JULIANA QUEIROZ SILVESTRE A LEGITIMIDADE DO DIREITO … · junto à consolidação dos regimes...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JULIANA QUEIROZ SILVESTRE A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO ESTADO FRANCA 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

JULIANA QUEIROZ SILVESTRE

A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO

NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO

ESTADO

FRANCA

2008

JULIANA QUEIROZ SILVESTRE

A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO

NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO

ESTADO

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas

FRANCA

2008

JULIANA QUEIROZ SILVESTRE

A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO

NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO

ESTADO

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado.

BANCA EXAMINADORA

Presidente: _________________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, UNESP

1º Examinador: ____________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). Jete Jane Fiorati

2º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Euclides Celso Berardo

Franca, _____ de ____________________ de 2008.

Aos meus pais Antonio e Carmelina (in memorian), Aos meus irmãos Mara, Fernando, Ricardo e Flávio, À minha tia Cida, Minha gratidão, meu respeito e meu amor.

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, estimado filósofo, professor e amigo, pela orientação neste trabalho e pela humildade em partilhar sua imensa sabedoria.

À Laura e Pádua pela valiosa cooperação, e aos demais funcionários da Faculdade de

História, Direito e Serviço Social da UNESP, que qualificam o serviço público e o ensino superior.

À minha amiga Érika por ter compartilhado todos os passos de desenvolvimento deste

trabalho. Ao meu namorado, companheiro e amigo Rodrigo pelo carinho, estímulo,

compreensão e paciência.

O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em

direito e a obediência em dever.

Jean-Jacques Rousseau

SILVESTRE, Juliana Queiroz. A legitimidade do direito de punir em decorrência do não cumprimento das obrigações constitucionais pelo Estado. 2008. 134f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2008.

RESUMO Uma das mais destacadas funções do Estado é o exercício do controle social. Para tanto, o jus puniendi, entendido como uma parcela do poder do Estado atua como instrumento de tal controle e constitui um dos pilares de equilíbrio do Estado Democrático de Direito. Isto porque o Direito Penal pode ser considerado como o Direito a atuar em última instância nas relações sociais; ou seja, antes de punir qualquer infrator do Ordenamento Jurídico, o Estado, por outros meios, jurídicos e políticos, deve zelar pela prevenção de delitos. Em termos jurídicos, o Estado, como pessoa jurídica, também está submetido ao princípio da legalidade (art. 5°, inciso II, CF), em que apenas a norma legal – princípios e regras - é capaz de exigir determinado comportamento de pessoas, que ficam adstritas à sua observância e cumprimento. Uma vez adotado o modelo Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), nosso Estado, além de respeitar a legalidade - o “breque” de seu poderio - deve atuar legitimamente na esfera social, nos moldes estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, o artigo 3° do Texto Constitucional estabelece quais os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento social; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades e; promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos. Dessa forma, no plano político, o Estado, para atingir seus objetivos, deve cumprir as obrigações constitucionais que o Poder Constituinte dispôs no Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” - lembrando que os deveres estatais neste não se esgotam, permanecendo difundidos em todo Texto Constitucional. Estas obrigações ou deveres constituem uma teia, sendo cada intersecção desta correspondente a um princípio constitucional, que amarra e vincula todas as outras normas à sua observância. Podemos dizer, destarte, que o fundamento dos deveres constitucionais se assenta nos princípios que, por sua vez, encontram-se no mais alto patamar do conjunto das normas jurídicas. Os princípios constitucionais têm o condão de ditar quais as “regras do jogo”, ou seja, veicular o modus operandi do Estado Democrático. Portanto, os princípios são normas jurídicas, aptos a produzirem efeitos (aplicação imediata) na esfera social, além de ocuparem a mais alta hierarquia das leis. O problema das obrigações constitucionais – normas programáticas - repousa na efetividade de seus comandos o que, conseqüentemente, lança uma reflexão sobre a questão da legitimidade do poder estatal. Satisfeitas as obrigações constitucionais, ou mesmo, empenhando-se para a realização das mesmas, o Estado legitima o exercício de seu poder e, conseqüentemente, também legitima e torna justa a aplicação do jus puniendi a qualquer dos indivíduos. A legitimidade, neste caso, é questionada acerca do exercício de poder do Estado. Não se discute a questão da legitimidade do poder do Estado – no caso, do jus puniendi – em sua origem, o que é pacífico; mas esta legitimidade pode se perder em decorrência das práticas ou omissões do Estado que violam o conteúdo material e valorativo da Constituição. Destarte, o poder legítimo, neste caso, é aquele exercido de forma justa, no compasso dos princípios e diretrizes constitucionais e nos moldes das obrigações constitucionais. Palavras-chave: legitimidade. direito de punir. obrigações constitucionais. Estado. Democracia.

SILVESTRE, Juliana Queiroz. La legitimità del Diritto di punire in decorrenzia del non òbblighi costituzionali per lo Stato. 2008.134 foglie. Dissertazione (Maestria in Diritto) - Facoltà di Storia, Diritto ed Servizio Sociale, Università Statale Paulista "Julio de Mesquita Filho", Franca, 2008.

RIASSUNTO

Una delle più distacata funzioni dello stato è il esercizio del controlo sociale. Per tanto, il jus puniendi, intentuto come una particella del potere dello stato attua come strumento di tale controlo ed costitue uno dei pestari dell’equilibrio dello Stato Democràtico di Diritto. Questo perchè il Diritto Penale pote essere considerato come il diritto che fà attuare in ùltima istanza nelle relazioni; o sarai, dianzi di punire qualùnque trasgressore del Ordinamento Giuridico; lo stato, per l’altri mezzi, giuridici ed politici, debbe zelare per la prevenzione di deliti. In conclusione giurdici, lo stato, come persona giuridica, anche questo sottomesso al principio della legalità (art.5, inciso II, CF) nella quale appena la norma legale – principi ed regre è capace da esigere determinata condota di persone che restano ristretto alla sua osservancia e complimento. Una vece adottato il modelo Democratico di Diritto (CF, art 1º - caput) nostro stato, oltre da rispettare la legalità – il “freno” dello suo dominio – debbe attuare legitimamente nella sfera sociale, nei tagli stabiliti per la Costituizione Federale. Così, il articolo 3º del testo costituzionale stabili quali i oggetivi fondomentali della Repubblica Federativa del Brasile, a quali sono costituire una società libera, giusta ed solidaria; garantire il svolgimento sociale; sradicare la povertà e la marginalizazione, ridotto le desiguaglianza e promovere il bene di tutti, senza qualùnque preconcetti. Codesta forma, nel piano politico, lo stato, per attingere suoi oggetivi debbe soddisfare le obbligazioni costituzionali che il potere costituinte dispone nel Capìtolo I del Tìtolo II, entitolato “Dei Diritti ed Doveri Individuali ed Coletivi” – ricordando che i debberi statali in questo non si esaureno, permanecendo diffondite in tutto il testo costituzionale. Queste obbligazioni o debberi constitueno una struttura, sendo ogni intersezione di questa corrispondente a uno principi constituzionale che legga ed vincola tutte l’oltre norme alla sua osservanza. Potteremo dire, così che il fondamento dei debberi constituzionali si fà sedere nei principi che, per la sua vece, si incontrano nel più alto pianerottolo del congiunto delle norme giuridiche. I principi costituzionali hanno il privilegio di attare quali le “regre del gioco”, o debbe essere veicolare il modus operandi dello Stato Democratico. Pertanto, i principi sono norme giuridiche capaci a produrreno efetti (applicazione immediata) nella sfera sociale, oltre occupareno la più alta gerarchia delle leggi. Il problema delle obbligazioni costituzionali – norme programatiche – ripousa nella efetività di suoi comandi o che, consequentemente, getta una reflessione sopra la questione di legitimità del potere statale. Soddisfate le obbligazioni costituzionali, o medesimo impegnandosi per la effetuazione delle stessa cose, il stato legìttimo il esercizio dello suo potere e consequentemente, anche legittima e volge l’applicazioni del jus puniendi a qualùnque degl’individui. La legitimità in questo caso, è questionato intorno dell”esercizio del potere dello stato. Non si discutere la questione della legitimità del potere – nel caso, del jus puniendi – in sua origine, che è pacìfico; ma questa legitimità pote si perdere in decorrenza delle pratiche o ommessioni dello stato violano il contenuto materiale ed valorativo della costituzione. Così, il potere legittimo , in questo caso, è quello esercizio di forma giusta, nel compasso dei principi e direttrice constituzionali e nei moldi delle obbligazioni costitucionali. Parole chiave: Legimità. Diritto di punire. Obbligazioni constituzionali. Stato. Democrazia.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11

CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

1.1 Origem e formação do Estado......................................................................................... 15

1.2 Evolução histórica............................................................................................................ 17

1.3 Conceito.............................................................................................................................19

1.4 Finalidade......................................................................................................................... 20

1.5 O Estado e o poder........................................................................................................... 22

1.6 Origens do Estado Democrático..................................................................................... 26

1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional.................................................................... 29

1.8 Estado Democrático de Direito....................................................................................... 31

1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito............................................................... 32

CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

2.1 Os princípios fundamentais – conceitos......................................................................... 34

2.2 Normatividade e evolução dos princípios...................................................................... 37

2.3 Princípios, normas e regras............................................................................................. 38

2.4 Importância dos princípios e sua superioridade em relação às regras ...................... 41

2.5 Natureza e características dos princípios constitucionais ........................................... 43

2.6 Tipologia dos princípios .................................................................................................. 46

2.7 Princípios na Constituição de 1988 ................................................................................ 47

2.8 Interpretação dos princípios constitucionais ................................................................ 50

2.9 O Direito Natural e os princípios constitucionais ........................................................ 52

2.10 A atuação prática dos princípios constitucionais ....................................................... 54

CAPÍTULO 3 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS

3.1 Considerações preliminares ........................................................................................... 58

3.2 Conceito e fundamentos .................................................................................................. 59

3.3 Antecedentes dos deveres fundamentais ....................................................................... 61

3.4 Deveres nas Constituições brasileiras ........................................................................... 64

3.5 Deveres na Constituição de 1988 ................................................................................... 65

3.6 Tipologia, titulares e destinatários das obrigações constitucionais............................. 67

3.7 Relação entre obrigações constitucionais e direitos fundamentais.............................. 68

3.8 Relação entre obrigações constitucionais e princípios constitucionais....................... 69

3.9 Eficácia e aplicabilidade dos deveres fundamentais..................................................... 70

CAPÍTULO 4 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO

4.1 A vida humana em sociedade: origens do delito e da pena ......................................... 72

4.2 Evolução do jus puniendi e do Estado ........................................................................... 73

4.2.1 Período da vingança privada ......................................................................................... 74

4.2.2 Período da vingança divina ........................................................................................... 75

4.2.3 Período da vingança pública.......................................................................................... 76

4.2.4 Período Humanitário ..................................................................................................... 79

4.2.5 Período Criminológico................................................................................................... 81

4.2.6 Período Contemporâneo ................................................................................................ 82

4.3 Fundamentos do Direito de Punir ................................................................................. 84

4.4 O Direito de punir no Estado Democrático de Direito ................................................ 88

CAPÍTULO 5 LEGITIMIDADE

5.1 Antecedentes históricos ................................................................................................... 93

5.2 Conceitos de legitimidade ............................................................................................... 97

5.3 Legitimidade e legalidade ............................................................................................. 101

5.4 Teoria da racionalidade progressiva de Max Weber ................................................. 105

5.4.1 Dominação legal-racional.............................................................................................106

5.4.2 Dominação tradicional..................................................................................................107

5.4.3 Dominação carismática.................................................................................................107

5.5 Legitimação pelo procedimento de Niklas Lumhann ................................................ 108

5.6 Legitimidade em Habermas ......................................................................................... 111

5.7 Legitimidade e Constituição Dirigente para Canotilho ............................................. 113

5.8 Legitimidade centrífuga.................................................................................................116

5.9 Ética e Legitimidade ..................................................................................................... 119

5.10 Legitimidade e Justiça .................................................................................................121

5.11 Legitimidade e Direito de Punir .................................................................................124

CONCLUSÃO.......................................................................................................................128

REFERÊNCIAS....................................................................................................................130

INTRODUÇÃO

A questão do primado da Constituição como norma fundamental do Estado,

garantindo aos indivíduos direitos fundamentais, tem suas raízes no século XVIII e XIX,

junto à consolidação dos regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós-

revolucionários. A idéia inicial foi desafiar os poderes dos monarcas, limitando-os, na medida

em que estes foram reduzidos à categoria de órgão do Estado; em contrapartida, sobreveio a

soberania popular que concedeu importância ao povo, agora figurando como um dos

elementos do Estado. Embora liberais, as Constituições não eram, ainda, democráticas.

O Estado Democrático moderno nasceu, destarte, das lutas contra o absolutismo,

sobretudo através do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande

influência jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais

perante a lei e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a

conservação de direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a

propriedade e a segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou

indiretamente, da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao

Direito, tornou-se, também, sujeito de direitos e deveres.

No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a elencar os direitos sociais ou de

segunda geração, tendo como fonte inspiradora a Constituição da Alemanha de Weimar de

1919. Passados alguns anos de autoritarismo e ditadura, sobreveio a Constituição Federal de

1988, prolixa e analítica, não hesitando ao prever todos os direitos e deveres individuais e

coletivos, além de estabelecer metas a serem alcançadas pelo Governo. Neste estágio, a

Constituição passou a ser um instrumento de governo, uma vez que confere legitimidade ao

poder estatal, limitando-o e submetendo-o à observância e cumprimento dos comandos

constitucionais.

Assim, a atual Constituição do Brasil, ao subdividir o Título II (Dos Direitos e

Garantias Individuais), nomeou o Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.

Cabe ao Estado, portanto, o dever constitucional de respeitar tais direitos. Porém, não há,

neste Título, qualquer dever discriminado, entendendo grande parte dos doutrinadores que se

encontram esparsos e implícitos na totalidade do Texto Constitucional.

A esses deveres inseridos, pois, no texto constitucional, alguns doutrinadores

chamam “deveres fundamentais” e, outros, de “obrigações constitucionais”. Podemos dizer

que as obrigações constitucionais constituem uma categoria especial de deveres jurídicos, em

que o Estado, respeitando a dignidade humana (um dos fundamentos da República Federativa

do Brasil, segundo o artigo 1°, III), atua com as finalidades primordiais de tutela da Ordem

Pública e de realização do bem comum.

O fundamento de validade das obrigações constitucionais se encontra nos

princípios constitucionais, petrificados pela Constituição Federal (art. 60, § 4°, IV), jamais

podendo ser suprimidos. Disto decorre que o não cumprimento de quaisquer das obrigações

constitucionais implica na violação de um princípio constitucional por parte do Estado. Surge

para o Estado, destarte, o dever como imperativo ético de cumpri-las, providenciando as

condições materiais de aplicabilidade.

Somente através de leis lato sensu, devidamente elaboradas de acordo com

processo legislativo previsto pela Constituição, podem ser criadas obrigações para o indivíduo

e para o Estado, pois aquelas são expressão da vontade geral do povo. A Constituição Federal,

uma vez positivada, é a força motriz do Estado, contendo todas as suas diretrizes políticas,

econômicas e sociais. A “arte de governar” deve ser inspirada em princípios éticos, mas,

sobretudo, não pode o Estado abandonar as regras racionais que lhe são próprias, colocando

em risco o princípio da segurança jurídica.

Ao conceder esses direitos aos indivíduos, a Constituição confere deveres aos

Poderes Públicos, compondo, pois, uma relação obrigacional; o Estado (sujeito passivo) se

propôs a fazer ou não fazer qualquer coisa (viabilizar o acesso à educação, trabalho, moradia,

dentre outros) em favor da população (sujeito ativo). O inadimplemento do Estado implicaria

na reparação do prejuízo que causara aos indivíduos da sociedade. Qual seria a

responsabilidade do Estado inadimplente?

O Estado brasileiro apresenta atualmente problemas de adequação das normas

constitucionais às reais necessidades de seus cidadãos, gerando a sensação de ineficácia do

texto constitucional. Ocorre que os textos constitucionais devem ser a expressão da vontade e

dos ideais do povo, revelando a identidade constitucional destes sujeitos e devendo, portanto,

ter sua participação direta quando de sua elaboração. Tal fato repercute gravemente em

questões como legitimidade do poder, sua representatividade e eficácia da norma

constitucional.

A observação das realidades sociais, culturais e econômicas denuncia as

condições de sobrevivência oferecidas pelo Estado aos cidadãos. Neste caso, “cidadão” não

seria o termo correto, mas sim, súditos, desprovidos, parcialmente, de liberdade e de direitos.

Um Estado que primasse pelo cumprimento das obrigações constitucionais proporcionaria a

todos, igualmente, condições para o pleno desenvolvimento social, cultural e espiritual.

Assim, o poder de punição do Estado surge como uma das mais destacadas

funções do Direito, qual seja, o exercício do controle social e a defesa da sociedade. No caso

de um Estado Democrático de Direito, pressupõe-se um controle limitado à estrita

observância à legalidade constitucional, voltado à preservação da sociedade. A segurança é,

pois, um dos princípios constitucionais presentes no caput do artigo 5° do Texto

Constitucional, ao lado da vida, liberdade, igualdade e propriedade. São princípios que, além

de invioláveis, devem ser garantidos pelo Estado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes

no País.

É assim que o jus puniendi, no entanto, só pode ser exercido se respeitadas certas

limitações constitucionais, legais e dogmáticas dentro do Estado Democrático de Direito, tais

como os princípios da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade da lei mais severa,

dentre outros. Este direito de punir, no entanto, gera uma obrigação para o Estado que, diante

de uma infração de natureza criminal, tem um dever de punir em nome da preservação da

sociedade. O dever de punir encontra seu fundamento na própria Constituição, que submete

todos (princípio da isonomia), inclusive os Poderes Públicos, à observância da lei (princípio

da legalidade). Assim, o fato de os indivíduos possuírem direitos fundamentais gera um dever

para o Estado de torná-los concretos. Numa visão utilitarista, como a Constituição resguarda

os direitos individuais (que exprime uma ética de intenção), cabe ao Estado a voluntariedade

de materializá-los (ética de ação), sob “pena” de o Estado perder o direito de exigir a

contraprestação social. Assim, o Estado só terá o poder – de fato - de punir quando cumprir

suas obrigações constitucionais. Embora um tanto radical esta visão, esbanja precisão quanto

à razão pela qual o Estado deve cumprir seus deveres.

Finalmente, a análise destes conceitos e institutos permitirá maior segurança para

a elaboração de uma conclusão crítica sobre o tema. Para que o direito de punir do Estado seja

legítimo, deve ser exercido de maneira justa. Um real Estado Democrático de Direito não é

compatível com um direito de punir apenas fundado na legalidade. Ele deve ser legal e

legítimo, sob o risco de esconder face autoritária do mesmo.

O “problema” das obrigações constitucionais – normas programáticas de eficácia

limitada - é que não possuem conteúdo totalmente concretizado na Constituição, carecendo de

legislação infraconstitucional, no sentido de não serem diretamente aplicáveis. É o que

demonstra a realidade social, cindida por contrastes desafiadores dos princípios fundamentais

que deveriam orientá-la. Dessa forma, a questão da legitimidade será analisada não sob o

aspecto jurídico, mas sob a ótica sócio-política, como pretendem algumas vertentes

sociológicas, especialmente as propostas por Max Weber, Niklas Luhmann, Habermas, além

de Canotilho e outros mencionados.

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CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

1.1. Origem e formação do Estado

O homem, consideradas as suas qualidades sui generis, sejam a racionalidade e a

produção cultural, que lhe proporcionam a capacidade de transformar o meio ambiente de

acordo com seus interesses, é um ser fadado ao relacionamento. A idéia de associação está

diretamente ligada a um interesse, ou à consecução de um fim que apenas a cooperação entre

homens é capaz de viabilizar. Um animal selvagem, por exemplo, desprovido daquelas, não

possui alternativas, senão a de se adaptar ao meio, rendendo-se às condições que este lhe

impõe. Como bem observou Giorgio Del Vecchio1:

A sociedade é um fato natural determinado pela necessidade que o homem tem de viver com os seus semelhantes. O homem, para viver isolado, fora da sociedade, deveria ser (consoante escreveu Aristóteles) – um bruto ou um Deus – ou seja: qualquer coisa menor ou qualquer coisa maior que o homem. Mas, dada a sua natureza, outro remédio não tem senão o de se associar, de pertencer a uma sociedade.

Destarte, ao se observar os tempos remotos – e nem há a necessidade de se voltar

tanto na História – não se pode afastar a existência de uma força centrípeta que diminui e

reforça, paulatinamente, os laços existentes entre os seres humanos. Nos primórdios dos

agrupamentos humanos não havia, ainda, qualquer tipo de organização e muito distantes

estavam do que se conhece por civilização. Porém, a experiência do convívio social se

encarregou em despertar e promover a evolução de tais agrupamentos que, cada vez mais

organizados, culminaria, num longo período de aprendizado dos homens, no que conhecemos

como Estado de Direito e, num grau de desenvolvimento ainda maior, no Estado Democrático

de Direito.

Falar sobre a origem e formação do Estado implica em uma polêmica discussão

doutrinária que rendeu inúmeras teorias, não cabendo neste trabalho, a apresentação de todas,

apenas daquelas que exerceram maior influência sobre o pensamento político das épocas que

se seguiram.

Sob o ponto de vista da época em que o Estado surgiu, são três as posições, a

saber:

1 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia de direito. Tradução de Antônio José Brandão. 4. ed. Coimbra:

Armênio Amado, 1972. v. 2. p. 217 (destaque do autor).

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a) A primeira acredita que o Estado sempre existiu concomitante à sociedade.

Nesta posição destacam-se Eduard Meyer e Wilhelm Koppers, que consideram

o Estado como elemento universal na organização humana2.

b) A segunda vertente entende o surgimento do Estado para atender aos anseios

dos grupos sociais, sendo, portanto, posterior a estes. Não surgiu, ao mesmo

tempo, em todos os lugares, mas em cada um, dependendo das suas condições.

c) A terceira posição acredita na existência do Estado a partir de características

bem definidas. Carl Schmidt acredita se tratar de um conceito histórico

concreto, a partir da idéia e da prática da soberania no século XVII. Também

compartilham destas idéias Kelsen, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira3.

Quando se fala em causas do aparecimento do Estado, duas vertentes devem ser

levadas em consideração: uma que procura explicar a formação originária do Estado; e outra

que justifica a formação derivada do mesmo.

Quanto à formação originária, são duas as teorias, a saber: aquelas que afirmam a

formação natural ou espontânea do Estado, tendo em comum a afirmação de que o Estado se

estabeleceu naturalmente, por um ato voluntário; e outras que sustentam a formação

contratual do mesmo, a partir de um ato volitivo dos homens. As teorias que sustentam a

formação natural, segundo Dallari4, podem ser agrupadas pelos seguintes critérios:

a) Origem familiar ou patriarcal: o Estado sendo uma extensão da entidade

familiar, tendo como principal representante Robert Filmer.

b) Origem em atos de força, violência e conquista: o Estado como conseqüência

da dominação dos mais fracos pelos mais fortes; Oppenheimer é o principal

representante.

d) Origem em causas econômicas: o Estado como um produto da sociedade

quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento, segundo Marx

e Engels, dentre outros.

e) Origem no desenvolvimento interno da sociedade: o desenvolvimento

espontâneo da sociedade origina o Estado, não havendo a influência de fatores

externos à sociedade, como interesses dos indivíduos; representada por Robert

Lowie. 2 CARVALHO JUNIOR, Clóvis. As origens do Estado. 1988. 393 f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de

História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 1988. v. 1. p. 35.

3 NOGUEIRA, José Carlos Ataliba. Lições de teoria geral do estado. 1969. p. 46-47 apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 44.

4 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 46-47.

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As diversas vertentes do contratualismo – Rousseau, Hobbes, Locke e Grócio -,

apesar das diferenças no tocante à natureza humana, pressupõem certo grau de liberdade

imanente aos homens; assim, por manifesta vontade destes em prol da necessidade de

harmonia social, segurança e possibilidade de realização de interesses – sem a sobreposição

de alguns em detrimento de outros -, optam pelo contrato social como garantia de uma vida

pacífica e não hostil.

Quanto aos processos derivados, a formação do Estado pode ocorrer através do

fracionamento ou pela união de Estados. Tem-se o fracionamento quando uma parte se

desmembra do território estatal passando a constituir outro. A união reúne vários Estados que

se vinculam pela adoção de uma Constituição comum.

1.2 Evolução histórica

O estudo da evolução do Estado procura fixar as formas fundamentais que o

mesmo tem adotado através os séculos. Busca a tipificação do Estado, a descoberta de

movimentos constantes e a formulação de probabilidades quanto à sua futura evolução.

Para se conceber o Estado tal qual se apresenta hodiernamente, a Doutrina, em

geral, percorre dois caminhos: o primeiro pretende alcançar o momento de seu aparecimento,

e o segundo investiga as causas de surgimento do mesmo. Por fim, a Doutrina se preocupa,

ainda, com o estudo dos tipos de Estado, ou seja, com a questão da formação de Estados a

partir de outros preexistentes.

Quanto à época, de modo geral, “pode-se dizer que do século XVI em diante o

termo Estado vai aos poucos tendo entrada na terminologia política dos povos ocidentais”. 5

Mas é Maquiavel6, especificamente em ocasião de sua obra “O Príncipe”, que data de 1513,

que utilizou o termo associado à sociedade política.

Para efeitos didáticos, estuda-se o tema dentro de uma sucessão cronológica,

justamente para uma melhor compreensão do Estado contemporâneo. É possível, dessa forma,

distinguir os tipos de Estado, ao qual se dedicou Jellinek7 como uma de suas maiores

contribuições à Teoria Geral do Estado. Seguindo suas lições, cronologicamente, o Estado

percorreu as seguintes fases:

5 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 17. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. p. 7. 6 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 6. ed. São Paulo: Martins Claret, 2008. passim. 7 JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros,

1954. p. 24.

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a) Estado Antigo: também conhecido como Estado Teocrático ou Oriental; refere-

se à forma mais antiga de Estado, caracterizado, principalmente pela natureza

unitária e pela religiosidade. A autoridade dos governantes, assim como as

normas de comportamento, tinha amparo num poder divino.

b) Estado Grego: apesar de não empregarem o vocábulo “estado”, possuíam

organismos similares embebidos de teor político, tal qual se apresentam os

Estados Modernos, como se vê verá adiante.

c) Estado Romano: como na polis grega, o Estado era governado pelo povo, um

termo ainda restrito e limitado segundo as modernas orientações. Os

governantes supremos eram os magistrados pertencentes às famílias patrícias.

Assim, a família é o elemento base de sua organização. O advento do Império

Romano e sua grandiosidade empreenderam a integração jurídica dos povos

conquistados, ao passo que novas camadas sociais surgiam e adquiriam

direitos, sem, no entanto, desintegrar o núcleo da organização política.

d) Estado Medieval: foi marcado pelo cristianismo, pelas invasões bárbaras e pelo

sistema feudal. A luta empenhada pela Igreja em expandir o Império cristão foi

responsável pela universalização dos ideais de igualdade, de amor ao próximo,

bem como o esforço que se empreendeu em recuperar a unidade política. Neste

sentido foi a atitude do papa Leão III ao conferir a Carlos Magno, no ano de

800, o título de Imperador, que acabou fracassando perante o imenso e

complexo Império nos últimos séculos da Idade Média. Esta condição gerou

uma enorme necessidade de restabelecimento da ordem e da autoridade, donde

surge o Estado Moderno.

e) Estado Moderno: nasceu da frustrada tentativa de unidade do Estado Medieval,

somada, dentre outros fatores, à intolerância dos senhores feudais à alta

tributação dos monarcas e ao constante estado de guerra. Buscou-se, então, a

unidade territorial, sob os ditames de um poder soberano, aspiração

documentada pelos tratados de paz de Westfália, que anunciaram o Estado

Moderno. Tais tratados, que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, são

apontados pela Doutrina, como o marco da Diplomacia Moderna, donde foi

reconhecida, pela primeira vez, a soberania dos Estados envolvidos.

19

1.3 Conceito

O termo “Estado” deriva do latim status, que quer dizer “estar firme”. De

imediato, pois, pode-se atribuir ao mesmo dois caracteres intrínsecos: o de permanência e o de

rigidez. Vários são os conceitos encontrados na Doutrina, sendo que cada um reflete o

momento histórico e a ideologia política reinante da época. Destarte, a conceituação do

Estado parece tarefa difícil e corre o risco de limitações e mesmo de interpretações adversas.

Assim, para os gregos, o Estado limitava-se ao continente da polis. Preleciona

Azambuja8, que os romanos utilizavam o termo status republicae para designar a situação, a

ordem permanente da coisa pública, dos negócios do Estado. Talvez o desuso do segundo

termo pelos autores medievais condicionou a utilização de Status com a significação moderna.

Continua o mesmo autor que, posteriormente, na linguagem política e nos documentos

públicos, o termo foi utilizado para representar as três classes que formavam a população dos

países europeus: a nobreza, o clero e o povo. É no século XVI que o termo passa a ser

utilizado pelos povos ocidentais.

As diversas teorias acerca do conceito de Estado podem ser divididas em três

grupos; são eles: os conceitos filosófico, sociológico e jurídico, enumerados por Paulo

Bonavides.9

Filosoficamente, Hegel definiu o Estado como a realidade da idéia moral, a

substância ética consciente em si mesma, e manifestação da divindade; considerado

dialeticamente como instituição mais alta, conciliando as contradições da Família e da

Sociedade.

O conceito sociológico ou político não descarta a natureza jurídica do Estado, mas

consideram-no, sobretudo, um poder em si. Neste sentido, Duguit10 considera o Estado como

“a força material irresistível” sendo, atualmente, limitada e regulada pelo Direito. Também

Max Weber chama o Estado de comunidade humana dentro de um determinado território que

reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monopólio da violência legítima.

Da mesma forma, as teorias jurídicas não eliminam a presença do elemento força

do conceito de Estado. Porém, o Estado passa a ser visto como pessoa jurídica, sendo que seu

funcionamento é subordinado a regras jurídicas. É assim que Jellineck11 elaborou a noção de

Estado como a “corporação territorial dotado de um poder de mando originário”. Também 8 AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 12. ed. São Paulo: Globo, 1999. p. 28-29. 9 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 62-66. 10 DUGUIT, Leon. Traite de droit constitutionnel. 3. ed. Paris: E. de Boccard, 1927. p. 93. 11 JELLINECK, 1954, op. cit., p. 103.

20

Kelsen12 fixa uma noção genuinamente jurídica de Estado, como a ordem coativa normativa

da conduta humana.

De todo o exposto, o Estado deve ser conceituado envolvendo suas dimensões

política e jurídica; assim, pode ser considerado como a sociedade jurídica e politicamente

organizada para atender ao bem comum. Pode, destarte, ser considerado como a forma mais

perfeita de organização social, produto da evolução e da cultura; tanto que sua composição,

dessa forma, pode ser observada como uma tendência universal: a perfeita síntese de uma

orientação genérica, ordinária, evolutiva e cultural, responsável por sedimentar os laços da

convivência humana.

1.4 Finalidade

O estudo acerca da finalidade do Estado é de grande importância prática, dado que

é através da consciência desta que se pode fazer um julgamento sobre a presente atuação

estatal ou verificar em qual medida o Estado atende ou não seus propósitos. É necessário, para

tanto, que as finalidades estatais coincidam com o desempenho de suas funções. Neste

sentido, como se verá no capítulo V, a legitimidade de todos os atos do Estado depende de sua

adequação às finalidades. Mas quais seriam exatamente estas finalidades?

Alguns autores consideram o Estado um fim em si mesmo, sendo o homem, um

instrumento do qual se serve o Estado para a realização de sua grandeza. De modo contrário,

há aqueles que sustentam o Estado como instrumento do homem para a realização da paz

social e da justiça; estas seriam, pois, as finalidades daquele. Esta é a posição de Ataliba

Nogueira e Azambuja, segundo a qual: “O Estado é um dos meios pelo qual o homem realiza

o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a existência do

Estado”. 13

Outra posição, um tanto reducionista, seria a de Kelsen14, dentre outros, que

atribui a discussão das finalidades do Estado ao campo da Política, não devendo a Teoria

Geral se ocupar de questões alheias ao campo técnico-jurídico.

Aristóteles entende que o Estado, como criação da natureza, tem a finalidade de

viabilizar a consecução da felicidade humana, tornando possível a completa realização de

todas as capacidades do homem. O fim do Estado é, pois, assegurar ao homem o exercício de

12 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 63. 13 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114. 14 KELSEN, op. cit., p. 41.

21

todos os direitos fundamentais, viabilizando sua felicidade. Essas faculdades só poderão ser

plenamente desenvolvidas vivendo no seio de uma comunidade (cidade-estado). Logo, faz

parte da natureza humana viver na cidade-estado.

Enquanto Hobbes afirma que os homens devem renunciar aos seus direitos

existentes no estado de natureza, Locke15 afasta tal possibilidade, uma vez que contraria os

objetivos do contrato social: Nenhum homem ou sociedade tem o poder de renunciar à própria preservação, e, portanto, aos meios de fazê-lo em favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de alguém, e sempre que houver a tentativa de reduzi-los a tal situação de escravidão, terão direito de preservar aquilo que não tinham, o poder de alienar, e de livrar-se dos que violam a lei fundamental [...].

O estimado professor Clóvis Carvalho Júnior16, ao considerar o Estado como fruto

de um processo da evolução natural, subordinado às causas econômicas e culturais, bem

sintetizou suas finalidades: “Conceitos como desenvolvimento da personalidade, satisfação

das necessidades mínimas, segurança e busca da felicidade estão incluídos de maneira natural

nas finalidades do Estado.”

A noção de bem público é pertinente nesta discussão sobre a finalidade estatal

justamente por demonstrar a existência de parcelas de fruição comum17. Citando novamente

Darcy Azambuja18, a maioria dos autores confunde os conceitos de “fim” e de “competência”

do Estado, chegando muitos a afirmarem a impossibilidade de determinação dos fins estatais

devido à variabilidade dos mesmos. Porém, o mesmo autor adverte que os fins são os bens

públicos, que são invariáveis; variáveis seriam os meios empregados para a consecução dos

mesmos. Os bens públicos formam um conjunto de meios que visam o aperfeiçoamento de

determinada sociedade, tendo em vista a satisfação das necessidades de seus membros.

A realização do bem-público, assim, origina uma série de deveres e obrigações,

que devem ser claramente definidos como expressão da consciência social. Codificam-se,

pois, os direitos individuais e sociais. Os primeiros constituem obrigações negativas do

Estado, ou seja, o que ele não pode fazer para embaraçar o desenvolvimento do indivíduo. Os

direitos sociais geram obrigações positivas ao Estado e ao indivíduo; define quais as

15 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004.

p. 109. 16 CARVALHO JUNIOR, op. cit., p. 102. 17 Por bem público pode-se entender, em sentido amplo, a parcela de bens destinados direta ou indiretamente à

utilização do povo, ou em benefício deste, embora sua titularidade pertença à União, aos Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios, ou a suas autarquias ou a suas fundações de direito público.

18 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114.

22

providências que deve tomar o Estado para que o indivíduo coopere de modo eficaz para a

realização do bem público. Na visão de Azambuja19:

Segurança e progresso, eis uma síntese do bem comum. [...] O Estado não cria a prosperidade material, a Arte, a Ciência, A Moral, o Direito, que são criações da alma humana, e por isso não tem poder direto sobre ela. Seu domínio é o temporal, o equilíbrio e a harmonização da atividade do homem, para que a liberdade de um não prejudique a igual liberdade dos outros.

