo após o desembarque dosbrasileiros. No Brasil, a equipe do filmecontou com o apoio do Arquivo Nacional,da Cinemateca do MAM-RJ, de JoséCarlos Avellar, dos arquivos públicos deSão Paulo e Rio de Janeiro, daIconographia, da Biblioteca Nacional, depersonagens como José Dirceu e MarioZanconato e, finalmente, de familiares depersonagens já falecidos.

Assim, o cineasta montou um paineltestemunhal que conta com no mínimodois grandes méritos: credibilidade edistanciamento crítico. Nada como conseguirdocumentar as vozes, olhares e expressõesde quem realmente viveu as situaçõesestampadas na tela. Nada como analisar osfatos com a consciência do tempo passado.Hércules 56 não faz a apologia juvenil dosideais revolucionários nem perde tempochovendo no molhado dos desmandosautoritários da época. Centradamente, elerecorda a ação, ao mesmo tempo emque se questiona e se autocritica à luz dasquase quatro décadas que nos separamdo seqüestro do embaixador.

O ANO QUE MEUS PAISSAÍRAM DE FÉRIAS

2006, DE CAO HAMBURGER

Apelidado de “o mais argentino dosfilmes brasileiros”, esta ficção não volta suaslentes diretamente sobre a ditadura, massim sobre os efeitos que ela provoca emMauro (Michel Joelsas). Envolvido peloclima de Copa do Mundo, o garoto nãoconsegue entender direito porque seuspais – Bia (Simone Spoladore) e Daniel(Eduardo Moreira) – tiveram de sair deBelo Horizonte, deixando o menino nacasa do tio Mótel (Paulo Autran), no bairropaulistano do Bom Retiro. Filme dealtíssima sensibilidade e de uma profundatristeza melancólica, que ajudam aexteriorizar a sofrida visão de uma infânciaprejudicada pela truculência política queprovoca a separação de pais de filhos. Areconstituição de época é impressionante.

HOJE2011, DE TATA AMARAL

Embora fortemente focado nos “Anosde Chumbo”, o filme não trabalha comreconstituição de época, nem imagens dearquivo, preferindo focar os seusprotagonistas nos dias – como diz o título– de hoje. A ação transcorre quase quetotalmente dentro de um apartamento.

Caixas de mudança, paredes vazias e umatorneira que não funciona formam ouniverso de Vera (Denise Fraga), umamulher que guarda um segredo da épocada ditadura. Uma vizinha inconveniente ecarregadores da transportadora ajudam acompor o clima caótico inerente a todamudança. A de Vera, porém, não éapenas física. Junto com a alteração deendereço, ela busca reconstruir sua vida,ao mesmo tempo em que tenta fugir demedos e culpas do passado.

Na base dramatúrgica de Hoje está achamada “Lei dos Desaparecidos”, ou seja,a Lei 9.140, que reconheceu comomortas as pessoas que a repressão “fezdesaparecer”. Vera é uma personagemque viveu durante anos numa espécie deestado de suspensão, sem saber se eraviúva ou não. Como o governo nãoreconhecia a morte das pessoas, eracomum um marido ou uma mulher nãopoder se casar de novo porque não eraoficialmente viúva ou viúvo. O filho nãopodia herdar porque na verdade o painão morreu oficialmente; uma criança nãopodia viajar sozinha com a mãe porquenão tinha a certidão de óbito do pai, nemautorização para viajar. A dor destacondição é a espinha dorsal do filme.Baseado no livro Prova Contrária, de

Fernando Bonassi, Hoje busca discutir oBrasil atual a partir do Brasil de ontem.

ZUZU ANGEL2006, DE SERGIO REZENDE

Drama biográfico sobre a empresária eestilista brasileira Zuzu Angel (Patrícia Pillar),que vivia a ascensão de sua carreira nosanos 1960 ao mesmo tempo em que seufilho, Stuart, ingressava na luta armadacontra a ditadura civil-militar. Quandodescobre que seu filho fora torturado atéa morte após ser preso pela polícia, elainicia uma árdua e arriscada luta pelabusca do corpo de Stuart, enfrentando odescaso e a má-fé das autoridades, queparecem determinadas em não lheoferecer explicações. Zuzu morreria em 14de abril de 1976, em um acidente decarro cujas causas seguem sendo ummistério. Do mesmo diretor de Lamarca.

BATISMO DE SANGUE2007, DE HELVÉCIO RATTON

Baseado no livro homônimo de FreiBetto, a partir de casos reais, o filme contaa história de quatro frades num conventodos anos 1960: o próprio Betto (Danielde Oliveira), Tito (Caio Blat), Fernando(Léo Quintão) e Ivo (Odilon Esteves).Movidos por ideais tanto cristãos comopolíticos, eles passam a apoiar a AçãoLibertadora Nacional, comandada porCarlos Marighella (Marku Ribas). Asprisões e as conseqüentes torturas demembros do grupo levam a história aconsequências trágicas para todos ospersonagens. O delegado Fleury éinterpretado por Cássio Gabus Mendes.

CIDADÃO BOILESEN2009, DE CHAIM LITEWSKI

Documentário biográfico sobreHenning Albert Boilesen, Presidente dogrupo Ultra, da Ultragaz, assassinado pelaguerrilha em 1971. Nascido naDinamarca, Boilesen veio para o Brasilaos 22 anos de idade, onde senaturalizou. Entre depoimentos depessoas que vão de familiares amilitantes rivais, no Brasil e na Dinamarca,além de imagens e textos de arquivo, ofilme esboça um perfil deste poderosoempresário e suscita debates acerca deum capítulo sempre subterrâneo dosanos de chumbo no Brasil: ofinanciamento por grandes empresáriosda repressão violenta do Estado à lutaarmada. O filme expõe as ligações deBoilesen com a ditadura, sua participaçãona criação da temível OperaçãoBandeirante e acusações de que ele teriaassistido voluntária, e prazerosamente, adiversas sessões de tortura.

O DIA QUE DUROU 21 ANOS2012, DE CAMILO TAVARES

Documentário que investiga aparticipação violenta e decisiva dos EstadosUnidos no golpe militar brasileiro de 1964.Obviamente, não se trata de descoberta oufato novo, mas quando esta informação élançada de forma inexorável diante dosnossos olhos e do nosso orgulho, comimagens, documentos históricos edepoimentos dos mais preciosos, o novoimpacto daquilo que já era conhecido

Denise Fraga guarda um segredo da época da ditadura em Hoje, de Tata Amaral.

Hércules 56: Desembarque dos quinze presos políticos levados ao México no avião da FAB.

CINEMA 64, A 24 QUADROS POR SEGUNDO

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assume proporções que chegam a serperturbadoras.

O resultado é ao mesmo tempoempolgante e atordoante. No filme, entreoutras denúncias e constatações, ocineasta Jean Mazon, famoso por seusdocumentários ufanistas, é abertamenteacusado de ter sido participante do braço depropaganda financiado pela CIA, a centralde inteligência norte-americana. É mostradatambém de forma incisiva e fartamentedocumentada a atuação do InstitutoBrasileiro de Ação Democrática-Ibad comofachada da mesma CIA para a compra departe da mídia e parte do Senadobrasileiro. O objetivo explícito era influenciara opinião pública nacional favoravelmentea toda e qualquer ação proveniente dosEstados Unidos, além de instaurar o pânicocontra a “perigosa comunização” dogoverno João Goulart. O documentáriolembra ainda que, aos se instaurar umaComissão Parlamentar de Inquérito-CPIpara investigar a atuação do Ibad, o relatorescolhido foi Rubens Paiva, que viria a serassassinado pela ditadura, em 1971.

O documentário ainda registra queJohn Kennedy, em 1962, já haviadecidido derrubar João Goulart. Ainformação está registrada em telegramase em uma gravação de áudio de umaconversa entre o Presidente e LincolnGordon, embaixador americano no Brasil,na época. A produção de O Dia que Durou21 Anos contratou pesquisadores emWashington e em Nova York, além de contarcom o apoio do historiador Carlos Fico e dajornalista Denise Assis para levantar omáximo de documentos, áudios e imagensde televisão referentes a John Kennedy ea Lyndon Johnson sobre o Brasil.

DOSSIÊ JANGO2012, DE PAULO HENRIQUE FONTENELLE

O ponto de partida do documentárioé, no mínimo, intrigante: a partir do fatoincontestável que João Goulart, JuscelinoKubitschek e Carlos Lacerda morreram emcircunstâncias não totalmente esclarecidas,no curto período de tempo inferior a umano, o filme denuncia, com clareza e pésno chão, sem descambar para insanasteorias de conspiração, como os tentáculosda ditadura se estenderam por tempos eespaços que a história oficial não registra,cometendo sórdidas queimas de arquivo.Além disso, ele aborda também a angústiade Jango e seus pensamentos nos anosde exílio, que é um período poucoretratado da vida do ex-Presidente.

O projeto surgiu a partir de umargumento dos cineastas Paulo Mendonçae Roberto Farias, ambos de Prá Frente,Brasil, quando Roberto pesquisava apossibilidade de fazer um longa de ficçãosobre João Goulart. Envolvido nesteprojeto, Fontenelle filmou entrevistas iniciaisque serviriam como base das pesquisas, elogo se percebeu que havia umdocumentário dos mais instigantes jáembutido ali. Uma entrevista feita com umex-agente da polícia secreta uruguaia, queafirmava ter conhecimento do supostoplano de assassinato do Presidente, foi oponto fundamental e decisivo para o inícioda produção do documentário. DossiêJango foi o vencedor do prêmio de

melhor filme pelo júri popular da 16ªedição da Mostra Tiradentes.

A MEMÓRIAQUE ME CONTAM

2012, DE LÚCIA MURAT

Um grupo de amigos que participaramda resistência à ditadura civil-militarbrasileira, acompanhados de seus filhos,enfrenta o conflito com o passado nomomento em que uma jovemcompanheira de lutas está prestes amorrer. Dentre essas pessoas reunidas nasala de espera de um hospital, está umadiretora de cinema, que se sentedesnorteada ante a iminente morte desua amiga ex-guerrilheira. Numa visita àsmemórias da luta, a cineasta terá de lidarcom questões que lhe são caras e com ainesperada prisão de seu marido.

MARIGHELLA2012, DE ISA GRINSPUM FERRAZ

O pessoal e o público, o emocional eo político, o social e o individual se unem,se misturam e se completam neste belodocumentário intitulado simplesmenteMarighella. Apenas Marighella, semnenhum subtítulo que neste caso setornaria fatalmente redundante e/oudesinteressante diante de um nome quedispensa maiores apresentações.Marighella tem direção de Isa GrinspumFerraz, socióloga recifense que trabalhoucom Darcy Ribeiro, que esteve na equipeque desenvolveu o Museu da LínguaPortuguesa, em São Paulo, que dirigiu aminissérie O Povo Brasileiro, mas que trazpara este filme um handicap que nenhumoutro sociólogo ou cineasta possui: ela ésobrinha de Carlos Marighella.

As primeiras cenas, narradas em primeirapessoa, já dão o tom do documentário.A cineasta/sobrinha relembra o momentoem que seu pai, Salomão, a estava levandopara a escola. Eles moravam no JardimSão Paulo, que na época era um bairroafastado, justamente para poder hospedarMarighella e a esposa Clara. Trata-se de umdocumentário que se reveste de uma áureaintimista única, humanizando o biografado,e trazendo para as luzes familiares epessoais uma das personagens mais

marcantes da história recente do Brasil.Com o centenário de nascimento de

Marighella, comemorado em dezembro de2012, a cineasta decidiu intensificar a brigapela viabilização de seu projeto, refez oroteiro, aprofundou a pesquisa, e finalmenteconseguiu transformar suas idéias em longametragem. Neste processo, recebeu ajudafundamental de Mário Magalhães, repórterespecial da Folha de S.Paulo, biógrafo deMarighella. Mário acabou se tornandoconsultor especial do filme, auxiliandoinclusive na seleção dos entrevistados.

REPARE BEM2013, DE MARIA DE MEDEIROS

Documentário que investiga os destinosda família de Eduardo Collen Leite, oBacuri, um dos guerrilheiros mais atuantescontra a ditadura. O filme realiza umalonga e emocionante entrevista com DeniseCrispim, esposa de Bacuri e tambémguerrilheira, presa no Dops paulista jágrávida de Eduarda, que jamais viu o pai.

A história chamou a atenção da atriz eprodutora Ana Petta, que convidou paradirigir o projeto a também atriz, cantora ecineasta portuguesa Maria de Medeiros.Assim, compartilhando roteiro, produção edireção, estas duas mulheresmergulharam no doloroso universo deoutras duas mulheres, Denise Crispim eEduarda, para a realização destedocumentário, que recebeu os prêmiosde Melhor Longa-metragem Estrangeiro(trata-se de um coprodução França/Itália/Brasil) pelos júris oficial e da crítica no 41ºFestival de Cinema de Gramado.

Optou-se pelo uso apenas de imagensdos arquivos da família, bem como deobjetos pessoais, documentos, fotos,casas, sempre com a carga afetiva queeles representam.

CARA OU COROA2012, DE UGO GIORGETTI

A ação se passa em São Paulodurante o inverno de 1971. Ainda é aSão Paulo da garoa, do frio e das malhasde lã, que não existe mais. João Pedro(Emílio de Mello) é um diretor de teatroestressado com a montagem de umapeça escrita pelo seu irmão Getúlio

(Geraldo Rodrigues), e com orelacionamento conturbado com suaesposa. Sua situação piora ainda maisquando ele é praticamente forçado porsetores da esquerda (que financiam suapeça) a esconder dois refugiados políticos.

Mais que o clima de tensão quecostuma acompanhar filmes sobre estatemática, Cara ou Coroa traz um roteiro(também assinado por Giorgetti) dos maisequilibrados e lúcidos. Sem nenhum tipo depanfletarismo, o filme faz um retrato fiel daépoca, foge do maniqueísmo e desenhacom precisão os mais diferentes tiposhumanos marcantes daquele período.Corajoso, o cineasta cria no mínimo duaspersonagens que anos atrás seriamexecradas pelas chamadas “patrulhasideológicas”: um general humanizado eum comunista totalitário. Hoje, onecessário e saudável distanciamentohistórico já permite este tipo de revisão.

A construção dos personagens, diga-se, é provavelmente o ponto alto do filme.Entre medos, sussurros e desconfianças,vemos uma juventude ao mesmo tempoatemorizada e consciente da tomada deuma posição. Seja ela qual for. Já OtávioAugusto, excelente como sempre, faz umdelicioso contraponto cômico aoincorporar a classe média conservadora,tão presente em nosso País, que nãodiferencia macumbeiro de budista. Opequeno (porém fundamental)personagem da empregada do general,em seu silêncio omisso, também é umafortíssima referência sócio-culturalbrasileira.

Entre todos eles, ninguém é herói,ninguém é vilão. Todos são vítimas deuma violência que o filme sabiamenteopta por não explicitar, mas que se sente,internamente, em cada olhar, em cadarespiração tensa. Em determinadomomento, uma jornalista recém libertadada prisão alerta para a necessidade dediferenciarmos aqueles que foramtorturados daqueles que tomaram apenas“um tapa na bunda”. E preconiza que, nofuturo, oprimidos e opressores estarãojuntos, dançando no mesmo baile. Umaconstatação que soa impossível aosouvidos de 1971, mas se constitui no triste,tristíssimo cerne da nossa política atual quecolocou todas as farinhas no mesmo sacoda ambição pelo poder. Provocador, Caraou Coroa gera densas reflexões, e propõeuma revisão dos Anos de Chumbo comrara maturidade.

VERDADE 12.5282013, DE PAULA SACHETTA E PEU POBLES

Batizado com uma referência ao númeroda lei que criou a Comissão Nacional daVerdade, em 2011, e a instituiu em maiode 2012, o filme documenta o anseio porrespostas ainda não esclarecidas daépoca da ditadura. São registradasexpectativas e cobranças da sociedade emrelação ao trabalho desempenhado pelaComissão, e o que ainda precisa serdescoberto e esclarecido. Depoimentos deClarice Herzog, Ivan Seixas, Maria Rita Kehl,Marcelo Rubens Paiva, José Miguel Wisnik,Laura Petit, Bernardo Kucinski, FranklinMartins e Marlon Weichert, entre outros,enriquecem a narrativa.

