José_Geraldo_Vieira_-_A_ladeira_da_memória__1_

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José G�raldo Vieirã A ladeira da memória Círculo do Livro

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  • Jos Graldo Vieir

    A ladeira da memria

    Crculo do Livro

  • Esta edio reproduz na ntegra o texto definitivo de A ladeira da memria.

    Pouco tempo antes de sua morte, ocorrida a 17 de agosto de 1977, Jos Geraldo Vieira entregava ao Departamento Editorial do Crculo do Livro os originais da obra, por ele corrigidos. O texto deste volume, portanto, contm todas as alteraes, acrscimos e cortes que o autor desejou realizar na obra, constituindo assim a sua verso ltima.

    O editor

  • l>l{lMEIRO CADERNO

    VIAGEM AO RES DA NOITE .I'IORANGELPERSCRUTA A MINHA

    ALMA - A LADEIRA DA MEMORIA - BODAS DE OURO

  • Taciturno e absorto, muito embora esteja bem junto de meu velho tio-av - um desembargador aposentado -, viajo rente janela do vago D do trem noturno, no ltimo banco do lado direito.

    Em dado momento aproximo o punho a fim de ver as horas, e ento l'ercebo que os olhos dessa criatura compreensiva se fixam no quadrantezinho do relgio que emergiu de sob a manga do meu sobretudo. Estendo-lhe cortesmente o antebrao para que veja melhor, e oscilamos de comum acordo nossas cabeas. Meu tio agradece calado mas atento, depois olha para fora atravs da vidraa fazendo da minha testa ala de mira; e por fim se acomoda, enquanto isso por duas ou trs vezes estudando o meu feitio.

    Percebo que vai travar conversa outra vez, porque uma fuso de analogias decorrentes do relgio, da escurido e da velocidade est a exigir dele um exerciciozinho verbal.

    E, de fato. Torna a ajeitar-se, a olhar para fora, at que diz no sei se para mim ou se para ele mesmo, com o queixo preso entre o polegar e o indicador - atitude antiqssima, dos tempos ainda de quando juiz :

    - No, a noite no isto s. Automaticamente perscrutamos a treva . Volto-me para

    ele, cruzo as pernas, adoto atitude dcil e respeitosa. - Esta escurido, que nos parece delimitada apenas

    porque lhe estamos no centro, mero fragmento sucessivo da treva que banha esta metade do mundo.

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  • Anu logo e tirei um cigarro. Ele, por cortesia, tentou procurar fsforos com que me servir, e prosseguiu :

    - Nunca fumei. O hbito de trazer fsforos comigo provm de exigncias de Maria Clara. Alm de obrigar-me a adquirir colees de charutos e a oferec-los s visitas, acha que, complementarmente deva estar munido sempre de fsforos. At nisso minha mulher exerce - pensa que exerce ! - influncia sobre mim e exorbita dessa autoridade que eu .. . tolero ! Sim, pois se no fumo! Trata-se, em ltima anlise, de me fazer ver que, se no fumo, toda gente fuma; logo, para que no cuidem que tal virtude ou defeito miserabilidade de velho, ela exige de mim esta e outras extravagncias sem nexo. Contumlias ! . . . Mas no era isso que eu queria dizer .. . Daqui deste trem assistimos da noite ao que dela se oferece intato, j que dentro do vago a luz a corri. Tamanha nos vai acompanhando, embora j esteja atrs mas no cesse de vir ainda e sempre de diante, que decerto quer que entendamos que apenas ela que viaja deveras pelas duas metades da Terra, em excurso circular.

    Nisto, como a dar-lhe razo, a locomotiva engasgou na velocidade, tal qual um andarilho que tropeasse. O vago deu forte solavanco, meu tio desembargador quase caiu, e seu chapu rolou para o cho. Tratou de agarr-lo; j o trem criara mpeto de novo, e tive que segurar bem meu companheiro de banco.

    Sem se perturbar e sem se dar por aplaudido, achando aquilo decerto eventual sofisma contra um homem de leis, meu tio se reacomodou, continuando:

    - No sei se me fao entender . . . Se queremos andar, camos. J a noite, todavia, anda muito certinha desde milnios. Isto , certinha relativamente. Na grande viagem ela tambm oscila um pouco na "bitola " por causa de folgas e apertos a que os sbios chamam nutaes e precesses . . .

    De fato, amos num embalo. - Ah ! A noite ! Vai atravessando estas bandas, des

    mesurada e compacta, preservando o que recebeu do dia, guardadora fiel da contingncia legal do tempo horrio . . .

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  • Sim, realidade opaca, no imvel nunca mas sempre contedo e medida, instante e sucesso, ela indiferente e cega, cega e inumana . . .

    Pensei comigo: " Meu tio deixou de ler os clssicos, anda agora a ler cincia e filosofia .. . "

    - Inumana, mas no desumana, Jorge ! Pelo contrrio : propcia at, j que em sua idealidade e transcendncia reposteiro para os que dormem e tnel para quantos buscam na viglia uma escurido maior.

    Parou um pouco de falar, olhou para os passageiros que dormiam e para mim to cheio de antigas insnias, como a ilus.trar os dois exemplos opostos citados, e acrescentou :

    - Sendo treva, nos livra de restries visuais, nos facilita a comunicao com distncias que o azul nos veda, nos povoa um cu que de dia montono . . . E ora nos expande quase infinitamente para fora de ns e da terra , ora nos recolhe e acalca para dentro dos nossos seres.

    Encarou-me com autoridade. Oscilei a cabea . Ele se deu por satisfeito, abanou a fumaa com um gesto. Prendi ento o toco do cigarro entre os dentes, ergui-me, abaixei o vidro, joguei fora o cigarro; ia soerguer outra vez a vidraa mas meu tio me pediu que a deixasse aberta, explicando:

    - No est frio. E, se algum reclamar, fechamos. Pusemo-nos a conversar com mais naturalidade (o aces

    so de erudio de meu tio ainda no amainara), ficando voltados l para fora, para a noite, sentindo-a, na verdade, segundo Wundt e Dietze (meu tio voltara carga, apoiando-se agora em autoridades) , passagem opaca, indiferente e cega, inumana mas no desumana e nem mesmo neutra, visto nos ser propcia. Tanto que, para estabelecer uma reciprocidade, lhe citei umas consideraes de diferentes poetas mundiais definindo a noite. Para que fui fazer isto? Meu tio enveredou logo para o assunto que desde o comeo da viagem vinha premeditando:

    - Nenhuma dessas definies serve para o seu caso especialssimo? Atenha-se ao que dela disse o poeta - que

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  • voc tanto ama - quando a cognominou de " a domadora hipntica das coisas que se agitam muito"!

    Na verdade, meu tio queria fazer tempo enquanto no atingia Volta Redonda onde ia visitar o filho, engenheiro de altos-fornos. No tendo conseguido leito no Cruzeiro, visto haver resolvido a viagem j de tarde, e tendo coincidido essa viagem com a minha resoluo de ir aplacar os nervos numa fazenda entre Resende e I tatiaia, principiava agora a querer abordar " certo assunto" desde que saramos do Rio, pretextando que eu tinha de tolerar a lenga-lenga dum velho a fim de no acabarmos dormindo ambos de boca aberta, hediondamente, como acontece a todos os passageiros do mundo em todos os trens noturnos, j que apenas os previdentes e cautelosos acabam usufruindo num leito as prerrogativas de saberem na quinta-feira o que faro no sbado .

    - H quanto tempo esteve voc nessa fazenda? Disse-lhe. Ante a data to distante e antiga, indagou : - Informou-se ao menos se tal fazenda ainda existe? Expliquei-lhe que no se tratava de ir ficar uns dias

    numa fazenda, e sim de averiguar em que estado ela estaria, rematando mais ou menos assim o meu intento:

    - Trata-se duma idia que me veio depois qoe lhe escrevi a ltima carta. Se at essa fazenda j no existe mais, for uma tapera, ou um grande parque moderno agrcola, talvez eu me possa certificar ento do sentido do verso desse mesmo poeta que o senhor citou ainda agora : " O fim j no haver o que esperar".

    - Ahn ! Est querendo agravar o seu pssimo estado de alma, ou arquivar um passado? Hein? ! Olhe bem para mim, e responda!

    Mediu-me, a ver meu desnimo, passou o brao por meu ombro, puxou-me com efuso de bondade, valeu-se da sua experincia de vida e considerou :

    - Desde muito voc j devia ter feito isso. O fato de ter vivido no interior estes anos no significa que haja descansado . Muito pelo contrrio : safou-se do bulcio das cidades mas se entranhou no torvelinho de si mesmo. Vive tra-

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  • duzindo dia e noite para editoras, compondo artigos e ensaios para jornais e revistas, afastado at mesmo dos seus romances programados . Por ltimo, abandonou a profisso liberal para cair num artesanato de escritor estipendiado. Ainda por cima um solitrio, no se abre com ningum, vive s voltas com um sentimento irremissvel.

    Coou o queixo, franziu as sobrancelhas. - Que enigma o aconselhou ir a essa fazenda? Excusa

    do dizer-lhe que vivo preocupado com o seu feitio, pois sempre que lhe fao perguntas no por curiosidade mas para apor a minha experincia humana, voc ergue a cabea de dentro do seu marasmo e em seus olhos s vejo atarantamento. Quer saber duma coisa? Menti-lhe hoje quando lhe disse que Roberto, em conversa pelo telefone, instara para eu ir passar o fim de semana em Volta Redonda. De fato, ele anda a insistir comigo e se trata positivamente duma pes soa capacitada para mostrar-me o que seja deveras Volta Redonda. Eu, porm, se resolvi viajar hoje e neste trem, foi porque voc me disse, no Banco Boa Vista, que voc fora retirar dinheiro a fim de passar uns dias numa fazenda para l um pouco de Resende. No decidi absolutamente por causa de Volta Redonda e sim de voc. A cara com que me comunicou sua deciso foi suficiente para eu inventar logo aquela " coincidncia ", aquele telefonema do Laura, irmos depois juntos at Exprinter e contentarmo-nos com assentos numerados j que no restava leito em noturno nenhum. Jorge, no nego que voc por diversas vezes se tenha aberto comigo. A sua l tima carta, por exempio, quase uma consulta. Mas lamento que tais provas de confiana tenham redundado em mera verificao dum estado onde minhas consideraes tm sido de efeito nulo. Morreu-lhe determinada mulher, que na sua vida significou um pice de emoo e de beleza. Hoje, mais de quatro anos depois disso, aqui estamos juntos algumas horas . Ser que ao menos no conseguirei dar-lhe um conselho vivel?

    Observou minha fisionomia, como a verificar se malograria ainda desta vez.

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  • - A que se resume o seu caso? No seu entender tamanho que no passvel de resumo, quanto mais de soluo. Vejamos : ela morreu, s vindo voc a saber dessa morte meses depois, visto estar ausente no interior de So Paulo para onde fora por injunes inerentes a essa paixo recproca. Tal morte no redundou em eplogo do seu caso, antes o exacerbou, como era natural, deixando-o em tal desespero que, como voc se esquivasse a quaisquer desafogos e comunicaes, nos deixou bastante apreensivos . Ainda bem que seus pais no perceberam a causa secreta. Mas Germana ficou ciente de tudo. A famlia isso : todos nos queremos um bem louco, todavia escondemos dela a nossa alma atulhada de tantos mistrios que, sendo pais, filhos, irmos, na verdade somos estrangeiros at dentro do lar! Isolou-se voc do mundo, desde 1 940, quando descobriu que essa criatura estava tuberculosa e com o " passado " permanentemente cabeceira. Foi pois para a Alta Paulista, acabou embrenhando-se no interior. Quando eu soube, porm, que voc emendava acol o seu livro, disse comigo: " Bem, o Jorge est construindo o seu farol l nesse litoral de desvalimento ! " Em meados de 42 voc veio ao Rio e gostei de ver que cobrara certo nimo. A tal criatura estava bem -melhor, praticamente boa, e ia solucionar o seu impasse. Sucedeu, porm, que, ao voltar em fins de 43 , voc soube nem mais nem menos . . .