Surge, pois, um desafio frente aos Estados Modernos Democráticos: a realização

dos bens públicos por meio do cumprimento de suas obrigações para com a sociedade do qual

faz parte. O conjunto dessas obrigações a serem realizadas pelo Estado é o que Azambuja20

entende por competência do mesmo, ou seja, deveres de exclusiva atribuição do Estado. A

tendência dos Estados Modernos é alargar cada vez mais tais suas atribuições, gerando uma

hipertrofia estatal. Não basta, todavia, alargar cada vez mais o plano de atuação e interferência

estatal ao ponto de provocar sua ineficácia. Aliás, diga-se que o Estado – em especial o

Brasileiro – já está obrigado sob a égide da Carta Constitucional de 1988 em que o Poder

Constituinte Originário não titubeou na sua redação prolixa, pormenorizada exaustivamente e,

ainda, inesgotável, de forma a não deixar escapar as previsões fundamentais de um Estado.

Impõe-se, diante de expressa previsão da Carta Maior, a realização material das suas

finalidades.

1.5 O Estado e o poder

Estabelecido o critério para definição da finalidade estatal, resta saber qual a

necessidade de manutenção do elemento aglutinador por excelência dos agrupamentos

humanos: o poder. Como um elemento impositivo, limitador das liberdades humanas é capaz

de preservar um Estado de modelo democrático e, ainda, preservar ou não ameaçar sua

legitimidade?

Este elemento é de alta relevância para o presente trabalho, uma vez que será

questionado ao longo do mesmo no tocante à legitimidade do poder de punir do Estado. A

legitimidade, no entanto, será dissecada ao final deste, donde serão analisadas as definições

dos mais expressivos autores sobre este tema. Portanto, neste ponto, importante é o

adiantamento de que o referido termo será entendido, previamente, como uma qualidade do

19 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 119. 20 Ibid., p. 123.

23

poder, que deve ser avaliada não apenas na sua aquisição, mas também no seu exercício.

Assim, não basta um título obtido de maneira justa para que seja legítimo; da mesma forma, é

necessário que o mesmo seja exercido de maneira justa.

A maioria dos autores que têm se encarregado do estudo deste tema reconhece-o

como imprescindível à vida da sociedade. Muitos chegam a afirmar que ele sempre existiu,

mesmo nos agrupamentos mais primitivos. A observação dos comportamentos das mais

diversas sociedades revela que mesmo as mais desenvolvidas e organizadas apresentam

dissidência dos membros, conflitos de interesses que não dispensam o poder como elemento

mantenedor do corpo social.

As manifestações mais primitivas de poder foram caracterizadas pelo aspecto

material da força, que definia quais os chefes dos grupos, os mais fortes e preparados para a

condução e defesa do grupo das ameaças externas. Outro critério utilizado em tempos remotos

foi o sobrenatural: quando muitos acontecimentos não poderiam ser desvendados pela força

física, confiava-se o poder a uma entidade sobre-humana. Esta prática era verificada na

Antigüidade greco-romana, entre os antigos povos do Oriente e no mundo Ocidental, já no

século XVIII, com a influência do cristianismo e a crença no poder divino dos reis.

O poder, com o passar dos anos, passou a contar com variadas características

definidoras de sua legitimidade, desvinculando-se da força como elemento constitutivo. O

poder poderia se utilizar da força, mas jamais se confundir com a mesma. No século XIX, a

positivação do Direito estava vinculada a um poder, o que aproximou e fez coincidir o poder

jurídico com o poder legítimo. Direito e poder passaram a caminhar paralelamente, sem serem

confundidos, porém, vistos sob uma relação de complementaridade.

Assim, o Direito recebeu os aliados para sua existência e veracidade: a legalidade

e a legitimidade. A legalidade vem a ser um princípio de Direito que submete os Estados ao

império de suas leis. Quanto à legitimidade, várias são as teorias que se ocupam desta

qualidade intrínseca ao Estado Democrático, termo que, posteriormente, será estudado com

mais minúcias. Por enquanto, de modo singelo, pode-se associá-la à idéia de consentimento

da maioria e de justiça quanto aos procedimentos, ou seja, não basta obediência às leis: é

necessário que expressem uma vontade geral e que sejam efetivas na sociedade.

Duas são as correntes que pretendem caracterizar o poder. A primeira classifica-o

como poder político e a segunda, como poder jurídico.

O poder político manifesta-se na ação do Estado e destina-se à organização dos

indivíduos; o Estado atua, pois, como representante e guardião da vontade coletiva, sejam nas

24

suas funções legislativa, executiva e judiciária. Berloffa21 acrescenta que através do poder

político “permite-se, ainda, a manutenção das ideologias de organização e atuação do Estado,

ao viabilizar, nas democracias, a existência da dissidência partidária em oposição à forma de

atuação do Governo existente.”

O poder jurídico, que tem Kelsen como eminente representante, significa a

vinculação do Estado ao Direito. É através deste poder que o Estado poderá agir de forma

legítima no exercício do poder político, conduzindo a máquina administrativa pública de

acordo com as normas de gestão e de condução da democracia. A soberania é expressão

máxima do Poder Jurídico, calcada na dominação sobre todos os demais poderes. É

característico do poder do Estado organizar a nação e fazer valer em seu território a totalidade

de suas decisões, nos limites e fins éticos de convivência. 22

De acordo com Miguel Reale23, a organização pressupõe um poder e um direito,

concluindo que não há poder, portanto, que não seja jurídico. Mas isto não significa que o

poder esteja totalmente situado no âmbito do Direito. O mesmo autor fala sobre uma

graduação de juridicidade; assim, mesmo que o poder se apresente com aparência de mero

poder político, procurando ser eficaz na consecução de objetivos sociais, sem preocupação

com o Direito, ele já participa, ainda que em grau mínimo, da natureza jurídica. Mesmo

quando o poder atinge o grau máximo de juridicidade, tendo reconhecida sua legitimidade, ele

continuará a ser da mesma forma, poder político, capaz de agir com plena eficácia e

independência para a consecução de objetivos não jurídicos.

Diversamente, relevante é classificação de Norberto Bobbio, que enumera três

formas de poder: econômico, ideológico e político. O poder econômico se materializa na

posse de certos bens, por exemplo, os meios de produção, indispensáveis em períodos de

escassez, induzindo os que não os detêm a adotar certa conduta, como a de prestação de um

serviço útil nas condições determinadas pelo detentor dos mesmos. O poder ideológico se

identifica na detenção de conhecimentos, informações, códigos de conduta ou doutrinas

capazes de influenciar comportamentos dos indivíduos num processo de socialização. Por fim,

o poder político – desde sempre considerado o sumo poder -, utiliza-se da força como meio

específico, tendo em vista que todo grupo social dele imprescinde para se proteger de ataques

externos ou para impedir a própria desagregação interna.

21 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas.

Campinas, SP: Bookseller, 2004. p. 290. 22 Ibid., p. 291. 23 REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. São Paulo: Martins, 1990. p. 106-107.

25

O que se tem em comum entre estas três formas de poder é que elas contribuem conjuntamente para instituir e para manter sociedades de desiguais divididas entre fortes e fracos com base no poder político, em ricos e pobres com base no poder econômico, em sábios e ignorantes com base no poder ideológico. Genericamente, entre superiores e inferiores. 24

Para Hannah Arendt, poder é a aptidão humana para agir em conjunto, daí a

importância decisiva do direito de associação para uma comunidade política, pois é a

associação que gera o poder do qual se valem os governantes. O poder, dessa forma, não se

confunde com a força; do contrário, sempre resulta de um agir em conjunto, imprescindindo

de comunicação entre as pessoas e, portanto, do direito à informação. É assim que a questão

da obediência à lei não se resolve, em última instância, pela força, mas pela opinião e pelo

número daqueles que compartilham o curso comum de ação expresso no comando legal. 25

O poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de legitimidade. A percepção dessas duas palavras como sinônimos não é menos enganosa do que a corrente equação de obediência e apoio. O poder é originado sempre que um grupo de pessoas se reúne e age de comum acordo, porém a sua legitimidade deriva da reunião inicial e não de qualquer ação que possa se seguir. 26

Pode-se concluir do exposto, que não há associação sem o elemento poder; ou

seja, o poder atua como pressuposto de existência a qualquer associação, sociedade ou Estado.

E, ainda, o poder tem como conseqüência o consentimento, seja espontâneo ou forçado. No

entanto, não há que se falar, tendo em vista o atual Estado Democrático de Direito, nos

elementos força e violência, mas em legitimidade ou não do poder. O problema da

legitimidade do poder consiste, pois, no próprio fundamento deste, que será analisado

posteriormente.

24 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro:

Paz e terra, 1992. p. 82-83. 25 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 25. 26 ARENDT, Hannah. Sobre la violência. Tradución de Guilhermo Solana. Madrid: Alianza, 2006. p. 71. “El

poder no necesita justificación, siendo como es inherente a la verdadera existencia de las comunidades políticas; lo que necesita es legitimidad. El empleo de estas dos palabras como sinónimo no es menos desorientador y perturbador que la corriente ecuación de obediencia y apoyo. El poder surge allí donde las personas se juntan y actúan concertadamente, pero deriva su legitimidad de la reunión inicial más que de cualquier acción que pueda seguir a ésta.”

26

1.6 Origens do Estado Democrático

Observado o paradoxo entre as promessas constitucionais, firmadas especialmente

nos artigos da atual Constituição Federal que se dedicam aos princípios constitucionais e o

seu efetivo cumprimento, o Estado Democrático de Direito revela defasagens gigantescas que

desembocam numa crise de sua legitimidade. Assim sendo, parece evidente a existência de

uma acentuada contradição entre o modelo normativo proposto e as práticas efetivas dos

agentes e representantes do poder e da sociedade. De acordo com José Eduardo Faria27, “[...]

o país vem vivendo uma ampla crise estrutural, da qual se destacam a falta de credibilidade do

regime, a fragmentação de seu aparelho burocrático, a desmoralização da autoridade [...].”

Entretanto, ao contrário da proposta do mesmo autor sobre a elaboração de uma

nova Carta Magna, este trabalho vem propor uma re-inauguração do Estado Democrático de

Direito, de maneira que sejam assegurados efetivamente os direitos fundamentais do homem

por meio do cumprimento das obrigações constitucionais. A Constituição Federal de 1988,

mesmo diante de sua prolixidade, atende, formalmente, aos anseios do modelo democrático de

Estado; constata-se um problema de efetividade, que põe em dúvida o referente modelo.

A idéia de democracia surgiu na Grécia Antiga, significando, pela própria

etimologia da palavra, o governo do povo, o governo da maioria, ou seja, dos cidadãos. Para o

pensamento antigo, forma de governo significava muito mais do que um adjetivo para a

organização da polis, mas um valor fundamental de determinada forma de organização. Tanto

que a finalidade da polis ultrapassava o plano material, estendendo-se à consecução da Justiça

através da liberdade política dos cidadãos que expunham suas idéias e debatiam opiniões.

Importante assinalar que a virtude política estava diretamente relacionada à virtude moral,

termos que hoje parecem opostos.

Sólon, considerado o pai da democracia, tomou medidas que transformaram o

mundo grego: modificou a estrutura da sociedade ateniense: os cidadãos passaram a ser

classificados não segundo o tamanho das propriedades de cada um — critério que assegurava

o poder político à aristocracia rural —, mas de acordo com suas riquezas, facilitando a

ascensão de pequenos artesãos e comerciantes antes tidos como inferiores. Além disso, o

legislador revigorou a Assembléia do Povo, que anualmente elegia os funcionários do

governo, e instituiu um tribunal popular, a heliéia.

27 FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio

Fabris, 1985. p. 11.

27

Sólon foi, também, o responsável pela introdução da idéia de que a sobrevivência

da cidade depende da educação de todos os cidadãos. Ele acreditava que a saúde de um

organismo político depende não só das instituições que o integram, mas também de cada

membro da comunidade. Por isso, ele encontra na formação do caráter um meio mais seguro

de garantir a manutenção do equilíbrio social.

No entanto, nem todos na polis grega possuíam privilégios. Como bem esclareceu

Aristóteles, cidadão era aquele que tivesse parte na autoridade deliberativa e na autoridade

judiciária. Apesar das exceções em casos de emergência em algumas cidades, a regra era a

restrição. Aos artesãos e escravos não era permitida a prática desta virtude política, um

privilégio daqueles que não tinham a necessidade de trabalhar para sobreviver. Esta era uma

regra estabelecida no estatuto jurídico e que não feria os princípios morais e políticos da

época. A própria condição de guerra em que viviam justificava a hierarquia adotada.

É evidente que esta idéia de democracia, não estaria presente nas revoluções

burguesas do século XVIII. A democracia passou a ser um adjetivo do Estado, sendo que o

termo “povo” recebeu uma amplitude maior do que significava aos antigos gregos. Estado e

povo passaram a ser termos independentes: o Estado Moderno organiza-se com uma

roupagem democrática e, então, controla a sociedade. A democracia passou a ser um termo de

legitimação do poder estatal, localizado acima da sociedade. A democracia efetiva, idealizada

e realizada pelos gregos, ganhou uma conotação simbólica para os Estado Modernos.

O conceito moderno de Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII,

agregando, obrigatoriamente, a afirmação de certos princípios fundamentais da pessoa

humana vinculadores da organização e funcionamento do Estado a serviço e realização dos

mesmos. A partir de então, seguiu-se uma série de conflitos na tentativa de proteção aos

direitos humanos e a dificuldade da máquina estatal em assumir de fato seu papel precípuo.

Daí a grande influência dos jusnaturalistas, como Locke e Rousseau. Apesar deste

não ter acreditado em um governo democrático de homens, mas de deuses, em sua mais

expressiva obra, “O Contrato Social”, estão encerrados os princípios do Estado Democrático.

Na prática, três foram os movimentos político-sociais a materializar estas teorias:

a Revolução Inglesa, influenciada, principalmente, por Locke, culminando no Bill of Rights,

em 1689; em seguida, a Revolução Americana e a conseqüente independência das treze

colônias da América, em 1776 e; por fim, a Revolução Francesa em 1789, com seus

princípios expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a marcante

presença das idéias rousseaunianas.

28

Foi declarado que os homens nascem, e permanecem livres e iguais em direitos.

Como fim da sociedade política, apontou-se a conservação dos direitos naturais indeclináveis

do homem, quais sejam: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

Qualquer limitação ao indivíduo deveria ser permitida apenas pela lei, como expressão da

vontade geral. Assim, a base da organização do Estado deveria ser, pois, a participação

popular no governo, para que fossem preservados e garantidos os direitos inerentes.

Foram essas as idéias responsáveis pela consolidação do Estado Democrático

como ideal supremo que, a partir de então, figurou em vários sistemas jurídicos. Em pequena

síntese, são pontos fundamentais do Estado Democrático: 1) supremacia da vontade popular;

2) preservação da liberdade, e; 3) igualdade de direitos.

A conseqüência do despertar da Europa e dos Estados americanos inaugurou uma

era de resgate dos direitos naturais do homem, assim como a descoberta de novos direitos a

ele pertencentes. A Doutrina consagrou a expressão “gerações de direitos”, lembrando que tal

expressão é inesgotável, no sentido de que a história não é estanque, assim como a história do

Direito e dos direitos. Assim é que tais direitos são variáveis, modificando-se ao longo da

história de acordo com as necessidades e interesses do homem.

A primeira geração consagrou o direito amplo à liberdade. Surgiu nos séculos

XVII e XVIII, compreendendo direitos civis e políticos inerentes ao homem e oponíveis ao

Estado, à época, grande opressor das liberdades individuais. São exemplos: direito à vida,

segurança, justiça, propriedade privada, liberdade de pensamento, voto, expressão, crença,

locomoção, dentre outros.

A segunda geração, pós 2ª Guerra Mundial, proclamou os direitos de igualdade,

consentâneo ao advento do Estado Social. São os direitos econômicos, sociais e culturais que

devem ser prestados pelo Estado através de políticas de justiça distributiva, como o direito à

saúde, trabalho, educação, saneamento, greve, lazer, repouso, habitação, livre associação

sindical, dentre outros.

Os direitos da terceira geração consagram os direitos de fraternidade e

solidariedade, coletivos por excelência, pois estão voltados a toda humanidade. Dessa forma,

não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo ou grupo isolado,

de determinado Estado, mas operam, tais direitos, no gênero humano como condição de

existência e vivência concreta. São eles: direito ao desenvolvimento, à paz, à comunicação, ao

meio-ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade, dentre

outros.

29

A quarta geração de direitos, a mais nova criação doutrinária, resulta dos efeitos

cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, da preocupação política que os avanços

tecnológicos do mundo globalizado impõem ao meio social e que afetam as estruturas

políticas, econômicas, culturais e jurídicas vigentes. São exemplos o direito à informação, ao

pluralismo e à democracia direta.

A linguagem dos direitos humanos encerra um inegável teor de atualidade e

praticidade – a exemplo da quarta geração de direitos – que extrapola a órbita individual dos

cidadãos para vincular, também, o Estado. Assim é que Bobbio28 classifica os direitos

individuais tradicionais - que consistem em liberdades -, e os direitos sociais - que consistem

em poderes. Os primeiros exigem obrigações puramente negativas, que implicam na

abstenção de determinados comportamentos; contrariamente, os segundos exigem obrigações

positivas de todos, inclusive do Estado. Neste ponto encontra-se, pois, o maior desafio dos

direitos humanos: seu reconhecimento generalizado por todos os povos, a proteção e a

efetivação dos mesmos. Trata-se de problema jurídico e, em sentido ainda mais amplo, de

problema político a ser sanado.

1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional

A moderna concepção de Estado está intimamente vinculada à idéia de limitações

por normas jurídicas, que traduzem direitos e deveres, faculdades e vinculações dos Estados e

dos indivíduos entre si. Aliás, sem descartar as outras esferas do Estado (social, econômica,

política), foi esta construção normativa verdadeira arma contra os abusos do absolutismo.

Ensina o professor Jorge Miranda29: “[...] não são apenas os indivíduos (ou os

particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais

instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito.”

Pode-se considerar o elemento jurídico como a moldura do Estado, no sentido de

que todos os seus elementos constitutivos, ou seja, povo, território e soberania, devem estar

sempre conformados e limitados pelas normas jurídicas. Assim, tais elementos devem estar

regulados e amparados pela Constituição e por outras normas do ordenamento jurídico de um

Estado Nacional.

28 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 20. 29 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 1 (destaque do

autor).

30

Para José Afonso da Silva30, o clássico conceito de Estado de Direito se limita a

uma igualdade formal e abstrata, baseada na generalidade da lei, sem qualquer base na vida

real.

De acordo com Canotilho31, o Estado como forma de organização jurídica do

poder político soberano, ao qual fica submetido o povo de um determinado território,

corresponde ao modelo que surgiu com a paz de Westfália, em 1648, tendo evoluído para o

Estado Constitucional, que se conceitua como sendo uma tecnologia política de equilíbrio

político-social, e representa uma superação da autocracia absolutista do poder dos privilégios

orgânico-corporativo medievais. O mesmo autor define o Estado Constitucional como Estado

soberano, que edita as leis que devem ser observadas pelo povo de um determinado território,

mas que também o submete ao Direito, sendo regido por leis sem confusão de poderes.

Dessa forma, do clássico conceito de Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX

não foi difícil avançar para o conceito de Estado Constitucional, que no século XX ganhou a

primazia nas formulações políticas do mundo ocidental. Não obstante, principalmente a partir

da segunda metade do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados

Nacionais - já todos em sua conformação Constitucional - passaram a vivenciar uma nova

perspectiva: a dos blocos e comunidades transnacionais, as quais se formaram em busca de

uma maior força pelas alianças econômicas, políticas e até culturais.

O Estado Constitucional é, assim, uma criação do Estado Moderno, tendo surgido

paralelamente ao Estado Democrático. Pressupõe uma estrutura ordenada por um sistema

normativo fundamental e hierarquicamente superior. Mas não é só isso; o Estado

Constitucional vai além do Estado de Direito, não se limitando a ele. O Estado Constitucional

moderno é, também, democrático e esta exigência se impôs da necessidade de legitimação,

não apenas da ordem jurídica enquanto positivada, mas do exercício do poder político

vinculado, ditado segundo o princípio da soberania popular.

Seja pelos objetivos propostos, seja pela conveniência dos interesses burgueses,

não se pode olvidar que o Constitucionalismo teve caráter nitidamente revolucionário. Porém,

apesar da força com que as Constituições escritas se impuseram no século XVIII, gozando de

extraordinária autoridade como a mais alta expressão democrática e legislativa, rendeu-se a

um paulatino processo de desmistificação e perda de eficácia.

30 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 119. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:

Almedina, 1999. p. 86- 89.

31

1.8 Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático nasceu das lutas contra o absolutismo, sobretudo através

do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande influência

jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais perante a lei

e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a conservação de

direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a propriedade e a

segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou indiretamente,

da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao Direito, tornou-se,

também, sujeito de direitos e deveres.

Seguindo as lições de Canotilho32, mais uma vez, o binômio “legalidade-

igualdade” reclama que sua aplicação seja de cunho material sua aplicação, o que somente

pode ser alcançado se houver também a democracia econômica, social e cultural, como

conseqüência lógico-material da democracia política. Esta é, pois, a construção do Estado

Democrático de Direito. Acrescenta que o principio da democracia econômica e social impõe

tarefas ao Estado para a promoção da igualdade real, constituindo um elemento essencial de

interpretação das normas constitucionais.

O Constitucionalismo ampliou os horizontes do Estado de Direito, trazendo a

idéia de sua legitimação na vontade popular por meio da democracia participativa; eis o

Estado Democrático de Direito. A lei, especialmente a Constituição, passou a desempenhar

uma função transformadora. A lei opera, pois, como instrumento de realização material de

uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria

existência do Estado. A veiculação desses valores, dentre outros, se dá por meio de princípios,

que ocupam o ápice do Ordenamento Jurídico.

Assim, deve-se partir do ponto de que a Constituição, por meio dos princípios,

explícitos ou implícitos, oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de

sentido; contrariamente, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu

ordenamento transformar-se-á numa somatória estanque de preceitos, desprovido de qualquer

capacidade de coordenação e efetividade do todo.

Neste sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello33

ressaltou

a importância da Constituição; em 23/04/2008, iniciou os discursos proferidos na posse do

32 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 325. 33 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Constituição e o Supremo: informativo. Disponível em:

32

novo presidente da Corte, o ministro Gilmar Mendes. Em seu discurso, destacou que os três

Poderes da República, sem exceção, devem respeito à Constituição, que não pode ser burlada

por conveniência política ou pragmatismo institucional.

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito

Através da análise do longo processo de desenvolvimento das sociedades

humanas e do Estado, não se pode afastar a imaturidade do Estado Democrático de Direito.

Perante a História, pode-se dizer que, em dois séculos de existência, ele ainda está num

aprendizado, ainda não fala, ainda não anda; está sendo educado segundo princípios e regras

constitucionais que consagram os direitos fundamentais do homem.

Pode-se falar, atualmente, numa verdadeira crise do Estado Contemporâneo. Se no

século XVIII havia um ideal de Estado a ser materializado, no século XIX o mesmo passou a

ser definido paulatinamente, chegando aos dias atuais como ideal político de toda a

humanidade. No entanto, problemas de ordem estrutural da sociedade capitalista se tornaram

empecilho às aspirações liberais da época, arrastando-se até os dias atuais. Dallari34 enumera

três problemas:

a) O problema da supremacia da vontade do povo.

A ênfase ao poder Legislativo, que se empreendeu no século XIX, gerou um

problema de representação devido às divergências dos grupos sociais que se formavam. O

industrialismo obrigou a inserção dos operários na esfera política, seja através de movimentos

proletários, seja através da tentativa de participação no poder. No século XX, tendo adquirido

um razoável grau de organização, as classes trabalhadoras elegeram seus representantes que

passaram a integrar partidos, fundar novos até, enfim, integrarem o Plenário.

Em meio a tantas diversidades partidárias e intermináveis debates, o processo

legislativo se tornou lento e imperfeito, acarretando um verdadeiro descrédito no sistema

representativo. Eis um dos impasses a que chegou o Estado Democrático de Direito: a

http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=87586&caixaBusca=N. Acesso em: 24. abr. 2008.

34 DALLARI, op. cit., p. 254.

33

participação do povo tornou-se inconveniente quando, na verdade, sua ausência constitui

expressa violação do princípio democrático.

b) Dilema entre os princípios liberdade e igualdade

Estes foram dois dos princípios consagrados pela Revolução Francesa, prezando-

se, na época pela não intervenção do Estado, no sentido de que todos permanecessem livres

com iguais condições para alcançarem seus interesses. Porém, esse ideal não seria possível

numa sociedade marcada pelas descomunais diferenças entre as classes sociais. Muitos

passaram a defender a intervenção estatal a fim de assegurar a igualdade de todos os

indivíduos.

A questão da igualdade passou, pois, a ter primazia perante a liberdade. De que

adiantaria liberdade diante das desigualdades e dos privilégios restritos às minorias? Chegou-

se ao segundo impasse do Estado Democrático de Direito: na prática, liberdade e igualdade se

mostraram princípios antitéticos e antidemocráticos.

c) Distanciamento entre a formalidade e a efetividade do Estado Democrático

A medida emergencial de combate ao Absolutismo foi à submissão de todos ao

império da lei. No entanto, a prática demonstrou uma formalidade de leis camuflando um

Estado totalitário revestido de democrático. Seria o elemento formal um empecilho à

efetivação do Estado Democrático? Ou sua ausência favoreceria a utilização arbitrária do

poder? Eis o terceiro impasse que desprestigia o Estado Democrático.

Diante do exposto, entretanto, não há que se conspirar contra o Estado

Democrático, mas repensar maneiras para atingi-lo, ou para alcançar sua maturidade. Não se

pode, destarte, questionar o modelo de Estado Democrático, mas questionar as atitudes

humanas que dirigem a sociedade. Daí a questão da Ética como a maior preocupação do

século XXI, gerando discussões em nível universal acerca do comportamento dos homens.

Há, portanto, uma preocupação com as atitudes humanas desprovidas, consistindo a Ética no

antídoto para as mazelas dos indivíduos.

Quanto ao Estado Democrático de Direito, seria este ideal possível de ser

atingido? De que maneira? Sim, os ideais de democracia e de Justiça podem ser atingidos a

partir do momento em que os seres humanos tiverem as plenas e iguais condições de

desenvolvimento físico, cultural, moral e ético. E tais condições serão possíveis a partir de um

efetivo Estado Democrático, que prima pela igualdade de todos os cidadãos, governantes e

governados, e se mantém fiel aos mandamentos constitucionais e à vontade da maioria.

34

CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

2.1 Os princípios fundamentais – conceitos

A palavra “princípio” exprime, em sentido vulgar, o ponto de partida, o início de

algo. Porém, como o termo é utilizado em diferentes esferas do conhecimento humano, tais

como a Filosofia, a Sociologia, a Física, o Direito, dentre outras, cabe a cada uma dessas

ciências animarem esta idéia simplificada a partir de seus elementos peculiares. Assim, todo

conhecimento humano pressupõe um conjunto de elementos ou de idéias sistematizados e

ordenados a partir de princípios e a eles subordinados.

Em termos jurídicos, o vocábulo alcança um sentido bem mais amplo, tendo a

Doutrina e os Tribunais se preocupado em definir e realçar sua importância e restabelecer sua

operabilidade perante o Ordenamento Jurídico. A dificuldade se dá, principalmente, pelo

caráter genérico e abstrato dos princípios, encerrando várias interpretações, diferentemente

das regras objetivas que completam o sistema jurídico.

Relevante, pois, neste aspecto quanto à definição dos princípios, a elucidação de

Humberto Ávila35: A busca de uma definição mais precisa de princípios jurídicos é necessária. Não tanto pela diferença da denominação, mas pela distinção estrutural entre os fenômenos jurídicos que se procura descrever mediante o emprego de diversas categorias jurídicas. Ora, tanto a doutrina como a jurisprudência são unânimes em afirmar que as normas jurídicas mais importantes de um ordenamento jurídico são os princípios. Do próprio ordenamento jurídico brasileiro constam normas positiva ou doutrinariamente denominadas de princípios, alguns fundamentais, outros gerais. Sua definição não pode, por isso, ser equívoca, antes deve ser de tal forma formulada, que a sua aplicação diante do caso concreto possa ser intersubjetivamente controlável.

De fato, há que haver uniformidade na interpretação constitucional no tocante ao

tema dos princípios no sentido de afastar entendimentos atentatórios à ordem jurídica. De

fato, seus caracteres de generalidade e abstratividade passam, à primeira vista, uma idéia de

pluralidade de sentidos, impondo aos legisladores e aplicadores do Direito – lembrando que o

Poder Executivo também atua como legislador em sua função atípica – operar os princípios

constitucionais segundo um juízo de valor. Sendo a valoração um aspecto subjetivo, convém

um exame da Doutrina e dos Tribunais para se verificar quais os conceitos adotados e de

35 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do princípio da proporcionalidade.

Revista Diálogo Jurídico, Salvador , ano 1, v. 1, n. 4, p. 5-6, jul. 2001.

35

quais mecanismos se servem no ato da valoração dos princípios para a aplicação dos mesmos

nos casos concretos.

Neste sentido, Canotilho também alerta para o risco sobre os vários entendimentos

não unânimes e, muitas vezes, imprecisos dos princípios36:

Na Ciência Jurídica, tem-se utilizado o termo “princípio” ora para designar a formulação dogmática de conceitos estruturados por sobre o direito positivo, ora para designar determinado tipo de normas jurídicas e ora para estabelecer os postulados teoréticos, as proposições jurídicas construídas independentemente de uma ordem jurídica concreta ou de institutos de direito ou de normas legais vigentes. Essa polissemia não é benéfica neste campo de saber, em que a confusão de preceitos e idéias pode levar à frustração da práxis jurídica ou à sonegação, por uma prática equívoca, de direitos ou de situações protegíveis pelo sistema jurídico posto.

Canotilho37 conceitua os princípios jurídicos fundamentais como normas que

exigem a realização de algo da melhor maneira possível, de acordo com as finalidades fáticas

e jurídicas; não exibem em seu conteúdo proibições, permissões ou exigências de algo em

termos de “tudo ou nada” – como as regras jurídicas -, mas impõem a otimização de um

direito ou de um bem jurídico, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os

condicionamentos fáticos e jurídicos.

Para Alexy38, princípios constituem mandamentos de otimização, ou seja, são

normas que determinam que algo seja cumprido na maior medida possível, de acordo com as

possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Para o autor, a teoria jurídica dos direitos

fundamentais da Lei Fundamental é, enquanto teoria do Direito Positivo de um determinado

ordenamento jurídico, uma teoria dogmática. Assim, a teoria dogmática dos princípios

constitucionais apresentaria três dimensões: analítico, empírico e normativo.

A dimensão analítica trata da consideração sistemático-conceitual do direito

válido, positivo, com análises de conceitos fundamentais (como o conceito de norma, de

direito subjetivo, de liberdade e igualdade), passando pelas construções jurídico-

constitucionais (como densidade e concretização dos princípios constitucionais), pesquisa da

estrutura do sistema jurídico, bem como suas relações com os princípios constitucionais.

(como normatividade e realizabilidade dos mesmos), até chegar à própria ponderação prática

de valores e de bens jurídicos sob a perspectiva dos princípios constitucionais.

36 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a

compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982. p. 203 (destaque do autor). 37 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:

Almedina, 1999. p. 1087-1088. 38 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:

Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2002. p. 29-33.

36

A dimensão empírica possui um duplo significado para o Filósofo: primeiro, com

relação ao conhecimento dos direitos positivamente válidos e, segundo, com relação à

utilização de premissas empíricas da argumentação. Nesta dimensão não se trata apenas da

descrição do direito legislado, mas também da descrição e previsão da práxis judicial. Em

outras palavras, os direitos fundamentais empiricamente considerados revelam a força

normativa da Constituição em sua dimensão principialista.

A dimensão normativa vai além das duas anteriores: estaria reservada à aplicação

dos princípios constitucionais, no sentido da orientação e crítica da práxis da jurisprudência.

Esta dimensão cuida de saber qual é, no caso concreto, e de acordo com o Direito Positivo

válido, a decisão concreta.

Frente a essas três dimensões, o caráter da Ciência do Direito, para Alexy, como

disciplina prática, resulta ser um princípio unificador. Tendo a Ciência do Direito que cumprir

racionalmente sua tarefa prática, tem, portanto, que vincular reciprocamente as três

dimensões. Ela deve ser uma disciplina integrativa pluridimensional: a vinculação das três

dimensões é condição necessária da racionalidade da Ciência da Direito como disciplina

prática.

Para a constitucionalista Cármen Lúcia de Antunes Rocha39: “O Princípio é o

Verbo [...]. No princípio repousa a essência de uma ordem, seus parâmetros fundamentais e

direcionadores do sistema normado”.

Segundo Jorge Miranda40, “[...] forçoso se torna reconhecer existir algo de

específico e permanente no sistema que permite (e só isso permite) explicar e fundar a

validade e efectividade de todas e cada uma de suas normas”. Isto porque o sistema jurídico

do Estado Democrático de Direito se apresenta como um sistema normativo aberto e

dinâmico, composto de regras e princípios; dos princípios constitucionais, por sua vez,

nascem os comandos que atingem as demais normas do sistema jurídico. Aberto e dinâmico

pelo caráter duradouro e inesgotável que deve conter as Constituições, o que jamais seria

atingido caso houvesse a possibilidade de constante atualização.

39 ROCHA, Cármen Lúcia de Antunes. Princípios constitucionais da administração. Belo Horizonte: Del Rey,

1994. p. 21. 40 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 137. (destaque do

autor).

37

2.2 Normatividade e evolução dos princípios

Os princípios constitucionais representam o reconhecimento e a incorporação dos

direitos fundamentais nos ordenamentos contemporâneos. A Doutrina dos Direitos

Fundamentais surgiu da fusão de várias fontes que, de acordo com as lições de Jorge

Miranda41 são: a) o Cristianismo, a principal - devido às suas idéias de que “criados à imagem

e semelhança de Deus, todos os homens tem uma liberdade irrenunciável que nenhuma

sujeição política ou social pode destruí-lo”; b) o Direito Natural que considerava tais direitos

de ordem sagrada ou transcendental, e; c) o Constitucionalismo: o movimento social, político

e jurídico a partir do qual emergem as constituições nacionais. O ponto em comum entre essas

três fontes repousa na necessidade de controle do Estado para evitar os abusos do poder.

Nem sempre os princípios tiveram o status de normatividade que gozam na

atualidade. Eles sofreram um longo processo de evolução, partindo de meros ideais das mais

antigas correntes do pensamento jurídico, até adquirirem a importância, a consistência e a

normatividade hodiernas, consagradas pelas correntes pós-positivistas.

Paulo Bonavides42 elaborou um plano de evolução dos princípios que passaram

por três fases:

Sob a influência do Direito Natural, os princípios foram considerados ideais de

conteúdo ético, valorativos do Direito. Princípios de justiça, igualdade, liberdade, dentre

outros, não possuíam validade no meio jurídico, tampouco se poderia julgar a violação dos

mesmos. Derivavam, pois, da lei divina e humana, formando um Direito ideal. Assim, a

punição ficaria a cargo do sentimento de remorso relativo a cada indivíduo.

Na fase juspositivista, os princípios passam a integrar os Códigos, constituindo,

em conjunto, fonte subsidiária do Direito. Derivados das leis e, portanto, inferiores a elas,

funcionavam como fontes integradoras do Direito e justificadoras do reinado absoluto da lei.

