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Sumrio:1

Sumrio:1. Introduo; 2. O Relativismo de valores em Kelsen: a inexistncia de um valor absoluto do justo; 3. Direito e Moral na Teoria Pura do Direito; 4. Noes de justia: as frmulas vazias de contedo; 5. O embate com o direito natural e falta de resposta para o problema da justia; 6. O que a justia para Kelsen?; 7. A crtica de Mrio G. Losano; 8. Concluses; 9. Referncias bibliogrficas.

1.Introduo

Este esforo monogrfico tem o objetivo de trazer, em linhas decididamente sumrias, algumas observaes sobre a teoria de justia de Hans Kelsen, o formidvel jurista e filsofo de Praga, reconhecidamente a mxima expresso do positivismo jurdico.

Na verdade, a monografia registrar a "no-idia" de justia em Hans Kelsen, entendendo a palavra idia em um contexto de uma teoria completa e absoluta de justia, dizer, um ideal de justia. Kelsen se bate longamente em seus escritos sobre a justia, em especial no "Problema da Justia", por desconstruir qualquer frmula mgica que pudesse responder a tal pergunta, a ponto de afirmar que todas as propostas tericas de justia, pelo menos as mais antigas, so completamente vazias de contedo.

bvio que Hans Kelsen tem um senso de justia ou uma quase-idia de justo, sentimento que retratado em seu livro "O que a justia?". H valores ou padres morais, sedimentados pela cincia tica, que Kelsen preza como caminhos de justia ou um sentimento do justo. Contudo, segundo Kelsen, impossvel se afirmar um valor absoluto, uma idia de justia harmnica, uniforme e universal. Impossvel generalizar-se uma idia de justo, tanto na lide do conhecimento racional como no campo do sensvel. No existe para Kelsen o consenso absoluto do justo e, ainda que se admitisse um ideal universal, no ns dado conhec-lo. O que h o entendimento/sentimento do justo para cada qual, talvez com uma maior ou menor possibilidade de ampliao e harmonizao.

Partindo desta concepo inicial, to arraigada no texto positivo e na lgica formal-irritante de Hans Kelsen, o segundo tpico centrar em discutir, com mais vagar, a tese da inexistncia de um valor absoluto do justo. O que se pode entender deste relativismo de valores em Kelsen. Mais: qual o papel da sua lgica de argumentao, em um rigoroso formalismo, para a concepo relativista. Kelsen no consegue se convencer, fechado em sua concretude, em sua fortaleza formal, na possibilidade de valores absolutos. Qual o impacto dessa no-idia para seu problema da justia?

O terceiro tpico levar o debate acima para os limites formais que Kelsen nos apresenta na "Teoria Pura do Direito", naquilo que diz respeito sempre polmica relao entre Direito e Moral. O relativismo de valores encontra eco na severa distino que Kelsen faz entre Direito e Moral, mundos quase incomunicveis para o cientista do positivismo jurdico. Se estamos diante de mundos distintos, em uma concepo cientfica de pesquisa, os valores e padres morais, alm de relativos, estariam distantes da "norma", pelo menos no que respeita ao conhecimento da regra jurdica, do direito positivo. Quanto aplicao, segundo Kelsen, a histria poderia ser diferente.

No tpico que se segue, como encadeamento lgico, desenvolve-se a crtica de Kelsen sobre inmeros modelos de justia, cada qual com a sua frmula de soluo. Merece destaque suas contestaes em face da frmula do suum cuique, da regra de ouro, do imperativo categrico kantiano, do meio-termo aristotlico, do princpio retributivo, alm dos princpios da justia comunista de Karl Marx. Vale realar, ainda, o paralelo que Kelsen faz entre as idias de justia de Plato e Jesus Cristo, a ponto de tratar o tema como um "mistrio da f", como "Iluso de Justia", [01] numa linha muito bem revelada pela Encclica Fides et Ratio, do papa Joo Paulo II. [02]

No tpico cinco o problema continua quando Kelsen se depara com os ideais de justia conformados pelo jusnaturalismo. Kelsen enfrenta arduamente o debate, ferrenho defensor de sua lgica positiva, para afirmar que o direito natural no resolve o problema, no convence como justia absoluta, inalcanvel pela nossa razo, traduzindo quase um territrio mstico.

O sexto tpico revela aquilo se pode chamar do sentido de justia para Kelsen, como se dizia acima, to-s para ele, um senso do justo sem qualquer intuito de universalizao. Ora, na compreenso deste esboo monogrfico transparece indispensvel refletir sobre o que o Kelsen pensa e diz a respeito do seu prprio sentimento de justia.

As crticas de Mrio Losano, capturadas exclusivamente da introduo ao "Problema da Justia" de Kelsen, servem de indicao para um caminho contestador do caminho formal kelseniano. As crticas de Losano, incorporadas no tpico sete, no partem de um contraponto entre as diferentes teorias de justia e a no-idia de Kelsen, mas so feitas a partir da teoria pura do direito. Nesse mbito, cabe-nos fazer a seguinte pergunta: h alguma lacuna na no-idia de Kelsen em face da sua teoria pura do direito ou tal formulao justamente o complemento indispensvel do seu formalismo cientfico? Mrio Losano sugere relevantes dvidas.

H que se terminar a monografia apresentando algumas concluses e sugerindo alguns caminhos de pesquisa e estudo. No ser uma concluso remissiva, partindo do que j se escreveu. No. Ser uma concluso novidadeira, que o lugar prprio para se apresentar as idias do autor da monografia. o que se far no ltimo tpico.

