Kant Pre Critic o

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 Editora Universitá ria Edunioeste Casc avél- Pr. ISBN 85-86571-19-9 ANO 1998 AUTOR: Daniel Omar Perez TÍTULO: Kant Pré-crítico. “A desventura filosófica da pergunta ....”. (Breve introdução a alguns textos pré-críticos kantianos, onde se apresentam questões de significação na formulação e resolução de problemas metafísicos, e a passagem para o tratamento crítico). Kant, I; História da Filosofia, Metafísica, Teoria do Conhecimento, Linguagem, Semântica SUMÁRIO Advertência Pre-texto Parte I: Problemas de significação nos textos pré-críticos 1.1- Introdução 1.2- A dobradiça entre o pré-crítico e o crítico 1.3- O mal-estar filosófico (acerca dos problemas da metafísica). 1.4- Relações conflituosas (acerca da ciência da natureza e da metafísica) 1.5- A razão da existência (acerca da distinção entre o lógico e o real) 1.6- História de um esquecimento (acerca de posição e contradição) 1.7- Os ventos hipocondríacos (acerca do mal-estar e a ironia) 1.8- O mal-estar declarado (acerca da terapia) 1.9- Conclusão Parte II: A interpretação crítica do problema da metafísica 2.1- Introdução 2.2- Os sentidos da metafísica 2.3- Os problemas necessários 2.4- A ilusão transcendental 2.5- A história da metafísica 2.6- A tarefa crítica 2.7- Conclusão CONCLUSÃO FINAL Pós-Texto Apêndice

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  • Editora Universitria Edunioeste Cascavl-Pr. ISBN 85-86571-19-9 ANO 1998

    AUTOR: Daniel Omar Perez

    TTULO:

    Kant Pr-crtico. A desventura filosfica da pergunta .....

    (Breve introduo a alguns textos pr-crticos kantianos, onde se apresentam questes de significao

    na formulao e resoluo de problemas metafsicos, e a passagem para o tratamento crtico).

    Kant, I; Histria da Filosofia, Metafsica, Teoria do Conhecimento, Linguagem, Semntica

    SUMRIO

    Advertncia

    Pre-texto

    Parte I: Problemas de significao nos textos pr-crticos

    1.1- Introduo

    1.2- A dobradia entre o pr-crtico e o crtico

    1.3- O mal-estar filosfico (acerca dos problemas da metafsica).

    1.4- Relaes conflituosas (acerca da cincia da natureza e da metafsica)

    1.5- A razo da existncia (acerca da distino entre o lgico e o real)

    1.6- Histria de um esquecimento (acerca de posio e contradio)

    1.7- Os ventos hipocondracos (acerca do mal-estar e a ironia)

    1.8- O mal-estar declarado (acerca da terapia)

    1.9- Concluso

    Parte II: A interpretao crtica do problema da metafsica

    2.1- Introduo

    2.2- Os sentidos da metafsica

    2.3- Os problemas necessrios

    2.4- A iluso transcendental

    2.5- A histria da metafsica

    2.6- A tarefa crtica

    2.7- Concluso

    CONCLUSO FINAL

    Ps-Texto

    Apndice

  • BIBLIOGRAFIA

    Advertncia

    O presente texto uma parte, em verso diferente, das minhas pesquisas desenvolvidas, no mestrado e

    atualmente no doutorado, na Universidade Estadual de Campinas (com bolsa Capes de 1994 at

    comeo de 1998). Alguns tpicos foram apresentados em distintos congressos ou publicados em forma

    de artigos aprofundando em questes tcnicas. Ainda continuo trabalhando nas mesmas. Aqui s tentei

    apresentar uma leitura do problema, trata-se de um ensaio de introduo.

    Agradeo o confronto de aqueles com quem tive oportunidade de polemizar. Especialmente com quem

    o fizera desinteressadamente, como os professores Marcus Lutz Mller e Oswaldo Giacoia Jr.. Minha

    gratido ao Professor Zeljko Loparic de quem tenho o orgulho de ser seu orientando.

    Desejo destacar o apoio da atual gesto da Universidade Estadual do Oeste do Paran, especialmente

    do Diretor do Centro de Cincias Humanas e Estudos Scio-Econmicos, Professor Pedro Gambin,

    que tornaram possvel esta publicao. Agradeo ao Prof. Jos Atlio Pires da Silveira e a Jane pelas

    correes do portugus e tambm pelo seu afeto.

    Finalmente, gostaria de agradecer a minha famlia que s vezes compartilha e s vezes suporta, mas

    sempre est comigo.

    Toledo, junio de 1998.

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  • para Ana

    e

    para Felipe que no precisa de filosofia

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  • Dios!!! Adonde ests??

    (Da ltima cena do filme El Juguete rabioso,

    baseado no romance de igual nome de Roberto Arlt)

    Pr-texto

    Antes de apresentar o texto. Antes de percorrer o texto propriamente dito. Antes de assinalar

    os tpicos mais importantes, ressaltar as minhas contribuies ao tema, em resumo, antes de

    introduzir-nos no corpo do texto, tentarei realizar um breve exerccio introdutor. Uma introduo da

    introduo.

    Antes de abordar o texto procurarei abordar o pr-texto, com toda a ambigidade que esse

    termo carrega. Pr-texto como aquilo que anterior ao texto no duplo sentido de estar fora do texto e

    ser o motivo do texto.

    Meu pr-texto tem, como todo pr-texto, paradoxalmente, uma localizao precisa no

    interior do texto e, sem rodeios, denomina-se epgrafe.

    A cena qual remete a epgrafe dramtica1. No final do filme o ator parado sobre um

    monte de lixo abre seus braos, olha para o alto do horizonte e grita: Dios adonde ests!?.... . Essa

    uma pergunta que no decorrer do texto, do texto de Roberto Arlt2, de meu texto sobre o texto kantiano,

    no respondida seno a modo de retalhos. em forma de fragmentos disseminados no texto que

    possvel colher uma resposta pergunta por Deus.

    Esta pergunta no respondida inteiramente na primeira parte de meu texto, onde trato

    vrias vezes o tema em questo, como tambm no respondida na segunda parte, onde a metafsica

    como tal colocada como problema. J que no interior da filosofia kantiana que estamos nos

    movimentando a tentativa de um tratamento apurado desta pergunta deveria levar em conta textos

    kantianos que aqui nem mesmo foram mencionados. Deveramos nos envolver, qui, em uma

    1 Filme argentino El jugete ravioso (traduzido para o protugus como O brinquedo raivoso)2 Roberto Godofredo Christophersen Arlt escritor argentino 1900-1942.

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  • pesquisa sobre temas prticos, lies sobre tica, textos de religio, etctera, e mesmo assim, caberia a

    dvida acerca de saber se possvel formular adequadamente essa pergunta no interior de uma

    Teologia Crtica. Mas um tratamento deste tipo nos permitiria, antes de dar qualquer resposta, saber

    se aquele enunciado mesmo uma pergunta.

    Dios, adonde ests!?.... Ser que uma pergunta para se fazer...?

    No interior do texto arltiano no, e de fato no explicitamente colocada. Arlt apenas

    circunda as condies em torno das quais o protagonista erra permanentemente. O filme consegue

    recriar essa situao. O ator representa muito bem o sentido desse enunciado, que surge como

    pergunta retrica, e apenas retrica, na encruzada do grito do desesperado e a ironia do ctico. A rigor,

    a enunciao cinematogrfica mostra que o enunciado no uma pergunta. Toda a escritura arltiana

    apresenta a impossibilidade dessa pergunta. Mas essa impossibilidade no apresentada em forma de

    tratado, e sim atravs de retalhos, fragmentos de respostas espalhados pelos textos. essa a forma

    da resposta a uma pergunta que nada pergunta. uma resposta que, mais que responder, indica o

    nosso prprio limite, a impossibilidade de abord-la diretamente. Nesse dficit da resposta pergunta

    por Deus desenha-se, aos poucos, nossa prpria finitude. Mas, no como a relao da criatura com seu

    criador, seno, melhor, como o rasgo do arrojado.

    E esse nosso pr-texto, nossa pr-compreenso, aquilo que motiva e desenha o texto.

    A epgrafe indica, deste modo, nossa preocupao: o alcance de uma resposta possvel; ao

    mesmo tempo em que revela uma inquietao: Por qu que no me dado responder diretamente

    sem nada responder? Por qu que essa epgrafe, ou melhor, essa cena arltiana, assinala a

    impossibilidade da pergunta? Por qu que se trata de uma pergunta impossvel?

    Para avanar sobre isto, que antes de ser uma pergunta um estado, mais do que uma

    questo uma condio, que abordarei o texto kantiano. O texto arltiano, lido nestes termos, nos

    coloca, como pr-texto, frente ao texto kantiano, onde, assumindo de raiz esse estado,

    problematizando a fundo essa condio, desenvolvemos um labor filosfico. Esse labor (a saber: a

    questo do limite, o problema da impossibilidade, ... sem mais rodeios: a nossa prpria finitude) pode

    ser lido, em Kant, em termos semnticos. em termos semnticos que podem colocar-se

    racionalmente essas questes. Para esclarecer este n e sem mais jogos de palavras, alm dos

    estritamente necessrios, abandonamos o pr-texto para ir ao texto...

    Sendo assim ento... Qual a questo dos textos pr-crticos kantianos? Que relao tm

    aqueles textos com a nossa preocupao? Por que recorrer a textos esquecidos, marginalizados e at

    mesmo ignorados, para abordar uma questo to importante? Em que medida esses textos podem nos

    ajudar, auxiliar, orientar? Mas, ser que um texto pode nos orientar? Ser que possvel ser orientado

    de outro modo que no seja atravs da leitura?

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  • Para entrar no campo que aberto por essas perguntas nossa tese deve ser declarada logo, s

    assim daremos passo demonstrao, pios, na medida em que surgem inconvenincias na

    formulao e resoluo de problemas cientficos e metafsicos que o Kant pr-crtico defronta-se com

    problemas de semntica e de finitude, esse o eixo de nossa interpretao e o modo em que

    desenvolveremos nossa leitura.

    Este texto no visa procurar a gnese da filosofia transcendental. Ainda que o objetivo no

    seja menor, diferente. O que este trabalho tenta , na sua primeira parte, apresentar a problemtica da

    significao que se encontra nos textos pr-crticos kantianos; e na segunda reconsiderar a passagem

    dos textos pr-crticos para os textos crticos.

    Deste modo demonstraremos que, primeiramente, so problemas de significao os que

    fazem abortar o projeto kantiano de redigir uma boa metafsica; e, como conseqncia, so problemas

    de significao os que situam a atividade filosfica em termos crticos. E significar aqui ler de algum

    modo.