Atuam em última instância, para sanarem os vazios legais.

Por fim, na fase pós-positivista - que tem início no fim do século XX -, os

princípios, já positivados, ocupam o mais alto escalão dos textos constitucionais, figurando

como fundamento normativo e axiológico do ordenamento jurídico.

Os princípios decorrem, pois, dos direitos fundamentais: enquanto que estes

representam uma idéia, uma razão imanente da natureza humana, os princípios correspondem

41 MIRANDA, 1991, op. cit., p. 17. 42 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 232-238.

38

à materialização destes direitos, ou seja, à proteção dos mesmos perante o documento

constitucional positivo, acobertado pelos princípios da legalidade e da legitimidade.

Em síntese, Bonavides retrata essa evolução através dos seguintes resultados

consolidados43:

A passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a ordem juspubliscística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de regras programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra, sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.

Diante dessas considerações, cabe ressaltar a relevância dos princípios

constitucionais como reflexos dos direitos humanos que, positivados, estão hábeis a atuar em

situações concretas, sem perder de vista a dimensão analítica, revelando a força normativa que

encerram e constituindo um verdadeiro núcleo, aptos a dar unidade de sentido e coerência ao

sistema jurídico.

2.3 Princípios, normas e regras

Uma ordem constitucional instituidora do Estado Democrático de Direito,

necessariamente, é um sistema normativo aberto44, composto de regras e princípios. Um

sistema constitucional fundado somente em princípios teria, em princípio, uma grande

dimensão axiológica, tendo em vista os seus caracteres de generalidade e abstração, deixando,

pois, a desejar. Primeiramente, sendo um conjunto de conteúdos abstratos, não exerceria a sua

função normativa, pois se limitaria quase que exclusivamente na esfera axiológica (juízos de

valor), perdendo a sua condição deontológica (dever-ser), que é essencial para uma função

normativa que outorgue segurança jurídica. Em segundo lugar, considera-se função da regra

densificar princípios, tornando-os de mais fácil realização ou otimização. Além disso, um

sistema somente de regras padeceria de falta de unidade interpretativa, pois lhe faltaria o fio

condutor de ligação entre as diversas regras, sendo que tal elo de concatenação é feito pelos

princípios. 43 BONAVIDES, 2002, op. cit., p. 265. (destaque do autor). 44 CANOTILHO, 1982, op. cit., p. 1088.

39

No entanto, nem sempre essa distinção entre princípios, regras e normas, assim

como a relação de complementaridade entre ambos existiu. Eles foram tratados, inicialmente,

pela tradicional metodologia jurídica, como categorias distintas, sendo a idéia de norma

sobreposta à de princípio. As contribuições de Dworkin, Alexy, Canotilho e Bonavides,

dentre outros, é que pacificaram essa discussão, afirmando os princípios como espécie do

gênero norma.

Alexy45 assevera que o ponto fundamental de distinção entre regras e princípios é

que estes, por ele chamados “mandados de otimização” são normas que ordenam que algo

seja realizado, na maioria das vezes, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.

Assim, os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus, dependendo das

possibilidades reais e jurídicas. Quanto às regras, são normas que podem ou não se cumpridas,

devendo-se proceder nos limites exatos de suas prescrições. Existe uma diferença qualitativa

entre tais institutos e não de grau como tem afirmado a maioria dos doutrinadores. Ambos,

princípios e regras, são normas.

Canotilho46 faz a distinção entre normas-disposição e normas-princípio,

apresentando alguns critérios de distinção:

a) Grau de abstração: os princípios possuem um grau mais elevado de abstração

em relação às regras; diversamente, as regras possuem conteúdo definido com

grau de abstração relativamente menor;

b) Grau de determinabilidade na aplicação na aplicação do caso concreto: os

princípios, por serem vagos e indeterminados, necessitam de “intermediações

concretizadoras”, enquanto que as regras constituem mecanismos de

aplicabilidade imediata.

c) Fundamentalidade no sistema das fontes do Direito: os princípios possuem

traço de fundamentalidade no ordenamento, devido à sua posição

hierarquicamente superior às regras.

d) Proximidade da idéia de Direito: os princípios e regras são vinculantes, com

diferença de conteúdo da cada um; os princípios figuram como pilares

veiculando ideais de Justiça, enquanto que as regras possuem conteúdo

meramente formal.

45 ALEXY, op. cit., p. 87. 46 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1086-1087.

40

e) Natureza normogenética: princípios constituem o fundamento e a razão das

regras jurídicas, desempenhando, assim, a função normogenética ou

fundamentante.

Apesar da aparente contradição entre princípios e regras, tal diferença deve ser

afrontada como necessária e complementar ao ordenamento jurídico que, tendo em vista seu

caráter dinâmico, não sobrevive sem a presença de ambas; assim, a formalidade das regras

somadas e observadas à luz dos princípios - embebidos de alto teor ético, garantem a

atualização, o equilíbrio e o potencial de legitimidade que devem conter os ordenamentos.

José Afonso da Silva47 faz a seguinte distinção:

As normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem. Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais. Mas, como disseram os mesmos autores, ‘os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional’.

Interessante registrar neste, a recente figura dos postulados normativos:

constituem uma nova categoria, cuja criação se atribui a Humberto Ávila, operando ao lado

das normas:

Desde logo, porém, uma advertência: por detrás da proposta aqui defendida está a compreensão do Direito como um conjunto composto de normas (princípios, regras) cuja interpretação e aplicação depende de postulados normativos (unidade, coerência, hierarquização, supremacia da Constituição, etc.), critérios normativos (superioridade, cronologia e especialidade), topoi (interesse público, bem comum, etc.) e valores. Todos esses elementos que se conjugam às normas possuem sua normatividade relacionada em boa medida a atos institucionais de aplicação.

O postulado vem a ser, pois, uma categoria de meta-norma, impondo um dever de

segundo grau consistente em estabelecer a estrutura de aplicação de outras normas. Postulados

veiculam, dessa forma, princípios e regras. Exemplo de postulado é a proporcionalidade,

entendida na Doutrina tradicional como princípio. Isto porque, para Ávila, a

proporcionalidade é entendida como fio condutor na aplicação dos princípios, ou seja: “sem

47 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 91- 92.

(destaque do autor).

41

obediência ao dever de proporcionalidade não há a devida realização integral dos bens

juridicamente resguardados”. 48

No obstante a dificuldade de uniformização conceitual dos princípios

fundamentais, não se pode olvidar o reconhecimento de sua força normativa e importância

para o Ordenamento Jurídico e para as próprias relações sociais. Os princípios figuram como

categoria normativa soberana em relação às regras, resultando em paradigma revolucionário

da Ciência Jurídica dos últimos anos, e tendo o respaldo da Jurisprudência e da Doutrina em

seu reconhecimento.

2.4 Importância dos princípios e sua superioridade em relação às regras

Cumpre ressaltar que princípios são normas jurídicas impositivas, de elevado grau

de abstração, expressão dos valores incorporados pelo Estado Democrático de Direito; ainda,

são dotados de versatilidade a ponto de alcançarem os casos concretos, decidindo-o.

Havendo dois princípios conflitantes, não há que se falar em hierarquia, mas

naquilo que a Doutrina chama “ponderação de interesses”, donde há de prevalecer aquele que

mais se aproxima da Justiça, sem que haja a anulação de qualquer deles. Princípios são, pois,

harmônicos entre si, não se excluindo um ao outro. Porém, quando o conflito envolve

princípio e regra, prevalece o primeiro devido à posição privilegiada que ocupa na pirâmide

do ordenamento jurídico. Neste caso, apenas uma será válida no caso concreto, não se

admitindo que regras contraditórias sejam aplicadas simultaneamente.

Há, pois, um aprendizado dos princípios constitucionais para com a realidade,

incorporando novos sentidos ao seu conteúdo, exercendo uma função interpretativa e

irradiando-se por todo ordenamento jurídico. Para tanto, a Constituição confia seu caráter

perene aos princípios, mecanismos integradores por excelência do texto constitucional à

realidade. Isso só foi possível através do processo de superação do caráter literal da lei,

passando os princípios, de coadjuvantes no cenário do Estado Democrático, a figurarem como

atores principais do mesmo, instrumentos imprescindíveis para a interpretação, aplicação e a

própria construção do Direito.

Os princípios, ao ordenarem o texto constitucional no que diz respeito aos fins a

serem alcançados pelo Democrático de Direito, indicam as diretrizes do ordenamento jurídico.

Por localizarem-se na base da Lei Maior - sem a qual não há um sistema unificado -,

48 ÁVILA, op. cit., p. 25.

42

funcionam como vetores de interpretação de toda ordem jurídica, seja em nível constitucional

- para estabelecer qual o princípio que deve preponderar no caso concreto de aplicação de

uma norma -, ou em nível infraconstitucional, para verificação de sua adequação ao sistema

principiológico da Constituição. Neste caso, a norma infraconstitucional incompatível com os

princípios constitucionais deve ser afastada do ordenamento por flagrante vício insanável de

inconstitucionalidade.

Assim, os princípios ocupam posição superior às regras no sistema jurídico. É o

que ratifica Celso Antônio Bandeira de Mello49:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

A grande complexidade social não permite que as Constituições figurem como

simples rol das funções estatais e dos meios de defesa da sociedade contra o Estado, como

sustentado pelo liberalismo predominante no início do constitucionalismo moderno. Devem

ser dinâmicas a fim de alcançarem as alterações sociais, sem, ao mesmo tempo, perderem de

vista os objetivos a que se propõem. Assim, através dos princípios, as Constituições ganham

força e vida para a adequação das demais normas ao sistema jurídico, para a orientação das

mesmas ou, ainda, para expurgá-las do sistema em caso de declarado vício de

inconstitucionalidade.

Os princípios constituem uma moldura, dentro da qual estão encerradas todas as

demais leis e atos normativos do Ordenamento Jurídico. Também podem servir como uma

barreira de proteção do mesmo, no sentido de zelarem pela integralidade e idoneidade do

Estado Constitucional. Por fim, figuram como luzes do sistema, orientando os processos

executivo, legislativo e judiciário, exercendo uma função genuinamente política.

Apesar do conteúdo puramente axiológio e do alto grau de abstração e

generalidade, os princípios revelam um lado surpreendentemente dinâmico, para o espanto

daqueles que o consideram um mero conjunto de normas estáticas e utópicas. Eis a maior

beleza dos princípios constitucionais.

49 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista

dos Tribunais, 1997. p. 230.

43

2.5 Natureza e características dos princípios constitucionais

Diante do exposto até o momento, não há duvidas de que princípio é norma, sendo

dotados, portanto, de força normativa, ainda que, em termos de conteúdo e estrutura, sejam

distintos das regras jurídicas, contendo características peculiares. Sobre a natureza dos

princípios, posiciona-se Carmem Lúcia de Almeida Rocha50: Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico-normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo Constituinte, sedimentam normas, tornando-se, então, pilares que informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas do Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional [...].

Seguindo a linha de seu pensamento, a autora enumera as seguintes características

dos princípios constitucionais: a) generalidade; b) primariedade; c) dimensão axiológica; d)

objetividade; e) transcendência; f) atualidade; g) poliformia; h) vinculabilidade; i) aderência;

j) informatividade; k) complementariedade, e; l) normatividade jurídica51.

a) A generalidade não pode ser confundida como imprescisão. É a característica

responsável pela manutenção da atualidade do sistema de Direito, sem limitá-

lo a modelos definitivos e rígidos. A precisão consiste na capacidade de

desenvolvimento de conteúdos normativos de acordo com as aspirações

sociais, políticas e éticas da sociedade.

b) A primariedade significa que os princípios constitucionais são os primeiros,

localizados no vértice do ordenamento piramidal, dele decorrendo os demais

princípios e regras. Divide esta categoria em três em três subcategorias:

b.1) Primariedade histórica: consiste na aceitação dos valores, conteúdos dos

princípios.

b.2) Primariedade jurídica: os princípios constitucionais são vistos como ponto de

partida da construção de toda ordem jurídica; os fundamentos do direito

positivo encontram-se, pois, no Direito Constitucional.

b.3) Primariedade lógica: toda a estrutura do Direito Constitucional obedece os

mandamentos dos princípios.

b.4) Primariedade ideológica: os princípios constitucionais prevalecem em todo o

ordenamento, orientando as demais normas. 50 ROCHA, op. cit., p. 25 51 ROCHA, op. cit., p. 25-26.

44

c) A dimensão axiológica diz respeito ao conteúdo ético dos princípios que,

segundo a autora, não constituem verdades absolutas, mas estão sujeitos à

mutabilidade e dialogicidade do meio político em que atuam.

d) Os princípios são genéricos, porém, objetivos. Para a autora, esta característica

está ligada às idéias de segurança e certeza jurídica como garantias asseguradas

à pessoa humana. Dessa forma, esse caráter limita a atividade de interpretação

da Constituição de maneira que não se afaste dos valores éticos expressos.

e) Através da transcendência, os princípios superam a elaboração normativa

constitucional formal, adentrando no ordenamento jurídico como principal

diretriz política, jurisdicional e legislativa.

f) A atualidade manifesta-se na força interpretativa do texto constitucional e na

necessidade de manutenção dos princípios às situações fáticas da realidade

social.

g) A poliformia significa os múltiplos sentidos dos princípios constitucionais. Eles

apresentam-se, pois, como mecanismos dinâmicos em favor da permanência,

presença e eficácia social e jurídica da Constituição. Em sintonia com os fatos

sociais, o texto constitucional é constantemente atualizado, sem que haja

alteração em seu texto.

h) A vinculabilidade se estende aos legisladores, administradores, juízes

constituídos e demais cidadãos da sociedade política. Além de vincular

interpretações de outras normas, mas também o processo de

constitucionalidade das leis e atos normativos estatais e particulares. Ademais,

a vinculação atinge os próprios princípios, donde que “nenhum princípio

constitucional deve ser considerado isolado ou auto-suficiente. A Constituição

é sistematizada em um conjunto de normas que se encadeiam, coordenam-se,

enlaçam-se e harmonizam-se para adquirir um significado conjunto, para ser

pleno, inteiro.” 52

i) A aderência é condição necessária da vinculabilidade. Para que haja os

princípios sejam vinculantes e vinculados, é necessário que a totalidade da

produção normativa esteja em conformidade com aqueles, sem que haja

exceções.

52 ROCHA, 1994, op. cit., p. 39-40.

45

j) Pela informatividade, os princípios são fontes informadoras de toda estrutura e

funcionamento do ordenamento jurídico.

k) A complementaridade se expressa na força adquirida pelo conjunto de

princípios, condicionados uns aos outros, formando um todo coordenado.

l) Por fim, a normatividade jurídica dos princípios revela sua natureza jurídica, já

exposta neste trabalho. Princípios são leis, normas de observação obrigatória

de todos e instituidores de direitos e deveres.

Concluindo, os princípios junto a essa amplitude e força que operam no sistema

jurídico, no dizer de Espíndola53:

Aliás, essa é uma característica do Direito Constitucional contemporâneo: a de haver estabelecido, teórica, dogmática e normativamente, a dignidade dos princípios assentados, expressa ou implicitamente, na Constituição. Essa característica, vale salientar, foi construída a partir da idéia de que a Constituição é lei, é norma de direito, força normativa, valem como normas, como normas das normas, normas de normas (norma normarum).

Posição interessante, também, é a de Humberto Ávila, que expõe os seguintes

critérios para a caracterização dos princípios54:

a) Princípios jurídicos não se confundem com valores: princípios não determinam

o que deve ser, mas o que é melhor.

b) Os princípios jurídicos não se confundem com o mero estabelecimento de fins:

estes apenas indicam uma situação que se deseja realizar, sem que seja

estabelecido um dever ser. Princípios pressupõem fins motivados por meio de

um dever ser.

c) Os princípios jurídicos não se confundem com axiomas: estes são verdades

gerais aceitas genericamente sem a necessidade de prová-los no plano

concreto. Os princípios atuam no mundo jurídico do dever ser, cuja

concretização é sempre prático-institucional.

d) Os princípios jurídicos não se confundem com postulados: estes são condições

de possibilidade do conhecimento de determinado objeto, de tal sorte que

estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas. São, pois, variáveis

conforme o objeto cuja compreensão condiciona os postulados.

53 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999. p. 88. (destaque do autor). 54 ÁVILA, op. cit, p. 18-20.

46

e) Os princípios jurídicos não se confundem com critérios: estes são metas-regra

de aplicação de outras normas, também chamados princípios de solução de

antinomias (hierarquia, cronologia e especialidade); explicam e determinam

como e por que entre duas normas aplicáveis às mesmas circunstâncias fáticas

deve ser escolhida uma delas (a hierarquicamente superior, a editada

posteriormente ou a que regula mais especificamente a situação, por exemplo).

2.6 Tipologia dos princípios

Várias são as classificações de princípios sugeridas pela Doutrina. Canotilho55

ordena os princípios em quatro espécies:

a) Princípios jurídicos fundamentais: são aqueles historicamente objetivados e

introduzidos de maneira progressiva na consciência jurídica e, ainda,

recepcionados expressa ou implicitamente no texto da Constituição. Assim

positivados, eles constituem importante mecanismo de interpretação,

integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Possuem funções:

negativa, ao proibirem excessos de poder que contrariem o Estado de Direito; e

positiva, ao informarem materialmente os atos dos poderes públicos. Tais

princípios vinculam o legislativo quando da elaboração das leis e atos

normativos às suas diretrizes materiais. Como exemplo: princípio da

imparcialidade da Administração e princípio do acesso aos Tribunais.

b) Princípios políticos constitucionalmente conformadores: são aqueles que

“explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte” 56.

Informam quais as opções políticas do Estado de Direito e a ideologia fundante

da Constituição. Constituem o cerne político de uma organização política,

considerados, também, limites ao poder de revisão, sendo, pois, os mais

diretamente visados no caso de alteração profunda da Constituição. Tal como

os princípios jurídicos gerais, são normas, portanto, operantes, de observância

obrigatória de todos os órgãos encarregados da aplicação do Direito. São

exemplos, os princípios definidores da forma de Estado, como o da separação e

interdependência dos poderes.

55 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1746-1800 e p. 1090-1093. 56 Ibid., p. 1091-1092.

47

c) Princípios constitucionais impositivos: como o próprio nome, estes impõem aos

órgãos do Estado, principalmente ao legislador, a realização de fins e a

execução de tarefas. Também são conhecidos por princípios definidores dos

fins do Estado, ou diretivos fundamentais ou, ainda, normas programáticas.

São exemplos, os princípios da independência nacional, da correção das

desigualdades na distribuição das riquezas e dos rendimentos.

d) Princípios-garantia: também conhecidos como princípios em forma de norma

jurídica, são aqueles que visam de forma direta e imediata instituir uma

garantia dos cidadãos. Exemplos: princípio nulla poena sine lege, e princípio

do in dúbio pro réu.

A classificação de José Afonso da Silva57, com fundamento em Canotilho, reúne

os princípios constitucionais em apenas duas categorias:

Princípios político-constitucionais: derivam das decisões políticas fundamentais

concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo. São matérias dos

artigos 1° ao 4° do Título I da Constituição intitulado “Dos Princípios Fundamentais”.

Princípios jurídico-constitucionais: são os princípios constitucionais gerais

informadores da ordem jurídica nacional; decorrem de certas normas constitucionais ou,

ainda, de desdobramentos dos princípios fundamentais. São exemplos: os princípios da

isonomia e da legalidade.

2.7 Princípios na Constituição de 1988

Há uma dificuldade em definir com precisão todos os princípios existentes no

texto da Constituição Federal dado ao grande número dos mesmos. Na classificação de José

Afonso da Silva58, os princípios distribuem-se em dois grupos:

a) Princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República

Federativa do Brasil, soberania e Estado Democrático de Direito (art. 1°);

b) Princípios relativos à forma de governo e à organização dos poderes: República

e separação dos poderes (arts. 1° e 2°)

c) Princípios relativos à organização da sociedade: princípio da livre organização

social, princípio da convivência justa e princípio da solidariedade (art. 3°. I);

57 SILVA, J. A. op. cit., p. 93. 58 Ibid., p. 94.

48

d) Princípios relativos ao regime político: princípio da cidadania, princípio da

dignidade da pessoa, princípio do pluralismo, princípio da soberania popular,

princípio da representação política e princípio da participação popular direta

(art. 1° § único);

e) Princípios relativos à prestação positiva do Estado: princípio da independência

e do desenvolvimento nacional (art. 3°, II), princípio da justiça social (art. 3°,

III), e princípio da não discriminação (art. 3°, IV);

f) Princípios relativos à comunidade internacional: da independência nacional, do

respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, da autodeterminação dos

povos, da não-intervenção, da igualdade dos Estados, da solução pacífica dos

conflitos e da defesa da paz, do repúdio ao terrorismo e ao racismo, da

cooperação entre os povos e o da integração da América latina (art. 4°).

Outra classificação que merece comentário é a de Luís Roberto Barroso59, em três

categorias:

a) Princípios fundamentais do Estado brasileiro: consubstanciam as decisões

políticas fundamentais do constituinte, quais sejam: princípio republicano (art.

1°, caput); o federativo (art. 1°, caput); o do Estado Democrático de Direito

(art. 1°, caput); o da separação dos poderes (art. 2°); o presidencialista (art. 76)

e; o da livre iniciativa (art. 1°. IV);

b) Princípios gerais: reunidos principalmente no artigo 5° da Constituição Federal,

com especial destaque para o § 2°, dentre eles, princípio da legalidade (art. 5°,

II), princípio da liberdade em sentido lato (art. 5°, II), princípios da liberdade

de pensamento (art. 5°, IV), da liberdade de expressão (art 5°, IX), da liberdade

de trabalho (art. 5°, XIII), princípio de acesso à informação (art. 5°, XIV), de

associação (art. 5°, XVII), etc., princípio da isonomia (art. 5° caput, e inciso I),

da autonomia estadual e municipal (art. 18), do acesso ao Judiciário (art. 5°,

XXXV), da segurança jurídica (art. 5°, XXXVI), do juiz natural (art. 5°,

XXXVII e LIII), do devido processo legal (art. 5°, LIV), da dignidade da

pessoa humana (art. 1°, III), da prevalência dos direitos humanos (art. 4°, II),

dos ditames da justiça social (art. 170), dentre outros.

59 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 147-150.

49

c) Princípios setoriais ou especiais: dizem respeito aos princípios específicos que

regem a organização e estrutura dos setores estatais:

c.1) Administração Pública: princípios da legalidade administrativa,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput), do

concurso público (art. 37, II), da prestação de contas (art. 34, VII, “d”; art.

35, III e art. 70, § único), da licitação (art. 37, XXI), da responsabilidade

por danos causados a terceiros (art. 37, §6°), dentre outros;

c.2) Organização dos Poderes: princípio majoritário (arts. 46 e 77, §2°),

proporcional (arts. 45 e 58, § 1°), da publicidade e da motivação das decisões

judiciais e administrativas (arts. 93, IX e X), da independência e

imparcialidade dos juízes (arts. 95 e 96) e o da subordinação das Forças

Armadas ao poder civil (art. 142);

c.3) Tributação: divididos em princípios gerais (ex. igualdade tributária, art. 150,

II), especiais (ex. princípio da uniformidade geográfica ou tributária, art. 151,

I) e específicos (ex. princípio da progressividade, art. 153, § 2°, I, referente

ao imposto de renda);

c.4) Orçamento: princípio da anualidade (arts. 165, III e 166), da publicidade (art.

37, caput e 165 § 3°), da proibição de estorno de verbas (art. 167, VI) dentre

outros;

c.5) Ordem social: gratuidade do ensino público (art. 260, IV), da autonomia

universitária (art. 207), autonomia desportiva (art. 217, I) e o da gestão

democrática e participativa da seguridade social (art. 194, § único, VII), da

saúde (art. 198, III), da assistência social (art. 204, II), da educação (art. 206,

VI), dentre outros;

c.6) Ordem econômica: garantia da propriedade privada (art. 170, II), função

social da propriedade (art. art. 170, III), da valorização do trabalho humano

(art. 170, caput), da defesa do meio ambiente (art. 170, IV), dentre outros.

A Constituição Federal reúne os princípios fundamentais nos artigos 1º ao 4º, no

seu Título I – Dos Princípios Fundamentais. A partir daí, somado o conteúdo do seu

preâmbulo – que cita os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o

e desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos do Estado Democrático -, é

permitido verificar quais são os princípios explícitos, tidos como fundamentais para a

caracterização do núcleo essencial da Constituição.

50

Além dos princípios fundamentais presentes nos artigos do Título I, outros

princípios decorrentes daqueles, esparsos no texto constitucional, também integrando o núcleo

essencial. Como exemplo, pode-se citar o princípio da prioridade absoluta que, a família, o

Estado e a sociedade devem conferir à criança e ao adolescente para que tenham um

desenvolvimento pleno e sadio - artigo 227 da Constituição Federal. Não há dúvidas de que a

proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do princípio da

dignidade humana. A Constituinte, no entanto, acrescentou um plus: tornou a consecução

plena de tal princípio prioritária em relação à criança e ao adolescente. E esse acréscimo,

mesmo fora das disposições do Título I, erige como um princípio fundamental, integrativo do

núcleo essencial da Constituição.

A possibilidade de princípios implícitos integrarem o núcleo essencial da

Constituição está resguardada pelo art. 5º, § 2º, da Lei Maior: “Os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por

ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja

parte.” Destarte, a ordem constitucional não se restringe ao rol de dispositivos descritos na no

texto constitucional. Como um sistema aberto, passível de interpretação a partir dos valores

acolhidos pela Constituição, a ausência de referência expressa de princípios, entretanto, não

lhes retira o status de “constitucional”.

Ante o exposto, não significa dizer que tais princípios podem ser criados por mera

conveniência do intérprete. Eles são extraídos de uma interpretação minuciosa realizada pelo

trabalho da Doutrina e da Jurisprudência, sem perderem de vista a totalidade do sistema

constitucional. Identificado o princípio implícito - como a supremacia do interesse público a

proporcionalidade - há que se verificar se o mesmo tem natureza relevante para a preservação

da Constituição; assim o fazendo, integra o núcleo essencial da Carta Constitucional.

2.8 Interpretação dos princípios constitucionais

Interpretar significa esclarecer, explicar algo sem alterar-lhe o sentido. Na ciência

jurídica, a interpretação da lei deve estar vinculada às finalidades sociais. Depois da

observação já realizada sobre as finalidades do Estado Democrático de Direito, é possível a

afirmação de que, hodiernamente, toda interpretação jurídica é finalística. Sobre o caráter

51

político das Constituições, assevera Konrad Hesse: “Questões constitucionais não são,

originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas.” 60

A Política é, pois, a ciência da organização do poder e a arte de realizar o bem

social com o mínimo de sujeição. Pode-se falar em uma Ética da Política, donde que os

representantes do poder devem primar pela realização de uma sociedade justa e solidária,

assegurando o exercício dos direitos individuais e sociais. Grande responsabilidade se verifica

nas funções dos representantes do Poder, no que tange à elaboração e aplicação das normas.

No que tange à interpretação das normas, cabe ressaltar que toda norma deve ser

interpretada. E é neste ponto que figuram os princípios, tidos como verdadeiros manuais que

encerram os valores éticos que ordenam os fins do Estado e a vida social. Não fosse dessa

maneira, a Constituição não prevaleceria diante das oscilações sociais, econômicas e políticas,

tampouco se poderia falar em Constituições rígidas.

Cármen Lúcia de Antunes Rocha61 elencou os princípios de interpretação dos

princípios constitucionais, quais sejam:

a) Princípio da supremacia: os princípios constitucionais ocupam posição

hierárquica superior em relação às demais normas do sistema jurídico;

constitui a essência, o núcleo do modelo constitucional adotado.

b) Princípio da finalidade: estabelece quais os fins da norma a fim de que os

mesmos conduzam à atividade interpretativa; cabe ao intérprete, pois, guiar-se

pelas diretrizes apontadas por ela.

c) Princípio da resultante social: se expressa na necessidade de concretização da

justiça material, que corresponde à finalidade última da norma.

d) Princípio da proporcionalidade: pode ser analisado sob duas perspectivas:

primeiro há que se analisar a proporcionalidade dos valores protegidos pelos

princípios constitucionais, quando for esclarecida a sua aplicação; segundo,

calcula-se a aplicação dos princípios sem que haja excessos nesta prática.

e) Princípio da razoabilidade: deve-se verificar a harmonia do conteúdo da norma

e sua real utilização.

f) Princípio da especialidade: várias vezes a Constituição enuncia um princípio

geral e, adiante, encontra-se o mesmo princípio, porém, revestido de traços 60 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris, 2001. p. 9-10. Lembra que Fernand Lassale, em 16 de abril de 1862, em conferência sobre a essência da Constituição na associação liberal-progressista de Berlim, asseverou que questões constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas. Isto porque a Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes.

61 ROCHA, op. cit., p. 47- 56.

52

específicos; neste caso, deve o intérprete se ater ao princípio especial no caso

concreto.

2.9 O Direito Natural e os princípios constitucionais

Apesar de os princípios fundamentais terem se desenvolvido no plano do

Direito Positivo, são anteriores a ele, fundados em razões éticas ou de Direito Natural. Esta

corrente entende que tais princípios se legitimam como pressupostos de natureza lógica ou

axiológica, isto é, como princípios de Direito Natural.

A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista que, para

justificar a existência de tais direitos - imanentes da natureza humana e independentes do

Estado -, partiu da hipótese de um estado natural, em que os direitos o homem são poucos e

essenciais: o direito à vida e à sobrevivência - que inclui, também, o direito à propriedade -, e

o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas.62

Ao longo da História, a teoria do Direito Natural passou por inúmeras deturpações

que acabaram por desprestigiá-lo; ora era utilizado como justificação e afirmação do status

quo vigente, ora era posta à margem por sistemas que a julgavam uma ideologia de quimera.

Não obstante receber, até os dias atuais, diferentes roupagens, a idéia de Direito Natural tem

como elemento comum a existência de uma ordem normativa, imanente e manifestada na

natureza ou na realidade, que é o arquétipo a que deve inspirar-se e subordinar-se o Direito

Positivo.

A tradição doutrinária acerca do Direito Natural teve seu início com as fontes

greco-romanas aproveitadas na Idade Média pelos canonistas e teólogos. Não obstante as

variantes existentes no decurso de sua formação há um consenso na aceitação de um princípio

superior de conduta, regra geral de toda ação humana, inerente à própria natureza e critério

supremo da justiça e da eqüidade.

A distinção conceitual entre Direito Natural e Direito Positivo já se encontrava,

pois, em Platão, tornando-se, porém, mais explícita em Aristóteles – considerada o pai do

Direito Natural - em texto da Ética a Nicômaco63: A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. [...]

62 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73. 63 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 117.

53

Seja como for, há uma justiça natural e uma justiça que não é natural. É possível

ver claramente quais as coisas entre as que podem ser de outra maneira que são como são por

natureza, e quais as que não são naturais, e sim legais e convencionais, embora ambas as

formas sejam igualmente mutáveis.

Apesar do avanço, representava uma bipolaridade mais filosófica e ética do que

técnico – jurídica. Faltavam-lhe, ainda, elementos reais e concretos, típicos de uma sociedade

diversificada para que essas noções de Direito Natural pudessem florescer e frutificar.

Doravante, essas idéias suscitaram, além dos gregos, a curiosidade de outros povos, tarefa que

atravessou séculos e séculos, chegando aos dias atuais, donde podemos falar em uma

verdadeira Doutrina do Direito Natural. Apesar das diferenças e particularidades de cada

concepção, não se pode afastar a unanimidade na aceitação de um princípio superior de

conduta como regra geral de toda a ação humana, imanente à natureza e critério supremo da

justiça e da eqüidade, qual seja: “praticar o bem e evitar o mal”.

Funda-se, portanto, a lei natural, na natureza racional do homem. O fim pessoal do

homem é sua própria felicidade, que só é possível mediante a vivência em sociedade, com o

devido respeito aos direitos dos outros homens e satisfazendo as demais exigências da vida

em comum. Sendo a natureza humana é universal e permanente, universal e permanente deve

ser a sua lei.

Das múltiplas facetas do Direito Natural, é importante enfatizar a noção de Direito

Natural de “conteúdo variável”, ou “direito cultural”, elaborada por Rudolf Stammler64,

contrariando a tradicional escola Racionalista que propugnava a idéia de um Direito Natural

eterno e de conteúdo imutável. Em suas numerosas obras, este precursor das novas idéias

jusnaturalistas insistia que, além de investigar o Direito Positivo, era necessária a investigação

do Direito justo. Assim, o jus naturale, que não pode reduzir-se apenas aos interesses do

homem individual ou mesmo de grupos organizados, deve inserir-se sempre, por sua própria

índole, no contexto de uma visão mais abrangente e filosófica do homem e do universo. Com

essa finalidade, também é importante a concepção tomista de Direito Natural, que é dinâmica

e não estática que não é imóvel, mas finalista e que é eterna e humana.

O Direito Natural, entendido nos dias atuais, pretende construir um critério para a

avaliação do Direito Positivo, baseado na idéia do justo, concebido em função dos princípios

que a própria vivência e experiência do Homem vão adequando a cada época, num

determinado momento histórico. Não é, e nem pode ser, um justo inalterável, estático.

64 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Luís Cabral de Moncada. 5. ed. Coimbra: Armênio

Amado, 1974. p. 63.

54

Encontra-se positivado, a exemplo de algumas normas constitucionais que, com status de

cláusulas pétreas, albergam direitos fundamentais o cidadão. Este fato contribuiu para o

enfraquecimento da dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo, fazendo com que o

objeto daquele continue presente até nossos dias, sob a forma de princípios.

Um Direito, que se pretende fundado na natureza humana, e também preocupado

com a inserção do ser humano na história, numa determinada época e numa sociedade

determinada, não pode ser estático. As conclusões a que se chega sobre o Direito Natural são

extremamente pobres, diria um radical jurista positivista. Não consubstanciam um código de

prescrições, nem um conjunto de leis para, assim, legitimarem a sua existência como Direito.

Mas é exatamente na formulação dos princípios que devem inspirar as legislações,

e que se encontra a medida do Direito Natural, que deve ser dosada como um máximo ético

nos Ordenamentos Positivos, a fim de que o Estado proporcione uma vida mais justa aos seus

cidadãos. Também não cabe a este Direito, qualificar como de Direito Natural esse ou aquele

sistema jurídico positivo. Sua função é transcender a todos, como instrumento de avaliação

dos mesmos, verificando sua conformidade ou desacordo com a própria justiça.

2.10 A atuação prática dos princípios constitucionais

Tendo adotado o modelo de Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), o

Estado, além de respeitar a legalidade - o “breque” de seu poderio - deve atuar eficazmente na

esfera social, nos moldes estabelecidos pela própria Constituição Federal. Neste sentido,

pode-se classificá-la como Constituição Dirigente, entendida como aquela que, além de

estruturar e delimitar o poder do Estado, insere-o numa esfera de atuação política,

estabelecendo quais as diretrizes a serem seguidas por ele. Tal Modelo de Constituição foi

proposto e definido por Canotilho65: “[...] o bloco constitucional dirigente não visa só (como

se deduz logo da sua adjectivação) constituir um limite à direcção política. A sua função

primordial é bem outra: fornecer um impulso directivo material permanente e consagrar uma

exigência de actuação.”