2.O Relativismo de valores em Kelsen: a inexistncia de um valor absoluto do justo

A inexistncia de um valor absoluto do justo para Kelsen pode ser deslindada por duas frentes. A primeira diz respeito independncia da validade da norma positiva em face da norma de justia, enquanto esta traduz um valor pleno de validade e fundao de uma ordem jurdica. A segunda diz respeito ao problema da justia em funes das suas normas, quais sejam, as normas do tipo metafsico e as normas do tipo racional. Em ambas o valor absoluto ser colocado em cheque.

Partindo da primeira perspectiva, Kelsen reala:

sobretudo do ponto de vista da doutrina do direito natural, por fora da qual o direito positivo apenas vlido quando corresponde ao direito natural constitutivo de um valor de justia absoluto, que se opera um juzo de apreciao do direito positivo como justo ou injusto. [03]

Ora, nesse sentido, tal como coloca Kelsen, sob o ponto de vista do direito natural, torna-se indispensvel encontrar um ideal de justia, que se quer absoluto, como a nica forma de fundar uma ordem jurdica e dot-la de validade, significando que, "de acordo com esta teoria, s o direito natural pode, na verdade, ser considerado vlido, e no o direito positivo como tal". [04]

Kelsen, no entanto, diz que a validade das normas de direito positivo no depende da relao em que se encontram com a norma de justia. Assim: o direito positivo vale enquanto tal, dizer, da sua objetividade, da norma posta, retira a sua validade subjetiva; a sua validade tem-se como regra posta, pertencente ao prprio sistema. A norma entrou com regularidade no sistema jurdico, como tal ela retira sua validade subjetiva. Seria desnecessrio pedir a sua adequao a um ideal de justia.

Para Kelsen no se pode deduzir de um ideal, que se quer absoluto - mas para ele no , uma norma do dever-ser. So instncias de comunicao diversas. O mundo do ser, de onde se pode pensar e imaginar um valor "universal" no se comunica com o mundo do dever-ser. No haveria interao entre a norma e o conceito. No sob o ponto de vista de um valor absoluto, fundante. Como afirma o filsofo:

no se pode deduzir de um conceito uma norma, como pretende erroneamente a chamada jurisprudncia dos conceitos. Uma norma pode ser deduzida apenas de outra norma, um dever-ser pode ser derivado apenas de um dever-ser. [05]

V-se que, ento, diante da perspectiva da cincia positiva surge o sentido do relativo, uma vez que, para Kelsen, a cincia "no tem de decidir o que justo, isto , prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato valorado como justo, sem se identificar a si prpria com um destes juzos de valor". [06] Juzos de valor. A validade do direito positivo no consubstanciada em um ideal externo, do mundo do ser, traz a idia da relatividade do valor, do sentido de justo. Nada capaz de ser absoluto, com a suficincia de sair do sensvel mundo do ser e penetrar no mundo normativo. esta a tica do entendimento de Kelsen, talvez o seu nico valor absoluto, a lgica do que possvel conhecer e prescrever.

Nesse momento, contudo, h que se salientar uma pequena brecha no rigoroso edifcio lgico-formal construdo por Kelsen, em crtica a ser desenrolada mais frente no tpico sete, mas que suscita agora um pequeno registro. Em certo ponto, neste debate do confronto das normas de justia em face da cincia do direito positivo, Kelsen revela a seguinte distrao:

O processo da fundamentao normativa da validade conduz, porm, necessariamente, a um ponto final: a uma norma suprema, generalssima, que j no fundamentvel, chamada norma fundamental, cuja validade objetiva pressuposta sempre que o deve-ser que constitui o sentido subjetivo de quaisquer atos legitimado como sentido objetivo de tais atos. Se fosse de outra maneira, se o processo da fundamentao normativa da validade, tal como o processo da explicao causal que, de acordo com o conceito de causalidade, no pode levar a nenhum termo, a nenhuma causa ltima -, fosse sem fim, a pergunta de como devemos atuar permaneceria sem resposta, seria irrespondvel. Consideramos um determinado tratamento de um indivduo por parte de outro indivduo como justo quando este tratamento corresponde a uma norma tida por ns como justa. A questo de saber por que que consideramos esta norma como justa conduz, em ltima anlise, a uma norma fundamental por ns pressuposta que constitui o valor justia. [07]

Talvez no seja exatamente distrao, mas o reconhecimento de um necessrio valor fundatrio. No abala o relativismo de valores e o entendimento da existncia de inmeros ideais de justia, mas permite ver que, em algum momento, no pice do edifcio formal, de se ter uma norma pressuposta e no posta, ou melhor, aquilo que constitui o valor justia, o momento de contato do "juzo de valor" com a constituio formal do sistema jurdico.

Na segunda perspectiva, as normas de justia do tipo metafsico e as normas de justia do tipo racional tambm se relacionam com o sentido de relatividade dos valores.

A norma de justia do tipo metafsico se apresenta como uma instncia transcendente, para alm de todo o conhecimento humano experimental. Sob a perspectiva subjetiva da crena estamos diante de um ideal absoluto, como diria Kelsen:

o homem deve acreditar na justia que elas constituem tal como acredita na existncia da instncia de que elas procedem -, mas no pode compreender racionalmente essa justia. O ideal desta justia , como a instncia da qual ela provm, absoluto: de conformidade com o seu prprio sentido imanente, exclui a possibilidade de qualquer outro ideal de justia. [08]

No entanto, como efeito de crena, do acreditar, no se pode nunca universalizar qualquer ideal transcendente. O "absoluto" s o inquestionvel para cada um. Se para determinado sujeito um ideal de transcendncia justo, aquele ideal absoluto e no pode ser questionado. Contudo, impossvel uma crena nica, um valor resultante nico. instvel e mutvel o ato da crena. A metafsica, por no racional, por no ser compreendida pela razo humana, impede um juzo uniforme.