    Atravs de uma breve introduo a alguns destes textos pr-crticos observaremos como a

    questo da significao dos conceitos aparece como decisiva na constituio dos tpicos ali colocados.

    No se trataria j apenas de textos de juventude ou textos mais ou menos dogmticos ou

    empricos, e sim de trabalhos a levar em conta na hora de compreender a natureza da filosofia crtica.

    Para desenvolver esta proposta tentarei ento, primeiramente, a reconsiderao de alguns

    textos kantianos do denominado perodo "pr-crtico", que estejam vinculados especialmente com

    problemas de conhecimento terico. A partir deles demonstrarei que, j nesses textos, Kant assinala

    que o modo dogmtico de formular e resolver problemas metafsicos (empregado por parte do

    escolasticismo e da tradio) faz um uso abusivo das regras lgicas, trazendo como conseqncias:

    a) a confuso do modo de conhecimento matemtico com o modo de conhecimento

    filosfico (conhecimento por construo de conceitos e conhecimento por conceitos respectivamente)

    e:

    b) a mistura do mbito das relaes lgicas abstratas (que independem de toda e qualquer

    experincia) com o campo das coisas existentes (que devem ser determinadas em relao a uma

    experincia possvel), sem fazer qualquer distino clara que permita, depois, vincul-las

    adequadamente.

    Isto faz com que as afirmaes dogmticas sobre problemas metafsicos, sejam totalmente

    desprovidas de sentido objetivo por carecerem, justamente, de um fundamento que lhes outorgue

    validez.

    Com efeito, na sua etapa "pr-crtica", Kant, na tentativa de procurar uma boa metafsica que

    permita estender o conhecimento com certeza (e isto o sabemos pelas suas declaraes explcitas em

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  • vrios textos publicados em vida de Kant, e, sobretudo pela sua correspondncia com Lambert),

    encontra-se permanentemente defrontado com problemas de significao nas questes colocadas.

    Assim sendo, possvel achar, nesses textos, sinais muito especficos da preocupao semntica de

    Kant com relao formulao e resoluo de problemas.

    Essa preocupao vai se tornando uma exigncia temtica no desenvolvimento das pesquisas

    kantianas at se converter em um verdadeiro "mal-estar filosfico". assim que vo se colocando em

    evidncia, no modo dogmtico de formulao e resoluo de problemas metafsicos, os seguintes

    tpicos:

    a) o uso abusivo de alguns princpios de experincia, que no tendo garantias fora desta, so

    aplicados a objetos que no pertencem a nenhuma experincia possvel, carecendo de qualquer

    fundamento objetivo;

    b) o uso abusivo de regras lgicas, que tendo validade para as formaes proposicionais, no

    , por isso, a origem da prpria existncia das coisas sensveis.

    c) a clusula metafsica de "razo suficiente" que usada, na metafsica tradicional, sem

    qualquer restrio em relao s coisas existentes.

    Todos estes tpicos so tratados por Kant de diversos modos ao longo de mais de vinte anos

    de trabalhos. Algumas vezes eles ocupam um lugar de destaque, indicados de maneira especfica como

    o objetivo explcito da pesquisa empreendida, e em outras so s assinalados marginalmente, mas

    mesmo assim possuem uma importncia nuclear para o contedo do texto.

    oportuno esclarecer, antes de mais nada, que esta "temtica da significao" kantiana da

    etapa pr-crtica no surgiu sem inconvenincias, teve seus progressos e tambm seus retrocessos. Por

    causa desses movimentos textuais foram necessrios alguns rodeios e caminhos indiretos para

    chegar sua formulao decisiva.

    Portanto, podemos observar como, por exemplo, em um conjunto daqueles escritos da

    primeira poca, a saber: Histria Universal da Natureza e Teoria do Cu Onde se Trata do Sistema e

    da Origem Mecnica do Universo Segundo os Princpios de Newton (1755), Breve Esboo de

    Algumas Meditaes Sobre o Fogo (1755, b), Monadalogia Fisicae (1756), Investigao Acerca da

    Evidncia dos Princpios da Teologia Natural e da Moral (1764), a preocupao semntica surge a

    partir do tratamento das relaes entre a cincia da natureza e a metafsica. Aqui Kant procura

    mostrar:

    a) a necessidade de autonomia das leis fsicas em relao a qualquer explicao ou

    interveno no cientfica, e

    b) a necessidade de seguir um mtodo experimental e construtivo na explicao cientfica.

    Isto desenvolvido por Kant no tratamento de problemas concretos da cincia da sua poca

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  • (fsica, qumica, astronomia e matemtica). Entretanto, no mesmo perodo, tambm possvel

    observar as dificuldades que Kant tem para explicitar e aplicar claramente os resultados da

    problemtica da significao na prpria metafsica, voltando dessa maneira, a cometer o mesmo erro

    dogmtico que tinha sido questionado anteriormente. A Monadalogia Fisicae (1756) o exemplo

    disso. Aqui Kant pretende demonstrar a existncia real das mnadas por um simples raciocnio lgico,

    sem qualquer referncia sensvel na sua operao.

    Essa distino do campo da lgica em relao ao mbito do real sensvel aprofundada

    noutros textos, tais como: Nova Dilucidatio (1755, c) e Acerca da Falsa Sutileza das Quatro Figuras

    do Silogismo (1762); ali questionado o estatuto da demonstrao lgica no que se refere ao

    conhecimento objetivo da existncia das coisas elas mesmas. O tratamento do princpio de razo

    suficiente e da teoria do silogismo revela-nos as dificuldades semnticas envolvidas tanto na

    indagao dos primeiros princpios do conhecimento como na interpretao das operaes lgicas. No

    primeiro caso preciso restringir o uso do princpio de razo suficiente conhecendo suas limitaes.

    Entretanto, no segundo caso, Kant nos adverte que necessrio adequar os resultados da deduo

    silogstica ao conhecimento efetivo da realidade.

    A distino das relaes lgicas e do campo das coisas sensveis traz conseqncias

    semnticas importantssimas com relao aplicao e reconhecimento dos limites da lgica. Por

    exemplo, em Ensaio Para Introduzir o Conceito de Magnitudes Negativas... (1763) Kant tentar

    distinguir a oposio real (de dois predicados de uma mesma coisa que do um resultado afirmativo)

    da contradio lgica (que impede qualquer resultado vlido) destacando a necessidade de levar em

    conta o contedo da expresso formal.

    Contudo, em nico Fundamento Para a Demonstrao da Existncia de Deus (1763),

    seguindo a mesma linha de demarcao, Kant no vai considerar a existncia como um predicado ou

    determinao lgica, mas sim como posio absoluta do objeto. Nos dois textos est em jogo a

    existncia como efetividade, impossvel de ser reduzida mera determinao lgica.

    Todas essas pesquisas trazem como resultado o verdadeiro fracasso daquele projeto

    empreendido por Kant nos seus primeiros trabalhos, a saber: procurar uma boa metafsica que

    alcance conhecimentos certos. A cada passo encontra-se com contradies e obscuridades semnticas

    na formulao e resoluo de problemas. Devido a isto Kant chega a afirmar que a metafsica no

    existe, e se existe to s o sonho de um visionrio.

    assim como a longa procura de uma metafsica certa torna-se crtica dos sonhos (Sonhos

    de um visionrio... 1766). Esta crtica tem duas partes, uma semntica, onde trata das significaes dos

    sonhadores da razo, e uma emprica, onde trata de possveis perturbaes fsicas dos sonhadores dos

    sentidos. Nela se demonstra a impossibilidade de qualquer conhecimento terico objetivo de entidades

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  • metafsicas como espritos e a necessidade de um procedimento de doao de sentido aos conceitos

    usados na formulao de proposies com validez objetiva.

    Deste modo o termo metafsica adquire dois sentidos, um aquele no qual a metafsica

    deve ser questionada, isto o dogmatismo terico; o outro uma tarefa por se fazer, que no nos

    fornece nenhum novo conhecimento, mas, nos evita a iluso dogmtica de pretender conhecer

    objetivamente aquilo que inatingvel pela nossa experincia. Assim, Kant comea a apresentar a

    idia de uma filosofia crtica. No se trata agora de resolver problemas metafsicos em cada caso, mas

    sim de saber se a metafsica ela mesma possvel como conhecimento vlido.

    Os textos pr-crticos, deste modo reconsiderados, permitem-nos assinalar as falhas contidas

    na empresa da metafsica tradicional, como tambm indicar uma tarefa a seguir, que j no a de

    simples questionamento, mas sim de crtica dessa mesma metafsica. Para esclarecer esta passagem

    etapa crtica ser necessrio determinar os sentidos em que o termo metafsica utilizado por Kant,

    mostrando como a metafsica, ela mesma, se torna problema. Passa-se, deste modo, de uma reflexo

    no interior da metafsica, no tratamento fragmentado de temas parciais dos textos pr-crticos, para

    uma reflexo sobre a metafsica, em um tratamento sistemtico dos seus problemas no labor crtico.

    Por tal razo considero que no pertinente interpretar o conceito de metafsica em um s sentido,

    dependendo este, em cada caso, do contexto no qual usado por Kant. Esta advertncia de leitura

    evita-nos o erro de pensar em uma mera substituio de uma metafsica tradicional por uma

    metafsica transcendental, tal como tentarei mostrar, ao menos parcialmente.

    Esta reflexo sobre a metafsica, desenvolvida na etapa crtica, permite-nos observar como

    esta classe de problemas metafsicos, eles mesmos, no so uma inveno arbitrria e extravagante

    de mentes ociosas, mas sim so gerados necessariamente pela prpria natureza da razo de acordo

    com um princpio de funcionamento lgico, que diz: dado o condicionado, necessrio procurar a

    srie das condies at atingir sua totalidade. O aparelho cognitivo funciona de tal modo que nos

    pede para progredir ou regressar nas condies do dado. Essa regio de problemas da razo,

    denominada metafsica, constituda a partir das perguntas pelas totalidades absolutas de condies

    de objetos dados, e totalmente natural e at necessrio deparar com essas perguntas. Neste sentido se

    destacar a importncia da mudana kantiana de interpretao na teoria do silogismo. Com efeito, a

    mudana da interpretao do silogismo, determinada na sua premissa maior a partir do conceito de

    caracterstica para o conceito de regra (entre o texto pr-crtico de 1762 e a CRP), desempenha

    uma funo essencial para a formulao dos problemas necessrios da razo.