    Abraou-me com o brao direito, retirou-o logo, prosseguiu :

    - . . . que ela havia morrido cm novembro. Foi quando voc, num estado miserando, me contou tudo. Dei-lhe ento uma senha para comportar-se nessa descida aos infernos: fazer do seu desespero uma autntica superao em prol mesmo de sentimento to belo e trgico . Isolou-se voc ainda mais de tudo, da realidade dos seus, disposto a cumprir o postulado de Eckhart : " Despojar-se de todo o QU", ao invs de extrair dessa angstia uma sublimao.

    Deu-me um tapa no joelho, continuou : - Ainda assim, confiei em voc, porque sendo um

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  • cronista-mar, desta poca do mundo, teria por si s e atravs dum descortino - que a oniscincia dos romancistas -que acabar chegando concluso lcida de que ao longo do litoral da finitude h um promontrio com um farol. Que diabo ! Pois se at eu, que sou velho, leio, entendo - e aprovo - Camus, por exemplo, como que um sujeito que se abalana a nauta nesta hora atual no haveria de saber que h que arrecadar no a nau j naufragada, mas o corpo, j que existe a . . . natao? Mas, como agiu voc? Rasgou, ou queimou, nem sei direito, outro livro em que trabalhara desde 1937 at meados de 1942. Internou-se em meados de 1944, durante meses na selva, beira do Araguaia, depois voltou para Hacrera, por l ficou, marasmado, sem escrever a ningum, e s apareceu no Rio em junho de 1 94 4 ! Bem, os aliados desembarcavam na Normandia, e voc desembarcava no Aeroporto de Santos Dumont!

    Olhou-me de alto a baixo, por entre as sobrancelhas franzidas.

    - Tratei logo de estud-lo. Sim, analisei-o logo para o . . . prognstico . " Tempo bom, mas ainda com muita n-voa . .. seca " , disse eu . Para comear desandou voc a brigar com a sua irm Germana. E, por qu?

    Sorri, lembrando-me. - Porque essa grande criatura sonegara da sua mala

    o original do romance, escrevera editora - com a qual voc j tinha um contrato, seu paspalho ! - e remetera o livro que . . . , louvado Deus, sara com xito ainda em 1944 . No tardou que voc andasse por So Paulo, solicitado pela fama do livro. Fica voc no Rio uma temporada, eu consigo entusiasm-lo at com o boato que depois foi confirmao , do atentado a Hitler, e juntos , em mapas, acompanhamos ambos o avano aliado Europa adentro - com a ajuda nossa na Itlia, cumpre no esquecer, sim, senhor, o que lhe estou dizendo! - e me alegrei todo ao ver seu interesse despertar. Ora muito bem ! Mudara o mundo para melhor. Se mudara ! Seno, vejamos : conferncia de Casablanca, ocupao de Trpoli, derrota alem fragorosa em Estalin-

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  • grado, desembarque na Siclia, destituio de Mussolini . . . Depois? Que houve depois ? Aquela srie de vitrias espetaculares, de envolvimento obstinado e cauteloso. Orei, Salerno, armistcio italiano, Badoglio, conferncia de Teer, a epopia de Nettuno, a conferncia de Brazzaville, a libertao de Sebastopol, ns em Monte Castello, a queda de Roma, a abdicao do reizinho bigodudo, o desembarque de voc no aeroporto voltando vida donde fora escorraado simbolicamente em Dunquerque !

    Esfregou as mos, bufou, empertigou-se. - Acompanhei-o ao aeroporto vaticinando-lhe insur

    reio, para muito breve, em Paris. Foi, ou no foi? - De fato, tio Rangel. E depois, na carta em que tra

    tava do meu livro pacientemente relido, o senhor confirmava que seus vaticnios estavam realizados.

    - Pois ento, rapaz? ! Leclerc no entrou em Paris no para libert-la mas sim para ver o que o povo, o povo, homem! tinha feito aos nazistas nas praas pblicas? !

    Deu um grunhido, no sei se tosse ou brado gauls. - Eu, com o corao na boca, esbofando-me, a seguir

    o general Patton na Frana e o general Clark na Itlia, atolando-me no barro das ilhas do Oriente ! E vc, meu galhardo, a escrever mais outro livro. Hein ? ! . . . J no lhe dissera eu, muito antes, tantas vezes, que sua literatura o salvava ?

    Ante o meu feitio de dvida, reagiu reflexamente. - Salvava e salvar. Passou a freqentar a casa de

    minha filha em So Paulo, quase mensalmente saindo de Hacrera, apareceu mais freqentemente no Rio, deu em colaborar em jornais, irrompia em casa de sua me com telas, presentes, livros sobre arte, acompanhava Germana a passeios, teatros, concertos at ela se casar, ouvia msica, tomava banho de mar, fazia roupa em bons alfaiates . Et ccetera! Enquanto isso os Blcs libertados, a Rssia recuperando suas cidades, Roosevelt reeleito ! Que susto a estuporada tentativa de ofensiva alem nas Ardenas ! Fiquei que nem um leo! Cai Budapeste, os ianques repetem acol no Oriente, em Okinawa, o arrojo da banda de c . . . Estamos

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  • j recapitulando 1945, rapaz ! Morre Roosevelt. J a ltima fotografia que v i del e no cinema me confrangeu o corao . . . Aquela capa p,11dcndo dos ombros ! Aquelas olheiras . . . Pouco depois M11ssolini dependurado numa trave, pelos ps, para escanncnto macabro aos aventureiros; menos de uma semana dtpois Hitler, confinado num poro, acuado como um chaca l , se abate! Maus ventos espalhem suas cinzas ! Ah! Livrou-se o mundo de espcimes que parecia incrvel pudessem proliferar no Ocidente, neste sculo ! Em agosto, a bomba atmica sobre Hiroxima. Em setembro, a capitulao japonesa.

    Tio Rangel soprou para fora todo o ar residual do peito, como um desafogo.

    - E quanta coisa se renovando depressa , como uma primavera ! A liberdade voltando qual rajada de ar novo! Lembra-se voc dos nossos passeios pela cidade, por tudo quanto era bairro, quando aqui depois tambm ns samos de contrafaes ditatoriais, dips, endeusamentos, bambochatas, arruaas? Lembra-se, Jorge?

    Sorri, com o olhar distante. - Eleies marcadas. Muros, paredes, andaimes, mu

    ralhas, monumentos, casas, todo um letreiro denso de cartazes! Parecia que se estava forrando a cidade ! Giz e piche! Tabuletas, painis, retratos, nomes, partidos, comcios, volta Constituio, liberdade de presos polticos, regresso de exilados! Dizia-me voc que em So Paulo era a mesma coisa, o mesmo entusiasmo, o mesmo mpeto. Mas voltemos a voc. Seu livro lhe forneceria uma boia atirada. Uma nova criatura procuraria entrar em sua vida, tonificar seu corao . Resumindo : voc sabe, inteligente como , e experimentado como ficou, que no se pode existir sozinho. Ns coexistimos. Somos gregrios . . . Meteu-se voc a estiolar-se l na Alta Paulista. Mas o hausto do mundo em novo solstcio vernal tinha que arejar almas da categoria da sua, meu caro Jorge ! No mesmo?

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  • Como me olhasse muito, aguardando resposta, sorri, complacentemente.

    - Bem. O tempo passou. Aqui estamos neste trem. Eu vou a Volta Redonda . Voc vai a uma fazenda onde, no perodo ardente de sua paixo, foi feliz com certa criatura . .. E vai, por qu? Escrpulo puro, embora cuide ser por motivo de saudade. No lhe nego a saudade. Tenha-a sempre, enquanto vivo for, e ser pouca, como turbulo a um ser to extraordinrio! Mas lhe garanto - eu conheo sua alma -que voc vai por mero escrpulo.

    Passei as mos pelos cabelos e tio Rangel enfezou-se: - Cuidava voc, ento, que neste mundo no havia

    mais nenhuma criatura que captasse o seu sos? Jorge, em todo sofrimento, em todas as perplexidades solitrias, sempre, sempre, embora nos cuidemos, resignados, mesmo voluntariamente, h um instinto reflexo de socorro . E h sempre " escutas" capazes de captar essa nsia. Agora, voc se est debatendo (porque leal e nobre, sensvel e magnnimo) num grave problema de conscincia . Cuida que quem, vindo do deserto e se abeirando da cisterna, ao dar com as sandlias da outra, no tem o direito de cal-las. Imagina que quem se aproxima da catacumba, ao deparar com a candeia votiva largada no degrau, no tem o direito de acend-la .

    Calou-se, estirou o corpo, sentenciou com seu vozeiro de magistrado :

    - Essa outra criatura, vinda do oas1s, trazendo os mesmos anelos de solidariedade, chega diante do altar revirado onde jaz ainda o vaso de ouro. Quer roubar o vaso sacrossanto? No. Apenas quer com ele correr fonte prxima, ench-lo e assim reanimar quem est ali no cho. Sabe voc muito bem - pelas caractersticas que me deu da alma dessa nova criatura, pela inteligncia e intuio que a fizeram abeirar-se e guardar mistrio e recato - que tal ser, prmio autntico de Deus, no intenta, curiosamente, nenhuma aventura. No esse o escrpulo de voc. Antes pasma em ver surgir-lhe na vida ser to idntico e to diferente, to gmeo e to antpoda da que deixou as sandlias e a candeia . Seu

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  • escrpulo, seu caso de conscincia cuidar que seria um sacrlego, um ingrato, se anusse aproximao de tal catecmena . Ser possvel, Jorge, que voc tenha ficado um desajustado, como esses infantes da Espanha e da Rssia, pssaros tontos, tangidos pelos bombardeios e fuligens, que j no vem o ninho, o pomar florido, nem ouvem mais o sussurro das fontes?

    Olhei-o muito, pois aquelas palavras no eram propriamente dele, e sim trechos de cartas recentes.

    - Pois lhe digo que em verdade voc comete um erro afastando-se para o largo, pois acabar acontecendo, hediondamente, o qu ? : como o suicida em movimentos de desespero, egresso do mundo e de Deus, voc faz perigar quem avana mais, mar adentro para salv-lo.

    Olhou-me esbugalhadamente, com a fisionomia em reao de pasmo.

    - Mar adentro, por qu? J no se trata de voc. Trata-se de quem no o considerava nufrago mas sim, fora da terra incendiada, tangido pela solido e to longe indo que chegava a uma ilha, a de Oggia. Est reparando bem? Estamos ainda em Homero ! Em plena glria do Egeu ! E tanto isso verdade, que essa criatura se assina, na sua correspondncia, Calipso ! Que criatura magnfica, sensvel e conhecedora do mistrio eficaz dos smbolos !

    Encolheu-se em atitude de expectativa, pediu: - Fale-me dessa criatura! livre, ou prisioneira, co

    mo a outra? Vendo-me calado, mudou para outra variante de assdio. - Conhece aquele vocativo de Novalis? "s tu,

    morte, que nos cures de nosso sofrer" ? Para a outra, a que morreu, a morte acabou sendo isso, misericordiosamente. Mas voc mesmo me disse, no seu perodo "negro " , que "morte tambm quando algum vive e no o sabe" . Pois Jorge, voc est vivo. Quer permanecer morto sem saber, j que vivo est e no sabe? Compreendo o que se passa na sua alma. Est zonza porque ambas essas criaturas, a morta c a nascida, confluem no portal da sua perplexidade, como

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  • dois fenmenos aparentemente opostos em ao, quando na verdade um continua o outro, so idnticos em essncia. Cabe aqui uma palavra demasiado erudita, mas a nica que serve: "hipstase " . Uma indo e outra chegando. Ora, que isso? Os pilotos se revezando no castelo da proa ! Como um ex-moribundo no deserto, voc reabre os olhos e v uma criatura apanhar as sandlias que a outra deixara no rebordo da cisterna. Que deseja essa que voc cuida intrusa? Calarse para adivinhar assim qual o percurso por onde levar voc que precisa urgentemente de osis. Como catecmeno na catacumba para onde se arrastou aps o martrio incompleto, ainda com os olhos fulgurados por os haver, l da treva, ao recobrar nimo, volvido para a luz da porta, v voc a recm-chegada apanhar a candeia e principiar a ench-la com o leo que trouxe no odre. Quer ela acender a lmpada para qu? Para poder soergu-lo, rapaz! Cado na duna sente duas mos o segurarem pelos ombros, pois a estrada passa l em cima e voc caiu c embaixo . Ou, como o adolescente que se perdeu na travessia e que o mar levou deriva, aparta voc a uma ilha, v uma gruta a livr-lo do sol e do vento, e foge para o litoral, quando l dentro est o blsamo, a sombra. , ou no isso ? Por que essa carranca? Esse recuo para a vidraa ? Escandalizei-o, ou atingi o mago da questo?

