JUNIOR, Eduardo_A Questão Do Iluminismo Em Portugal

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EDUARDO TEIXEIRA DE CARVALHO JUNIOR VERNEY E A QUESTÃO DO ILUMINISMO EM PORTUGAL Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná Orientador: Prof. Renato Lopes Leite Co-orientador: Prof.Vinícius de Figueiredo CURITIBA AGOSTO DE 2005

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  • EDUARDO TEIXEIRA DE CARVALHO JUNIOR

    VERNEY E A QUESTO DO ILUMINISMO EM PORTUGAL

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Histria,Curso de Ps-Graduao em Histria,Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes,Universidade Federal do Paran

    Orientador: Prof. Renato Lopes LeiteCo-orientador: Prof.Vincius de Figueiredo

    CURITIBAAGOSTO DE 2005

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  • TERMO DE APROVAO

    EDUARDO TEIXEIRA DE CARVALHO JUNIOR

    VERNEY E A QUESTO DO ILUMINISMO EM PORTUGAL

    Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no Curso dePs-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas, letras e Artes da UniversidadeFederal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

    Orientador: Prof Dr Renato Lopes Leite Departamento de Histria UFPr

    Prof. Dr Vincius de Figueiredo Departamento de Filosofia UFPr

    Prof Dr Estevo Chaves de Rezende Martins Universidade de Braslia

    Prof Dr Helenice Rodrigues da Silva Departamento de Histria UFPr

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    SUMRIO

    LISTA DE ABREVIATURAS ...................................................................................... iiiRESUMO ........................................................................................................................ ivABSTRACT .................................................................................................................... vINTRODUO .............................................................................................................. 91 ILUMINISMO: UM PROBLEMA CONCEITUAL ............................................... 141.1 Iluminismo na Historiografia ................................................................................... 14

    1.1.2 Iluminismo nas Cincias Sociais ........................................................................... 191.2 O AMBIENTE INTELECTUAL PORTUGUS ...................................................... 231.2.1 As Tentativas de Construo de uma Esfera Pblica Literria ............................... 231.2.2 A Imprensa Portuguesa no Sculo XVIII .............................................................. 261.2.3 Pombal e seu Projeto Poltico ................................................................................ 302 O PENSAMENTO MODERNO DE VERNEY ...................................................... 352.1 VERNEY: PORTUGUS OU COSMOPOLITA? ................................................... 352.2 O SISTEMA VERNEYANO ..................................................................................... 382.3 VERNEY E A QUESTO DE GNERO ................................................................. 452.4 REFLEXES APOLOGTICAS .............................................................................. 473 ARQUTIPOS DA MODERNIDADE PORTUGUESA ........................................ 523.1 PARADOXO ENTRE ROMA E PORTUGAL ......................................................... 523.1.1 A conscincia italiana ............................................................................................. 523.2 PORTUGAL E A CULTURA EUROPIA .............................................................. 553.2.1 A Lenda Negra ........................................................................................................ 553.2.2 A Herana Negra ..................................................................................................... 59CONCLUSO ................................................................................................................ 63REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 72FONTES .......................................................................................................................... 76

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    VM - Verdadeiro Mtodo de Estudar

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    RESUMO

    Representaes do esprito iluminista em Portugal no sculo XVIII no correspondem aosparmetros de uma esfera pblica habermasiana, mas esforos isolados na tentativa deconstitu-la. Verney, o iluminista portugus estrangeirado, o crtico da cultura portuguesasetecentista, passou a maior parte de sua vida em Roma, de onde assistia ao atraso das idiasna comunidade letrada portuguesa. O esprito crtico no criou razes em Portugal. Nenhumdos fenmenos associados ao Iluminismo teve expressividade em terras lusitanas, fenmenosestes representados pela suposta descoberta do homem mediante a razo e a expanso dacomunidade de crticos atravs de clubes, sales, folhetos e jornais. Essa relao entre culturae sociedade, abstrato e concreto, constitui uma articulao tensa, qual Habermas atribui umamudana estrutural da esfera pblica. As idias modernas chegaram a Portugal, porm no sedesdobraram em debates e discusses pblicas, ficando restritas a alguns focos isolados.Focos ilustrados pelos representantes deste movimento. Representantes como Verney, cujoprojeto era tirar Portugal de seu atraso, ou seja, ilumin-lo.

    Palavras-chave: Iluminismo; Verney; Portugal.

  • vABSTRACT

    Representations of the Enlightenment spirit in Portugal during the XVIII century do notcorrespond to the parameters of a public "Habermasian" sphere, but isolated efforts in anattempt to get it constituted. Verney, the Portuguese enlightenment thinker, critic of thePortuguese culture during the eigliteenth-century, spent most of his life in Rome. Where hewatched the delay of the ideas in the Portuguese literate community. The critic spirit did notcreate roots in Portugal. The Enlightenment associated phenomenon had irrelevant effect inPortuguese lands. Such phenomenon, represented then by the discovery of man by reasoningand the community expansion of critics by clubs, parlors, magazines and journals. Thisrelation between culture and society, the abstract and theconcrete, constitute a tensearticulation, to which Habermas attribute a structural change in the public sphere. Modernideas arrived in Portugal. However, they did not unfold debates and public arguments,restricted to a few isolated spots. These spots are illustrated by the representatives of thismovement. Representatives as Verney, whose project wass removing Portugal from its delay,enlightening them.

    Key-words : Enlightenment; Verney; Portugal.

  • vi

    Dedico este trabalho a minha noiva e futura esposa Vanessa pelo apoio e incentivo.

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    Agradeo a toda minha famlia e amigos, que sempre meapoiaram nos momentos difceis. Ao meu orientador,Renato Lopes Leite, pela dedicao e pela tica naorientao das pesquisas, e a Vincius de Figueiredo,pela co-orientao.

  • INTRODUO

    Saem luz, Reverendssimos Padres, as cartas de um autor moderno, as quais at agoracorreram manuscritas por algumas mos; mas, chegando s minhas, e conhecendo eu quepodiam utilizar a muitos, me resolvi imprimi-las. O argumento delas este : Certo Religiosoda Universidade de Coimbra, homem mui douto, como mostra nas suas cartas, pediu a umReligioso Italiano, seu amigo, que vivia em Lisboa, que lhe desse algumas instrues, em todoo gnero de estudos, o que dito Barbadinho executa em algumas cartas, explicando-lhe, emcada uma, o que lhe parece, e acomodando tudo ao estilo de Portugal. Este autor escreveu-assem ao menos suspeitar que se poderiam imprimir, como consta de alguns perodos destas, queno imprimi, e de outras que conservo, em que declara com mais individuao o motivo destacorrespondncia, e explica vrias coisas que aqui no se acham. Onde, para consolar o ditoautor, que no sei se ainda vive, e fazer o que desejava, no imprimi seno as que mepareceram necessrias; e ainda nestas ocultei os nomes dos correspondentes e de algumaspessoas, que nelas se nomeavam, parecendo-me justo e devido no revelar os segredos dascorrespondncias particulares, principalmente quando podia conseguir o fim de utilizar oPblico sem prejuzo de terceiro. As cartas encadeiam to bem umas com outras, que sepodem chamar um mtodo completo de estudos.1

    A idia central do presente trabalho observar a possibilidade de uso do conceito deesfera pblica literria2 para Portugal do sculo XVIII, e dessa forma, analisar a insero dacultura portuguesa no processo de mudanas do sculo XVIII. Nesse sentido, buscamosrelacionar alguns aspectos centrais do Iluminismo dos grandes centros europeus, enfocando ocaso portugus, tanto no que se refere ao pensamento quanto dimenso social domovimento. Para refletir sobre essa questo, apresentado Lus Antnio Verney, que,conforme a historiografia, teve um papel central nesse processo em Portugal e sua obra o

    1 Carta de apresentao do impressor Antnio Balle da obra Verdadeiro Mtodo de Estudar, de Luis

    Antonio Verney, publicada em 1746 em Portugal.. Estudos Lingusticos, v. 1, p.2.2 Procuramos entender o Iluminismo associado ao conceito desenvolvido por Habermas de esfera

    pblica literria. Este posicionamento terico, que ser explorado no primeiro captulo deste trabalho, parte doprincpio de que a instncia das idias possui estreita relao com as prticas sociais. A esfera pblica literriaencontra as suas instituies nos cafs, nos sales e nas comunidades de comensais. De acordo com Habermas, condio sine qua non para o desenvolvimento de um espao pblico de crtica. Provavelmente Habermasutilizou o conceito de Repblica das Letras, expresso comum entre os philosofes do sculo XVIII, pararefletir sobre a estrutura social que estava por traz do Iluminismo. Cf. HABERMAS, Jrgen. Mudanaestrutural da Esfera Pblica: investigaes quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 2003. p.42-68. Habermas tem sido referenciado por historiadores que investigam a Histria doConhecimento. Peter Burke estende o conceito de esfera pblica para outros momentos da Histria, como ocaso da China, por exemplo, e para outras matrizes sociais do conhecimento, nos lembra sobre a ligao entre oconhecimento e prticas sociais e a importncia dos elementos que possibilitavam um elo entre idias eindivduos. Cf. BURKE, Peter. Uma Histria social do Conhecimento. p. 59, p. 51-52. BRIGGS, Asa;BURKE, Peter. Uma histria social da mdia: de Gutemberg internet. Rio de Janeiro : Jorge Zahar , 2004.p. 81.

  • 8 Verdadeiro Mtodo de Estudar, contextualizada dentro do quadro geral do pensamentoeuropeu do sculo XVIII.3

    A partir do sculo XV, inicia-se um processo de reformulao do pensamento em todaa Europa. Acompanhado da Revoluo Industrial e da Revoluo Francesa, este conjunto detransformaes culminar com a era da modernidade. Da Renascena ao Iluminismo, agrande multiplicidade de temas ampliou o horizonte de idias sobre o mundo, os homens esuas relaes. Embora aparentemente dispersiva, essa multiplicidade de temas partia de umelemento comum: a razo.4

    No que se refere ao campo das idias, esse processo, que culminaria com o movimentodenominado Iluminismo, tinha como caracterstica principal a crtica da autoridade, datradio cultural e institucional, fazendo uso da razo para dirigir o progresso da vida emtodos os aspectos da sociedade. Essa definio genrica, que gera muita confuso,procuraremos discutir no primeiro captulo. Sobre este aspecto, Robert Darnton, especialistado sculo XVIII, comenta sobre a percepo confusa do conceito de Iluminismo: OIluminismo inflado pode ser identificado com toda a modernidade, com quase tudo o que seagrupa sob o nome de civilizao ocidental, e assim pode ser responsabilizado por quase tudoque causa descontentamento, especialmente nos campos dos ps-modernistas eantiocidentalistas.5

    Na gnese desse processo, a pennsula Ibrica possui uma especificidade cultural epoltica, associada ao longo contato com o Isl e com a Contra-Reforma. Houve uma granderesistncia s idias dos chamados modernos.

    Essa particularidade levaria a uma estreita relao entre os domnios poltico ereligioso, de tal sorte que Espanha e Portugal teriam se fechado sobre si mesmos, negando amodernidade que nascia. Em relao ao posicionamento de Portugal perante a culturaeuropia do Renascimento, Dias compreende o problema da seguinte forma: A culturaportuguesa no ficou completamente margem desta corrente de idias e conhecimentos. Oque se tem dito em contrrio , quando menos exagerado. Ficou porm, margem doambiente que a tornou possvel e do esprito que a caracteriza.6

    Pela sua importncia e complexidade, esta questo tem suscitado interpretaes vrias,at mesmo contraditrias. Na historiografia do assunto, muito comum o uso do conceito de

    3 Para Silva Dias, o obra de Verney teve o mesmo papel do discurso cartesiano na Frana, que marcou a

    oposio entre o moderno e o novo no pensamento europeu. Cf. DIAS, Jos Sebastio da Silva. Portugal e aCultura Europia. Coimbra Editora: Coimbra, 1952. p. 204.