Sob a perspectiva das normas de justia do tipo racional, supostamente apreendidas pela razo humana, Kelsen ainda mais afirmativo:

Se, no problema da justia, partimos de um ponto de vista racional-cientfico, no-metafsico, e reconhecermos que h muitos ideais de justia diferentes uns dos outros e contraditrios entre si, nenhum dos quais exclui a possibilidade de um outro, ento nos ser lcito conferir uma validade relativa aos valores de justia constitudos atravs destes ideais. [09]

o momento de voltar ao campo da interseo da Moral com o Direito, tratado por Kelsen no captulo II da "Teoria Pura do Direito". necessrio aprofundar o entendimento de Kelsen, sob o ponto de vista cientfico, do campo da Moral e do Direito. Entender a distino e seus mbitos de atuao, no sentido de dissecar o processo da impossibilidade da coordenao jurdica por um valor supremo, por um comportamento moral. o propsito do tpico seguinte.

3. Direito e Moral na Teoria Pura do Direito

O primeiro ponto que deve ser registrado absoluta necessidade, para Kelsen, da separao, da distino rigorosa que deve ser feita entre Direito e Moral. Justificando a pureza do seu mtodo cientfico, Kelsen tambm reala a confuso que se faz entre tica e Moral, sendo a primeira to-s a cincia descritiva da conduta moral:

A tal propsito deve notar-se que, no uso corrente da linguagem, assim como o Direito confundido com a cincia jurdica, a Moral muito freqentemente confundida com a tica, e afirma-se desta o que s quanto quela est certo: que regula a conduta humana, que estatui deveres e direitos, isto , que estabelece autoritariamente normas, quando ela apenas pode conhecer e descrever a norma moral posta por uma autoridade moral ou consuetudinariamente produzida. A pureza do mtodo da cincia jurdica ento posta em perigo, no s pelo fato de se no tomarem em conta os limites que separam esta cincia da cincia natural, mas muito mais ainda pelo fato de ela no ser, ou de no ser com suficiente clareza, separada da tica: de no se distinguir claramente entre Direito e Moral. [10]

Nesse intuito de distino, Kelsen sustenta dois caracteres essenciais: 1. que tanto a Moral como o Direito prescrevem condutas externas e internas, no sendo certo afirmar que a Moral determina as condutas internas e o Direito as condutas externas; 2. que a Moral tambm dever ser entendida como ordem positiva sem carter coercitivo, dizer, que tambm a Moral criada pelo costume, sendo positiva, sem sano, e da revelando seu interesse de estudo e descrio para a tica cientfica.

No que respeita ao primeiro ponto, Kelsen afirma que uma conduta apenas pode ter valor moral quando no s o seu motivo determinante como tambm a prpria conduta correspondam a uma norma moral. Assim, a Moral coordenaria tanto a conduta interna como externa, tal como faz o Direito, muito embora em mbitos de prescrio completamente distintos. Nesse sentido, retomando o tpico anterior, a ordem moral, interna ou externa, no serve de parmetro de fundao e validade para o Direito, e o ideal de justia que a encarna um no-ideal para Kelsen, sob o ponto de vista da lgica positivista do direito.

No que se refere ao segundo aspecto acima mencionado, o carter coercitivo amplamente referenciada como critrio de distino. Assim Kelsen sustenta:

Uma distino entre o Direito e a Moral no pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou probem, mas no como elas prescrevem ou probem uma determinada conduta humana. O Direito s pode ser distinguido essencialmente da Moral quando como j mostramos se concebe como uma ordem de coao, isto , como uma ordem normativa que procura um ato de coero socialmente organizado, enquanto a Moral uma ordem social que no estatui quaisquer sanes desse tipo, visto que as suas sanes apenas consistem na aprovao da conduta conforme s normas e na desaprovao da conduta contrria s normas, nela no entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da fora fsica. [11]

Afirmado definitivamente a existncia de dois sistemas de normas, Kelsen procura demonstrar que o Direito no pode encontrar sua justificao ou sua validao nas normas da Moral, como se o Direito e Moral devessem necessariamente coincidir em um conceito de justo, ou que o Direto fora da Moral injusto. A nica soluo possvel entender o Direito como forma e no como contedo, na lio de Kelsen. Aqui o trecho significativo:

Quando se entende a questo das relaes entre o Direito e a Moral como uma questo acerca do contedo do Direito e no como uma questo acerca de sua forma, quando se afirma que o Direito por sua prpria essncia tem um contedo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domnio da Moral, que o Direito uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito moral e, portanto, por essncia justo. Na medida em que uma tal tese vise uma justificao do Direito e este o seu sentido prprio -, tem de pressupor que apenas uma Moral que a nica vlida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que s as normas que correspondam a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor absoluto, podem ser consideradas "Direito". Quer dizer: parte-se de uma definio do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justia. [12]

A citao acima nos permite retomar mais uma vez a problema da relatividade dos valores e da relatividade do justo. que, para Kelsen, impossvel pressupor uma nica moral vlida, uma moral absoluta, um sistema de valor nico. H inmeros valores, concepes morais que permeiam a sociedade, e estes valores so mutveis no espao e no tempo, modificando-se em razo do momento histrico e de suas circunstncias especficas.