    Mas assim como esses problemas so colocados necessariamente pela razo, tambm

    possvel cairmos em uma iluso da razo, ao se entender um princpio subjetivo de funcionamento

    da razo (que pede para continuar pesquisa das condies at o incondicionado) como lei objetiva de

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  • constituio dos objetos. Deste modo, os problemas metafsicos tornam-se insolveis, devido ao uso

    transcendental (extravagante, excessivo) dos princpios da experincia, que colocam aquela (a razo)

    em contradio consigo mesma ou conduzem s obscuridades semnticas. As proposies surgidas de

    tais contradies e obscuridades carecem de qualquer fundamento que permita decidir a validade dos

    problemas; desta maneira a histria da metafsica ser a histria dos dois modos de enfrentar estes

    problemas, a saber: dogmtica ou ceticamente. A tentativa dogmtica desenhar inmeras propostas

    sem um resultado certo. Enquanto que no ceticismo, assinalando a falta de fundamento vlido no

    dogmatismo, acabar-se- rejeitando a prpria possibilidade dos problemas metafsicos, atravs do

    apelo a uma ignorncia necessria da parte do conhecimento humano.

    Frente a esta dicotomia (dogmatismo terico versus ceticismo) Kant tentar investigar a

    prpria razo, seus problemas necessrios; assim como tambm procurar as condies de

    possibilidade da sua resoluo ou determinar sua insolubilidade. Essa ser a tarefa crtica. A passagem

    da etapa pr-crtica para a etapa crtica ser a passagem da reflexo no interior da metafsica reflexo

    sobre a metafsica, sob a forma da indagao acerca das condies e limites do nosso conhecimento.

    A pergunta aqui :

    Como que a nossa razo pode estender o nosso conhecimento objetivamente?

    Que posso conhecer?

    Que me est dado conhecer?

    Os problemas da metafsica so, portanto, problemas necessrios da razo que exigem uma

    soluo vlida. Como observamos, no legtimo nem a mera afirmao dogmtica, que carece de um

    fundamento slido, nem a rejeio ctica que diretamente abandona a pesquisa. Para poder fornecer

    algum tipo de resposta preciso saber, antes de mais nada, at que ponto pode avanar no

    conhecimento sem cair na mera afirmao sem fundamento.

    A nossa exposio se deter na colocao do problema como tal, sem avanar no

    desenvolvimento do mesmo. Este ltimo seria o aspecto positivo do labor crtico. A nossa

    problemtica a de olhar para o limite, indicar apenas o aspecto negativo do resultado das pesquisas

    kantianas.

    Para levar adiante a nossa interpretao foi necessrio entender a filosofia kantiana como

    uma permanente polmica com outros filsofos antecessores e contemporneos ao nosso autor, como

    Hume, Descartes, Leibniz, Jacobi, Eberhard entre tantos outros. No fundo destas polmicas devemos

    considerar que a metafsica toda a que est em jogo. Nesse sentido, tentamos tratar a questo como

    um problema filosfico e no apenas como uma raridade do passado. A metafsica no um problema

    ultrapassado, nos atravessa. Ainda hoje o logicismo e o matematicismo ocultam, sob a forma do

    rigor e da efetividade da sua demonstrao, o gesto metafsico de pretender o que impossvel

    10

  • conseguir, a saber, a demonstrao da demonstrao. A metafsica no acabou no surgimento da

    cincia e da tcnica, muito pelo contrrio, ali onde aparece com toda sua fora, quando se instaura

    como gesto instalador, ou, como disse J.L.Borges, com sua maior claridade.

    A metafsica como problemtica, no interior do texto kantiano, explicitada luz da questo

    semntica. isto o que nos permite expor a desarticulao crtica do projeto da metafsica e a finitude

    de nosso alcance.

    A metafsica um modo do pensamento que procura esquecer, evitar, reprimir a finitude a

    partir da qual se abre sua prpria possibilidade.

    A metafsica um modo de operar contra a finitude.

    As operaes metafsicas pretendem controlar a totalidade do mundo a partir do alm e

    instaurar finalmente o imprio do infinito.

    Contrariamente, a minha tarefa aqui foi apenas a de um peregrino que colhe alguns

    ensinamentos mundanos nessas terras metafsicas....

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  • Parte 1

    Problemas de significao nos textos pr-crticos.

    1.1- Introduo.

    No dia 21 de setembro de 1798, em uma extensa carta dirigida a Garve, Kant queixa-se da

    vegetativa mais do que escolar condio3 qual ele foi reduzido por alguns comentadores. Ali ele se

    incomoda pelo modo em que tratado pela crtica. Tambm na carta a Herz de 11 de maio de 17814

    escreve que sua obra no popular e, portanto, exige um esforo de compreenso diferente.

    Problemas desse tipo prolongam-se, por exemplo, na polmica com Eberhard, tal como pode ser

    constatado na resposta kantiana5 e na correspondncia da poca. Essa classe de ms interpretaes

    no ficou apenas reduzida primeira crtica, tambm a segunda encontrou essas inconvenincias.

    Assim o indica, por exemplo, o prefacio Crtica da Razo Prtica onde Kant reproduz o

    questionamento que um crtico teria feito em tom de indignao, para indicar que era exatamente esse

    o objetivo de seu trabalho6. At o ano da sua morte (1804), a quantidade dos escritos pr e contra a

    filosofia transcendental era de dois mil7, fato que o preocupou muito. bem sabido que Kant no

    temia ser refutado, mas sim no ser compreendido8 em relao ao significado das suas teses. Certa

    ocasio, olhando para as mais adversas reaes que a crtica tinha originado, afirmou que, qui, sua

    3 Carta a Garve 21 de setembro de 1798. AK XII pp 256-258. No caso das correspondncias nossas tradues foram conferidas (quando foi possvel) com a traduo de Arnulf Zweig em ingls. Philosophical correspondence 1759-1799. London and Chicago: The University of Chicago Press 1990. 4 AK X, 269.5 Resposta a Eberdhard.6 AK V, 8, nota; Um crtico que quis dizer algo como censura desse trabalho, tem acertado mais do que ele poderia achar, dizendo que no se expus nenhum princpio novo de moralidade, mas apenas uma frmula nova. Mas, quem queria introduzir um novo princpio para toda moralidade e inventar esta por primeira vez?7 A informao foi tirada da obra de Heidegger Die Frage nach dem Ding. Traduo utilizada em espanhol de Garcia Belsunce-Szankay. La pregunta por la cosa. La doctrina kantiana de los principios trascendentales. Buenos Aires: Editorial Alfa Argentina 1975. pag 56.8 CRP B XLIII A citao da paginao da Crtica da Razo Pura (CRP) ser feita como de costume, A corresponder primeira edio e B segunda. As tradues utilizadas foram duas, uma portuguesa, a da 3.ra. edio da Fundao Caluoste Gulbenkian feita por Manuella Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo, que foi a mais utilizada, e outra castelhana feita por Del Perojo-Armengol, da Editorial Losada SA Buenos Aires. Onde surgiram dificuldades foi consultada a edio da Academia de Berlin, Kants Gesammelte Schriften,1902 , 29 vol., isto tambm vale para todos os outros textos de Kant citados neste mesmo trabalho.

    12

  • filosofia fosse entendida em cem anos9.

    Essa mesma viso otimista, na qual prognosticara que a passagem do tempo permitiria

    melhores interpretaes, mostra-se tambm na reflexo 5015. Ele escreve: uma vez que se tenha

    esfriado a efervescncia dos espritos dogmticos, creio que esta doutrina a nica que subsistir a ir

    adiante10. O otimismo kantiano parece apoiar-se em uma superao filosfica do ceticismo, mas,

    ainda restaria superar a teimosia do dogmatismo, que com a fora das suas escolas impediria qualquer

    avano da razo.

    A essa tentativa malograda de profecia sucederam-se duzentos anos das mais variadas

    leituras. Assim foi como as interpretaes malsucedidas de ento, que perturbaram Kant no

    esclarecimento da sua escrita, caram no esquecimento, para que novas interpretaes ruins tomassem

    o lugar das antigas. Isto no uma parfrase retrica, um exerccio constante. Deste modo re-

    escrever a crtica tornou-se, sem dvida, uma tarefa do dia a dia no Ocidente, e, devido a isso,

    poderamos dizer que Kant j conseguiu perder (ou talvez apenas esquecer) o medo de no ser

    compreendido.

    Entretanto, naquela carta a Garve, Kant, no seu af de explicar-se mais um pouco sobre seu

    labor, aproveita a oportunidade para fazer uma observao esclarecedora sobre a origem da Crtica da

    Razo Pura. Nesse texto Kant nos diz que seu ponto de partida foram os problemas da razo, e mais

    especificamente as Antinomias. Estas o acordaram do sonho dogmtico e o empurraram crtica da

    razo a fim de acabar com o escndalo da filosofia, a saber, a contradio da razo consigo mesma11.

    Tratar-se-ia, pois, de aprofundar os problemas oriundos da prpria razo e, por conseguinte, de saber

    at onde posso ir com ela sem me contradizer. Isto , determinar quais so seus limites em relao

    consigo mesma. Porm, no se procura aqui alcanar, por exemplo, o limite da razo em relao com a

    loucura, para, deste modo, determinar o que verdadeiro na primeira e o que errante na segunda;

    nem mesmo coloc-la em relao com a paixo para justificar a mesma operao de oposio. Essa

    empresa tinha sido feita pelos seus antecessores, e agora no era isso o que se procurava. A idia

    radicalmente distinta. a prpria razo -diz Kant- a que gera suas iluses, e ela, sem ajuda de mais

    nada, a que dever desembaraar-se daquele engano. Aqui a filosofia no tem, como noutras

    oportunidades, a ajuda de um Deus salvador.

    Neste sentido, possvel dizer que a Crtica da Razo Pura fundamentalmente uma teoria

    da solubilidade dos problemas necessrios da razo. Esta afirmao, como resulta evidente, pode estar

    apoiada no estudo da prpria tarefa crtica, iniciada com a obra de 1781 (CRP), na qual Kant pesquisa

    explicitamente a capacidade ou incapacidade da razo para resolver seus problemas necessrios.

    9 Heidegger La pregunta por la cosa pag. 55.10 AK 18 pag. 60-1.11 Carta Garve 21/09/1798.

    13

  • Tal o trabalho desenvolvido em Loparic (1982)12, onde os problemas necessrios da razo

    esto colocados em estreita relao com a questo lgico-semntica da sua formulao. Na sua

    pesquisa Loparic prope que a crtica uma teoria da decidibilidade dos problemas inevitveis da

    razo especulativa, e a metafsica da natureza, uma teoria da pesquisa cientfica no campo da natureza.

    De acordo com esta leitura a tese bsica da crtica consiste no seu teorema de decidibilidade,

    segundo o qual, com respeito a uma questo qualquer que nos seja proposta pela natureza da nossa

    razo, uma das duas alternativas vale: ou sua indecidibilidade demonstrvel ou existe um

    procedimento para dar-lhe uma resposta definida13. Este teorema formulado em relao

    possibilidade ou impossibilidade das proposies sintticas. A concepo kantiana da possibilidade

    das proposies sintticas requer:

    a) uma teoria da referncia e da significao dos conceitos utilizados nessas proposies; e

    b) uma teoria das condies de verdade ou falsidade de tais proposies.