Repare Bem: A diretora Maria de Medeiros colhe um depoimento emocionante da ex-presapolítica Denise Crispim, esposa de Bacuri, um dos guerrilheiros mais atuantes contra a ditadura.

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O que teriam colocado na água que omundo bebeu em 1964? Que o ano sejaicônico para o Brasil e para os brasileiros,isso todos nós já sabemos. Não forampoucas as recordações, homenagens, pro-testos, manifestações e efemérides quetivemos, e ainda estamos tendo, relacio-nadas ao meio século de golpe militar.Contudo, uma olhada mais atenta ao re-lógio do planeta vai revelar que não foiapenas o chão brasileiro que tremeu na-quele 1964, mas sim as estruturas e ospilares de toda a Terra.

Logo no dia 7 de fevereiro, por exem-plo, o vôo 101 da PanAm, vindo de Lon-dres, aterrissa no Aeroporto Internacio-nal de Nova York, recém batizado com onome do Presidente Kennedy, assassina-do há menos de três meses. O avião tra-zia consigo sua própria revolução: quatrojovens então considerados “cabeludos”atraindo para si as atenções de 200 jorna-listas e de aproximadamente 10 mil garo-tos e garotas (mais garotas) que faziamalvoroço no saguão e até na pista para vê-los. Pela primeira vez, Paul, John, Geor-ge e Ringo tocavam o solo norte-ameri-cano, e o mundo jamais seria o mesmo.

Os rapazes de Liverpool atenderampúblico e imprensa com muito bom hu-mor e irreverência, arrancando do famosojornal britânico The Times a manchete “Ohumor dos Beatles é contagiante”. Já anorte-americana Newsweek preferiu asisudez: “Visualmente, são um pesadelo.Ternos eduardianos apertados e cabelosem forma de tigela. Musicalmente, umdesastre: guitarras e bateria detonandouma batida impiedosa, que afugenta rit-mo, melodia e harmonia. As letras, pon-tuadas por gritos de ‘yeah, yeah, yeah’, sãouma catástrofe, um amontoado de senti-

1964: Um ano quemudou o mundo

Revoluções na área da cultura, em especial na música e no cinema. Graves conflitos internacionais.Muitos foram os fatos que, para além do golpe militar, fizeram de 1964 um ano relevante para a História.

POR CELSO SABADIN

mentos baseados em cartões do dia dosnamorados”. O New York Daily News nãofez por menos, e imprimiu para a poste-ridade: “Bombardeada com problemas aoredor do mundo, a população voltou seusolhos para quatro jovens britânicos comcabelos ridículos. Em um mês, a Américaos terá esquecido e vai ter que se preocu-par novamente com Fidel Castro e Niki-ta Krushev”. O Jornal do Brasil publicou:“Olha a cabeleira dos Beatles”.

Dois dias depois, o impacto dos Bea-tles sobre aqueles 10 mil fãs presentesno aeroporto seria potencializado aomáximo: a apresentação do grupo nofamoso Ed Sullivan Show, na CBS, líderdisparado de audiência na época e no ardesde 1947, marcou a história da televi-são, da mídia, da música e dos costumesda civilização ocidental. O pequenoshow, ao vivo, teve cinco canções (AllMy Loving, Till There Was You, She Loves

You, I Saw Her Standing There e I Want ToHold Your Hand), foi visto por 728 pes-soas presentes no auditório, e por nadamenos que 73 milhões de telespectado-res em todo o território norte-america-no. I Want to Hold Your Hand e She LovesYou ficam, respectivamente, em primeiroe segundo lugares na conceituada lista darevista Billboard que registra as cançõesmais executadas do ano.

Deus e o Diabo naTerra de Mary Poppins

Não por acaso, 1964 marca também aestréia, nos cinemas ingleses (em 6 de ju-lho) e norte-americanos (em 11 de agos-to) do filme dos Beatles A Hard´s DayNight, batizado no Brasil como Os Reis doIê Iê Iê. No mesmo ano chegam às telas domundo inteiro os clássicos Mary Poppins,dos Estúdios Disney; o musical românti-co Os Guarda-Chuvas do Amor, com Ca-

therine Deneuve; e Dr. Fantástico, de Stan-ley Kubrick, este último provavelmentea melhor comédia já feita sobre a GuerraFria. Mary Poppins acaba fechando o anocomo a maior bilheteria norte-america-na de 1964, seguida por My Fair Lady (otítulo em português, Minha Bela Dama,definitivamente não “pegou”), estreladopor Audrey Hepburn. Em terceiro lugarficou 007 Contra Goldfinger, com SeanConnery no papel principal de JamesBond. Este foi o último sucesso que IanFleming, autor da série de livros sobre ofamoso espião, pode presenciar pessoal-mente: o escritor faleceria naquele mes-mo ano, em 12 de agosto.

Pelo menos no cinema americano,Elvis Presley continuava fazendo maissucesso que os Beatles: dois filmes estre-lados pelo Rei do Rock, Carrossel de Emo-ções e Com Caipira não se Brinca, ficaramrespectivamente em 6º e 7º lugares entre

POPPERFOTO/GETTY IMAGES

MEMÓRIA FOLHAPRESS

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as maiores bilheterias de 1964, superan-do Os Reis do Iê Iê Iê, que cravou uma dig-na oitava colocação na terra do Tio Sam.Num mundo ainda não globalizado, osmaiores sucessos das salas de cinema daFrança eram a comédia local Biquínis deSaint-Tropez, em primeiro lugar, e doisfilmes do ano anterior, respectivamenteem 2º e 3º postos: o desenho da Disney AEspada Era a Lei, e a aventura jamesbon-diana Moscou Contra 007. Chamava a aten-ção, porém, a presença de uma aventuratotalmente descompromissada na quar-ta colocação: O Homem do Rio, que Jean-Paul Belmondo filmou aqui em terras bra-sileiras, atraindo quase cinco milhões defranceses às bilheterias.

Por aqui, 10 de julho de 1964 marca aestréia de um dos maiores marcos, se não

o maior, do movimento Cinema Novo:Deus e o Diabo na Terra do Sol, de GlauberRocha. Embora não fizesse sucesso como grande público, o Cinema Novo brasi-leiro ganhava cada vez mais respeito eprestígio junto à crítica e à comunidadecinematográfica mundial. Naquele mes-mo ano, em 1º de maio, o belíssimo Vi-das Secas, de Nelson Pereira dos Santos,conquistava três premiações no Festivalde Cannes: o Prix Cinémas d’Art et d’Essai,do júri da associação francesa de cinemasde arte; o prêmio do júri do Office Catho-lique Internacional du Cinéma; e o Prêmiode Meilleur Film pour la Jeunesse, do júride estudantes secundários e universitá-rios. Por aqui, a população preferia mes-mo ver a aventura Lampião, o Rei doCangaço, de Carlos Coimbra, e sua sáti-

CINEMATECA BRASILEIRA

ra cômica O Lamparina, de Mazzaropi,ambos lançados em 1964.

O pequeno Vietnã entrano mapa da história

Mas a história de 1964 pelo mundonão será lembrada somente por amenida-des como Os Beatles ou Mary Poppins. Pelocontrário. Nos Estados Unidos, era cadavez mais tensa a questão racial, com ogoverno conservador de Lyndon Johnsonse mostrando inábil em administrar oproblema. Em 2 de julho daquele ano,tentando reduzir as tensões, Johnsondecreta a Lei dos Direitos Civis, proibindoa discriminação racial em locais públicose privados, e dando poderes ao governofederal para intervir em estados que pro-movessem a segregação. Os racistas maisradicais, principalmente no sul do país,fazem estourar conflitos cada vez maisviolentos. Mas, entre os vários defenso-res da causa negra, desponta o pastor Mar-tin Luther King, líder das lutas pela igual-dade racial que lançou o seu livro-mani-festo Why We Can’t Wait em 1964 e, em 10de dezembro, foi agraciado com o presti-giado Prêmio Nobel da Paz.

Contudo, a questão racial não seria oprincipal problema a ser enfrentado pelogoverno norte-americano naquele 1964.Na noite de 4 para 5 de agosto, Johnsontoma a decisão que alguns já esperavam,muitos temiam, e que Kennedy já haviaprometido não fazer: começam os bom-bardeios norte-americanos sobre o Gol-fo de Tonkin, no Vietnã. Assim como jáhavia acontecido em Pearl Harbor, em1941, as condições exatas do ataque sãoconfusas e controversas. O então Secre-tário de Defesa dos Estados Unidos, Ro-bert McNamara, relata em seu livro de

memórias que o contratorpedeiro norte-americano Maddox comunicou pelo rá-dio que estaria sendo atacado por umaembarcação vietnamita. Em meio a umaforte tempestade, com visibilidade qua-se nula, tanto o Maddox como o TurnerJoy, outro navio de guerra americano, te-riam contra-atacado as agressões feitascom torpedos por navios inimigos. Pare-cia improvável o frágil Vietnã abrir fogodeliberadamente contra os americanos.Anos depois, um piloto do porta-aviõesTiconderoga, que sobrevoou naquelanoite ambos os navios, afirmou não teravistado nada de irregular ou diferente.

De qualquer maneira, a trágica Guer-ra do Vietnã, iniciada naquela noite, sóterminaria 11 anos mais tarde, com doismilhões de vietnamitas e 58 mil norte-americanos mortos. E com a derrota deWashington, o que abriu uma profundachaga na vida e no orgulho do chamadopaís mais poderoso do mundo. Amplian-do as preocupações norte-americanas, em6 de junho é criada, no Cairo, a Organi-zação pela Libertação da Palestina-OLP,com o objetivo de levar para a região umapaz até hoje não alcançada.

Ano de livros, revistase até enciclopédia

Na área editorial, uns chegam, outrossaem. A tradicionalíssima editora En-cyclopaedia Britannica, fundada na Escó-cia no século 18, investe numa ediçãobrasileira de sua famosa Enciclopédia. Em1959, Dorita Barret, herdeira da famíliadetentora dos direitos autorais da Britan-nica, em atitude pioneira, monta umcorpo editorial eminentemente brasilei-ro para o desenvolvimento da coleção delivros. A proposta não era apenas tradu-

A tenista brasileira Maria Esther Bueno, tri-campeã em Wimbledon, e Os Beatles conquistam o mundo. Vidas Secas (abaixo), deNelson Pereira dos Santos, ganha três prêmios em Cannes e, em 10 de julho, estréia nos cinemas brasileiros um marco do

Cinema Novo: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Enquanto isso, o Presidente Lyndon Johnson consegue umadesculpa para entrar na Guerra do Vietnam, que se torna uma dura realidade para milhares de jovens nos Estados Unidos.

U.S. ARMY

REPRODUÇÃO

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zir o original, mas criar conteúdo próprio.Com Antonio Callado assumindo as fun-ções de redator-chefe do grandioso pro-jeto, a primeira edição é finalmente co-locada no mercado em março de 1964. Onome escolhido para a Britannica nacio-nal foi Barsa, junção do sobrenome deDorita com o de seu marido, o diploma-ta Alfredo de Almeida Sá. O empreendi-mento contou com a colaboração de 300redatores brasileiros, que ajudaram a ela-borar as 7.500 páginas distribuídas em 12volumes. A primeira edição foi totalmen-te esgotada em apenas oito meses, trans-formando-se num gigantesco sucessoeditorial que resistiu até à revolução dainformática. Desde 2000, a marca Barsa,tanto no Brasil como em toda a AméricaLatina, é de propriedade do grupo espa-nhol Editorial Planeta.

Por outro lado, se a Barsa chegou em1964, no mesmo ano o mercado editori-al brasileiro sofre duas lamentáveis bai-xas: as revistas Pererê e Senhor. Lançada emoutubro de 1960, a Pererê é considerada aprimeira revista de autor brasileiro degrande tiragem mensal. Tratava-se deuma publicação em quadrinhos totalmen-te protagonizada pela simpática e anima-da Turma da Mata do Fundão, ou Turmado Pererê, personagens criados por Ziral-do em 1958 e inicialmente publicados narevista O Cruzeiro. O índio Tininim, ocoelho Geraldinho, o macaco Alan, o ja-buti Moacir, a onça Galileu e tantos ou-tros tipos inesquecíveis eminentementenacionais eram capitaneados por nin-guém menos que um Saci, símbolo chavedo folclore brasileiro. Um verdadeirochoque de realidade para um público atéentão acostumado com patos e camun-dongos importados dos Estados Unidos.

A revista durou 43 edições, e mesmomantendo uma respeitável tiragem mé-dia de 120 mil exemplares por número,foi descontinuada, não conseguindo en-carar satisfatoriamente a forte concor-rência multinacional. Se a Pererê circuloudurante quatro anos, a Senhor teve umpouquinho mais de sorte: durou cinco.Lançada em janeiro de 1959, sua últimaedição, a de número 59, também chegou àsbancas em 1964. A revista Senhor foi cri-ada pelo jornalista Nahum Sirotsky paraser uma espécie de porta-voz de um Bra-sil novo e vanguardista, que se orgulhavada Bossa Nova, da construção de Brasíliae da nossa moderna indústria automobi-lística. O time de colaboradores era for-mado por nomes de peso, como PauloFrancis, Odilo Costa, Otto Lara Resende,Carlos Scliar, Clarice Lispector, DiogoPacheco, Paulo Mendes Campos, Viniciusde Moraes, Ferreira Gullar e Jaguar.

Mas como o tal Brasil novo e pujantehavia se transformado numa arcaica di-tadura militar, não havia mais espaços,nem editoriais, nem publicitários, paraum projeto que tomasse a vanguarda

como farol. Mesmo sob a sombra dosfechamentos de Pererê e Senhor, o semprerevolucionário e irreverente Millôr Fer-nandes lançou, em 21 de maio de 1964, asua Pif-Paf. Na verdade, a nova revista, ago-ra independente (onde “cada número éexemplar e cada exemplar é um número”,como já advertia a própria capa da pri-meira edição), era uma versão ampliadae reformatada da seção homônima que oescritor mantinha até o ano anterior narevista O Cruzeiro. “Agora diretamente doprodutor ao consumidor”, conforme es-crito na capa. No corpo editorial, nomescomo Claudius, Fortuna, Jaguar, Ziraldoe outros grandes expoentes do humornacional faziam troça e chacota (comose dizia na época) de tudo e de todos,como, aliás, deve ser o bom humorista.Porém, como não existe ditadura bemhumorada, evidentemente o projetodurou pouco: apenas oito números. To-dos eles exemplares.

Além de enciclopédias e revistas, 1964foi também um ano marcante na área delançamentos de livros. Entre eles, o mui-to estudado e pouco compreendido Mani-

festo do Poema-Código ou Semiótico, de Dé-cio Pignatari e Luiz Angelo Pinto. Maisacessível e irreverente, Stanislaw PontePreta lança seu Garoto Linha Dura, enquan-to Clarice Lispector coloca A Legião Es-trangeira nas prateleiras. Aquele tambémfoi o ano de lançamento de Re/Visão de Sou-sândrade, de Augusto de Campos e Harol-do de Campos, de Ideologia da Sociedade In-dustrial, de Herbert Marcuse, enquantoMarshall McLuhan, o teórico da “aldeiaglobal”, lançou Understanding Media: TheExtensions of Man. O ano também marcao lançamento de As Palavras, autobiogra-fia de Jean-Paul Sartre. Não deve ter sidofácil para os fãs da boa leitura manter o or-çamento em dia durante 1964.