    Reacomodou-se no banco, satisfeito e ofegante, como se me houvesse provado um axioma. Sua cabea venervel de velho Platino estava estupenda, batida de luz e de sombra ali no vago.

    - Estes casos, disse-me voc em sua carta, e eu concordo, lhe advm em conseqncia da sua literatura. Certas leitoras vo alm dos personagens e enredos : atingem o autor, processo alis mais lgico . Querem o criador, bem mais do que as criaturas. Ora, sendo os seus romances de pauta lrica, o carisma que originam representa atrao. Elas averiguam que a similitude de suas almas, problemas, anelos e dramas com as almas, problemas, anelos e dramas dos personagens dos seus livros, as coloca, primeiro, numa atmosfera idntica ; segundo, que j que voc criou tudo isso e tudo

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  • isso encontra representao real em suas vidas, tanto os personagens, como o autor e elas - certas leitoras -, so dum mesmo cl especfico. Da, a conseqncia : tais leitoras se cuidam tambm personagens e criaturas suas . Mas, vamos adiante : todos os personagens essenciais dum romancista so de certo modo ele prprio . Todos os problemas, anelos e dramas que escreve (ou descreve) so catarse. Estabelece-se ento uma afinidade global . Digo mais : se essas criaturas at ento no achavam a quem confiar certos estados de alma, conscincia, sensibilidade, esprito, no sentido de compreenso, j agora sabem a quem consultar. E isso com uma confiana estribada em documentao exata : o livro.

    Reparando no meu ar dubitativo, reiterou : - Sim senhor ! Com uma confiana estribada ! No seu

    caso, por exemplo, j ficou provado pelo menos duas vezes que certas criaturas se sentiram irms de determinadas personagens suas quanto a ndoles e problemas . Acorreram para voc e, de personagens, se incorporaram a criaturas suas, atradas por uma afinidade rigorosa, muito mais do que mera analogia . A primeira que assim lhe surgiu da vida para o romance foi to real e humana que nasceu, viveu, amou e morreu . Nisto que ela foi exata, completa. Sentiu voc o vcuo insuportvel, incrvel, porque como criador voc perdurou ao passo que ela, como ser humano, acabou se extinguindo. Em vo voc sempre que vem ao Rio a procura nos stios onde outrora se viam. Copacabana, Avenida Niemeyer, Barra da Tijuca, centro da cidade, caladas, cinemas, lagoa Rodrigo de Freitas. Paineiras, Paquet, Petrpolis. Consegue mesmo ressuscit-la, mas . . . com ausncia de nitidez de rosto, isto , sempre com a mscara, a vernica. Ora, claro que as criaturas nascem e morrem e que o criador continua, para criar outras. Voc resolveu descer condio de criatura tambm. Mas sua descida no pode representar uma submisso total ao status de criatura; um simulacro da Paixo . Isto , o criador vindo como remisso eventual . Andou voc estes ltimos anos extraviado no Limbo para onde descera . Conseguiu afinal emergir c para fora, para o mundo, para

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  • a vida, j que o outro lado de l, a eternidade, nos insonoro e imperscrutvel. Malogrou voc em querer seguir as pegadas de quem ultrapassou a fronteira . Por isso temi durante muito tempo por sua integridade, muito embora perante o mundo voc parecesse um indivduo normal, sensato. Compreendo que um golpe como o que recebeu prostrasse durante muito tempo um homem da sua sensibilidade. Mas a sua funo de romancista diz respeito ao tempo. Aqui no mundo pode voc evocar, transubstanciar, quantas vezes queira, a criatura que j no existe. Use e empregue os seus atributos evocando com sucessivos heternimos a que j no tem nome humano e sim atende a vocativos como os que nas litanias so reconhecimento simultneo de beleza e virtude.

    Seguiu com o olhar a passagem de pessoas que desciam numa estao e me aconselhou:

    - Deixe dessa incongruncia de visitar os locais onde antigamente vocs se encontravam, pois nisso imita o autor indo de dia ver o teatro vazio e escuro, o palco e a ribalta, os bastidores e cenrios dum espetculo que certas noites foi empolgante. Largue de vez essa nsia pericial de procura de testemunhos, indcios e provas cronolgicas. No limite tamanha criatura a esquemas e diagramas, restringindo-a a um passado. Valha-se duma outra espcie de sabedoria: a imanncia obtida poeticamente. S pela poesia poder voc fazer sobreviver sem equvoco nem mistificao aquela que cruzou um dia a fronteira estranha. Jorge, o Estar-Aqui um desvalimento e s os romancistas que tiram dessa averiguao um sentido que no o das carpideira . Mas se neste seu caso que se desarticulou em 42 e explodiu em 43 , voc se subordinar ainda, agora e sempre, a uma saudade de homem por uma mulher, que redundar? Redundar a verificao lancinante dum fato irremissvel. Ora, essa lgica o por sempre na situao de vtima tambm. Resta perante seus olhos, seus sentidos, sua alma, o mundo onde voc est, onde voc ficou . Por que no considerar mais isto aqui vida, mundo? Lembra-me voc o indivduo que j no considera templo uma antiga nave s pelo fato dum governo laico a haver transfor-

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  • mado em museu. Transfigure este mundo atravs do otimismo, como aquele mendigo que quando amos entrando hoje no Banco Boa Vista nos saudou e agradeceu nossa esmola dizendo : " Bem-vindos sejam a esta nossa casa . . . "

    Olhando a estaozinha que o trem deixava, perorou : - O mais estar errado . A percepo real s possvel

    no crebro atravs dos sentidos. A percepo analgica -no caso a saudade daquela primeira criatura - tem que ser sempre um processo apenas mental. De verdadeiro s ficou voc como parte desta simetria que se chama amor, senti menta recproco por excelncia. Logo . . . se desarticulou o binmio. Voltar, ela no volta. Morrer voc tambm, para a hiptese de recuperao e prosseguimento alhures, problemtica quanto realidade e conseqncia , j que nada lhe prova que o destino ambivalente daqui de baixo possa ser continuado no alm. Voc no dispor duma garantia de reencontro num outro plano. No estou absolutamente negando esse outro plano nem mesmo esse reencontro, mas sim estou esclarecendo que no depende de voc nem de nenhum recurso esotrico a continuao do amor acol com as mesmas caractersticas daqui. Pelo menos tal encontro pode no ser dentro de atribuies como as que aqui decorreram de critrios morfolgicos e vivenciais, mesmo porque voc h de sempre insistir em recuperar essa criatura atravs da lgica dum passado.

    Abrindo desmesuradamente os braos, perguntou : - Qual ser ento o recurso vlido? Contentar-se com

    o que lhe foi outorgado a prazo fixo mas com efeito permanente, procurando no mais uma promulgao na pauta da realidade e sim na da transfigurao. Decerto todas estas reflexes que lhe estou fazendo j lhe tm acudido como ato de viglia desde que voc comeou a sentir a impossibilidade duma opo sua. Qual, ento, a opo a aceitar, j que a sua impossvel? Antes de mais nada, levantar-se. Voc caiu estatelado. Mas, por felicidade, no somente tem pernas de homem como asas j que romancista, categoria esta de locomoo possvel mesmo entre escombros . Evidentemente o

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  • estado de sua alma, agora, Jorge, no o mesmo de 42 e de 43. Mudou e melhorou muito. No lhe ofereo uma soluo. Essa lhe ser dada por voc mesmo. O romancista salvar o homem. As sandlias da criatura que se foi pelo deserto, a lmpada da criatura que sumiu na catacumba, outra criatura do seu mundo de romance e de criao recolher da beira da cisterna e de cima do patamar. Para tanto urge que voc suba a ladeira da memria, veja a que ficou reduzido o desvo do passado, e resolva reinserir-se na existncia autntica.

    II

    Sorriu, fechou os olhos, ficou algum tempo assim enquanto limpava o rosto com o leno ; depois me perguntou com um tom ameno de palestra :

    - Conhece bem So Paulo? . . . No, no me refiro ao apstolo . . . Conhece bem a cidade de

    ' So Paulo?

    Assim, assim. O centro e alguns bairros. J ouviu falar num trecho antiqssimo, o Piques ? Sei onde . A Baixada do Piques, hoje Praa da Bandeira, coisa

    de sessenta anos antes, era composta de duas partes: o Largo do Bexiga, que tambm foi chamado do Riachuelo, e o Largo do Piques, sotoposto ao pequenino Largo da Memria. Ao Largo do Bexiga iam ter a Rua do Bexiga, hoje Santo Antnio, e a de Santo Amaro, bem como a travessa que depois viria a chamar-se Rua do Ouvidor, por onde se alcanava a Rua Nova de So Jos (a Lbero Badar de hoje, no sabe ? ) . Quanto ao Largo do Piques, para ele desciam a s ladeiras de So Francisco e do Ouvidor, a Rua Santo Antnio, depois, do outro lado, a Rua Formosa, a Ladeira do Piques, hoje Rua Quirino de Andrade, e a Ladeira da Memria. Dir voc:

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  • "I: a que vem isso? " Tenha um pouco de pacincia. Ns, 1s velhos - e lembre-se que estou com mais de setenta anos

    -, cada vez tendemos mais a explicar nossos pensamentos por meio de mapas ou desenhos, ao percebermos que de nada valem anexins e mximas. Ora muito bem : tem voc diante dos olhos essa confluncia de ladeiras e de becos descendo dum anfiteatro para uma baixada cortada pelo Anhangaba. Transporte-se a um So Paulo de seus bisavs, de antes do Viaduto do Ch. De bem antes no do atual e sim do anterior que tantos aborrecimentos causou baronesa de Tatu, viva do baro de ltapetininga, que era ento dona de todll: uma imensa chcara por ali. Veja um Vale do Anhangaba antigo, elimine da sua viso a moderna Avenida 9 de Julho, o atual parque e a atual Avenida Anhangaba, imagine um Piques rodeado de casas baixas marginando as chcaras do conde de Prates, do baro de Ramalho e do Martinica. Meu pai, quando eu era menino, saa de casa, andava, voltava, dizia: " Estive na Rua do Prncipe, comprei cigarros na Rua do Jogo da Bola, tomei um tilbury para ir at ao Largo dos Curros, depois subi a Ladeira do Acu, passei diante do ElDorado e do Politeama, estive dando um dedo de prosa no Largo do Rosrio diante da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos, de l fui tratar dum negcio com um caixeiro viajante no Largo da Forca, desci, botei umas cartas no correio no Largo do Tesouro, atravessei o centro, desci para o Piques, fui ver meu compadre Valria cm sua casa no Largo da Memria" . Ora, muito bem. Eu, por minha vez, no sei quantos anos depois podia dizer a mesma coisa, empregando outra nomenclatura. Isto , podia dizer: " Estive na Rua Quintino Bocaiva, passei pela Rua Senador Feij, tomei um txi e fui Praa da Repblica, depois subi a Avenida So Joo, passei diante do prdio da Recebedoria de Rendas Federais, quase todo demolido j, estive em conversa com uns amigos na Praa Antnio Prado, perto do City Bank, fui a uma companhia de seguros, na Rua Anchieta, cheguei at a Liberdade para encaminhar um negcio, desci, atravessei a Praa da S, rumei para o Largo

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  • So Francisco, desci, atravessei aquele pandemnio cheio de automveis e nibus, consegui escapar ileso, subi a Ladeira da Memria para rever a ex-casa de meu sogro, o antigo fazendeiro coronel Valrio " . O mesmssimo percurso, meu caro Jorge, mais de cinqenta anos depois da suposio ante rior. Sim, h alguns anos passados, por ocasio das minhas bodas de ouro festivamente terminei ali o meu dia. E todavia no me considero um fantasma, sou um ser vivo, contemporneo do avio, do rdio, da II Grande Guerra, acabarei, e aquilo acol, aquele cho de nveis to diferentes perdurar como base de coisas sempre e sempre renovadas e renovveis.