    4CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustracion. Mxico : Fondo de Cultura Economica, 1963. p.21.5 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington : um guia no convencional para o

    sculo XVIII. So Paulo : Companhia das Letras, 2005. p.25.

  • 9modernidade associado a Portugal do sculo XVIII, sobretudo contextualizado ao perodopombalino.7 A idia de um projeto poltico conduzido por Pombal e seus colaboradoreslevaria a historiografia a pensar Ilustrao e governao pombalina como indissociveis.8

    Queria-se uma cultura moderna, sob a gide do Estado secular, sustentada por uma baseespiritual religiosa.9

    Havia um conflito entre a autoridade epistemolgica, sustentada na palavra de Deustutelada pela Igreja, e a autoridade baseada na razo, tutelada pela Repblica das Letras. Ouseja, um conflito entre f e razo, reivindicando a noo de verdade. Na Idade Mdia, anatureza era criao de Deus. Portanto, a lei divina, atravs das escrituras, era capaz derestituir ao homem o verdadeiro conhecimento de si e das coisas. Atravs de um processohistrico complexo, houve uma mudana desta nfase em que o homem passou a ver Deuscomo uma expresso da natureza.10 Essa transformao abriu um novo caminho para ohomem, atravs de um novo olhar sobre a natureza, passando a fazer uso da observao e deinstrumentos criados para esse fim. Isso permitiu concluses inditas, como o sistemaheliocntrico de Coprnico, Idias que, no entanto, estavam em desacordo com ospressupostos de uma viso aristotlica do mundo. Esse novo posicionamento se tornou umaameaa constante autoridade da Igreja. Mesmo assim, havia certa liberdade que possibilitoua proliferao e difuso dessa nova forma de conhecimento.

    Estudos histricos e filosficos tm destacado centros da Europa que promoveram asobras mais notveis desse perodo, lugares onde teria ocorrido maior liberdade. Roma, quedeveria servir como referncia de autoridade, no se mostrou totalmente eficiente no controledessas idias. Na capital da Igreja, o jesuta Boscovisch produziu idias muito originais apartir do sistema newtoniano em 1748, em pleno sculo XVIII.11 O que aponta para outraparticularidade interessante deste problema: como o poder a Igreja, no seu prprio centro,

    permitiu a existncia de idias to avanadas? Como explicar esse paradoxo? Poderamosafirmar que o debate iluminista aconteceu em toda a Europa?

    6 DIAS, op.cit., p.70.

    7 Cf. GAUER, Ruth Maria Chitt. A modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772.

    Porto Alegre : Edipucrs, 1996.8 Ibid. , p. 332. Sobre este aspecto ver tambm. MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal :

    paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996.9 Ibid. , p.430.

    10 HAWTHORN, Geofrey. Iluminismo e Desespero: uma histria da Sociologia. Rio de Janeiro : Paz e

    terra, 1982. p.35.11

    CASINI, Paolo. Newton e a Conscincia Europia. UNESP: So Paulo, 1995.

  • 10

    Verney, voz dissonante dentro da cultura letrada portuguesa do sculo XVIII, poderiaser caracterizado como um iluminista estrangeirado. Sua obra, Verdadeiro Mtodo, publicadaem 1746, influenciou a Reforma da Universidade de Coimbra e causou grande impacto nacomunidade letrada portuguesa. Trata-se de um conjunto de cartas endereadas a uma pessoadesconhecida pela Histria, provavelmente um funcionrio da corte. Demonstrando profundainsero nas principais discusses da poca, prope uma reforma pedaggica de ensino, o quefatalmente significaria uma crtica aos mtodos escolsticos dos jesutas:

    Devo, porm, nesta primeira carta, fazer algumas protestas.Primeira: Que eu no acuso ou condeno pessoa alguma deste Reino. Se s vezes no agradamas opinies, nem por isso estimo menos os sujeitos e autores. Distingo muito o merecimentopessoal, do estilo de cada um ou mtodo que observa; e posso fazer esta separao, semofender pessoa alguma. Esta reflexo, para V.P., suprflua, pois conhece mui bem o meunimo, e sabe que eu s pego na pena para lhe dar gosto. Mas, porque poder ler esta carta aalgum ignorante ou malvolo, que entenda que eu, dizendo o que me parece dos estudos, comisto digo mal da Religio da Companhia de Jesus, que neste Reino a que principalmenteensina a Mocidade, devo declarar que no esse meu nimo. Eu venero esta Religiodoutssima, por agradecimento e por justia.12

    Verney viveu a maior parte de sua vida em Roma, como representante portugus nacorte papal. Nas cartas, percebem-se o desejo de iluminar a cultura portuguesa, e a relaotensa entre identidade e alteridade, mostrando-se um tpico cosmopolita da poca.Possivelmente, as idias defendidas por Verney representavam as de certo grupo depensadores reformadores portugueses.

    A fonte utilizada para a anlise foi a edio organizada pelo professor AntnioSalgado Jnior, editada em 1950. Antes dessa data, havia apenas as edies de 1746 e 1747.13

    A opo por esta edio justifica-se, tanto por questes de acesso, quanto por razes prticas.A reedio do professor Salgado Jnior traz uma ortografia atualizada e organizada emgrupos temticos, com comentrios sobre as referncias utilizadas por Verney. A obra estorganizada da seguinte forma:

    Vol. I Constitudo pelas Cartas I - IV: Lngua Portuguesa, Gramtica Latina, Latinidade e

    Lngua Orientais. Intitulado: ESTUDOS LINGSTICOS.

    12Esta uma das primeiras observaes colocadas na introduo das cartas, sobre os verdadeirospropsitos de Verney: V.M. V I. Estudos Lingsticos. p. 21. Segundo DIAS, no foi a hostilidade aos jesutasque motivou seus escritos, mas a adeso a um novo iderio cultural - admitido em Roma -, como repetidamenteobserva nos seus escritos (Cf. VERNEY, Respostas s Reflexes, p.79; Parecer, p. 4-6), o que o levou a escrevero Verdadeiro Mtodo da maneira que o fez. Cf. DIAS, op.cit., Nota R, p.282.

    13 V.M. V.I, p.X

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    Vol. II Constitudo pelas Cartas V-VII: Retrica e Poesia. Intitulado: ESTUDOS

    LITERRIOS.

    Vol. III Constitudo pelas Cartas VIII XI: Lgica, Metafsica, Fsica e tica. Intitulado:ESTUDOS FILOSFICOS.

    Vol. IV Constitudo pelas Cartas XII XIV : Medicina, Direito Civil e Teologia. Intitulado:

    ESTUDOS MDICOS, JURDICOS E TEOLGICOS.

    Vol. V Constitudo pelas Cartas XV XVI: Direito Cannico e Regulamentao geral dos

    Estudos. Intitulado: ESTUDOS CANNICOS REGULAMENTAO SINOPSE.

    Esta edio, de acordo com SALGADO JNIOR, reeditou as dezesseis cartas escritaspor Verney, de modo a torn-las mais acessveis ao leitor, agrupando-as por critrio deassuntos. So cinco volumes que correspondem a cinco eixos temticos. A edio rigorosamente documentada por notas explicativas que, como o prprio autor adverte, nodevem ser entendidas como denncia de plgio, pois buscam avaliar a fidelidade ao sistemade que Verney se serve.14

    Acima de tudo, SALGADO JNIOR ressalta o carter pedaggico da obra. Nos seuscomentrios, procura investigar at que ponto Verney, como um pedagogista do sculo XVIII,em nome de uma cultura a que adere, consegue manter uma unidade frente grandediversidade de aspectos que abrange sua obra. E, j que Verney se preocupa,fundamentalmente, com os meios de transmisso de uma determinada orientao cultural, atque ponto so eficientes, independentemente de serem originais ou no: Queremos dizer comisto que ser errneo entrar a ler o Verdadeiro Mtodo na convico de que o sistema cultural servidopor Verney , por seu lado, duma originalidade surpreendente. Nada disso: Verney no tem sobre

    lingstica, Literatura, Filosofia, medicina, direito, teologia etc., idias inteiramente suas.15

    Verney, como muitas vezes transparece em suas Cartas, faz uso de autores comoLocke, Newton, o padre Bernardo Lamy, Fnelon e Rollin, dentre outros. Dialogando comas idias modernas, Verney pode ser caracterizado como representante do Iluminismo emPortugal? Nesse sentido, BANHA DE ANDRADE prope uma definio que parece bastanterazovel:

    14 V.M. v.1., p. XL.

    15 Ibid. , p. XIX.

  • 12

    Se o Iluminismo se caracteriza pelo interesse do homem e respectivo ambiente, como objetodominante de reflexo filosfica, repassada pelas diretrizes da razo crtica, infalvel at certoponto e oposta frontalmente metafsica, em favor da explicao emprica das causas efenmenos, de expresso matemtica, Verney no pode deixar de ser tido como iluministaconvicto.16

    A tese do professor Salgado Jnior a de que a orientao filosfico-cultural a queVerney adere exatamente a dum sistema que de Locke parte e em Locke se sustenta17. Oautor faz pensar que as contribuies da obra de Verney para a reforma da sociedadeportuguesa muito superior ao seu valor para a comunidade letrada europia da poca. Noentanto, indubitvel que Verney pertence a uma comunidade ilustrada europia. Mas at queponto pode-se afirmar que Verney um iluminista?

    No pretendemos, aqui, avanar sobre as filiaes culturais de Verney.Concentraremos esta pesquisa principalmente nas Cartas sobre Estudos Filosficos, as quaissofreram as maiores crticas pelo seu carter moderno.

    As preocupaes deste trabalho se concentraram mais na tentativa de uma sntese deseu pensamento e na relao com as principais questes discutidas pelos filsofos iluministas.Nesse sentido, enfocamos aspectos que at ento no foram bem destacados no pensamentode Verney, como, por exemplo, as suas consideraes sobre a questo de gnero.

    Para tanto, fazemos um recorte em relao famosa Polmica do VerdadeiroMtodo.18 Utilizamos dois documentos encomendados Biblioteca Nacional de Lisboa:Reflexes Apologticas a obra intitulada Verdadeiro Mtodo de Estudar (1748) do FreiArsnio da Piedade e a Respostas s Reflexes de Verney (1758).19 O propsito investigar ocontedo crtico das oposies e correes feitas obra de Verney, com o objetivo defocalizar como se representou este conflito de idias entre o velho e o novo em Portugal.Analisaremos os argumentos utilizados pelos autores e qual o teor crtico do debate.

    Houve um Iluminismo Ibrico? Se as idias modernas no tiveram um desdobramentoem forma de obras originais em Portugal, como este reino se emancipou frente quela pressoque toda a Europa estava sentindo. E, se entendemos cultura tambm como um conjunto deprticas, at que ponto a cultura portuguesa teria impedido o desenvolvimento de uma cena

    16 ANDRADE, Antnio Alberto Banha de. Verney e a projeo de sua obra. Portugal : Instituto de

    Cultura Portuguesa, 1980, p.18.17

    V.M. V.V , p. XIX e XLII. Nesse aspecto, tivemos a chance de constatar uma srie de trechosque so fielmente transcritos por Verney. A mesma tese defendida por Dias, op.cit., p.194.