Nos esportes, o ano registrou umagrande vitória e uma constrangedoraderrota para o Brasil. Primeiro, a boanotícia: em 4 de julho, a tenista MariaEsther Bueno vence seu terceiro títuloem Wimbledon ao bater a australianaMargareth Smith, por 2 sets a 1. Poucotempo depois, entre 10 e 24 de outubro,o Brasil leva para o outro lado do mun-do nada menos que 68 atletas (apenasuma mulher) para representar o País nasOlimpíadas de Tóquio. Disputamos atle-tismo, basquete, boxe, futebol, hipismo,judô, natação, pentatlo moderno, poloaquático, vela e vôlei. Resultado: umaúnica medalha de bronze (no basquetemasculino) e um discretíssimo 35º lugarno quadro de medalhas. Em plena Guer-ra Fria, Estados Unidos e União Soviéti-ca disputaram também a liderança dacompetição, onde os norte-americanoslevaram 90 (36 de ouro, 26 de prata e 28de bronze) e os soviéticos 96 (30 de ouro,31 de prata e 35 de bronze). Num ano deintensos conflitos raciais, como já foivisto, a África do Sul foi banida do eventopor conta de sua política segregacionista.

Ouro e centavosEm clima de medo econômico, os Di-

ários Associados lançam, em maio, a cam-panha “Ouro para o bem do Brasil”, como objetivo de angariar doações de peçasde ouro para ajudar no progresso do País.Quem se dispusesse a doar parte de suasjóias, alianças ou qualquer artefato deouro se tornaria, aos olhos dos Diários,um “legionário da democracia”, receben-do em troca uma aliança de prata com ainscrição “dei ouro para o bem do Brasil”.Mas era bom doar logo, antes que a infla-ção corroesse o poder aquisitivo da popu-lação. Afinal, o ano termina com a elimi-nação daquilo que já não valia mesmomais nada: os centavos da nossa moeda.No dia 2 de dezembro, enquanto o entãoMinistro Roberto Campos travava umabatalha insana contra a inflação, os cen-tavos foram extintos por decreto presi-dencial. Não fizeram nenhuma falta.Naquele momento, cada centavo brasilei-ro valia 0,0000061 dólar.

E, depois daquele ano, nosso país nun-ca mais foi o mesmo. Nem o mundo.

MEMÓRIA 1964: UM ANO QUE MUDOU O MUNDO

Dois marcos do cinema são lançados em 1964: 007 Contra Gondfinger e Mary Poppins.Na área editorial, chega ao fim a lendária revista Senhor e o tablóide de humor, Pif-Paf, de

Millôr Fernandes, precursor do Pasquim, que fôra lançado no mesmo mês do golpe militar.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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Com quatro mortes ocorridas no pri-meiro semestre, o Brasil registrou em 2013,ao lado da Guatemala, o maior número deassassinatos de jornalistas entre todos ospaíses das Américas, segundo o RelatórioAnual sobre Liberdade de Expressão pre-parado pela relatoria especial do tema naComissão Interamericana de DireitosHumanos-CIDH da Organização dos Esta-dos Americanos-OEA, divulgado em 24 deabril, em Washington-EUA.

O documento relaciona o Brasil entre asnações do continente nas quais houve re-centemente avanço significativo de assas-sinatos de profissionais de comunicação.Entre 1995 e 2010, o País registrou 26 casos.No triênio 2011-2013, foram 15 mortes. Acobertura de manifestações aumentou orisco para o exercício da atividade jornalís-tica no Brasil. Honduras e México são ou-tros Estados com estatísticas de mortes dejornalistas alarmantes. Foram assassinados18 profissionais no continente em 2013 –todos na América Latina.

“No caso do Brasil, a violência tem esta-do associada à investigação de esquadrõesda morte e do crime organizado, a viola-ções de direitos humanos cometidas pelasforças de segurança do Estado, à corrupçãoe à conduta de servidores e políticos locais”,afirma o documento, assinado pela relatoraespecial de Liberdade de Expressão, Cata-lina Botero.

Em 22 de fevereiro do ano passado, ojornalista Mafaldo Bezerra Goes, âncora daRádio FM Rio Jaguaribe, foi assassinadocom cinco tiros em Jaguaribe, no Ceará,após ser emboscado por dois indivíduos.Ele estava recebendo ameaças de mortepor denunciar crimes na região.

Num espaço de 40 dias, dois jornalistasforam assassinados em 2013 na região do Valedo Aço, em Minas Gerais. O repórter de Po-lícia do jornal Vale do Aço, Rodrigo Neto de Fa-ria, também âncora do “Plantão Policial” daRádio Vanguarda, foi morto com dois tirosem 8 de março, em Ipatinga. Ele vinha rece-bendo ameaças por denúncias de corrupçãopolicial e crimes. Duas pessoas, entre elas umpolicial, foram indiciadas pelo crime.

Em 14 de abril, o fotógrafo WalgneyCarvalho, que também trabalhava no Valedo Aço, foi assassinado com vários tiros porum motoqueiro enquanto jantava em umrestaurante de Coronel Feliciano. O acusa-do foi um dos assassinos de seu colega Ro-drigo, com o qual havia feito reportagense compartilhado informações.

Outra morte registrada em 2013 foi a deJosé Roberto Ornelas de Lemos, diretor ad-ministrativo, jornalista e filho do dono dodiário Hora H, de Nova Iguaçu, na BaixadaFluminense, no estado do Rio. Ele já haviasofrido um atentado em 2005. O periódi-co é especializado em cobertura policial.

Emboscado por quatro homens em umapadaria, José Roberto foi alvo de mais de 40tiros em 11 de junho.

De acordo com o relatório, “o Estadodeve reforçar seu papel de protetor da in-tegridade dos profissionais de comunicaçãoe enfatizar a investigação dos casos de vi-olência, conforme o item 9 da Declaraçãode Princípios de Liberdade de Expressão daCIDH, adotada em 2000.” O órgão obser-va que o Brasil precisa oferecer proteção adi-cional às testemunhas deste tipo de crime,que acabam muitas vezes assassinadas, oque promove a impunidade.

“O assassinato, o seqüestro, a intimida-ção e/ou as ameaças a comunicadores soci-ais, bem como a destruição de meios (e ins-trumentos) de comunicação, violam os di-reitos fundamentais dos indivíduos e restrin-gem severamente a liberdade de expressão.O Estado tem o dever de prevenir e inves-tigar essas ocorrências, punir os culpados eassegurar que as vítimas recebam a devidacompensação”, diz o Princípio 9.

Segunda a relatoria, há avanço no Brasilno combate à violência contra jornalistas, ci-tando o julgamento dos assassinos do repór-ter da TV Globo, Tim Lopes, como exemplopara toda a América latina – e aplaudindo acriação do Grupo de Trabalho federal sobredireitos humanos dos profissionais de mídia.

ProteçãoA intenção do governo de criar um pro-

grama especial de proteção a jornalistas foiconsiderada uma das ações de destaque nasAméricas em 2013, ao lado de iniciativas se-melhantes de México, Honduras e Guate-mala. Também é vista como medida acer-tada o projeto de lei que dá à Polícia Fede-ral autorização para investigar crimes con-tra jornalistas e a mídia de forma geral.

Em relação aos protestos que levarammilhões de pessoas às ruas em diversos es-tados brasileiros, a Relatoria de Liberdadede Expressão recebeu 56 denúncias de ca-sos de violência contra jornalistas em ape-nas cinco meses, englobando agressões porpoliciais (28) e por manifestantes (16), inclu-indo uso deliberado de balas de borrachacontra quatro profissionais de imprensa –com danos permanentes de visão a algunsdeles – e a prisão arbitrária de sete repór-teres durante a cobertura dos eventos.

O documento, porém, menciona o rela-tório da Associação Brasileira de JornalismoInvestigativo-Abraji pelo qual a contabilida-de sobe para 102 ataques a jornalistas, dosquais 77 realizados por forças policiais.

O documento da CIDH enfatiza a neces-sidade de o Estado implementar as diretri-zes da Declaração Conjunta (com a relato-ria da Organização das Nações Unidas) so-bre Violência contra Jornalistas na Cober-tura de Protestos, de 2013, pela qual o tra-balho da imprensa deve ser protegido, coma adoção de protocolos pela Polícia com

esta finalidade, e o acesso aos locais deveser viabilizado, para garantir o direito à in-formação da população. As autoridades de-vem vir a público condenar agressões aosprofissionais de comunicação.

Iniciativas do governo brasileiro foramelogiadas pela Relatoria. Entre os desta-ques estão a resolução do Centro de Defe-sa de Direitos da Pessoa Humana da Secre-taria de Direitos Humanos da Presidência,recomendando que não sejam utilizadasarmas de fogo e seja restrito o uso de fer-ramentas como gás lacrimogêneo e spraysde pimenta pela Polícia em manifestações,e a criação de um grupo para estudar a re-gulamentação dessas armas não-letais.

O órgão da CIDH também recomendao treinamento de jornalistas para situaçõesde risco pelos veículos de comunicação,como coberturas de manifestações e áreasconflagradas.

Outro tema que suscita a preocupaçãoda Relatoria é a grande quantidade deações criminais contra jornalistas, conde-nados por calúnia, difamação, desacato einjúria à prisão e ao pagamento de com-pensação financeira, conforme prevê o Có-digo Penal de 1940, atualmente em revisãopelo Congresso Nacional. O documentosugere que juízes não observam o critériode proporcionalidade nas sentenças e quepolíticos, autoridades e servidores estãoentre os principais litigantes da imprensa.

Comentários negativos contra o Sena-dor José Sarney em um blog levaram aJustiça Eleitoral do Amapá a condenar a jor-nalista Alcinéa Cavalcanti, que teve contase bens bloqueados, a pagar R$ 2 milhõesem indenização. O jornalista Luiz CarlosBordani, foi condenado a pagar R$ 200 milao Governador de Goiás, Marconi Perillo,e retirar do ar todo o conteúdo de seu siterelativo ao político.

Em Sergipe, ocorreu o caso do jornalistaCristian Goes, que foi condenado a sete

Brasil tem maior número de assassinatos dejornalistas na América Latina em 15 anos

POR CLÁUDIA SOUZA

meses e 16 dias de prisão e pagamento deindenização de US$ 150 mil por crime de in-júria contra um juiz que se sentiu ofendi-do por um texto de ficção, intitulado “Eu,o coronel em mim”, que o profissionalpublicou em seu blog.

Em audiência na CIDH em 2013, a rela-tora especial Catalina Botero já havia adver-tido o Brasil sobre os riscos de se manter acriminalização da opinião, representada pe-las tipificações de calúnia, difamação, injú-ria e desacato. A Relatoria, que apresentoua pedido do Brasil parecer sobre a reformado Código Penal, faz ressalvas sobre o pro-jeto de lei, de autoria de Sarney.

O PL acaba com a figura do desacato,mas mantém a qualificação para ofensa afuncionários públicos e sobe o acréscimo detempo de prisão para 50% nestes casos. Ca-lúnia, injúria e difamação têm a pena má-xima elevada a três anos.

– A Corte Interamericana de DireitosHumanos já deixou claro que este tipo denorma penal, que pode incidir sobre o vigor,a abertura e a desinibição do debate públi-co, tem que respeitar a Convenção Ameri-cana. É importante revisar as normas de de-sacato, não porque não tenham honra osfuncionários públicos, mas pelo dano queessas normas podem causar ao debate de-mocrático. A ameaça de prisão produzmedo, intimidação, especialmente a jorna-listas de áreas mais vulneráveis – afirmouCatalina Botero, em outubro de 2013.

O relatório faz análise especial da situ-ação da internet no contexto da liberda-de de expressão. O Marco Civil da Inter-net, sancionado pela Presidente DilmaRousseff, é elogiado como referência paraas Américas. São elogiadas a garantia deneutralidade da rede, a proteção dos inter-mediários (como sites de notícias, em re-lação a obrigação de controle de conteú-do publicado) e os mecanismos de incen-tivo ao acesso à rede.

LIBERDADE DE IMPRENSA

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Explode número de casos de agressões a jornalistasEm 2013, ano em que os protestos po-

pulares tomaram as ruas do Brasil, asagressões contra jornalistas no País cres-ceram 232%. De acordo com dados doConselho de Defesa dos Direitos da Pes-soa Humana-CDDPH, órgão ligado à Se-cretaria de Direitos Humanos da Presi-dência da República-SDH/PR, enquantoem 2012 houve 41 casos de violência, em2013 o número saltou para 136.

O estudo foi apresentado no dia 8 deabril, no seminário “A Liberdade de Ex-pressão e o Poder Judiciário”, no Rio.

Segundo Tarciso Dal Maso Jardim, doCDDPH, a escalada da violência em 2013se deveu principalmente aos protestosiniciados em junho. Ele defendeu a cria-ção de um protocolo policial para evitaragressões a jornalistas por parte da polí-cia e para protegê-los de ataques de mani-festantes.

Outras propostas do CDDPH são a cri-ação de um programa de escolta da Polí-cia Federal para jornalistas ameaçados,um observatório das violações na área euma campanha para classificar como

Sindicatos de jornalistas e representan-tes do Ministério da Justiça participaram,no dia 11 de abril, de um debate na Câma-ra sobre os recentes episódios de violênciapolicial contra profissionais de comunica-ção que cobrem os protestos de rua. Na au-diência pública, promovida pela Comissãode Trabalho, de Administração e ServiçoPúblico, comunicadores pediram mudançasna formação de policiais.

De acordo com o diretor de relações insti-tucionais da Federação Nacional de Jornalis-tas-Fenaj, José Carlos Torves, dois terços dasagressões sofridas pelos jornalistas partiramda polícia. “Nós já expressamos ao Ministé-rio da Justiça que é preciso rever a formaçãodos policiais, que ainda estão sendo formadoscomo no período da ditadura. Jornalistas,quando identificados em uma manifestação,muitas vezes são agredidos e têm seu mate-rial apreendido. Isso não pode mais ocorrer”.

Jornalistas cobram novo perfil na formação de PMs

abuso de autoridade a apreensão de equi-pamentos de trabalho dos repórteres poragentes de segurança.

Segundo o levantamento, desde 2009o Brasil registrou 321 casos de violênciacontra jornalistas e comunicadores, com18 assassinatos. Para Guilherme Canela,assessor regional da Unesco, a agressão ajornalistas é um ataque à liberdade deexpressão: “Se o cidadão percebe que nemos jornalistas estão protegidos, ele imagi-na que também não está, bem como o seudireito de se expressar”.

O repórter do jornal O Globo, BrunoAmorim, foi detido no dia 11 de abril por umpolicial militar, quando cobria a desocupaçãoda favela da Telerj, na Zona Norte do Rio.Durante ação, PMs agrediram fisicamente eameaçaram de prisão os profissionais deimprensa que estavam no local. De acordocom o relato do jornal, o policial militar, semidentificação, teria arrancado os óculos deAmorim e aplicado-lhe uma ‘chave de braço’.Após ser imobilizado, o repórter afirmou quefoi filmado pelo PM, que teria dito: “Estoufilmando um repórter da Globo que estavajogando pedras. Vocês mostram a nossa cara,agora estou mostrando a sua”.

Amorim teve o seu aparelho celular apreen-dido pela polícia por mais de uma hora e nãoconseguiu se comunicar com a Redação. Jorna-listas de outros veículos ligaram para suas che-fias para noticiar a prisão de Amorim, que foiencaminhado para a 25ª DP (Rocha), sendo li-berado em seguida. Bruno foi acusado de desa-cato, incitação à violência e resistência à prisão,mas o caso não foi registrado pela Polícia Civil.

ABI repudia violência policial contra repórter de O GloboPOR IGOR WALTZ Censura

A Associação Brasileira de Imprensa-ABImanifestou preocupação com a escalada daviolência que vem sendo registrada contrajornalistas, não apenas no Rio de Janeiro,mas em todas as regiões do País. “A violên-cia reflete o desrespeito com a atividade jor-nalística. É inadmissível que em pleno Esta-do de Direito se reproduzam atos de trucu-lência e censura contra profissionais de im-prensa. Esta grave situação nos remete aosmétodos de intimidação utilizados duranteo regime militar”, destacou Domingos Mei-relles, diretor da ABI.