    Quer dizer que, para poder estabelecer a possibilidade das proposies sintticas preciso,

    de acordo com Loparic, de uma semntica transcendental ou a priori (este ser o conceito chave em

    Loparic para poder entender a teoria dos problemas e a significao dos conceitos).

    Esta semntica pode ser formulada em duas condies bsicas:

    a) todos os conceitos no-lgicos que ocorram em uma proposio sinttica devem ter

    referncia e significado objetivos;

    b) as formas proposicionais, surgidas pela combinao de operaes lgicas, devem poder

    ser interpretadas por formas sensveis14.

    A primeira condio enunciada em relao interpretao sensvel dos conceitos

    (procedimento de doao de significao) desenvolvida basicamente no esquematismo transcendental

    da CRP, enquanto a segunda se explicita em relao possibilidade de verdade ou falsidade das

    proposies usadas na formulao destes problemas, e que enunciada nos princpios do

    entendimento.

    Trata-se ento, de uma teoria dos problemas baseada em uma semntica que permita decidir

    acerca dos problemas solveis diferenciando-os da classe de problemas terica e objetivamente

    insolveis15. Uma teoria a priori da referncia e da verdade deve ser o fundamento de solubilidade dos

    problemas.

    12Loparic, Z. (1982) Scientific Solving-Problem in Kant and Mach. Tese de Doutorado em Filosofa. Catholic University of Louvain. Esta tese apresentada e desenvolvida sob diferentes aspectos tambm em outros artigos do mesmo autor que sero aqui oportunamente citados.13 A citao foi tirada de Loparic (1983) Heurstica Kantiana. Cadernos de Histria e Filosofia das Cincias nmero 5 pp 73-89, pag 75, mas, tambm em Loparic 1982 pag XII o teorema explicitado e desenvolvido.14 Loparic (1982) prefacio, introduo e cap VI, este ltimo o lugar do tratamento especfico da semntica transcendental. Tambm em Loparic (1983) encontramos uma sntese daquele tratamento.15 Loparic (1982) cap VII, VIII. Tambm em Loparic (1983) e (1988). Nesses textos possvel encontrar uma classificao dos problemas em Kant segundo a origem, os dados, as incgnitas e o mtodo de soluo. Esta classificao o resultado de uma primeira e fundamental distino entre problemas solveis e problemas insolveis.

    14

  • Neste sentido, poder-se-ia dizer que as investigaes desenvolvidas em Lebrun (1970)16 e em

    Allison (1983)17 compartilham com Loparic, fundamentalmente, uma leitura da CRP a partir dos

    problemas necessrios da razo.

    Por sua vez, Allison entende o idealismo transcendental de Kant quase que essencialmente,

    em oposio direta ao realismo transcendental, como uma metafilosofa ou metodologia18 a partir da

    qual possvel comear a formular problemas e resolv-los. A posio do realismo transcendental

    a origem do escndalo da filosofia (a contradio da razo consigo mesma). O realismo se refere ao

    mundo como existindo em si mesmo independente das nossas representaes, enquanto que o

    idealismo transcendental se refere aos objetos como eles aparecem. Deste modo o primeiro conduz a

    formulaes contrapostas sobre o mesmo objeto, e o segundo tenta resolv-las fornecendo as

    condies da sua validade.

    Para diferenciar estas duas posies claramente preciso uma interpretao cuidadosa da

    distino kantiana entre aparncia ou aparecimento (Erscheinung) e coisa em si mesma (Ding an sich

    selbst). Freqentemente esta distino estabelecida como sendo entre dois tipos de objetos, isto ,

    como entidades dependentes da mente e entidades independentes da mente, das quais s podemos

    conhecer as primeiras, enquanto que as ltimas so inacessveis para ns. Assim sendo, tudo sucede

    como se o idealismo transcendental fosse um mero idealismo que s pode conhecer meras

    entidades mentais enquanto que a realidade fica incognoscvel. Allison, distanciando-se desta

    proposta de leitura, elabora uma estratgia interpretativa chamada de dois aspectos (two aspect). A

    partir dela tenta interpretar a distino de aparncia (appearence) e coisa em si mesma (thing in

    themselves) como uma distino de dois modos de considerar os objetos. A saber, como eles

    aparecem, isto , sujeitos s condies humanas para a possibilidade da experincia, e como eles so

    em si mesmos considerados hipoteticamente independentemente destas condies19. Estabelecido isso,

    preciso achar as condies da experincia possvel daqueles objetos. Quer dizer, as condies

    epistmicas (epistemic conditions) ou transcendentais do conhecimento humano20, pelas quais ser

    possvel ordenar a formulao e resoluo adequada dos problemas da razo.

    Lebrun, por sua vez, coloca os problemas da metafsica especial, como problemas

    necessrios da razo, em relao com o problema da significao dos conceitos usados na sua

    elaborao. interessante observar -nas sugestes de nosso comentador- como Kant nas Reflexionen

    16 Lebrun, G. (1970) Kant et la fin de la Mtaphisique. Paris: Armand Colin.17 Allison, H. (1983) Kants Transcendental Idealism. New Haven and London: Yale University Press.18Allison (1983) pag. 25. preciso enunciar que no se trata de um metodologismo, o autor tenta caracterizar o idealismo transcendental ao longo do texto fazendo referncia s epistemic conditions.19 Allison (1983) cap. XI.20 As condies epistmicas ou transcendentais do conhecimento humano no devem ser confundidas com condies epistemolgicas, devendo ser cuidadosa a separao entre o emprico e o transcendental, do contrrio podem surgir erros de interpretao. As condies epistmicas do conhecimento humano tratam das condies transcendentais como condies de possibilidade do conhecimento, entretanto, as condies epistemolgicas tratariam dos critrios daquele conhecimento possvel. Ver Allison (1983) cap I, ver tambm Pippin, R. (1986) Buchbesprechungen em K.S. 77 H. 3 p. 365-71, especialmente a pag 367.

    15

  • medita sobre a linguagem da ontoteologia tradicional e destaca os sentidos dos termos metafsicos.

    Estas meditaes vinculadas tarefa crtica conduzem Lebrun a declarar que no existem respostas

    kantianas a problemas tradicionais, mas apenas falsos problemas tradicionais21. Quer dizer, frente aos

    antigos problemas da metafsica tradicional (seja em relao aos objetos da metafsica especial como

    da geral) no correto fornecer mais uma resposta, ainda sendo esta inovadora. O que est em jogo a

    prpria problemtica enquanto tal, a possibilidade dos problemas mesmos. A tarefa crtica entendida

    como uma anlise semntica, uma leitura das significaes, e no mais uma nova resposta aos antigos

    problemas da metafsica dogmtica.

    Embora seja a partir de pontos de vista diferentes e, portanto, com conseqncias de leitura

    tambm diferentes (que aqui no interessa destacar), as perspectivas destes autores indicam um ponto

    comum: a questo da problematizao na filosofia crtica. Quer dizer, a razo enquanto razo

    problematizante. Esta questo torna quase que inevitvel a preocupao semntica, qualquer que seja

    o modo em que se trata. Os problemas gerados pela razo devem poder ser formulados em certo

    campo semntico, isto , respondendo a certos requisitos semnticos que constituam uma ordem de

    sentido, para poder ter referncia e significao e assim terem a possibilidade de ser verdadeiros ou

    falsos. Partindo deste tipo de abordagens do texto crtico se faz necessria uma releitura dos textos

    pr-crticos.

    Sua reconsiderao urgente.

    Se a crtica j no a mesma reiterao do gesto dogmtico, se no apenas mais uma

    metafsica, ento devemos destacar os elementos que fazem possvel esse novo modo de colocar

    problemas. Esta tarefa no s possvel de se levar adiante nos textos posteriores Dissertao de

    1770, seno que, tal como demonstraremos neste texto, torna-se pertinente identificar sinais muito

    especficos da preocupao semntica de Kant, com respeito formulao e resoluo de problemas j

    existentes nos textos pr-crticos.

    1.2- A dobradia entre o pr-crtico e o crtico

    Tem-se geralmente estabelecida uma ruptura intransponvel entre os chamados perodos pr-

    crtico e crtico, at o ponto de desacreditar o primeiro como dogmtico ou meramente empirista,

    segundo seja o ano de edio do texto pr-crtico em questo. Uma classificao muito conhecida

    comanda desde o fundo quase que todas as leituras dos textos kantianos antepondo, de maneira no-

    21 Lebrun (1970) pag 5.

    16

  • crtica, o resultado pesquisa.

    Primeiramente haveria um Kant crtico e outro pr-crtico. Pela sua vez, alguns

    comentadores arriscam que o crtico deveria ser subdividido entre aquele das duas primeiras crticas e

    o da ltima, no discutirei esses argumentos aqui. Por outra parte o Kant pr-crtico deveria ser

    seccionado em:

    a) o momento do racionalismo dogmtico que se estenderia desde o comeo da obra at

    incios de 1760, este subperiodo estaria caracterizado pela fsica de Newton e a metafsica de Leibniz e

    Wolff, determinando as grandes linhas de pesquisa e pensamento;

    b) o momento do empirismo, que se prolongaria por toda a dcada de 1760, ali Kant teria

    sustentado as influncias de Locke e Hume, como tambm de Rousseau e Shafterbury.

    Uma pesquisa biogrfica, mostrar-nos-ia que efetivamente Kant estudava intensamente esses

    autores naquelas pocas. Contudo, o inconveniente surge quando daqui se deduz abruptamente que

    Kant estaria apenas exercitando a mesma operao de escritura que os autores que lia.

    Este ponto foi utilizado como fundamento da classificao tradicional argumentando que,

    por exemplo, o pensamento kantiano no perodo da Monadalogia dogmtico por que, ainda que

    oposto a Leibniz, ele props que o mtodo lgico de anlise dos conceitos suficiente para atingir a

    essncia do real; ou que, em outros textos, admite que as provas da existncia de Deus possuem um

    valor de certeza que no teriam no perodo crtico. Mais ainda, continuando esta mesma linha e

    reiterando o mesmo gesto de leitura, Kant teria passado pela dcada de 60 repetindo o empirismo, e

    at o bom humor de Hume nos Sonhos de um visionrio.. Isso tudo teria se prolongado at que por

    fim, um dia, Kant teria acordado do sonho dogmtico....