Kelsen, buscando sedimentar a relatividade dos valores morais, e a inexistncia do justo absoluto como moral absoluta, na sua relao com o Direito, nos traz um registro definitivo:

no se aceita de modo algum a teoria de que o Direito, por essncia, representa um mnimo moral, que uma ordem coercitiva, para poder ser considerada como Direito, tem de satisfazer uma exigncia moral mnima. Com esta exigncia, na verdade, pressupe-se uma Moral absoluta, determinada quanto ao contedo, ou, ento, um contedo comum a todos os sistemas de Moral positiva. Do exposto resulta que o que aqui se designa como valor jurdico no um mnimo moral nesse sentido, e especialmente que o valor de paz no representa um elemento essencial ao contedo de Direito. [13]

A concluso de Kelsen sobre a teoria dos valores relativista sintomtica:

Uma teoria dos valores relativista no significa como muitas vezes erroneamente se entende que no haja qualquer valor e, especialmente, que no haja qualquer Justia. Significa, sim, que no h valores absolutos mas apenas valores relativos, que no existe uma Justia absoluta mas apenas uma Justia relativa, que os valores que ns constitumos atravs dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos juzos de valor no podem apresentar-se com a pretenso de excluir a possibilidade de valores opostos. [14]

Quanto a este tpico, portanto, Kelsen reafirmou a teoria dos valores relativista, o que nos proporciona adentrar agora no tpico seguinte, para discutir as frmulas de justia. Ou seja, alm de relativos os valores, os ideais de justo, alguns ainda so desprovidos de contedo.

4. Noes de justia: as frmulas vazias de contedo

Hans Kelsen revela uma crtica mordaz aos critrios de justia, demonstrando quo vazios so de contedo frmulas mgicas para a soluo do problema, evidenciando a dificuldade de se estabelecer um conceito, alm uniforme e absoluto, concreto.

Assim, comea Kelsen criticando a frmula do suum cuique, segundo a qual deve-se dar a cada um o que seu, ou seja, o que lhe devido. Kelsen demonstra que o modelo de justia do suum cuique completamente desprovido de concretude, suscitando a pergunta: o que h de ser dado a cada um? O que que devido a cada qual? A frmula no responde a tal pergunta, levando a regra a uma tautologia.

O complemento da frmula exige uma ordem normativa que determine o que devido a cada um, que confira o direito a cada qual. Ora, segundo Kelsen, "qualquer que seja essa ordem normativa, quaisquer que sejam os deveres e direitos que ela estatua, particularmente, qualquer quer seja a ordem jurdica positiva, ela corresponde norma de justia do suum cuique e, conseqentemente, pode ser estimada como justa". [15]No temos um elemento concreto, definidor da ordem justa, do que o justo, temos to-s uma frmula, no preenchida, esperando seu complemento, podendo dar validade, portanto, a qualquer ordem normativa e a seu respectivo ideal de justo.

Outra frmula muito utilizada a chamada regra de ouro, segundo a qual "no faas aos outros o que no queres que te faam a ti". Tal regra pode traduzir o seguinte princpio da justia: devemos tratar os outros tal como gostaramos de ser tratados.

Para Kelsen a regra de outro apresenta o mesmo problema da regra anterior. Ora, segundo o filsofo, e parece bvio, a regra pode levar a resultados no pretendidos. Assim, tomada ao p da letra, ningum gostaria de ser punido quando cometesse um delito, e a regra poderia ser utilizada permitindo que todos no fossem punidos.

Quando a regra de ouro postula que qualquer um de ns trate os outros como subjetivamente deseja ser tratado por eles, pressupe-se evidentemente que outros tambm desejam ser tratados assim. O problema que no h um conceito absoluto do bom, e os homens divergem naquilo que desejam, sendo impossvel alcanar a harmonia social com a aplicao da regra de ouro. evidente que da nasce o conflito, tornando-se indispensvel completar a frmula com aquilo que desejvel. Estamos diante de mais uma frmula vazia de contedo.

Assim, para Kelsen: "Se a regra de ouro tomada literalmente, se cada pessoa deve tratar as outras da forma, e apenas da forma, como deseja ser tratada, quer dizer, se para a justificao de uma ordem social decisivo um critrio subjetivo, ento no possvel moral nem ordem jurdica". [16] E mais adiante, conclui: "Tal como acontece com a frmula do suum cuique, tambm com a regra de ouro se harmoniza toda e qualquer ordem social, especialmente, toda e qualquer ordem jurdica positiva". [17]

Muito prxima da regra de ouro o imperativo categrico kantiano, com a seguinte frmula: "Age sempre de tal modo que a mxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal". A regra tida mais como uma mxima moral, uma lei universal da moral, mas pode ser pensado, e pensado tambm, como um princpio de justia.

Ocorre aqui a questo j divisada nas outras frmulas, ou seja, a mxima do agir pode naturalmente ser uma ao negativa, ou subjetivamente entendida, com grande amplitude, com um teor de negatividade como, por exemplo, por fim prpria vida, cometendo suicdio. Segundo Kant, tal mxima no poderia ser tida como lei universal, porque contraditria em si, a mxima do no-viver. Ora, a regra no coloca obstculo para a eleio do agir mximo, no h qualquer freio ou contrapeso, portanto, no se pode negar que o suicdio poderia ser uma mxima universal. Temos aqui uma regra de justia?