    18 A polmica em torno do Verdadeiro Mtodo considerada um dos maiores duelos da Histria das

    Idias em Portugal.

  • 13

    iluminista aos moldes da Frana e Inglaterra? A singularidade da cultura portuguesa teriaimpedido o desenrolar de uma estrutura social que possibilitasse a emergncia doIluminismo? Ou deveremos sugerir uma fragilizada esfera pblica literria?

    Na primeira parte da pesquisa, procuramos discutir sobre o Iluminismo, a suahistoriografia e as abordagens tericas que o conceituaram. A partir de uma discusso prviaconceitual, apontamos os pressupostos tericos utilizados para analisar o caso especfico dePortugal.

    Na segunda parte, propomos um novo olhar sobre a obra de Verney, buscando a linha-mestra do pensamento verneyano. Depois, focalizamos alguns aspectos da polmica em tornode sua obra, analisando o teor crtico do debate. A trade de documentos utilizados sugere umadialtica: a obra de Verney, a crtica endereada a ele, e as suas respostas a esta crtica.

    Na terceira parte, analisamos o ambiente intelectual de Roma, regio em que Verneypassou a maior parte de sua vida. Isso nos ajudar a estabelecer um comparativo entrePortugal e o centro de poder da Igreja, e a compreender melhor as crticas de Verney. Emseguida, analisamos como a historiografia portuguesa e brasileira tem apresentado o problemado Iluminismo portugus.

    19 SILVA DIAS considerou a data de publicao das Respostas as Reflexes de Verney em 1748, no

    mesmo ano das Reflexes Apologticas ao Mtodo de Estudar. No entanto, no frontispcio do documento queconsultamos, aparece o ano em algarismo romano, MDCCLVIII, 1758, ou seja, dez anos depois.

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    1 ILUMINISMO: UM PROBLEMA CONCEITUAL

    1.1 ILUMINISMO NA HISTORIOGRAFIA

    Um novo movimento de idias emergiu na Europa, de meados do sculo XVII at finsdo sculo XVIII. A historiografia o identifica como Iluminismo. A Histria, de forma geral,considera que esse perodo apresenta homogeneidade, na medida em que se constitui comoum projeto cultural para uma nova sociedade europia. Nesse sentido, o Iluminismo umparadigma:

    operou a transformao do homem de um mundo idealizado para outrodesencantado pela razo, o processo de racionalizao das potncias mticas da natureza quedesembocaria em uma racionalidade cientfica. Esse processo teria impregnado no apenas arealidade social, mas as matrizes tericas que buscavam

    torn-la inteligvel.20 Esse processo

    designa um momento de longa durao, que inseriu o homem na Histria Moderna.Atualmente, o grande nmero de significados para o conceito de Iluminismo est

    relacionado com a variedade de princpios metodolgicos que procuraram conceitu-lo.21

    Falar da multiplicidade de contedos e temas relacionados a este conceito remete diretamente pluralidade de escolas tericas, instituies, historiadores, filsofos, socilogos, que aolongo do tempo, e a partir de pontos de vista mais variveis, procuraram dar-lhe umsignificado.22

    20 HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. Dialtica do esclarecimento: fragmentos

    filosficos.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.21

    Este problema conceitual abordaremos adiante. Como consideraes iniciais, veja-se, por exemplo, oconceito de Aufklarung, traduzido para o portugus como Esclarecimento e no como Iluminismo ou Ilustrao,expresses utilizadas para designar aquilo que tambm se conhece como poca das Luzes. A partir dos tericosda Escola de Frankfurt, o conceito de Iluminismo assume outro sentido. Prope-se a idia de uma crise, e, paraisso um resgate crtico do conceito de Razo e do Legado da Ilustrao. Rouanet, por exemplo, prope umadistino entre Ilustrao e Iluminismo. A primeira, enquanto corrente intelectual historicamente situada,corresponde ao movimento de idias do sculo XVIII, e Iluminismo, como uma tendncia transepocal, nosituada, no limitada a uma poca especfica. ROUANET, Srgio Paulo. As Razes do Iluminismo. So Paulo:Companhia das Letras, 1987. _______Dilemas da Moral Iluminista. In: tica. NOVAES, Adauto (org.). SoPaulo : Secretaria Municipal de Cultura : Companhia da Letras, 2002. p. 153.

    22 Relaes do Iluminismo com a produo literria e das artes so muito comuns. Com relao a esse

    aspecto, Jean STAROBINSK comenta: Os filsofos de um lado, os historiadores de outro, estudaram segundosuas expectativas e predilees a evoluo das idias ou a florao das obras. A partir do Iluminismo, o autorprocura relacionar o pensamento e a produo artstica no sculo XVIII. STAROBINSK, Jean. A inveno daLiberdade, 1700-1789. So Paulo: UNESP, 1994. p.14-15. Para o caso portugus, com uma abordagemrelacionando Iluminismo com arquitetura, ver: FRANA, Jos Augusto. Lisboa Pombalina e o Iluminismo.Lisboa: Livraria Bertrand, 1977. A obra procura investigar as influncias do esprito do Iluminismo na gestopombalina a partir da reconstruo de Lisboa. Procura captar, em termos de arquitetura e urbanismo, asensibilidade e o alastramento das idias modernas na reconstruo da cidade. Seu estudo, como o prprio autorcoloca, uma investigao em um campo disciplinar entre sociologia e arte.

  • 15

    O termo Iluminismo geralmente apresentado pela Histria das idias como umprocesso de iluminao de concepes e idias obscuras e arcaicas, escondendo acomplexidade do tema, que exige uma discusso muito mais ampla, sobretudo tendo-se emvista que o Iluminismo um termo largamente utilizado na historiografia, quase sempre deforma vaga.23 Mister, portanto, discutir, refletir e indagar sobre a forma como tem sidointerpretado, pensado e aplicado na historiografia.

    Procuraremos, dentro do possvel, historicizar o conceito de Iluminismo, tarefa quemereceria outra pesquisa, principalmente quando o conceito muitas vezes utilizado paracaracterizar a poca do sculo XVIII de forma geral.24 Ou seja, indicar, colocar, trazer discusso algumas interpretaes, tomando por base o universo bibliogrfico usado nesteestudo.

    A densidade e a profundidade do problema, nos faz questionar a impreciso dessesconceitos e a forma como so empregados na historiografia. Tome-se, por exemplo, osquestionamentos levantados por Falcon, sobre a ambigidade do termo Idade Moderna esobre a multiplicidade de tendncias, sugerindo vrias modernidades e no um moderno quereflete o todo. Advertimos, porm, que o autor muitas vezes recorre a uma homogeneidadequando afirma que Europa e Ilustrao so inseparveis de um mesmo todo.25

    Outra banalizao do conceito de Iluminismo sua identificao com a razo.26

    Partindo da complexidade deste termo, no seria possvel dizer que a prpria Histria daFilosofia poderia ser tambm uma histria da razo? Acrescente-se discusso o fato de oconceito de razo ser encontrado na Antiguidade, gerando um problema cronolgico, uma vezque o Iluminismo tem sido caracterizado como um movimento prprio do sculo XVIII.27

    23Iluminismo como um movimento de idias, Iluminismo como uma poca, Iluminismo como aespolticas, Iluminismo e a crise do Antigo Regime, Iluminismo e a formao dos Estados Nacionais. So feitasmuitas relaes entre Iluminismo x Estado, Iluminismo x Economia, Iluminismo x sociedade, Iluminismo xRazo. A ele tambm so atribudas os vrios acontecimentos, onde se verifica uma relao de causa e efeito. ARevoluo Francesa j fora explicada desta forma, porem hoje uma nova historiografia contesta se as idiaspodem fazer uma Revoluo, ou seja, at que ponto a ao popular foi inspirada pelas idias dos iluministas. Cf.CHARTIER, Roger. Sociedad y Escritura en la Edad Moderna: la cultura como aproprocin. Mxico:Instituto Mora, 1995, p.93. Relaes com a produo artstica, ver nota 2. Para uma viso das principaisinterpretaes do Iluminismo, ver: ILUMINISMO. In BOBBIO, N. MATTEUCCI ; PASQUINO, G. Dicionriode Poltica. 4.Ed. Braslia: UnB, 1998. v.1, p.605-611

    24 Sobre este aspecto, Cf. FALCON, Francisco Jos Calazans. A poca pombalina: poltica econmica

    e monarquia ilustrada. So Paulo: tica, 1982.25

    Ibid. , p. 92.26

    A respeito da relao entre Razo e Iluminismo, Bento PRADO aponta para uma tenso entre estesdois termos que tradicionalmente so identificados. Tal tenso nos impede de dizer, tranqilamente, que Razo Iluminismo ou que Iluminismo Razo. Cf. PRADO, Bento. Razo e Iluminismo, ou os Limites asAFKLARUNG. Vozes Cultura, v.88, n.5, set.-out., 1994.

    27 CHTELET, Franois. Uma Histria da Razo: entrevistas com Emile Noel. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar, 1994. p. 52. Com relao ao perodo medieval. Cf. ZILLES, Urbano. F e Razo no PensamentoMedieval. Porto Alegre: Edipucrs, 1993.

  • 16

    Devemos tambm pensar sobre aspectos que muitas vezes so encobertos pela idiauniversalizadora da razo, ou seja, quando a razo passa a legitimar determinadas prticasculturais, deslocando o contedo filosfico a servio de um poder, como aponta CHARTIER:

    Embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, as representaes domundo social assim construdas, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que osforjam, no so de forma alguma discursos neutros. Esto sempre imersos em um campo deconcorrncias e de competies cujos desafios se enunciam em termos de poder e dedominao... Estes acabam por descrever a sociedade tal como pensam que ela , ou comogostariam que fosse.28

    No se pode negar que houve uma mudana profunda no pensamento europeu desseperodo, algo que sugere um despertar do homem, a sua emancipao como sujeito que pensae age sem a tutela de Deus. Primeiramente, o homem abandona a essncia do absoluto explicao metafsico-teolgica, da anlise divina, deduo dos atributos de Deus parapesquisar sobre as energias constituintes, criadoras, que o eu contm em si, ou seja, oprocesso de imanncia, de emancipao do homem. Essa idia corresponde ao abandono dacondio de menoridade proposto por Kant, a incapacidade de servir-se do entendimento sema direo de outra pessoa. Esse percurso nos mostra a possibilidade de entender a mudanaoperada pelo Iluminismo na problematizao do prprio homem como sujeito e objeto deconhecimento.

    Esse processo, sem dvida nenhuma, tem como pano de fundo a luta que a Igrejatravou contra a penetrao da Filosofia. A Histria, de forma geral, tem transmitido estaevoluo atravs de uma suposta linha-mestra englobando um determinado nmero de obras.

    Se o Iluminismo pode ser identificado por uma filosofia especfica, recorremos Filosofia do Iluminismo de Ernest Cassirer, publicada em 1932, obra que continua sendo umareferncia para o tema do Iluminismo, pois consegue trazer tona os principais problemaspropostos nesse momento to rico da Histria das Idias. Cassirer no procura dar conta datotalidade dos problemas propostos, mas identificar o que seria, a seu ver, uma unidade defonte intelectual e do princpio que a rege.