Não basta, pois, que os princípios se limitem a uma “duplicata inútil de Direito

Positivo” 66; um Estado de modelo Democrático assume um papel dinâmico perante a

sociedade, ou seja, possui a responsabilidade de dar vida aos preceitos jurídicos positivados a

65 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a

compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 464 66 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 306

55

fim de que haja uma coerência entre esses e a realidade fática. Pode-se dizer, assim, que os

princípios, ao constituírem uma categoria dogmática, exigem a realização de algo de maneira

que seus conteúdos sejam otimizados da melhor forma possível, ressalvadas as situações que

os limitam. Assim, por exemplo, é o artigo 5°, XIII da Constituição Federal, que assegura o

livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, porém, atendidas as qualificações

que a lei estabelecer. Neste exemplo, podem-se visualizar duas dimensões que podem ter os

princípios: a objetiva e a subjetiva.

Para Canotilho67, a fundamentação subjetiva das normas consagradoras dos

direitos fundamentais consiste no significado ou relevância da norma consagradora de um

direito fundamental para os interesses do indivíduo. Em contrapartida, a dimensão objetiva

visa à satisfação dos interesses coletivos. Uma coisa é ter-se apenas a liberdade de exercer um

trabalho qualquer; outra é uma norma regulamentar essa liberdade, impondo requisitos para o

seu exercício, criando um suporte para o exercício desse direito. Assim, os princípios podem

ser garantidores de direitos e, ao mesmo tempo, impositivos de obrigações ao Estado, ou,

ainda, podem conter apenas uma das dimensões objetiva e subjetiva.

É na dimensão objetiva dos princípios fundamentais que se encontra o maior

desafio do Estado Democrático de Direito: criar suportes fáticos para o livre exercício dos

direitos humanos.

À aplicabilidade dos princípios, Canotilho68 refere-se ao processo de

concretização ou densificação dos mesmos:

A densificação dos princípios constitucionais não resulta apenas da sua articulação com outros princípios ou normas constitucionais de maior densidade de concretização. Longe disso, o processo de concretização constitucional assenta, em larga medida, nas densificações dos princípios e regras constitucionais pelo legislador (concretização legislativa) e pelos órgãos de aplicação do direito, designadamente os tribunais (concretização judicial), a problemas concretos. Qualquer que seja a indeterminabilidade dos princípios jurídicos, isso não significa que eles sejam impredictíveis. Os princípios não permitem opçções livres aos órgãos ou agentes concretizadores da constituição (impredictibilidade de princípios). Permitem, sim, projecçoes ou irradiações normativas com um certo grau de discricionaridade (indeterminabilidade), mas sempre limitadas pela juridicidade objectiva dos princípios. Como diz Dworkin, o “direito - e, desde logo, o direito constitucional – descobre-se, mas não se inventa”.

67 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:

Almedina, 1999. p. 1178-1179. 68 Id., 1988, p. 1108-1109. (destaque do autor).

56

Neste sentido, Barroso69 discorre acerca da efetividade:

Efetividade designa a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, os valores por ela tutelados. Ao ângulo subjetivo, efetiva é a norma constitucional que enseja a concretização do direito que nela se substancia, propiciando o desfrute do bem jurídico por ela assegurado.

Para que possa ser efetiva uma norma constitucional: a) não deve conter

promessas irrealizáveis; b) deve permitir a pronta identificação da posição jurídica em que

investe o jurisdicionado; c) deve ter o seu cumprimento assegurado por meios de tutela

adequados.

Portanto, os princípios não existem para simplesmente preencherem o topo da

hierarquia do sistema jurídico; ocupam posição privilegiada para serem observados e

aplicados; do contrário, não haveria razão para integrarem o texto constitucional. A

normatividade dos princípios constitucionais, dessa forma, está subordinada à realidade fática.

Daí a função legitimadora de tais princípios em relação ao sistema jurídico, assim expressa

nas palavras de Bonavides70:

Os princípios constitucionais fazem a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa elevam-se, portanto, ao grau de Norma das normas, de Fonte das fontes. São qualitativamente e quantitativamente a viga mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.

Por fim, é de extrema relevância e atualidade registrar o posicionamento do

Supremo Tribunal Federal, guardião por excelência da Constituição Federal71, sobre os

princípios fundamentais e sua atuação prática. No julgamento da Ação Direta de

Inconstitucionalidade n. 3300 em 03/02/2006, foi requerida a inconstitucionalidade do artigo

1° da Lei n. 9278/96 que, ao regular o artigo 226 da Constituição Federal, reconheceu

somente a união estável entre homem e mulher, em detrimento da união homoafetiva não

reconhecida juridicamente como entidade familiar. O Ministro Relator Celso de Melo, em seu

parecer, invocou os princípios fundamentais para a resolução do caso concreto, ressaltando

sua relevância:

69 BARROSO, 1996, op. cit., p. 231-232. 70 BONAVIDES, 2002, op. cit., p. 226. 71 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de

outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 102, caput: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...].”

57

Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria - cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais.

Outra situação concreta, tendo o respaldo de princípios constitucionais, foi a

votação do Programa Universidade para Todos (ProUni), em que o ministro do Supremo

Tribunal Federal Carlos Ayres Britto votou em 02/04/2008 pela sua constitucionalidade. O

Programa foi alvo de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs n. 3330, 3314 e 3379)

logo após ser criado pelo governo, por meio de medida provisória, depois convertida na Lei

11.906/05. Ayres Britto disse que é pelo combate eficaz a situações de desigualdade que se

concretiza a igualdade e que a lei pode ser utilizada como um instrumento de reequilíbrio

social, se não incidir em discriminação. “Não se pode criticar uma lei por fazer distinções. O

próprio, o típico da lei é fazer distinções, diferenciações, ‘desigualações’ para combater

renitentes ‘desigualações’.” Ao citar a máxima de que “a verdadeira igualdade consiste em

tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, Ayres Britto lembrou que a lei

beneficia estudantes com carência patrimonial e de renda, uma faixa da população que tem

sido alvo de ciclos repetitivos de desigualdades.72

72SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Constituição e o Supremo: informativo. Disponível em:

<http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=85986&caixaBusca=N>. Acesso em: 8. abr. 2008.

58

CAPÍTULO 3 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS

3.1 Considerações preliminares

Apesar da idéia de deveres fundamentais remontarem à época da República

Romana, pode-se afirmar que o desenvolvimento de uma teoria acerca dos deveres

constitucionais é, ainda, recente, tendo sofrido restrições à época do advento do Estado

Liberal.

Segundo Canotilho, a Constituição de Weimar – que continha um capítulo

intitulado “Direitos fundamentais e deveres fundamentais dos alemães’’, por influência da

doutrina juspubliscista, retomou a idéia de igual dignidade de direitos e deveres fundamentais.

Porém, tal entendimento não foi unânime, sendo que alguns – como Carl Schmitt – entendiam

tais deveres como contrários à idéia de estado de direito liberal. Para a teoria comunista,

também os direitos fundamentais eram relativizados em deveres fundamentais, o que, no

entanto, não foi observado na prática, dada a hipertrofia dos deveres em relação aos direitos.

Estas experiências históricas acabaram por gerar relativa desconfiança em relação aos deveres

fundamentais.73

À época das declarações de direitos do século XVIII - entre as quais se destaca a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789 – houve uma

aparente rejeição em integrar uma declaração de deveres. Basta recordar que a preocupação

dominante nessa época tinha por objetivo a instituição ou fundação de regimes constitucionais

suficientemente fortes no sentido de proteção dos direitos e liberdades fundamentais. Isto é, os

novos regimes se opunham de maneira plenamente eficaz a todas e quaisquer tentativas de

regresso ao passado totalitário ou autoritário. Necessário era exorcizar o passado dominado

por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos.

Assim, desde a Antigüidade pode-se constatar a sobrecarga de deveres frente às

minorias de direitos à disposição dos indivíduos. A idéia de deveres constitucionais, tal como

se entende nos dias atuais, foi definida paulatinamente à medida que se reconheciam os

direitos dos particulares. Lembrando que na Antigüidade e na Idade Media, tanto direitos

como deveres eram ainda poucos e limitados a uma pequena classe privilegiada. Apenas com

o advento do Estado de Direito, quando os governantes passaram a se submeter igualmente ao

73 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:

Almedina, 1999. p. 491.

59

ordenamento jurídico, é que tem início a discussão em torno dos deveres dos poderes

públicos.

Imperioso, após as experiências históricas, assim como a indiferença que se

assenta nas Doutrinas Modernas acerca do tema deste capítulo, que sejam repensados os

deveres fundamentais e destacada a importância dos mesmos. Destarte, cumpre localizá-los

no Estado Democrático de Direito, ao lado da categoria dos direitos individuais e coletivos. A

partir daí, resta proceder à análise de qual a relação que desenvolvem com o tema da

legitimidade do Estado e do Direito.

3.2 Conceito e fundamentos

Conceituar as obrigações constitucionais não é tarefa pacífica devido à falta de

consenso doutrinário, pela ausência de clareza das Constituições e, principalmente, pela não

existência de uma Doutrina dos deveres – ao contrário do que ocorre com a categoria dos

princípios constitucionais. No Brasil, a Constituição fala em “Direitos e garantias

fundamentais” no Título II e em “Direitos e deveres individuais e coletivos”. As Constituições

de Portugal74 e da Espanha75, por exemplo, apresentam a expressão: “Direitos e deveres

fundamentais”. Na Doutrina, encontram-se as seguintes terminações, tais como deveres

fundamentais, deveres constitucionais, deveres públicos individuais, obrigações

constitucionais ou, ainda, obrigações políticas.

Quando se fala em deveres fundamentais, pretende-se referir a uma categoria

autônoma dentro do sistema jurídico. Neste caso, os deveres devem ser analisados como uma

extensão dos princípios fundamentais, sem, no entanto, confundir-se com estes, para que se

mantenha um equilíbrio entre as prestações e os direitos individuais.

Neste sentido, Bobbio assevera que a afirmação de um direito implica a afirmação

de um dever e vice-versa.76 Para chegar ao conceito dos deveres, Bobbio parte da moral como

o conjunto de regras de conduta e antídoto aos males que os homens podem causar a outrem;

assim, a moral surge de proibições, mandamentos e, portanto, de obrigações, o que revela

dever como precedente do direito e não o contrário. Independente desta constatação, o

filósofo entende direito e dever como lados opostos de uma mesma moeda, identificáveis de

74 PORTUGAL, Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 2002.

(Organizada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira), Parte I – Direitos e deveres fundamentais. p. 15. 75 ESPANHA. Constituição (1978). Constitucion española. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.,

1979. p. 39. 76 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 9.

60

acordo com o ângulo a ser observada. Tradicionalmente, como dito anteriormente, a moeda

sempre foi observada, preponderantemente, sob o ângulo dos deveres, mesmo porque os

problemas morais eram avaliados privilegiando a sociedade e não o indivíduo singular.

“Para que pudesse ocorrer [...] a passagem do código dos deveres para o código

dos direitos, era necessário inverter a moeda: o problema da moral devia ser considerado não

mais do ponto de vista apenas da sociedade, mas também daquele indivíduo.”77 Para explicar

esta inflexão, Bobbio parte da relação política entre governantes e governados, os que detém o

poder de obrigar e os submetidos a ele. Sob o ângulo dos governantes, o objeto da política

sempre foi o governo – bom ou mau, ou como se conquista o poder e como é exercido. O

indivíduo, dessa forma, figura nesta relação como objeto do poder vinculado à obediência às

leis. A concepção individualista do século XVIII e o início da Doutrina dos Direitos Humanos

se encarregou dessa inversão, rompendo com a ordem tradicional.

Para Lafer, a obrigação política pode ser encarada de duas maneiras. Enquanto

dever de obediência à lei, é irrelevante saber de que maneira a norma obriga os governados;

importa, pois, a prudência dos governados – obrigação moral – de acatar a norma imposta

pelo Estado, evitando, dessa forma, a sanção. Como dever-se, a obrigação política pressupõe

uma reciprocidade de direitos e deveres na integração entre governantes e governados; o

legislador pode reivindicar o direito a ser obedecido na mesma proporção em que os cidadãos

podem reivindicar o governo pos leis justas. Assim, um desequilíbrio em qualquer dos pólos

certamente desarticulará esta reciprocidade, podendo culminar em uma ordem despótica ou

mesmo em uma desordem. 78

De fato, superada a visão clássica - ou seja, a existência de deveres sem direitos -,

não se pode negar o fundamento lógico-formal e impositivo das obrigações, considerando-se a

previsão legal das mesmas que vincula não apenas governados, mas os próprios governantes.

No Estado Democrático de Direito, tal fundamento é, pois, a própria Constituição Federal.

Assim, os deveres fundamentais devem ser expressões da soberania e jamais devem aspirar

interesses particulares do legislador constituinte; ainda, devem ser amparados sob a égide da

legalidade, sob pena de sanção, tendo em vista que seu descumprimento configura flagrante

violação à Carta Constitucional. Enquanto que os princípios fundamentais são prescrições de

valores, reconhecido pelo Constituinte, as obrigações referidas consubstanciam a exigência de

concretização daqueles.

77 BOBBIO, 1992, op. cit, p. 57. 78 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 189-190.

61

Nabais79 considera os deveres como um corretivo da liberdade, traduzindo a

mobilização do homem e do cidadão para a realização dos objetivos e do bem comum.

Interessante quando se refere a tais deveres como a “a face oculta dos direitos”. Eis a sua

conceituação: “[...] deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição

fundamental do indivíduo, têm especial significado para a comunidade e podem por esta ser

exigidos.”

De fato, a liberdade individual, princípio fundamental consagrado pelas

Constituições, deve ser entendida de forma limitada, ou melhor, a liberdade individual deve

coincidir com a liberdade coletiva. Um Estado Democrático somente se erige com a

contribuição de todos, inclusive dos Poderes Públicos. As obrigações podem ser tidas, pois,

como regras de organização do Estado, sendo o cumprimento de tais deveres o ponto de

partida – no sentido de construção – de uma sociedade justa e equilibrada.

3.3 Antecedentes dos deveres fundamentais

A Antigüidade não conheceu os direitos individuais, tamanha era a gama de

deveres impostos aos indivíduos. No período democrático dos Estados gregos, a liberdade

política foi o único direito concedido aos cidadãos – parcela ínfima da população -, já que

participavam direta e efetivamente no governo. Em Roma, na época da República, foi

estabelecido um complexo mecanismo de interditos que tutelavam os direitos individuais

frente aos arbítrios estatais.80

Já houve tempo em que os deveres fundamentais foram considerados como categorias jurídicas de igual dignidade à dos direitos fundamentais. Desde logo, na filosofia republicana: a República era o reino da virtude no sentido romano, que só pode funcionar se os cidadãos cumprirem um certo número de deveres: servir a pátria, votar, ser solidário, aprender. Neste sentido, a teoria da cidadania republicana implicaria que um indivíduo teria não apenas direitos mas também deveres.

Na Idade Média, os servos se obrigaram a prestar serviços aos senhores feudais

em troca de proteção. Porém, é nesta fase que o Cristianismo proclama os direitos e deveres

79 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 60. apud

BERARDO, Euclides Celso. Deveres fundamentais: deveres e obrigações constitucionais. 2003. 251 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2003. p. 122.

80 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 491.

62

fundamentais dos homens, sendo todos irmãos enquanto filhos de Deus - ideais ainda

aniquilados pelas monarquias absolutas.

Mas a doutrina filosófica que considerou o homem e não mais a sociedade, o

ponto de partida para a construção de doutrinas da moral e do direito foi o Jusnaturalismo, que

pode ser considerado, sob muitos aspectos, segundo Bobbio, a secularização da ética cristã.

Assim, com o Humanismo, a idéia de dever individual se aproxima do justo. Hobbes lança a

idéia de dever de obediência do súdito ao Estado, ao considerar o estado natural beligerante

dos homens. Locke, ao considerar o homem livre em estado de natureza, foi o principal

inspirador dos primeiros legisladores sobre os direitos do homem.

Kant, por sua vez, considera o estado natural como instável e inseguro, no qual o

homem não pode continuar a viver indefinidamente, devendo ingressar a um estado civil. Ele

diferencia os deveres morais – aqueles praticados sem visar a uma finalidade, mas

simplesmente pelo respeito ao dever – e os deveres jurídicos – aqueles exigidos e que devem

ser cumpridos independentemente de uma vontade. Assim, criticava os políticos por não

acreditarem na virtude e na força da motivação moral e por repetirem a história monótona,

retardando, pois, o progresso.81

É no final do século XVIII – marcado pelas Revoluções Liberais -, que teve início

o movimento Constitucionalista, trazendo o modelo de Constituição escrita, formal e dotada

de supremacia; além disso, os deveres fundamentais passam a decorrer de uma norma

jurídica, assim como os governantes passam a se submeter igualmente às leis, surgindo a idéia

de deveres fundamentais dos Poderes Públicos. Há necessidade de estabilidade e segurança

nos Ordenamentos Jurídicos, com declarado repúdio aos governos despóticos e primazia pela

Democracia. No mesmo sentido, assegura Dworkin82:

O direito serve melhor sua comunidade quando é tão preciso e estável quanto possível, e isso se aplica particularmente ao direito fundamental, constitucional [...] razão geral para ligar a interpretação das leis e de alguma constituição a algum fato histórico que seja, pelo menos em princípio, identificável e imune a convicções e alianças efêmeras.

Muitos autores apontam a Constituição de Massachusetts, de 1780, como a

primeira a trazer um artigo referente à obrigação de cada cidadão de contribuir através de

81 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo:

Abril Cultural, 1980. p. 109. 82 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica de Gildo

Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 438.

63

serviços pessoais ou o equivalente para a organização dessa proteção.83 Em seguida, a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 previa o dever de obediência, o de

pagar tributos e o de submeter-se à desapropriação. Este documento expressava, no entanto,

interesses dos proprietários burgueses e mais se preocupou com a previsão de direitos.

A Constituição francesa de 1791 trouxe novas formas do poder estatal, cabendo,

porém, à Carta de 1793 uma melhor regulamentação dos direitos fundamentais, além de

consagrar a insurreição como o mais sagrado direito e o mais indispensável dever. A

Constituição francesa de 1795 trouxe em seu bojo uma declaração com nove artigos que

previam deveres de cunho ético. Dentre eles, o artigo 7°: “As obrigações de cada um para

com a sociedade consistem em defendê-la, servi-la, viver submisso às leis, e respeitar as

autoridades.”; e o art. 5°: “Ninguém é homem de bem se não for franca e religiosamente

observador das leis”. 84

A maior efetivação dos direitos humanos e deveres fundamentais aconteceram

durante o constitucionalismo do século XIX; além de deveres clássicos, como a defesa da

pátria e a contribuição com os gastos públicos, outros de cunho genuinamente ético foram

previstos. A Constituição espanhola de Cadiz de 1812, por exemplo, previa deveres de defesa

à pátria, de respeito à Constituição e respeito às autoridades. A Constituição portuguesa de

1822 mencionava o dever de ser justo e o dever de venerar a religião.85

O início do século XX trouxe diplomas constitucionais fortemente preocupadas

com o aspecto social; exemplos são: Constituição mexicana de 1917, a Constituição de

Weimar de 1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de

1918, seguida da Constituição Soviética no mesmo ano e a Carta de Trabalho editada pelo

Estado Fascista italiano em 1927. A Constituição de Weimar previa em sua parte II os

Direitos e Deveres Fundamentais dos alemães, por exemplo, o da educação dos filhos, da

escolaridade obrigatória e da função social da propriedade.

Em seguida, surgiram as Constituições da segunda metade do século XX que

consagraram direitos constitucionais de terceira geração. Direitos estes de mão dupla, ou seja,

ao mesmo tempo um direito e um dever. Surgem direitos-deveres que, vinculam a atividade

dos Estados a prestações que garantam os direitos dos indivíduos. Como exemplo, a Lei

Fundamental da República da Alemanha, em 1949; a Constituição Francesa de 1946; a

Constituição Italiana, em vigor desde 1948; a Constituição Portuguesa de 1976; a

83 BERARDO, 2003, op. cit., p. 125. 84 Ibid, p. 125 - 126. 85 Ibid., p. 128.

64

Constituição espanhola de 1978; na América, A Reforma Constitucional de 1966, no

Uruguai.86

A Doutrina solidarista – que trata dos direitos de terceira geração - criou as

obrigações positivas do Estado, os chamados direitos sociais. Partindo do ponto de vista de

que o indivíduo deve desenvolver suas aptidões físicas, morais e intelectuais em benefício da

sociedade, ela concluiu logicamente que o Estado deve favorecer essa atividade, criando todas

as facilidades para o completo desenvolvimento da personalidade humana e obrigando mesmo

a esse desenvolvimento.

3.4 Deveres nas Constituições brasileiras

A Constituição do Império, 182487, embora não dedicasse nenhum capítulo a

direitos ou deveres, dispunha em seu artigo 145: “Todos os brasileiros são obrigados a pegar

em armas para sustentar a independência e integridade do Império e defendê-lo de seus

inimigos externos ou internos.”

As Constituições que se seguiram, de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 196988,

proclamaram alguns deveres, sem reservar-lhes grande importância. A Constituição de 1937

dispunha no artigo 125: “A educação integral da prole é primeiro dever e o direito natural dos

pais.” As Constituições de 1946, artigo 133, de 1967, artigo 142, § 1°, e 1969 artigo 147, § 1°,

dispunham sobre a obrigatoriedade do alistamento e do voto nas eleições gerais.

Sobre a obrigatoriedade do voto nas eleições sindicais, tratavam as Constituições

de 1967 (art. 159, § 2°) e as de 1969 (art. 166, § único): “é obrigatório o voto nas eleições

sindicais”. Já a Constituição de 1946, ao tratar da ordem econômica e social, dispôs: “A todos

é assegurado o trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.”

Por fim, a atual Constituição do Brasil, ao subdividir o Título II (Dos Direitos e

Garantias Individuais), nomeou o Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.

Cabe ao Estado, portanto, o dever constitucional de respeitar tais direitos. Porém, não há,

neste Título, qualquer dever discriminado, entendendo grande parte dos doutrinadores que se

encontram esparsos e implícitos na totalidade do Texto Constitucional. Destarte, não há que

86 BERARDO, 2003, op. cit., p. 129-130. 87 BRASIL. Constituições do Brasil. Constituição Política do Império do Brasil – 25 de março de 1824. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p. 45. 88 Id., Todas as Constituições. Compilação dos textos, notas, revisão e índices de Adriano Campanhole e Hilton

Lôbo Campanhole. São Paulo: Atlas, 1971. passim.

65

se falar em reserva da Constituição quanto à previsão de deveres, não enumerados em rol

taxativo. Como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho89:

Esta é a primeira vez em que no direito brasileiro a Constituição se propõe não só a enumerar os direitos, mas também os deveres dos brasileiros e dos estrangeiros dedicados no País. No texto, porém, não se identifica qualquer dever, salvo o de respeitar os direitos fundamentais, ainda assim, implícito.

3.5 Deveres na Constituição de 1988

Importante, neste trabalho, o conhecimento dos deveres que integram a

Constituição de 1988, uma vez que, é por meio deste conhecimento que se poderá verificar o

comportamento dos Poderes Públicos perante os mesmos. Lembrando que integram o texto

explícita (Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”)

e implicitamente o texto constitucional. Assim, também o Título II do referido capítulo, “Dos

direitos sociais” também estabelecem deveres aos Poderes Públicos.

Lembrando o que já a pouco se comentou sobre “a face oculta dos direitos”, pode-

se chegar à conclusão que a cada direito presente na atual Constituição Brasileira,

corresponde a um dever. Dessa forma, os direitos fundamentais são reconhecidos, enquanto

que as obrigações impõem limites ao legislador, donde que não há deveres que não

correspondam a um direito fundamental. Canotilho90, ao contrário, não considera tal

correspondência, como se verá a seguir, reconhecendo, apenas, “deveres fundamentais de

natureza pontual necessariamente baseados numa norma constitucional ou numa lei mediante

autorização constitucional”. Há, segundo o mesmo doutrinador, uma reserva de constituição

quanto aos deveres fundamentais.

A atual Constituição Federal prevê que todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade.91 O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, uma vez que

constitui um pré-requisito ao exercício dos demais direitos. A Constituição Federal assegura,

portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em dupla acepção, sendo a primeira

89 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988: arts. 1° a 43. São

Paulo: Saraiva, 1990. v. 1. p. 25. 90 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 492. 91 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de

outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 5°, caput. p. 35.

66

relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à

subsistência. Ao garantir tal direito, o Estado se obriga de duas maneiras: quanto ao dever de

cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de

obtê-los por seus próprios meios; e a efetivação de órgãos competentes, públicos ou privados,

através de permissões, concessões ou convênios para prestação de serviços públicos

adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um

nível de vida digna mais adequada ao ser humano.

Na mesma linha de pensamento, o artigo 5°, inciso VII, impõe o dever ao Estado

de prestar assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. Cabe,

assim, ao Estado, nos termos da lei, a materialização das condições para a prestação das

condições para a prestação de tal assistência religiosa.

Além dos deveres fundamentais, muitos outros remanescem na Constituição

Federal. Ainda em seu Título II, Capítulo II, estão previstos os direitos sociais, cada qual

imprimindo um dever ao Estado. Destarte, são deveres ao Estado os provimentos à educação,

à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, de proteção à

maternidade e à infância, aos desamparados, nos termos previstos constitucionalmente.

Do mesmo modo, o Título VIII da Carta Constitucional - “Da Ordem Social” –

prevê uma infinidade de obrigações constitucionais. Como exemplo, o artigo 227 dispõe que é

dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,

ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão.

Outro é o dever de voto para brasileiros maiores de 18 anos (art. 14, § 1°, I), com

ressalva ao voto facultativo aos analfabetos, aos maiores de 70 anos e os maiores de dezesseis

e menores de dezoito anos, sendo proibido o alistamento aos estrangeiros e conscritos durante

o serviço militar obrigatório (art. 14, § 1°. II e § 2°). Como exemplo de dever implícito na

Constituição, pode-se citar o dever de defesa à pátria como decorrência da soberania, um dos

fundamentos do Estado brasileiro (art. 1°, I, CF).

Poder-se-ia citar uma infinidade de obrigações Constitucionais explícitas e

implícitas em seu texto sob o provável risco de esquecimento de muitas delas. Apesar de a

Doutrina oferecer algumas classificações em relação aos referidos deveres, este tópico não

tem esta preocupação quantitativa. A preocupação qualitativa aqui pretendida cumpre o papel

67

de demonstrar a existência das obrigações constitucionais do Estado brasileiro e enfatizar que

o mesmo também figura como sujeito ativo, prestador das mesmas.

3.6 Tipologia, titulares e destinatários das obrigações constitucionais

De acordo com o princípio do Estado Democrático de Direito, governantes e

governados em geral devem obediência às leis, reservados e protegidos os direitos

fundamentais. A obrigatoriedade do cumprimento dos deveres encontra respaldo no princípio

da supremacia constitucional, segundo o qual, a Constituição Federal corresponde ao

fundamento de validade de todas as demais normas do ordenamento. Basta lembrar que a

Constituição corresponde a um código de preceitos fundamentais, basilarmente de direitos e

obrigações, vinculantes do Estado e da comunidade.

Apesar das diversas classificações doutrinárias, a elaborada pelo mestre

Canotilho92 bem se aplica ao Direito brasileiro. Segundo o autor, é possível detectar duas

categorias de deveres: deveres cívico-políticos e deveres de caráter econômico, social e

cultural (deveres de natureza jurídica); e deveres constitucionais formais e deveres

constitucionais materiais.

São deveres primordialmente cívico-políticos aqueles correspondentes aos deveres

de defesa da pátria e de voto, cuja titularidade pertence à comunidade estatal. Os deveres de

caráter econômico, social e cultural incluem deveres como a defesa do meio ambiente, da

saúde e do patrimônio, dentre outros, pertencendo a titularidade ativa a todos da comunidade,

inclusive aos entes estatais.

Quanto aos deveres materialmente constitucionais, Canotilho não reconhece

licença constitucional para a existência de deveres fundamentais extraconstitucionais,

reconhecendo, portanto, apenas os deveres formalmente constitucionais. Isto se dá, pois,

diversamente dos direitos fundamentais – apenas reconhecidos, não passíveis de serem

criados -, os deveres correspondem a criações do Poder Constituinte, não havendo a

possibilidade de serem reconhecidos. Assim é que o autor Canotilho defende a reserva de

deveres diversamente do que ocorre com os direitos fundamentais, fator, este que afasta a

equivalência entre deveres e direitos, como se verá no próximo tópico.

Quanto à titularidade passiva das obrigações constitucionais, pode-se dizer que

são pessoas físicas ou jurídicas, o próprio Estado, a comunidade em geral. Beneficiam, pois, a

92 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 494.

68

todos os indivíduos de uma sociedade. Por força do artigo 5° caput da Constituição, não há

dúvidas de que os direitos e deveres são assegurados a todos os brasileiros e estrangeiros

residentes no país. O que deve ser observado, no entanto, é que existem alguns deveres, tais

como os de prestação de serviço militar e de voto, que são destinados aos brasileiros -

residentes ou não no país -, enquanto que outros, tais como o dever de pagar tributos e o dever

de preservação ao meio ambiente, estendem-se a todos os residentes no país. São, portanto,

titulares passivos das obrigações constitucionais, as pessoas jurídicas ou físicas, neste caso,

sendo brasileiros, residentes ou não no país e, sendo estrangeiros, tais deveres se estendem

apenas aos residentes, ainda que não estejam aqui presentes temporariamente.

3.7 Relação entre obrigações constitucionais e direitos fundamentais

A idéia de obrigações constitucionais deve ser entendida como autônoma, porém,

interligada à idéia de direitos fundamentais. De modo diverso, não teria sentido o Capítulo I

referente ao Título II da Constituição Federal, que fez uma síntese dos mesmos, sem sequer se

preocupar em diferenciá-los. De outra forma, tendo-se como ponto de partida um Estado de

Democrático Direito, não haveria sentido a “mão dupla” de direitos e deveres. Ou seja, onde

há um direito, há também um dever a ele vinculado. Propõe-se, assim, que os direitos e os

deveres sejam colocados no mesmo plano constitucional, pois tanto os direitos como os

deveres fundamentais integram o estatuto constitucional da pessoa. Neste sentido, Darcy

Azambuja93:

Ora, para que os indivíduos possam desenvolver suas aptidões, agir de acordo com a solidariedade social, é necessário que o Estado lhes assegure e respeite certas atividades, que é exatamente o que a teoria individualista denominava de direitos individuais. [...] os homens [...] tem o dever de ser livres, pois só assim aplicarão suas aptidões em bem da sociedade, para saldar a dívida que com ela contraíram. Essa liberdade-dever são os direitos individuais.

Canotilho94, no entanto, não generaliza todos os deveres como correspondentes

aos princípios fundamentais. Assim, classifica os deveres em:

a) Deveres autônomos: não existe um paralelismo entre direitos fundamentais e

deveres; como o dever de pagar impostos, o dever de colaborar nas eleições,

dentre outros.

93 AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 12. ed. São Paulo: Globo, 1999. p. 162-163. 94 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 481-482

69

b) Deveres conexos com direitos fundamentais ou não autônomos: são

correlativos a direitos, como, por exemplo: o dever cívico de voto, relacionado

ao direito de voto; o dever de promoção da saúde associado ao direito à saúde,

dentre outros.

Segundo argumento de Norberto Bobbio, as categorias direito e dever

correspondem às duas faces da moeda da moral. Considera o direito como uma figura

deôntica, que tem um sentido preciso somente na linguagem normativa. Assim, não há direito

sem obrigação, tampouco não há direito e obrigação sem norma de conduta.95

Nada mais equilibrado e justo, em um Estado democrático, que direitos e deveres

sejam relativos e se correspondam. No tocante à categoria de deveres autônomos, o mais

correto é pensar que, ainda que não imediata, há uma correspondência entre direitos e deveres.

Vide o pagamento de tributos: em teoria, todos os recursos arrecadados pelo governo devem

ser revertidos para o bem comum, para investimentos e custeio de bens públicos (de serviços

públicos como saúde, segurança e educação a investimentos em infraestrutura - estradas,

portos, aeroportos, etc. - e sua manutenção). O imposto, embora não esteja vinculado a um

seviço específico, deve servir - ainda que mediatamente -, às necessidades do Estado e,

conseqüentemente, a comunidade em geral.

Necessário destacar a limitação de direitos por deveres, como por exemplo, o

dever do serviço obrigatório que, sem dúvida, implica na restrição de alguns direitos

fundamentais, tais como o de locomoção, do voto, do exercício de qualquer trabalho ou

profissão, dentre outros.

Quanto à limitação de deveres fundamentais por direitos, os direitos atuam como

defesa para eventuais excessos quando do cumprimento legal dos deveres – por exemplo, o

acesso ao judiciário. Por outro lado, os direitos também podem ser limitados no plano

particular, como no caso de objeção ao serviço militar obrigatório.

3.8 Relação entre obrigações constitucionais e princípios constitucionais

Sendo a posição anterior no sentido de relação entre direitos e deveres, não

haveria porque não havê-la, também quanto à ligação entre obrigações e princípios. Estas

obrigações ou deveres constituem uma teia, sendo cada intersecção desta correspondente a um

95 BOBBIO, 1992, op. cit, p. 8.

70

princípio constitucional, que “amarra” e vincula todas as outras normas à sua observância.

Pode-se dizer, destarte, que o fundamento dos deveres constitucionais se assenta nos

princípios que, por sua vez, encontram-se no mais alto patamar do conjunto das normas

jurídicas. Os princípios constitucionais têm o condão de ditar quais as “regras do jogo”, ou

seja, veicular o modus operandi do Estado Democrático.

Os deveres constitucionais não deixam de ter conteúdo valorativo, uma vez que

atendem aos fins do Estado Democrático de Direito. Tanto que são elaborados pelo

Constituinte com o objetivo de materializar os objetivos daquele. Nenhum dever há que não

tenha como referencial um princípio, de maneira que existe não apenas uma correlação entre

deveres e princípios, mas uma subordinação daqueles em relação a esses.

3.9 Eficácia e aplicabilidade dos deveres fundamentais

Embora pareça, à primeira vista, que a aplicabilidade de direitos e garantias são

similares à dos deveres fundamentais, não é o que acontece. Segundo disposição

constitucional do artigo 5°, parágrafo 1°, “As normas definidoras dos direitos e garantias têm

aplicação imediata”. Quanto aos deveres constitucionais, podem ser classificados como regras

de aplicabilidade limitada, de acordo com José Afonso da Silva96. Como tal, possuem eficácia

mediata e indireta e vinculante, estabelecendo um dever para o legislador ordinário,

condicionando a legislação futura; inspiram a ordenação jurídica através da atribuição de

finalidades sociais, proteção de valores da justiça social e revelação de componentes do bem

comum; orientam para a interpretação, integração e aplicação de normas jurídicas e;

condicionam a atividade discriminatória da Administração e do Judiciário, dentre outras

conseqüências de menor relevo.

Os deveres, ainda, dentro da classificação das normas de eficácia limitada,

pertencem à categoria das normas programáticas. Tais normas estabelecem programas de

ação, diretrizes, para a atuação futura dos órgãos estatais e existem difundidas por todo o texto

constitucional. Entretanto, enquanto não editada essa legislação, não estão aptas essas normas

para a produção integral de seus efeitos. Em função disso, afirma-se que sua aplicabilidade é

indireta, mediata e reduzida. Embora o caráter vinculante, à espera de edição de legislação

infraconstitucional posterior que as complemente, não há que se concluir que os deveres

fundamentais não têm uma eficácia nos termos da Constituição, ou apenas nos termos das leis

96 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 176

71

que os concretizam e disciplinam. Neste sentido, assevera Canotilho - marcando decidida

ruptura em relação à Doutrina clássica -, que não há que se falar em simples eficácia

programática, uma vez que qualquer norma constitucional deve ser considerada obrigatória. A

eventual mediação concretizadora não significa que tais normas careçam de positividade

jurídica autônomo, mas que sua positividade justifica a intervenção dos órgãos legiferantes97.