Equivale a dizer que Kant, como em inmeros outros exemplos apresentados por Kelsen, pressupe um querer mximo ideal, subjetivamente entendido como bom para preencher a sua frmula. Qualquer querer tido por prejudicial deveria ser afastado do imperativo categrico por contradio. No entanto, como j se disse, tal contradio o filsofo Kant quem estabelece. indispensvel uma pressuposio. Nesse sentido, a frmula, conquanto interessante como regra do jogo, no traz o elemento diferenciador do justo.

Como diz Kelsen: "atua segundo uma mxima da qual devas querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que mxima eu devo querer e de que mxima eu no devo querer que ela se torne uma lei universal? A esta questo o imperativo categrico no d nenhuma resposta". [18]Para mais frente, concluir quanto ao imperativo categrico: "Tal como o princpio do suum cuique ou a regra de outro, tambm o imperativo categrico pressupe a resposta questo de como devemos agir para proceder bem e justamente como previamente dada por um ordenamento preexistente". [19]

Outro interessante sentido de justia o meio-termo aristotlico, a idia de que a conduta reta consiste em no exagerar para um de mais nem para um de menos, encontrar, assim, o ureo meio-termo. Mas, como pergunta Kelsen, o que de mais e o que de menos do "bom" para cada qual? Novamente, o sentido do meio-termo no ns d a resposta, o mais e o menos devem ser pressupostos.

Apropriando-se de Kelsen, diz o filsofo: "Com efeito, a virtude o meio entre dois extremos, isto , entre dois vcios, um por excesso e outro por falta. Assim, por exemplo, a virtude da coragem o meio-termo entre o defeito da covardia (falta de nimo) e o defeito da temeridade (excesso de nimo)". [20] a clebre teoria do mesotes, uma essncia da justia matemtica, geomtrica. Mas como saber o que o vcio e o que a virtude? "Aristteles, porm, pressupe o conhecimento dos vcios como conhecimento de algo de per si evidente e pressupe como vcio ou defeito aquilo que a moral tradicional do seu tempo cataloga como tal". [21]

Parece que, o que vem a ser comum com as frmulas j apresentadas, que o ingrediente a preencher as regras de justia h de ser descoberto pelo senso comum, pelo sensvel, dizer, o que a virtude, o que o certo, o que o bom, todos podem saber ou sentir a priori, no necessitando de qualquer frmula para alcanar tais ideais. O mesmo se diga das modernas teorias de justia, como a de John Rawls, um idealizador e reformador do contrato social, numa feliz equao de liberdade e igualdade, com a abstrao da posio original que, no obstante, angustiado pela influncia de Kant, ainda recai em um intuicionismo, que nada mais a pressuposio do justo e do bem. [22]

No por outra, Kelsen termina sua anlise do meio-termo aristotlico com uma crtica mordaz:

A questo decisiva: "o que a injustia" no obtm resposta da frmula do mesotes. A resposta pressuposta; e Aristteles pressupe evidentemente como injusto aquilo que injusto segundo a moral e o direito positivos. A autntica funo da teoria do mesotes no determinar a essncia da justia, mas reforar a vigncia do ordenamento social existente, estabelecido pela moral e pelo direito positivo. Aqui, nesta funo conservadora, reside a sua funo poltica. [23]

Mais um princpio comentado por Kelsen, talvez historicamente o mais importante: o princpio retributivo. O princpio tem inspirao no instituto vindicativo do homem, ou seja, de retribuir ao seu semelhante exatamente a sua conduta, o seu agir. Assim, a frmula poderia ser, segundo Kelsen: "a cada um segundo o seu mrito ou demrito".

Kelsen, aproximando tal princpio da idia de igualdade e proporcionalidade, faz inmeras crticas frmula da retribuio. No h, para Kelsen, igualdade no princpio, de forma a recompensar dois sujeitos que tiveram a mesma ao valorada como boa ou punir dois sujeitos pelo cometimento de dois crimes iguais. A igualdade intrnseca ao carter geral da norma de retribuio. Ou seja, o princpio no cria e no tem a igualdade como norte de aplicao.

O que mais se aproximaria da idia de retribuio a concepo de proporcionalidade. Assim: "quanto maior for a falta, tanto maior deve ser o castigo; quanto maior o merecimento, tanto maior deve ser a recompensa". Mas tambm para Kelsen aqui impossvel afirmar a existncia de uma proporcionalidade em um sentido estrito, objetivo, mas to-s em uma proporcionalidade aproximativa. Quando se contraria uma norma, impossvel estabelecer uma gradao de rompimento com o dever. Ou a conduta conforme ao direito ou no . A gradao s nos dada pela sensao de desconforto com tal rompimento, mas nunca pela contrariedade em si.

Ainda debatendo o princpio da retribuio sob o prisma da igualdade e da proporcionalidade, e mesmo tendo em conta a engenhosidade da formulao, Kelsen afirma inexistir, com a regra, o critrio do mrito ou do demrito. Com efeito, o mrito e o demrito j esto graduados, numa evoluo da Lei de Talio, de acordo com uma ao positiva ou negativamente avaliada. Mas o que o mrito ou o demrito? A regra no ns d esta resposta, tambm oca, vazia, um vcuo de contedo.