    Cassirer, filsofo, relaciona um plano metafsico (de idias) e um plano literrio,estabelecendo uma relao de reciprocidade entre estes dois planos, pressuposto terico, queem grande medida, desconsidera a relao das idias com as prticas culturais. Mesmosabendo que a interpretao de Cassirer est identificada com uma Histria das Idias e

    28 CHARTIER, Roger. Histria Cultural: Entre Prticas e representaes. Rio de Janeiro : Editora

    Bertrand Brasil S.A, 1990. p. 17-19.

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    assim estaria sujeita s crticas de uma Histria Cultural -, surge a possibilidade de se pensarum conceito para Iluminismo. A Filosofia do Iluminismo de Cassirer reduz o pensamento dosculo XVIII a algumas idias fundamentais.

    O problema a enorme disperso de publicaes nesse perodo e a diversidadetemtica, que muitas vezes trai o que poderia ser enquadrado como um processo homogneode secularizao e laicizao da sociedade. Essa diversidade tambm pode ser encontrada emestudos contemporneos que procuram localizar a origem de disciplinas como a Psicologia, aBiologia, a Geografia, etc.

    Uma abordagem interessante em relao a este tema a de Paul Hazard, com a suaobra "La crisis de la conscincia Europeia (1680-1715)".29 O ponto de chegada o que elechama de uma crise, e no o incio de algo novo, moderno, como trata a maioria das obrassobre o tema. Focando o perodo de 1680 a 1715, ele isola este intervalo, que provmdiretamente do Renascimento e que prepara para a Revoluo Francesa. Essa crise deconscincia se relaciona constatao de que no existe uma sabedoria alm do alcancehumano, somente penetrvel exclusivamente pela revelao, mas apenas aquela alcanadaatravs da limitada "Razo".

    Foucault talvez seja o maior crtico da Histria das Idias, suas crticas metodologiautilizada por esta modalidade historiogrfica traduz-se em seus esforos por umaArqueologia do Saber.30 Foucault acusa severamente os assassinos da Histria, quandofazem meno s categorias de ruptura e transformao. Na sua concepo, no existe apossibilidade de uma unidade na Histria do pensamento humano idia generalizada pelaHistria das Idias -, mas o espao de uma disperso onde convivem infinitos discursos. Oconceito de Iluminismo, como tem sido compreendido pela Histria das Idias, estseriamente comprometido dentro dessa perspectiva. Foucault no admite a idia de umamudana profunda, de uma ruptura, mas a de uma continuidade.

    Outro problema a generalizao desse processo para toda a Europa, como se todos oscantos estivessem compartilhando deste despertar da humanidade ao mesmo tempo. At queponto o turbilho de novas idias atingiu regies especficas como Portugal? Chegaram aatingir realmente estes locais perifricos? Se chegaram, como foram recebidos? E por que noperguntar quando o homem portugus despertou realmente para a modernidade?

    Uma abordagem que se distanciou da Histria das Idias foi a de Chaunu. Um dosprecursores da histria serial ou quantitativa, props um modelo de caracterizao do que ele

    29 HAZARD, Paul. La crisis de la Conciencia Europea (1680-1715). Madrid : Ediciones Pegaso,

    1952.

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    denominou civilizao das Luzes.31 Esse conceito caracteriza uma comunidade lingsticaeuropia no sculo XVIII. Ele sugere vrios nveis da linguagem escrita. O primeiro nvelseria o dos grandes tratados de cincia e filosofia, depois o nvel da literatura, em seguida alngua corrente das correspondncias.32 A partir desses dados, infere-se, por exemplo, que onvel 1, na Frana, na Inglaterra e na Holanda, atingido logo em 1680. A Espanha encontra-se no nvel 1 por volta de 1730 e, no 2, em 1750. Os limites dessa classificao e asdificuldades de se operacionalizar foram bem explorados pela Histria Cultural.33

    Existe uma grande disperso quando se trata do conceito de Iluminismo, no entanto,parece haver uma tenso entre duas abordagens: uma mais ligada Histria das Idias e outramais ligada Sociologia.

    30 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro : Forense Universitria, 1997.

    31 CHAUNU, Pierre. A Civilizao da Europa das Luzes. Lisboa : Editorial Estampa, 1985. O termo

    Histria serial, segundo BURKE, teria sido empregado por Chaunu em 1960, tendo sido rapidamente apropriadopor Braudel e outros, para se referirem s tendncias de longa durao, pelo estudo das continuidades edescontinuidades, no interior de sries relativamente homogneas de dados. Apontamos aqui a obra de Chaunu,para ilustrar uma modalidade alternativa de caracterizao do que pretendemos identificar como Iluminismo. Cf.BURKE, Peter. A escola dos Annales: 1929 1989, A Revoluo Francesa da Historiografia. So Paulo:UNESP, 1997. p. 131.

    32 O nvel 4 situa-se no limite extremo dos movimentos da Histria, atravs dos cadernos de agravos,

    documentos da Igreja, por intermdio do escrivo, possvel at mesmo chegar a um nvel 5, onde seria o daexpresso puramente falada dos que no sabem nem assinar nem decifrar. Ibid. , p.24.

    33 Sobre este aspecto. cf. CHARTIER, op.cit.

  • 19

    1.1.1 Iluminismo e Cincias Sociais

    A Histria, ao longo do sculo XX, ampliou a discusso sobre a sociedade doIluminismo, procurando compreender aquela nova viso de mundo combinada com as novasformas de sociabilidade que acompanharam este despertar da humanidade.34 Mas chegou ahora de ver o Iluminismo com um olhar mais ligado terra, porque, enquanto os historiadores dasidias mapeavam a vista de cima, os historiadores sociais estavam escavando em profundidade ossubstratos das sociedades do sculo XVIII.35

    As tentativas de compreender a dimenso social da experincia dos filsofos doIluminismo, como aponta Darnton, alinham-se ao gnero Histria Social das Idias. Houveuma descoberta do homem, ou foi uma nova configurao social que possibilitou oIluminismo? Ora, o que indagamos aqui sobre o que poderia ser identificado comoepistemologia do sculo XVIII. Perguntamos se as novas idias que surgiram nessa pocaesto mais relacionadas genialidade individual dos homens do sculo XVIII ou, quem sabe,ao esprito da poca, ou foram as novas formas de sociabilidade que promoveram aemergncia de novos pensamentos.

    No entanto, percebemos que a produo de estudos sobre a questo do Iluminismotem progredido de forma compartimentada. Diferentes historiografias nacionais tem sedesenvolvido isoladamente. A Filosofia do Iluminismo, de Cassirer, s foi traduzida para ofrancs em 1966, e no deixou muitas marcas no estudo francs do Iluminismo desde suapublicao original em alemo, em 1932. Darnton aponta para o isolamento das linhas deinterpretao do Iluminismo.36 A escola dos Annales na dcada de 1970 praticamenteignorava a obra de Peter Gay,37 e vice-versa.38 O mesmo poderia ser comentado a respeito daobra de Koselleck39, Crtica e Crise, que s veio a ter publicao francesa em 1979. Este eoutros fatores no tm contribudo para um conceito de Iluminismo mais consistente.

    34 Uma vez que o Iluminismo de alguma forma esta ligado Histria da Cincia, observa-se tambm

    uma aproximao desta com a Sociologia, como COSER afirma: Es problabe que hoy pocos conocedores veanla histria de la cincia moderna como la de una serie de genios en soledad haciendo descubrimientos. Ahora sereconoce generalmente que la empresa cientfica se desaroll dentro de una comunidad cientfica y dentro de unescenario institucional. Cf. COSER, Lewis A. Hombre de Ideas: el punto de vista de un socilogo. Mxico:Fondo de Cultura Econmica. p. 42. Da mesma forma, KUHN: A mesma pesquisa Histrica, que mostra asdificuldades para isolar invenes e descobertas individuais, d margem a profundas dvidas a respeito doprocesso cumulativo que se empregou para pensar como teriam se formado essas contribuies individuais cincia. KUHN, Thomas S. A estrutura das Revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 1982. p.21.

    35 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. So Paulo: Companhia das Letras,1990. p.198.

    36 DARNTON, op.cit., p.198-199.

    37 GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. New York, 1969.

    38 Op.cit., p.198-199.

    39 KOSELLECK, Reihart. Crtica e Crise: uma contribuio patognese do mundo burgus. Rio de

    Janeiro: EDUERJ ; Contraponto, 1999

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    A Histria Cultural, no entanto, como demonstra Chartier, tem se esforado empromover um dilogo com socilogos, como Habermas: No corao do sculo XVIII, maiscedo ou mais tarde, em um ou outro lado, surge uma esfera pblica poltica, chamadatambm de esfera pblica burguesa, duplamente caracterizada. Do ponto de vista poltico,define um espao de discusso e de crtica independente da influncia do Estado e crtico comrespeito aos atos e fundamentos deste.40 Da mesma forma, ele aponta como o trabalhosociolgico de Norbert Elias se harmoniza com seus questionamentos: A questo de saber deque maneira e por que razo os homens se ligam entre si e formam em conjunto gruposdinmicos especficos (....) ou (...) as redes de inter-relaes, as interdependncias, asconfiguraes41

    Autores como os j citados Habermas e Koselleck, acima de tudo, procuraramentender o Iluminismo no apenas como um movimento intelectual isolado, mas interligado aum movimento social. A esfera pblica burguesa, proposta por Habermas, surgiuhistoricamente no contexto de uma sociedade separada do Estado, a medida que as formasprivadas de socializao passaram a ter um carter pblico. A esfera pblica burguesa umaconfigurao especfica do conjunto das formas privadas de intercmbio social do AntigoRegime.

    O mesmo sentido dado por KOSELLECK quando afirma que o Iluminismo triunfana medida em que expande o foro interior privado ao domnio pblico. Sem renunciar natureza privada, o domnio pblico torna-se o frum da sociedade que permeia todo oEstado.42 Crtica e Crise est relacionada com a utpica filosofia da Histria protagonizadapelos iluministas, que se materializou com a Revoluo Francesa. A partir da, estabeleceu-seum estado permanente de crise. O Iluminismo, segundo KOSELLECK, propagou-se numabrecha que o Estado Absolutista abriu para pr fim guerra civil, criando a diviso darealidade histrica em um reino da moral e um reino da poltica. A crtica, na sua essncia,possui uma relao fundamental com esta concepo de mundo dualista. Duas formaessociais marcaram de maneira decisiva a poca do Iluminismo: a repblica das letras e as lojasmanicas.

    40 CHARTIER, Roger. Espacio Pblico, Crtica y Desacralizacin en el siglo XVIII. Barcelona:

    Gedisa,, 1995. p.33.41

    CHARTIER, Roger. Histria Cultural: entre prticas e representaes. p.100. O captulo 3Formao social e habitus: uma leitura de Norbert Elias, todo dedicado a Norbert Elias. O prprio prefcioda edio brasileira da obra de Elias Sociedade de Corte escrito por Chartier. cf. ELIAS, Norbert. Asociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

    42 Ibid. , p.49.

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    Koselleck denuncia a Histria das Idias e separa apenas os discursos que secoadunam com um determinado sentido histrico.43 O problema deslocado para as formas desociabilidade, e no sobre uma ontologia do pensamento humano. A disperso e o volume deobras d lugar a apenas alguns autores que sustentam um modelo explicativo, o de que oIluminismo possibilitou a justificao do Absolutismo e ao mesmo tempo provocou a suadestruio.