Diante desse quadro de incertezas que assombram a concretização de deveres,

imperiosa torna-se a necessidade de uma legislação infraconstitucional integradora para torná-

los efetivos. Neste sentido, Canotilho e Vital Moreira98: “Consistindo quase todos os deveres

em obrigações de fazer, e partindo do princípio de que ninguém pode ser coagido a uma

actividade (nemo potest cogi ad factum), eles só tornam efectivos através de cominação das

respectivas sanções.”

De fato, a cominação de sanções aos órgãos públicos pode ser uma solução quanto

ao cumprimento das normas programáticas, como demonstra a histórica condenação do Brasil

em 04 de julho de 2006 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se de fato

ocorrido em 1999, envolvendo o cearense Damião Ximenes, que faleceu enquanto internado

em uma clínica psiquiátrica filiada ao Sistema Único de Saúde. A vítima veio a óbito poucos

dias após a sua internação na clínica e, muito embora o laudo constatasse uma causa mortis

não identificada, Damião apresentava marcas de maus-tratos e tortura. O processo que chegou

à Corte, após a análise pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), imputava

ao Brasil a violação de quatro direitos protegidos pela Convenção Interamericana de Direitos

Humanos, quais sejam: direito à vida (artigo 4º), à integridade física (artigo 5º), às garantias

judiciais (artigo 8º) e, por fim, à proteção judicial (artigo 9º). Durante a tramitação do

processo, o Brasil reconheceu a violação aos dois primeiros artigos, embora tenha afirmado

que havia tomado as providências cabíveis no sentido de conferir maior fiscalização a tais

estabelecimentos. 99

97 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1050. 98 Id. ; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 149. (destaque do autor). 99 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Condenação Internacional do Brasil por violação de direitos humanos e

cumprimento de sentença sponte sua. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 28 mar. 2008.

72

CAPÍTULO 4 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO

4.1 A vida humana em sociedade: origens do delito e da pena

Já foi ressaltada inicialmente, inaugurando o primeiro capítulo deste presente

trabalho, a idéia de associação inerente aos seres humanos, sustentada pelo interesse ou pela

necessidade de realização de fins coletivos. Destarte, eis o grande benefício da vida humana

em sociedade: a atuação em conjunto voltada para um mesmo objetivo, a preservação da

espécie. Considerado em sua generalidade, este benefício, ao ser materializado em cada

homem, gera inúmeros interesses que, mesmo pertencentes à mesma matriz, diversificam-se

em pretensões muitas vezes colidentes.

Surge o preço da vida em sociedade: o crime, anomalia que não pode ser

concebida fora dos agrupamentos humanos, sendo remediado pela pena, sacrifício infligido ao

autor do comportamento danoso e reprovável. Nas palavras de Carnelutti: 100

Em toda sociedad, grande o pequena, acaecen hechos contrarios al bien común: homicídio, hurto, traición. Provicionalmente, podríamos dar a estos hechos el nombre de delitos. Su misma naturaleza, fundada em la oposición al bien común, demuestra que la sociedad, si quiere vivir, tiene que reaccionar contra ellos. Y, a propósito, se desarolla, em cierta medida, uma verdadera lucha, como ocurre com las enfermedades. La más antigua de las armas empleadas por el hombre em esta lucha es la pena.

A pena consiste em atribuir a determinados homens o poder e o dever de infligir

uma sanção ao autor de um ato danoso à sociedade e por ela reprovável. Qualquer fato

contrário às leis de convivência humana em sociedade é contrário ao Direito; porém, o

combate ao ilícito penal ganha relevância por ofender as mais fundamentais das leis de

convivência. Aqui, volta-se na relevância da harmonia que deve existir quando do impulso

associativo, que deve ser orientado por leis comuns, atendendo aos interesses coletivos.

No entanto, nem sempre foi assim, quando observado o período da vingança

privada que marca o início, a primeira fase por que passou o Direito Punitivo, como se verá a

seguir. Se nesta fase pode-se falar que não havia a necessária coincidência de interesses, e que

a justiça era feita com as próprias mãos, é nesta fase que ganha força a teoria Indeterminista, 100 CARNELUTTI, Francesco. Teoria general del delito. Tradução de Victor Conde. Madrid: Editorial Revista

de Derecho Privado, 1941, (série B, v. 20). p. 1. Em toda sociedade, grande ou pequena, ocorrem fatos contrários ao bem comum: homicídio, furto, traição. Providencialmente, poderíamos dar a estes fatos o nome de delito. Sua mesma natureza, fundada na oposição ao bem comum, demonstra que a sociedade, se quer viver, tem que reagir contra eles. E, a propósito, se apazigua, em certa medida, uma verdadeira luta, como ocorre com as enfermidades. A mais antiga das armas empregadas pelo homem nesta luta é a pena (tradução nossa).

73

que considera o homem dotado de livre-arbítrio. Assim, seja qual for o estágio de evolução do

ser humano, caberá sempre a ele fazer sua escolha entre o bem e o mal, entre a boa e a má

conduta, entre a honestidade e a improbidade; enfim, lei existe e será observada e cumprida

por quem achar que deve fazê-lo. Como asseverou Aristóteles na sua Ética a Nicômaco101, “o

homem é um princípio motor de ações, a deliberação é acerca de coisas a serem feitas pelo

próprio agente”; realizar uma boa ação depende única e exclusivamente de cada um, sendo,

pois, um ato de escolha, livre de qualquer coação, de alheio à sua própria estrutura psíquica e

ás convenções sociais.

Contrariamente, para o Determinismo, a vontade humana é determinada,

condicionada por inúmeros fatores naturais e sobrenaturais físicos, sociológicos, psicológicos,

ambientais, dentre outros. É claro que a liberdade moral, chamada de livre-arbítrio, existe, não

podendo ser contestada. No entanto, o homem não realiza suas escolhas fundamentadas

apenas na liberdade moral, assim como não está vinculado a determinados fatores naturais e

psíquicos. É por isso que muitos deterministas modernos consideram essa relatividade com

relação a esses últimos fatores. Fosse descartado o livre arbítrio, irracional seria julgar

qualquer ação humana, da qual o próprio homem não operou na sua construção.

É certo que, na esfera do Direito Punitivo, é suficiente que o homem mentalmente

saudável pratique uma infração penal, não importando se agiu de acordo com a sua liberdade

moral ou sua liberdade de agir (física) para que seja penalizado. Dessa forma, somam-se

liberdade moral e física condicionando a prática de um ilícito penal. Um desequilíbrio social,

por exemplo, pode despertar a ira dos excluídos, desencadeando o cometimento de infrações

penais. Neste contexto, o Estado, por diversas vezes, acaba sendo o responsável pela criação e

mesmo pela manutenção de um ambiente hostil, despertando os mais recônditos instintos

humanos.

4.2 Evolução do jus puniendi e do Estado

Importante, nesta fase, proceder-se a uma análise acerca das origens do Direito

Penal e sua evolução que acompanhou, de certa forma, a evolução do próprio Estado até

conquistar o status democrático. É nesta história que se encontram os fundamentos e a

construção da legitimidade do jus puniendi, que será dissecada no capítulo final deste

trabalho.

101 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 63.

74

Observada a evolução desta ciência do Direito, imperioso se faz notar que as

práticas penais hodiernas ainda contêm resquícios dos períodos anteriores. Ressalta-se, neste

trabalho, a importância da utilização do método histórico para a melhor compreensão das

instituições preservadas na atualidade. Analisar o jus puniendi, assim, é investigar o

personagem que detém tal direito e, sobretudo, quais as razões históricas e qual a relevância

desta posse para a sociedade. Ainda, compreender, ao final deste, que a evolução é um

processo inacabado, assim como se observa no próprio Direito, refletindo-se,

conseqüentemente, no Direito Penal, na sociedade e no próprio homem.

A maioria dos estudiosos costuma assinalar seis fases por que passou o Direito

Penal; como qualquer divisão histórica, não se pode entendê-las como sucessivas umas às

outras, não havendo uma precisão temporal do início e término de cada uma, mas uma

convivência das mesmas, no sentido de que o final de uma sempre coincide com o início de

outra fase. São elas:

1. Período da vingança privada;

2. Período da vingança divina;

3. Período da vingança pública;

4. Período humanitário;

5. Período humanitário;

6. Período contemporâneo.

4.2.1 Período da vingança privada

Tendo em vista a misteriosa força centrípeta que diminui e reforça os laços entre

os homens, há que se lembrar, neste momento, do velho e sábio brocardo jurídico ubi societas

ibi jus. Porém, não se pode falar, neste período inicial, em uma sociedade juridicizada.

Apenas mais tarde, como afirmou Aníbal Bruno, “irão definir-se, como corpos distintos, a

moral, o direito, a religião, apoiadas todas essas normas, de caráter costumeiro, anônimas,

criadas e crescidas por impulso espontâneo da consciência coletiva, na religião e na magia”. 102

Nos agrupamentos humanos mais primitivos, as associações eram naturais,

espontâneas e carentes de uma autoridade coletiva e aglutinadora, o que favorecia a vigência

de regras obedecidas graças ao temor ao sobrenatural. Não havia qualquer espécie de

102 BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de Direito, 1956, t. I. 1956. p. 65-66.

75

organização jurídica ou política e a obrigatoriedade se impunha pelo temor à religião ou ao

sobrenatural.

Cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos seus parentes ou até mesmo

da sua tribo ou grupo social; não havia qualquer proporção entre ofensa e revide, ou melhor,

este era quase sempre muito superior ao ataque, atingindo o ofensor, ou até a totalidade do seu

grupo ou família. A inexistência de um limite (ausência de proporcionalidade) entre revide e

agressão, bem como a vingança de sangue, marcou um dos períodos em que a vingança com

as próprias mãos constituiu a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos

primitivos.

A vingança privada constituía, dessa forma, uma reação natural e instintiva e, por

isso, foi apenas uma realidade sociológica, não uma instituição jurídica. Já no crepúsculo

desse período, a vingança privada encontrou duas grandes regulamentações, embora não

institucionalizadas: o talião e a composição.

A Lei de Talião, mais comumente conhecida pelo ditado “olho por olho, dente por

dente” representou o embrião do princípio da proporcionalidade, acolhida pelas Constituições

modernas. Apesar de conhecida como pena de talião, não se tratava propriamente de uma

pena, mas de um instrumento moderador da pena. Ao delinqüente deveria ser aplicada uma

represália proporcional ao dano por ele causado. O Talião foi adotado por vários documentos,

representando um grande avanço na história do Direito Penal por limitar a abrangência da

ação punitiva.

Posteriormente, surgiu a composição, através da qual o ofensor comprava sua

liberdade, seja com dinheiro, gado, armas, dentre outros. O dano, neste caso, poderia ser

convertido em moeda ou outros bens, mesmo em se tratando de morte da vítima; neste caso, o

pagamento era feito aos familiares da mesma, sendo devolvida, assim, a paz à tribo ofendida.

Esta prática encerrou este período deixando claro uma busca pelo homem de soluções justas;

pode-se observar uma evolução no sentido da humanização das penas, percebida a

necessidade do constante restabelecimento da paz social.

4.2.2 Período da vingança divina

Nesta fase, tem início um tímido, mas aparente, poder de coesão social, capaz de

estabelecer condutas sob pena de castigos. Isto porque cabia aos magos e sacerdotes aplicar os

castigos aos transgressores. Porém, como na fase anterior, não se podia falar em qualquer

organização política ou jurídica.

76

Consideravam qualquer crime como uma ofensa à divindade, sendo necessária sua

satisfação para abrandar sua ira. Por isso, a punição incidia de maneira rigorosa, com evidente

crueldade, uma vez que o castigo deveria corresponder à grandeza do deus ofendido,

restabelecendo-se, assim, a paz com o sobrenatural. 103 São exemplos, os códigos de

Hamurabi, da antiga Mesopotâmia, e o de Manu, da Índia.

4.2.3 Período da vingança pública

É neste longo período, que se estendeu por toda a Idade Antiga até a Idade

Moderna, que se pode falar no início de uma organização política. No sentido evolutivo, a

sociedade vai aprimorando sua organização e, conseqüentemente, também as regras de justiça

penal. A pena deixa de ter o caráter religioso e passa a ser uma sanção imposta por uma

autoridade pública, ou seja, seu agente de punição não mais é o próprio ofendido ou o

sacerdote, mas sim um líder. Este detinha o poder político, cabendo a ele a aplicação das

penas, ainda cruentas e severas, tendo ampla aplicação as penas de morte (enforcamento,

decapitação, empalamento, dentre outras) e as de mutilação, com o propósito de que os

súditos se intimidassem e temessem seu soberano.

Ainda neste período, porém, numa etapa posterior, o monarca passou a ser

assistido por magistrados quando da aplicação das penas. Porém, as penas não deixaram de

ser cruentas e estabelecidas a qualquer instante e arbitrariamente, mas ganharam o status de

públicas; o monarca, embora as injustiças, a ausência de proporcionalidade e anterioridade

quanto à definição de delitos, aplicava as penas aos ofensores em nome do povo pro ele

governado. Este período marcou a transição da detenção do poder de punição dos particulares

aos entes públicos.

Não se pode olvidar a grande contribuição ao Direito Penal das culturas grega e

romana devido ao alto grau de evolução dos seus povos em relação aos demais. Aliás, foi

somente a partir da tradição greco-romana que se deu início a uma paulatina separação entre o

campo criminal e o sagrado, sendo considerada como um marco da laicização da legislação

penal.

Quanto à Grécia, as contribuições foram retiradas da literatura, incluindo poetas,

oradores e filósofos. Platão (427-347 a.C.), através do seu pensamento idealista, considerava a pena

um meio de manutenção da ordem e paz social. Aristóteles (384-322 a.C), como já foi citado

103 NORONHA, Edgard Magalhães; ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Direito penal. 32. ed. São

Paulo: Saraiva, 1997. v. 1. p. 21.

77

anteriormente, “fez penetrar, por fim, nas suas construções éticas e daí nas jurídicas a idéia do livre

arbítrio, que não se sabe que ação possa ter tido nas práticas penais gregas, mas que veio exercer

considerável influência no Direito penal do Ocidente.”104 Complementa Aníbal Bruno105:

Finalmente, os filósofos gregos trouxeram a debate uma questão geralmente ignorada dos povos anteriores, a da razão e fundamento do Direito de punir e da finalidade da pena, questão que preocupou pensadores diversos e veio a ser mais detidamente considerada no movimento iniciado por Sócrates, com o particular interesse que se tomou pelos problemas éticos.

Antes de alcançar o caráter público das penas, Roma não fugiu às imposições das

fases anteriores quanto divinas, na Lei da XII Tábuas e no período da Realeza,

respectivamente. Tanto que os vários documentos legados revelam o caráter religioso do

Direito Punitivo inicial. Entretanto, os romanos foram paulatinamente separando o direito da

religião, como bem aponta Enrico Ferri106:

Finalmente então foi estabelecida a distinção fundamental entre delicta publica e delicta privada, todos perseguidos e punidos, uns no interesse do Estado e por meio de seus representantes e outros no interesse e por ação dos ofendidos. Eram delicta publica a deserção, a traição, o furto de gado, o furto sacrílego, a danificação das estradas e edifícios públicos. Duas grandes categorias dos crimes públicos se encontravam no perduellio e no parricidium (homicídio do homen livre etc). Em seguida se passou - com o processo extra-ordinem – às penas públicas também para os crimes privados, afirmando-se com isso de modo constante que a justiça penal é uma função e garantia do Estado, para a tutela e a segurança da publica disciplina.

Grande foi o aporte romano quando observados os diversos institutos ainda hoje

usados em ramos do Direito que têm suas origens no romano; por exemplo, os princípios

penais como o dolo, a culpa, a imputabilidade o erro, a culpabilidade, as circunstâncias, a

legítima defesa etc.

Na Idade Antiga, somam-se, também, as contribuições dos Direitos Germânico e

Canônico ao Direito de Punição.

De caráter costumeiro, o Direito Germânico teve na composição um dos meios

mais usados para servir como pena; o talião só veio a ser aplicado posteriormente por

influência dos direitos: romano e canônico. O crime era considerado a quebra da paz e podia

ser público ou privado; quanto ao privado, cabia ao ofendido buscar a justiça, geralmente

através da vingança ou mesmo da composição. Nos crimes públicos, o ofensor estava sujeito à

104 BRUNO, op. cit., p. 74. 105 Ibid., 1956, p. 75. 106FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução de Paolo Capitanio. 2. ed.

Campinas, SP: Bookseller, 1998. p. 31. (grifo do autor).

78

vingança da comunidade, sendo declarado fora da lei, sendo a facultado ao ofendido ou

qualquer outro o direito de retirar-lhe a vida.

O Direito Canônico, ao contrário do Germânico, considerava o elemento

intencional no crime, tendo a pena, a finalidade de regeneração ou emenda do criminoso, pelo

arrependimento, ou purgação da culpa. Consentiu punições rudes e severas, mas com a nobre

finalidade da salvação da alma do condenado.

Diferentemente de outras ordenações, em que a prisão era apenas uma maneira de

conter o acusado ou o condenado antes de cumprir sua pena, no Direito Canônico dá-se início ao

uso da prisão como pena-fim, ficando os monges presos em mosteiros, rezando para o alcance da

remissão de seus pecados. Desse modo, foi por influência da Igreja que se acolheu a pena de

prisão. Penitenciária seria o local onde os condenados ficariam para pagar suas penitências, ou

seja, redimir-se de seus erros, analisando seus atos para depois poder voltar à liberdade.

Há que se considerar que, se analisados os dogmas da Igreja Católica, que há uma

nítida preferência pelo perdão ao ódio, ou mesmo pela vingança, suavizando, assim, o caráter

do castigo. Dessa forma é que a Igreja contribuiu para a humanização do Direito Penal,

embora a instituição da Santa Inquisição, de fins mais políticos do que sagrados. Esta foi um

tribunal eclesiástico criado com a finalidade "oficial" de investigar e punir os crimes contra a

fé católica. Julgou e puniu acusados de heresia (doutrinas ou práticas contrárias às definições

da Igreja), punições essas que variavam desde a obrigação de fazer uma retratação pública ou

um peregrinação a um santuário até o confisco de bens e a prisão em cadeia. A pena mais

severa era a prisão perpétua, convertida pelas autoridades civis em execução na fogueira ou

forca em praça pública. Em geral duas testemunhas constituíam prova suficiente de culpa.

Na prática, os pagãos representavam uma constante ameaça à autoridade clerical e

a Inquisição era um recurso para impor à força a supremacia católica, exterminando todos que

não aceitavam o cristianismo nos padrões impostos pela Igreja. Posteriormente, a Santa

Inquisição passou a ser utilizada também como um meio de coação, de forma a manipular as

autoridades como meio de obter vantagens políticas.

Apesar de diversamente fundamentados, esses três direitos contribuíram

maciçamente para a formação do direito penal comum, que predominou durante toda a Idade

Média prolongando-se, após este período, em vários países europeus. Contudo, a maior

influência à formação do Direito Penal se deve ao Direito Romano, graças aos trabalhos dos

glosadores de interpretação e reconstrução do mesmo. Na seqüência, os pós-glosadores e os

79

práticos também contribuíram para o resgate da herança penal, cabendo aos últimos os

primeiros delineamentos sólidos do Direito Penal. 107

Apesar de públicas as vinganças, ainda predominavam as cruentas penas, o livre

arbítrio dos juízes, as leis injustas, os meios inquisitoriais, dentre tantas outras práticas irregulares,

circunstância que favorecia o absolutismo monárquico em detrimento dos direitos humanos.

Uma vez consolidado e concentrado o poder punitivo no Poder Público, este

figurava como instrumento de defesa dos interesses do Estado e da Religião, comumente

coincidentes, fragilizando a segurança pública e as finalidades da justiça punitiva. As penas

continuavam a ser aplicadas aleatoriamente, sem qualquer medida de igualdade, e fundadas

nas condições financeiras e eclesiásticas do réu. A pena de morte era largamente aplicada,

juntamente com meios bárbaros e cruéis (fogueira, esquartejamento, etc.), penas corporais

(mutilações e açoites), o confisco e as penas de infâmia, sem qualquer respeito pela dignidade

humana. O processo penal, de natureza inquisitiva, era secreto, com emprego de torturas e

sem quaisquer garantias para a defesa dos réus.

4.2.4 Período Humanitário

O século das luzes inspirou filósofos e pensadores em favor da humanização das

práticas penais até então adotadas. O surgimento dos movimentos iluministas, neste período,

deu início a uma reviravolta na compreensão da condição humana e suas implicações sociais,

sobretudo a criminalidade. Neste período, a revolução cultural empreendida no continente

europeu proporcionou a alteração do paradigma teológico para o antropocêntrico iniciado no

período do Renascimento, alterando significativamente a relação entre indivíduos e Estado.

A necessidade de modificações e reformas no sistema jurídico-criminal ganhou

relevância, principalmente, nas obras do marquês de Beccaria, filósofo nascido em Milão em

1738. Na sua obra de maior repercussão, Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas), em

1764, defendeu a essencialidade da publicidade da pena, que também deveria ser necessária e

a menor dentre as opções para uma mesma circunstância. Condenou a interpretação das leis

por magistrados, a obscuridade das leis escritas em latim, a tortura em interrogatórios e

julgamentos, a longa duração dos processos e das penas, dentre outras críticas. Encerrou o

último capítulo da obra discorrendo sobre os meios de prevenção dos crimes, citando, como o

mais seguro, o aperfeiçoamento da educação.

107 NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 24.

80

Magalhães Noronha cita a importância de John Howard no terreno prático como o

responsável por encabeçar o movimento humanitário de reforma das prisões, sendo

considerado por muitos, como o Pai da Ciência Penitenciária. Propôs um tratamento mais

humano ao preso, que deveria ter assistência religiosa, trabalho, separação individual diurna e

noturna, alimentação sadia, condições higiênicas, dentre outros. 108

Até aqui, observou-se uma fase filosófica do período humanitário que

fundamentou a fase jurídica do mesmo, em que se consolidaram os ensinamentos da Escola

Clássica do Direito Penal, com destaques para a Escola Clássica Italiana e a Escola Clássica

Alemã. O pensamento destas Escolas fundamentou-se, especialmente, na teoria jusnaturalista

de Grócio – que acreditava no Direito superior, eterno e imutável – e no contratualismo de

Rousseau, para quem a ordem jurídica era o resultado de um livre acordo de vontades entre os

homens. Embora colidentes em alguns aspectos, coincidiam na conclusão, qual seja: a

existência de um sistema de normas jurídicas anteriores e superiores ao Estado, em oposição à

legitimidade da tirania.

Como representantes da Escola Italiana, podem ser citados grandes nomes:

Caetano Filangieri (1752-1788), Pellegrino Rossi (1787-1848), Giandoménico Romagnosi

(1761-1835), Giovanni Carmignani (1768-1847) e Francesco Carrara (1805-1888), estimado

como o pioneiro na Dogmática Penal. Apesar das opiniões e doutrinas colidentes em diversos

aspectos, alguns são coincidentes, como lembra Aníbal Bruno109, de maneira simplificada:

a) O crime é um ente jurídico, uma infração e não uma ação;

b) A responsabilidade penal tem natureza moral, baseada no livre arbítrio;

c) A finalidade da pena é a retribuição, um prejuízo justo.

Romântica, burguesa e movida por ideais éticos, esta Escola se encarregou da

missão de restauração da dignidade humana, além de assinalar a autonomia do Direito Penal.

Na Alemanha, destaca-se Feuerbach (1755-1833), considerado o fundador da

Moderna Ciência do Direito Penal e o grande sistematizador do princípio da legalidade penal.

Genuinamente alemã, esta Escola recebeu forte tendência ao rigor e à meticulosidade,

recebendo a influência de várias correntes filosóficas, sobretudo de Kant e Hegel.

108 NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 26. 109 BRUNO, op.cit., p. 103.

81

4.2.5 Período Criminológico

Também chamada Escola Positiva, seu aparecimento se deve à necessidade de

materializar os ideais da Escola Clássica, iniciando uma enérgica luta contra a criminalidade.

As preocupações ético-jurídicas até então sentidas que depositavam na pena um conteúdo de

retribuição justa, cederam lugar às preocupações de ordem científica, que pugnaram por um

Direito Penal defensor da sociedade. Vingava o prestígio das ciências naturais, com o

emprego do método positivo, com destaque para Augusto Comte (1798-1857), pai do

Positivismo Sociológico. A ordem era o desprezo à Teologia e à Metafísica, as quais tinham

Kant e Hegel como representantes, e que fosse adotado, a exemplo das ciências naturais, o

método experimental para o estudo das ciências humanas. Interessante lembrar que, nesta

mesma época, Darwin elaborou a teoria da evolução das espécies.

Inspirado nessas idéias, o médico psiquiatra Césare Lombroso (1835-1909), dedicou-

se ao estudo da criminalidade. Considerava o delito como fenômeno biológico, sendo o criminoso

nato, fruto de uma anormalidade da espécie humana. 110 Embora as inúmeras críticas desferidas à

sua teoria, que hodiernamente encontra-se praticamente superada, não se pode olvidar sua imensa

contribuição aos estudos da criminologia, fundando a Antropologia Criminal.

Continuando e enriquecendo o trabalho de Lombroso, Henrique Ferri (1856-1929)

fundou a Sociologia Criminal. Para ele, o crime estaria fundado em fatores antropológicos,

físicos e sociais, constituindo um fato humano e social e não um ente humano, como na

Escola Clássica. Destarte, substitui a responsabilidade moral do criminoso pela

responsabilidade social, donde que todo criminoso seria o único responsável pelas suas

infrações. 111 O fundamento da pena seria a defesa social, que seria promovida mais

eficazmente pela prevenção dos delitos que pela repressão dos mesmos. A pena deveria ser

indeterminada, ajustando-se a cada delinqüente para seu retorno ao convívio social.

Outro expoente do Período Criminológico foi Raffaele Garofalo (1851-1934), que

procurou ampliar os princípios da Escola Positiva ao Direito Penal no sentido de elaborar uma

construção mais rigorosamente jurídica dos postulados penais. Considerou o crime como

produto de uma anomalia moral, psíquica, dando preferência ao método repressivo ao seu

110 NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 27. Lombroso e Beccaria, embora em rumos diversos, foram os dois

Césares no estudo do crime e da pena. Na frase incisiva de Hafter, o marquês de Milão proclamou ao mundo: “Homem, conheça a Justiça!” – O médico de Verona diria: “Justiça, conheça o Homem!”.

111 BRUNO, op. cit., p. 114. Sobre esse complexo de sistema de forças condicionantes do fenômeno do crime baseou a classificação dos criminosos em cinco categorias: natos, loucos, habituais, de ocasião e por paixão.

82

combate – postura estranha ao pensamento da Escola. Recrudesce ainda mais se pensamento

quando defende a pena de eliminação aos criminosos mais graves – irremediáveis.

Sua posição, no entanto, não desviou o rumo definitivo da Escola Criminológica

em prol da defesa social mediante a prevenção dos crimes. Apesar de não ter tomado a

amplitude dos sistemas criminais da atualidade, contribuiu, ao lado do pensamento da Escola

Clássica, para a formação dos movimentos penais ecléticos posteriores. Seu domínio

prevalece na moderna Política Criminal, influenciando legislações e doutrinas no sentido de

aperfeiçoamento ou mesmo de reconstrução do Direito Penal vigente.

4.2.6 Período Contemporâneo

Este período se estende até os dias atuais, em que se mesclam as teorias das Escolas

Clássica e Positiva. Por reunirem várias tendências, as Escolas deste período ficaram

conhecidas por Ecléticas. Segue, a seguir, um breve comentário sobre cada uma.

4.2.6.1 Terza Scuola

Denominada Terceira Escola justamente por ser subseqüente às Escolas Clássica e

Positiva e por adotar um posicionamento contrário às mesmas. São seus representantes, dentre

outros, Bernardino Alimena, Emanuele Carnevale e Giambattista Impallomeni. Acolheu a

responsabilidade moral, ma afastou o livre-arbítrio; o crime foi considerado fenômeno

individual, condicionado pela vontade humana; a finalidade da pena é a defesa da sociedade

com o mínimo de sofrimento individual, devendo ser imposta apenas aos imputáveis.

4.2.6.2 Moderna Escola Alemã

Fundada por Von Lizt no início do século XX, é mais notável das correntes

ecléticas, também denominada Positivismo Crítico, Escola sociológica Alemã ou Escola de

Política Criminal. Utiliza o método lógico-jurídico no âmbito do Direito Penal e o

experimental na esfera das Ciências Penais. Considera o crime um fato jurídico, mas também

humano e social, distinguindo condições interiores (da natureza humana) e exteriores (físicas

e sociais, principalmente, econômicas) do delinqüente. Repele, todavia, as a idéia de

criminoso nato e insiste na influência das condições sociais. Aceita a distinção entre

imputáveis e inimputáveis e defende o caráter preventivo da pena; esta deveria ser realizada

83

no sentido geral (sobre a totalidade dos indivíduos da sociedade) e especial (sobre o

criminoso). Filiado a esta Escola, também: Prins, von Hamel, Gustav Radbruch, Max Ernst

Mayer, Kantorowizc, Eberhard Schmidt, Mezger, dentre outros. 112

4.2.6.3 Escola Técnico-Jurídica

Também chamada Neoclacissismo, teve Binding seu principal representante.

Afasta a interferência da Filosofia no Direito penal. Apesar de sua origem alemã, foi na Itália

sua maior repercussão, sendo a corrente dominante até os dias atuais, a exemplo das doutrinas

de Arturo Rocco, Vincenzo Manzini, Bettiol, Battaglini, dentre outros. 113

Como seus principais traços: a) negação das investigações filosóficas; b) crime

como relação jurídica de conteúdo individual e social; c) responsabilidade moral e a distinção

entre imputáveis e inimputáveis; d) pena retributiva e expiatória aos imputáveis e medida de

segurança aos inimputáveis, confere autonomia ao Direito Penal e, através do método técnico-

jurídico, restringe seu estudo à Exegese, à Dogmática e à crítica restrita no sentido de avaliar

do direito vigente e verificar possibilidades de reforma. São exemplos da influência dessa

corrente de pensamento, o Código Rocco da Itália e o Código Penal Brasileiro de 1940, ainda

em vigor, no que tange à Parte Especial.

4.2.6.4 Tendências atuais de Direito Penal e Política Criminal

Atualmente, existem três tendências divergentes no Direito Penal: o Movimento da

Lei e da Ordem, o Abolicionismo Penal e o Direito Penal Mínimo.

O Movimento da lei e da Ordem, presente nos Estados Unidos e na Alemanha,

acredita que o aumento da criminalidade é devido ao tratamento demasiadamente brando que

a lei dedica ao criminoso. O combate à criminalidade deve ser realizado através da

manutenção da lei e a ordem, e também mediante o enrijecimento do sistema penal com a

edição de leis mais severas e a imposição de penas privativas de liberdade mais longa, ou

mesmo a pena de morte. São seus postulados:

a) a pena tem a finalidade de retribuição (ao delinqüente) e de prevenção: geral

(direcionada a todos os cidadãos, no sentido de ameaça da sanção) e especial

(direcionada ao próprio criminoso, para que não volte a delinqüir);

112 BRUNO, 1956, op. cit., p. 126. 113 Ibid., p. 130.

84

b) quanto mais grave o crime, mais grave deve ser a sanção;

c) a legislador deve instituir tantos tipos penais e tantas penas quantos forem

necessários à manutenção da ordem e da segurança social;

d) a execução da pena deve ficar a cargo, quase que exclusivamente, da autoridade

penitenciária, restringindo-se o controle judicial.

O movimento do Direito Penal Mínimo é uma tendência da Política Criminal que

entende que o Direito Penal deve ser usado somente como ultima ratio, em relação aos

demais ramos do Direito. Dessa forma, cabe ao legislador procurar dirimir a maior quantidade

de conflitos possíveis com normas de Direito, reservando ao Direito Penal apenas os ilícitos

mais graves. Caberia ao Estado a mínima interferência na vida dos particulares, conferindo-

lhes maior liberdade e descriminalizando as condutas puníveis.

De acordo com Zaffaroni114:

Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça [...].

O Abolicionismo Penal, que tem o criminólogo holandês Louk Hulsman e

Foucault seus principais teóricos, tem por desígnio, como o próprio nome sugere, uma política

criminal de eliminação total do ordenamento jurídico penal como forma de controle social.

Essa corrente jurídico-filosófica parte dos fracassos dos fundamentos do Direito Penal e dos

fins da pena para fundamentar sua tese. Considera o Direito Penal instrumento de opressão

utilizado pelas classes dominantes em detrimento dos menos favorecidos.

4.3 Fundamentos do Direito de Punir

O problema referente ao fundamento do Direito de Punir sempre foi assunto de

reflexão por parte dos grandes filósofos e penalistas da história. A investigação sobre este

tema pretende descobrir sua base de sustentação hábil a manter tal direito eficaz e

incontrastável perante a sociedade, ou ainda, qual mecanismo capaz de sustentar esta

titularidade exclusiva do Estado de infligir penas.

114 ZAFFARONI, Eugenio Raúl Zaffaroni. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa

e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 106.

85

Como foi observada no início deste capítulo, a evolução da pena acompanhou a

evolução da sociedade e do próprio Estado. Da vingança pelas próprias mãos, adotada por

uma sociedade ainda primitiva, a vingança passou por um processo evolutivo até ser confiada

ao Estado que, por meio da instituição do Direito Penal, realiza esta função.

Destarte, a função precípua do Direito Penal é a proteção da sociedade, que pode

ser dissociada em: prevenção e punição de delitos e ressocialização dos condenados através da

imposição da pena. É a pena a ferramenta mais antiga e hábil da qual se utiliza o Estado para

a prevenção do crime e para a reprimenda dos criminosos. É na cominação da pena que a

intenção de punir do Estado se manifesta: seja a necessidade de vingar o mal cometido contra

o corpo social, seja a necessidade de, através do castigo, impedir que o mesmo indivíduo

reincida no mesmo crime, seja a necessidade de prevenção de delitos. É por isso que as teorias

sobre o fundamento da legitimidade do Direito de Punir têm a pena como objeto, cada qual

atribuindo uma determinada finalidade à mesma.

O grande desafio enfrentado por tais estudiosos é, pois, pensar em uma fórmula de

punição eficaz, capaz de conter a criminalidade e, ao mesmo tempo, servir de tratamento

àqueles que se afastaram das normas de conduta vigentes na sociedade a qual pertencem. No

entanto, ainda não foi apresentada ao Direito Penal uma fórmula exata, uma solução segura ao

problema, devido à complexidade da questão, o que ressalta a necessidade de seu estudo, dada

a sua grande valia à sociedade.

Pretende-se, aqui, apontar como a fórmula mais eficaz ao problema apresentado, o

cumprimento das obrigações constitucionais pelo Estado, como melhor maneira de prevenir

delitos, isto é: oferecendo condições materiais e morais ao ser humano para que exerça seu

direito de viver. Aqui, de acordo com o sentido que a Constituição adota em seu corpo,

“viver” vai além de simplesmente nascer e existir: a vida humana deve estar acompanhada de

dignidade. E a dignidade de uma vida requer saúde, educação, trabalho, moradia, alimentação,

dentre outras garantias devidas pelo Estado.