Por fim, alguma passagem sobre o princpio da justia comunista formulado por Marx, tendo em conta que Kelsen submeteu sua rigorosa lgica outras frmulas e adgios de justia, as quais remeto o leitor para o livro "O Problema da Justia", no sendo prprio aqui trazer discusso cada uma dessas crticas.

A frmula da justia comunista do futuro poderia ser assim definida: "cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades". Para Kelsen o problema aqui reside em justamente saber quais so as necessidades de cada um, coisa que a regra no diz.

Se estivermos falando em necessidades sob o prisma subjetivo, ou seja, o que cada um espera receber por suas necessidades, estamos diante de uma promessa de felicidade inalcanvel. Impossvel dar a cada um o que ele espera. Ora, as necessidades que os homens subjetivamente sentem esto de tal forma em conflito umas com as outras que nenhuma ordem social pode satisfaz-las todas, isto , satisfaz-las de outra forma que no seja contentando uma custa da outra.

Tendo em conta a necessidade sob o enfoque objetivo, ou seja, as necessidades reconhecidas pela ordem social como dignas de satisfao, a estamos diante de uma ordem positiva, que vai completar e dizer o que a necessidade. Para Kelsen, o princpio comunista da justia deveria ser o seguinte: "cada um deve, segundo as suas capacidades, fixadas pelo ordenamento social, realizar o trabalho que posto a seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um devem ser satisfeitas as necessidades pelo ordenamento social reconhecidas, pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios determinados tambm por esse ordenamento". [24]

Para finalizar, Kelsen ironicamente desencoraja a frmula:

Tambm o ideal de justia comunista pressupe, como a norma de justia que manda dar "a cada um o seu", uma ordem social sem a qual no pode ser aplicada. Todavia, sobre o contedo das suas determinaes, sem as quais nem o postulado "a cada um segundo suas capacidades" nem o postulado "a cada um segundo suas necessidades" podem obter satisfao, este princpio de justia nos diz tanto como a frmula "a cada um o seu" sobre o que deve ser considerado como o "seu": no nos diz nada. [25]

Extenuado em face das frmulas vazias, cabe-nos abrir um novo tpico e ousar discutir o problema da justia com a ampla doutrina do direito natural. Kelsen prope este instigante embate.

5.O embate com o direito natural e falta de resposta para o problema da justia

No mbito do presente tpico a primeira questo que Kelsen afirma que a teoria idealista do direito, que aqui poder-se-ia confundir com um jusnaturalismo metafsico, [26] um teoria dualista. Equivale a dizer que somente um direito posto tido por justo em funo de um ideal externo direito vlido. Como diria Kelsen: "Direito vlido direto justo: uma regulamentao injusta da conduta humana no tem validade e no , portanto, direito, na medida em que se deva entender por direito apenas uma ordem vlida". [27]

Diversamente da teoria idealista, a concepo do positivismo jurdico descreve a validade da norma jurdica indepentemente da norma de justia, do ideal de justia. A norma positiva vale enquanto integrante do sistema jurdico, tirando sua validade da estrutura e escalonamento das normas, em uma lgica estritamente formal, sem qualquer necessidade de adequao a uma autoridade transcendente.

Como j ressaltado em item anterior, ao associar a teoria positivista do direito a uma teoria realista, Kelsen justifica-se naturalmente no relativismo axiolgico, dizer, na inexistncia de valor absoluto e na possibilidade e na alternncia de inmeras normas de justia tidas como vlidas. A essncia do relativismo de valores para o positivismo jurdico fica densamente registrado neste trecho: "Uma teoria do direito positivista, isto , realista, no afirma e isto importante acentuar sempre que no haja nenhuma justia, mas que de fato se pressupem muitas normas de justia, diferentes umas das outras e possivelmente contraditrias entre si." [28]

Nesse sentido de argumentao, Kelsen traduz o direito natural, em uma primeira noo, como um direito pressuposto, como normas que j nos so dadas na natureza anteriormente sua possvel fixao por atos de vontade humana, normas por sua prpria essncia invariveis e imutveis.

Nessa noo Kelsen j postula sua primeira objeo: impossvel retirar da natureza, da realidade, do ser um dever-ser, ou seja, nenhum valor pode ser imanente da realidade emprica. O caminho para Kelsen inverso, s podemos valorar o ser em decorrncia de um deve-ser. S depois de estipulado um deve-ser que um dado da realidade, um fato pode ser tido como justo ou injusto, bom ou mau. Para Kelsen, "quem julga encontrar, descobrir ou reconhecer normas nos fatos, valores na realidade, engana-se a si prprio". [29]

Segundo Kelsen, a impossibilidade de retirar um valor da realidade, do mundo do ser, faz com que tal concepo do justo, para o direito natural, tenha uma origem metafsico-religiosa, em que radica a idia de que a natureza foi criada por uma autoridade transcendente que incorpora em si o valor moral absoluto. a idia que est na base da teologia crist, com a doutrinao de um Deus justo que rege a natureza, razo pela qual pode-se extrair um direito justo. Foi esta a doutrina dominante do direito natural nos sculos XVII e XVIII e que, de acordo com Kelsen, retomou sua fora no sculo XX.

Para o filsofo de Praga, inmeros expoentes do pensamento filosfico e jurdico sustentaram a existncia de um direito eterno e imutvel, de origem divina transcendente e divina, como fez Ccero com a filosofia estica, como fez Santo Agostinho ao descrever a "lei eterna que, enquanto razo ou vontade de Deus, prescreve a conservao da ordem natural e probe a sua perturbao". No mesmo mpeto de associao do direito natural com a base teolgica, Kelsen cita Toms de Aquino, para quem "o direito dedutvel das tendncias naturais por Deus implantadas nos homens o direito natural".