    Peter BURKE, apontando as contribuies de Habermas para a Histria, assinalaalgumas limitaes do conceito de esfera pblica:

    ... poderia ser mais til e mais iluminador olhar no a simples presena ou ausncia de umaesfera pblica, mas as diferentes formas que uma esfera pblica ou semipblica pode tomar e arelativa importncia que pode ter em diferentes culturas ou entre diferentes grupos sociaisdentro de uma cultura.44

    Mas no teria havido uma matriz social especfica, relacionada com o Iluminismo? Asestruturas sociais da esfera pblica se configuram a partir da cidade - espao por excelnciaburgus45 assegurada pela novas modalidades de sociabilidade que vo, pouco a pouco, sesobrepondo corte: os cafs, os sales burgueses, as academias de cincia, as lojas dosmaons. Esses novos espaos que adquirem um a funo social da crtica - so interligadospela imprensa, instituio nuclear da esfera publica literria.46 Independentemente de estaconcepo de pblico ter ou no sido concretizada na realidade, como o prprio Habermasreconhece, o que importa sublinhar sua potencialidade como espao de crtica.47 Por outrolado, s mediante a apropriao crtica da filosofia, da literatura e da arte que tambm o pblicochega a se esclarecer, at mesmo a se entender como processo vivo do Iluminismo.48

    A base dessa nova organizao social composta por um conjunto de elementoscomuns. Em primeiro lugar, uma igualdade de status. Em segundo, a problematizao dostemas de exclusividade do clero e da nobreza. E, por ltimo, a democratizao do acesso cultura, uma vez que esta passa a se projetar tambm como mercadoria.49

    43 A ocidentalizao do planeta pela burguesia e o estado permanente de crise entre ser e dever ser.

    44 BURKE, Peter. A esfera pblica 40 anos depois. Folha de So Paulo. So Paulo, 16 set., 2004. p.4-5.

    45 HABERMAS, Jurgen. Mudana Estrutural da Esfera Pblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

    2003, p.5846

    Para haver uma esfera pblica poltica, necessrio primeiramente o surgimento de uma esferapblica literria. Ibid. , p.46

    47 Ibid. , p.52

    48 Ibid. , p.38

    49 Ibid. , p.51

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    medida que a esfera pblica avana no mbito do consumo, com a subordinao dojornalismo literrio economia de mercado, banaliza-se o intercmbio social, pela ausnciade uma intermediao literria. O Iluminismo vincula-se Esfera literria, enquanto estaestava afastada da reproduo social. Nessa perspectiva, ele seria o elo perdido que liga agnese da sociedade burguesa at seu triunfo final com a Revoluo Francesa. Aqui oIluminismo teria uma realidade histrica situada, aquela que possibilitou um mundo deescritores/leitores e, depois, foi suprimida pela decadncia da esfera pblica literria, quandoa cultura apropriada pelo mercado.50 A cultura burguesa no era mera ideologia. Porque oraciocnio das pessoas privadas nos sales, clubes e associaes de leitura no estava subordinado demodo imediato ao ciclo da produo e do consumo...51

    Habermas procura diagnosticar os limites do programa iluminista proposto por Kant: aconstruo de um espao pblico a partir da participao de cada um como escritor e leitordentro de um mundo de idias e opinies. A Ilustrao seria um processo por meio do qualcada um, potencialmente, passa a intervir propondo idias frente a um pblico que l. O quetem se debatido so os limites deste projeto em termos prticos. Para Adorno e Horkheimer, aRazo, na qual se depositavam as bases do projeto Iluminista, passou a ser instrumentalizadaa favor da opresso e da barbrie.

    A investigao histrica das possibilidades de apropriao cultural em diferentessociedades faz parte de nosso problema, sobretudo porque busca compreender a circulaomultiplicada do escrito impresso nos sculos XVII e XVIII e como isso modificou as formasde sociabilidade, constituindo uma esfera pblica literria.

    A esfera pblica literria define uma modalidade alternativa de representaes aparte do mbito institucionalizado do poder poltico. No entanto, quando pensa sobre o textode Kant O que Ilustrao, Chartier caracteriza um pblico no s a partir das novasformas de sociabilidade intelectual como os cafs, clubes, sociedades e lojas, nem do ideal decidade antiga protagonizada pelos gregos, mas por meio do texto escrito.52 Porque o texto, emltima instncia, a interseo entre o plano das idias e a matriz social respectiva. Oelemento que possibilita dar um sentido coerente para este conceito de Iluminismo queestamos propondo a crtica na sua expresso de formas de leitura, ou seja, comodeterminadas idias so apropriadas e retransmitidas.

    50 Habermas no trabalha com um corte cronolgico especfico, porm, quando comenta a subordinao

    da cultura impressa ao mercado, comenta o Cobbets Political Register (1816) quando passou a imprimir 50.000exemplares, constituindo-se no primeiro jornal com uma grande tiragem. op.cit., p.199

    51 op.cit., p.190

    52CHARTIER, Roger. Espacio Pblico, Crtica y Desacralizacin en el siglo XVIII. Barcelona:Gedisa Editorial, 1995. p33. e.39

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    Portanto, consideramos Iluminismo como um processo caracterizado pelarepresentao crtica de idias materializadas sob a forma de texto, mas que no existe sem asua componente social, a publicao de livros e impressos, juntamente com os cafs, sales eacademias. Insistimos sobre a importncia da componente social do conceito, pois ela estdiretamente relacionada com as condies de existncia de uma idia para o campo daHistria, que se materializa em documento. A existncia de apenas uma destas componentesno confere a plenitude do movimento do Iluminismo, comprometendo de alguma forma asua natureza crtica.

    1.2 O AMBIENTE INTELECTUAL PORTUGUS

    1.2.1 As tentativas de Construo de uma Esfera Literria

    Tendo em vista o conceito de Iluminismo que adotamos e a questo cultural ao longodo sculo XVIII portugus, percebe-se que estudos sobre as prticas da leitura s tm surgidomuito recentemente. Para compreender a mentalidade portuguesa do Setecentos, de sumaimportncia alargar o inventrio das formas de acesso ao livro. Em Portugal, a maioria dasobras dos pensadores modernos penetrava por via de estrangeiros, ou por portugueses queviajavam para outras regies da Europa chamados estrangeirados.

    A casa dos Ericeiros, em frente de S. Jos da Anunciada, foi o primeiro cenculo"esclarecido" portugus.53 Nos ltimos anos do sculo XVII, funcionou na casa dos Condes deEriceira uma espcie de Academia, chamada discretos. As pessoas que freqentavam estacasa eram, na sua maioria, estrangeiros, como o sbio francs Antnio de Jussieu, daAcadmie de Sciences de Paris, e Bluteau, nascido em Londres de pais franceses. Bluteauestudou na Frana, e a sua chegada a Lisboa remonta a 1656, e l morreu em 1734.

    Na historiografia, a palavra cenculo amide designa grupos de intelectuais que sereuniam para discutir e trocar idias.54 Antigamente, cenculo significava a sala onde secomia a ceia ou o jantar. Posteriormente, os historiadores perceberam que nestes grupos sediscutiam as novas idias que provinham de outros cantos da Europa. Geralmente, tratava-sede reunies entre nobres, na sua maioria estrangeiros. Talvez fosse o grmen de uma pequenaesfera pblica literria, que no conseguiu se manter por muito tempo, dissipando-se.

    53 DIAS, Portugal e a cultura europia, op.cit, p.105

    54 idi.

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    Do cenculo do Conde de Ericeira fundao da Academia das Cincias de Lisboaem 1780, houve uma difuso das Luzes em Portugal, produzindo uma srie de reformasinstitucionais. Esse Iluminismo Reformista est intimamente associado hegemonia doclero e da nobreza. Sendo assim, a renovao da cultura portuguesa no sculo XVIII deve-se,quase exclusivamente, influncia dos estrangeiros e estrangeirados:

    A primeira metade do sculo XVIII foi teatro de uma luta intensa entre o elementocosmopolita e o elemento sedentrio da nao. Ao mesmo tempo que a diplomacia facultava amuitos portugueses a descoberta de idias, dos costumes e da poltica em vigor na Europa dealm Pireneus; aportavam ao Tejo alguns forasteiros que traziam consigo os rudimentos dosaber universal.55

    Alguns estrangeiros tiveram a iniciativa de introduzir as idias de Newton. CastroSarmento, por exemplo, enviou a Lisboa, com dedicatria ao Rei, o manuscrito de umaChronologia Newtoniana Epitomizada. A corte, porm, recebeu estas obras sem qualquertestemunho de interesse, pelo menos aparente, pois nunca foi publicada.56 Em 1744, publica-se a Lgica Racional Geomtrica e Analtica de Azevedo Fortes. o primeiro livro de carterdidtico e sistemtico modelado pelos padres europeus.57 Nele encontram-se fortes traos deCartesianismo.58

    Outra tentativa de estabelecimento de uma esfera pblica foram as confernciaspromovidas por Teodoro de Almeida sobre fsica experimental. Essas reunies eramfreqentadas por um grande nmero de pessoas geralmente pessoas da corte e homensilustrados. Destaca-se o impacto que estas conferncias causavam; alm de seu carter ldico,eram uma moda cultivada em toda a Europa. Almeida sofreu vrias crticas, como aspublicadas sob o pseudnimo de Paulo Amaro, com seu Mercrio Filosfico. A maioria desuas crticas no possuam uma fundamentao mais elaborada; abordavam principalmente oestilo pouco convencional das conferncias, sem perceber que os resultados das experinciasdenunciavam a viso aristotlica do mundo:

    ...tudo o que agora se reclama de novo tinha sido dito por Aristteles, como o que diziarespeito ao som, luz ou cor, de que Aristteles tinha dado uma correta definio fsica eagora se vendia por novidade nas palestras das Necessidades.59

    55 Ibid. , p.118.

    56 Ibid. , p.125.

    57 Ibid. , p.132.

    58 Ibid. , p.134.

    59 Mercrio Filosfico. Com a destruio da casa do Esprito Santo, sede da Congregao Oratrio de

    Lisboa na ocasio do terremoto de 1755, ela foi transferida ao hospcio das Necessidades, onde prosseguiu assuas atividades normais. Isso fez com que ficasse associada a Casa das Necessidades. Com a sua reedificao em1792, os oratorianos se dividiram em duas faces, cujas divergncias iriam favorecer mais tarde casa original.No entanto, esse fato viria a enfraquecer a imagem de prestgio da Congregao, principalmente peloesvaziamento ocorrido mais tarde. Apesar disso, continuaria a atrair os jovens. Apud. DOMINGUES, FranciscoContente. Ilustrao e Catolicismo : Teodoro de Almeida. Lisboa : Colibri, 1994, p.77 -78.

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    Em Portugal, existiram tambm as Academias de Cincias,60 embora emcircunstncias especficas decorrentes de uma ambincia cultural prpria. Proliferaram nossculos XVII e XVIII, mas geralmente as tentativas no perduravam e, quase exclusivamente,eram de pendor literrio ou religioso,61 Comparadas com as de outros pases da Europa, notiveram especializao cientfica. A empresa de maior notabilidade foi a Academia deCincias de Lisboa, cuja primeira reunio se deu em 1780, qual compareceram vriosportugueses.