    Como sabemos, a questo do sonho dogmtico uma metfora que Kant utilizou para se

    referir passagem para a empresa crtica. Entretanto, a classificao tradicional no parece permitir-se

    ler esta sentencia como metafrica e a toma ao p da letra22. Na classificao tradicional tudo

    aparece como se Kant houvesse acordado mesmo e no seu estado de semivigilia tivesse sorrido do

    sonho (contado no texto de 1766) para que, finalmente, j bem disposto (na Dissertatio) comeasse o

    verdadeiro trabalho de viglia (da crtica). A noite do dogmatismo kantiano teria sido superada pela luz

    da crtica em uma simples questo de tempo. Assim, a classificao tradicional baseia-se em uma

    periodizao cronolgica dos textos, como tambm em uma evoluo por ruptura da obra kantiana,

    que determina toda pesquisa sobre os escritos apagando qualquer exerccio de leitura. Assim o

    22 O caracter metafrico da sentena em questo no apenas metafrico. O valor das metforas na obra kantiana inquestionvel e irredutvel. Isto , possuem um valor inquestionvel no sentido em que no so de modo nenhum inocentes o decorativas, muito pelo contrrio indicam o sentido do texto, orientam o rumo da empresa. Portanto, tambm no so redutveis a uma leitura linear, transparente. Para abordar aquela metfora, e saber em que sentido Hume teria acorado Kant do sonho dogmtico, deveriamos levar em conta a relao Kant-Hume no interior da produo kantiana, tentado observar qual o lugar que esta ocupa nesse horizonte e de que modo se conecta com outras peas centrais do quebra-cabeas, por exemplo as Antinomias. Este o trabalho que, em parte, tentamos desenvolver aqu.

    17

  • esquema fica organizado e fundamentado sobre os elementos da cronologia e da pressuposio23.

    No esta a nossa avaliao.

    Apesar de ter sido o mesmo Kant quem chamou de dogmtico seu primeiro perodo em

    vrios momentos da etapa crtica, no adequado considerar que isso implique diretamente o

    esquecimento daqueles textos, muito pelo contrrio, possvel encontrar a o comeo da

    problematizao de vrios tpicos que sero sistematizados mais tarde na etapa crtica. O prprio

    Philonenko diz, que mesmo quando Kant olha para os escritos pr-crticos sem agrado, e tal vez

    desejara no v-los publicados em suas obras, a utilidade de estud-los importante, j que se v

    formar aos poucos as noes principais, por exemplo, a distino entre pensar e conhecer, a distino

    entre razo lgica e razo real, a separao entre matemtica e filosofia24. Deste modo os textos pr-

    crticos seriam vistos como pr-originrios. A importncia do seu valor estaria no seu carter germinal.

    Tudo se passa como se as noes principais em estado pr-crtico fossem corrigidas, aos poucos,

    para serem transformadas em crticas. Dando um passo a mais que Philonenko, ns podemos dizer

    que no se trataria da origem germinal daquilo que evoluiria com o passar do tempo at se converter

    no fruto maduro da crtica, metfora demasiado cara para o pensamento de Kant. Contrariamente,

    podemos afirmar que atravs desses tpicos que os problemas semnticos j aparecem. No que a

    Crtica esteja escrita nas entrelinhas dos primeiros textos. Nossa leitura prope-se a olhar para outro

    destaque que declaramos logo. Os textos pr-crticos j apresentam fragmentariamente os problemas

    semnticos que sero sistematizados na etapa crtica.

    A relao pr-crtico/crtico no representa nem uma ruptura, nem uma evoluo no sentido

    estrito. O deslocamento de sentido que ali se produz traz as marcas dos antigos textos. Uma reflexo

    de Kant, (Rx 4964) sobre a CRP, permite pens-los neste sentido. Por este trabalho, o valor de meus

    escritos metafsicos precedentes integralmente negado. Eu procurei apenas salvar a justeza da

    idia25. Com efeito, o trabalho crtico choca com a empresa metafsica da poca anterior. por isso

    que o valor daqueles escritos, em relao aos seus resultados, deve ser deixado de lado para os

    interesses da etapa crtica. Mas, a justeza da idia que ele procura salvar aquilo que emerge nos

    textos pr-crticos, e que aqui tentarei enunciar como a preocupao pela significao dos conceitos e

    a formulao de problemas com sentido. Essa ser a problemtica a sistematizar a partir dos trabalhos

    23 Este tipo de classificao encontra-se em Philonenko LOeuvre de Kant, em Hartman Kants Erkenntnistheorie und Metaphysik, em Torretti Kant; pela sua parte Ernst Cassirer em Kants Leben und Lehre ope-se aplicao da antinomia empirismo-racionalismo para medir os textos kantianos, mesmo os da primeira poca, argumentando que no so pertinentes para pr de manifesto os caractres principais do mtodo, at al poderiamos concordar com os termos cassireanos, s que sua proposta logo desenvolvida em um horizonte biogrfico, cronologico, evolutivo. Ver-se-a que nossa proposta se distancia de qualquer problema psicolgico ou rasgo caracterstico da vivencia pessoal do autor, o nosso trabalho textual e por conseguinte o que aqu importa so as operaes do prprio texto, independentes de qualquer inteno do autor.24 Philonenko ( 1983)LOeuvre de Kant. pag 27.25 AK. XVIII. O destaque meu.

    18

  • da dcada de setenta. Em uma carta a Herz de 20 de agosto de 1777 Kant26 explcito enquanto

    sistematizao de seu trabalho, a saber: Desde a poca em que ns nos separamos, minhas

    investigaes parciais de antes, dirigidas a todos os tipos de objetos da filosofia, tomaram forma

    sistemtica e eu fui pouco a pouco conduzido idia do todo, que a nica a tornar possvel o juzo

    sobre a natureza de cada parte e sua influncia recproca. Como de notar, a sistematizao que Kant

    procura tem a ver com o modo de colocar os problemas que j tinham surgido nas dcadas passadas. O

    giro do pensamento kantiano ser alcanado com a realizao desse trabalho que, como poderemos

    observar, no foi to simples. Nessa mesma carta Kant reconhece que esse o obstculo que detm a

    finalizao da Crtica da Razo Pura, ele quer apresentar suas idias com total claridade e tem todos

    seus esforos voltados para isso; pensa acabar no inverno, mas sucederam-se mais dois invernos para

    poder finalizar a tarefa empreendida, ou talvez, seja melhor dizer comear a empreend-la.

    Esse novo modo de colocar os problemas o que guia Kant na crtica contra Hume (nos

    Prolegmenos a toda metafsica futura...27) sobre a falta de sistematizao deste, ao tratar o

    fundamento do princpio de causalidade. Esta falta o leva a um engano, diz Kant. Tal como Hume

    demonstra no Tratado da Natureza Humana, a causalidade no est nas coisas elas mesmas, mas, nos

    advertir Kant, tambm no um simples habitus. Essa concluso errada, segundo Kant, possvel

    por no ter sido sistematizado aquele questionamento. Um tratamento desses conduzir

    inevitavelmente ao ceticismo ou ao dogmatismo, o que devemos evitar se no queremos repetir o erro

    metafsico. Nesse sentido que a crtica passa a ser um tratamento sistemtico dos antigos problemas,

    no por haver criado mais um sistema metafsico a partir do qual pudesse responder s antigas

    perguntas, mas sim por tratar com a formulao mesma do problema, quer dizer, com suas prprias

    condies de possibilidade.

    Como temos antecipado at o momento, todos os indcios para a demonstrao daquela

    afirmao (a crtica como teoria dos problemas baseada na significao dos conceitos) podem ser

    procurados nos textos pr-crticos. Isto no implica, necessariamente, que a origem da CRP esteja na

    primeira monografia de Kant, propondo deste modo um estudo da gnese da obra crtica28. Nem

    mesmo, ao contrrio, uma leitura teleolgica, na qual tudo faria sentido a partir do fim. Se assim fosse

    teramos que comear pela ltima pgina escrita por Kant ou seus ltimos minutos de vida.

    Longe disso.

    26 AK. X, p. 211-214..27 Kant (1783) Prolegomena zu einer jeden knftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten knnen. AK IV 252-383. Traduo castelhana utilizada de M. Caimi, Editorial Charcas Bs.As. 1983. Ver, para este tpico, especialmente o prlogo.28 Para um estudo da gnese da Filosofia Crtica ver Torretti, R. (1980) Manuel Kant. Estudio Sobre los Fundamentos de la Filosofa Crtica. Buenos Aires: Editorial Charcas.

    19

  • Inclusive, quando a tarefa crtica no aparece como a mesma, quando lida a partir dos

    problemas da razo ou da faculdade judicativa, no correto, por isso, concluir que h um sentido da

    obra partindo do final para o comeo. O propsito apenas mostrar que a problemtica semntica,

    essencial no perodo crtico, j aparece repetidamente nos textos pr-crticos de diversos modos. No

    como germe, mas sim como obstculo na tentativa de procurar uma metafsica bem-sucedida. No

    como a origem mnima de um desenvolvimento mais abrangente, mas sim como um verdadeiro mal-

    estar que aparece a cada passo no tratamento de problemas especficos. neste sentido que preciso

    reconsiderar os textos pr-crticos. claro que uma exegese profunda sobre eles se faz necessria,

    mas, por enquanto, aqui somente me deterei naquilo considero ser os limites desta pesquisa, a saber, os

    problemas de significao.

    1.3- O mal-estar filosfico (acerca dos problemas metafsicos).

    A partir de alguns textos pr-crticos kantianos um mal-estar comea a se manifestar

    claramente. Trata-se da formulao e resoluo dos problemas metafsicos. Na procura por resolver

    problemas, que permitam alcanar uma metafsica certa, a preocupao pelo erro lgico-semntico vai

    se tornando, aos poucos, uma exigncia temtica no desenvolvimento das pesquisas kantianas.

    Trabalhos monogrficos e meditaes parciais, assim como cartas pessoais feitas ao longo de

    vinte anos, que trataram temas da lgica, da verdade, da existncia (e que foram mais tarde

    sistematizados), colocam em evidncia, na sua maioria, o uso abusivo de:

    1) alguns princpios de experincia, que no tendo garantias fora desta, so aplicados sobre

    objetos no experienciais29.

    2) regras lgicas, que tendo validade para as formaes proposicionais, no so, por esta

    razo, a origem da existncia das coisas.

    3) a clusula metafsica da razo suficiente.

    Estes tpicos so, algumas vezes, tratados especificamente em trabalhos que explicitamente

    manifestam o descontentamento com a metafsica dogmtica; outras vezes parecem ser o resultado,

    ora principal, ora secundrio, de longas meditaes sobre os temas mais diversos, comeando pela

    geometria e cincia natural indo at psicologia e teologia.