    A porta de trs do vago se abriu, entrou com o empregado do carro-restaurante uma golfada de ar frio. Meu tio Rangel, com aquele seu feitio de prelado, achou melhor que fechssemos a vidraa. Posto o qu, tratou de confluir com as mos e os pensamentos para o centro mesmo daquela espcie de aplogo.

    - H cinqenta e poucos anos, eu sa dum sobrado da Ladeira da Memria, para casar-me na Aparecida. De l segui para a lua-de-mel no Hotel das Paineiras, no Rio de Janeiro, cidade onde viria a ser juiz e depois desembargador. Nunca mais voltara ao tal sobrado da Ladeira da Memria, porque das inmeras vezes em que de ento em diante estive em So Paulo, primeiro na outra residncia de meus sogros, depois sucessivamente nas de minha filha e de meu filho, permanecia nos Campos Elsios, e a seguir em Higienpolis e nas Perdizes. Ultimamente, no Jardim Amrica. Pois no que nas antevsperas das nossas bodas de ouro, minha mulher, que quanto mais se veste segundo os ltimos figurinos mais parece baronesa ou embaixatriz, me obrigou a passar com ela pela Ladeira da Memria, que absolutamente no era itinerrio obrigatrio, tendo-o eu feito por imposio e extravagncia de Maria Clara? evidente que, diante do antigo sobrado imperial (uma aberrao encravada entre prdios medonhos mas no antigos, s existentes direita de quem sobe), minha mulher parou, toda emocionada; e mesmo depois, quando j estvamos no passeio de Xavier de

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  • Toledo, ainda se voltou, a observar e a fazer comentrios. I >t-pois, diil"anlc o ch no Mappin, me confessou : " J passei !Hll' L v:r;is vezes, ontem de tarde com o Lauro e hoje de 11 1
  • - So capazes de tudo. Ah! As mulheres! Em se tratando do ridculo dos maridos, ento aguam seus caprichos demoniacamente ! Mentira dela . O que desejava era "romance" aos sessenta e nove anos! De sbito, como uma serpente, me engalfinhou, me puxou para dentro da entrada do casaro onde noivramos. Ainda vi o anncio do tal cerzidor relmpago, isto , eltrico, com pedacinhos de casimira puda, queimada e depois urdida de novo, perfeita. Tal smbolo de pacincia me serviu de disciplina e resignao. Ento, parado no escuro saguo, deixei que minha mulher matasse as saudades da escada, do tempo em que descia comigo de mo dada quando eu, estudante de direito, me ia embora de noite. Nisto o homem da camisa listrada apareceu com ar intrigado, observou-nos, veio para a porta e, como no nos visse subir nem sair, criou coragem e indagou se queramos alguma coisa, se estvamos procurando algum. E, concomitantemente, um japons da oficinazinha de cerzidor apareceu com um riso melfluo, as mos juntas, todo um raquitismo oriental de mesuras e zumbaias.

    Fez ar de reao. - Travei Maria Clara pelo brao, disse ao cafuzo que

    no queramos nada, e me voltei para sair, quando minha mulher perguntou ao japons: " Conserta gabardine tambm? ! " " Tudo, tudo! Casimira, flanela, sarja, tropical, tudo tudo mema coisa ! " , disse logo o nipnico com timbre de ventrloquo. Maria Clara quase lhe deu parabns . Depois se voltou para o homem da camisa listrada, perguntou se ele era o zelador. Imagine voc, " zelador " num cortio ! No, no era. Mas enfiou dois dedos na boca, voltado l para cima, para o segundo lance da escada, e soltou um assovio de arrebentar tmpanos de paquiderme.E disse, complementarmente : " No, madama . O encarregado o Lula Canind " . Claro que com aquele assovio-senha, o tal Lula se despejou pelas escadas abaixo e se perfilou todo, perguntando: " Vossuria manda arguma coisa? ! "

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    Era notvel a voz de tio Rangel, reproduzindo a cena. - Minha mulher placidamente o olhou, insensvel e

  • resistente ao nperto de minha mo em seu brao, disse com ti m hrc de matrona em excurso pela Cidade Baixa, na Bahia: "/\h! Muito hem, ento o encarregado disto aqui, no 1: . . . " "As suas ordes ! " Nisto vi o tal da camisa-de-meia s11hi1 c explicar para uma mulher que amamentava um marllllllljo de bem uns trs anos: "Di cerlto so os propriatrio qui to despejando nis ! Vinhero d uma espiada de curio""lnd1. lkim qui eu disse pro Lula qui ele devia t avisado 011111' llll'lllO o dout Danilo qui a milionria tava rondando 11 rnsn 1bdc j hoje . . . desde j onte . . . Botum os probes 1111 1'1111 di cerlto pra alevant arranha-cu " . O nordestino sungou o cinto e disse com desenvoltura : "Se vossurias to querendo quarqu coisa mi se adirigi ao dout Danilo. Eu j entreguei p'rele os pap do ofici de justia . O prazo t correndo, ele disse ansim pra nis que fiquemo firme que tem inda um temp_o e que vai entr de peito no jogo ".

    No pude deixar de rir; o mesmo fazendo estentoricamente meu tio Rangel.

    - A essa altura havia j umas oito caras no andar de cima, espiando para baixo . Procurei arrastar minha mulher para fora, dizendo que o Lauto devia estar esperando com o automvel na esquina da Rua Formosa ; porm Maria Cla-1'11 no redargiu nada e indagou do "gerente" (de zelador o cabea-chata passara para encarregado e fora promovido 11 ).\Crente) se aquilo era casa de cmodos. "As citao foro trinta e tris, idade de Jesuis, mas a cabroeira de cambembes d11qui vai pruns crenta e oito. Num hai jeito de s menas gente." Nisto desceu uns degraus a mulher que estava amallll'lltando uma criana sonolenta e parou, muito atenta e 11p1ccnsiva. "Calu, vem c ! " Ela obedeceu, parou diante de 1us, submissa. "Esta minha mul-herr ! Nis casemos no < :11nind, l nas Alagoas, depois vinhemos para So Paulo ; 1'111 terra danada pra faz frio! Experimentemo a lavoura, roiemo algodo, t que o coron Florncio cab arranjando 1'11 tom conta disto aqui. " "E agora nis t tencionando vort1l pras Alagoas. Eu j t ansim de sodade . . . " comentou 11 mulher ninando o filho com um movimento gingado. Ento

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  • Maria Clara fez uma carcia na criana " enchendo de acar a boca da me ", conforme compreendi, e perguntando: " Como que ele se chama? Quantos anos tem?" "Migu. Trs ano. Tenho mais dois, um mais grande, outro mais men. Este aqui o do meio; s dorme mamando o leite destinado ao mais men . . . um porqueira sovina como ele s. Apois pruqu que vossurias to querendo bot a gente ansim pra fora ? "

    Riu, cruzou as pernas, olhou para fora, desta vez no para observar a noite e dizer altas reflexes sobre ela e sim para ver em que estao paramos.

    - Maria Clara foi abrindo a bolsa, dando dinheiro, puxando a Caiu para o vo da escada ; pediu-me uma nota, receei uma descompostura no dela mas das " massas " representadas ali pelo Lula e por toda a sua " cabroeira de cambembes ", tive que assistir s explicaes de minha mulher que contou ao casal que aquela casa fora de seus avs, de seus pais, que estes j a haviam vendido havia cerca de trinta e oito anos (no sei como no citou o nmero da escritura de venda e compra e o nome dos propritrios) ; que nunca mais, havia cinqenta anos exatos, tornara a entrar ali dentro; que, achando-se em So Paulo agora, j passara com esta umas seis vezes por ali, querendo sempre entrar para matar saudades; que ontem de manh no quisera incomodar ningum, e que hoje no tivera coragem porque estava s com a filha; e que ento agora, por estar comigo, seu marido (" aqui o doutor juiz " ) , tomara coragem.

    Bom tio Rangel. A contar-me essa historiada para qu? Que ilao tinha isto com as consideraes de um quarto de horas antes? Decerto estava tentando distrair o taciturno do sobrinho Jorge, seu predileto. Um sobrinho da minha idade . . .

    - Ento, Jorge, o alagoano recuou, o homem da camisa-de-meia recuou, o grupo l de cima se dobrou mais, e o Lula exclamou alto, abrindo as mos, pedindo trnsito :

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  • "Abre passage, gente, pro dout juiz e pra senhora dele. Vinhero v a casa! " Uma espcie de coro abafado sussurrou com pasmo: "O juiz ! " E tive que subir, pois minha mulher voluntariosa e eu prefiro sofrer a perceberem qualquer embarao que me desoriente. Ah! A escada, os degraus, o mrrimo do nosso noivado. Eu, mmia ressuscitada, entrando nos paos hipostilos dum passado de runas cheirando a mofo, ou melhor, com aqueles cheiros de saturao das casas de cl\modos a que se refere o autor duma novela bomia Jllll'iliense: cheiro de queijo, de peixe, de rato, e de adega. P11ra ser franco, todavia, o cheiro pior era o pituim do alagol!no . . . Algo assim como exalao de crosta de goiamum, u e caranguejo secando em canoa parada ao sol num manqual tanto das Alagoas como das cercanias de lguape ...

    Fez uma cara muito feia. - E minha_ mulher, vestida que nem uma Dorothy

    qualquer adamascada dos Estados do sul antes da Guerra de Secesso da Amrica do Norte, olhava enternecida para as bandeiras das portas do corredor que no andar de cima ligava a sala de visitas com a sala de jantar. Bandeiras de porta com vidros foscos, azuis, e um terceiro, no centro, bem encarnado. Enveredou logo para o salo da frente. O Lula bateu na porta, abriu-a, berrou: "Ateno! A otoridade! O dout juiz ! Veste essa camisa, seu sem-vergonha! Isso modo, ento? " Minha mulher investiu mas logo recuou como puxada por uma espcie de mola. O Lula fechou a porta, fez sinal que esperssemos, aprumou-se, dando tempo; tornou por fim a escancarar a porta. Maria Clara entrou. Fiquei hirto, como se me voltasse de sbito no o aplomb de juiz, mas o medo de vaias. Em pouco o Lula acendia luzes mortias e inteis pois ainda estava claro, e que pendiam de fios cheios de moscas; e surgiu como num pesadelo a antiga sala de visitas do coronel Valria. No ampla, com as trs sacadas, os mveis de jacarand, o piano de cauda, os espelhos de molduras douradas, as cornijas com cortinas de veludo, os bronzes, os tapetes, o lustre, as porcelanas, as pratas, as alfaias; mas dividida com tabiques formando creio que oito

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  • Toledo, ainda se voltou, a observar e a fazer comentrios. Depois, durante o ch no Mappin, me confessou: "J passei por l vrias vezes, ontem de tarde com o Lauro e hoje de manh com u Rafaela".

    Ajeitou o chapu, voltou-se mais para mim. - Tomei o ch meio emburrado porque detesto os

    ill'CIIOS romnticos de Maria Clara, hoje uma anci, com menoH dois anos do que eu. Afinal ela, ainda havia pouco, me uuustara fazendo meno de quase entrar no sobrado da ladcitu c tivera a curiosidade de olhar por uma das janelinhas do poro onde, em resposta sua curiosidade, apareceu logo um sujeito de camisa riscada. E durante o ch me falou dos uspectps que eu mal notara: que no vo da antiga cocheira, de porta imensa de duas folhas, havia agora um pintor de cartazes ; do outro lado, antes da entrada, um " cerzidor eltrico ". Cuidei que houvesse mquinas eltricas para cerzir, mas Maria Clara riu da minha ingenuidade, explicou, comendo torta, que " eltrico " nesse caso queria dizer rapidssimo, assim como, por exemplo . . . " relmpago " ! Que, pelo jeito, o casaro que o pai vendera antes de mudar para os Campos Elsios, estava transformado em cortio.