DesocupaçãoA retirada dos moradores da favela da

Telerj foi determinada pela Justiça como rein-tegração de posse do prédio de propriedade daempresa Telemar, que estava ocupado porcerca de 6 mil pessoas há 11 dias. Aproxima-damente 1.650 policiais do 3º BPM (Méier),do Batalhão de Operações Especiais-Bope e doBatalhão de Choque-BPChq foram mobiliza-dos para a retirada dos ocupantes do imóvel.A desocupação começou de forma pacífica

ainda na madrugada, mas por volta das 6h45teve início o confronto entre policiais milita-res e os ocupantes após a prisão de uma daslíderes dos sem-teto. Os PMs utilizarambombas de efeito moral e gás lacrimogêniopara tentar controlar a situação.

Quinze ônibus foram atingidos (quatrodeles, queimados), outros três veículos fo-ram incendiados (entre eles um carro dapolícia) e pelo menos três agências bancári-as foram depredadas. Um supermercado foiinvadido e saqueado, e um veículo de umaemissora de televisão também foi atacado.No confronto com a PM, pelo menos 19pessoas ficaram feridas, entre elas, 12 poli-ciais militares e três crianças. Segundo aSecretaria Municipal de Saúde, MaicomGonçalves Melo, de 25 anos, um dos inte-grantes do protesto, perdeu o globo ocularesquerdo e está internado no Hospital Sou-za Aguiar, no Centro. De acordo com a po-lícia, 25 pessoas foram detidas – sendo 21suspeitos de participar do saque ao super-mercado. Deles, quatro foram presos. Às13h27, entretanto, a maioria havia sido libe-rada, já que não houve flagrante.

O Brasil é um dos países do mun-do com maior número de casos nãosolucionados de mortes de jornalis-tas, de acordo com o Índice Global deImpunidade, divulgado em 16 de abrilpelo Comitê para a Proteção dosJornalistas-CPJ. Na 11ª posição, o Bra-sil aparece com nove assassinatos deprofissionais de imprensa cujos res-ponsáveis não foram punidos. Para oCPJ, organização não governamentalde defesa da liberdade de imprensa,sediada em Nova York, as autorida-des brasileiras obtiveram em 2013apenas três condenações.

Na América do Sul, Brasil e Co-lômbia são os únicos a integrar a lis-ta. O Brasil ficou atrás do país vizinho,oitavo colocado com seis mortes im-punes, porque o índice calcula o nú-mero de assassinatos não resolvidoslevando em conta o percentual emrelação à população. Apesar de termatado mais, o Brasil aparece com0,045 assassinatos por milhão de ha-bitantes contra 0,126 da Colômbia.

Apenas os países com cinco oumais casos sem solução são incluídosna lista. Este ano, 13 foram enquadra-dos nesse critério, contra 12 na rela-ção divulgada em 2013, destacou oCPJ. Assim como no ano passado, alista atual é liderada por Iraque, So-mália e Filipinas. Também integrama relação o Sri Lanka, em quarto, se-guido por Síria, Afeganistão, México,Colômbia, Paquistão, Rússia, Brasil,Nigéria e Índia.

“Nos últimos anos, a posição doBrasil no índice tem subido e baixa-do à medida que avanços esporádicos,mas significativos, na abertura deprocessos judiciais contra criminosossão confrontados com novos casos deassassinatos”, explica a organizaçãoem comunicado. (Igor Waltz)

Brasil é terra fértilem impunidadepara assassinosde jornalistas

O seminário, promovido pelo Supre-mo Tribunal Federal, Organização dasNações Unidas-ONU, Organização dosEstados Americanos-OEA e Organizaçãodas Nações Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura-Unesco, teve comoobjetivo debater o papel do Judiciário nagarantia da liberdade de expressão. “Aimpunidade retroalimenta a violência.Há lugares em que há poucos casos deviolência, mas uma autocensura absurda,porque ameaças anteriores já deram con-ta do recado”, disse Canela.

Torves, que também representou a Cen-tral Única dos Trabalhadores-CUT, afirmouque as agressões de manifestantes vieram degrupos violentos infiltrados nos protestos, ecita como exemplo a morte do cinegrafistaSantiago Ilídio de Andrade, da TV Bandeiran-tes, em março. O diretor da Fenaj acreditahaver o hábito de confundir os jornalistas coma linha editorial dos veículos.

A Secretaria Nacional de Segurança Públicado Ministério da Justiça criou um grupo detrabalho com associações de jornalistas e deempresas jornalísticas para buscar diretrizesque auxiliem na proteção desses profissionaise no livre exercício da profissão. O grupo de tra-balho deve encerrar suas atividades em abril.Segundo o assessor da Secretaria Nacional deSegurança Pública, Guilherme Leonardi, essegrupo vai apresentar orientações para redu-ção do risco no trabalho, como o uso de equi-pamentos de proteção.

Segundo Leonardi, o estudo definirá orien-tações sobre como se preparar para a manifes-tação, como proceder durante a manifestaçãoe, posteriormente, também como avaliar o queocorreu, quais foram os danos, o que poderiater ocorrido de forma diferente, o que poderiater sido evitado. “São para todos os espectros.É importante que a gente reconheça o papeldos profissionais de comunicação, das entida-des que possuem os veículos de comunicaçãoe também dos profissionais de segurança.”

Para o Deputado Policarpo (PT-DF), deba-tes como o realizado pela Comissão de Traba-lho são importantes para chamar a atençãosobre o tema. “Que esse debate sirva não ape-nas para permitir que o trabalho do jornalis-ta seja feito com tranqüilidade, mas ao mes-mo tempo que chame atenção para esse pro-blema. As pessoas têm que se manifestar, têmque fazer suas manifestações, mas de formalivre e sem violência.”

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VIDAS

avia um tempo em que um jor-nalista tinha de tomar posi-ção. Ficar em cima do muro,nem pensar. Mesmo que se

obedecesse à risca a cartilha do chamadojornalismo imparcial, cuja ética recomen-dava o equilíbrio, o ouvir os dois lados.Que assim fosse. Mas se o momento pen-desse a balança para o lado errado, o daopressão, da censura, da injustiça social,como nos 21 anos da ditadura militar, erapreciso denunciar, brigar, ir às últimasconsequências. Mesmo que a vida esti-vesse em risco. Com essa noção em mente,Rodolfo Konder presenciou um dos maistrágicos e decisivos momentos da histó-ria recente do País. No dia 25 de outubrode 1975, ele estava preso no Doi-Codi, emSão Paulo, e se tornou uma das últimaspessoas a ver seu colega jornalista Vladi-mir Herzog com vida, enquanto enfren-tava ameaças e violentos interrogatórios.Foi o primeiro a denunciar que Herzoghavia sido assassinado pelos torturadores.

Konder estava preso por causa de suamilitância no Partido Comunista Brasi-leiro (PCB), mas incomodava de fato pelaousadia de denunciar tantos abusos e in-justiças cometidos depois que a ditaduramilitar começou, em abril de 1964. Porisso, tinha sido obrigado a se exilar parasalvar a própria vida e as daqueles quecom ele conviviam. Havia se transforma-do em um batalhador da liberdade deimprensa e da democracia no Brasil. Paraazar do regime, sua prisão foi fundamen-

Morto aos 76 anos, no dia do trabalho,jornalista e escritor, humanista exemplar,

ele foi um incansável e respeitado defensorda ética humana e da justiça social,

princípios a que se manteve fiel até o fim.

tal para se saber em detalhes tudo o queaconteceu com Herzog. Quem questiona-ria na época a verdade por ele dita? Mas elesó teve chance de revelar o assassinatodepois de sair da prisão. Do Doi-Codi, foipara o Dops. No escritório do seu advoga-do, fez o depoimento sobre tudo o quetinha visto na central de tortura da dita-dura. Em 1976, com o avanço do processode abertura, instado por amigos como Cla-rice Herzog e Fernando Jordão e por seuadvogado, achou que era hora de publicaro depoimento. Saiu em todos os jornais.

Há cinco anos, ele relembrou toda ahistória ao Jornal da ABI, em uma longaentrevista. “A partir daí, comecei a serameaçado pelo braço armado da repressãoe tive de fugir pela fronteira em Foz doIguaçu. Meu segundo exílio, de dois anos”.O que contou foi apenas o que viu lá den-tro, ressaltou. “Ficávamos todos em umasala de espera com macacão do Exército,sem cinto e encapuzados. Mas, levantan-do um pouco o capuz, era possível ver eaté identificar as pessoas sentadas porperto. Eu e o Duque Estrada, que estáva-mos lado a lado, vimos quando chegou porali o Vladimir Herzog”.

Konder viu quando o jornalista da TVCultura foi levado para o interrogatório.Essa sala de espera ficava no térreo. “Eutinha sido interrogado no dia anterior noandar de cima, mas ele foi interrogadonuma sala ao lado, no próprio térreo. Seidisso porque um dos carcereiros, cujo ape-lido era Marechal, veio nos pegar e nos le-

vou à sala onde ele estava sendo interro-gado. O Sargento Pedro Grazieri, com suaâncora tatuada no antebraço esquerdo,era quem o interrogava. O homem era umtorturador e já o havia torturado na vés-pera. Ele disse: ‘Vlado aí está negandotudo. Vai entrar no cacete. É melhor vo-cês o convencerem a abrir logo o jogo’”.

Desesperado, Konder tentou ajudar.“Eu e Duque Estrada lhe dissemos: ‘Olha,Vlado, eles já estão sabendo da existênciada nossa base, então não adianta maisnegar’. Mas ele respondeu: ‘Não sei do quevocês estão falando’. Fomos retirados dasala. Pouco tempo depois, começamos aouvir os gritos dele. Veio até um policialaumentar o som do rádio no corredor, masnem isso conseguiu abafar os gritos, queeram de quem primeiro estava apanhan-do e depois levando choques elétricos.Eram gritos diferentes. Quando tudo pa-rou, fui levado novamente à sala. Ele jáestava assinando a confissão. Nós, comu-nistas, éramos obrigados a assinar de pró-prio punho uma confissão”. Mas era tudoditado, forçado em circunstâncias degrande horror pela tortura. “A dele dizia:‘Fui aliciado para o Partido Comunistapelo Rodolfo Konder ’. Nenhum de nósusaria esses termos. Eu percebi que o Vla-do estava em dúvida sobre o nome de umde nossos companheiros, o Argileu, quenão tinha aparecido ainda. Mas Vlado nãosabia disso. Tergiversei e disse: ‘Hum,Vlado, acho que você está confundindocom fulano’. Ele percebeu e concordou.

Rodolfo Konder,um humanista

Rodolfo Konder,um humanista

Nesse momento, tiraram-me da sala no-vamente. Ele estava assinando a confis-são. Acredito que ele tenha tido uma cri-se de consciência e rasgado o papel”.

Veio, então, a morte. “Aí, o pessoal ba-teu nele outra vez, mas agora sem técni-ca, com raiva. Nisso, ele caiu com a baseda cabeça sobre o parapeito da janela emorreu. Para que pudessem retirar o cor-po, fomos todos levados para o andar decima com a desculpa de reconhecer al-guns retratos. Eram pessoas que ninguémconhecia, apenas para nos ocupar nooutro piso. No dia seguinte, o comandan-te do Doi-Codi nos chamou para dizerque Herzog era agente da KGB, o que jáprovocou uma indignação geral, pois ohomem era iugoslavo e detestava a UniãoSoviética. Imagina se seria agente da po-lícia secreta soviética? Depois, comple-tou falando que ele tinha se suicidado”.

Graças a Konder essa história foi con-tada, em detalhes, por um ato de coragem,algo que lhe era peculiar. Ele dizia que aliberdade de consciência é essencial. “Háuma farsa enorme na ação daqueles quea cerceiam com o argumento de que estãomontando regimes para resolver todos ostipos de problemas. Lutar por essa liber-dade é essencial”.

Biografia raraO potiguar que virou paulistano, nas-

cido em 5 de abril de 1938, viveu para ojornalismo por toda a sua existência econstruiu para si uma biografia rara, pre-

H

ROSAN

I ABO

U AD

AL

POR GONÇALO JÚNIOR

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36 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

concluiu que era tempo de voltar. “Opessoal (que apoiara Jango) estava semdireção, Brizola queria promover um le-vante no Rio Grande do Sul contra oGoverno, mas as possibilidades de êxitoeram pequenas”. Em algumas conversas,o jornalista descobriu que havia um apa-relho (pequeno grupo de militantes doPCB) na fronteira que ainda estava emfase experimental e resolveu arriscar.“Lembro-me ainda da senha quando che-guei a Porto Alegre: ‘Vou negociar os cou-ros de Santa Maria’”.

Começar de novoEram fins de 1965, Konder estava vol-

tando e precisava começar de novo. Porisso, escolheu o jornalismo. “Uma dasminhas raras habilidades era ler e escrever”,justificou, modestamente. “Naquela épo-ca, o jornalista sabia ler e escrever muitobem, hoje nem tanto”, ressaltou. Na clan-destinidade, fez traduções para Ênio Sil-veira, da Editora Civilização Brasileira.Como também sabia inglês, recebeu umconvite de Luiz Mário Gazzaneo e foitrabalhar como redator na Agência Reu-ters. Em seguida, para o jornal O Paiz. “As-sim comecei minha vida profissional. Davapara me manter tranqüilamente. Até o AI-5, quando novamente me senti ameaçadoe aceitei o convite do Milton Coelho daGraça para trabalhar em São Paulo, narevista Realidade”. Na lendária publicaçãoda Editora Abril, que modernizou a formade se fazer jornalismo no País, ele traba-lhou ao lado de profissionais de grande ta-lento como Maurício Azêdo, Presidenteda ABI, falecido no ano passado.

Em quase meio século de carreira, Rodol-fo Konder participou de praticamente to-dos os grandes veículos importantes da im-prensa brasileira. Autor de mais de duasdezenas de livros, tornou-se militantepolítico contra a ditadura militar pela im-prensa e fez política clandestinamente, oque o levou à prisão e à tortura em 1975.

No período da redemocratização,atuou em grupos de direitos humanos epresidiu a seção brasileira da Anistia In-ternacional. Nos últimos 35 anos, passoupelas Redações das revistas Singular Plu-ral, Visão, IstoÉ, Afinal, Nova, Playboy, Re-vista Hebraica e Época. Até descobrir suavocação para tv e rádio. Durante quatroanos, foi editor-chefe e apresentador doJornal da Cultura, na TV Cultura de SãoPaulo, e colaborador permanente de OEstado de S. Paulo durante dez anos. Elecomparou os dois veículos que adotou nofim da vida: “No rádio você tem um pú-blico que reage muito mais prontamen-te, informação imediata. Na televisãovocê tem uma visibilidade maior. Aprendicomo lidar diariamente, cotidianamen-te. Quando entrei na TV Cultura, intro-duzimos no telejornal a prática de o apre-sentador fazer comentários sobre a notí-cia, o que aprofundava o conteúdo”.

Lembranças dos amigosAo mesmo tempo, Konder foi profes-

sor na Faculdade de Jornalismo da Funda-ção Armando Álvares Penteado (FAAP)durante um ano e conselheiro da União

ciosa, impecável e exemplar, que mereceser reverenciada para além das Redações.Uma história de vida que sem dúvida renas-ceu quando ele partiu, no dia 1º de maio,dia do trabalho, depois de lutar contra umcâncer. Ele estava internado na Unidadede Terapia Intensiva-UTI, do Hospital Be-neficência Portuguesa, havia 20 dias. Ocorpo do jornalista foi cremado às 17h, noCrematório Horto da Paz, em Itapecericada Serra, interior de São Paulo.

“Comunas desde pequeninos”Filho de Valério Konder, dirigente do

PCB, e de Ione Coelho, e irmão do filóso-fo Leandro Konder e de Luíza EugêniaKonder, Rodolfo cursou Direito na facul-dade do Largo de São Francisco, mas nãoterminou. Queria ser jornalista. “Comosabia ler e falar inglês muito bem, trabalheimuito com tradução de livros”. Gostava dedizer que se formou politicamente noútero da sua mãe. “Meu pai foi um dirigen-te comunista, dirigente inclusive interna-cional, membro do Conselho Mundial daPaz, amigo de Pablo Neruda, de Sartre. Suapersonalidade muito forte influencioutoda a família. E eu e meu irmão nos tor-namos comunas desde pequeninos”.