    29 O neologismo indevido para nos referir quilo que no dado na experincia, isto , o denominado supra-sensvel.

    20

  • Contudo, esta tarefa, realizada por Kant, mostra que a metafsica dogmtica tradicional

    serve-se de princpios sem garantias, elevando-se alm da experincia, e responde s suas questes

    (sobre objetos supra-sensveis) de modo infundado, colocando a razo em contradio consigo mesma,

    e tornando seus problemas, deste modo, insolveis. Este no um problema de tal ou qual metafsico

    em particular, que, indevidamente, confundiria os objetos; a prpria razo que no seu

    funcionamento, permite este desvario. Noutras palavras, a prpria razo que est doente. Mas claro

    que a doena (o problema kantiano) no ser manifestada de uma vez, pois sero precisas uma srie de

    rodeios, desculpas, evasivas, rejeies, transferncias e, at mesmo, esquecimentos e silncios para

    conseguir fazer uma boa (terapia) crtica metafsica tradicional30.

    1.4- Relaes conflituosas (acerca da cincia da natureza e da metafsica).

    A polmica das posies tericas de Newton e de Leibniz marcou boa parte da literatura

    cientfica e filosfica do sculo XVIII que tratava das relaes entre fsica e metafsica. Kant, como

    de esperar, no ficou alheio a esta questo. Tal a preocupao de Cassirer em mostrar este tpico em

    vrios dos seus textos31. De um outro modo, em Lebrun (1970) pode encontrar-se a relao de Kant

    com a cincia veiculada pelos paradigmas de Newton e Leibniz, s vezes aderindo a um ou a outro, s

    vezes tentando op-los32. Em Torretti (1980) este tpico visto como uma das origens da filosofia

    crtica33. Seja como for, a relao entre a cincia da natureza e a metafsica um dos tpicos

    fundamentais da tarefa kantiana j nos primeiros escritos.

    Assim, podemos ver na Histria Universal da Natureza e Teoria do Cu Onde se Trata do

    30 A metfora da razo doente estrategicamente explorada por Kant, ver por exemplo Reflexio 5073, Ak XVIII. Mas, poderiamos arriscar tambm, que no apenas uma metfora. A leitura das cartas nos abre outra perspectiva. Ler as cartas privadas das pessoas no s ilegal, mas tambm, s vezes, um ato quase que obsceno, neste caso, a atitude est justificada pelo valor histrico daqueles documentos; mas, mesmo assim, este exercicio continua a ser obsceno. Obsceno no mais estrito sentido. Obsceno enquanto que oculta e revela aquilo que h de mais ntimo. Apresentemos de uma vez a nossa obscenidade. Os problemas intestinais e digestivos no eram para Kant sem importncia, ele acreditava em uma relao direta entre estes e os problemas mentais. Na carta a Herz de 20/08/1777 Kant pergunta se aqueles problemas intestinais que ele tinha no teriam relao com suas dores de cabea; mas, essa preocupao no acaba al, no Ensaio Sobre As Doenas Mentais ele explicita essa relao tematicamente. No preciso lembrar que sua prpria morte tem a ver com aquelas dores (provavelmente meningite). Por outro lado, nas conexes diretas entre as lutas intestinas e as doenas da razo, explicitadas em varias metforas utilizadas nos textos crticos, parece revelar-se um processo de interiorizao dos problemas e das suas solues. A interiorizao dos problemas da razo surgem, qui, como metfora da interiorizao das doenas. Kant parece no acreditar em intervenes externas (talvez, e arriscamos deliberadamente, porque nenhum mdico conseguiu a cura das suas doenas). Aqui se impe uma interrogante: Metfora... ou Somatizao?. Tal vez sejam as duas coisas. O certo que esta obcenidade devela um material para anlise que no deve ser rejeitado.31 Sobre esta questo possvel consultar vrios textos. Entre eles Cassirer, E. (1968) Kant, Vida y Doctrina.Mexico: FCE, que trata o tpico em forma biogrfica32 Lebrun (1970) fundamentalmente nos primeiros captulos.33 Torretti (1980) o tratamento em relao quase exclusiva com seu estudo sobre o espao e o tempo em toda a primeira parte do trabalho.

    21

  • Sistema e da Origem Mecnica do Universo Segundo os Princpios de Newton (1755)34, que Kant

    tenta mostrar, que no se tem necessidade de supor uma interveno divina que prescreva condies

    precisas aos corpos do sistema planetrio. A origem e constituio deste podem ser explicadas

    mecanicamente segundo os princpios newtonianos. Mas, mesmo assim, ele justifica esta explicao

    fsico-mecnica do Universo, argumentando que aquela (explicao) no invalida nem rejeita a

    existncia de Deus, pelo contrrio, a existncia de leis fsicas que possam dar conta do funcionamento

    do universo constituem a prova da existncia de um fundamento ainda mais profundo que o da

    causalidade fsica. provvel, como afirmam alguns comentadores, que esta afirmao tenha sido

    declarada para evitar possveis censuras de carter religioso, mas, ainda assim, fica claro que o

    teolgico deve ser separado do fsico-matemtico. Por tal motivo, Kant reprova Newton quando este

    apela interveno da divindade. Colocando-se em favor da autonomia das leis fsicas, e

    argumentando que estas independem de qualquer teologia (j que suas regras e procedimentos tm um

    registro prprio, que no precisam da interveno de elementos alheios, para que possam ser ditos

    verdadeiros ou falsos), Kant coloca o problema teolgico como um problema de outro campo. Tratar-

    se-ia de um tipo de especulao que nada teria a ver com a demonstrao fisico-matemtica da

    regularidade dos movimentos do Universo. A interveno desse tipo de especulao no permitida

    nem como hiptese para explicar outros acontecimentos. por isso que, como Kant faz notar no

    apndice desse texto, tal tipo de especulao no est legitimada nem mesmo para perguntar pela

    possibilidade de vida noutros planetas. Esta uma simples liberdade da imaginao, que no pode ser

    demonstrada nem como verdadeira, nem como falsa.

    Nesta perspectiva, e seguindo o exemplo de Kant, pode supor-se que a matria com que

    esto feitos os planetas e cometas preenchia todo o espao csmico em forma de caos e foi ordenando-

    se segundo as leis de atrao e repulso. Deste modo, um todo ordenado surge sem interveno de

    invenes inoportunas surgidas a cada hora para explicar tal ou qual movimento em particular, e sim

    pela ao de leis mecnicas previamente estabelecidas.

    No se trata de mero atesmo, todos sabemos que Kant no era ateu. Aqui no est em jogo a

    existncia de Deus, melhor ainda, poderamos acrescentar, existe um Deus porque a Natureza deve

    proceder regularmente. Mas isso no cincia da natureza, e por essa razo que no lcito fazer

    intervir inteligncias estranhas para explicar o movimento dos astros. Kant no rejeita o problema

    teolgico nem o coloca como fundamento, simplesmente separa campos. O carter prvio das leis

    fsicas muda o estatuto mesmo da explicao que deve ser elaborada. Desta maneira necessrio, pelo

    menos, no confundir os nveis de argumentao para poder tratar como verdadeiros ou falsos os

    34 Kant (1755) Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels oder Versuch von der Verfassung und dem mechanischen Ursprunge des ganzen Weltgebudes, nach Newtonischen Grundstzen abgehandelt. A.K. I 214-368.Traduo francesa utilizada de Anne-Marie Roviello. Paris: Librarie Philosophique J.VRIN 1984.

    22

  • resultados das hipteses estabelecidas. Qualquer argumentao de ordem teolgica deve ser separada

    da demonstrao da cincia da natureza.

    Como referncia histrica bom lembrar que neste trabalho Kant postula o que se denomina

    de nebulosa primitiva , mais conhecida hoje como a hiptese Kant-Laplace, devido semelhana

    de ambas. Quando Laplace apresentou sua cosmogonia Napoleo, este perguntou ao autor qual era a

    funo de Deus no seu sistema e Laplace contestou: Sire, jai pu me passer cette hypothse35. Nesta

    pequena anedota ilustra-se como, a partir do ponto de vista da autonomia das leis fsicas, Deus s

    podia ser considerado uma hiptese de trabalho e no um princpio ontolgico a partir do qual seria

    derivado o sistema na sua totalidade. Como dissemos anteriormente, tanto Deus quanto os habitantes

    de outros planetas podem ser considerados apenas hipteses, e no objetos sobre os quais possamos

    predicar alguma coisa possvel de ser estabelecida como verdadeira ou falsa. Mesmo assim a

    hiptese para Laplace foi desnecessria.

    Assim sendo, de acordo com Kant, a cincia da natureza deveria separar-se rigorosamente de

    qualquer questo no-cientfica, isto , deveria ser separada de qualquer argumentao teolgica

    ficando s a explicao mecnica, e dar ainda mais um passo, para que esta explicao cientfica se

    torne a base slida de uma metafsica que atinja conhecimentos certos (e no meramente arbitrrios

    como at agora), empresa esta no to simples.... Kant queria progredir do validamente estabelecido

    (de acordo com critrios provados) problemas (ainda) sem soluo (os problemas metafsicos), e

    no, pelo contrrio, (como no procedimento dos dogmticos) partir de hipteses arbitrrias para

    explicar o dado na experincia.

    Em Breve Esboo de Algumas Meditaes Sobre o Fogo (1755, b)36 Kant volta a opor a

    cincia natural metafsica tradicional. Desta vez, ao se referir ao mtodo utilizado nesse ensaio. O

    ponto colocado como central, de acordo com Kant, o de no fazer excessivas concesses ao mtodo

    de demonstrao hipottico e arbitrrio, e seguir com toda fidelidade o fio condutor da experincia e

    da geometria37.

    Deste modo Kant tenta demonstrar, com argumentos mecnicos, que a coeso e elasticidade

    dos corpos slidos e fluidos exigem uma matria elstica, todo corpo consta de partes slidas

    unidas com uma espcie de matria elstica38. Isto permite falar de uma atrao das partculas

    elementares ainda quando no estejam em contato direto. A matria elstica preencheria os interstcios

    entre as partculas simples redondas e permitiria sua coeso e contrao. Kant justifica esta

    formulao explicando que a fluidez no pode ser demonstrada pela diviso da matria em partes lisas,

    35 A breve ilustrao histrica foi tomada de R.Torretti 1980.36 Kant (1755) Meditationum Quarundam de Igne Succincta Delineatio. AK I 369-384. Traduo castelhana utilizada de Chacn-Regera em Alianza Editorial Madrid 1987. Esta disertao latina foi apresentada por Kant o 17 de abril de 1755 e defendida publicamente o 13 de maio, com o que, o 12 de junho, foi promovido com o ttulo de Honores Magistri Philosophiae, seu doutorado em filosofia (ver AK I 562-3-4) .37 AK I 371 o destaque meu.38 AK I 375.

    23

  • pequenas e levemente unidas, assim sendo apelar para a decomposio de foras das partculas

    simples e exigir a necessidade de uma matria elstica que comunique sua fora em todas as

    direes.