Quando se fala em jus puniendi, fala-se em Direito Penal subjetivo. Enquanto o

Direito Penal objetivo consiste em um conjunto de normas destinadas a proteger os bens

jurídicos basilares aos indivíduos e à sociedade, o Direito de Punir consiste na titularidade do

Estado em punir as condutas ofensivas a tais bens, quais sejam: vida, liberdade, segurança,

justiça, bem-estar-social e outros guardados pela Constituição Federal de 1988. De acordo

com Tobias Barreto115, a suprema função de punir do Estado está ligada a uma tese de Direito

115 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Brasília, DF: Ed. História do Direito Brasileiro, 2004. v. 5. p. 49.

86

Positivo – Direito Penal objetivo – por meio da qual uma ação é declarada criminosa na qual

incide determinada pena.

Apesar do seu caráter de mão dupla - donde que o delinqüente é punido para o

restabelecimento da paz social - e por mais que teóricos defendam finalidades mais plausíveis

e desejáveis à pena, nunca se poderá afastar seu caráter vingativo, retributivo – que poderá

variar conforme o grau de civilização -, dela indissociável. Desse modo, a necessidade de se

devolver o mal causado - imanente da natureza do ser humano -, teve de ser reeducada,

cabendo apenas ao Estado dispor do direito e dos meios para tal.

Tobias Barreto116, grande poeta, filósofo e jurista brasileiro, bem discorreu sobre o

tema, afastando-o de quaisquer valorações e, ainda, desferindo ferrenhas críticas aos

“metaphysicos dos direito” - e tratando-o como um axioma.

O direito de punir é um conceito scientifico, isto é, uma formula, uma espécie de notação algébrica, por meio da qual a sciencia designa o facto geral e quase quotidiano da imposição das penas aos criminosos, aos que perturbam e offendem, por seus actos, a ordem social.

Segundo o mesmo autor, não há porque problematizar um dos elementos

formadores do conceito geral de sociedade – o direito de punir -, uma das primeiras condições

de existência de um povo organizado. Ele defende a vingança através do sacrifício humano

como fundamento do direito de punir, sentimento primitivo veiculado até os dias atuais

através da pena. 117

O que é verdade do direito em geral, accentua-se com maior peso quanto ao direito de punir, cujo processus histórico tem sido mais rápido e mais cheio de transformações, trazendo, contudo, ainda hoje na face signaes evidentes de sua origem bárbara e traços que recordam a sua velha mãe: a necessidade brutal e intransigente.

Para tal constatação, basta analisar o que representa a pena de morte aceita em alguns

países. Ou então, basta analisar a realidade do sistema carcerário em nosso país para tão logo se

constatar que o faltoso cumpridor da pena não leva lição alguma do cárcere a não ser o

aperfeiçoamento na escola do crime. Caso as prisões fossem apropriadas, inadmissível seria, por

exemplo, que as próprias autoridades permitissem que mulheres dividissem a mesma sela com

homens, prática esta que veio à tona recentemente no estado do Pará. Ou então, não haveria a

menor possibilidade de presidiários controlarem o tráfico de drogas de dentro das selas, prática já

116 BARRETO, op. cit., p. 161, 164. 117 Ibid., p. 171. (destaque do autor).

87

banalizada em nosso país. E ainda, caso não houvesse sentimento de vingança entre os homens,

crimes hediondos e bárbaros não causariam tanta repugnância à sociedade.

Fosse o homem tão pacífico, civilizado e benevolente, não haveria tantos

incentivos sobre o exercício do perdão. O homem ainda não está preparado para, diante de um

agravo, ceder sua outra face. Estivesse ele preparado, as Igrejas não insistiriam tanto na

prática do perdão, tampouco Jesus teria perdido tanto tempo em suas pregações. Não que a

pena não tenha o caráter de ressocialização, mas ninguém pode lhe tirar seu intrínseco caráter

de retribuição. Destarte, quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar,

se é que já não encontrou o fundamento jurídico da guerra118.

O conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político. Este ponto é capital. O defeito das theorias correntes em tal matéria consiste justamente no erro de considerar a pena como uma conseqüência de direito, logicamente fundada; erro que é especulado por um certo humanitarismo sentimental, a fim de livrar o malfeitor do castigo merecido, ou pelo menos lh`o tornar mais brando.119

Em palavras magistrais, como bem lembrou Tobias Barreto, assim Ihering120

conceituou o Direito Penal:

[...] é o rosto do direito, no qual se manifesta toda a individualidade do povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza, em summa, onde se espelha a sua alma. O direito penal é o povo mesmo, a história do direito penal dos povos é um pedaço de psychologia da humanidade.

Os conceitos de pena e Estado estão intimamente relacionados. Dessa forma, as

teorias que fundamentam um modelo punitivo estão claramente ligadas aos fundamentos que

legitimam o poder do Estado, que devem ser avaliados de acordo com os critérios positivados

e não positivados, que definem a Justiça. O Direito Penal é, portanto, um instrumento estatal

de regulamentação da convivência dos homens em sociedade, uma vez esta corresponde a

uma das funções primordiais do Estado politicamente organizado. Em razão disso, o poder

estatal desdobra-se em poder punitivo, a fim de proteger lesões ou ameaças de lesões a bens

jurídicos relevantes, preservando a sociedade.

O triunfo da pena corresponde ao fracasso do Estado Democrático de Direito. Não

que exista um Estado perfeito. Imperfeições são admitidas da mesma maneira que homens são

de carne e osso. Mas a partir do momento em que um Estado cumpre seu papel perante a

118 BARRETO, op. cit., p. 178. 119 Ibid., p. 177. 120 VON IHERING, Rudolf. Das Schuldmoment im romischen Privatrecht, p. 10. apud BARRETO, op. cit., p. 55-56.

88

sociedade, confere legitimidade ao Direito de Punir, podendo a pena, dessa maneira, ser

aplicada legitimamente ao malfeitor. O triunfo da pena, neste caso, não corresponderia ao

fracasso do Estado e do próprio Direito Penal.

Assim, o fundamento da legitimidade do Direito de Punir, de acordo com as

palavras já citadas do ilustre Tobias Barreto, está na vingança inerente ao ser humano.

Quando o Estado é eficiente e concede condições favoráveis ao desenvolvimento do ser

humano, justo que ele se vingue, ressocialize o infrator e devolva a paz e a segurança à

sociedade. Mas esta vingança deve ser racional e não à semelhança dos tempos remotos e

mesmo contemporâneos. Não cabe aqui a discussão sobre a finalidade da pena como se

ocupam as teorias sobre os fundamentos do jus puniendi. O que deve anteceder esta

preocupação é o que o Estado faz das porções de liberdade cedidas por cada cidadão para que

ele realize um governo bom e justo.

Beccaria afirma que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade cedidas

por cada homem ao Estado constitui o fundamento do Direito de Punir. Assim, todo exercício

do poder que se afastar dessa base é flagrante abuso de poder; é um poder de fato e não de

direito; corresponde a uma usurpação e não mais um poder legítimo. As penas que

ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua

natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a

liberdade que o soberano conservar aos súditos121.

O fundamento do direito de punir repousa, pois, na própria Constituição Federal,

ao garantir a inviolabilidade do direito à vida e à segurança que, uma vez violadas, enseja a

mais severa punição - limitadora da liberdade - como produto de um clamor social, e não

como arbitrariedade de seu aplicador. O que, em primeira instância, revela-se como consenso

da maioria, reflexo do espírito democrático de justiça, não apaga o fundamento subjetivo do

direito de punir, fruto da mesma coletividade, que não descansa enquanto não vingado um

mal a ela cometido.

4.4 O Direito de punir no Estado Democrático de Direito

Historicamente, pode-se conceber o Estado Liberal surgido na matriz do

Iluminismo, tendo como características as seguintes premissas: (a) submissão ao império da

lei, (b) divisão de poderes e (c) enunciado e garantias das liberdades individuais. Esta

121 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Vicente Sabino Júnior. São Paulo: Ed. CD, 2001. p. 20.

89

concepção figurou como apoio aos direitos do homem, afirmando a supremacia da proteção

ao indivíduo e à liberdade em contraposição às antigas estruturas monárquicas até então

estabelecidas.

Todavia, o modelo de Estado Liberal, impregnado com os valores e condições

sócio-econômicas da época, com o passar dos acontecimentos, mostrou-se inadequado para

solucionar problemas vitais da sociedade. O liberalismo político, amparado por um sistema de

direitos garantidos, protegia todas as liberdades humanas, até mesmo as liberdades

econômicas. Revelou-se, o Estado, uma máquina anti-humana e ausente nas relações sócio-

econômicas: a permissão ilimitada de direitos individuais fazia com que o mesmo não

interferisse na atividade particular.

Sobreveio a consciência de que a inércia e a neutralidade do Estado perante as relações

humanas eram as responsáveis pela série de injustiças que assombravam a sociedade, acompanhada

dos movimentos sociais dos séculos XIX e XX que reclamaram outra forma de organização da

sociedade, que não apenas a concessão de direitos. Dessa forma, o paradigma liberal de proteção ao

indivíduo foi revertido para um paradigma de cunho social de defesa da coletividade. O Estado

tornou-se, dessa forma, o responsável pela distribuição igualitária das condições fundamentais aos

indivíduos a fim de proporcionar um maior equilíbrio às relações sociais. Para tanto, foi necessário a

conferência de uma intervenção maciça estatal no domínio econômico.

Foi observado, todavia, fatos políticos e sociais ao longo da primeira metade do

século XX, que este novo paradigma figurou como uma luva para a instauração de uma série

de regimes totalitários como o Nazismo na Alemanha, o Estalinismo na União Soviética, o

Fascismo na Itália, o Salazarismo em Portugal, o governo de Getúlio Vargas e a Ditadura

Militar no Brasil, dentre outros exemplos. Todos esses processos políticos e sociais levados a

cabo ao longo de todo o século XX induziram a maior parte dos países ocidentais a adotar o

modelo do Estado Democrático de Direito, verdadeira síntese do processo contraditório

contemporâneo, ao buscar garantir, concomitantemente, as garantias individuais e a defesa da

coletividade, e a liberdade econômica ajustada sem renunciar ao seu poder de ingerência na

regulação dos mercados.

A Constituição Brasileira de 1988 representou uma nova oportunidade para que o

país reescrevesse sua história, até então marcada por golpes, ambições e frustrações políticas,

econômicas e sociais. O reconhecimento da Constituição como lei Maior, composta por regras

e princípios dotados de imperatividade e efetividade, tornou-se uma idéia vitoriosa e

incontestada; um verdadeiro norte para a interpretação do todas as outras normas jurídicas

infraconstitucionais, dando novo alcance a todos os ramos do Direito.

90

É nesta lente de interpretação - a Constituição Federal - que deve ser ajustado o

direito de punir do Estado. A investigação sobre a justificativa da titularidade estatal na

aplicação da pena remete, inevitavelmente, à legitimidade do próprio Estado. No Estado

Democrático de Direito, o exercício do poder estatal somente é legítimo se houver respeito

aos direitos e garantias individuais e sociais, bem como aos princípios constitucionais. Dessa

forma, o problema da legitimidade do Direito Penal atinge a própria questão da legitimidade

do Estado, cujo exercício do poder fere duramente os direitos fundamentais do cidadão.

Há uma estreita relação entre a Constituição e o Direito Penal. O Direito

Constitucional e o Direito Penal nasceram e evoluíram juntos. Com efeito, as idéias políticas

do Iluminismo marcaram o ritmo das idéias penais e constitucionais ao empenharem-se na

fixação de limites do poder do Estado122. O Direito Penal contemporâneo assumiu um caráter

subsidiário, passando a ser o soldado de reserva do Estado; sua atuação é ordenada quando

todos os outros meios de controle social fracassam.

O Direito Penal corresponde a um instrumento, uma “arma”, a ultima ratio que o

Estado de Direito se vale quando as outras esferas jurídicas, ou os outros procedimentos do

Direito não são suficientes e eficazes para resolver os conflitos. Assim orienta o princípio da

intervenção mínima do Direito Penal, donde decorrem seus caracteres: 1) fragmentário

(somente os bens jurídicos mais importantes devem ser protegidos pelo Direito Penal) e; 2)

subsidiário (o Direito Penal como último instrumento que deve ser utilizado para proteger os

bens jurídicos). Deve-se, pois, “evitar” o Direito Penal. No mesmo sentido, também pode ser

citado o princípio da insignificância, ou bagatela, acolhido expressamente pelo Ordenamento

Jurídico, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal. 123

Recentemente, em 25/01/2008, o Jornal de Brasília anunciou na primeira página,

ao arrepio dos brasileiros, que o Governo estuda soltar 168 mil presos em todo o país, o que

representa cerca de 40% da população carcerária, para reduzir a superlotação dos presídios.

No mesmo artigo, existe a estatística de que 70% dos presos que são soltos reincidem na

criminalidade e que existem quase dois detentos para cada vaga nas cadeias públicas do país.

122 PEÑA CABRERA, Raúl. Tratado de derecho penal. Parte Geral. Lima, Grijley, 1994, p. 48, apud LOPES,

Maurício Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. v. 3 123 Habeas Corpus 84.412/SP – São Paulo. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: 19/10/2004. “O sistema

jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.”

91

Na tentativa de ameniza o problema da superlotação é que o Governo estuda esta medida

polêmica. Ou seja, o Governo, ao invés de solucionar, opta por criar novos problemas à

sociedade.

Em novembro de 2007 a população nacional se comoveu com a publicação em

inúmeros jornais sobre a prisão de uma adolescente de 15 anos em uma cela com cerca de

vinte homens em Abaetetuba (PA), estuprada diariamente em troca de comida. Esta violência

sexual sofrida pela adolescente não é um fato isolado no país, informou em reportagem

publicada na edição de 26/11/2007 da Folha de São Paulo. Um relatório elaborado por

entidades brasileiras de defesa dos direitos das mulheres e entregue à OEA (Organização dos

Estados Americanos) em março de 2007 aponta situações de abuso e violência contra detentas

em pelo menos cinco Estados: Rio, Bahia, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul e

Pernambuco. Segundo o relatório, as presas não denunciam seus agressores por medo.

Quanto à questão polêmica da progressão de pena em crimes hediondos, a Lei n.

11.464/07 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, deu nova redação ao artigo 2° da Lei n.

8.072/90, permitindo a progressão em tais crimes. Esta Lei insurgiu contra os anseios da

sociedade na atual circunstância, fortalecendo o medo e a insegurança dos seus entes. Agora o

criminoso cumpre apenas um sexto da pena em regime fechado, o que parece ser um estímulo

inegável à criminalidade, quando se deveria retardá-la.

O Batalhão de Operações Especiais (BOPE), criado em 19 de janeiro de 1978, é a

força de elite de intervenção da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro, destinada para

operações de alto risco, como o confronto direto com narcotraficantes em favelas. Nos

últimos anos, suas atuações tiveram grandes repercussões, principalmente com a edição do

filme “Tropa de Elite” que reproduziu cenas de horror e violência, revelando a face bárbara da

sociedade – verdadeiro retrocesso ao período da vingança privada.

Inúmeras outras notícias poderiam ser citadas denunciando um Direito Penal

incerto, desorientado e ineficiente perante a força e a dimensão da criminalidade. O sistema

penal tem fracassado em seu dever precípuo de prevenir, punição e ressocialização. Como

conter uma criminalidade crescente, cada vez mais especializada? Recrudescendo na violência

repressiva, construindo mais presídios? Revendo a finalidade da pena? Alterando a estrutura

do Direito Penal?

Observada a natureza humana e a longa evolução do homem primitivo ao

civilizado, as relações econômico-sociais entre os indivíduos e o Estado profundamente

alteradas a partir do século XVIII, há que se considerar que a humanidade passa, na

atualidade, por um momento diferenciado de toda a sua história. É quase impossível ou, no

92

mínimo ainda remota, a possibilidade de uma vacina milagrosa contra o crime; houvesse uma

solução infalível contra o mesmo, o Direito Penal perderia sua razão de ser. Mais que na

repressão, é exatamente na idéia de prevenção à criminalidade que se encontram todas as

medidas protecionistas às quais se obrigou e comprometeu o Estado Democrático de Direito

para com a sociedade; medidas que se encontram estampadas no texto constitucional ao

arrepio dos deslembrados.

Nas palavras de Tobias Barreto124:

E ao concluir, para ir logo de encontro a qualquer censura, observarei que de proposito deixei de lado a questão do melhoramento e correcção do criminoso por meio da pena, porque isto pertence á questão metaphysica da finalidade penal, que é ociosa, além do mais, pela razão bem simples de que a sociedade, como organização do direito, não partilha com a escola e com a igreja a difícil tarefa de corrigir e melhorar o homem moral.

É neste sentido que este trabalho se desenvolve, ou seja, não depositar na

finalidade da pena ou na própria estrutura do Direito Penal o infortúnio da sociedade. De

todas as causas dos males que assombram a sociedade, a mais proeminente é a ineficiência da

máquina estatal. A inércia do Estado no cumprimento de suas obrigações desvirtua o homem

moral, que encontra amparo na criminalidade. Se ao Direito Penal fica a difícil tarefa de punir

em massa, resta ao Estado o “direito ilegítimo” de punir.

124 BARRETO, 2004, op. cit., p. 179.

93

CAPÍTULO 5 LEGITIMIDADE

5.1 Antecedentes históricos

A categoria da legitimidade, embora possa parecer tema de preocupação da

modernidade, esteve presente desde os estudos de Platão e Aristóteles, cada qual com seus

critérios inspirados sempre nos conceitos bom e justo. Interessante que este termo desde

sempre esteve acompanhado da palavra poder que, por sua vez, sempre esteve atrelado ao

vocábulo “governo”. Assim, na polis grega, ser cidadão, membro da sociedade, era ter o

direito de participação na política, dos negócios públicos. Nesta atmosfera é que o poder

legítimo se origina, relacionado à liberdade do cidadão, nela contida o direito de participação

na vida política, e na igualdade dos homens enquanto cidadãos.

No entanto, a palavra legitimus aparece pela primeira vez entre os romanos,

significando tudo o que estivesse de acordo com a lei e com os costumes; daí sua variação,

funcionando como adjetivo: legitimum imperium, legitimum dominium. Toda lei romana era

legítima. Ao contrário dos gregos, os romanos conheceram uma desigualdade política sem

privar a plebe, categoria dos não proprietários de terra, da participação na vida política.

Das histórias grega e romana, a maior lição e contribuição deixada ao tema da

legitimidade foi a criação da lei como expressão de uma vontade coletiva, responsável pelo

estabelecimento dos direitos e deveres dos cidadãos, desmistificando a hegemonia, até então

empregada, da vontade pessoal do governante. Ao criarem a lei e o Direito, asseveraram a

superioridade do poder político125 em detrimento de todos os outros poderes e autoridades

existentes na sociedade. Por sua vez, a punição de crimes foi reservada a uma instância

impessoal e coletiva – o Estado – que sob a égide do Direito, deteve o monopólio da força, da

vingança e da violência.

Na Idade Média, a Igreja Católica dominava os cenários religioso e político

devido ao seu poder econômico em razão da grande quantidade de terras que detinham,

interferindo diretamente no poder dos reis, que era justificado pelo seu caráter divino. Esse

caráter transcendental do poder, transmitido por ordem hereditária, perdurou até o fim do

período. No século XIV, Santo Tomás de Aquino e Bartolo di Sassoferato criam as primeiras

associações explícitas da noção de legitimidade como uma qualidade do direito ao governo

125 A palavra política é grega, derivada de polis. Assim, deve-se aos gregos a invenção da política propriamente

dita.

94

(legitima potestas)126. Em sua concepção, Santo Tomás de Aquino ratificou o conteúdo ético

da legitimidade, opondo-a expressamente à violência e mantendo-se, pois, fiel à tradição

grega.

Ainda neste século, seguindo as lições de Diniz127, Guilherme de Occam (1285-

1347) foi o responsável pela primeira formulação do conceito de legitimidade governamental,

derivada do consentimento fundado nas leis naturais. Esta idéia de consentimento baseava-se

no velho argumento medieval quod omnes tanget – aquilo que atinge a todos tem que ser

aprovado por todos. A seguir, Nicolau de Cusa (1401-1464) substituiu a primitiva condição de

inocência presente no princípio jusnaturalista da igualdade pela igualdade como premissa

lógica do consentimento, elemento legitimador do governo128.

Hugo Grotius (1583-1645), representante do jusnaturalismo antropológico,

considerou a legitimidade como algo transcendente ao próprio ordenamento jurídico, e não

mais transcendente à condição humana. Para esta corrente de pensamento filosófico-jurídico,

o fundamento do Direito Natural deixou de ser Deus e a lei eterna dele diretamente derivada,

para passar a encontrar-se na razão humana ou na natureza racional do Homem.

Na mesma esteira, Hobbes considerava o Direito Natural de caráter supra-empírico

e imutável, como premissa legitimadora das leis positivas e sustentáculo do pacto social. Este,

por sua vez, legitima o poder político que, uma vez institucionalizado pelo consentimento dos

súditos, torna-se inquestionável na figura do Estado (Leviatã).129

Contrariamente, esta proposta é rejeitada pelo liberalismo de Locke, que vê nesta

concentração plena de poder do Estado, uma situação de ilegitimidade política e uma ameaça

à sobrevivência da sociedade organizada. O pacto social seria legítimo se estabelecesse a

limitação do poder para o conquistador e a obediência para os cativos. Assim, segundo ele,

“ninguém pode na sociedade civil subtrair-se das leis que a regem”.130

Rousseau, em sua variante contratualista, transporta a legitimidade para o fiel

cumprimento dos desígnios da vontade geral – vontade soberana -, cujo suporte formal é o

contrato social. O pacto social não prescreve apenas direitos aos cidadãos, mas impõe

obrigações aos súditos e aos soberanos. A vontade do soberano, assim como a vontade dos

126 DINIZ, Antonio Carlos de Almeida. Teoria da legitimidade do direito e do Estado: uma abordagem

moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy, 2006. p. 36-37. 127 Ibid., p. 37. 128 MERQUIOR, José Guilherme. Rousseau e Weber: dois estudos sobre a teoria da legitimidade. Rio de

Janeiro: Guanabara Koogan, 1980. p. 3 apud DINIZ, op. cit., p. 37. 129 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria; forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex

Martins. São Paulo: Marins Claret, 2004. p. 101 130 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret,

2004. p. 74-76.

95

particulares, deve coincidir com a vontade geral sob pena da ruína do corpo político. É assim

que o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes – súditos e soberanos

– a se auxiliarem de forma recíproca, de modo a extraírem todas as vantagens que dessa

relação dependem.131

A fim de que o pacto social não seja, pois, um formulário inútil, o pacto social contém tacitamente esta obrigação, que é a única que pode dar força às outras; de modo que aquele que se recusar a obedecer a vontade geral sê-lo-á obrigado por todo o corpo: o que significa apenas que será forçado a ser livre; tal é essa condição, oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal; condição que promove o artifício e o jogo da máquina política, e que é a única que faz legítimas as obrigações civis, as quais seriam absurdas sem isso, tirânicas e sujeitas aos maiores abusos.

No século XVIII, a fragilidade da razão humana propiciou uma atualização nas

bases e diretrizes da esfera jurídico-política. O fundamento do poder e da política deixou de

ser racional, passando para o plano da realidade, próximo da ação e das relações humanas.

Neste momento, em que o Direito se positivava, empenhando uma complexidade e uma

variabilidade em seu conteúdo, nota-se, também, a legitimidade desprendida do plano teórico

e observada no plano real. A legitimidade, dessa forma, faz-se legitimação, ou seja, a questão

é transformada do fundamento para uma ação legitimadora do Estado132.

No início do século XIX, duas obras publicadas na França aparecem como marcos

representativos no estudo da teoria da legitimidade: “Do espírito da conquista e da usurpação,

em suas relações com a civilização européia”, de Benjamin Constant, em 1814, após a queda

de Napoleão e; “História filosófica do gênero humano”, em 1822, de Antoine Fabre D’Olivet,

esta de forma precursora na distinção entre legitimidade e legalidade133.

Como conceito historicamente variável, a legitimidade novamente ganhou novos

contornos com o advento do Estado Liberal, consequência direta das Revoluções Liberais na

França e na Inglaterra. A ascensão do positivismo jurídico, no século XIX, promoveu a

decadência do modelo jusnaturalista, o que resultou no esvaziamento de conteúdo moral do

conceito de legitimidade. Na esfera política, a legitimidade passou a ser entendida no plano

empírico; na esfera jurídica, foi confundida e equiparada com o princípio positivista da

legalidade.

131 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. Tradução de Vicente Sabino

Jr. São Paulo: CID, 2001. p. 34-35. 132 ADEODATO, João Maurício Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah

Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 55. 133 DINIZ, op. cit., p. 39.

96

Paulo Bonavides134 enumera três classificações sobre o tema da legitimidade: a

filosófica, a sociológica e a jurídica.

Do ponto de vista filosófico, a legitimidade repousa no campo das convicções

valorativas pessoais, portanto, definida, pois, a partir de critérios subjetivos e axiologicamente

variáveis. A legitimidade não corresponde ao plano da realidade, aos fatos sociais, mas

questiona o poder segundo os preceitos fundamentais que o justificam ou invalidam seu título

ou seu exercício; também questiona o poder acerca de sua desejável correspondência com a

regra moral, a fim de que os governantes mereçam e recebam o assentimento dos governados.

Assim, o aspecto filosófico da legitimidade não procura analisar a realidade e dela extrair o

entendimento sobre o tema; busca-se compreender qual o mecanismo de inevitabilidade,

aceitabilidade ou não do poder político sobre uma comunidade.

Do ponto de vista sociológico, a legitimidade é localizada na realidade social, que

implica em uma teoria dominante do poder para cada época. O conceito torna-se, assim,

variável, adaptável às condições de poder; não há que se falar, portanto, em valorações e em

subjetivismos, tal como no conceito de cunho filosófico.

Juridicamente, a legitimidade supõe uma presunção de legalidade e pode ser

entendida de três formas: 1) como questão de fundo em realação à legalidade, relativa à

aceitação do poder pela opinião pública; 2) como questão ideológica dependente ou, até

mesmo coincidente com a legalidade; 3) como a fiel observância dos princípios da ordem

jurídica estabelecida.

O maior exemplo foi Hans Kelsen (1881 – 1973), autor da Teoria Pura do Direito,

expoente do normativismo jurídico. Numa visão puramente jurídica, excluiu da legitimidade

quaisquer elementos valorativos, restringindo-a à estrutura lógico-formal da estrutura

piramidal do Direito. O problema de efetividade das leis seria objeto de estudo de outras

ciências, tema alheio à ciência do Direito.

Na mesma época, Max Weber (1864-1920) foi o primeiro a se dedicar

especialmente à questão da legitimidade sob uma visão sociológica, e voltado para a nova

realidade do Direito legislado e positivado. Enumera três tipos ideais de autoridade legítima –

tradicional, carismática e racional-legal - , modelos que influenciaram as formulações teóricas

seguintes sobre a legitimidade, como será visto adiante.

Posteriormente, Carl Schmitt (1888 – 1985), considera a legitimidade da estrutura

normativa relacionada à própria autoridade política decisionista, representante do povo na

134 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p.115-119.

97

Democracia. Assim, numa visão neo-hobbesiana, por trás da normatividade estão as decisões

dos representantes do poder135. Legítima será a norma jurídica que possuir o caráter de

permanência, de abstração e de impessoalidade. E que propiciar a distinção entre a elaboração

da lei e sua aplicação administrativa e judiciária, decisão tomada pela maioria parlamentar.

Niklas Luhmann (1927-1998), considerado um dos mais importantes

representantes da Sociologia Alemã - que também será analisado posteriormente -, em sua

teoria sistêmica da legitimidade, localiza-a na aceitação dos procedimentos decisórios estatais

nas esferas política e jurídica; a teoria do procedimento corresponde, pois, à tentativa de

redução das ilusões e conformidade das possíveis decepções dos seus destinatários.

Hanna Arendt (1906-1975), política alemã, também se ocupou sobre o tema da

legitimidade. Para ela, numa crítica à teoria do procedimento, a legitimidade do poder,

concentrada em seu núcleo do sistema político-jurídico, poderia ser camuflada pelas várias

camadas sobrepostas sobre ele. Assim, o fato de cada uma delas só ter contato com uma

camada interna e outra externa dessa estrutura, esconderia as verdadeiras dimensões da

realidade.

Jürgen Habermas136, como expressivo representante da Sociologia Alemã,

juntamente com Luhmann, propõe a construção da legitimidade do Direito baseado na

dinâmica da linguagem, ou seja, num procedimento discursivo segundo regras previamente

acordadas e consentidas pelos debatedores na arena político-jurídica.

Por fim, Canotilho considera que a legitimidade intrínseca se estende à natureza

justa ou injusta do poder, não se limitando apenas ao título, mas quanto aos seus fins,

aspirações ou valores prosseguidos pelos poderes.

5.2 Conceitos de legitimidade

O tema “legitimidade” sempre esteve presente na história apresentando-se como

um dos assuntos mais intrigantes da Filosofia, da Política e do Direito Público, da Sociologia

e da Teoria do Estado contemporâneos. Interessante é o comentário de João Maurício Leitão

Adeodato137 sobre o tema: “Tradicionalmente falando, ser legítimo ou ilegítimo tem

assumido, pelo menos no jargão jurídico-político, a mesma importância que o bom e o mau

para a ética, ou o belo e o feio em nível estético. É um ‘topos’.”

135 DINIZ, op. cit., p. 41. 136 Ibid., p. 42. 137 ADEODATO, op. cit. p. 7.

98

A razão para tamanha preocupação é a dimensão que seu conceito tem tomado,

principalmente após o advento do Estado de Direito, assim como as diversas roupagens que os

estudiosos lhe designam. Sobre esta plasticidade da legitimidade, discorre Niklas Luhmann138:

Usado na Idade Média como conceito jurídico para a defesa da usurpação e tirania e com este sentido consolidado e propagado principalmente pela restauração napoleônica, o conceito de legitimidade perde o seu fundamento moral com a positivação do direito, que se impôs completamente no século XIX. Primeiro foi equiparado à posse do poder efetivo, depois foi usado de novo para dominar a problemática dum princípio de legalidade puramente positivo. Formulado com este fim, e abstraindo das tentativas para a restauração do direito natural, o conceito foi impelido para a realidade pura. Hoje ele significa a convicção, realmente divulgada, da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões, ou do valor dos princípios que as justificam.

Nota-se que as correntes de pensamento jurídicas têm influência imediata sobre o

termo em questão. Impõe, pois, fazer uma abordagem dos “sinônimos” atribuídos ao termo

encontrados na Doutrina - embora alguns sejam analisados à parte em especial a seguir. Dessa

forma, será possível, dentre as variações, alcançar o conceito mais aceitável e coerente com a

realidade.

Adeodato139 enumera dois critérios para se auferir a legitimidade: 1) formais: sem

conteúdo empírico definido, referindo-se apenas ao modo através do qual os governos se

sucedem e se institucionalizam, como o dizer de que é legítimo o poder que obteve adesão

eleitoral da maioria ou o poder do monarca herdeiro; e 2) materiais: apresentam uma instância

de referência empiricamente comprovável, de conteúdo definido, como dizer que não é

legítimo um poder, mesmo temporariamente efetivo, que não permite a liberdade de

associação dos súditos ou matiza seus direitos políticos pela cor de seus olhos ou por quantos

acres de terra possuem. Segundo o autor, nestes últimos critérios deve ser embasado o

conceito de legitimidade: 140

Se o direito é um fenômeno histórico e, como tal, contingente em muitos dos seus aspectos, o conceito de legitimidade procurado naquelas características que permanecem ao longo da mutabilidade; em todo processo de mutação é indispensável a existência de um núcleo constante, sob pena de não se poder sequer identificar a mudança.

138 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte- Real.

Revisão: Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília, DF: Ed. UNB, 1980. p. 29. 139 ADEODATO, op. cit., p. 19-20. 140 Ibid., p. 21.

99

Tércio Sampaio141 diferencia a questão da legitimidade de validade, efetividade e

obrigatoriedade ou imperatividade do sistema. Explica ele que validade e efetividade das

normas de um sistema normativo estão referidas à imperatividade do sistema. A questão da

legitimidade surge diante do caráter ideológico da própria imperatividade, ou seja: refere-se

não ao modo como o sistema normativo estabelece a sua imperatividade, mas à justificação

(fundamentos) do próprio modo como isto é feito. O fundamento da legitimidade é sempre

momento de força ideologicamente justificada.

O mesmo autor localiza estes fundamentos – anteriormente citados – nos quadros

de uma pragmática lingüística, em justificações do discurso normativo, decorrendo

diretamente do caráter racional do discurso. Ele parte do pressuposto de que o discurso é

submetido a um dever de prova, sendo dentro desses limites que a questão da legitimidade

deve ser proposta. Por fim, coloca a questão tipicamente pragmática, de como a legitimidade

se transforma em legitimação, ou seja, superada a questão “que é legitimidade”, surge outra

do tipo “como o discurso normativo se legitima?”.

Curiosamente, neste sentido, o discurso normativo, enquanto dogmático, é um discurso aberto no sentido de viabilidade das decisões, mas que, por isso, corre o risco de absolutizar-se. Toda vez que ele nega seu momento dialógico e vê apenas seus valores mentalizados ideologicamente como os únicos prevalecentes, ele se exime de suas próprias regras e se torna irracional. Esta irracionalidade é que o torna ilegítimo”.

Paulo Nader entende a palavra validez em sentido genérico, abrangendo os vários

atributos do Direito: vigência, eficácia, efetividade e legitimidade. A legitimidade do Direito

encontra-se em seu fundamento ético. “A dimensão axiológica, no Direito, atua como fonte

legitimadora, e a sua impropriedade gera problemas de efetividade que, em cadeia de efeitos,

podem levar à perda de vigência”. Para tanto, o Direito Positivo apresenta um mecanismo de

força, que visa assegurar o comprimento de suas disposições e a compensar violações

irreparáveis do direito. Mas a força deve atuar como complemento de uma sólida estrutura

ética, a fim de que o Direito Positivo se imponha legitimamente nas relações sociais142.

Nos sistemas democráticos, de acordo com Berloffa, a legitimação se dá no

momento da escolha e identificação dos governantes (representantes legais) e, ainda, na 141 FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. A legitimidade pragmática dos sistemas normativos. In: MERLE, Jean-

Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 288-297. O caráter dogmático do discurso normativo revela um modo específico de racionalidade que consiste em não eliminar, ao contrário em assumir aporias como ponto de partida do seu discursar, estabelecendo premissas que apenas contornam a aporia, as quais se mantêm na medida em que estão abertas a um confronto com outras possibilidades.

142 NADER, Paulo. Filosofia do direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 56-68.

100

estruturação do exercício do poder por intermédio da Constituição. Ou seja, o povo elege,

confere poderes aos seus representantes, que devem, pois, exercê-lo de acordo com os

mandamentos da Constituição. No tocante à estruturação do exercício do poder, há a criação

de uma teia complexa de cargos e funções delimitadoras das competências individuais dos

vários governantes (Presidente, Governador, Senado, etc.) a fim de propiciar a existência de

um exercício de poder justo e em sintonia com os interesses do grupo143.

Para Luís Fernando Coelho144, a questão da legitimidade pode ser relacionada com

dois aspectos: a positividade - conceito tradicional - e a juridicidade. A positividade do

Direito, para o autor, reflete o caráter dogmático desta ciência, que encerra as idéias de

vigência, historicidade, eficácia, legitimidade, legalidade, validade, faticidade, efetividade e

observância. Este conjunto de elementos característicos (segundo o autor, “o uso lingüístico

dessas expressões”) faz do direito um ser atual, existente em si mesmo no tempo e espaço;

isto reflete uma manipulação ideologia que reforça a ordem social confundida com a ordem

jurídica. Através deste pensamento jurídico tradicional é que o autor parte para estudar o

princípio da legitimidade, “para onde convergem os pressupostos ideológicos da unicidade,

estatalidade e racionalidade”. Há uma exigência também racional para que o direito seja

considerado legítimo, qual seja: a crença ideológica de que o Estado é legislador absoluto e

neutro em sua racionalidade.