Konder entrou no PCB quando foi apro-vado no concurso da Petrobras, no fim dosanos de 1950 e começo dos anos de 1960.Quando veio o golpe militar de 1964, eraum dos diretores do Sindicato dos Petro-leiros do Estado da Guanabara. Emboramuito jovem, tornara-se um destacado di-rigente sindical e fazia parte da FraçãoNacional dos Petroleiros. “Eu e outros cole-gas fomos recebidos em Brasília pelo Presi-dente João Goulart para discutir a cogestãona Petrobrás, que era um projeto nosso.Quando veio o golpe militar, eu fui cassa-do e passei a ser caçado pelo Governo”.

Ainda em abril, nos primeiros dias doregime que já nascia ditadura, com perse-guições e torturas, Konder concluiu quenão poderia mais se esconder, pois estavacolocando em risco as pessoas que o abri-gavam. “Fui para o Consulado do México,na Praia do Flamengo, e de lá para a embai-xada, na Praia de Botafogo, onde fiquei porquase dois meses até conseguir o salvo-conduto e ir para o México”.

No tempo em que esteve naquele país,manteve contato com o ex-PresidenteLázaro Cárdenas, a quem descreveu comouma figura ilustre na História mexicanae amigo de seu pai. “Fui muito bem rece-bido, mas percebi que precisava ficar maispróximo do Brasil. Procurei a Embaixadado Uruguai para tentar a transferência doasilo político”. Como o embaixador eraum ex-bancário e o brasileiro tinha al-guns amigos entre os líderes bancários quetambém estavam exilados, ele foi inclu-ído na lista e transferido. “Saímos doMéxico, viemos pela Costa do Pacífico,porque não podíamos sobrevoar o terri-tório brasileiro, fomos até o Chile, Argen-tina e, por fim, Uruguai, onde estive umtempo com João Goulart, Leonel Brizo-la e diversos políticos brasileiros”.

Depois de um tempo no Uruguai emais algumas reuniões com os líderespolíticos brasileiros exilados, Konder

Brasileira de Escritores. Em 2001 ganhouo prêmio Jabuti pelo livro Hóspede da So-lidão, além dos prêmios Monteiro Lobato(1979), Vladimir Herzog (1982), Hebraica(1995), ECO (2002) e Borba Gato (1996).Mas a melhor forma de dimensionar ovazio que Konder deixa é, sem dúvida,pelo lamento dos amigos. “Pouco conver-sei com ele ao longo de sua vida. Mas, muitome entendi com ele”, observa o jornalis-ta e escritor Nildo Carlos Oliveira, parceirode décadas. Os dois se conheceram emmeados dos anos 1970. “Até então, ele jávivia perseguido, uma perseguição políti-ca implacável iniciada imediatamentedepois do golpe de 1964 e que só parou –se é que a perseguição à inteligência páraalgum dia – por volta de 1978 ou 1979”.

Segundo Oliveira, quando era perse-guido, o amigo vivia se movimentandoem dois caminhos: a política e a cultura.“E, na política, as conversas eventuaiseram de bastidores para a preservação dasobrevivência própria e dos companhei-ros que se articulavam contra a ditadura.Contudo, política e cultura têm cami-nhos entrelaçados. Rodolfo vinha de umafamília onde esses dois vetores da iden-tidade e da consciência humana se enri-queciam”. Para o amigo, Konder deixa umlegado cultural com obras de ficção, comtrabalhos jornalísticos cuidadosamenteelaborados e com a memória do que vi-veu. Sobretudo, deixa a seguinte advertên-cia, inserida em um de seus últimos tra-balhos publicados: “Não podemos esque-cer (a ditadura brasileira), até porque osdemônios do autoritarismo e da intole-rância ainda nos espreitam, na sombra”.

Beatriz Helena Ramos Amaral, escrito-ra, ensaísta e Procuradora de Justiça, amiga

inseparável e dedicada, fala dele comoalguém que era e sempre será um dos mai-ores parceiros de idéias e princípios queteve na vida. “Elegante, bom ouvinte,conselheiro, confidente, mestre. Adoravacontar histórias, mas também sabia ouvircomo ninguém”. A amizade dos dois flo-resceu no começo dos anos de 1990, quan-do Konder editava e apresentava o Jornalda Cultura, antes de assumir a SecretariaMunicipal de Cultura de São Paulo. Em1994, ele e o escritor Cláudio Willer con-vidaram Beatriz para coordenar algunsprojetos de literatura e cultura na Secre-taria. “Aceitei e coordenei vários ciclos,como Clarice Lispector, Edgard Braga,Poesia 96/97 etc. Lembro-me muito bemdo lançamento de seu sétimo livro, Pala-vras Aladas (1992), e dos vinte e seis quese seguiram, em cujas sessões de autógra-fos sempre compareci. Os livros mais re-centes, ele me enviava pelos Correios”.

Os dois estiveram juntos em várias ges-tões da Diretoria da União Brasileira dosEscritores, São Paulo (UBE-SP). Ele, comoConselheiro, ela, como Secretária-Geral eDiretora, entre os anos de 1996 e 2005.Atuaram em Comissões Julgadoras deConcursos de Literatura e fizeram parte devárias coletâneas de contos lançadas até ocomeço do novo século. “Em 2003, Rodol-fo deu-me a alegria de prefaciar meu livroAlquimia dos Círculos (Escrituras Ed.), pre-senteando-me com seu belo texto ‘Asa li-vre’. Também escrevi resenhas sobre váriosde seus livros, entre os quais A Memória eo Esquecimento, Rastros na Neve, Cassadose Caçados, A Invasão, Educar é Libertar, ODestino e a Neve. Ele gostou tanto das rese-nhas que decidiu publicá-las, reunidas aoutras, de outros autores, no volume En-

VIDASFOTOS: ACERVO PESSOAL

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Conheci Rodolfo Konder quandopassei a dirigir a revista Visão, ondeele era editor da seção Internacional.Impressionavam seus textos, e a suapermanente atenção, educação,delicadeza e fidelidade aos amigos.Apreciava como ninguém os textosde Jorge Luis Borges, que sabia decor, e um bom sorvete Kibon, queconsumia por atacado. Assim comona TV Cultura, convivi bastantecom ele no dia a dia do trabalho,bem-humorado, solícito, e pronto acomentar com inteligência os fatospolíticos do dia.No enterro de Vladimir Herzog,chegou direto do Doi-Codi em umadaquelas vans mal-assombradas e sedirigiu até mim. Atrás de nóspostaram-se dois dos três tiras queo haviam trazido. “Vão me matar”,disse, trêmulo e abalado, enquantomostrava os sinais dos choqueselétricos aplicados em seus punhos.Passada a época negra, nunca viRodolfo queixar-se dessa macabraexperiência. Preferia tratar oassunto com a mesma lhaneza comque enfrentava assuntos não tãoespinhosos, sem dramatizar. Deixouos amigos saudosos de verdade.ROBERTO MUYLAERT

Considero um privilégio a amizade eo convívio com Rodolfo Konder. Nahomenagem ao cidadão que marcoucom grandeza sua presença no País,expresso minha admiração nãoapenas ao intelectual, mas aohomem solidário, pleno dequalidades de sumo valor. Culto, deconversa saborosa, permeada àsvezes de certa ironia, de educaçãorequintada, era admirado por seusamigos e por quem o conhecia. Avida profissional se estende emamplo e multifacetado percurso.Jornalista, escritor, cronista,contista, romancista premiado, comHóspede da Solidão, que lhe rendeu oJabuti.Konder ocupou cargos relevantes,foi Secretário de Cultura doMunicípio, Conselheiro do MASP,da União Brasileira de Escritores,Membro do Conselho Municipal deEducação, fundador da AnistiaInternacional em São Paulo, Diretorda Associação Brasileira de Imprensa(ABI) em São Paulo, Defensor dosDireitos Humanos. Sua luta contraa Ditadura levou-o à prisão, àtortura e ao exílio. Suas posiçõespolíticas exigiram-lhe o sacrifício dobem estar pessoal. A vida de Kondermarcou-se pela Defesa dos DireitosHumanos, pela Defesa daDemocracia e da Liberdade. RodolfoKonder deixa saudades e um vaziopara seus amigos. Na história danação ocupa lugar relevante, entre

“Deixou os amigossaudosos de verdade”

as personalidades que recebem aadmiração da posteridade.ANNA MARIA MARTINS

Rodolfo Konder, quer por iniciativaprópria, quer pelas circunstâncias,desempenhou vários papéisimportantes ao longo da vida:escritor, educador, jornalista eadministrador. No âmbito dasrelações pessoais, destacou-se comoleal amigo. Nos seus escritos cintilao culto da amizade. Ingressou naUBE/SP a 4 de agosto de 1982, emuma de minhas gestões, marcadaspelo combate à ditadura e peloempenho pela profissionalização doescritor. Secretário de Cultura doMunicípio de São Paulo, Konderrecrutou na UBE os seus principaisassessores. No período da abertura,imposta pela pressão popular,tornou-se Presidente da seçãobrasileira da Anistia Internacional,entidade destinada a protegerexilados, presos políticos e vítimasdo pensamento livre.Recorde-se que, detido, dividiu acela com Vladimir Herzog. Foi oprimeiro a denunciar o assassinatodo jornalista. Explorourepetidamente a obra de Jorge LuisBorges. Cronista e contista, divertia-se a flagrar os rumos, ora trágicos,ora grotescos, do ser humano.Refinado, colecionava filmesanteriores a Hollywood e discos demúsica clássica. No último conto,publicado em 2014, proclama que“educar significa humanizar”, que aeducação deve perseguir um sonho.Pontua, na quarta-capa daderradeira obra, de 2014, Um LongoPercurso, o caminho que percorreu:“da fé à razão, da certeza ingênua aoceticismo necessário.” Deixouamigos e admiradores. Saudosos einconformados.FÁBIO LUCAS

contros com a Crítica, publicado em 2013,pela RG Editora.”

Para surpresa da Procuradora, Konderdecidiu inserir na capa deste livro umafoto em que estão juntos, na cerimônia desua posse como titular da Procuradoria deJustiça Criminal. “Só soube da surpresa aoreceber o livro, com uma belíssima dedi-catória, o que me comoveu. Eram assimsuas delicadezas e seu respeito pelo traba-lho dos amigos”.

Silvia Gyuru Konder, com quem Kon-der era casado havia quase 40 anos, escre-veu um emocionante testemunho para oJornal da ABI: “Rodolfo era um cavalhei-ro. Uma pessoa brilhante como profissi-onal e um exemplo como pai. Lutou a suavida toda contra a repressão, a favor daliberdade e da educação. Teve a capacida-de de se reciclar ao longo de sua trajetó-ria política e de se reinventar como pro-fissional sempre no limiar do seu tempo.Além disso, esteve sempre presente navida de nosso filho e foi, sem dúvida, seumelhor amigo”. Para ela, uma pessoa deprincípios férreos que conseguia convi-ver com suas próprias contradições poé-ticas, um cidadão do mundo, defensor dohumanismo, pai e esposo amado.

Os seus textos, diz Silvia, como nos deJorge Luís Borges que ele sempre admirou,tinham uma grande beleza estética alia-da a uma profundidade singular, deti-nham uma imaginação infinita e eram

extremamente eruditos. “Usando a estru-tura de um texto de seu maior ídolo, pensonas areias de Ipanema e na brisa do mar,no partido comunista e na tortura, nosencontros clandestinos e no amor damadrugada, a fuga pela fronteira e os anosde exílio, a neve dançando em nossa ja-nela em Montreal, o jornalismo e a suaincessante defesa pela liberdade de ex-pressão, o regresso à nossa pátria, o nas-cimento do nosso filho e os passeios pe-las ruas de Estocolmo, um cachorro-quen-te em Nova Iorque, a Anistia e a Cultura,a grama verde de Machu Picchu, tardesassistindo a filmes no sofá, o amor, adoença, cada lágrima. Foram precisastodas essas coisas para que um dia nossasalmas se unissem”.

Para homenageá-lo, a companheira citaum fragmento de Borges que ele muito gos-taria de reler: “Creio na imortalidade, nãona imortalidade pessoal, mas na cósmica.Continuaremos sendo imortais, contudo,além de nossa morte corporal, resta nos-sa memória, restam nossos atos, nossosfeitos, nossas atitudes, toda essa maravi-lhosa parte da história universal, ainda quenão o saibamos e é preferível que não osaibamos”. Rodolfo Konder fez exata-mente tudo isso ao longo de sua vida, semtitubear, sem vacilar, de modo natural,com a honestidade, a decência e a coerên-cia com as mais nobres virtudes que nor-teiam a existência humana.

Rodolfo Konder preso no Doi-Codi

Rodolfo Konderentre amigos:acima, comFernandoHenriqueCardoso; aolado, comTeotônio Vilela,e na outrapágina, comFerreira Gullar.

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38 JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

POR RODOLFO KONDER

Mocassins pretos

Esta crõnica Rodolfo Konder enviou para publicação no Jornal da ABIantes de ser internado: uma homenagem ao amigo Vladimir Herzog.

xamino o chão ladrilhado, com atenção meti-culosa. As minúsculas manchas nos ladrilhos,em determinados pontos, parecem formar de-

senhos que consigo identificar; geralmente, sãopequenos rostos, figuras humanas às vezes bem distor-cidas, ou animais. As imagens surgem e desaparecem,ganham significado ou se diluem num todo disformee cego. Durante horas, elas se projetam e se retraem, vême vão, escorregadias como peixes, quase inapreensíveis.

Vejo apenas o chão ladrilhado. Há dois dias, vejo ape-nas o chão ladrilhado. É verdade que vi alguns pés, du-rante essas 48 horas; vi os pés imensos de um estiva-dor negro, que calçava sandálias de borracha; vi asbotas enlameadas de um mecânico; os sapatos de ca-murça de um arquiteto; os mocassins pretos de um jor-nalista. (Vi também botas militares; conheço-as bem,porque, durante dois anos, muito tempo atrás, fiz ocurso para oficial da reserva). Mas os pés logo se afas-tam, para gemer e gritar nas salas contíguas.

É estranho pensar que, para os outros presos, tam-bém sou um par de pés que ora descansa sobre os cal-canhares, ora se planta por inteiro sobre o chão ladri-lhado. É muito estranho imaginar que, para eles, tam-bém me transformei num par de botas de pelica mar-rom, que os deixa de vez em quando para gemer egritar nas salas contíguas.

Há momentos em que o carcereiro bate na cabeçada gente e grita: "Levanta a cabeça, comuna!" Depois,ele volta a bater: "Abaixa a cabeça, comuna!" Está sem-pre batendo na gente, esse carcereiro. O outro apenasgritava – não batia. Teriam recebido instruções dife-rentes, ou seriam, de fato, pessoas diferentes? Essa mi-nha dúvida decorre da minha incorrigível ingenuida-de, ou é uma dúvida saudável, que devemos sempre es-timular, mesmo na cadeia? Uma coisa é certa: ela nãoé operacional, isto é, não me ajuda a vencer o medo,nem a organizar as idéias.

Lá dentro, o jogo se torna mais evidente: há sempreum interrogador violento, que grita, ameaça e bate

cutor, que anuncia um terremoto na Indonésia. Emseguida, ele diz que o generalíssimo Francisco Fran-co – o ditador espanhol – recebeu extrema-unção e di-ficilmente sobreviverá a mais uma hemorragia inter-na. Mais gritos, mais notícias.

Os pés se movimentam, inquietos. Todos se sen-tem intimidados, aviltados, sozinhos. Quando seráminha próxima vez? Examino as mãos trêmulas quese apóiam no banco de madeira: há pequenas marcasescuras em volta dos polegares e dos indicadores –onde eles prendem os fios da tortura. Sinto a cabeçazonza, ainda me doem as pancadas recebidas nosouvidos e na nuca. Pedi ao carcereiro um pouco deágua, há quase meia-hora, mais sei que ele sempre de-mora a trazer a caneca de alumínio. Isso certamen-te faz parte das suas funções de carcereiro.