    O velho desembargador bateu-me no ombro com vivacidade, perguntou-me:

    - E quer saber do pior? Maria Clara, quando descemos no elevador, me puxou no para a porta que d para a Praa Ramos de Azevedo e sim para a sada em Xavier de Toledo; e isso com enternecimentos que me enfezaram. Da 11 dois minutos falava nas nossas bodas de ouro, retrogradava miraculosamente para os primeiros tempos da Repblica, pa-1'11 a imensa sala de visitas, a formidvel sala de jantar, o jardim interno (com lago, cascata e peixes vermelhos), o piano de cauda, as cortinas das janelas, a cor do papel das paredes de cada aposento, e me arrastava outra vez para a Ladeira da Memria. Se reagi, e como! Disse-me ento que combinara com o Laura pegar-nos de automveis embaixo, na esquina da Rua Formosa.

    Aps uma pausa para melhor efeito, explicou:

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  • Lio hoje, hein? vontade, vontade. umas visita minha . . . "

    - Que memria a sua, tio Rangel! - Memria e imaginao. Sa da antiga sala de visita,

    mns minha mulher atravancou o portal, dizendo-me: " Ali o pinnu. Ali o sof onde sentvamos. Ali a cadeira onde papai mchllavn . . . " Puxei-a disfaradamente. Junto da escada, fi:.-. meniio de descer, mas j ela acompanhava o nordestino 11111'11 o outro corredor transversal ao primeiro. E a voz soldlll do Lula: "Aqui, eu com a Caiu e a fiarada. Posso acend, Cnlu?" Estava deitando o rebento na cama entre os outros dois. Cheiro de emplastro, de urina e de xarope. " Aquele u Jefrso e esta aqui a Teresinha Marlene . . . Vossurias ndesculpem eu no acend pra mostr os pequenos porque se eles acordam vai s um fusu. J chega o que eu agento de noite. Nesta outra porta mora o Meia-Noite, do caminho da prefeitura de Iav a rua. E de fronte o Rolo, operrio. L no fundo, onde decerto era o quarto das moas (quem sabe se no foi o quarto da senhora? ) mora uma famia inteira de polaco fugido da Oropa: marido, mul-hrrr, cunhada, sobrinhos, primos, crianada e a sogra do home, uma via que jlf anda implicando com a Calu. Saro hoje cedo, ainda num vot"taro, forom v o Museu do lpiranga. Aqui, outro quarto em cima da oficina do pint de anncio, e onde mora o Belinha, funcionrio da Recebedoria, com uma zinha; ele diz llle casado, mas eu num sou bobo no. A estas hora to jantando cachorro-quente com mustarda ali na Sete de Abril. Vevem brigando. S t esperando escndalo pra sapec os dois na rua; quantu mais que o Belinha t atrasado nos aluMll, permetendo hoje, amanh. "

    Meu tio Rangel era famoso por causa do dom invejvel du memria que o fazia saber de cor alguns sermes do Padre Vieira e umas quatro peas de Gil Vicente. No foro suas dtoes de memria eram clebres ; mas, evidentemente estaVIl ngora armando uma verdadeira novela tipo Heinrichplatz e Rue Maubeuge, ao sabor de Doeblin e Van der Mersch pnra ver se me arrancava da taciturnidade.

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  • - Paramos diante duma escada que dava para o sto, onde outrora dormia a criadagem em trs mansardas. " L em cima tem trs cmodos com doze camas. Num vamo subi no porque int cheira a carnia. So doze vagas como nis usa diz. " Comeou a contar nos dedos e a citar os nomes, atropeladamente : " O Casusa, lixeiro ; o Nelson, fazed de chave Yale; o Justino, varred de escritrio; o Liberato e o Tavares, serventes do Hospit das Clnicas; o Fuganti, encadernad; o Brito, que vende enceradeira Lux; o Tartaruga, que lava pratos; o }anurio, que vende modinha no Largo da Misericrdia ; o T'arrenego, um portugueis que veio de Santos e que foi arreprovado no exame pra motorneiro; o Samuel, que trabaia com um judeu de prestao; e o Juca Perebento, um mulato que veve do hospit pra qui e daqui pro h os pit . . . "

    O empregado do carro-restaurante tornou a passar, tio Rangel pediu gua mineral; fomos servidos, bebemos ; da a pouco meu velho tio prosseguia.

    - Voltamos para o corredor. O Lula e minha mulher embarafustaram para a antiga sala de jantar. J estava escurecendo e por isso o encarregado acendeu a luz eltrica, uma luz pior e mais fraca do que a deste vago, e que mostrou aspectos to ttricos como este aqui . . . S que definitivos. Minha mulher quase chorou. Dois lances de madeira pintada a leo dividiam a sala em duas metades com um corredorzinho pelo centro at antiga varanda. Cada um desses dois lances era dividido por sua vez em cubculos feito quartinhos de balnerio popular. " Isto aqui o Purma. " " Como ? " " O Purma ! " Ento emergiu uma cabea de sujeito mais incrvel do que um dos irmos Marx (do cinema) e corrigiu: " Pullman ! ", e reentrou para a sua cabina. Pelas caras que apareceram me considerei em Angola ou no Congo. S a tal cara tipo " irmo Marx " era loura, lembrando ali um ingls exilado em pleno sortilgio africano. Passou por ns uma pretinha de tailleur, bolsa a tiracolo e sapatos Anabela; seguia-a com desdm um sujeito cheirando a brilhantina, com o palet de linho lhe dando quase at aos joelhos e com umas

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  • calas afuniladas cujo cs lhe apertava o corao. No mais, todos os espcimes do livro de Nina Rodrigues quanto cor, gaforinhas, beiarias, ps, falas, risadas e prole. Negrinhos simpticos nos cercaram como se fossem bailar, pois um rdio gritava histericamente um boogie woogie. Haja espalhar nqueis pelos garotinhos de imensas barrigas e de grandes olhos, at alcanarmos a varanda. Vi ladrilhos portugueses, imensa balaustrada e duas esttuas de mrmore mutiladssimas. Dois foges acesos. Velhas cozinhando, feito megeras mexendo filtros. Uma pia atulhada de panelas e pratos. Uma torneira deixando escapar gua embora estivesse amarrada com arames . Do outro lado uma mesa de pinho sobre a qual moscas formavam mapas sonoros com zumbidos frenticos. Cordas esticadas entre as pilastras. Roupas estendidas. Cinco sujeitos cosmopolitas na cor, um mulato, um ruivo, um albino, um moreno e um sardento, jogando cartas no patamar da escada que dava para a rea - o antigo jardim interno. Minha mulher, com voz e gestos de Sarah Bernhardt, disse com empostao fanhosa : " A cascata ! Ainda tem a cascata, o lago com os peixinhos vermelhos . . . "

    Meu tio alargou o colarinho com um gesto de dispnia, franziu muito as sobrancelhas, tal qual, decerto, como quando nas audincias algum promotor comprometia um " texto explcito " .

    - E nisto, meu caro Jorge, uma apario, um fantasl lla como os das novelas escocesas. Sim! Avultou e cresceu para ns, vindo de perto dum dos foges, um imenso sujeito c11 ja cara estava rodeada por um esplendor de cs e de barl l: l s , espcie de rei Lear ou dipo, contorcendo-se todo como 1 1 1 1 1 Laocoonte a livrar-se de filhos e de serpentes. Recuei 1 1: 1o de medo mas somente por causa do seu cheiro. Um , beiro somado de todos os bichos dos parques zoolgicos do 1 1 1 1111do. Calas de brim com o cs to baixo que seu umbigo dl'limitava um ventre de ascite, sem camisa, como um poo dl' l imi ta um deserto. E o velho se apresentou no com humildade e sim como um guia complacente resfolegante: " Felipe, x pntico do porto de Vitria ! Hoje um rebotalho confi-

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  • nado neste poro de barcaa adernada ! " Minha mulher fugiu para o jardim, descendo como uma adolescente de braos abertos para o lago e exclamando : " A casca ta ! A casca ta com os peixinhos vermelhos ! " Enrubesci at raiz dos cabelos, porque se a achei ridcula e desfrutvel naquele ambiente medonho me pareceu que o antigo prtico do porto de Vitria, as velhas megeras dos foges, o Lula, os homens que jogavam cartas, tudo ia reagir violentamente contra aquela invaso " imperialista" em seus domnios. Mas o Lula, enquanto eu com o olhar hipnotizava e era hipnotizado pelo tal Felipe, se arremessou escadas abaixo, arrancou de cima dum tanque uma lanterna, acendeu-a e iluminou o ex-jardim para que minha mulher me envergonhasse ainda mais com suas efuses espinoteadas . Desprendi-me do sortilgio do velho marinheiro, passei por entre os jogadores ouvindo-lhes as apostas vibrantes : " Boto na dama de copas a fortuna do Matarazzo ! " " Dobro ! A fortuna do Matarazzo e mais a do Aga Co! ! "

    Riu, tirou o chapu, penteou com os dedos a cabeleira sedosa e branca, tornou a cobrir-se.

    - Desci pressuroso para " a cascata", como pressuroso j correra certa vez para o grande lago existente atrs do palcio de Versalhes temendo que minha mulher, no entusiasmo de touriste, casse l dentro. Lula, com a lanterna suspensa, dizia : " O encanamento entupiu faz muito tempo decerto ; o cimento embaixo rachou, agora o lago virou depsito do pint de anncio" . De fato, uma tralha confusa entupia o antigo tanque semicircular. Tbuas, cavaletes, latas vazias de tinta a leo, vassouras velhas, lonas enroladas. Minha mulher, vergada por curiosidade e para poder ver bem, deblaterava, como num fim de tragdia de squilo. A noite caa. Olhei as horas, agarrei Maria Clara pelo brao, apertei-lho com aquele jeito (to conhecido dela) de quando estou " seriamente zangado" , intimei-a com um olhar mudo mas incisivo a que nos fssemos embora, a que deixasse de " dar espetculos" . O antigo jardim, outrora belo como um trio com guas sussurrantes, flores, prtico, banquetas, azu-

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  • lc jos , cs i I hei para meu tio desembargador, certo de haver cheJ.llldo o clmax da sua histria.

    Ele, com sua voz vincada por mmica e gestos, contiI I I I O U :

    - " O Indalcio e o Ata ! " Achei to esquisito aquele recanto de senzala, to inacreditveis aqueles dois seres mel idos ali dentro; que abaixei a mo de Lula, forcei-a a avanar t' percorrer quase o canil com o halo da lanterna. E vi um soba retinto, cor de piche, e um ndio oblongo, cor de ocre. Duas mmias desenroladas? Dois sculos face a face? Lula repetiu, passando a luz bem pelas duas fisionomias hirtas : " O Indalcio . . O Ata " O Indalcio, com um rosrio de contas muito grandes, me olhava com olhos ramelentos. Parecia no homem, nem bicho, nem lenda, e sim um desenho dalgum bisav de Paul Robeson, dalgum remanescente de navio negreiro ou de quilombo. Aproximei a lanterna mais ninda : Indalcio seria uma antiga esttua e para ali removida como entulho? No; era uma coisa viva, imvel, olhando com olhos de ao dentro dumas plpebras ramelentas. To viva que me disse : " Sus Cristo ! " O Ata, sentado tambm, mas com os joelhos rentes ao queixo, misto de faquir e resduo de esqueleto dentro dum sambaqui, tinha uma cara encovada com milhares de riscas lhe pregueando a pele. Estava de calas de algodozinho, com o busto enrolado numa manta, e disse : " Tori auditire ! "

    Tio Rangel, completamente voltado para mim, esculpia no ar a mmia e o faquir.