A legitimidade é a qualidade ética do Direito, a maior ou menor potencialidade para que o direito positivo e os direitos positivos alcancem um ideal de perfeição. Esse ideal, espaço privilegiado da ideologia, pode ser provisoriamente identificado com a justiça, ou certos valores que representam conquistas da humanidade, principalmente os direitos humanos.

No conceito de legitimidade, segundo Bonavides, entram as crenças de

determinada época, que presidem à manifestação do consentimento e da obediência. Segundo

o autor, a legitimidade possui exigências delicadas, uma vez que se refere a um problema de

fundo, que pode ser questionado acerca da justificação e dos valores do poder legal.

Considera a legitimidade como a legalidade acrescida de sua valoração. É o critério que se

busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder

às situações da vida social que ele é chamado a disciplinar.145

143 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas.

Campinas, SP: Bookseller, 2004. p. 289. 144 COELHO, Luís Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. p. 351-358. 145 BONAVIDES, 1998, op. cit. p. 112.

101

Fica claro que a legitimidade apresenta um forte caráter ideológico, na medida em

que constitui elemento de justificação do poder relacionado ao Direito e ao Estado. Ela deve

ser situada, inicialmente, como uma qualidade extrínseca e desejável do poder e jamais se

confundir com ele – mesmo porque, a exemplo dos sistemas ditatoriais, há um poder de fato

desprovido de legitimidade. No entanto, tendo vista o Estado Democrático de Direito, a

legitimidade se consubstancia como elemento intrínseco do poder, dele não podendo se

dissociar sob pena de violação do pacto social – sustentado pela vontade da maioria e pelo

poder político assentado nos princípios da legalidade e da legitimidade.

Um poder que se pretende legítimo, deve reunir legitimidade formal, vista nos

sistemas democráticos como o direito de sufrágio, de escolha de representantes do povo pelo

povo; e legitimidade material, localizada no exercício de poder, que deve coincidir com os

anseios do povo - detentor do poder - consubstanciados na Constituição Federal. Aqui, a

legitimidade reúne também elementos subjetivos, como o consenso dos ideais, os

fundamentos, os valores e os princípios ideológicos. Sua concretização supõe o exercício do

poder ditado pelas concepções de justiça de determinada coletividade. Neste sentido, a

legitimidade pode ser encarada como um processo de legitimação que ocorre não por mera

obediência ou aceitação, mas por seu atributo intrínseco de realização da justiça.

5.3 Legitimidade e legalidade

Não se pode conceber uma sociedade política e juridicamente organizada baseada

exclusivamente na força material do poder. Todo poder, seja ele político ou jurídico, é

amparado por uma carga de valores consensualmente aceitos e que refletem os interesses, as

aspirações e as necessidades de uma determinada comunidade. Esta adequação do poder à

realidade, segundo Wolkmer, marcada por um processo de dominação social, aceitação e

obediência coletiva, bem como a justificação de estruturas normativas, profeta a

problematização da temática legitimidade e legalidade. 146

Trata-se de uma questão clássica a ser discutida pela Filosofia Política, mas com larga implicação na Teoria Geral do Direito. “Tendo em vista a estreita relação entre Direito e Poder Político, torna-se essencial que a ordem legal, que organiza e justifica o exercício do poder de uma sociedade, venha a ser justa e moralmente compartilhada pelos membros da comunidade. Ora, enquanto os cientistas políticos discutem a legitimidade como representação de uma teoria dominante do poder e sua valorização no que se refere à autoridade, dominação, soberania e obediência, os juristas tendem tradicionalmente a identificar e apresentar como sinônimos as

146 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 83.

102

expressões legalidade e legitimidade, ou seja, ambos expressam genericamente uma conduta ou realidade compatível com a existência e a submissão a um corpo sistematizado de leis.

A identificação tradicional que os juristas fazem a acerca dos institutos da

legalidade e da legitimidade, assim como o maior privilégio dado à legalidade na atualidade,

em detrimento da legitimidade, motiva a necessidade de esclarecimento dos mesmos. Para

tanto, deve-se levar em consideração todos os aspectos de conceituações, diferenças, evolução

histórica, evolução doutrinária e critérios para uma nova fundamentação de legitimidade.

Deve-se partir, portanto, em primeiro lugar, do aspecto valorativo que comporta o

conceito de legitimidade, responsável pela sua variação conforme o momento histórico e os

interesses dominantes. Assim, chegando-se ao Estado Democrático de Direito, em que o

poder pertence ao povo, o conceito deve ser moldado sem perder de vista a vontade da

maioria e deve, obrigatoriamente, acompanhar o poder do Estado; da mesma forma, a

legalidade fica atrelada a esta concepção, dela, também não podendo se fastar.

Historicamente, foi na Grécia Antiga, berço da Democracia, onde surgiram,

também, os princípios de legalidade e legitimidade do poder. Considerando as paixões

humanas, os filósofos nos legaram em suas obras, a desejabilidade de submissão dos homens

ao soberano servo das leis. Enquanto que a legitimidade era identificada como o governo dos

homens pelos próprios homens passíveis de abusos do poder, a legalidade era considerada

segura, uma vez que as leis exprimiam a vontade geral.

Aristóteles argumenta que num mundo onde a maioria dos indivíduos se encontra

submetida às paixões, é preciso conceber uma polis dotada de leis justas. Para isso, é

necessário estudar a ciência da legislação a qual é uma parte da Política. É melhor ser

governado por leis do que por excelentes governantes, porque as leis não estão sujeitas as

paixões, enquanto que os homens, por mais excelentes que sejam não estão livres delas.

Os termos legalidade e legitimidade foram confundidos pelos Direitos Romano e

Canônico, que preconizavam que todas as leis eram justas. O princípio da legalidade nasceu

da necessidade de se obrigar governantes arbitrários aos mandamentos da lei; esta, enquanto

produto da razão estaria, aos menos teoricamente, livre das influências das paixões e de

interesses particulares. Tal princípio emergiu como verdadeira garantia aos governados, no

sentido de confiança e tranqüilidade quanto ao poder dos governantes sobre eles exercido.

Assim, a legalidade significou uma reação ao Antigo Regime - dado o poder

absoluto e irrestrito que detinham os reis – tendo se desenvolvido no século XVIII, na França,

sob os ideais da Revolução Francesa, baseados, sobretudo, nas teses do da doutrina

103

contratualista. A legalidade foi entendida como a consagração da liberdade – acima dos

homens pairava apenas a lei e não mais o poder arbitrário de poucos homens. Dada a

importância, natural que tal princípio não hesitou em compor o conteúdo das Constituições

revolucionárias da época, ainda persistindo e compondo de forma fundamental os documentos

constitucionais contemporâneos.

O impasse entre os dois termos surgiu na França monárquica à época da

Restauração (1814-1830), resultado de um conflito entre conservadores e realistas,

restauradores adeptos da legitimidade de um governo representado pela monarquia

constitucional, e os liberais progressistas que, inspirados nos ideais da Revolução Francesa,

sustentavam a importância da legalidade de um governo respaldado pelo Código

Napoleônico147. O Código Civil, promulgado em 1804, representou a manifestação jurídica da

vitória da jovem burguesia francesa sobre a antiga nobreza fundiária e seus privilégios

feudais. O marco da cisão entre os termos legalidade e legitimidade ocorreu na França em

1815, no calor do antagonismo entre a monarquia tradicional francesa e a legalidade do

Código napoleônico.

O cenário era de divergências políticas, em que se opunham a legitimidade dos

conservadores em prol da monarquia, e a legalidade dos liberais em prol de uma monarquia

constitucional. Com a queda do Império Napoleônico, em 1815, a monarquia é restaurada na

França. Em 1830, os burgueses derrotam o rei Carlos X, devido às suas medidas arbitrárias de

cassação de liberdades, e apóiam Luís Felipe I. É neste momento - quando a legalidade se

impõe à legitimidade – que tais termos, além de se dissociarem, iniciam uma história de

descompassos. O racionalismo empírico e positivista da época se encarregou em transpor a

ordem de hierarquia, passando a legalidade a se impor perante a legitimidade, como símbolo

revolucionário de liberdade.

A própria História – quando do aparecimento do Estado liberal de Direito - se

encarregou em alterar o eixo de poder: seu norte passou a ser a legalidade, contrariando a

tradição, segundo a qual, a legalidade era fundada na legitimidade. A legitimidade, até então

era relacionada à tradicional autoridade, à hereditariedade do poder – o governo dos homens

pelos homens. Cabia ao Estado legislativo elaborar leis gerais e abstratas.

Assim, o marco do Direito Positivo Moderno foi a conversão - ou a submissão -

da legitimidade em legalidade. Isto significou a supremacia do Direito posto pelo Estado

perante todas as outras formas de Direito até então vigentes: o Direito Natural e o

147 SCHMITT, Carl. Legalidad e legitimidad. Madrid: Aguilar, 1971. p. XXV-XXVI. apud DINIZ, op. cit., p. 112.

104

consuetudinário. Esta institucionalização assumida pelo Estado reuniu três características: 1)

submissão do Estado ao império das leis; 2) “divisão” do poder – harmônicos e independentes

- entre executivo, legislativo e judiciário; 3) afirmação e garantia dos direitos individuais.

Objetivava-se, mediante o império da lei, a imunização da sociedade contra os

possíveis excessos do poder político e a concretização dos propósitos constitucionais liberais

– os direitos e garantias individuais. 148

Com efeito, a concepção imanente ao Estado liberal de Direito é, por natureza, refratária aos excessos, desvios e ao uso não-regulado do poder. A doutrina do liberalismo político parte de uma dupla premissa: a manifesta desigualdade nas relações entre o cidadão e o Estado, aliada a uma desconfiança ínsita no apetite dos homens pelo poder, e sua tendência ao abuso deste último, para justificar a necessidade de tais instituições permitirem ao cidadão o uso de mecanismos constitucionais aptos a restringir e controlar o monopólio estatal da força mediante a instituição de uma série de proibições e freios.

O Constitucionalismo serviu como uma luva em meio às arbitrariedades dos

monarcas: elevou as Constituições como centros irradiadores de poder, submetendo todos,

povo e representantes do poder, e inclusive as leis infraconstitucionais aos seus ditames.

Corrobora Canotilho149:

A ideia constitucional deixa de ser apenas a limitação do poder e a garantia de direitos individuais para se converter numa ideologia, abarcando os vários domínios da vida política, económica e social (ideologia liberal ou burguesa). Por isso se pôde afirmar já que o constitucionalismo moderno é, sob o ponto de vista histórico, um «produto da ideologia liberal.

Outras duas crises históricas abalaram o princípio da legalidade e da legitimidade,

deturpando seus conceitos. A primeira se deu com o Manifesto de Marx, seguida das teorias

de Lênin, Trotski e Lukács, que deflagram a lei como instrumento da sociedade de classes e

superestrutura social da opressão burguesa e consolidando privilégios econômicos. A segunda

crise se deu com o nacional-socialismo, fruto da liberdade irrestrita, que culminou em

excessos legais, tais como se deu com o regime nazista na Alemanha, com a ascensão de

Hitler e com a ditadura socialista na Tchecoslováquia, dentre outros regimes arbitrários

provados pela História.

A teoria contemporânea se incumbiu da aproximação dos termos legalidade e

legitimidade, representada pela chamada legitimidade legal – racional. Tal mérito coube a

Max Weber que distinguiu várias categorias de legitimidade, apoiadas na racionalidade da lei 148 DINIZ, op. cit., p. 99-100. 149 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 64.

105

e em critérios de religião, carisma, tradição e emoção. Estabeleceu as conexões entre

legalidade e legitimidade, tendo em vista o consenso entre os termos. Mesmo sob uma

perspectiva liberal, reabilitou e atribuiu um caráter de validez universal à noção de

legitimidade, dando-lhe novos contornos.

No sistema jurídico brasileiro, a legalidade figura como princípio constitucional,

assim previsto no artigo 5°, inciso II da Constituição Federal, com o seguinte teor: “ninguém

será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.” Sob a

roupagem de princípio, esta norma impõe a observância das leis a todas as pessoas – físicas,

jurídicas, governantes e governados -, que compõem o Estado. A base da legalidade encontra-

se, pois, na Constituição Federal, fazendo deste documento verdadeiro mecanismo de controle

de todo funcionamento do sistema e do exercício de poder.

Segundo Paulo Bonavides150:

A legalidade supõe, por conseguinte o livre e desembaraçado mecanismo das instituições e dos atos da autoridade, movendo-se em consonância com os preceitos jurídicos vigentes ou respeitando rigorosamente a hierarquia das normas, que vão dos regulamentos, decretos e leis ordinárias até a lei máxima e superior, que é a Constituição.

A legitimidade, segundo o mesmo autor, requer exigências mais delicadas que a

legalidade, uma vez que levanta problemas de fundo, questionando a justificação e os valores

do poder. Segundo ele, mais importante que a compreensão e aplicação do conceito, é o

aspecto de aceitação ou negação do exercício do poder na vida social.

A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu enquadramento nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática.151

5.4 Teoria da racionalidade progressiva de Max Weber

Max Weber (1864-1920) foi um intelectual alemão, jurista, economista e

considerado um dos fundadores da Sociologia. Foi o primeiro a se dedicar à questão da

legitimidade sob o prisma da nova realidade do Direito, então legislado e positivado. Seus

150 BONAVIDES, 1998, op. cit., p. 111. 151 Id., 1988, op. cit., p. 112.

106

critérios e categorias tornaram-se ponto de partida para uma discussão sistemática do tipo de

legitimidade das sociedades democráticas.

Como sociólogo, Weber demonstrou a legitimidade no plano empírico, não se

preocupando em sistematizar seus fundamentos de validade, ou relacioná-la aos conceitos:

bom e justo. Não considerou a legitimidade como “algo”, mas como uma relação, e graças a

ela o poder se desdobra em dominação. Para tanto, pretendia descobrir as razões de

obediência em determinada ordem de domínio, responsáveis pela estabilidade e conservação

de um regime político. Falar sobre a legitimidade, para ele, significava falar sobre as razões

de obediência. “A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um

determinado mandato pode fundar-se em diversos motivos de submissão.”152 Segundo o

mesmo autor, a obediência pode decorrer de: 1) interesses – vantagens ou inconveniente por

parte do súdito; 2) mero costume de uma prática irracional já arraigada e; 3) puro afeto à

autoridade reconhecida.

Porém, salienta o autor que uma obediência fundamentada nesses motivos tende a

ser relativamente instável. As relações entre dominantes e dominados geralmente se apóiam

em bases jurídicas, onde repousa a sua legitimidade; o abalo desta base jurídica, e

conseqüentemente, da legitimidade, pode acarretar graves conseqüências às relações delas

decorrentes. Dessa forma, entendeu a legitimidade como elemento essencial do poder, porém,

não amparada exclusivamente na coação, na força ou violência.

Esta, porém, é considerada a ultima ratio para fazer valer a vontade do titular da

autoridade. Em toda submissão ou obediência existe um mínimo de interesse em obedecer, o

que sustenta a relação, e o que lhe dá legitimidade. Mas não basta este mínimo de interesse;

como interessa às autoridades prolongarem-se no poder, devem despertar a crença de sua

legitimidade nos membros da coletividade, para que seus membros a reconheçam e a desejem.

A tipologia clássica de legitimidade por ele criada consiste nos modelos:

5.4.1 Dominação legal-racional

Característica das sociedades ocidentais modernas. É legal em virtude do estatuto

sancionado corretamente quanto à forma. Assim, obedece-se não à pessoa em virtude de seu

direito próprio, mas à regra estatuída, que vincula, inclusive, a autoridade a quem se obedece.

Este tipo de dominação busca a racionalização da dominação através da formalização de

152 COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: sociologia. Tradução de Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 7. ed. São Paulo:

Atlas, 2002. (Grandes cientistas sociais). p. 128.

107

regras imunes de influências sentimentais e pessoais. É nesta neutralidade do corpo

administrativo – que atuam em prol do cumprimento do direito positivo – onde reside a

validade legítima das ordens políticas do Estado Moderno. Ou seja, a legitimidade do poder

repousa na imperatividade das leis – gerais e abstratas -, que estabelecem competências e

fixam direitos e deveres. A burocracia, para ele, constitui o tipo tecnicamente mais puro da

dominação legal, a qual se identifica com toda a história do desenvolvimento do Estado

moderno.

5.4.2 Dominação tradicional

Descansa sua validade nas crenças cotidianas e costumeiras e na santidade das

tradições representadas pelas pessoas que exercem o comando. O conteúdo das ordens está

fixado pela tradição, cuja violação por parte do senhor viola a legitimidade do seu próprio

domínio.153 Em conseqüência, a sociedade goza de uma estabilidade, na medida em que

depende diretamente da crença e aceitação da tradição pela consciência social.

5.4.3 Dominação carismática

Apoiada nas qualidades pessoais, na mistificação, no heroísmo, no poder

intelectual ou de oratória de um indivíduo (príncipe, guerreiro, chefe político).

A obediência ao líder se dá exclusivamente por suas qualidades excepcionais e não

em razão da posição por ele ocupada ou de sua dignidade tradicional; a duração do poder

depende do tempo que durar tais atribuições154.

Os estudos de Weber motivaram diversas interpretações, principalmente por parte

dos publicistas e juristas em geral, que identificaram legitimidade e legalidade. Mas não se

pode afirmar que assumiu uma postura positivista.

O modelo de legitimidade racional-legal, que caracteriza os Estados modernos,

pretendeu minimizar as arbitrariedades dos soberanos mediante a formalização de leis gerais e

abstratas e legalmente controladas. Seu intuito foi legitimar um poder artificial e impessoal,

isento às paixões e digno de obediência aos comandos dele emanados. Dessa forma,

perfeitamente aceitável seria a teoria weberiana e teoricamente eficaz. Porém, na prática, a

153 COHN, op. cit., p. 131. 154 Ibid., p. 135.

108

legitimidade quase sempre se perde, seja pelo não comprimento das leis, seja pela possível

articulação estatal do poder.

5.5 Legitimação pelo procedimento de Niklas Lumhann

Niklas Luhmann (1927-1998) é considerado um dos principais expoentes da

Sociologia Jurídica alemã dos últimos quinze anos. Sua importância reside no rompimento de

suas idéias com a tradição racional anterior de aspecto humanista, propondo uma análise dos

problemas precípuos da sociologia do direito em termos sistêmico-funcionais. O resultado de

seu trabalho foi o aspecto inovador e original dado ao Direito, sob a égide de uma

racionalidade sistêmica.

A teoria de Luhmann se insere num contexto de um crescente dinamismo dos

sistemas jurídicos de sociedades pluralistas com a finalidade de reduzir sua complexidade e

suas incertezas. Em breves linhas, remonta a origem da legitimidade na Idade Média, como

instrumento de defesa contra a usurpação e a tirania. A positivação do direito, no século XIX,

encadeou um esvaziamento de seu fundamento moral, sendo impelido para a realidade pura –

época em que foi reduzida à legalidade. “Hoje ele significa a convicção realmente divulgada,

da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões, ou do

valor dos princípios que as justificam”. 155

No mesmo sentido de Weber, afirmava Luhmann que os sistemas políticos não

podem se apoiar unicamente na força física de coação, mas deve conquistar uma aceitação

que o faça mais duradouro. No entanto, ainda considerava tais elementos escassos para

explicar a legitimidade, uma vez que a aceitação poderia se dar por motivos diversos, como

para garantir apoio ou por medo. Restava explicar, pois, como é possível divulgar a convicção

de legitimidade uma vez que as decisões cabem a apenas alg

O conceito que mais se aproxima da nossa pergunta quanto à legitimação pelo procedimento, por exemplo, é o conceito da legitimidade racional, baseada na crença na legalidade das ordens estabelecidas, exposto por Max Weber, que não deixa identificar suficientemente a forma como uma tal legitimação da legalidade é sociologicamente possível.

A teoria sistêmica idealiza a sociedade como uma teia de sistemas co-existentes,

independentes, fechados, e autopoiéticos, ou seja, sistemas que se auto-reproduzem depois de

atingirem um determinado grau de complexidade e diferenciação funcional. Independentes, 155 LUHMANN, 1980, op. cit., p. 29.

109

pois cada sistema é auto-suficiente dentro da sua complexidade através de mecanismos

determinadores de sua estrutura e de seus elementos. Fechados, pois dentro de sua própria

estrutura se organizam e se reproduzem, sem a necessidade de contato com sistemas

exteriores.

O Direito corresponde a um desses sistemas. O Direito, dessa forma, é puro, não

existindo fora dos limites da sua estrutura sistêmica. O Direito vem a ser, para a teoria

sistêmica, uma estrutura social baseada “na generalização congruente de expectativas

comportamentais normativas”, garantindo, dessa forma, que as expectativas em torno das

normas permaneçam estáveis mesmo diante de sua eventual violação156. Uma das

características importantes dum sistema é sua relação com a complexidade do mundo. A

interação do sistema jurídico para com os outros sistemas se dá por meio de processos

chamados “fechamento normativo” e “abertura cognitiva”.

A sociedade é vista por ele como um sistema do qual o homem não faz parte,

porém, dela necessita. O Direito, neste contexto, figura como um mecanismo para a

imposição de limites e para a definição de interações, filtrando e processando as informações

que lhe interessa. A complexidade exterior, dessa forma, é amenizada pela Dogmática

Jurídica e solucionada por meio de procedimentos decisórios produzidos no âmbito do

sistema normativo e sua conseqüente repercussão no âmbito social. 157

Tal como a categoria do contrato para o âmbito da “sociedade”, assim a categoria do procedimento para o âmbito do “estado” parece apresentar aquela fórmula mágica que combina a mais alta medida de segurança e liberdade que se pode praticar concretamente no dia-a-dia e que transmite, enquanto instituição, todas as resoluções do futuro.

A norma, pois, não é capaz de impedir frustrações, todavia, consiste numa garantia

das expectativas sociais contra as contingências a que estão sujeitas. Foi pensando nestas

contingências que Luhmann transformou a legitimidade em função, contrariando sua

identificação clássica como “algo”. Como função, os procedimentos jurídicos como sistemas

de ação se legitimam no contexto de sua instrumentalidade institucionalizada por uma

racionalidade sistêmica que lhes é peculiar dentro de sua estrutura autopoiética. As decisões

judiciais partem, pois, do âmbito interno do sistema jurídico para produzirem seus efeitos fora

de seus limites.

156 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. v. 1. p. 121, apud

DINIZ, op. cit, p. 226. 157 LUHMANN, 1980, op. cit., p. 7. (destaque do autor).

110

Sua teoria introduz na teoria da legitimidade um motor, capaz de acelerar

conforme a dinâmica e a complexidade do meio social, dando movimento ao modelo positivo,

antes inerte em sua rigidez. Optando a sociedade pela positivação do seu direito, deve assumir

esta responsabilidade, confiando no sistema político a redução de sua complexidade. A

sociedade, segundo Luhmann, tem que aceitar, com a sua estrutura, riscos elevados, tolerar

incertezas, contradições e conflitos, permitir a falta de consenso, em vez de os rejeitá-los

categoricamente como conflitos de valores, de programas, ou de papéis. Cabe a ela confiar na

estrutura jurídica a regulação das relações jurídicas e as decisões dos conflitos; “portanto,

deslocar problemas de fora para dentro para mobilizar alternativas e poder encontrar soluções

bem integráveis”.158.

Considerando o Estado de Direito e as complexidades do sistema jurídico – que se

auto-reproduz -, Luhmann identifica suas funções institucionalizadas: legislativo, eleitoral,

administrativo e judicial159. Estes seriam os “filtros” dos fatos sociais, responsáveis pelo

impedimento de eventuais contaminações dos sistemas jurídico e político. A legitimação dos

procedimentos destas instâncias se dá pelos seguintes motivos: aceitação dos comandos legais

– mesmo quando suas expectativas forem frustradas -, e reconhecimento do caráter

obrigatório das decisões. Um indivíduo que tenha suas expectativas frustradas após esgotar

todas as instâncias e meios jurídicos, recebe estímulos do meio social para se adaptar à

decisão indesejada. 160

Uma mudança de expectativas [...] põe em perigo a identidade pessoal do indivíduo. [...] Ela não deve desacreditar a sua auto-representação, deve antes aparecer aos presentes como evidência, como ocasionada por motivos exteriores. A legitimidade depende, assim, não do reconhecimento “voluntário” da convicção de responsabilidade pessoal, mas sim, pelo contrário, dum clima social que institucionaliza como evidência o reconhecimento das opções obrigatórias e que as encara, não como conseqüências de uma decisão pessoal, mas sim, como resultados do crédito da decisão da decisão oficial.

Para Luhmann, a legitimidade deve partir da própria estrutura e seriedade dos

sistemas jurídico e político. Um sistema, que emane decisões neutras de acordo com

procedimentos seguros e confiáveis, conforta e anima a coletividade perante as expectativas

de seus direitos Em conseqüência, motiva a crença na legitimidade, ou seja, a crença nas

finalidades dos procedimentos frente à solução de litígios e à prestação de direitos.

158 LUHMANN, 1980, op. cit., p. 123. 159 Ibid, p. 196. 160 Ibid, p. 34.

111

A legitimação pelo procedimento não é como que a justificação pelo direito processual, ainda que os processos legais pressuponham um regulamento jurídico; trata-se, antes, da transformação estrutural da expectativa, através do processo efetivo de comunicação, que decorre em conformidade com os regulamentos jurídicos; trata-se, portanto, do acontecimento real e não duma relação mental normativa.

A legitimação pelo procedimento afasta-se de elementos valorativos, revelando um

caráter estritamente técnico. De acordo com Canotilho161, esta concepção de um Direito

Constitucional ditado pelos juízes em que a legitimidade técnica destes substituiria a

legitimidade democrática da maioria merece reticências. A fragilidade desta teoria reside

superposição das decisões judiciais perante os valores. A aceitação dos processos, dos

procedimentos, das decisões, mesmo que contrárias às expectativas de um indivíduo, dá-se

não pelo conteúdo valorativo das mesmas, pela finalidade de Justiça, mas credibilidade à

estrutura formal dos sistemas. Trata-se, de uma teoria cujo pressuposto ideológico é a

sociedade tecnocrática capitalista e cujo pressuposto teórico é uma teoria sistêmica

funcionalmente orientada. Contrariamente à teoria do procedimento, pondera Canotilho162:

Trata-se, de novo, de uma teoria cujo pressuposto ideológico é a sociedade tecnocrática capitalista e cujo pressuposto teórico é uma teoria sistémica funcionalmente orientada. A exclusão de qualquer conteúdo material e a expulsão de elementos sociais (como direitos e princípios da constituição económica), considerados disfuncionalmente operantes, são incompatíveis com o texto constitucional de um Estado democrático socialmente orientado.

5.6 Legitimidade em Habermas

Jürgen Habermas (Düsseldorf, 18 de Junho de 1929) é considerado um dos

filósofos e sociólogos mais importantes da Alemanha, e como principal herdeiro da Escola de

Frankfurt. A carência por legitimação, explica-se a partir do conceito de poder político;

este, por sua vez, compreende as diversas formas de poder jurídico, aproveitando-se, pois, da

sua legitimidade. Acontece que, nos Estados Modernos, segundo Habermas, a legitimação do

Direito se dá mediante o fenômeno da positivação, tornando-o codificado e obrigatório,

estendendo-se esta legitimidade, pois, ao poder político.

A estrutura dos Estados Modernos sedimenta-se no direito subjetivo, onde aos

indivíduos é dada uma margem de atuação segundo tudo o que não é expressamente proibido

161 CANOTILHO, 1993, op. cit., p. 51. 162 Ibid, p. 82.

112

é permitido. A expressa previsão de apenas comandos negativos dissocia a Moral do Direito.

Enquanto que direitos morais derivam de deveres recíprocos, as obrigações jurídicas derivam

da limitação legal de liberdades subjetivas. Esta estrutura faz com que o Direito atue entre a

facticidade e os limites da legitimidade da positivação jurídica. Resta aos indivíduos, por sua

vez, desobrigarem-se de suas obrigações morais, passando a atuar estrategicamente às

conseqüências do não comprimento das normas, ou então, aceitá-las na medida de suas

limitações.

Habermas questiona a legitimidade do ordenamento do ponto de vista da

possibilidade de modificação do mesmo, inclusive do próprio documento constitucional.

Como pretender legítimo um Ordenamento que permite alterações? O Direito Positivo,

enquanto transitório ou temporal, segundo o autor, deveria ser subordinado ao Direito Moral,

eternamente válido. Porém, em sociedades pluralistas, as visões de mundo integrativas

decorrentes da Ética desintegram-se.

O regime democrático, alicerçado na soberania do povo e nos direitos

fundamentais, motiva uma suposição de resultados legítimos. Os direitos humanos, na versão

do pensamento liberal, dirigem-se, sobretudo, ao legislador para que não cometa excessos.

Por outro lado, os mesmos direitos nas versões do republicanismo e do Humanismo do

Renascimento, pretendem priorizar a autonomia política dos cidadãos, valorizando a

autodeterminação ética da comunidade política. A unilateralidade destas duas visões, que

compreendem as Democracias Modernas, no entanto, não foram devidamente equacionadas

pela teoria política.

Como conseqüências, a relação entre indivíduos - livres e iguais – e imposições

do Direito Positivo torna-se inviável na prática. Como conciliar o convívio da soberania

popular com a criação de um sistema de direitos? Ou ainda, como conformar direitos

fundamentais e direitos políticos? 163

A pressuposição de resultados legítimos precisa apoiar-se, em última instancia, em um arranjo comunicativo, sendo, pois, tais discursos (e negociações), o lugar em que se pode formar uma vontade política racional. Por sua vez, como são necessárias para constituir de modo racional a vontade do legislador político, a fim de que se possa garantir legitimidade, as formas de comunicação devem ser institucionalizadas juridicamente.

Como instituir juridicamente formas de comunicação e conseqüente legitimação

do Direito? Através da co-originariedade entre direitos políticos fundamentais e direitos 163 HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos Direitos Humanos. In: MERLE, Jean-Christophe;

MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 71. (destaque do autor).

113

individuais fundamentais. Os cidadãos só poderão dispor adequadamente de sua autonomia

pública se, igualmente, for assegurada sua independência na esfera privada; a independência

do cidadão nestas duas esferas, ou seja, a garantia de atuação plena nas mesmas compõe o

vínculo entre Democracia e Estado de Direito. Apenas garantidas a liberdade política e

individual, é possível a institucionalização das formas de comunicação, ingrediente final para

se atingir a legitimidade do Estado Democrático.

A principal contribuição de Habermas é sua teoria da ação comunicativa, através

da Ética discursiva inserida no seu paradigma reconstrutivo de justificação. A Ética do

discurso projeta-se como reformulação do imperativo categórico kantiano; este consiste no

cumprimento de deveres para o alcance da Ética. Ao substituir a consciência do dever

ponderada por Kant – subjetividade - pela linguagem (intersubjetividade), Habermas concede

valor transcendental à Ética. O exercício da comunicação corresponde à prática da Ética. A

ação comunicativa - como imperativo ético - almeja as condições de possibilidade e

entendimento no Estado Democrático de Direito, legitimando-o.

5.7 Legitimidade e Constituição Dirigente para Canotilho

José Joaquim Gomes Canotilho (Pinhel, 15 de agosto de 1941) é,

indubitavelmente, um dos nomes mais relevantes do Direito Constitucional da atualidade. Sua

teoria sobre a Constituição se insere no grande debate constitucional travado entre aqueles que

consideram a Constituição como mero instrumento de governo, definidor de competências e

regulador de procedimentos, e os que a defendem como plano integral definidor de tarefas,

programas e fins para o Estado e para a sociedade. No primeiro caso, a lei fundamental deve

ser entendida apenas como uma norma jurídica superior, abstraindo-se dos problemas de

legitimação e domínio da sociedade.

O modelo de Constituição dirigente ou programática, instituído por Canotilho,

parte de um contexto de uma sociedade pluralista, normativamente conformada,

preponderando a questão da problemática moderna no tocante à validade (legitimidade) e à

eficácia normativa de uma Constituição. Hoje, constata-se, notadamente pela contribuição

doutrinária de Canotilho, que os poderes carecem de um provimento material, para além do

aspecto formal, sob pena de esvaziamento de conteúdo e inefetividade das leis. A exigência

de fundamentação substantiva para os atos dos Poderes Públicos pressupõe o conteúdo dos

direitos fundamentais que, em sistemas democráticos, são elementos estruturais essenciais de

suas Constituições. A lei tem sua mobilidade no âmbito dos direitos fundamentais e é

114

considerada como exigência de realização concreta dos direitos fundamentais. 164 A idéia de

direitos fundamentais constitui, para o autor, a raiz antropológica essencial da legitimidade,

diga-se efetividade, da Constituição e do poder político165.

A fundamentação constitucional não pode permanecer abreviada a princípios

materiais estruturantes (Estado de Direito, Democracia, República); deve estender-se à

imposição de tarefas e programas dirigidos aos poderes públicos para seu cumprimento

sistemático, num processo de constitucionalização de tarefas, resgatando a importância da

legitimação material das Constituições e, por conseqüência, de todo Ordenamento Jurídico.

É no contexto de uma sociedade pluralista, normativamente conformada, que

ganha veemência a questão da problemática moderna respeitante à validade (legitimidade) e à

eficácia normativa de uma Constituição. 166

A validade de uma constituição pressupõe a sua conformidade necessária e substancial com os interesses, aspirações e valores de um determinado povo em determinado momento histórico. Desta forma, a constituição não representa uma simples positivação do poder; é também uma positivação de "valores jurídicos".

O critério de legitimidade do poder constituinte não significa, conforme o

entendimento tradicional, a mera posse do poder, mas a concordância ou conformidade do ato

constituinte com as idéias de justiça radicadas na comunidade. Longe de esgotar as lutas

políticas ou reduzir o sistema jurídico a uma folha de papel, o processo de legitimação

material provoca o fenômeno da dinamização da Constituição, expresso na consagração de

diretrizes de ação política, com a finalidade de sujeitar os Poderes Públicos ao seu

cumprimento. A Constituição deixa de ser mero instrumento de governo, definidor de formas

e competências para dar primazia ao exercício do poder direcionado pela programática social.

No Estado Democrático, a constitucionalização de tarefas e finalidades do Estado,

assim como a força normativa dos princípios constitucionais são requisitos da legitimação

material da Constituição de um país. O processo de legitimação do Direito ultrapassa as

fronteiras do Estado de Direito, decorrendo, pois, o problema da Constituição dirigente, que

deixa de ser monopólio do Estado para pertencer à sociedade, refletindo suas necessidades e

suprindo suas carências. O problema do modelo dirigente de Constituição reside em como

164 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a

compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001. p. 483. 165 Ibid., p. 19. 166 Ibid., p. 111. Poderia, talvez, dizer-se que o fundamento de validade da Constituição (legitimidade) é a

dignidade do seu reconhecimento como ordem justa e a convicção, por parte da coletividade, da sua bondade intrínseca. (destaque do autor).