Olho novamente o chão ladrilhado. Os ladrilhosme atraem, me observam. Tento inutilmente desvi-ar os olhos, mas lá estão aquelas figurinhas enigmá-ticas, escorregadias, quase inapreensíveis. Ali está umrosto, de boca aberta; aqui, um cachorro; ao lado, umperfil de mulher. Logo, terão desaparecido.

No fim da tarde, somos todos levados pelo braçoaté o primeiro andar. Fazemos fila, uns seguram nascostas dos outros, "cuidado para não tropeçar na es-cada", grita o carcereiro, e a sinistra procissão de ce-gos sobe os degraus. Lá em cima, somos autorizadosa tirar o capuz, para ver algumas fotografias – e iden-tificar gente que nenhum de nós conhece. As fotospassam de mão em mão. Vejo finalmente os rostos decada par de sapatos: o arquiteto usa bigodes imensose está ficando careca; o estivador não tem os dentesda frente, parece um homem simples e humilde; omecânico é magro, está bem machucado – talvez sin-ta o mesmo medo que me comprime a nuca. Há ain-da um estudante de medicina, forte e cabeludo; umadvogado de cabelos crespos e olhar tranquilo; umjovem de óculos, alto e agitado, que estuda comuni-cações. A encenação dura quase uma hora. Por que fa-zem aquilo?

Na manhã seguinte, saberei: mataram o jornalistade mocassins pretos – e precisavam nos afastar do cor-redor de espera, para retirar o cadáver de uma das sa-las contíguas.

O Instituto Vladimir Herzog publicou em seu site,no dia 9 de maio, uma nota de pesar em homenagema Rodolfo Konder, com o seguinte teor:

“Faleceu no dia 1º de maio Rodolfo Konder, que,acima e além de jornalista e escritor, desempenhou pa-pel de fundamental importância na derrocada da di-tadura no Brasil.

Ao arrostar os agentes da repressão, denunciandoa tortura e assassinato de Vladimir Herzog no Doi-Codide São Paulo, Rodolfo tornou-se o pilar inicial e indis-pensável da ação declaratória impetrada pela famíliaHerzog, que culminou em 1978 na condenação do Es-tado brasileiro pelo crime, por sentença judicial.

Antes de se tornar preso político, juntamente comVlado, ao retornar do exílio em 1975, Rodolfo traba-lhou em vários dos principais jornais e revistas do

Brasil. Foi também professor de Jornalismo, secretá-rio da Cultura da Prefeitura de São Paulo e um dosfundadores da Anistia Internacional no Brasil.

Autor de diversos livros, Rodolfo Konder era ain-da o diretor do Conselho Consultivo da Represen-tação em São Paulo da ABI-Associação Brasileira deImprensa.

Ao lamentar profundamente seu falecimento,após persistente enfermidade, o Instituto VladimirHerzog expressa a certeza de que o nome de Rodol-fo Konder, valoroso e solidário em tempos penosos,será para sempre lembrado com honra e carinho, nãosó por todos os que tivemos o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, mas também nas páginas da Histó-ria da democracia brasileira.

Instituto Vladimir Herzog”

“Vai-se um protagonista, fica sua História”

VIDAS

com força, ao lado de outro brando, que argumenta,promete, adverte. Se a tática não funciona, então éhora da violência crua – e todos se tornam maus.

Aqui no corredor de espera, as coisas são diferen-tes: a gente respira... puxa, como é importante a gentepoder respirar direito... Além disso, a gente não ouveapenas as ameaças e os nossos próprios gritos, comoacontece lá dentro.

Vieram buscar o par de mocassins. Ele se arrasta –todos nós arrastamos os pés, ao caminhar de cabeçaencapuzada. Desaparece. Então, ouço vozes, gritos,gemidos. Os gritos, inicialmente, são estridentes, for-tes e abertos; meia hora depois, tornam-se fracos eabafados. Certamente enfiaram algum coisa na bocado jornalista.

Alguém liga o rádio e aumenta ao máximo seu vo-lume. Os gritos se misturam à voz empostada do lo-

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39JORNAL DA ABI 400 • ABRIL DE 2014

No dia 17 de abril, faleceu em São Paulo, aos85 anos, o empresário e jornalista HenryMaksoud, dono do Hotel Maksoud Plaza, umlendário cinco estrelas paulista, inaugurado em1979. Foi também fundador do Grupo Edito-rial Visão e da também não menos lendáriaRevista Visão, que pelas idéias neoliberais pro-pagadas em suas páginas foi, durante quaseuma década, um dos principais alvos da cen-sura e dos olhares vigilantes dos censores doregime militar. De janeiro de 1988 a outubro de1991, apresentou na Rede Bandeirantes o pro-grama semanal Henry Maksoud e Você. Foram171 programas veiculados em rede nacional –sendo que 171 é o código da profissão de jorna-lista no Ministério do Trabalho. Entre os entre-vistados que passaram por sua sabatina esti-veram os ex-Presidentes Luiz Inácio Lula daSilva e Fernando Henrique Cardoso. Enveredoutambém pelo teatro ao escrever e dirigir a peçaEmoções Que o Tempo Não Apaga, uma crôni-ca musical apresentada no Teatro MaksoudPlaza, contando a história de vários episódiospor ele vividos nos bastidores do hotel.

Filho de imigrantes libaneses e apaixonadopor filmes e música, Maksoud nasceu emAquidauana, no Mato Grosso do Sul, em 1929,ano do “crash” da Bolsa de Nova Iorque. Tal-vez por isso, em um desses meandros traçadospelo destino, enveredou pela economia e fez delaseu carro-chefe através da vida. Formado emEngenharia na Universidade Mackenzie, em1951, foi para os Estados Unidos onde recebeuo título de Master of Science em Mecânica deFluídos e Engenharia Hidráulica, pela Univer-sidade de Iowa, em 1953. De volta ao Brasil,fundou a Hidroservice Engenharia, em 1958,empresa que marcou época por liderar grandesprojetos de construção, no Brasil e no mundo,sendo responsável pelos aeroportos Tom Jo-bim/Galeão, no Rio; e Eduardo Gomes, emManaus. Durante a reserva de mercado para osetor de informática, fundou a Sisco, uma dasprimeiras empresas de computadores, softwa-res e sistemas do País. Sendo autor ainda de maisde 40 livros “político-filosóficos”, recebeu cente-nas de condecorações e homenagens pela vida.

Sua atuação específica e contundente nomundo do jornalismo, sempre com uma pi-tada de tempero provocante e contestadormuito próprio, se deu quando ele esteve àfrente da direção editorial da Revista Visão,comprada por ele em 1972 do publicitário SaidAbrahim Farhat, que fazia questão de man-ter o caráter de independência dos repórterese fotógrafos, apesar de todos os contratem-pos e dissabores que daí resultavam. Maksoudmudou o perfil editorial e tornou-a identifica-da com a ideologia liberal. Mesmo sob a cen-sura ferrenha do regime, criticava o estatismo,o desenvolvimentismo e o intervencionismoeconômico do governo militar brasileiro, aomesmo tempo em que condenava o sindica-lismo e as políticas sociais.

A Revista Visão, antes de ser adquirida porHenry Maksoud, tinha uma linha editorial de

Henry Maksoud: um anarquistano comando do Grupo Visão

O empresário escreveu seu nome na história da imprensa brasileira, publicando reflexões. E provocações.

POR ARCÍRIO GOUVÊA

informações gerais e que abordava quase to-dos os aspectos da vida do País que fossemnotícia. Passou por vários proprietários e di-ferentes orientações editoriais e, nos anos1960 e 1970, chegou a ser uma revista deimportante significação, referência nacionalem cobertura jornalística econômica e políti-ca, local e internacional, com investimentosem grandes reportagens.

A revista foi pioneira em diversas iniciati-vas, com destaque para a publicação do anu-ário “Quem é Quem na Economia Brasileira”,formato que inspirou o lançamento de diver-sas publicações semelhantes. Na década de1990, terminou vendida para o grupo DCIShopping News, de Hamilton Lucas de Oli-veira, que não conseguiu segurar a pressãoexercida pelos problemas financeiros de umacombalida publicação que já havia caído nodesinteresse dos leitores. Assim, no ano de1993, depois de 41 anos de existência, Visãodeixou de circular definitivamente.

Maksoud era visceralmente um neoliberal.Mas, paradoxalmente, rejeitava esse rótulo,adepto de idéias francamente favoráveis à li-berdade individual, à democracia representativa,ao estado de direito, ao governo limitado eadepto do liberalismo econômico. Admiradorde Friedrich von Hayek (economista austría-co, nascido no ano de 1899 em Viena, Áustria)levou seu conceito de economia pós-modernapara a revista, que passou a ter marcantepresença de temas político-filosóficos, mudan-do bastante o rumo editorial da publicação, queantes dele tinha uma tendência para a esquer-da. Mas, como em um desses paradoxos inex-plicáveis, foram essas idéias liberais, semprefustigando e irritando o governo, que maisincomodaram e constrangeram o regime ins-taurado em 1964. Resultado: na segunda

metade dos anos 1970, os militares retaliaramVisão com cortes na publicidade, além de exer-cerem pressão sobre seus anunciantes, levan-do a revista a uma frágil situação financeira.

Seu fiel escudeiro na Revista Visão e arauto deseus conceitos filosóficos, políticos e econômi-cos foi o editor José Ítalo Stelle, que já haviapublicado artigos sobre os mesmos temas naReason Magazine, em 1984, e na Freeman, em1986, nos Estados Unidos. A dupla se deu muitobem durante alguns anos, conseguindo trans-mitir exatamente todo o conteúdo neoliberal elibertário concebido pelos dois. Certamente,Maksoud tinha noção de sua importância his-tórica no Brasil de então, pois disse em um deseus programas na Rede Bandeirantes: “Eu en-terrarei as fitas de meu programa em um localsecreto para protegê-las da perseguição que sofropor parte das autoridades as quais critico porsuas políticas retrógradas. No ano 3000, umarqueólogo irá desenterrá-las e constatará en-tão, no Brasil do futuro, já em um regime de am-pla liberdade individual, que houve no passadoum tal de Maksoud que defendia esses ideais”.

Em outra oportunidade, ele afirmou: “Eusou radical mesmo, não sou pela reforma, o queestá errado precisa acabar”. E deve ter sidopensando nisso que ele tentou colocar emprática esse radicalismo, quase obsessivo, aoelaborar uma Constituição para o Brasil. ACarta Magna seria dividida em dez títulos, 218artigos e 294 parágrafos. Logicamente, que suasbases eram calcadas no pensamento de seugrande ídolo Hayek. A constituição expressa-va uma forma de governo que ele denominoude “Demarquia”. Ela fugiria dos padrões con-vencionais da democracia como a conhecemos(democracia=demos+kratos) e se aproxima-ria de outro modelo (demos+arqueim), ou seja,um governo do povo, subordinado à lei.

A Demarquia seria uma evolução do cons-titucionalismo clássico, tendo como objetivogarantir a liberdade dos indivíduos, sob a égi-de do Estado de Direito e observando, rigida-mente, a separação de poderes. O grande re-gulador da vida nacional, segundo o texto,seriam as leis, as leis acima de tudo e de todos.Ele diria depois sobre sua obra: “Nenhum poder,nem mesmo o do povo soberano, é ilimitado.Tudo deve ser regido pelas leis. Essas, sim, se-riam a autoridade máxima”. E terminava cri-ticando todas as Constituições Brasileiras, de1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, exa-tamente por achar que elas não realizavam aefetiva separação de poderes entre o Executi-vo, Legislativo e Judiciário, que sempre foi apa-rente e formal, causando toda essa controvérsiana aplicação das leis em nosso País. Indigna-do, anos mais tarde, com o texto da Constitui-ção de 1988, ele afirmou que ela era um Cami-nho da Servidão, se referindo a uma expressãomuito usada por seu amigo Friedrich vonHayek quando criticava a sociedade modernae seus intricados modelos econômicos.

Em uma entrevista que causou bastanterepercussão, concedida ao jornal Folha de S.Paulo, na véspera do Natal de 2007, HenryMaksoud esbraveja contra tudo, na tentati-va de convencer e implantar suas idéias queele considerava muito próximas do anarquis-mo. Em alguns trechos, diz: “O conceito libe-ral que eu defendo não é o que se tem hoje.Essa bobagem chamada neoliberal não exis-te. Pode escrever: neoliberalismo é besteira.Não existe essa asneira. O que aconteceu naInglaterra e na Escócia é algo que poderia serchamado de liberalismo clássico, mas acon-teceu só lá. Foi apenas uma pequena manchatão forte que as idéias foram para alguns ou-tros lugares. Mas isso não quer dizer que,depois disso, o liberalismo clássico, a econo-mia de mercado, espalhou-se pelo mundo.Não. Se você procurar onde existe a economiade mercado, vai ver só algumas manchas”.

Ele ainda provoca o Estado: “Sou um pri-sioneiro. Vivo prisioneiro de um Estado, iguala um clube ao qual sou filiado compulsoria-mente. Eu me revolto contra o Estado, maseles me punem”. Alfineta a Legislação Traba-lhista: “Vivemos, isso sim, a legislação do de-semprego. A Consolidação das Leis do Traba-lho é um dos troços que vêm mantendo o Paíssubdesenvolvido e, se continuar existindo, vaimanter o País assim ao longo da vida. Não temnada a ver com Justiça. É um troço estapafúr-dio, travesseiro dos advogados. Segura o pro-gresso e vai continuar segurando. O Brasil nãocresce por causa disso. E também não temcomo crescer por causa do sistema tributário”.

Cutuca o sistema bancário: “Não temosum mercado de capitais no Brasil, banco priva-do. Todos os bancos são paraestatais. Os ban-cos existem somente para ajudar o governo. Parahaver economia de mercado, um dos elementosque o empreendedor precisa ter é capital. Aquinão existe. Aqui existe desestímulo à formaçãode capital fixo, ou seja, desestímulo à formaçãode poupança pelos indivíduos e pelas empresas.Tudo o que existe de formação de capital ou depoupança, o governo lança mão para queimar,para jogar fora”. E conclui, lançando seu própriomanifesto: “Sou anarquista. As pessoas pen-sam que anarquia é bagunça. Anarquia é um sis-tema de governo. Quer dizer governo mínimo.Governo que uma penada não signifique preju-ízo de milhões ao povo. Porque vocês não ima-ginam quanto se perde com todas as penadasgovernamentais em um dia”.

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FERNAN

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Maksoud: “Essa bobagem chamada neoliberal não existe. Pode escrever: neoliberalismo é besteira.”

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VIDAS

A televisão, todos nós sabemos, correatrás da audiência. Seus departamentos depesquisa detectam o que o público dese-ja ver, e as emissoras se esforçam para darao povo o que o povo quer. Neste proces-so, qualidade é apenas um pequeno deta-lhe a ser dispensado. Luciano do Valle sub-vertia totalmente esta triste e implacávellógica de mercado. O brasileiro queriaver futebol, Luciano oferecia vôlei e bas-quete. O brasileiro queria ver Fórmula 1,Luciano mostrava Fórmula Indy. O povoqueria grandes esportes de massa com gi-gantescas torcidas, Luciano inovava comsnooker. E quem ficava numa verdadeirasinuca era a concorrência, que investiamilhões em grandes eventos esportivos,enquanto Luciano do Valle conquistavacada vez mais audiência provando quehavia muito mais entre o céu e o ibope doque sonhava a vã filosofia das massas te-levisivas dominicais. Luciano do Vallecolocava na televisão aberta (mesmo por-que naquela época ainda sequer existia atv paga) maravilhas esportivas que as au-diências nem sabiam que existiam. E foiatravés de seu faro empreendedor que oPaís começou a perceber que nem só de

futebol viviam o esporte e o jornalismoesportivo brasileiros.