Kelsen tambm debate a possibilidade de se fundar um direito natural na natureza humana. a tentativa de ser fundar um ideal de justo nas inmeras tendncias do comportamento humano, numa espcie de amlgama das suas inclinaes, instintos, pulses e razes. No entanto, impossvel capturar e registrar uma ndole humana imutvel, a ponto de servir com ideal de justo. A diversidade dos impulsos tamanha, as pulses so as mais diversas, entre a natureza egosta e a altrusta divaga uma distncia to grande, que da no surgir uma doutrina coerente do direito natural, a ponto de nos dar uma referncia do justo.

No sentido da teoria do direito natural baseada na natureza do homem "normal", na conduta mdia do homem, Kelsen tambm diz que tal doutrina tem uma fundamentao teolgica e, portanto, inacessvel ao conhecimento humano e no apreensvel racionalmente como uma idia de justia a guiar o direito posto.

Quanto a este ponto, h um registro longo, mas instigante da formidvel lgica kelseniana:

A norma segundo a qual o homem deve se conduzir da forma como regularmente se conduz a maioria dos homens apenas poderia ser apresentada como de direito natural se pudesse tratar-se de uma maioria de toda a humanidade e se pudesse conferir a esta norma validade absoluta. O primeiro requisito dificilmente ser possvel e o segundo s possvel sob o pressuposto de se acreditar que da vontade de Deus que o homem assim se conduza e que, portanto, na conduta regular da maioria dos homens, e apenas nesta, mas no na conduta da minoria, se exprime a natureza do homem, a natureza que nele foi implantada por Deus que, por conseguinte, a natureza dos homens em regra boa e s excepcionalmente m.

Efetivamente uma escola teolgica defende esta tese. Mas no h nada de mais significativo do que o fato de uma outra escola, seguindo a orientao de Agostinho, defender a tese oposta: a tese pessimista de que a natureza do homem est corrompida, de que, depois da queda original, todos ns somos pecadores. Uma teoria cientfica do direito no tem razo nenhuma para se pronunciar a favor de uma ou outra das doutrinas teolgicas. Ela pode se limitar verificao de que tambm a tentativa de fundar o direito natural sobre uma natureza "normal", sobre uma natureza mdia do homem, precisa lanar mo de uma fundamentao teolgica da doutrina jusnaturalista. [30]

Kelsen combate ainda a especulao de um direito natural como direito racional. que aqui o direito natural apropria-se de uma razo prtica que, segundo Kelsen, tambm tem origem teolgico-religiosa. Kelsen debate com Toms de Aquino e com Kant, em funo da noo de razo prtica adotada por estes filsofos, e tambm refuta a posio racionalista de Grocio. Assim, diz Kelsen como seu argumento definitivo:

Se analisarmos as coisas mais de perto veremos que a razo, da qual o direito natural deduzido, no a razo emprica do homem tal como ela efetivamente funciona, mas uma razo especial, a razo "reta", a razo no como ela de fato , mas como deve ser. (...) E, de fato, s razo divina podem ser imanentes as normas absolutamente vlidas de justia, s como referncia razo divina se pode fazer a afirmao contraditria de que ela simultaneamente funo cognoscitiva e funo voluntria, pois o princpio lgico que exclui a contradio no aplicvel s afirmaes relativas aos atributos de Deus. Somente a razo divina pode ser razo "prtica", isto , conhecimento legislador, s de Deus se pode afirmar que conhecer e querer so uma e a mesma coisa. [31]

Outro caminho contestado por Kelsen foi a tentativa de se fundar o direito natural no sentimento jurdico do justo. Contudo, no mbito desta iniciativa, mais uma vez, estamos diante do subjetivo, ainda que "louvvel seja" o sentimento do justo. No possvel adotar qualquer critrio objetivo, de igual contedo para todos os indivduos que possa ser generalizado como elemento do justo. Alm disso, tal como o homem mdio ou normal, os sentimentos so os mais variados, diversos. A sensao do justo amplamente mutvel, no espao e no tempo. Kelsen ainda salienta: "o sentimento, incluindo o sentimento jurdico, um fato da ordem do ser; e de um fato da ordem do ser no pode seguir-se nenhuma norma de dever-ser. Nesta nova fundamentao do direito natural trata-se de obter normas, normas de justia, princpios supremos do direito". [32]

Em um dos ltimos aspectos, Kelsen dispara sua ironia e sua crtica na direo da rasteira tentativa de se justificar a doutrina do direito natural pela sua funo. Alega-se, segundo Kelsen, que a doutrina do direito natural, ou que as vrias subdoutrinas, tem conduzido a um melhoramento ou aperfeioamento do direito positivo.

Ora, para Kelsen, sob a perspectiva do positivismo jurdico, a nica coisa que se pode afirmar, em um dado momento, que um direito positivo foi moldado de conformidade com uma determinada norma de justia advinda do direito natural. No se poderia fazer da um juzo de valor sobre a vantagem ou desvantagem de determinada ordem jurdica positiva. Claro est que, ao se fazer um juzo de vantagem ou desvantagem, est se adotando uma idia de justia entre outras as mais diversas. Pergunta: onde o justo absoluto?