115

deve ser conformada a realidade, opondo-se a ele o modelo garantista de Constituição,

instrumento clássico de governo, vinculado ao conceito de Estado de Direito, modelo jurídico

destinado a limitar e evitar a arbitrariedade do poder estatal. Não obstante, esclarece

Canotilho que o problema da Constituição não é hoje o de escolher entre uma constituição-

garantia e uma constituição dirigente ou programática, mas sim de otimizar as funções de

garantia e de programática da lei constitucional. 167

Dessa forma, a Constituição dirigente, ao persistir no vínculo entre Estado e

sociedade, esclarece esta relação, dando-lhe maior transparência e controle dos atos políticos

estatais. Não pretende Canotilho acreditar numa unidade da Constituição, desconsiderando a

complexa realidade e as diferentes ideologias que a compõem. A unidade é sua tarefa perante

as tensões dessa realidade, assim como as diversidades não excluem valores de justiça e de

verdade do texto constitucional, cumprindo, pois, com a tarefa de atenuá-las. Aqui está a

“justa medida” das leis constitucionais: devem ser adequadas ao tempo, voltadas ao presente,

mas contemplando o futuro.

Porém, sustenta Konrad Hesse, que a história constitucional demonstra uma

incapacidade de conformação plena das leis constitucionais por si só ao processo político-

social. A força normativa da Constituição depende, para ele, da vontade de Constituição.

Concilia a idéia de Constituição com duas exigências fundamentais do Estado Democrático

Constitucional: 1) a legitimidade material: a necessidade de a lei fundamental veicular os

princípios materiais caracterizadores do Estado e da sociedade; 2) a abertura constitucional:

possibilidade de embate entre ideologias e forças políticas, donde emanam projetos

alternativos de realização dos fins constitucionais. 168

Exposto os fundamentos do modelo dirigente de Constituição, pode-se do mesmo

extrair os limites da legitimidade do Estado constitucional Democrático. A legitimidade opera

em dois planos simultâneos: material e processual.

A legitimidade processual é endereçada ao Poder Constituinte para a fixação e

estruturação do ordenamento jurídico-constitucional mediante regras fundamentais de

titularidade e exercício do poder, elaboradas mediante processos democráticos. A

legitimidade material aponta, por sua vez, para a transparência dos princípios, fins e

programas a estabelecer na constituição e para a necessidade destes princípios se converterem

em princípios básicos de justiça de uma sociedade ordenada.

167 CANOTILHO, 2001, op. cit., p. 74. 168 Ibid., p. 115.

116

Dessa forma, a legitimidade de uma ordem constitucional democrática repousa

num processo de formação e de decisão política, desenvolvido segundo regras formais de

procedimento, orientado para a realização de pretensões básicas da Justiça. O domínio

político justifica-se, deste modo, através de um processo misto de racionalidade formal e

material. O conhecimento da Justiça e a aplicação dos princípios dela decorrentes pressupõem

uma valoração de todo o ordenamento jurídico. A concretização da Justiça pressupõe um

conhecimento apurado de toda a sua essência. Assim, um ordenamento jurídico-constitucional

ganha maturidade para a produção de efeitos concretos ao fundamentar-se no princípio de

Justiça, e validade de uma ordem jurídica valorada de acordo com a idéia do justo. “O

problema central da constituição dirigente é um problema de filosofia prática e de política de

justiça, isto é, da institucionalização jurídico-constitucional dos critérios fundamentais de

justo comum e da política justa.” 169

De fato, partido desta idéia, Canotilho revisou seu modelo dirigente de

Constituição: “os textos constitucionais carregados de programaticidade [...] estão num fosso

sob o olhar implacável de muitos escárnios e mau-dizeres”. 170Além de simbólicas, utópicas,

as constituições dirigentes converteram o Direito em mero instrumento funcional de direção

do Estado, surgindo o problema da discricionariedade legislativa, que faz a atividade de

aplicação das normas constitucionais passíveis de vícios e abusos. Direito e Estado figuram,

pois, como vítimas de uma crise política de regulamentação. Falar em Constituição Dirigente

é o mesmo que falar em tarefas do Estado, o que equivale à legitimação de um Estado

Leviatã. A hipertrofia constitucional gera mais uma ética de convicção que uma ética de

responsabilidade prática: Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional. [...] acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticos e sociais.171

5.8 A legitimidade centrífuga

Celso Lafer, dialogando sobre o pensamento de Hannah Harendt, faz uma rica

exposição sobre a legitimidade e a legalidade do poder. Parte do da necessidade de se encarar

o direito como um sistema aberto de normas. Isto porque o Direito Positivo não mais atende à

sua função de mero instrumento de controle social, como o fazia por meio do Direito Penal; o

169 CANOTILHO, 2001, op. cit., p. 488. (destaque do autor). 170 Ibid., p. 8. 171 Ibid.

117

Direito passou a cumprir medidas protetivas de interesses, além de preservar a ordem

social.172 Trata-se de um Direito Promocional, que se interessa por comportamentos tidos como desejáveis e, por isso, não se circunscreve a proibir ou permitir, mas almeja estimular ou desestimular comportamentos através de medidas diretas ou indiretas. Um Direito desse tipo, que corresponde a novas funções de gestão da sociedade, exercidas pelo Estado, não pode, evidentemente, restringir-se ao tema da validade formal, mas requer, para uma apropriada consideração do princípio da efetividade, a análise da conduta dos destinatários das normas.

O Direito, ao extrapolar seu aspecto formal, cumpre suas funções quando alcança

de maneira eficaz seus destinatários. A sanção, dessa forma, deixa de ser elemento

determinante para a estrita observância da norma, uma vez que o destinatário deve também

acreditar que a norma é boa, justa e oportuna, e por isso cumpri-la. É assim que o autor

pretende, através da pragmática, incluir a dimensão da persuasão - ou a Retórica -, que

abrange a justificação da observância da norma. Foi através desse pensamento que os

jusfilósofos - preocupados com a aplicação da norma e sua efetividade na sociedade -,

revalorizaram o papel da Retórica na vida do Direito, atualmente entendida como teoria da

argumentação.

O argumento da justiça sempre esteve presente no discurso do Direito, sendo uma

das questões mais intrigantes da Filosofia do Direito a busca da fórmula da justiça. Pode-se

dizer que o Direito é algo criado segundo princípios e valores da justiça no plano

deontológico, acrescido do poder no plano ontológico - responsável pela realizabilidade e

positividade do Direito.173 É assim que Justiça – do grego justitia – deriva ou precede o

Direito – jus dicere -, que, por sua vez, vincula o elemento poder.

O surgimento do Estado moderno e o conceito de soberania representaram o

monopólio estatal de dizer a justiça. Neste momento, legalidade e justiça se aproximaram,

uma vez que as normas - ou o Direito Positivo -, eram a vontade do soberano. “O poder

legislativo absoluto do soberano é, portanto, uma razão pública definidora dos significados,

do justo e do injusto, que confirmam a objetividade do mundo político através do princípio da

legalidade.” 174

172 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 59-60. 173 A Deontologia – ou teoria do dever - é um termo introduzido por Jeremy Bentham; corresponde ao ramo da

Ética, cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais; a Deoltologia corresponde à parte da Filosofia que estuda o ser enquanto ser; avalia a natureza humana como comum e inerente a todos os homens.

174 LAFER, op. cit., p. 64.

118

Esse processo de identificação entre justiça e legalidade, que resultou, no século

XIX, no processo de erosão do Direito Natural, exige a aceitação da legitimidade do poder do

Estado moderno. A legitimidade não pode ser vista, então, como conceito independente, mas

apoiada na legalidade, baseada, pois, em técnicas legislativas e em procedimentos do

constitucionalismo moderno.

É por esse motivo que a crise nas interações entre Estado e sociedade civil, a

partir da Revolução Industrial, representou uma crise de legitimidade da legalidade. Este

processo fomentou a crítica de Marx acerca do Estado e do Direito – infra-estrutura

condicionante e superestrutura condicionada -, como instrumentos de dominação de classe e

mecanismos de opressão.

Neste contexto de crise da unidade do Estado e do Direito – que oculta as

contradições e fraquezas dos mesmos refletidas na sociedade - que o pluralismo jurídico surge

como antídoto à crise e como elemento legitimador da ordem social. O pluralismo, como

resposta à crise estatal, atesta e legitima a existência de grupos entre os indivíduos e o Estado;

significa, pois, a descentralização funcional e territorial do Estado, o reconhecimento dos

vários direitos vividos pelos grupos sociais, cedendo maior transparência à ordem social e

política.175

A esta resposta das sociedades contemporâneas à crise do Estado unitário, chama-

se legitimidade centrífuga, que vem resgatando o velho, mas atualíssimo conceito de contrato

social no mecanismo de poder estatal. Dessa forma, considerando Estados Democráticos, não

há que se falar em Estado soberano, dotado de poder de império e acobertado pela

legalidade:176

Ele é muito mais o mediador e fiador de negociações que se desenvolvem entre grandes organizações – como empresas, partidos, sindicatos e grupos de pressão. Os conflitos de interesse entre organizações, que asseguram o pluralismo nas formações sociais complexas, são freqüentemente resolvidos por acordos, que como todos os acordos resultam de concessões recíprocas e duram o tempo que as partes contratantes têm interesse em respeitá-los. Em outras palavras, a unidade do Direito e do Estado não é um ponto de chegada, à maneira do contratualismo clássico na sua explicação da origem da sociedade, do Estado e do Direito no paradigma do Direito Natural; nem um pressuposto não problemático da Dogmática Jurídica, na linha do positivismo, mas sim um processo contínuo e aberto.

O pacto social, na perspectiva de legitimação do Estado pluralista, pretende ser

continuamente renovado, sob o risco de se voltar à condição de unidade estatal, amparada

175 LAFER, op. cit., p. 71. 176 Ibid., p. 72.

119

pela legitimidade centrípeta do poder. Esta legitimidade, vigente no século XIX – até a

Segunda Guerra Mundial - leva à fidelidade ao ordenamento jurídico, ao império das leis e ao

caráter unitário das leis. Quanto às obrigações políticas, a legitimidade centrífuga encontra

sérias restrições em aceitá-la como dever-ser de fidelidade ao ordenamento jurídico, uma vez

que esta fidelidade culminou na legitimidade centrípeta do poder.

A fidelidade ao ordenamento torna-se desejável, sem comprometer o pluralismo

jurídico, quando há equilíbrio entre governantes e governados no tocante à observação e

cumprimento de direitos e deveres, preservando-se, assim, o pacto social. A legitimidade

centrífuga ou tópica, neste compasso, pretende um ordenamento jurídico dinâmico e aberto à

complexidade social, aos diversos direitos individuais e coletivos, não havendo que se falar

em poder do Estado, mas em um dever de mediar todos os conflitos e diferenças sem as quais

não existe sociedade, tampouco há que se falar em história.

5.9 Ética e Legitimidade

É possível que a Ética tenha sido uma das primeiras preocupações que motivaram

a reflexão desde os primórdios da cultura ocidental. Diante de todos os conhecimentos

herdados da civilização grega em seus períodos mais arcaicos, sabe-se que as elaborações

místicas, as religiões, a poesia, a tragédia, a organização da vida política e outras

manifestações do pensamento ocupavam-se intensamente com o significado ético da vida

humana.

O termo ‘ética’ é de origem grega e deriva de êthos (morada). O sentido de êthos

passou, com o tempo, por modificações, denominando, inicialmente, o local da morada,

habitação, passando, depois, a significar a atitude do homem perante a sociedade, seus valores

espirituais em relação ao mundo. Historicamente, a investigação do êthos surgiu na Grécia.

Desde Aristóteles, não houve, na história, filósofo que superasse seus estudos sobre a Ética,

tanto que seus trabalhos ainda hoje representam referenciais - aceitos universalmente.

Ao considerar o homem um animal racional e político, Aristóteles confere-lhe

responsabilidade, no sentido de considerá-lo intimamente ligado ao destino da Polis (cidade).

O bem que o homem procura é o bem comum, decorrente da moderação das paixões: “o bem

é aquilo a que as coisas tendem”. 177 A busca do bem, para o Estagirita, é uma atividade

contínua do ser humano que estende por toda a sua vida. Ao contrário da Ética ideal de Platão,

177 ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 17

120

na Ética aristotélica o homem é legislador de si mesmo; não importa o que ele pense sobre a

Justiça, por exemplo, importa seus atos, justos ou injustos. O homem torna-se bom ou mal,

justo ou injusto na totalidade de sua vivência. Virtudes são disposições de caráter relacionadas

à escolha de ações e paixões; é neste rol de disposições, de opções de caráter que reside a

Ética: escolha prudente de condutas, o meio-termo dentre os excessos. 178

Como Aristóteles bem viu, essa essência ética não se descobre no simples exercício da razão discursiva ou calculadora. Ela designa a presença no ser natural do homem – razão, liberdade, sensibilidade – do imperativo de um dever-ser que lhe impõe a tarefa indeclinável de realizar obedientes a uma lógica do sujeito decorrente da eliminação do pólo metafísico no espaço da razão, absorvem o sujeito ético no desafio de se integrar racionalmente na comunidade ou na história – avatares do antigo Absoluto metafísico – deixando por resolver o problema fundamental da Ética, qual seja o do “tornar-se bom” do sujeito através do exercício permanente da sua “razão prática” como phronesis ou “razão reta” (orthròs logos).

A Ética é, pois, uma vertente da Filosofia que se interessa pelas atitudes de valor

do ser humano. O objeto da Ética, portanto, é a ação humana. A Ética compreende um

conjunto de princípios que orientam as atitudes do homem para o bem-comum. Não há

coerção na Ética; ninguém está obrigado a agir honestamente; o homem é livre para agir e só

pode alcançar a Ética em ações boas, justas e espontâneas. O grande desafio da vida do

homem, pois, é o processo de construção do seu próprio ser, driblando as suas imperfeições,

suas paixões e seus vícios. A Ética é, assim, orientada para o dever-ser, para o exercício da

atividade contemplativa, em conformidade com a virtude. “O homem que exerce e cultiva a

sua razão parece desfrutar a melhor disposição de espírito e ser mais caro aos deuses.” 179

A análise anterior sobre a questão da legitimidade revelou seu conteúdo

valorativo, desejável, independente de quaisquer conceituações, além da sua intrínseca relação

com a Ética. A Legitimidade consiste na qualidade ética do Direito, segundo Luis Fernando

Coelho180. Os modelos hermenêuticos, ou invariantes axiológico-jurídicas – tais como

relativas aos direitos fundamentais - dão o embasamento ético do Direito Positivo, na visão de

Miguel Reale181.

178 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética, Direito e Justiça. Direito e Legitimidade. In: MERLE, Jean-

Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 132. 179 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 234. 180 COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 358. 181 REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito; para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:

Saraiva, 1999. p. 115. A lei deve ser interpretada segundo seu espírito, e não apenas por aquilo que verbalmente enuncia.

121

No mesmo sentido, assegura Falcão182:

Em todo ordenamento jurídico existe um princípio ético básico, do qual deflui a orientação que, incrustrada na Constituição, uniformiza, ideológica e operativamente, o todo do ordenamento. [...] Seja qual for, essa base ética dá sustentação à ordem de Direito da qual seja o travejamento basilar. Para essa base ética é que a ordem jurídica se orienta, mirando-a lá em cima, qual norte ideológico supremo, na incontrastável cimeira de sua normatividade explícita ou implícita.

Ainda que não haja unanimidade de conceitos, seja em relação à Ética ou em

relação à legitimidade, não se pode afastar a unanimidade em reunir tais elementos no

conceito mais recente de Direito – ao menos a tentativa de reconstrução deste -, repensado

sistematicamente após a excessiva formalidade do cético normativismo kelseniano.

A Legitimidade, como condição de validade e efetividade do Direito, como

elemento intrínseco de sistemas democráticos, como atributo do poder, mantém uma estreita

relação com a Ética, porém, não se confundindo com ela. Essencialmente, A idéia de

Legitimidade sempre esteve associada com a existência de fundamentos de “boas razões”,

capazes de suscitar a dignidade do seu conhecimento183. A Ética é ato; é o conjunto supremo

de princípios fundamentais; a legitimidade é potência – o motor do Direito - é a tentativa de

alcançar a concretude do Direito justo e razoável.

5.10 Legitimidade e Justiça

As ações humanas numa comunidade convergem para uma finalidade em comum

que, de acordo com Aristóteles - mentor e precursor da elaboração da teoria jurídica da justiça

a qual ainda informa e inspira pensamento contemporâneo -, é sempre o Bem-comum184. De

fato, impossível e irracional seria pensar que o homem – bom ou mal por natureza – viveria

em busca do mal, em detrimento de seu ethos, sua morada. Embora nem sempre o agir ético

seja alcançado, não se pode olvidar uma tendência, um impulso natural imanente da própria

natureza humana no sentido de preservação da espécie. Neste sentido, a Justiça, princípio

ético por excelência, opera como mediador entre as ações humanas e o Bem-comum. 185

182 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 99. Impõe-se educar a

interpretação a fim de que, diante das alternativas inúmeras de sentido, o intérprete tenha a sensibilidade de optar por aquele mais consentâneo com o interesse social mais largo, importando isso uma referência àquilo que mais de perto diga aos valores fundamentais da humanidade.

183 DINIZ, 2006, op. cit., p. 162. 184 ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 17. 185 Id., Política. Digital. LibrosEnRed, 2004, p. 91. (Ciências Políticas). “Todas las ciencias, todas las artes,

tienen un bien por fin; y el primero de los bienes debe ser el fin supremo de la más alta de todas las ciencias;

122

Todas as ciências, todas as artes, têm um bem por finalidade; e o primeiro dos bens deve ser o fim supremo da mais alta de todas as ciências; e esta ciência é a política. O bem na política é a justiça; em outros termos, a utilidade geral. Acredita-se, comumente, que a justiça é uma espécie de igualdade; e esta opinião vulgar está até certo ponto de acordo com os princípios filosóficos de que nos temos servido na Moral. Existe um acordo, ademais, relativo à natureza da justiça e os seres humanos que se aplica, e se convém, também, que a igualdade deve reinar necessariamente entre os iguais [...].

A Política aristotélica possui estreita ligação com a Ética, uma vez que consiste na

arte de bem governar - organizar e regular o convívio de uma pluralidade diversificada de

homens em determinada sociedade. Política, como necessidade imperiosa da vida humana,

pressupõe indivíduos dialeticamente organizados, enredados num mesmo objetivo, qual seja a

realização da Justiça. Assim, a tarefa da Política esta diretamente relacionada com a grande

aspiração do homem moderno: a busca da felicidade; ou seja, a satisfação pessoal só é

possível mediante a cooperação. 186

Com efeito, a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno sentido do termo, porque é o exercício atual da virtude completa. Ela é completa porque a pessoa que a possui pode exercer sua virtude não só em relação em a si mesmo, como também em relação ao próximo [...].

Da classificação das categorias filosóficas aristotélicas - a justiça distributiva, a

corretiva e a política - emanam diversos elementos configuradores da Justiça – até hoje

consagrados pela Doutrina como essenciais - ora como critérios, em seus aspectos formal e

material. Assim, a Justiça pressupõe alteralidade, pois, uma vez praticada em benefício

próprio, não é justiça, e sim vil egoísmo. Dela também emanam a igualdade, a

proporcionalidade, a intermediariedade, a voluntariedade, a deliberação e a conformidade com

a lei. Aristóteles só concebe a categoria de leis justas e legítimas. O Direito, assim, sempre

será legítimo, pois, as leis justas orientam o indivíduo à prática do Bem. No mesmo sentido,

“admitir que a lei não carece de fundamentação ética é o mesmo que justificar a atuação de

Estados totalitários e legitimar leis que não emanam do Estado de Direito”. 187

Sendo a Ética ato - o conjunto supremo de princípios fundamentais -, a

legitimidade é potência – o motor do Direito na tentativa de alcançar a concretude do Direito

y esta ciencia es la política. El bien en política es la justicia; en otros términos, la utilidad general. Se cree, comúnmente, que la justicia es una especie de igualdad; y esta opinión vulgar está hasta cierto punto de acuerdo con los principios filosóficos de que nos hemos servido en la Moral. Hay acuerdo, además, en lo relativo a la naturaleza de la justicia, a los seres a que se aplica, y se conviene también en que la igualdad debe reinar necesariamente entre iguales [...].”

186 ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 105. 187 NADER, Paulo. Filosofia do direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 75.

123

justo e razoável -, a Justiça nada mais é do que o conteúdo da legitimidade. Um Direito que se

pretende legítimo deve ser estruturado em conformidade com as leis, segundo necessidades

dos indivíduos, deve conter justo procedimento judiciário acessível a todos, deve conter

mecanismos justos de participação popular nas diretrizes políticas e, sobretudo, deve estar

subordinado aos princípios éticos.

É assim que os termos Legitimidade e Justiça oscilam em grande parte da Doutrina

como sinônimos. Embora não sejam sinônimos, são indissociáveis e complementares. Justiça

é o valor excelso que há de orientar na elaboração e aplicação do Direito. A Justiça

substancial, aquela que efetivamente proporciona o seu a cada um, é uma síntese de diversos

valores jurídicos. Assim, uma vez alcançada, outros valores se realizam, como a paz social, a

liberdade, o bem-comum.188

Dessa forma, a Justiça, princípio ético mais completo, em suas multifaces, reúne

outros micro-princípios (no sentido de não serem auto-suficientes) dela decorrentes: a

dignidade da pessoa humana, a igualdade, a proporcionalidade, a legalidade, o princípio

democrático, o devido processo legal, a soberania popular, dentre tantos outros que a

Constituição Federal de 1988 não se eximiu de enunciar. A Legitimidade, dessa forma, é o

veículo de todos esses princípios decorrentes da Justiça, donde que ela cria os mecanismos de

fluidez do Direito, orientado para sua finalidade mediata, qual seja a realização da Justiça. Da

mesma forma, o paradigma procedimentalista do Direito procura proteger, antes de tudo, as

condições do procedimento democrático189. Assim, devemos distinguir a Justiça enquanto

princípio ético – transcendente e necessário à Política -, os princípios de Justiça (veiculados

pela legitimidade nos vários procedimentos) e a conseqüente Justiça material, concretizada no

meio social.

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais. Ela exige um conjunto de

princípios que fornecem o modo de atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da

sociedade, assim como distribuem de forma apropriada os benefícios e encargos da

cooperação social. No entanto, tais princípios são escolhidos sob um véu de ignorância, o que

garante que ninguém se favoreça com as próprias escolhas. Assim, os princípios de justiça

decorrem de uma escolha eqüitativa. Neste sentido, Rawls considera o princípio da Justiça

como uma tendência e não como um padrão invariável de escolha correndo riscos e perigos –

psicológicos e sociais - de ser anulado. A interpretação da Justiça deve ser feita levando em

188 NADER, op. cit., p. 57. 189 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre faticidade e validade. Tradução de Flávio B.

Subenechler, UFMG. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 2. p. 183.

124

consideração esses fatos; porém, a tendência deve ser forte e não facilmente anulada sob pena

do desenvolvimento – em termos culturais, políticos, educacionais, econômicos - indesejado

dos seres humanos. 190 Um plano racional – limitado, como sempre, pelos princípios do justo – permite que uma pessoa se desenvolva, ma medida permitida pelas circunstâncias, e realize suas habilidades tanto quanto possível. Além disso, provavelmente seus parceiros apoiarão essas atividades, já que elas promovem o interesse comum, e também as apreciarão como manifestações da excelência humana.

Um Ordenamento Jurídico que se pretende legítimo torna-se justo não por

estampar incansavelmente na Constituição diversos princípios éticos referentes a direitos

fundamentais, mas pela prática dos mesmos. Seguindo a lição – talvez seu legado mais nobre

- de Aristóteles: os homens tornam-se justos não por saberem o que é a Justiça, mas por

praticarem a Justiça; tanto mais justos serão quanto mais a Justiça praticarem. Da mesma

forma, este é o própósito dos legisladores – e extensivamente do Judiciário e do Executivo:

quem não consegue alcançar tal meta, falha no desempenho de sua missão, e é exatamente

neste ponto que reside a diferença entre a boa e má Constituição – ou entre o bom e o mal

Governo.191

5.11 Legitimidade e Direito de punir

Após as considerações sobre a questão da Legitimidade - suas diversas vertentes

teóricas - é possível aplicá-las ao Direito Penal, mais precisamente no Direito de Punir -

enquanto um dos procedimentos do Estado Democrático de Direito. Como foi visto no

Capítulo 4, o Direito de Punir, poder exclusivamente estatal, consiste no direito, mais

precisamente, no dever que o Estado tem de punir condutas de acordo com as previsões legais

de crimes ou infrações penais. É claro que, diante de uma conduta típica, não resta alternativa

ao Estado, senão aplicar a sanção prevista, legalmente adequada, e cumprindo, pois sua tarefa.

“No Estado de Direito, o Estado se faz presente não apenas como órgão sancionador, mas

como ser dotado de direitos e deveres.” 192

A realidade demonstra um descompasso entre Direito Constitucional e Direito

Penal. “A influência dos ‘valores constitucionais’ no sistema penal exercita-se no campo das

relações entre política e Direito Penal: relações, a um só tempo, estreitíssimas e,

190 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 474. 191 ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 41. 192 NADER, 1996, op. cit., p. 60.

125

potencialmente conflituosas.” 193 Tão estreitas que tais relações denotam um conflito

constante: o indivíduo que lesiona os bens jurídicos sociais mais relevantes versus a

“vingança” estatal – intervenção mais aguda na esfera individual. É por isso que o

mandamento constitucional é claro ao proteger e garantir a intangibilidade da dignidade

humana, porém, resguardando o jus punieni, sob pena de instrumentalização do Direito Penal.

Os limites impostos ao Direito Penal disciplinam-no, impedindo que se transforme num mero

instrumento político. É nesta perfeita relação que deve se basear a intervenção do jus puniendi

na esfera de liberdade do indivíduo, permitindo a valorização constitucional do Direito penal,

não somente como limite à liberdade, mas, também, como instrumento de liberdade contra as

agressões provenientes do Estado ou dos particulares.194

No entanto, as funções de prevenção e a ressocialização do Direito Penal parecem

ter cedido lugar a uma punição inesgotável e sem limites - os exemplos do capítulo 4 bem

demonstram o fracasso de suas funções. Porém, o aspecto mais preocupante desta ineficácia

reside no termo “ressocializar”. A ressocialização tem como pressuposto um indivíduo ou um

grupo socializado. A socialização, por sua vez, corresponde a todo o processo mediante o qual

um indivíduo se torna membro operante de uma comunidade, assimilando valores, a cultura e

hábitos inerentes a ela.

O processo é infindável, realizando-se através da constante comunicação e de

estímulos da própria sociedade e do Estado. É através da socialização que o indivíduo pode

desenvolver a sua personalidade e ser admitido na sociedade. A socialização é, portanto, um

processo fundamental não apenas para a integração do indivíduo na sua sociedade, mas

mecanismo primordial à continuidade dos sistemas sociais. A presença do Estado é vital neste

processo, pois cabe a ele dispor de todos os recursos para o desenvolvimento da

personalidade: escolas, universidades, trabalho, saúde, salário mínimo (e não mísero), cultura,

acesso à Justiça, lazer, tributos acessíveis, dentre outros.

Por outro lado, a ressocialização visa, pois, integrar novamente um indivíduo

socializado que se desviou das regras, dos costumes, das crenças, da cultura de uma

determinada comunidade; ou seja: dar-lhe uma segunda chance. Pelo visto, a adolescente de

Indaiatuba presa e estuprada na sela de homens, os indivíduos que cometem crimes

hediondos, e tantos outros que caem na malha do sistema penal não foram socializados. Como

pretender, o sistema, uma ressocialização dos que não foram socializados? Não bastasse, a 193 PALAZZO, Francesco. C. Valores constitucionais e direito penal. Tradução de Gérson Pereira dos Santos.

São Paulo: Sergio Antonio Fabris, 1989. p. 16. 194 JESHECK, Lehrbuch dês Strafreshts, A. T., Berlim, 1978. apud PALAZZO, 1989, op. cit., p. 18.

126

observação das condições de muitos presídios acaba por dessocializar os indivúduos, tratados

como animais, permitindo que continuem praticando crimes via celulares, permitindo que

consumam drogas dentro do cárcere e, conseqüentemente, promovendo a assimilação do

caráter criminoso.

O Governo e a população em geral têm se preocupado nos últimos tempos com os

altos índices de criminalidade e a consolidação da prática do crime como atitude que

compensa. Em países de “desenvolvimento tardio”, como o Brasil, tais índices crescem

exorbitantemente, fugindo do controle do Direito Penal. A publicação dos índices de

criminalidade e a sua interiorização alertam diariamente o Poder Público que algo não vai

bem ao controle dos crimes. O Governo Federal anuncia investimentos, novas medidas – ora

abrindo mão do seu dever de punir, ora empregando meios violentos de ação - com o intuito

de refrear a criminalidade. Ledo engano.

A transformação deve vir paulatinamente com a introdução de medidas que

efetivem os direitos fundamentais a todos os indivíduos e não através de medidas para sanar

problemas sociais em curto prazo, sob pena de um processo interminável de deslegitimação.

De acordo com a teoria neopositivista de Habermas, a legitimidade carece ser renovada de

forma perene. Não se pode exigir plena eficácia diante da complexidade da máquina estatal;

no entanto, há que se considerar os infindáveis interesses divergentes e o pluralismo presente

nas modernas sociedades em todas as suas esferas: política, jurídica, social, econômica,

finaceira, tecnológica.

Segundo a teoria sistêmica de Luhmann, cada esfera da sociedade plural

corresponde a um sistema autopoiético, que se auto-reproduz à medida que se torna mais

complexo. O Direito, como instrumento regulador do comportamento humano, corresponde,

segundo lições do ilustre Professor Freitas, a um grau de maturidade da humanidade. O

Direito permitiu, ao longo da evolução humana, que os homens se organizassem em torno de

um mesmo objetivo. O desafio do Direito, pois, é atuar como o mais importante sistema

social, sem o qual a sociedade não sobreviveria, zelando pelo equilíbrio dos diversos e

conflitantes interesses, sem perder de vista a finalidade maior do homem, que é a busca da

paz, ou, como quer Aristóteles, a busca da felicidade.

As sociedades modernas, devido à complexidade e ao pluralismo evidente,

oferecem um grau maior de dificuldade quanto à organização, estrutura de todos esses

sistemas. Não basta, pois, garantir-se os procedimentos, o aspecto funcional da estrutura

social. Neste sentido, Habermas implementa a teoria sistêmica acrescentando o ingrediente

humano, unificador, universal, transcendente às diversidades humanas: a Ética. Propõe, para

127

tanto, a teoria da ação comunicativa, através da Ética discursiva inserida no seu paradigma

reconstrutivo de justificação. O exercício da comunicação corresponde à prática da Ética,

fundamental no processo de legitimação do Estado Democrático de Direito.

Canotilho idealizou uma Constituição Dirigente, prolixa, eficaz, como antídoto

para legitimação dos Ordenamentos Jurídicos. Porém, retratou-se ao constatar sua não

concretização no plano material. Há que se insistir, porém, no modelo dirigente e garantista

dos documentos constitucionais que selam o contrato social, preservam direitos e deveres,

impõem diretrizes e metas a serem alcançadas, além de irradiar sua vontade a todas as leis

infraconstitucionais. A este modelo, porém, para que seja efetivo, deve ser introduzido o

caráter sistêmico idealizado por Luhmann, além da presença determinante da Ética nos

procedimentos, nas atitudes de particulares e dos Órgãos Públicos.

A ilegitimidade pode ser vista na totalidade do ordenamento jurídico, porém,

derramando seus efeitos mais sórdidos e cruéis no âmbito do Direito Penal. O direito de punir,

como micro-sistema do Direito, e ultima racio deste, não pode arcar com a ilegitimidade de

todo um sistema, assim como não deve se reduzir a uma mera regulamentação do Estado, ou

uma máquina irracional de controle e reprimenda social. Não cabe ao Estado vigiar para

punir, mas cumprir seus deveres para obter a legitimidade para aplicar penas.

128

CONCLUSÃO

Existem inúmeras teorias que depositam o problema da legitimidade do Direito

Penal na sua estrutura, no seu aparato funcional repressor e atropelador dos direitos humanos

fundamentais. O escopo do presente trabalho, porém, é identificar o núcleo de ilegitimidade

do Direito de Punir no próprio Direito Estatal. É evidente que o Sistema Penal clama por

reformas no sentido de garantir condições para que todo delinqüente possa reingressar na

sociedade e dela fazer parte sem destoar de seu modus vivendi.

O problema do desequilíbrio social tem início no topo da pirâmide do

Ordenamento Constitucional, em particular, na previsão de princípios fundamentais

hierarquicamente superiores a todas as outras normas; muitos inoperantes. A ineficácia da

Constituição dirigente, a princípio pela desobrigação estatal para com seus deveres é o ponto

de partida para o processo de deslegitimação que desemboca mais ferrenhamente no Direito

Penal. Cabe a este sistema suportar as conseqüências mais grave deste desequilíbrio, uma vez

que é o mecanismo mais severo de disciplina e controle social, único autorizado a privar o

homem de sua condição inata, ser livre.

A discussão em torno das obrigações constitucionais, fundamentada por princípios

constitucionais, ratificam o dever do Estado para com o povo, estando a ele subordinado. O

mandamento constitucional é claro ao estabelecer que o poder emana do povo, que o exerce

por meio de seus representantes legais195. Esta escolha, embora inicie um processo

democrático, consolidando-o, não o encerra. O princípio democrático não se esgota por força

da legitimidade, que o orienta na esfera estatal no sentido de renovação e aceitação perene da

coletividade.

O problema da legitimidade se torna crítico com o Estado Moderno,

transformando-se no ponto básico de conexão entre o Direito e a Política. Como verdadeira

ciência do Estado e, por sua vez, do poder, a Política representa a orientação ou a atitude de

um governo em relação a certos assuntos e problemas de interesse público: política financeira,

política educacional, política social, política agrária, dentre outras. O surgimento de novas

esferas de poder é o elemento peculiar e constitutivo dos cenários político e jurídico da

modernidade. O processo decisório passa, inevitavelmente, pela dialética entre embate e

195 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de

outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 1°, § único.

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conciliação de interesses traduzidos em um pacto, base de todo o sistema jurídico-

democrático atual.

Diante dos exemplos aqui já denunciados, torna-se desnecessário registrar mais

uma vez a perversidade dos reais indicadores do desequilíbrio social. Do ponto de vista das

políticas públicas, ou dos direitos sociais que elas materializam, a tarefa dos Governos

consiste na tomada de ações decisivas para se garantir o amplo apoio e financiamento público

para as políticas sociais, subordinada às decisões em termos de direitos sociais à

disponibilidade de caixa, finalmente conhecidas após as decisões de cúpula a respeito das

taxas de juros, superávit fiscal, câmbio, política tributária.

Todavia, seguem inertes as limitações ao processo de valorização e

desenvolvimento das garantias individuais e coletivas na esfera dos direitos sociais, que mais

do que nunca se mostram imprescindíveis para o processo de legitimação do poder estatal.

Imperioso reconhecer que a má articulação do poder em detrimento dos necessários

investimentos nas áreas da saúde, educação, assistência social, previdência, geração de

emprego e renda, segurança alimentar, reforma agrária, dentre outras, maculam o exercício do

poder estatal e, por sua vez, a Política e o Direito.

Impõe-se, sobretudo, uma retomada de consciência Ética nas esferas política e

jurídica, fazendo do Direito instrumento justo e legítimo de ordenação e integração social. A

presença da Ética na comunicação, na elaboração de leis, na interpretação do Ordenamento

Jurídico como um todo, e na materialização de seus efeitos, na elaboração e realização de

Políticas Públicas irrigam a legitimidade, impedindo que ela se esgote.

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