Jornalismo esportivo, aliás, que fez abase de toda sua carreira. Filho de pai co-merciante e mãe professora, Luciano doValle Queirós nasceu em Campinas, inte-rior paulista, em 4 de julho de 1947 . Seutalento nato para o rádio e a televisão des-pontou muito cedo, logo aos 16 anos deidade, quando iniciou sua carreira de lo-cutor na Rádio Educadora FM da sua ci-dade natal. Mas como naquela época asemissoras de Frequência Modulada poucoou quase nada investiam em esportes, Lu-ciano logo se transferiu para a Rádio Bra-sil AM, também de Campinas, que man-tinha uma equipe esportiva. Lá, narrouseus primeiros jogos de futebol. De vozgrave, timbre potente e grande agilidadecom as palavras, a qualidade da narraçãofutebolística de Luciano chamou a aten-ção do também narrador esportivo PedroLuiz Paoliello, que o convidou a trocarCampinas por São Paulo e trabalhar natradicional Rádio Gazeta.

Em 1968, Luciano deixa a Gazeta e setransfere para a equipe de esportes da Rá-dio Nacional de São Paulo, do grupo Glo-bo, onde passa a narrar não apenas fute-bol, como também vôlei e basquete . Dois

anos depois, atua na cobertura de sua pri-meira Copa do Mundo de Futebol, a doMéxico, justamente a do histórico tri-campeonato brasileiro, que consagrou ageração de Pelé, Tostão, Jairzinho, Gér-son, Rivelino e tantos outros. No mesmoano futebolisticamente mágico de 1970,começa a integrar a equipe de esportes daRede Globo de Televisão .

“Mas o rádio é a escola de tudo”, afir-maria Luciano anos mais tarde. “No rádiovocê treina dicção, raciocínio, você é obri-gado a falar de improviso. Na época doPedro Luís a gente fazia longas, longasaberturas, duas horas sem ter nada praconversar, então você buscava assunto nasua imaginação. O rádio pra mim foi al-tamente inspirador”, declarou.

Mas ainda não seria desta vez, em 1970,que Luciano ocuparia o microfone de nar-rador oficial de uma Copa do Mundo. Mes-mo porque, naquela ocasião, as emissorasde tv brasileiras se uniram em pool, retrans-mitindo todas a mesma imagem e o mes-mo som, onde os mais importantes narra-dores esportivos de cada canal se reveza-vam a cada meio tempo de jogo.

A primeira narração de Luciano naGlobo foi a do Troféu Governador do Es-tado de São Paulo. O esporte? Basquete

masculino. Atuava também como “regratrês” (jargão futebolístico para “jogador re-serva”) no programa Dois Minutos com JoãoSaldanha, fazendo o papel do titular quedava nome à atração, quando este por ummotivo ou outro não conseguia compare-cer. Participou da cobertura dos Jogos Pan-americanos de Cali de 1971, dos terríveis Jo-gos Olímpicos de Munique de 1972 (quan-do 11 atletas israelenses foram mortos porpalestinos), e da Copa do Mundo da Alema-nha de 1974, a primeira transmitida em co-res para todo o Brasil.

A decepção pela derrota da seleção bra-sileira em campos alemães foi em partecompensada pelo bicampeonato mundialde Fórmula 1 conquistado por EmersonFittipaldi, no mesmo ano, narrado porLuciano do Valle. No automobilismo, Lu-ciano narrou também a vitória de JoséCarlos Pace no Grande Prêmio do Brasilde 1975 e o acidente que quase matou ocampeão austríaco Niki Lauda, no GP daAlemanha, de 1976.

O entusiasmo da narração de Lucianoera algo contagiante. Mesmo com seu gra-ve timbre de tenor, nos momentos cruci-ais de cada transmissão esportiva sua vozalcançava uma vibração diferente que adi-cionava ainda mais emoção àquilo que se

Nas lembranças de colegas, esportistas e espectadores, o resgate da trajetória do profissionalque, mais do que um grande locutor, foi um incentivador do esporte brasileiro.

POR CELSO SABADIN

LUIZ CARLOS MURAUSKAS/FOLHAPRESS

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via na tela. Seu estilo inconfundível mar-cou presença nas Olimpíadas de Montre-al, em junho de 1976. No mesmo ano, emagosto, o jornalismo esportivo brasileiroperdia uma de suas maiores vozes, a de Ge-raldo José de Almeida, veterano dos maisrespeitados e conceituados do País.

Com a morte de Geraldo, abriu-se umagrande vaga para a narração da Copa doMundo de 1978, na Argentina. Lucianodo Valle preenche esta vaga com talento eresponsabilidade, e torna-se praticamen-te a voz “oficial” não só do famoso mun-dial argentino marcado pela manipulaçãopolítica da ditadura, que então dominavaaquele país, como também dos jogos olím-picos de Moscou imortalizados pelas lágri-mas do urso-mascote Mischa, e da enormedecepção da Copa de 1982, onde o visto-so time de Telê Santana encantou o mun-do, mas não ganhou a competição.

Sempre que o Brasil “perde” (ou simples-mente não ganha) um Campeonato Mun-dial de Futebol, cai sobre o esporte uma pre-mente necessidade de reformulação queparece se espalhar pela vida de todo o País.Com Luciano do Valle não seria diferente.Após a Copa de 1982, ele troca a Globo pelaTV Record, emissora que abre espaço paraque Luciano possa desenvolver com maisintensidade sua carreira paralela de empre-sário e promotor de eventos esportivos. Emsociedade com José Francisco Coelho Leal,funda a Luqui, empresa através da qualcomeça a empresariar e divulgar modalida-des esportivas que mal conseguiam espaçode tv brasileira.

Logo em julho de 1983, ele revolucionatanto os setores do esporte como da mídiaao promover um jogo de vôlei como nun-ca se havia visto antes: numa quadra mon-tada sobre o gramado do Estádio do Mara-canã. Até os mais otimistas se surpreende-ram quando o maior estádio de futebol domundo recebeu nada menos que 95 milpessoas para ver Brasil e União Soviética.Reunindo astros do vôlei brasileiro da épo-ca, como Bernard, William, Montanaro eRenan, a partida teve transmissão ao vivopela Record e até hoje é recorde mundial depúblico para o esporte. Luciano ganha o ape-lido de “Luciano do Vôlei”.

Porém, ainda sob o comando da famí-lia Machado de Carvalho, a problemáticaRecord, que já há muito deixara de ser agrande potência que havia sido nos anos1960, tornou-se pequena para Luciano doValle. Ainda em 1983, o narrador/empre-sário se transfere do bairro do Aeroportopara o Morumbi, onde inicia uma nova eextremamente bem sucedida fase profis-sional, na Rede Bandeirantes. É nesta épo-ca que a Band se torna “O Canal do Espor-te”, com Luciano do Valle e sua equipe pro-duzindo o programa Show do Esporte, umamaratona esportiva dominical que ultra-passava dez horas de programação ininter-rupta. Apresentado por Elia Júnior e Simo-ne Mello, cabia tudo no Show do Esporte: vô-lei, basquete, automobilismo, corrida decaminhões... até futebol. A poderosa Glo-bo, assustada, batizou seu intervalo defutebol como Show do Intervalo, na tenta-tiva de pegar uma carona no show de Lu-ciano. E o nome permanece até hoje.

A força do consórcio Luqui-Bandei-rantes “inventou” o boxeador Maguila(“campeão mundial de boxe pela RedeBandeirantes de Televisão”, ironizou cer-ta vez o humorista Juca Chaves), deu sta-tus de horário nobre à sinuca (“Tudo queeu sou na vida eu devo a Luciano do Val-le”, declarou o jogador Rui Chapéu no ve-lório do narrador), além de apresentar aopúblico brasileiro a Fórmula Indy, o fute-bol americano e o hipnótico basquete daNBA. Isso sem falar no grande incentivoque deu ao basquete feminino brasileiro,elevando à condição de estrelas as joga-doras Hortência e “Magic” Paula, apelidoque o próprio Luciano pegou emprestadodo ídolo norte-americano Magic John-son. “A gente criava eventos. Era obriga-do a criar, a usar a criatividade, porquenão dava pra pagar todos os grandes even-tos do futebol”, declarou Luciano em en-trevista para a TV Bandeirantes.

Além de programas eminentemente es-portivos, empresariou, produziu e apre-sentou também faixas de variedades den-tro da Rede Bandeirantes, como Verão Vivoe Valle Tudo. O primeiro era transmitidodiretamente sempre de alguma badaladapraia brasileira, e trazia desde grandesídolos populares da nossa música até con-cursos de beleza. Enquanto o Valle Tudofazia a alegria dos repórteres da Band aoaceitar produzir as mais variadas e inusi-tadas pautas, mesmo que elas não tivessemnenhuma relação com a especialidade decada repórter. Foi num destes programas,sob a direção de Luciano, que eu tive a opor-tunidade de realizar uma ampla matériasobre a Esquadrilha da Fumaça, com direitoa vôos radicais, acompanhado de um des-temido cinegrafista. Estendendo-se du-rante as madrugadas de sábado para do-mingo, o Valle Tudo também deixava seusrepórteres à vontade em relação à duraçãode cada matéria, o que é praticamenteimpensável no jornalismo televisivo.

Defensor dos valores tradicionais daética jornalística, Luciano chegou a cau-sar polêmica ao criticar, no ar, seus própri-os colegas. Durante um programa de te-levisão da própria Bandeirantes, vocife-rou, sem ser interrompido: “Para comen-tar do meu lado, tem que ter diploma. Eeles não têm. Eles querem bagunça, elesquerem audiência. Cadê o diploma? Cadêo diploma do Milton Neves? Cadê o di-ploma do Flávio Prado? Quero ver. Elessão radialistas; jornalistas, não. Eu estounervoso mesmo, estou triste mesmo.Desculpa, eu sou sincero, o que eu soufora eu sou dentro. Eu sou assim e não voumudar depois de tanto tempo só paraagradar a gregos e troianos. Quando eutransmito, eu grito gol do Sport igualzi-nho ao gol do Corinthians, igualzinho doAtlético, igualzinho do Náutico, igualzi-nho do Santa. Eu quero que se lixem aque-les que acham que eu estou aqui torcen-do para este ou para aquele time. Eu tor-ço pela minha empresa [e aponta o logoti-po da Band]”.

Transmitiu, pela Band, as Copas de 1986,1990, 1994 e 1998. Em outubro de 1999, amorte de João Saad, presidente do GrupoBandeirantes, altera as relações da emissora

A Palavra dos Colegas“Quando teremos outro Brasileirão emano de Copa sediada pelo Brasil?Certamente não estarei aqui para ver,o que é simples constatação. Triste foiter ouvido o deste ano começar sem avoz de Luciano do Valle, tão marcantedesde sempre, assim como nas Copasdo Mundo. A voz do Bolacha éinesquecível para todos e especialmenteaos torcedores do São Paulo eCorinthians, em seus primeiros títulosmundiais.Luciano andava preocupadocom os rumos dos grandes eventos queo País receberá neste ano e em 2016 – eque ele tanto queria ver no Brasil. Naúltima vez em que o vi, no hotel em quenos hospedamos, em Fortaleza, na Copadas Confederações, manifestou maisdúvidas que certezas sobre o andamentodas coisas. Seja como for, se haviaalguém que merecia narrar umaOlimpíada por aqui, este alguém era ele”.JUCA KFOURI, JORNALISTA.

“O Brasil não perde só seu maiornarrador de tv de todos os tempos.Perde um ser humano generoso, humilde,carinhoso. Um visionário que ajudou alevantar e popularizar váriasmodalidades. A Copa do Mundo e aOlimpíada do Brasil acabam de perdermuito do seu brilho. Não trabalhei nemconvivi com Luciano do Valle, mas nossosencontros em estádios, aeroportos,hotéis, restaurantes foram sempre como jeito dele, com fidalguia, elegância”.MILTON LEITE, SPORTV.

“Visionário, companheiro, amigo,muito além de um chefe, uma pessoaque se preocupava com o próximo.Que brilhava, mas que tambémestendia o tapete para seus colegasbrilharem. Entrei na TV graças àconfiança dele, a quem devo essaoportunidade de ouro. Grande pessoa,grande profissional. Quem trabalhavacom ele fazia praticamente parte dasua família. Daí tantas homenagenssinceras e a sensação de uma lacunaimportante no cenário brasileiro, quecertamente não será tão facilmentepreenchida. Trabalhei diretamentecom ele de 1983 a 1990 e tenho grandeorgulho de ter feito parte doinesquecível Show do Esporte, da Bandque revelou tanta gente boa nojornalismo, pela sua habilidade emgarimpar profissionais”ELYS MARINA. MEGA TV.

“Luciano que valia todos os esportes,de emoções incríveis e únicas. Já estoucom saudades. Eu e todo um País”.TED RICHARD PAIVA SARTORI , A TRIBUNA,SANTOS (SP).

“Luciano do Valle conseguia transmitircom uma simplicidade total”.PETER RICHARED FABIAN, JORNALISTA, NATAL (RN).

“Comecei a aprender o que era futebolouvindo Osmar Santos no rádio.Depois, enlouqueci com José Silvério.Descobri que mulher podia trabalharcom isso quando vi Regiani Ritter natv. Mais tarde, me espelhava emRenata Figueira de Mello. Era o que eu

queria fazer da vida, e fiz. E fui atrásdesse universo porque Luciano doValle transmitiu isso pra mim desdeque eu era criança: paixão porEsportes! Foi por causa dele que euquis saber mais, quis conhecer, fuiatrás, me interessei, descobri osdemais. Eu falei isso pra ele, quando fuicontratada para ser repórter na equipedele, em 1995. Ele não era tímido nemnada, mas ficou meio sem jeito detanto que eu agradeci e elogiei. Euparecia uma criança, foi um sonho.Uma bênção na minha vida, por quemhoje eu faço uma prece, agradecida. Agente teve uma sorte imensa de terLuciano do Valle. Ele é para sempre”.WANIA WESTPHAL, JORNALISTA, SÃO PAULO.

“Até na morte ele faz o torcedor chorar”.JOEL SILVEIRA LEITE, AGÊNCIA AUTO ESPORTE.

“Ele narrava com emoção e coração.Não com o ego”.VALERIA SANDRA VULETYC, JORNALISTA, RECIFE

(PE).

“Em 1972, eu estava entrando nosistema Globo de Rádio e conheciLuciano do Valle na fila do BancoPortuguês, que na época fazia ospagamentos da Globo em São Paulo.Era dia de pagamento e ele estava naminha frente. Como eu sou do tipo queperde o amigo mas não perde a piada,não resisti. Cheguei pra ele e lasquei:“Luciano você vai receber em que? EmVale?” Ele riu e continuamos amigosaté que nos reencontramos muitosanos depois, na TV Bandeirantes”.FAUSTO JOSÉ DE MACEDO, PESQUISADOR EJORNALISTA.

“O Luciano do Valle que vai ficar namemória do ‘fã do esporte’ é o dasdécadas de 1980 e 1990, especialmente.Diferentemente de outros narradores,Luciano do Valle não era um grandeinventor de bordões. ‘Não somosartistas, somos jornalistas’, disse emuma entrevista à ESPN Brasil,explicando por que não usava bordões.Suas transmissões, carregadas deemoção, eram fundadas na descriçãodos lances”.MAURICIO STYCER, JORNALISTA DA UOL.

“Graças a Luciano, conseguimos ter omínimo de cultura esportiva além dofutebol. Gênio com o microfone namão, ele foi ainda mais visionário noque se referia à relação da mídia com oesporte. Com uma brutal diferença: omodelo criado por ele eracompletamente rentável para oesporte, para os patrocinadores, para aemissora que exibia os eventos e paraos profissionais de mídia que látrabalhavam. Mais do que o gogóafiadíssimo para gritar gooooooool,Luciano era o cara que permitia fazerexistir toda uma indústria demarketing esportivo no Brasil, quandoisso ainda era chamado de ‘promoção’.O esporte perdeu Luciano do Valle. Eprecisa de novos Lucianos paraconseguir voltar a ser grande”.ERICH BETING, JORNALISTA DO BANDSPORTS.