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  • - O Lula e eu nos afastamos. E enquanto procurvamos minha mulher que embarafustara pelo poro debaixo da sala de jantar e onde outrora se achavam a despensa, a rouparia, parte da primitiva senzala - uma srie sinistra de lugares com cho de cimento e teta de traves - o nordestino me contou que o Indalcio era o decano da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos e que, desde 1 903, quando a municipalidade mandara demolir a igreja no largo do mesmo nome, tomara parte voluntria e grtis na construo da nova igreja no Largo do Paissandu - onde, desde esta pronta, ia ouvir missa todos os dias - e que largado pelas filhas, depois esquecido pelos netos, os bisnetos nem sabendo de sua existncia, viera morar ali de dia; sim, porque de noite era vigia das obras dum arranha-cu com relgio despertador marca Chicago. A sua vida, pelo que depreendi , era uma espcie de vigoroso protesto contra as netas e netos que s pensavam, aquelas, em freqentar auditrio de estao de rdio, e, estes, quadras de football.

    E o outro? - Pelos informes pi torescos do Lula bem como pelo

    que me lembro de haver lido, o Ata era um ndio java, antigo cacique na foz do Tapiraps, l na famosa ilha do Bananal, e viera reclamar ao Papai Grande contra os carajs, os gorotirs, os puracurus, os canoeiros, os missionrios e os sertanistas que andavam " roubando" tesouros das lagoas de propriedade da sua raa . Queixara-se primeiro ao bispo dominicano dom Sebastio; depois, ao doutor Bandeira de Melo; e, por fim, resolvera vir a p tomar providncias. Na verdade jornalistas e fotgrafos se tinham servido dele para uma reportagem extica em The National Geographic Magazine; mas, de Barreira de Santana e de Conceio do Araguaia para c, esse Ata - voc no se lembra dos jornais se referirem a isso? - teve uma odissia mais cmica do que trgica. O informe perplexo do Lula foi a bem dizer este : " J ouvi diz, seu dout, que o Ata manda numa terra do tamanho de Sergipe, onde tem jaragu e mimoso que do pra faz forragem pro gado todo do Brasil, e onde

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  • d tove mais do que no tempo do dilvio. Agora t qui com l'ssa hoca fra nzida de tanto com murioca! " Ao reflexo da l a n t l' l " l la ex:uuinci o ndio acocorado no seu nicho, esperando nl ln pacil-ncia milenar que uma expedio amiga voltasse para lev:- lo. O Lula disse que a estada ali debaixo do vo da
  • que no trajeto para casa eu lhe passaria uma raspana em regra. Quem diz que o Lauro nos estava esperando com o carro l embaixo na Rua Formosa? Outra mentira da Maria Clara. Voltamos de txi para casa de minha filha. Em dado instante, durante o percurso para o Jardim Amrica, livrei a mo que ela segurava, disse-lhe : " Infantilidades em cima de infantilidades ! No resta dvida que caduquice e puerilidade no gnero humano se confundem . . . " Ela no entendeu bem. " Sempre foste uma estabanada e todas as tuas idias romnticas sempre foram de melodrama. J h cinqenta anos passados o casamento na Aparecida foi um disparate. Primeiro a cerimnia civil no hotel. Minha sogra com a cara inchada de mordeduras de percevejos . . . Depois o padre a benzer-nos com um aspersrio tamanho que borrifou ns dois, bem como os vestidos, os fraques e as sobrecasacas dos convidados. Ah ! Os romeiros e o bando tipo Rugendas dos teus parentes que abalaram de todas as cidades bandeirantes para comer doce e beber champanha. A seguir, na pracinha, o fotgrafo que nos retratou, tu de vu, eu de fraque . Foi o nico homem que at hoje se atreveu a humilhar-me quando disse l dentro do pano pleto, aderido mquina como um polvo a uma concha : 'Faa um sorriso de noivo e no de bacharel ! ' Atrevidao ! Decerto, se tivesse sobrevivido at hoje, estaria trabalhando como locutor de rdio . . . E agora, aps cinqenta anos de experincia de vida, esta idia ridcula : visitar um cortio, uma casa de cmodos ! Naturalmente, para depois d e amanh, dia d e nossas bodas de ouro, j arranjaste alguma surpresa ridcula afora a fotografia com filhos e netos . . . " " Casa de cmodos ou no, a verdade que foi l que me conheceste, que noivamos . . . Pensei que tivesses um corao mais sensvel, tu que tanto aprecias antiguidades ! " Depois, com ar de vitria estratgica : " Surpresa para depois de amanh? ! Sim; comprei no balco da Exprinter, enquanto foste livraria, algumas passagens no Cruzeiro para . . . a Aparecida " .

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  • I I I

    Coll i I H i l H I a reconstituir: 1 : 1 1 1 casa de meu genro, depois do jantar, me retirei

    i ' '" 11 11 snln dl' visita a ler jornais. E Maria Clara se trancou 1 1 1 1 1 1 11 l i l l ,a no quarto, decerto a comentar a sua proeza. l l 1 1 1 1 1 hor:t depois, tantas eram as risadas e havia um vaivm ' "" I 'M J H i s i t o l em cima, que subi, dei umas pancadinhas na 1 1 11 1 11 l' , quando me deixaram entrar, fui instalar-me no ' '" k1 r no a fim de inibi-las um pouco. Nem as atrapalhei sei J I I l' r , pois continuaram remexendo numa enorme malal l l' ln : rio, um trambolho chapeado de metal nos cantos, com r t u los de hotis do mundo inteiro nas ilhargas. Aquele traste sl'mpre fora o pomo de discrdia porque minha inefvel consorte, quer fs'Semos para Caxambu ou Poos de Caldas, pnra a fazenda ou para Santos, para as Paineiras ou para Pet rpolis, havia de, alm duma srie incrvel de malas, maletas

    valises, levar sempiternamente aquela arca do tempo dos p i ra tas da rainha Elizabeth. Com ela j me atanazara, uma poro de vezes no estrangeiro, de Lisboa para Paris, de Pnris para Lausanne, para Viena, para Lourdes, para Burgos . nas paradas pela I tlia, ento, nem quero lembrar-me!

    Estendeu os braos configurando o volume incomensunvel daquele pesadelo cbico.

    - No era mala, era arca, era armrio, formidvel mfre, maquette de arranha-cu, cujas gavetas e prateleiras, l'scaninhos e pertuitos, stos e subterrneos, ela abarrotava s{, com coisas desnecessrias j que minhas roupas, seus vl'st idos, enfim todo o nosso enxoval de turistas paspalhes ts tava em umas oito malas . razoavelmente menores. Para que aquele trambolho ? Somente para causar-me aborrecil l ll'ntos, acessos e trabalheiras infernais nas alfndegas e nas h11 ldcaes. Sim, pois como um piano de orquestra, s quatro l l t : tranos a locomoviam dum fourgon para outro. O que sofri , fechando os punhos, arrepiando a cabeleira, emitindo

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  • roncos apoplticos pelas gengivas em Hendaia, Liege, Aix-laChapelle, San Remo!

    Bufou ainda, s em evocar sua odissia . - Catorze gavetas numeradas, como apartamentos .

    Agora as duas estavam comeando uma espcie de despejo coletivo. Primeiro, a gaveta superior. Nunca vi tanta caixa de charuto, eu, que no fumo, eu que j dera (para me livrar da coleo) tantos charutos a visitas, amigos, inimigos, porteiros de hotis, advogados, peritos, etc. Meu Deus, e ainda no haviam acabado? ! " 0 filha, d isso depois de amanh aos convidados e aos parentes . " Em resposta, repuseram ambas todas as caixas no lugar. E minha filha, medida que ia passando uma por uma as caixas para a me acondicionar no gaveto, lia aqueles nomes cubanos escritos nos rtulos. Na verdade uma coleo que seria um rgio presente para subornar corretores de Wall Street. Ao lembrar hoje, lamento no haver remetido tal preciosidade para a Downing Street consignada a Churchill . Aconselhei pois minha mulher e minha filha que dessem um sumio naquilo, distribuindo charutos a mancheias depois do jantar das bodas de ouro. Olharam-se as duas, de modo esquisito. Em seguida, enquanto Maria Clara contava a Rafaela suas impresses da visita ao casaro antigo, fazendo-o com uma alegria de beata francesa passando de noite pela Praa Pigalle, eu lamentava no haver uns quarenta anos antes reagido em regra contra caprichos idiotas de minha mulher. Sim, pois agora, abertas outras gavetas, tiravam de l para da a pouco repor, outros trofus inconseqentes, j que eu, pessoalmente, sempre fui um abstmio. Por que no aniquilara eu no nascedouro aquelas fantasias esdrxulas de minha mulher cuja mentalidade frvola me obrigava, retrospectivamente, a fazer consideraes misericordiosas sobre o epicurisgw ras; taqera dos senhores de engenho e dos fazendeiros destas plagas da cana-de-acar e do caf?

    Olhou-me, como se tal pergunta fosse feita a mim e exigisse uma resposta.

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  • - Sim, Jorge; as duas tiravam, acanctavam e repunhum nos l 1 1gnrcs uma espcie de adega. Miniaturas de garralus de t odos os formatos ; de vinhos e de licores, de aguardt' l l tes c dt" infuses, com que montar um botequim para roll\nius a nglo-saxnicas. " Isso, filha, abre essa joa toda d"poiH dt" : t t nanh para os parentes e convidados. E o que ol ! l" l l l" tsvuzia na sarjeta. S assim arquivas no poro, de vez, - C')(I'OIIH t ngada mala-armrio. " Enfiei as mos nos bolsos I' f lq 1 1 1 i 11 nssistir. Que nomes mais arrevesados! Guardado 1 fi l i ' f i t udo aquilo, que que voc pensa que apareceu na 1 ti i 1 IVI I guveta? Sim, porque da segunda stima, s havia unufns. Eu, escusado dizer-lhe, no fumo.

    - Eu sei, tio Rangel. Tirei a carteira de cigarro apenns para servir-me e, como estou prestando ateno no senhor, fiquei com a carteira esquecida na mo.

    - No isso, rapaz . . . No isso . O que quero dizer l- o seguinte : minha mulher me obrigou a vida toda a comel l'l" bobagens . Voc sabe que era que tinh"a na oitava gaveta? No oitavo gaveto? Grosas de cachimbos! Novinhos em folhn e decerto alguns comprados antes das nossas bodas de prnta ! O pai de Maria Clara, o sovina do coronel Valria, HtS fumava fumo de rolo. Para que havia de dar a filha? Para fumar Pall Mall, Abdullah? Enfim para fumar cigarros de l uxo como vira muitas embaixatrizes e aristocratas fumarem cm Biarritz e Cannes, ou no Waldorf Astoria e no Meurirc ? E isso, para desrecalcar o complexo de inferioridade do pu i ! . . . ? No senhor ! Obrigava-me, isso sim, a em tudo qunnto foi viagem ao estrangeiro, ir comprando cachimbos . . . Agora, em p ali diante do gaveto aberto, fui lendo as marcns, vendo os feitios e os tamanhos. Pois, meu caro, interessei-me, peguei, li, repeti alto o que lia ; cachimbos dos modelos e marcas mais incrveis: bojudos, finos, retos, curvos, selvagens, aristocrticos, para lordes e para cocheiros, pnrn desportos e para salo, para botequim e para biblioteca, pnm iate e para automvel, para golf e para corridas. Ah ! 1\ mesmo. Guardei e mandei um, muito simptico, com ar i ntelectual, um Weber, para voc. No se esqueceu de us-lo?

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  • Tirei do bolso o que usava mais freqentemente e mostrei, explicando:

    - Doctor Plumb. Presente daquela criatura num aniversrio meu. Entregou-me num cinema, repleto de perfume. Foi, com os retratos, as revistas e alguns livros, a nica coisa que me ficou . . .

    Meu tio tossiu, arrependido de haver retirado sem querer o esparadrapo de cima duma ferida. Tanto que prosseguiu, afoitamente.