    A sua fundao j havia sido prenunciada em 1755, em um acordo entre Teodoro deAlmeida e D. Joo Carlos de Bragana, acordo esse, que no havia vigorado na poca. AAcademia apresentou-se a pblico no dia 4 de julho de 1780, com uma orao de abertura deTeodoro de Almeida, que fez instalar uma polmica violenta. O teor de sua fala era de crticaao atraso portugus em relao s demais naes europias. A misso a que se propunha aAcademia subentendia uma crtica a priori da condio da intelectualidade portuguesa. Apolmica, ao contrrio do que se possa imaginar, tinha como pano de fundo um conflito entredefensores do pombalismo (regalismo) e seus contrrios. Ou seja, as crticas Academia noeram em relao ao seu projeto de modernizao, de um projeto comum. A maior parte doscrticos fazia apologia s realizaes de Pombal, como a Reforma da Universidade e adoodo regalismo e do seu despotismo. O caso mais emblemtico o de Pina Manique, homem de

    60 No sculo XVIII, surgiu em regies como Inglaterra, Frana - e reinos que hoje fazem parte da

    Alemanha e Itlia -, institucionalizao de entidades coletivas particulares ou oficiais que se dedicavam investigao e divulgao cientfica, as Academias de Cincia. Uma das primeiras foi a Academia dei Lincei,fundada em Roma no ano de 1603 pelo duque de Acqua-Sparta, que registrou as contribuies de GalileuGalilei. Geralmente estas academias iniciavam-se a partir de reunies espordicas at serem oficializadas, comoa Royal Society. Alm das reunies eram publicados peridicos como o Philosophical Transaction da RoyalSociety e o Journal de Savants. Isso aumentaria a capacidade e rapidez de circulao de idias cientficas pelaEuropa. No sculo XVIII, estas academias tero cada vez mais destaque dentro da sociedade. De forma geral,defendiam a prevalncia da experincia e da razo sobre a autoridade constituda como critrios de investigaoe de anlise em harmonia com o esprito racional das Luzes. Tambm se preocupavam com o sentido utilitriodo conhecimento cientfico e das aplicaes tecnolgicas possveis, como na navegao, novas formas deenergia motora, melhoria das tcnicas agrcolas. As Academias de Cincia difundiram a modernidade pelossales, saindo do mbito dos filsofos para uma elite constituda por nobres, mdicos e oficiais do exrcito. Estesespaos contriburam para a secularizao da sociedade e foram alvo de crtica de conservadores em funo dafalta de formalismo com que tratavam determinados assuntos. Geralmente, eram iniciativas que partiam de umrestrito grupo de nobres, como o conde de Ericeira. Havia forte presena de estrangeiros em meio a essasiniciativas, como a do ingls Luis Baden em 1725, de autoria de um folheto de divulgao de um curso intituladoNotcias da Academia, ou curso de filosofia experimental. O curso no teve muito sucesso, apesar de se teremdifundido pela primeira vez as doutrinas de Robert Boyle e Isaac Newton, embora sem qualquer sorte deconseqncias. Associadas s academias, esto as viagens de expedio cientfica, como a de AlexandreRodrigues Ferreira que levou uma srie de sbios ao Brasil. Na Espanha estas iniciativas tiveram maior vulto.Atravs desses movimentos, vai se imperando uma apologia da filosofia experimental, trao que tambmmarcar a defesa do modelo de cultura associada reforma poltica institucional pretendida por Pombal. Isso semanifestar com a reforma dos estudos menores em 1759 e a da Universidade em 1772. Os novos estatutospretendiam, acima de tudo, arregimentar novos professores e os meios para que houvesse maior abertura aosaber experimentalista do sculo em prejuzo dos parmetros filosfico-cientficos da escolstica. p. 119.

    61 DOMINGUES, op.cit, p.113

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    Pombal que sobrevivia viradeira, no reinado de D. Maria, com a mesma autonomia quegozava no perodo pombalino62. Fazendo apologia dos feitos do antigo ministro, nopartilhava a viso pessimista da situao nacional tal como foi delineada por Teodoro deAlmeida para justificar a necessidade da nova agremiao.63

    Foi a publicao do Verdadeiro Mtodo que colocou de forma explcita o magnoconflito entre a cultura livre e a cultura das escolas. A polmica em torno da publicao dessaobra constitui um momento particular da Histria das Idias em Portugal, e ilustra bem odebate entre o velho e o moderno durante o sculo dezoito portugus. Sendo que a tendnciana gesto pombalina de diminuio progressiva da presena do clero, identificado com oregalismo. O auge desse movimento se d com a expulso dos jesutas em 1759 e com aReforma da Universidade de Coimbra em 1772, sob o ministrio do Marqus de Pombal. Noentanto, a histria desse movimento reformista no veio acompanhada por um espao crticode discusso. Observaremos mais tarde que, em torno das polmicas do Verdadeiro Mtodode Estudar de Verney, no h um uso pblico da razo, de acordo com o conceito kantiano.O que predomina a autoridade e no o consenso. Dentre diversos fatores que concorrempara este fato, a fragilidade da cultura impressa portuguesa o mais caracterstico, limitando odebate de idias, e o processo de Ilustrao.

    1.2. 2 A imprensa portuguesa do sculo XVIII

    No que se refere aos meios de publicao em Portugal, os jornais na segunda metadedo sculo XVIII eram em sua maioria frvolos e no possuam um carter predominantepoltico. Em geral, reproduziam notcias publicadas semanas ou meses antes por folhasestrangeiras.64 Havia pouca participao das elites pensantes em termos de colaboraoefetiva, e as tcnicas empregadas eram rudimentares. No sculo XVIII, fundaram-se ao todotrinta e sete jornais65. Havia grande irregularidade nas publicaes, e a circulao erapequena, reduzindo-se praticamente aos assinantes.66 No perodo pombalino, criaram-se dezou onze jornais, com pouca influncia, exceo da Gazeta Literria. Segundo Burke, nomenos que 1.267 peridicos em francs foram criados entre 1600 e 1789, 176 deles entre

    62 Pina Manique era um estrangeirado, conduziu um projeto de envio de bolseiros de cirurgia para a

    Esccia. Ibid. , p.128.63

    Ibid. , p.129.64TENGARRINHA, Jos. Histria da imprensa peridica portuguesa. Lisboa: Portuglia, 1995. p.4.65

    Ibid. , p.38.66

    Ibid. , p. 43

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    1600 e 1699 e o restante a partir de ento.67 A ttulo de ilustrao, veja-se o tratamento dadopela imprensa portuguesa a um dos fatos mais importantes ocorridos em Portugal no sculoXVIII: no dia de 1 de novembro de 1755, ocorreu o grande terremoto de Lisboa, seguido deum maremoto e de um enorme incndio, que viria a durar vrios dias e que abalou e destruiuparcialmente a cidade de Lisboa, matando e ferindo milhares de pessoas. Cinco dias depois, osemanrio Gazeta de Lisboa, nica publicao peridica portuguesa em circulao na altura,noticiava:

    O dia 1 do corrente ficar memorvel a todos os sculos pelos terramotos e incndios quearruinaram uma grande parte desta cidade; mas tem havido a felicidade de se acharem na runaos cofres da fazenda real e da maior parte dos particulares. (Gazeta de Lisboa [GL], n 45,1755)

    Alm da pouca importncia dada a esse fato que projetou Pombal a se consolidarcomo ministro e reformador68-, chama ateno uma notcia de trinta e seis linhas dedicada aofalecimento e enterro de um homem chamado Fr. Joaquim de S.Jos.69 Seria o caso mesmo dequestionar sobre o que era um jornal portugus desse perodo. Parece mesmo que o terremotoj era notcia entre os portugueses por uma via mais eficaz: os rumores e as vozes vagas.70A notcia do terremoto era algo implcito. Esta a posio de Fernandes quando analisa osmeios de comunicao na Espanha at o perodo das invases napolenicas.71

    Talvez o jornal mais crtico de Portugal ao longo do sculo XVIII tenha sido a GazetaLiterria, que infelizmente teve uma existncia curta, de julho de 1761 a julho de 1762.Considerado o primeiro processo pblico de subscrio de livros em Portugal, o lanamentoda Gazeta Literria ocorre no Porto, em julho de, depois da expulso dos jesutas. Contava

    67Cf. BURKE, Peter. Uma Histria Social do Conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.51.

    68 Com relao a esse aspecto destaca-se o trabalho clssico do historiador portugus Jos Augusto

    Frana , Lisboa Pombalina e o Iluminismo. A obra adaptada de seu doutorado, procura investigar as influnciasdo esprito do Iluminismo na gesto pombalina a partir da reconstruo de Lisboa. Procura captar em termos dearquitetura e urbanismo, a sensibilidade e o alastramento das idias modernas na reconstruo da cidade. O seueixo principal procura responder a duas questes complementares: em que medida a nova Lisboa est em relaoaos gostos e necessidades da sociedade portuguesa e em que medida se relaciona ela com a esttica doIluminismo. Atravs do esprito reformista de Pombal, procura as relaes entre uma cidade e uma sociedade,como um modela o outro e vice-versa. Enfatiza a capacidade de Pombal de tomar decises rpidas e improvisarsolues que atendessem as necessidades imediatas atravs de um espirito racional e prtico. Cf. FRANA, JosAugusto. Lisboa Pombalina e o Iluminismo. Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.

    69 TENGARRINHA, op.cit. , p.47.

    70 Cf. FERNNDEZ, Celso Almuia. Os meios de comunicao na crise do Antigo Regime entre as

    vozes vagas e a dramatizao da palavra. In: Antigo Regime e Liberalismo, homenagem a Miguel Artola.Madrid : Alianza Editorial, 1995.

    71 BELO, Andr. A Gazeta de Lisboa e o terramoto de 1755: a margem do no escrito. Anlise Social,

    Lisboa , v. 34, p. 619-637, 2000. p. 151-152

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    com a proteo do governador e brigadeiro do Exrcito Joo Almada de Melo.72 O editorBernardo de Lima produziu mais de cem extratos de obras, dezenove dos quais traduzidos deoutras publicaes peridicas estrangeiras. Lamentava a modesta cifra, alegando que naEuropa se publicavam anualmente 6.000 livros. Segundo Ana Cristina Bartolomeu Arajo, aspublicaes da Gazeta Literria demonstram a conexo de Portugal com os principais centrosde impresso da Europa.73

    Em novembro de 1761, publicou-se na Gazeta Literria um artigo do editor Bernardode Lima tratando da escravido, mais especificamente do comrcio que se faz dos homens.Abordava artigo publicado em jornal estrangeiro, provavelmente ingls, que criticava osmales da escravido. Sem desconsiderar a til humanidade que enobrece a nao inglesa,aponta o inconveniente de ver ameaada a superioridade que os Europeus tm alcanadosobre os demais habitantes do mundo. A seu ver, dar liberdade a um escravo o pior castigoque se pode dar, pois no conseguem sobreviver e se adaptar s novas condies. Emboracritique a metodologia dos castigos, afirma que:

    Os pretos que nascem na Europa e se transportam Amrica para aliviar o trabalho dosEuropeus, merecem ainda mais a escravido, porque nesta melhoram de condio. Antes queprincipiasse o comrcio dos escravos costumavam os negros, que andavam continuamente emguerra uns com os outros, matar todos os seus prisioneiros depois de os fazer experimentar osmais rigorosos tormentos.74

    Segundo o editor, Nem a razo, nem a justia, nem a religio podem desculpar o darliberdade a uma espcie de gente, que como moralmente certo, empregaro esta liberdade nadestruio dos mesmos que lhe dero.75

    Bernardo Lima comenta, que se os argumentos ingleses fossem concludentes,deveriam ser libertados os escravos que servem nas colnias britnicas. Se isso ocorresse,provavelmente os habitantes europeus das colnias se tornariam cativos dos escravos.Analisando a hipteses de um homem cujo terreno utilizasse 200 escravos, uma generosa leiabolicionista seria crueldade para este indivduo, levando-o ao ltimo grau de misria e deindigncia.