    Na segunda parte do trabalho, com estes elementos na mo, Kant proceder a explicar alguns

    fenmenos fsicos e qumicos tais como o fogo, a ebulio, o calor, a transparncia dos vidros e a

    natureza dos vapores.

    claro que as explicaes kantianas aqui desenvolvidas ainda pertencem ao horizonte da

    metafsica leibniziana (por exemplo, o recurso redondeza das partculas simples, ou o prprio

    conceito de fora); mas o problema da constatao da cincia (atravs da experincia e a construo

    geomtrica) frente especulao da metafsica (por meras hipteses) j colocado na perspectiva do

    mtodo e isso que distingue Kant de Leibniz. As hipteses devem poder ser representadas

    geometricamente e a explicao deve poder ser desenvolvida a partir dali.

    Explicitamente procura-se um mtodo que seja autorizado pela experincia para poder, deste

    modo, ampliar o nosso conhecimento com segurana. Cabe duvidar se tal propsito foi, nesse texto,

    alcanado ou no. Mas o que realmente aqui interessa (alm de encontrar ou no um mtodo emprico

    para a cincia natural) destacar a necessidade de referir os elementos envolvidos na questo, e isso

    o que constitui um problema de significao na reflexo kantiana.

    Uma leitura semelhante faz Cassirer sobre o texto de 1746 Idias Sobre a Verdadeira

    Apreciao das Foras Vivas. Segundo o nosso comentador, aquele um texto que se inscreve no

    interior do campo metodolgico geral e por isso ele escreve que: no se tratava de comprovar

    determinados fatos concretos, mas de estabelecer um antagonismo fundamental na interpretao dos

    fenmenos do movimento j conhecidos e dados, no se tratava de ponderar os diversos fatos e

    resultados das observaes, mas de esclarecer os princpios a que est sujeita a investigao da

    natureza...39. O que o texto kantiano revelaria, e onde se localizaria o valor daquele escrito, a

    preocupao filosfica pela investigao sobre as foras na natureza. Quer dizer, a preocupao de

    Kant teria sido sobre o modo de proceder no conhecimento, sobre o modus cognoscendi exposto na

    pesquisa, e no apenas sobre o resultado. Parafraseando Kant40 podemos dizer que, preciso ter um

    mtodo a partir do qual possamos deduzir em cada caso se a natureza das premissas abrange todo o

    necessrio para derivar s concluses s quais chegamos. A metdica preocupao kantiana sobre o

    mtodo aparece primeiro no seu aspecto lgico, deve-se cuidar adequadamente que a concluso seja

    deduzida das premissas; mas tambm ser indicado o aspecto semntico na construo da prova: deve-

    se escolher adequadamente as funes da construo da prova (der Construction des Beweises) para

    39 Ver Cassirer, E. (1968) Kant, Vida y Doctrina.Mexico: FCE pag 40.40 Ver Gedanken von der wahren Schtzung der lebendingen Krfte...parag. 88.

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  • que esta seja vlida. atravs da construo dessas provas que Kant tenta se separar de Leibniz e

    atingir uma metafsica verdadeira. E por isso que este mtodo a Hauptquelle de todo o tratado e

    aquilo que permitir metafsica ultrapassar o umbral do verdadeiro conhecimento. Apesar disso,

    vrios comentadores concordam em que as pretenses kantianas so maiores que seus resultados

    efetivos.

    Entretanto, na Monadalogia Fisicae (1756)41 Kant utilizar, sem qualquer restrio, um

    procedimento que paradoxalmente j tinha criticado, a saber: o de pretender a existncia real (neste

    caso das mnadas) demonstrando-a segundo um simples raciocnio lgico. Isto , sem ter mostrado

    sua referncia objetiva na experincia. pelo menos estranho que depois de ter afirmado a autonomia

    das leis da fsica (1755)42, garantidas pela experincia atravs do mtodo (1755 b)43, e questionado o

    princpio de razo suficiente (1755 c)44, ele tenha-se voltado para um procedimento dogmtico no

    tratamento da existncia real das coisas sensveis. Poder-se-ia pensar, sem muita probabilidade de

    engano, que essas so tambm as tentativas de Kant na elaborao de uma nova metafsica. Nesse

    sentido o procedimento leibniziano, concretizado atravs do carter em si mesmo legislador do

    pensamento puro45, inteiramente tentador.

    Mais tarde, em um texto de 1764 e no Apndice da Anfibologia dos Conceitos... da CRP ,

    Kant retomar o questionamento e criticar Leibniz pela intelectualizao dos fenmenos feita

    atravs da Monadalogia. Na poca crtica o questionamento passa por no ter diferenciado o que

    pertence sensibilidade do que pertence ao entendimento. O problema da existncia encontra-se

    permanentemente presente no conjunto da obra kantiana, e por isso preciso, para esclarecer e abordar

    de frente esse tpico, mostrar a trilha sinuosa de idas e vindas que marcada no itinerrio dos textos.

    Ao colocar aquelas questes, a saber: a autonomia das explicaes causais frente

    interveno de inteligncias divinas, a necessidade de um mtodo que leve em conta a experincia e

    seja comprovado por esta frente a meras construes hipotticas, (veiculadas todas elas pelos

    problemas da cincia da natureza), Kant, como j temos mostrado, est procurando uma boa

    metafsica, que fornea resultados definitivos aos seus problemas. Mas apesar das tentativas da

    Monadalogia de encurtar o caminho, esta pesquisa leva-o a observar a falta de sentido das

    41Kant (1756) Metaphysicae cum geometria iunctae usus in philosophie naturale cuius specimen I. Continet monadalogiam physicam.AK I 473-487. Traduo portuguesa de Jos Andrade em Textos pr-crticos. Editora Res Portugal 1983. Este texto foi a tese defendida por Kant para ter dereitos a dar aulas. ver AK.I 579-80.42 Kant (1755) Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels oder Versuch von der Verfassung und dem mechanischen Ursprunge des ganzen Weltgebudes, nach Newtonischen Grundstzen abgehandelt. A.K. I 214-368. Traduo francesa de Anne-Marie Roviello. Paris: Librarie Philosophique J.VRIN 1984.43 Kant (1755) Meditationum Quarundam de Igne Succincta Delineatio... AK I 369-384. Traduo castelhana utilizada de Chacn-Regera em Alianza Editorial Madrid 1987.44 Kant (1755 c) Principiorum primorum cognitionis metaphysicae nova dilucidatio.AK I 385-416. Traduo portuguesa utilizada de Jos Andrade, em Textos Pr-crticos.45 Kemp Smith (1984) em A Commentary Kants Critique of Pure Reason New Jersey: Humanities, sugere que Leibniz e Hume compartilham uma denncia contra o empirismo, s que no caso de Hume mantm-se a tese de que a induo deve ser observada como um processo no racional, enquanto que Leibniz argumenta a favor do carter self-legislative do pensamento puro. Ver pag xxx.

    25

  • especulaes da metafsica frente certeza que podemos ter da significao das formulaes

    cientficas. Assim Kant comea a compreender que os resultados que a cincia obtm dependem

    fundamentalmente dos procedimentos de doao de sentido aos conceitos dos quais esta se serve.

    nesse horizonte que se encontrar a diferena essencial do mtodo em relao metafsica.

    Na Investigao Acerca do Esclarecimento dos Princpios da Teologia Natural e da Moral

    (1764)46 Kant coloca o problema da filosofia decididamente como um problema de mtodo: nas

    cincias da natureza, o mtodo de Newton substituiu o conjunto desordenado de hipteses fsicas por

    um procedimento seguro de acordo com a experincia e a geometria47. Segundo Kant, algo anlogo

    deveria acontecer na filosofia. Mas, ser necessrio transitar um longo percurso ainda para conquistar

    essa certeza.

    Com efeito, Kant comea estabelecendo a diferena entre o modo matemtico e o modo

    metafsico de atingir a verdade. Assim sendo, temos duas vias diferentes para chegar a qualquer

    conceito:

    a) por ligao arbitraria;

    b) por abstrao.

    As definies das matemticas so constitudas pelo primeiro procedimento, enquanto que a

    metafsica procede da segunda maneira. Nas matemticas o conceito no dado antes da definio,

    mas deriva dela. Nesta disciplina a definio procede de modo sinttico. Observemos os exemplos de

    Kant:

    1) a uma figura constituda por quatro retas que determinam uma superfcie plana de tal

    modo que os lados opostos no sejam paralelos a denominamos trapzio;

    2) a um tringulo retngulo que gira volta de um dos seus lados formando uma nova figura

    o denominamos cone.

    Nos dois exemplos, o que est em jogo a prpria construo da figura. Essa ligao

    arbitrria indica, na realidade, a relao de construo entre o objeto e o conceito na matemtica.

    Mesmo no caso da demonstrao da divisibilidade do espao at o infinito, o gemetra traa uma linha

    reta perpendicular a duas paralelas e a partir de um ponto situado em uma delas traa outras linhas que

    as cortam, e assim a diviso pode prosseguir indefinidamente. Deste modo os objetos dos conceitos

    devem poder ser construdos, sendo a definio uma ordem para construir o objeto. Poderamos dizer

    ento que a realidade deve ser demonstrada e no simplesmente suposta, esta demonstrao dada, na

    matemtica, pelo procedimento de construo do objeto. A ligao arbitrria dos conceitos se apoia

    no prprio procedimento de construo, o que faz com que estes tenham referncia no campo dos

    46 Kant (1764) Untersuchung ber die Deutlichkeit der Grundstze der natrlichen Theologie und der Moral. AK II 273-301. A traduo portuguesa de Alberto Reis em Textos pr-crticos l evidncia na palavra Deutlichkeit, ns preferimos ler esclarecimento. O escrito kantiano foi motivado por uma pergunta sugerida pela Academia de Cincias de Berlin. Ver AK. II 493-5.47 AK II 275.

    26

  • objetos construdos e no sejam apenas meras definies. De acordo com Kant, os matemticos no

    definem um conceito por meio do anlise do mesmo, tal como procede um filsofo. Ou melhor, nesta

    etapa, Kant considera que o conceito matemtico pode ser analisado em partes simples que, por sua

    vez podem ser novamente sintetizadas48; entretanto, o procedimento de anlise da metafsica no

    obtm os mesmos resultados. por isso que a tarefa das matemticas consiste em reunir e comparar

    conceitos dados e grandezas claras e certas a fim de ver o que da pode resultar, e no no simples

    esclarecimento do conceito.

    Por outra parte, na filosofia, o que dado previamente no o objeto, mas o conceito da

    coisa e de um modo no suficientemente determinado. No se trata -diz Kant- de dar uma mera

    definio gramatical da palavra tal como no caso em que Leibniz considerava uma substncia simples

    da qual tinha apenas representaes e a chamava mnada sonolenta. Este nome no constitui uma

    definio desta mnada, mas apenas o resultado da imaginao, pois o conceito no foi dado

    previamente, mas criado pelo prprio Leibniz49. Deste modo a definio pode ser s um jogo de

    palavras e a realidade do objeto que deveria referir apenas um artifcio da imaginao.