    - Com o tal cachimbo no bolso separado para voc, me retirei para o aposento ao lado e me pus a ler Daisy Miller, de Henry James, um livro que saiu tambm dum dos tais gavetes. Li, passou-se bem mais, muito mais de uma hora. Sa do canap, meti-me num pijama, recostei-me na cama, apaguei a luz . Mas como adormecer com as risadas de Rafaela ouvindo a me descrever a colmeia humana daquele cortio? L para tantas me levantei, enfiei o roupo, compusme bem, como diria minha mulher, sa do quarto para procur-las . Notei silncio. Depois, dueto l embaixo. Soprano e contralto. A filha e a me. Na sala de jantar? No. Da copa para a cozinha, da cozinha para a despensa, da despensa para a copa, da copa para a cozinha. Desci . Agora, mais outras vozes : da copeira, da cozinheira, da arrumadeira, do motorista, do jardineiro , da lavadeira, duma vizinha. O inefvel sistema do mutiro brasileiro ! Entrei, fui at geladeira, servi-me de gua. Minha mulher me olhou por cima do ombro, nem sequer me considerando presena, quanto mais intruso. Enquanto abri e enquanto fechei a Gibson, abarquei com a vista a bacanal ! Sim, o pouco que pude ver ali perto de mim na primeira mesa de tampo de mrmore me provou que minha mulher estava sistemtica e organizadissimamente com a sua quipe preparando com suficiente antecedncia a programao pantagrulica para as bodas de ouro. Verdade que, pelo que pude inferir, o fogo eltrico, o tal General Electric Range, no estava funcionando. Pudera, quase onze horas da noite! Mas a poro de latas, boies, vidros, caixas e invlucros mostrava, como um anncio su-

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  • mrio de revista ianque, uma srie de desenhos e nomes. Se em cima eu j me saturara com aquelas marcas de gim, usque, licor, champanha, imagine voc agora diante de tantas latas, daquele fogo eltrico cujo registro de comandos e chaves era mais complicado do que um mostrador de avio internacional, diante daquela infinidade de meats, sauces, vegetables, salads, dressings, cookies e frostings! Diante daquela efuso de gulodices luxuriosas, arenques, atuns, salmes, lagostas, espargos, frutas, ervilhas, todo aquele oceano, todo aquele pomar, toda aquela horta enlatada em gift package!

    Fiz tambm eu um ar de empanzinamento. - Jorge, dou-lhe minha palavra que vi at duas enor

    mes latas com perus assados, da Rockingham Marketers. Retirei-me dizendo com desdm retrico: " Maria Clara, no te esqueas de telegrafar para os Estados Unidos mandando vir de avio, se que ainda h tempo, violetas frescas da MacBee Company " . E, com esta me retirei, enfurecido. Pensa voc, Jorge, que tais coisas que se adquirem hoje nos bons emprios e armazns do Rio de Janeiro e de So Paulo foram alguma encomenda de minha mulher ou de minha filha? Ab-so-lu-ta-men-te ! Quase tudo aquilo as duas haviam re-tirado da excomungada mala-armrio; quilo tudo era ainda o meu oprbrio ; aquilo tudo assistira eu minha mulher comprar meses antes, quando de nossa visita aos Estados Unidos (quando fui comparticipar dum congresso internacional ) , quase na hora exata de termos que embarcar, nas diversas cidades, nos avies da Delta, da Braniff International, da Beech Aircraft, ou rente mesmo s estaes da Great Northern Railway, da New York Central System . . . Subi as escadas pensando: " Tanta fila desde madrugada nos aougues e padarias, e essa mulher a guardar num armrio porttil todo esse sortimento ! Caso de polcia ! De processo ! " Fui deitar-me. No sei a que horas minha mulher e minha filha subiram. No ouvi a que horas meu genro entrou .

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  • Espreguiou-se como a explicar de que forma acordara no dia seguinte.

    - Na vspera das bodas de ouro acordei l para as sete da manh com um beijo de minha mulher. Nem abri os olhos, mas percebi, da a meia hora - depois de ela ir e vir pelo aposento e pelo banheiro -, quando resolveu descer. Ento, me barbeei, tomei banho, me vesti, virei s pressas o caf e me raspei daquela casa para longe, a fim de evitar alergias e, principalmente, o encontro demasiado prematuro com os parentes inumerveis de minha mulher, toda uma populao de mamelucos que decerto j estavam correndo pela Paulista, pela Mogiana e pela Sorocabana ali para o Jardim Amrica para a patriarcal comemorao de cinqenta anos da minha escravido aos caprichos duma mulher que me amava demais e que me tratava como um gal da Comdie Franaise. Por conseguinte, fui tratar de interesses vrios, de comprar um presente bem vistoso e moderno na Rua Baro de Itapetininga, de visitar amigos, de percorrer o antigo itinerrio to alterado a que me referi neste comeo de palestra. Isto , palestra! Pois se s eu estou falando! Mas isto lhe faz bem, no , Jorge?

    Anu pressurosamente. Meu velho tio era uma inteligncia muito aguda. Aquele modo de manifestar com "comando invertido" o seu amor pela mulher, desancando-a, era inefvel, pois eu sabia quanto a adorava. Ele tinha razo em dizer que tia Maria Clara lembrava em muito a generala Epantchim dum romance de Dostoivski: temperamento em rompantes!

    - Almocei em casa de Moura Serpa; estive em um banco ; passei uns telegramas para o Rio pela Western; meti-me na Biblioteca Municipal, quedei-me l mais de duas horas; estive na diretoria d'O Estado, desancamos o governo federal e estadual; sa, passei hora e meia num cinema vendo j no me lembro que filme, fui pegar no Arouche mais um presente para a mulher, visto ser ela incontentvel; tomei um txi, entrei em casa preparado para agentar (com uma filosofia toda especial) as conversas e as caras dos parentes j

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  • du:gados decerto de Itu, Ja, Campinas, Mogi, Ribeiro, Ftnnca, Silo Joo da Boa Vista, etc., etc. ; toda uma turma a fnlur em cnfs finos, em gado, em algodo, no Instituto do C11f6, em pnl'c:ntes consangneos, em mercado imobilirio, cm prefeitos , cm eleies, em partidos, em bicho-do-p, em l l ln lclta c cm carrapato!

    Nilu pude deixar de rir, e isso excitou ainda mais meu mllllll\llhciro de viagem.

    - Mos a verdade que no havia ningum a mais l C'lll L'llllll c.Je minha filha. Nem perguntei nada referente paI'C'Iltelu, para evitar saber quem tinha morrido, quem tinha Clllllldo, quem tinha sido operado, quem tinha chegado, quem tinha hipotecado seus alqueires, etc. Contei por onde andara de dia; agentei as efuses de Maria Clara radiante com os 11resentes; imaginei os convites remetidos uma semana antes; suportei minha mulher contar ao Lauro em que estado encontrara o casaro-da Ladeira da Memria; arranjei uma boa dose de resignao para o programa infalvel do dia seguinte. Decerto, s nove ou s dez horas, missa em Santa Ceclia; entre meio-dia e uma hora, almoo ntimo com minha filha, meu genro, meu filho, minha nora e meus netos, todos decerto querendo dizer, mas no tendo coragem, que eu fizesse uma fisionomia expansiva para os parentes pois essa gente de fora muito desconfiada . . . Eu j tinha a minha idia. Depois do almoo me fecharia inexpugnavelmente no Retiro, o pavilho aos fundos do jardim. Primeiro, para evitar ser traumatizado pelo afoitamento domstico dos preparativos, pois decerto baixelas, louas, cristais, pratas e flores poriam as salas e o terrao dos fundos em polvorosa; sim, eu sabia que a programao do jantar perfazendo toda a tradio culinria do nordeste, do Recncavo, do Vale do Paraba e da velha Mogiana tinha que ser com protocolo ingls, etiqueta francesa e estabanamento ianque. E, depois, porque o vestbulo, as salas, os corredores, a escada, o jardim, tudo ficaria apinhado de figuras exticas - bacharis, funcionrios, professores, deputados, fazendeiros, gente de quatrocentos anos e ricaos de extrao peninsular absorvida, comendadores,

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  • fabricantes, banqueiros, numa pardia entre Vogue e Casagrande e senzala! Toda a rvore genealgica por parte de minha mulher e a respectiva malta de garotos e meninas em volta das mesas de sorvete, guaran e Coca-Cola. Com voc, Jorge, eu no contava mesmo, sabendo que teimava no seu exlio.

    Ao dizer isto tossiu, disfarando. - Dormi bem aquela noite, como convinha a quem

    no dia imediato ia ser centrifugado por tantas novidades. Mal acordei no dia das bodas de ouro, tive minha mulher um quarto de hora abraada a mim chorando, mas to cheia de papelotes e mscaras elsticas contra rugas que lhe disse : " J no pareces mais a generala Epantchim. Agora ests parecendo Gertrude Stein" . " Quem? Credo! " Tive que me paramentar para assistir missa. L fomos para Santa Ceclia. Assisti ao divino ofcio ajoelhado num genuflexrio com almofada, ao som de rgo ; recebi beijos, abraos, apertos de mo. Transportamos as flores para casa de Rafaela. Esprei o almoo no jardim lateral, modernssimo, assim uma espcie de Cape Cod com terrao de grandes lajes, relvas em declive, lagos com fundo de azulejos e plantas aquticas, vigas espessas, trepadeiras vistosas. Quando chamaram para a refeio entrei na sala de almoo que parecia decorada por Marwell, pois a verdade que os gladolos e os gernios garantiam o bom gosto de Rafaela que puxou mais a mim em sensatez do que me em extravagncia. Voc que a conhece bem, tenho ou no tenho razo?

    Tive que dizer que Rafaela, minha prima, possua o temperamento paterno e a argcia materna. Tio Rangel concordou.

    - Depois do almoo me esgu.,eirei para o Retiro, ao fim do jardim, atrs da garagem, junto aos eucaliptos. Voc conhece. Um pavilho rstico, entre florestal e martimo, a bem dizer uma cabina de pesca e uma cabana de caa, com piano, radiovitrola, apetrechos, armas, anzis, varas, tapetes, peles, ferros forjados, canap, poltronas, estante com livros essenciais sobre floresta e mar. A um canto um pequenino

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  • hur bem equipado, com garrafaria e cristais e onde estavam colados rtulos coloridos, com receitas de vinte e cinco cocklails, nio eu que sou leigo, mas algum esnobe se deliciaria com o que em cor, diafaneidade, beleza plstica e gosto sutil se pode obter com gim, usque, porto, Dubonnet, champanha, vermute, rum, conhaque, limo, laranja, acar, cerejas e azeitonas. Olhando para os rtulos fiquei sabendo o tipo dos vinhos, a cor, se devem ser servidos gelados ou no, antes, durante ou depois das refeies. Que o Sauternes dourado, o Madeira cor de mbar, o Tokay vermelho, o Graves branco, o Barbera rubro, etc. Dei-me conta do efeito de nomes tais como Bacardi, Manhattan, Old Fashioned, Sazarac, Bamboo. Para ser franco, um balco onde me sinto estranho . . . To verdade foi isso que retirei da estante um volume, depois me refestelei no canap e desandei a ler a odissia das baleias e dos que as pescam . . . De vez em quando ia janel e espiava pelo vidro se j haveria mouros na costa. Dia claro e cu azul, de esmalte. Pensei na beleza e na alegria dos meus netos adolescentes, ao reparar na quadra de tnis. Depois me veio uma ternura por minha esposa. Entendi sua curiosidade, seu desejo de rever a casa paterna. Mas, ao refletir sobre o jantar, as visitas heterogneas, eu sentado entre duas velhotas, minha mulher entre dois velhotes, tendo que ouvir consideraes sobre a longevidade, a poltica estadual e federal, o corredor areo de Berlim, a experincia da bomba atmica no atol de Bikini, que aturar saudaes, que beber champanha, e de sbito, como uma golfada do passado evocar em meio a tudo aquilo o dia melhor da minha mocidade apesar do hotelzinho da Aparecida, fiquei apaspalhado, entre ridculo e sublime . . . E ento voc sabe que foi que aconteceu, Jorge?

    - No quero dizer que o senhor chorou; mas no ter sido isso?

    - Quase. Quase. O que sucedeu deveras foi que s ali, no Retiro, ouvi o rgo que todavia fora tocado entre nove e nove e vinte na Igreja de Santa Ceclia . . . Esquisito, no?