    Alm da crtica ao carter liberal do artigo deste jornal ingls, parece tambm haverrelao, talvez sutil, com a Lei assinada no dia 19 de setembro por D. Jos, um ms antes da

    72 ARAJO, Ana Cristina Bartolomeu. Modalidades de Leitura das Luzes no Tempo de Pombal.

    Revista de Histria. Porto, v. 10, p.107, 1990.73

    Ibidi., p. 119.74

    GAZETA Literria, novembro de 1761. p.337-339.75

    Idi.

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    publicao do artigo, que proibia o comrcio de escravos nos portos da metrpole. O textodessa lei, que s seria publicada no dia 1 de outubro de 1761, deixa bem claro seuspropsitos:

    Eu El Rey. Fao saber aos que este Alvar com fora de Ley virem, que sendo informado dosmuitos, e grandes inconvenientes, que resultam do excesso, e devassido com que contra asLeys, e costumes de outras Cortes polidas se transporta annualmente da Africa, America eAsia, para estes Reinos hum to extraordinrio nmero de escravos Pretos, que, fazendo nosMeus Dominios Ultramarinos huma sensvel falta para a cultura das Terras, e das Minas, svem a este Continente ocupar os lugares dos moos de servir, que ficando sem comodo, seentregam ociosidade, e se precipitam nos vicios....76

    Apesar de fazer apelo a uma certa moralidade nos costumes associados escravido,esta lei parece propor que o trfego de mo-de-obra escrava feito nos domnios do Reinodeveria ser canalizado para a produo agrcola e mineira do Ultramar. Alm disso,solucionava o problema do desemprego entre os trabalhadores da metrpole. A lei aindaacrescentava que todos que aportassem no Reino deveriam ser libertados sem a necessidadede outra Carta ou alforria, nem de outro Despacho.77 V-se que Pombal tinha uma viso clarada situao que no se harmonizava com a opinio de Bernardo de Lima. Deveriam serlibertos os escravos que aportassem na metrpole para serem comercializados, porm nascolnias esta hiptese estava fora de questo.

    Presa por um fio e esgotada nos seus recursos, a imprensa peridica recebeu umdefinitivo golpe em 1768, quando da criao da Real Mesa Censria e da Imprensa Rgia.Desde ento, nenhum jornal fundado na gesto pombalina (1750-1777). Somente com aviradeira em 1778 a Gazeta de Lisboa retorna as suas publicaes.

    Ao longo do sculo XVIII, a tutela cultural de nobres e eclesisticos foi sempre umaconstante na sociedade portuguesa, hegemonia atravessada por uma linha de fratura longa epersistente. Essa perspectiva caracteriza o carter institucional das transformaes culturais doPortugal do Setecentos.

    Se, por um lado, coloca-se que Pombal, particularmente a partir de 1762, impediu amanifestao de uma opinio pblica esclarecida, deve-se tambm apontar uma progressivabrandura do Santo Ofcio aps 1774. O Regimento de 1774, publicado por Pombal, secularizaa Inquisio, coloca-a na dependncia da coroa. Nos fins do Setecentos, os casos mais

    76 Apud. RAMOS, Luis de Oliveira. Pombal e o Escravagismo. Revista da Faculdade de

    Letras.Lisboa, p.173.77

    Idi.

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    salientes de insubmisso de pensamento face ortodoxia derivam, em regra, menos dacriatividade pessoal, e mais de contatos com a literatura das Luzes.

    Incio da Silva admitiu que se deixava seduzir pela doutrina em questo para poderfaltar, sem remorso, aos bons costumes e ao voto de castidade revelando-se um caso dehedonismo. Ou, como o caso do Doutor em Medicina Manuel Pereira Graa, simpatizante daRevoluo Francesa. Houve processos que envolveram estrangeirados, como Jos Anastcioda Cunha, do cenculo de Valena do Minho (1775-1778) onde havia vrios militaresestrangeiros e alguns jovens. Como tambm Diogo Fervier, professor da Aula Real deArtilharia, incorrendo em uma devassa em Valena do Minho, ocorrendo a condenao dosprincipais membros e o Auto de f de 1778.

    Por outro lado, torna-se necessrio repensar o alcance da censura enquanto prticadisciplinar e modalidade de leitura e reavaliar novos indicadores como a imprensa peridica eoutros meios de acesso e divulgao que, no tendo imediata inteno doutrinal, franquearame prepararam a leitura do livro estrangeiro. O avultado nmero de gramticas e dicionrios delnguas estrangeiras ento publicados entre 1730 e finais de 1770 reflete a acelerao do ritmode trocas culturais de Portugal com outros pases.78 Esse aspecto, quase sempre ausente naapreciao da poltica cultural pombalina, determinante para a compreenso da riqueza ecomplexidade das idias que se opunham ao prprio pombalismo, e tambm suscetvel deimprimir outro sentido e uma cronologia difuso das Luzes em Portugal.79 Essa perspectiva,lanada por Ana Cristina Bartolomeu de Arajo, amplia a idia colocada por Dias de umintercmbio, de um contato com a cultura europia.

    1.2.3 Pombal e seu Projeto Poltico

    Talvez um dos maiores mritos do ministro de D. Jos tenha sido a sua capacidade deconstituir uma equipe. Influenciado pela filosofia de seu tempo e sensvel conjuntura deento, o marqus teve uma trajetria histrica que viria a marcar sua poca.

    A era pombalina um tema associado a uma grande produo bibliogrfica. muitocomum a confuso entre Luzes e Iluminismo com Despotismo Esclarecido, tendo o segundo

    78 O annimo, repartido pelas semanas para divertimento e utilidade do pblico, lanado e dirigido por

    Bento Morgati, e que se publicou entre 1752 e 1754. O Amusement priodique. Discours historiques ,politiques,moraux, littraires et critiques. O Mensal redigido por Francisco Xavier de Oliveira em Londres. Queima delivros na Praa do Comrcio Real Mesa Censria existncia de dicionrios filosficos, os de Bayle eVoltaire, em mais de 600 bibliotecas portuguesas. Cf. Revista de Histria. Ana Cristina Bartolomeu de Arajo.Instituto Nacional de Investigao Cientfica. Porto 1990.

    79 Ibid. , p.126

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    como efeito do primeiro. Nessa perspectiva, surgem vrios paradoxos, fruto de comparaesdas reformas de Pombal com o iderio iluminista. Talvez fosse mais fcil compreender oDespotismo Esclarecido como uma fase tardia do Absolutismo, mais ligada s mudanas quea Europa sofria no sculo XVIII do que como efeito das idias modernas.80

    Dois autores clssicos sobre o assunto, Maxwell e Falcon, mediante diferentesabordagens - Maxwell por meio do conceito de despotismo esclarecido e Falcon associandopombalismo e mercantilismo -, procuraram compreender as distores entre a teoria e aprtica do pombalismo, apontando um paradoxo.81 A problemtica proposta de incio porFalcon de que o perodo habitualmente designado pela historiografia como "pombalino"passa a ser definido em termos poltico-econmicos como de carter "mercantilista".

    Estudar a teoria poltica de um governo ou de uma poca no equivale a conhecer arespectiva prtica poltica, e vice-versa.82 A partir dessa premissa, questionamos e o que temse chamado paradoxo do iluminismo lusitano: o marqus de Pombal. As contradies, asindefinies so inseparveis das relaes entre a prtica e a teoria pombalina. Investigando aformao intelectual do marqus, possvel perceber que havia um projeto poltico emgestao, ponto sobre o qual, por muito tempo, a historiografia havia silenciado.

    Em 1756 fora publicado um texto annimo em francs, com o ttulo Discours politiquesur les avantages que Portugal paurroit retirer de son malheur, dans lequel luteurdveloppe les moyes que lngleterre avoit mis jusque-l en usage pour ruiner cettemonarchie. A autoria do texto fora atribuda a Pombal em obras de grandes historiadoresportugueses at fins do sculo XIX. O texto teve vrias edies e sua primeira edio emespanhol saiu em 1762 com o ttulo: Profecia Poltica, verificada en lo que est sucediendo alos Portugueses por su ciega aficcon a los ingleses: hecha despues del terramoto de 1755...Madrid. Imprenta de la Gazeta, 1762. Em 1861, j figura no tomo das Cartas e outras obrasseletas do marqus de Pombal em portugus.

    No entanto, desde 1806, a autoria do texto j era conhecida, revelada por Antoine-Alexandre Barbier, no seu Dictionaire des ouvrages anonymes. Trata-se de Ange Goudar.Nasceu em Montpellier por volta de 1720, e faleceu em Londres em 1791. Descendente de uminspetor geral do comrcio, chegou a Lisboa por volta de 1752 e j estava de regresso ptria

    80 MARQUES, A.H de Oliveira. Breve Histria de Portugal. Lisboa : Editorial Presena, 1998. p.374.

    81Cf. MAXWELLl, Kenneth. O Marqus de Pombal: paradoxo da iluminismo. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1996. FALCON, Francisco Jos Calazans. A poca pombalina: poltica econmica e monarquiailustrada. So Paulo: tica, 1982.

    82 DIAS, J. S. da Silva. Pombalismo e Projeto Poltico. Lisboa: Centro de Histria da Cultura da

    Universidade Nova Lisboa, 1984.

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    em 1754. Depois, passou por Npoles e reinos do Norte da Europa, at morrer na Gr-Bretanha. Dias, o retrata como um aventureiro de pena fcil.83

    O Discurso um manifesto antibritnico. Defende que Portugal tinha a agricultura, aindstria e o comrcio em runas por causa dos ingleses, encontrando-se num estado dedecadncia econmica e poltica que o reduzia, em termos de ptria, condio de colnia daInglaterra. O texto aponta para uma vantajosa aliana entre Portugal e Frana, para umaarrancada de crescimento poltico e econmico, principalmente aps o terremoto de Lisboa.Sabe-se que isso jamais ocorrera, e mais tarde Portugal sofreria fortes presses da Franaatravs do Bloqueio Continental proclamado por Napoleo. O livro, como afirma Dias, exalaanglofobia.

    fcil perceber que, se tal texto fosse de autoria de Pombal, indicaria umadiscordncia entre sua teoria e sua prtica, pois, se o livro era uma crtica aliana luso-inglesa, na prtica Portugal e Inglaterra se mantiveram grandes parceiros por longas dcadas,no mnimo at a partida da famlia real para o Brasil em 1808, onde a participao britnicafora essencial. E sabe-se que esta aliana de Portugal com o reino ingls se deve muito sestratgias e articulaes polticas de Pombal.

    A crtica situao de Portugal em relao ao quadro poltico-econmico encabeadopela concorrncia entre Inglaterra e Frana fora analisada criticamente pelo Marqus. Aconscincia da situao de Portugal no equilbrio poltico da Europa fora adquirida nas suasduas misses diplomticas antes de assumir o cargo de primeiro ministro do rei D. Jos. nesse perodo que germina seu programa de governo. Em 1738, Pombal viajou a Londresonde permaneceu por quatro anos, depois voltou para Lisboa e partiu para Viena retornandoem 1749.