Para Kelsen, portanto, o problema da justia ento permanece sob a ndole do direito natural, que no consegue resolv-lo. Pouco importa o mtodo de soluo. A necessidade de resolver o problema, de qualificar uma ao como absolutamente boa, absolutamente justa subsiste. Kelsen nos apresenta ento um trecho muito significativo da sua no-idia, registro sntese da "justia" sob o enfoque positivista, do seu mtodo de conhecimento cientifico:

A tarefa do conhecimento cientfico no consiste apenas em responder s perguntas que lhe dirigimos mas tambm em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido.

O afastamento do positivismo jurdico e o regresso doutrina do direito natural tambm no podem ser justificados pelo fato de aquele, ao contrrio deste, no nos fornecer nenhum critrio para a apreciao ou valorao do direito positivo e, portanto, nos deixar sem recurso quando se apresenta a questo decisiva de saber se uma ordem jurdica positiva deve ser mantida, reformada ou afastada pela fora. Enquanto teoria relativista dos valores, tambm o positivismo fornece critrios para a apreciao ou valorao do direito positivo na configurao que ele, em cada caso, apresenta. Apenas sucede que estes critrios tm um carter relativo.

A circunstncia de que este relativismo nos "deixa em apuros" significa que ele nos obriga a tomar conscincia de que a deciso da questo nos pertence, porque a deciso da questo de saber o que justo e o que injusto depende da escolha da norma de justia que ns tomamos para base do nosso juzo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas; significa que esta opo apenas pode ser feita por ns prprios, por cada um de ns, que nenhum outro nem Deus, nem a natureza, nem ainda a razo como autoridade objetiva pode faz-la por ns. este o verdadeiro sentido da autonomia da moral. [33]

6. O que a justia para Kelsen?

Este tpico ser deslindado em poucos pargrafos. J plenamente consciente da moral relativista kelseniana e da inexistncia de valores absolutos, cabe-nos perguntar, na multido de inmeros juzos de valor, qual o sentido da justia para Hans Kelsen, ou seja, o que para ele, em particular, exprime a justia.

Segundo Kelsen, "do ponto de vista do conhecimento racional existem somente interesses humanos e, portanto, conflito de interesses. Para solucion-los, existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos interesses custa do outro, ou promover um compromisso entre ambos". Mais frente, Kelsen completa: "No possvel comprovar que somente uma, e no a outra soluo, seja justa. Se se pressupe a paz social como valor maior, a soluo de compromisso pode ser vista como justa. Mas tambm a justia da paz uma justia relativa, no absoluta". [34] Ora, ainda que relativo Kelsen no abre mo da sua lgica rigorosa e do seu metido cientifico -, de se imaginar algum valor que, para o filsofo, pode ser tido como uma expresso de justia.

Tal valor para Kelsen, que fundamenta a doutrina relativista de valores, o princpio da tolerncia. Assim Kelsen define tal princpio: " a exigncia de compreender com benevolncia a viso religiosa ou poltica dos outros, mesmo que no a compartilhemos, e, exatamente porque no a compartilhamos, no impedir sua manifestao pacfica". [35]

No entanto, Kelsen no admite o princpio da tolerncia absoluta, mas uma tolerncia no limite do ordenamento jurdico positivo. Afirma o filsofo: "obviamente, de uma viso de mundo relativista no resulta o direito tolerncia absoluta, somente a tolerncia no mbito de um ordenamento jurdico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a essa justia, proibindo-lhes qualquer uso da violncia, porm no lhes restringindo a manifestao pacfica de opinies". [36]

Mas aqui reside um outro problema, no resolvido por Kelsen. O limite da tolerncia encontra-se no seio de um ordenamento jurdico positivo, que no se tem a priori. Kelsen no nos d nenhuma resposta. O intolervel, diante da razo humana, talvez seja a violncia, no sentido de que os mais altos ideais morais foram comprometidos pela intolerncia daqueles que os defenderam.

O senso de tolerncia de Kelsen parece coadunar com um sentido de democracia, ou seja, ampla possibilidade de debate, sem represso a qualquer doutrina, mesmo aquelas antidemocrticas, no admitindo, to-s, o uso da violncia. Nesse sentido, diz Kelsen: "Mas a democracia pode continuar tolerante, se precisar se defender de intrigas antidemocrticas? Pode! na medida em que no reprimir demonstraes pacficas de opinies antidemocrticas". Mas Kelsen completa: "A democracia no poder se defender se isso implicar desistir de si prpria. Mas direito de todo governo, mesmo democrtico, reprimir com violncia e evitar, pelos meios adequados, tentativas de derrub-lo com o uso de violncia". [37]

Kelsen, ento, admite o uso da violncia para a manuteno da democracia. H um limite tnue e tenso entre aquilo que tolervel e intolervel para o dito regime democrtico ou, como relata Kelsen, entre a propagao de certas idias e a preparao de uma insurreio revolucionria. da prpria natureza da democracia arcar com tal risco e descobrir tal limite.

A definio particular de Kelsen permanece assim tambm muito fluida, flertando com a idia de tolerncia. O prprio filsofo diz no saber nenhuma resposta nesta magistral passagem final:

Iniciei este ensaio com a questo: o que justia? Agora, ao final, estou absolutamente ciente de no t-la respondido. A meu favor, como desculpa, est o fato de que me encontro nesse sentido em tima companhia. Seria mais do que presuno fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, no sei e no posso dizer o que seja justia, a justia absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justia relativa, e s posso declarar o que significa justia para mim: uma vez que a cincia minha profisso e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justia sob cuja proteo a cincia pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. a justia da liberdade, da paz, da democracia, da tolerncia. [38]