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com Luciano do Valle. A nova direção daempresa, agora sob o comando do herdei-ro Johnny Saad, mata a galinha dos ovosde ouro ao eliminar o Show do Esporte desua programação. O narrador continuaprestando serviços para a Band, mas semo ímpeto de sempre, e transfere-se por umtempo para Recife, de onde continua to-cando seus negócios. Em entrevista recen-te, declarou: “Antigamente a gente tinhana televisão equipes menores, menos con-dições técnicas, mas a gente tinha menosvaidade. A televisão hoje é melhor posici-onada tecnicamente, tem mais recursos,mas hoje cada um luta muito mais por si doque pela equipe toda.”

Narrou as Copas de 2002, 2006 e 2010.Em janeiro de 2012 sofre um AcidenteVascular Cerebral-AVC, que comprome-te sua fala. Submete-se a sessões de fo-noaudiologia e volta à narração esporti-va, palco que só abandonou com a mor-te. Em 19 de abril de 2014, sente-se malnum vôo que o levava até Uberlândia, deonde transmitiria, no dia seguinte, o jogoentre Atlético Mineiro e Corinthians,pelo Campeonato Brasileiro de Futebol.Não resiste e falece pouco depois do pou-so, vitimado por um infarto agudo.

No dia seguinte, em jogos por todo oPaís respeitou-se o minuto de silêncio emsua memória, antes de cada apito inicial.No estádio do Morumbi, o time do São

oucos profissionais invadem tan-to a nossa privacidade, mexemtanto com nossos sentimentosmais íntimos, quanto os escrito-

res. São nossos amigos, conselheiros, com-panheiros. Por isso mesmo, quando um de-les parte, deixa para trás um vazio. Aindaque suas obras estejam por aí, eternizadasem papel ou compartilhadas em platafor-mas digitais, sentimo-nos sós. Abandona-dos dentro de nós mesmos. Imagine, então,a reação dos leitores de Gabriel José GarcíaMárquez, morto em 17 de abril, aos 87 anos.Vítima de uma pneumonia – lutava contraa reincidência de um câncer que atingiaseus pulmões, gânglios e fígado –, o colom-biano terminou por sentenciar seus admi-radores à solidão, paradoxalmente pontu-ada pela companhia de seus livros. Num des-fecho típico de suas histórias, que apresen-taram a literatura latino-americana para omundo e firmaram as raízes do chamado ‘re-alismo fantástico’.

“Levo pela vida um enorme e formidá-vel baú de lembranças. E quando penso noGabo, confirmo a certeza de uma genero-sidade sem limites, de solidariedade silen-ciosa e absoluta, de lealdade sem fronteiras.De alguém que nunca foi movido por outraforça além da amizade e do afeto. Todos osseus livros são livros da solidão e da nostal-gia, e também da busca desesperada daquelasegunda oportunidade que ele imploravapara os Buendía de Cem Anos de Solidão. Tudoque ele escreveu é revelador da infinita ca-pacidade de poesia contida na vida huma-na. O eixo, porém, foi sempre o mesmo, aoredor do qual giramos todos: a solidão e a es-perança perene de encontrar antídotoscontra essa condenação”, afirma o jornalis-ta Eric Nepomuceno, amigo de ‘Gabo’ e quetraduziu para o português esta e outras desuas obras, como Doze Contos Peregrinos eMemórias de Minhas Putas Tristes.

Aliás, mais de 30 anos depois de tersido lançado no Brasil, Cem Anos de Soli-dão ganha uma edição especial, que acabade chegar às livrarias pela Record, editorade toda a obra do escritor colombiano noPaís. Esta edição virá com tradução intei-ramente nova, refeita pelo próprio EricNepomuceno. O texto original teve algu-mas modificações sutis feitas por GarcíaMárquez, que reviu a obra pela primeiravez desde o seu lançamento em espanhol,em 1967. Outra novidade é uma útil eprática árvore genealógica dos Buendía,cuja saga é contada desde a fundação da

Paulo entrou em campo com uma faixa quetrazia os dizeres “Obrigado Luciano – suavoz eternizou grandes momentos do tri-color”, enquanto o sistema de som do es-tádio reproduzia um gol decisivo de Raípelo Campeonato Mundial de Clubes. Ofi-cialmente, o campineiro Luciano do Val-le torcia pela Ponte Preta. Havia quem nãoacreditasse. Certo dia, antes de uma grava-ção nos estúdios da Band, cheguei a lheperguntar se era verdade. Com olhar can-sado, Luciano me respondeu: “Ultima-mente eu só torço para o jogo acabar logo”...

A Palavrados Esportistas

“Para mim, o maior narrador queexistiu nesse País. Um cara quemarcou o mundo esportivo comsua voz e com seus feitos quecontribuíram demais para ocrescimento do esporte brasileiro.Sempre fui muito fã desse cara eao longo de mais de 10 anos estiveao seu lado nas transmissõesesportivas da TV Bandeirantes. Odepartamento de esportes daemissora perdeu seu capitão.Perdeu o principal nome da casa.Espero que descanse em paz. Vouficar aqui torcendo para que Deusdê paz a seus familiares. O Brasilperdeu uma das maiores figurashumanas do jornalismo esportivo,mas ganhou definitivamente ummito. Obrigado Luciano!”NETO, EX-JOGADOR E COMENTARISTA DA

TV BANDEIRANTES.

“Hoje, o voleibol perde um de seusprincipais protagonistas, nossoquerido amigo Luciano do Valle,carinhosamente conhecido portodos nós como o Luciano do Vôlei.O esporte brasileiro está de luto”.BERNARD, EX-JOGADOR DE VÔLEI.

“Ele foi o grande responsável peladupla Hortência e Paula. Ele fezum estardalhaço tão grande que oBrasil passou a nos conhecer.Então, estou assim, com meucoração super apertado. Porquealém de ser um grande locutor,era um grande amigo”.HORTÊNCIA, EX-JOGADORA DE BASQUETE.

“Luciano participou muito da minhavida. Para mim é um dia muitotriste, quero prestar umahomenagem muito grande a esteícone do esporte brasileiro. Oesporte brasileiro deve muito a ele”.EMERSON FITTIPALDI, EX-PILOTO DA

FÓRMULA 1.

“Luciano foi um dos pioneiros.Minha lembrança do Luciano foio único gol que eu fiz em Copado Mundo. Foi ele que narrou,em 1982”.JÚNIOR, EX-JOGADOR DE FUTEBOL ECOMENTARISTA.

“Ele foi o maior narrador esportivo da tvbrasileira, mas sua maior qualidade aolongo destes anos todos foi nunca tervergonha do Brasil”.ROBSON RAMOS, RÁDIO E TV, GUARULHOS (SP).

“Ele popularizou o vôlei em pleno Paísdo futebol. E fez mais: levou umapartida de vôlei ao Maracanã, templomáximo do esporte bretão no Brasil.‘Criou’ o mito Maguila e inaugurou oestilo ‘narrador torcedor’, tão imitadohoje em dia. Uma voz que silencia e vaideixar saudades em todos os amantesdo esporte”.CHICO NETO, REDATOR, RIO DE JANEIRO.

“Esse sabia narrar! Valorizava todas asmodalidades esportivas. Tênis, vôlei,basquetebol, handebol, futebol feminino…esse é o cara que colocou todas essasmodalidades, entre tantas outras, na gradede programação da televisão brasileira.Uma perda muito grande!”LUIZ ALBERTO CASSOL, CINEASTA, SANTA MARIA (RS).

“Tinha 17 anos e nunca me esquecereidele narrando o basquete feminino.Acho que foi em 1990 ou 1991. Eu tinhaque ir para o colégio, mas naquele anonão perdi um único jogo de basquete dadupla Paula e Hortência, que ele narravacomo ninguém”.LEONOR MUÑOZ FERNANNDEZ, ESTUDANTE,SANTIAGO, CHILE.

“Minha primeira Copa do Mundo, queeu me lembro, foi a de 1982, comnarração de Luciano do Valle. Sãoinesquecíveis também suas narrações dovôlei masculino, Jornada nas Estrelas,

A Palavra da Torcida

Luciano do Valle apresenta o Show do Esporte.

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Renan e Bernard, basquete com Paula eHortência... Ele foi um gênio e umativista do jornalismo esportivo”.YGOR FIORI, ATOR, SÃO PAULO.

“Uma das melhores idéias de Luciano doValle foi a criação da Faixa Nobre do Esporte,que ofereceu uma excelente alternativano horário nobre, concorrendo frente afrente com a Rede Globo. Não podemosnos esquecer do Valle Tudo, um verdadeiromosaico de atrações, com jornalismo,esporte e entretenimento, e do Verão Vivo,muito marcante também, quando seulado apresentador fluía com maestrianas praias do Brasil, proporcionandograndes shows de artistas renomados,prestação de serviços, e o marcanteGarota Verão Vivo”.MÁRCIO ALESSANDRO FRANCISCO, FISCAL,AMÉRICO BRASILIENSE (SP).

“Não quero comentar se ele foi o maiorlocutor brasileiro e se já deveria ter seaposentado ou não. Quero lembrarcomo sua paixão em fazer acontecer meinfluenciou em toda minha carreiraprofissional e como sua certeza que aprática esportiva poderia ajudar os jovensa ter uma alternativa para uma vidasaudável e de melhoria social. Luciano doValle acreditava na criatividade do povobrasileiro. Ele sabia que se essa criatividadefosse canalizada em uma práticaesportiva, poderíamos estar entre osmelhores do mundo nesse esporte”.SIDNY SOARES, EXECUTIVO PÚBLICO, SÃO PAULO.

“Ele foi bem mais que um magníficonarrador. Ele foi um adorável sonhador”.LUIZ CELSO GALANTE, ENGENHEIRO, SÃO PAULO.

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Na despedida de Gabo,a companhia da solidão

POR PAULO CHICO

Escritor colombiano, que mudou o panorama da literatura latino-americana, Gabriel García Márquez parte aos 87 anos,deixando para trás pelo menos uma dezena de livros primorosos. E um vazio que, para seus leitores, parece não ter fim.

cidade imaginária de Macondo até asétima geração.

Na abertura, a apresentação de Nepo-muceno faz um passeio pela carreira literá-ria de García Márquez desde o início, quan-do ele era ainda um escritor desconhecidocom quatro livros lançados e uma ativida-de jornalística não desejada, até o nasci-mento do título que mudaria não só a suavida, mas toda a literatura do continente.O autor já vivia na Cidade do México ecomeçou a trabalhar em Cem Anos de Solidãodepois de uma viagem com a família ao bal-neário de Acapulco. “Muito tempo depois,ele diria que o livro tinha começado a ser es-crito em 1948, em longas tiras de papeljornal, em Cartagena das Índias. E quedurante dezessete anos havia passado pordiferentes versões, sempre com o título LaCasa, sem que nunca tivesse surgido a es-trutura correta, a atmosfera necessária, eprincipalmente o tom convincente da nar-ração, aquele mesmo tom com que sua avómaterna contava histórias inacreditáveis”,conta Eric Nepomuceno.

Nesta edição, o leitor conhecerá mui-to mais sobre a trajetória de Cem Anos deSolidão e a vida do autor. A passagem deGarcía Márquez pelo cinema, as amiza-des, influências literárias, o isolamentoimposto pelo gigantesco assédio proveni-ente de países do mundo inteiro. Antes dafama, a falta de dinheiro que o fez penho-rar primeiro o carro, as jóias e depois atéo secador de cabelo da mulher, Mercedes,e uma batedeira de bolo para reunir a quan-tia necessária para enviar os originais doseu livro ao editor em Buenos Aires.

“Cem Anos de Solidão foi lançado no dia20 de junho de 1967, numa edição inici-al de dez mil exemplares. Quando soubeda tiragem, García Márquez escreveu,preocupado, ao editor Paco Porrúa, dizen-do estar temeroso de ser o responsávelpor um encalhe de grandes proporções.Nenhum de seus livros anteriores haviavendido mais do que mil e poucas cópias.Porrúa tranquilizou-o, dizendo apostarque oito mil exemplares seriam vendidosaté dezembro. Rude engano: a edição es-gotou-se em quinze dias. Veio uma segun-da, de outros dez mil, que teve o mesmodestino. Começaram a chegar encomen-das de distribuidores e cadeias de livrariasde outros países: o México pedia vinte milexemplares, a Colômbia queria dez mil.Recém-nascido, o livro era um fenôme-no absoluto. A editora teve de suspender

a impressão de todos os outros livros ecomprar cotas extras de papel”, recordaEric Nepomuceno.

Até sua morte, a obra-prima de Gabo jáhavia somado mais de 50 milhões de exem-plares vendidos no mundo todo. Contudo,seria pecado reduzir a importância do es-critor colombiano, prêmio Nobel de Lite-ratura em 1982, a apenas este título. Ou-tros tantos, como O Amor nos Tempos doCólera; Crônica de Uma Morte Anunciada;Ninguém Escreve ao Coronel, Do Amor e Ou-tros Demônios e Relato de um Náufrago ga-nharam recentemente novas edições pelaRecord, e podem ser encontrados nas li-vrarias. A notícia da morte do escritor

excepcionais qualidades. Sua incansávelmaneira de apurar os fatos, abordandoângulos inovadores da notícia, fez a dife-rença para que se tornasse o que veio a serpara a imprensa de seu país: um nome derespeito. Quem conhece seus escritossabe o quanto foi importante na forma-ção do futuro escritor ter sido, antes, umjornalista. A simples observação dos títu-los de suas obras remete a manchetes dejornais. Em quase todos os seus livros, faz-se notar a presença do jornalista. “Minhaescrita é sempre uma espécie de literatu-ra jornalística”, reconhecia o próprio.

Para quem quiser conhecer em profun-didade a vida do colombiano, o melhorcaminho é mesmo a biografia Gabriel Gar-cía Márquez - Uma Vida, editada pelaEdiouro, em que Gerald Martin, profes-sor da Universidade de Pittsburgh, deta-lha o mapa da infância do autor e narra asua transformação em mito da literaturalatino-americana. Ao contrário de outrosgeniais escritores que, em vida, não foramreconhecidos, Gabriel García Márquezconheceu a glória quando por aqui aindapassava. Prova de sua importância foi aenorme repercussão de sua morte pelomundo afora. O Presidente Barack Oba-ma declarou ser fã do autor, orgulhando-se de possuir um exemplar autografado deCem Anos de Solidão. “O mundo perdeu umdos maiores e mais visionários escritores,um dos meus preferidos desde que eu erajovem”, disse o líder norte-americano. Es-critores brasileiros, como Luís FernandoVeríssimo, declararam que o autor colom-biano mudou a ótica do mundo com re-lação à América do Sul.

Mas, talvez, a melhor definição paraesta perda tenha sido dada por Eric Nepo-muceno. “Levarei comigo para sempre seucaminhar de bailarino caribenho, seu sor-riso de fulgores, sua entrega à vida. Suasolidão infinita, rompida apenas pelo afetodos amigos, escudada numa alegria traves-sa, e o Gabo querendo ser aquele pianistade fundo de bar, aquele que tocava apenaspara que os namorados se amassem mais.Esse vazio, levarei para sempre. Um vazioinfinito, do tamanho da minha dor”. Nesterelato, o jornalista e tradutor não está so-zinho. Há milhares, milhões de leitores deGabo, que seguem por aí, mais que acom-panhados, embalados pelas fantásticas his-tórias contidas em seus livros. Acredite:também eles nunca estiveram mergulha-dos em tamanha e irreversível solidão.

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fez disparar a procura por sua obra. Porconta disso, a Record executou um rápi-do esquema de reimpressão. A começarpor Viver Para Contar, o primeiro volumede uma série de três que o autor não con-seguiu concluir.

Gabo atuou também como jornalista,inicialmente para o jornal El Universal.Em 1949, vai para Barranquilha e traba-lha como repórter no El Heraldo. Nestemesmo período participa de um grupo deescritores para estimular a literatura. Em1954, atua como repórter e crítico no ElEspectador. Quatro anos depois, vive fér-til período como correspondente inter-nacional na Europa. Foi um jornalista de

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