    - Deveras.

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  • - Ento mergulhei outra vez nos mares a levar rabanadas de baleias! E a verdade que li mais de cinqenta pginas at ser interrompido pela criada que perguntou se eu queria ch, ou sorvete . . . Sorvete na minha idade? Pois sim. timo. Trouxesse o sorvete. E perguntei por minha mulher. A criada respondeu que dona Maria Clara e dona Rafada haviam sado logo depois do almoo, tal qual tinham feito ontem! Hum! ! ! Homessa? ! Nisto, ouo rudo de automvel entrando. Seriam elas? No. Era um caminho. Refestelei-me outra vez no canap. Com que ento estavam chegando mais coisas! No bastava o que eu vira pela cozinha como amostra infinitesimal do abastecimento da despensa? Onde teriam ido elas ontem? Visitas, claro. E hoje? Ao cemitrio, claro. Minha mulher sempre que vai a So Paulo faz como fazia o Martins Fontes quando ia ao Rio. Primeiro visitar os vivos. Depois visitar os mortos. Ento, ainda era cedo. Naturalmente os convites para jantar davam a hora. Sutilezas de protocolos e pragmticas, no? Tomei o sorvete cristalino, puro iceberg minsculo onde uma fatia de gomo de no sei que fruta parecia o Titanic soobr11ndo. J que eu estava vivo, com quase setenta anos, essa analogia no me comoveu; tratei de voltar ao livro de Melville, desejando veementemente que minha mulher e minha filha chegassem sem demora para receber e fazer sala aos convidados porque isso de um ancio como eu em tais conjunturas se apaspalhar um pouco por causa dum edemazinho cerebral e . . . providencial, pois convenhamos que uma formidvel maada entreter visitas com assuntos que na verdade so bocejos. Isso de pescar baleias tambm no para a minha idade. De forma que adormeci. Sim, ferrei num sono beatfico, at que levei um susto: algum me sacudia no camarote do Titanic avisando a catstrofe. Levantei-me de supeto, agarrei minha mulher! Soltando-se, ela me disse com as mos nas ilhargas: " Sobe, sobe, vai pentear essa gaforinha de maestro. So seis horas. Est tudo pronto, s tua espera" . " Est bem, est bem, filha. Com que ento esse pessoal todo j chegou? "

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  • I V

    Tio Rangel prepara aos poucos o efeito: - Sala de jantar apagada. Sala de visitas apagada. Sala

    Je estar apenas com o abat-iour aceso. Ainda meio zonzo, decerto o sono me embotara, vejo minha mulher, no vestbulo, estender-me o sobretudo aberto como um espantalho. Pico entalado, isto , um dos meus braos se entala numa das mangas; minha mulher d puxes frenticos na gola e nas abas do sobretudo e me enfia um chapu na cabea, tendo a gentileza graciosa de abaixar a aba " a fim de meu rosto remoar" . Compreendi ento que para o meu cansao ser maior e a estopada ainda mais categrica a famlia combinara o jantar de gala em casa de meu filho visto o bairro, a residncia, o luxo e os sales serem maiores do que os de minha filha. Oh, por que no ficara eu em Ipanema, e essa gente toda que moesse os ossos no Cruzeiro ou arriscasse a carcaa viajando por via area para comer leito e peru, os mais sagazes se valendo do expediente de mandar telegramas? A caminho do jardim, onde o automvel do Lauro, meu genro, nos esperava, passamos pela copa e diante da cozinha. Literalmente apagadas, e sem ningum. Isso equivalia a dizer que at a criadagem se transferira para ajudar l em Jardim Europa. Ao aboletar-me no carro, supliquei : "Maria Clara, s lpida como o foi Isadora Duncan. E, tal qual ela, to desfrutvel ! Todavia, tem complacncia com um ancio. Estou por tudo no dia de hoje, comemorao dum fato antediluviano, mas peo a Deus que no te haja inspirado nenhuma extravagncia; bodas de ouro devem significar, antes de mais nada, sensatez e comodidade j que so a entrada oficial para a fossilizao " . Disse certo ou no, Jorge?

    - Para o senhor e tia Maria Clara isso no se aplica. Lembram-me, sempre que os vejo juntos, Goethe e Cristina em Weimar . . .

    Oh! Oh! Oh! - riu tio Rangel achando a analogia

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  • exata quanto tia Maria Clara. - Notei, porm, que o carro no rumou para a casa do Roberto. Ainda assim no perguntei nada, contentando-me em observar Lauro e Rafaela no banco da frente e minha mulher no de trs junto a mim. E os filhos de Rafaela? Bem, decerto tinham ido antes para ajudar . . . ou atrapalhar. Iramos desviar-nos um pouco do trajeto para a casa da Conceio e Roberto? No. O carro seguia indubitavelmente para o centro da cidade. Mas no perguntei nada. Decerto amos jantar na intimidade mostra nalgum restaurante. Novidades norte-americanas: deixar o lar pela exibio. Ainda bem que eu no tinha dietas. Pela certa, se no devssemos ir Aparecida depois, aquilo tudo ainda acabaria em cinema, democraticamente, o que vale dizer em quase duas horas de sono, pois minha mulher se apanhando em sala com ar condicionado e msica dorme que nem uma bem-aventurada, essa bem-aventurana se propagando logo a mim. Afinal, melhor essa resoluo. Decerto Maria Clara e eu tnhamos vindo incgnitos a So Paulo (isto , sem retumbantes cartas avisando nossa chegada) , amos festejar sem escarcu nosso casamento; quando voltssemos para o Rio daramos com bateladas ..de telegramas da parentela toda. timo, timo! Mas . . . e aquela azfama na cozinha anteontem e ontem? Achei logo a explicao. " Rangel, Rangel, no viste tua mulher mexendo na mala-armrio, retirando e repondo tudo nos gavetes? Tiveste a cretinice de acreditar que Maria Clara era capaz de desfazer-se dos seus trofus de viagens, mesmo em se tratando de caixas de charutos, cachimbos, miniaturas de garrafas e mais pertences de enxoval permanente mais adequado a um celibatrio do que a um pobre juiz e desembargador posto sob a tutela duma Proserpina? ! O que Maria Clara fez foi rever, sentir, venerar lembranas do teu itinerrio de resignaes emburradas. " Jorge, h muitas maneiras de viajar. Mas minha mulher sempre conheceu apenas uma: fazer-me andar pelo mundo com aquela mala-armrio s costas, como um pobre Ssifo se habilitando para Prometeu.

    Esperei o efeito da comparao.

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  • - Por fim, o carro sai da Avenida 9 de Julho, d uma volta no antigo Piques, pra na esquina da Rua Formosa com a Ladeira da Memria. Rafada olha para trs, Lauro diz que vai colocar o carro no sei onde, minha mulher salta c eu me encolho todo dentro do carro disposto a armar um escndalo. "Desce, amor! " , dizia Maria Clara com seu ar de Sarah Bernhardt. Rafaela permanecia ao lado do marido, ela e ele neutros. Fiz um apelo a todas as minhas virtudes de longanimidade, achei que minha mulher j velha tinha o direito de ensaiar ainda um ou outro experimento; e ento, como a um condenado morte um carcereiro oferece um cigarro ou um chocolate, Maria Clara, depois de eu pular para a calada junto aos degraus do comeo da Ladeira da Memria, me ofereceu o brao. Eu no tinha seno um pressentimento muito vago do que se iria passar. No pensava propriamente em qualquer surpresa mnima ou mxima, isto , se Maria Clara resolvera apenas passar mais uma vez defronte do casaro paterno antes de jantarmos e seguirmos para a Aparecida, ou se iria dar um espetculo forando-me a mostrar-lhe as nicas coisas que no vira, o Indalcio e o Ata. (Sim, ao jantar na antevspera, eu falara minuciosamente ao Lauro sobre o soba e o ndio, e Maria Clara se desesperara por no haver visto exatamente o aspecto mais original do casaro : a gruta debaixo da escada com a mmia e o faquir.) "J sei, criatura, queres ver o Indalcio, exchefe do tambaque do Largo do Rosrio no tempo de teu pai, e lhe queres comprar colares de coral, ps de coelho, dentes de anta, figas da Guin, razes de pacov, e mais ingredientes de quiaa, maturimbimbe e picuanga. E quanto ao Ata, lhe queres comprar pela certa uerrhs e birs, perguntar-lhe se h hotis, manicuras e aparelhos de ondulao permanente em Itaboca, para depois de atulhares a malaarmrio com mais entulhos me propores a ltima viagem no mais a Nice e Ouchy nem a Havana e a Miami, e sim aos Travesses de Sant' Ana . . . "

    Espiou as horas, continuou : Dito isto lhe dei o brao enquanto o Lauro e a

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  • Rafaela sumiam; comecei a subir aquele Glgota. Foi s ento que percebi o seguinte paradoxo: estando minha mulher vestida agora com um vestido imitao do vestido do casamento civil, no era ela, sexagenria, que estava feia e sim o vestido apenas, pelo fato de ser um modelo antiqssimo. Mesmo a beleza anacrnica, meu caro Jorge, est sujeita a tais injunes. Aquele vestido . . . Aquelas luvas at acima dos cotovelos . . . O camafeu florentino na linha biclavicular . . . O semblante de minha mulher me sorrindo, um semblante que se baralhou, que sofreu transmutaes sem todavia deixar de continuar essencial, um semblante no de agora, mas de cinqenta anos antes . . . Ah ! Subindo a Ladeira da Memria eu via a Maria Clara de cinqenta anos antes ! Ento me sobreveio um estado de xtase, uma emoo no sentida desde muito. Instantaneamente me dei conta mais uma vez do que ela tinha sido e era para mim, da sua inteligncia, da sua perspiccia, da sua vivacidade. Alisei-lhe os dedos pousados na manga do meu sobretudo, sorri-lhe com gratido, olhamos os dois para aquela rampa plebia, para as grandes rvores por cujos troncos subiam heras, para o obelisco de cantaria de mestre Vicente, para o fronto de azulejos, para o lago, para aquela gente vria que subia e descia. E foi como se meio sculo antes estivssemos indo, depois duma sada de teatro, para o casaro do coronel Valria pouco antes da Rua do Paredo. Subindo a Ladeira da Memria recuperei o passado, me rendi submisso a quaisquer vontades - como sempre - de Maria Clara. Quis dizer e disse de forma a ela ouvir bem: " Louvado seja Deus que nos fez to felizes, to amigos um do outro, que nos outorgou filhos e netos . . . s a Maria Clara de sempre, lembro-me de ti outrora atravs do semblante que tens agora e me olhas com o teu semblante de antigamente . E tudo, em vez de baralhar-se fica ntido. Mesmo a evocao no um esforo e sim uma oferta ; e o tempo no tem passado nem presente e nem futuro pois e est simultneo . . . " Ah, meu caro Jorge, saber subir a Ladeira da Memria repetir o prodgio do Tabor.

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  • Olhou-me com firmeza, demoradamente. Bateu-me no l , rao.

    - Cho de pedrinhas. Vozes. Passos. Vultos. Parede contnua. nibus e bondes descendo Quirino de Andrade. Andaimes. Movimento urbano l em cima em Xavier de Toledo. A antiga casa de meu sogro ladeada por outros prdios como macrbia de asilo apoiada entre velhotas prest imosas . Janelas ao rs da ladeira. Sacadas no sobrado. Beiral de telhas negrejantes. Esquadrias . Portais. De brao dado passamos diante da porta fechada . Maria Clara fez meno de puxar-me. Resisto. Prosseguimos, eu com mpeto, ela travando o meu mpeto . Chegamos ao sop. Transeuntes . Agrupamentos. Gente sentada no paredo . Engraxates escarranchados em banquetas. Motorneiros . Condutores. Luzes dum caf. Maria Clara me olha misericordiosamente, e me puxa com doura mas com determinao para a ladeira. " Filha, e o jantar? Est bem, est bem. Queres ver o Ata? Sim, s o Ata, pois o Indalcio j deve ter ido para o t rabalh