    Na Inglaterra, foi intermediar o contencioso anglo-luso respeitante ao comrcio e navegao. Nas dcadas finais do reinado de D. Joo V, os ingleses opinavam que Portugalseria uma aliado dcil. Pombal percebeu que os poucos mercadores que circulavam pelaspraas inglesas eram desrespeitados em seus direitos e sofriam vexaes, e logo compreendeupor que o comrcio portugus no se desenvolvia naquelas praas. Os tratados entre as duasnaes deveriam ser reformulados, visto que os costumes haviam favorecido os ingleses eprejudicado os portugueses. O Tratado de 1661, que abriu os portos do Brasil e da ndia navegao inglesa, fora celebrado na conjuntura de guerra entre Portugal e o reino de Castelae com Amsterd. O Tratado visava uma parceria com a Inglaterra no sentido de ampliar aparticipao dos produtos portugueses em outros Estados. Ao contrrio disso, os ingleses

    83 Idi.

  • 33

    arruinaram o comrcio portugus substituindo o tabaco e o pau-brasil pelas lavouras deVirgnia e Mariland. Propondo uma reviso dos tratados de 1654, 1661 e 1703, Pombalexplorou com inteligncia e imaginao o temor britnico de uma inverso das alianas dePortugal em favor da Frana.

    Em Viena, fora convocado para intermediar entre a Cria Romana e a corte dosAustrias, misso que estava fadada ao fracasso, pois, conforme alguns historiadoresportugueses, havia uma conspirao contra Pombal na corte portuguesa. Pombal, mesmosendo mal assessorado pelos cardeais e ministros de Portugal, continuou sua misso para nodesagradar ao rei e perpetuar sua carreira diplomtica.

    O marqus tinha em vista um projeto de aliana da Inglaterra (e Portugal) com austria (e a Espanha). O projeto implicava que a Espanha e os reinos da Itlia se desligassemda Frana e da Prssia. Se a Frana se unisse com a Espanha, a Europa se desequilibrariapoliticamente. Pombal logo percebeu que a mediao entre a Santa S e o Imprio passavapela questo da italianizao do papado e da internacionalizao das pendncias austro-italianas. Em um de seus relatrios de sua permanncia em Viena, considera que a Espanha, austria, a Santa S e Flandres no eram mais livres ou menos independentes do que Portugal,podiam mudar de aliana, mas no podiam sacudir o fardo da dependncia. Pombal percebeua importncia para a segurana da ptria portuguesa com a integrao da Espanha ao blocoque equilibrava o poder com Frana. Do ponto de vista ideolgico, esta integrao favorecia aampliao do iluminismo catlico84 e o aparecimento de uma aliana cultural, dobrada deuma aliana religiosa e poltica. A distncia deste bloco cultural e interestadual, formado pelaEspanha, Roma e ustria em relao Frana, favorecia o avano portugus para uma menordependncia em relao aos ingleses.

    Nessas duas grandes misses diplomticas, Pombal teve contato com a culturaeuropia do sculo XVIII. Na sua biblioteca em Londres havia obras de grandes juristas comoPufendorf e Grocio, e provavelmente teria tido contato com as idias de Descartes e com osempiristas ingleses como Newton e Locke. Em Viena, seu mdico assistente era Von Swieten,discpulo de Boerhave, defensor de reformas pedaggicas e representante do iluminismocatlico. Pombal se preocupava em adaptar a religiosidade s novas idias do iluminismo de

    84 Iluminismo catlico uma expresso utilizada por alguns autores para caracterizar uma corrente de

    pensamento que, embora tenha influncia das Luzes, no conseguiu se desvencilhar da f e de alguns dogmasda Igreja. Tambm procura dar conta de um certo ecletismo filosfico que procurou conciliar as idias modernascom o pensamento institucional da Igreja. Pode-se encontrar tambm variaes desta expresso, comoiluminismo mitigado, iluminismo reformista.

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    forma a projetar o catolicismo na vida civil. Apesar disso, se orgulhava de sua religiosidade ede sua nao, pois considerava Portugal o nico reino onde a Religio permanecera pura eilibada. No entanto, sabemos que mais tarde o marqus praticaria uma poltica regalista nosentido de fazer do poder sacro um aparelho ideolgico do poder temporal. Esse fato ficaevidente com a expulso dos jesutas em 1759.

    Verney seria expulso de Roma em 1771 por influncia de Pombal.85 Em carta de 8 defevereiro de 1786 ao oratoriano Padre Jos de Azevedo, disse: Eu sim, tive ao princpioparticular ordem da Corte de iluminar a nossa nao, em tudo o que pudesse, mas nunca mederam os meios para o executar.86 O pensamento verneyano se harmoniza com as reformaspombalinas em muitos aspectos. No entanto, sobre a suposta cooperao de Verney nogabinete de Pombal, se manifestou apenas indiretamente, sem documentos oficiais que ocomprovem. Cabral de Moncada comenta o pensamento de Verney: Esta a o grmen de todasas reformas posteriores do sculo, no s da reforma do ensino, segundo mais geralmente se cr, comoantes disso, da prpria reforma do romanismo em Portugal, da lei da Boa Razo e da restantelegislao pombalina que nela se inspirou.87

    85 VM, v2, p.XLIV

    86 Apud. ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. Verney e a projeo de sua obra. Instituto de

    Cultura Portuguesa, 1980. p.1587

    O mesmo professor entende que Verney introduziu as idias da Escola do Direito Natural expostas nacarta XIII do Verdadeiro Mtodo, Que ele tivesse sido o causador directo, o deus ex machina de uma grandeparte da legislao do Marqus, , pelo menos discutvel. Mas que ele fosse a mais alta conscincia, no ntimo daqual se definia e tomava corpo, pouco a pouco, todo o sistema de idias de que o regime parecia querer tornar-sea concretizao poltica, isso o que nos parece evidente cf. ANDRADE, p.76 e.78

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    2 O PENSAMENTO MODERNO DE VERNEY

    2.1 VERNEY, PORTUGUS OU COSMOPOLITA?

    Um dos traos mais marcantes dos homens do iluminismo era seu carter cosmopolita.A busca do conhecimento atravs da razo transcendia a idia do pertencimento a uma nao.A Repblica das Letras se identificava com o projeto de uma sociedade universal, quecompartilhava o gosto pelas Cincias e pelas Artes. Verney um cosmopolita que queria

    iluminar Portugal.

    No existem muitos documentos a respeito da vida pessoal de Verney. De origemfrancesa, filho de Dionsio Verney e Maria Arnaut, Luis Antonio Verney nasceu em Lisboa, a23 de julho de 1713. Estudou Filosofia na Congregao do Oratrio de Lisboa e, tendoconcludo o ensino fundamental, deslocou-se para vora. Graduou-se mestre em artes, depoisde ter sustentado teses pblicas de Filosofia. Decorridos poucos anos, concluiu o curso deTeologia na Universidade de vora.88 Em 1736, estabelece-se em Roma, onde cursou ascadeiras de Teologia Dogmtica e de Jurisprudncia. Verney indica que nessa poca, omovimento intelectual francs repercutia mais em Roma do que em Portugal. Em Roma. Opontfice Bento XIV conferiu-lhe a sinecura de arcediago no arcebispado de vora, em1742.89

    Em Roma, Verney havia se impressionado com escritores como Muratori, autor daobra Delle Riflessioni sopra il Buon Gusto nelle Scienze e nellArti (Veneza, 1708); Colnia,1721; Veneza, 1726, 1736, 1744) e de Diffetti della Giurisprudenze, 1742; e AntnioGenovesi, que pontificiava em Npoles, tradutor da obra de Locke, The reasonableness ofCristianity as delivered in the scripture. Genovesi criticou o inatismo e o silogismo nosElementa Artis Logico-Criticae (1745). Em 1745 editou para seus alunos da Universidade oselementos de Fsica de Musschenbroeck..90 O ambiente intelectual da capital da Igreja,comparado com o portugus, era muito mais permevel s idias vindas da Frana, daInglaterra e de Flandres:

    88 Banha de ANDRADE afirma que concluiu o curso de Filosofia, recebendo o grau de Bacharel em

    1731 e o de Licenciado e Mestre em Artes dois anos depois. Ibid.., p.1589

    Arcediago: autoridade eclesistica que exerce poderes sobre vigrios. Arcebispo: prelado que tembispos sujeitos sua autoridade. Sinecura: cargo ou emprego rendoso e de pouco trabalho; emprego cujasfunes no se exercem.

    90 ANDRADE, op.cit, p.19.

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    Mas isto seria nada: o melhor da festa est na satisfao com que ficam de terem estudado tudo aquilo(mtodo escolstico). Se algum lhe contradiz um ponto; se algum quer tomar o trabalho de lhemostrar que nada daquilo vale um figo; ou que Aristteles no falou naquele sentido; ou que a Filosofiase deve tratar de outra maneira; e que assim tratam naqueles pases que do leis ao mundo em matriade erudio, e ainda em Roma, nas barbas do Papa, etc.91

    Em 1746, publicou o Verdadeiro Mtodo de Estudar, provavelmente redigido at1744. Eram dezesseis cartas em portugus, formando dois tomos, como oferta aos padres daCompanhia de Jesus. Seu objetivo, partindo de um idealismo,92 era livrar Portugal do atrasoem relao s demais naes europias, e como escreveu: "formar homens que sejam teispara a repblica e religio".93 Seu livro causou muita polmica, sendo publicadas vrias obrascontra seu mtodo. Dentre seus crticos, o mais ferrenho foi um jesuta que usava o codinomede padre Arsnio da Piedade, que acusava Verney de ser jansenita94 e inimigo do reino:

    Reina esta moda muito em Inglaterra, Frana, e Flandres. posto que muitos destes soCatlicos, necessria grande advertncia para separar dos que so suspeitos na F, ainda queordinariamente se acho em Frances, porque nesta lngua saem de outras partes, e ainda quesejo nascidos em Frana, bem sabido , que l no faltam Jansenitas. 95

    O Verdadeiro Mtodo de Estudar apareceu assinado pelo pseudnimo de "padreBarbadinho". Ainda em 1754, oito anos decorridos da primeira edio, o prprio Verneynegava a Francisco de Pina e Melo que lhe pertencesse a autoria da obra.96 A autoria s foraconstatada hora da morte, no testamento e seus anexos.

    Em 1760, Portugal e a Santa S quebraram as relaes diplomticas,97 e Verney teveque abandonar Roma. Posteriormente, escreveria cinco cartas ao padre preposto da

    91 VM. Estudos Filosficos, V.3, p.8.

    92 "Recordo-me, Excelncia, que me haveis dito uma vez que, ocorrendo-me algum pensamento til ao

    bem pblico, eu no deixasse de vo-lo dizer", Idi.93

    Ibid. , p.1594

    Doutrina de Cornlio Jansen, bispo de Ipres, sobre a graa e predestinao. Cornelius Jansenius(1585-1638) radicalizou o pensamento de santo Agostinho no tocante relao entre a graa divina e a liberdadehumana, o jansenismo fazia depender a salvao do homem do juzo prvio e insondvel do Criador, e no das"boas obras" ou da vontade da criatura.

    95 REFLEXES Apologticas, p.7.

    96 Sobre a autoria do Verdadeiro Mtodo, ver tambm Maria Lcia Gonalves Pires. p.19.In:.Verney,

    Luis Antonio. Verdadeiro Mtodo de Estudar: cartas sobre retrica e potica. Lisboa : Presena, 1991.97

    O Papa ficou indignado pela falta de diplomacia do Conde de Oeiras (futuro Marqus de Pombal) queexpulsou o nncio (embaixador do papa junto de um governo estrangeiro), Accioujuoli, que no o haviaconvidado para o casamento do infante D.Pedro, irmo do rei, com a princesa D.Maria, sua sobrin