    Vemos ento que na matemtica se procede construtivamente. Sendo a relao entre o

    conceito e o objeto uma relao de construo. A definio do conceito , assim, uma operao para

    obter o objeto. Entretanto, na filosofia, a definio do conceito no passa de uma mera definio que

    no permite construir o objeto que deveria apresentar. deste modo a filosofia fica falando no vazio,

    sem qualquer referncia a objetos e nenhuma possibilidade de interpretar suas proposies como

    verdadeiras ou falsas.

    Esta confuso (de definio e construo) devida, fundamentalmente, a no se ter

    percebido que a natureza dos signos utilizados na filosofia diversa da dos signos da matemtica. Na

    filosofia os conceitos no podem ser decompostos em um pequeno nmero de conceitos simples, na

    reflexo filosfica os signos (Ziechen) so sempre apenas palavras (Worte) que no seu conjunto no

    permitem ver os conceitos parciais (Teilbegriffe) que constituem a idia completa (die ganze Idee)

    designada pela palavra (Worte), nem podem exprimir, nas suas combinaes, as relaes entre os

    pensamentos filosficos. por isso que, neste tipo de conhecimento, preciso ter, para cada reflexo,

    as prprias coisas sob os olhos e necessrio representar o geral de um modo abstrato, sem nos

    podermos servir da considervel facilidade que a utilizao de signos particulares em vez dos

    conceitos gerais das coisas50. Desta maneira Kant adverte-nos sobre dois aspectos. Por um lado os

    conceitos no devem perder de vista as prprias coisas s quais se referem, isto , de alguma maneira

    devem poder ser apresentadas. E, por outro lado, a argumentao (a relao entre conceitos) deve

    48 Kant j conhecia o mtodo de anlise e sntese dos gemetras gregos. Em Loparic (1982) h um tratamento sobre as relaes entre o mtodo dos gregos e o mtodo crtico kantiano.49 AK II 277.50 AK. II, 278-9

    27

  • poder ser exprimida tambm por signos sensveis. Do contrrio nos acontecer o que sucedeu com

    Leibniz quando quis demonstrar que qualquer corpo composto de substncias simples. O exemplo

    foi oferecido, como j observamos, pelo prprio Kant na tentativa da Monadalogia.

    Contudo, neste texto de 1764, Kant consegue, atravs da procura de um bom mtodo para a

    metafsica, atingir a diferena precisa entre o modo de proceder da filosofia e da matemtica. Este

    ltimo baseia-se, fundamentalmente, no procedimento de interpretao dos conceitos. Esta leitura no

    trivial, devido a que necessrio dar ateno formulao de procedimentos de interpretao

    (construo, definio) e polissemia dos conceitos utilizados por Kant, ( o caso do conceito de

    anlise), para poder destacar a novidade deste texto. Do contrrio, s teremos em vista mais um escrito

    dogmtico. neste sentido que encontramos em Ferrarin (1995)51 uma crtica dirigida contra Hintikka

    que acaba reduzindo o argumento kantiano. A leitura de Ferrarin questiona uma suposta continuidade

    na posio de Kant sobre a matemtica, orientada a descobrir nos textos pr-crticos a base para uma

    interpretao da intuio como evidncia. Esta crtica pode ser totalmente compartilhada quanto ao

    estatuto da intuio no texto crtico. Uma anlise apurada sobre o aparelho cognitivo kantiano nos

    mostraria que a intuio no apenas a evidncia da qual precisa o nominalista para referenciar

    ostensivamente seu conceito, a intuio um procedimento sinttico de construo, um procedimento

    construtivo, e no apenas um destaque. No entanto, quando Ferrarin trata da diferena entre filosofia e

    matemtica no texto do 1764, diz que Kant no faz meno de construo no que ele chama 'signos

    sensveis' adotados pelos matemticos: os juzos matemticos so aqui analticos. verdadeiro que o

    carter arbitrrio dos signos adotados na matemtica e a origem sinttica dos seus conceitos podem ser

    vistos como o germe da futura noo de construo na intuio. Apesar disso, a evidncia distintiva

    que faz da matemtica uma cincia exata depende s da univocidade, imediata verificabilidade e

    visibilidade dos seus signos, como opostos indeterminabilidade das palavras que os metafsicos

    devem usar, mas no se podem analisar nos seus termos constituintes52. Na tentativa de se distanciar

    do nominalismo semntico de Hintikka, Ferrarin tenta encobrir o carter construtivo dos exemplos de

    procedimento matemtico fornecidos pelo prprio Kant. Justamente essa univocidade,

    verificabilidade e visibilidade dos signos na matemtica no dada mais do que pela possibilidade

    de construir o objeto na definio no meramente gramatical do conceito. o carter construtivo o

    que diferencia a matemtica como cincia exata. Do contrrio, se aceitarmos o conceito matemtico

    como mero nome, deveramos aceitar tambm o nominalismo, que de fato Kant rejeita, e com esta a

    tese de Hintikka que Ferrarin tenta questionar.

    A distino entre a construo matemtica e a reflexo filosfica, (ou entre a ligao

    arbitraria de conceitos e a abstrao) conduz a Kant a concluir que nada mais prejudicial filosofia

    51 Ferrarim,A. (1995) Construction and Mathematical Schematism Kant on the Exhibition of a Concept in Intuition. KS. 86 H2 pp 131-174.52 op. cit. pag 133.

    28

  • que as matemticas, isto , a imitao que ela faz do mtodo destas em terrenos onde no tem

    aplicao53. justamente este o procedimento que, segundo Kant, teria sido levado adiante pelos

    metafsicos dogmticos, que confundiram a diferena do modo de conhecimento entre ambas as

    cincias em detrimento da metafsica. Enquanto na matemtica se encontra presente uma

    correspondncia precisa entre os conceitos e seus objetos, pelo fato de que o prprio conceito sua

    significao, na metafsica no possvel usar o mesmo procedimento, devido diferena da natureza

    dos signos em questo. Os conceitos usados na metafsica, so abstraes que, segundo Kant, no s

    possveis de se fazer corresponder com seus objetos do mesmo modo que na matemtica. Seria preciso

    ento abrir outro campo de relaes no qual os conceitos e os problemas da metafsica fazem sentido.

    O problema do mtodo na metafsica foi indicado Kant, tambm por Lambert, fato do qual

    temos conhecimento pela leitura das suas cartas. O tpico est desenvolvido em uma carta do prprio

    Lambert de 3 de fevereiro de 176654 e em um outro rascunho55 onde declara que efetivamente o incio

    da metafsica no so as definies, mas o que se deve saber para formar definies. Com efeito, no

    se trataria de fazer meras definies apressadas, mas sim de estabelecer as condies pelas quais essas

    definies podem ser formuladas. Sendo assim, podemos dizer que os objetos da matemtica so de tal

    modo que possvel constru-los de acordo com certas operaes. Neste sentido as condies de

    possibilidade das definies so as condies de possibilidade de construir os objetos que devem se

    apresentar aos conceitos. Lambert coloca em jogo o prprio fundamento do saber metafsico, sua

    prpria condio. Sabemos que as relaes entre Kant e Lambert foram da maior importncia para os

    destinos dos trabalhos kantianos. Ainda que breve, devido morte de Lambert, a correspondncia foi

    muito influente, ao ponto de Kant se lamentar na dcada de oitenta dizendo que aquele teria sido o

    nico que compreenderia verdadeiramente sua obra.

    Contudo, ento, no possvel usar, na filosofia, o mesmo procedimento semntico, da

    matemtica, para vincular o conceito a seu objeto, j que a natureza do prprio objeto no a mesma.

    Poderamos dizer que esta observao, sobre a natureza do objeto, ser decisiva para a constituio

    dos campos semnticos que se elaboraro no perodo crtico56.

    Afastando a metafsica da matemtica Kant tenta aproxim-la cincia da natureza. A

    matemtica pode comear pelas definies, tal como ficou demonstrado, entretanto a primeira e

    principal regra da metafsica nunca comear pela definio57. Como j mostramos, a significao,

    neste caso, sempre imprecisa e no conseguiramos mais que uma definio nominal que no

    53 AK. II, pp 283.54 AK X pp 62-67.55 AK XIII pp 29-30.56 possvel ler, no perodo crtico, cada regio de problemas como delimitada por campos semnticos que no so possveis de transgredir sem quebrar o sentido do problema. por isso que os problemas da moral no vo poder ser resolvidos pela razo terica. A beleza de uma flor ou a liberdade de um individuo no podero ser matemticamente demonstrveis. Kant sabe disso, e sabe que so precisas outras exigncias semnticas para que essas proposies fazam sentido.57 AK II, pp. 285.

    29

  • forneceria qualquer procedimento de relao entre o objeto e o conceito. Devemos comear por

    procurar aquilo que no objeto imediatamente certo antes de qualquer definio58. Antes de qualquer

    nominalismo.

    Poder-se-ia pensar que Kant est falando de condies prvias dos objetos eles mesmos

    antes da sua prpria definio? Talvez no seja demasiado desatino afirmar que sim, sobre tudo

    quando percebemos as crticas Leibniz e uma gradual aproximao da posio de Newton quando

    diz que o verdadeiro mtodo da metafsica , no fundo, idntico ao que Newton introduziu na

    fsica...59. Seguindo este exemplo Kant nos d uma motivao para continuar Embora no

    descobrssemos o fundamento ltimo dos corpos, todavia certo que eles atuam de acordo com esta

    lei e podemos explicar os complicados acontecimentos naturais se percebermos claramente como eles

    so submetidos a estas regras bem estabelecidas60.

    Uma posio semelhante ser colocada por Kant no texto de 176661 em relao ao

    tratamento da natureza de uma fora, e mesmo da lei de gravitao newtoniana, definindo-a, como

    prprio Newton, do seguinte modo: um efeito da atividade universal da matria sobre si mesma62.

    Esta definio posta somente em um sentido ilustrativo e no nos permite conhecer a natureza da

    fora. Melhor ainda, impede-nos regredir a uma possvel origem da fora caindo, desse modo, na

    armadilha metafsica, isto procurar com as ferramentas do conhecimento dos fenmenos aquilo que

    impossvel de apresentar na experincia. Por outro lado, o fato de recorrer a qualquer explicao

    espiritualista dos acontecimentos sensveis, na tentativa de explic-los objetivamente, ser visto

    como um sinal de uma filosofia preguiosa63, e Kant se no gostava de alguma coisa era justamente da

    preguia. Portanto, primeiramente, ser insuficiente qualquer tentativa de definio nominal dos

    conceitos que permita criar a iluso da existncia do objeto em questo; e, em segundo lugar, ser

    tambm ilcita qualquer inveno artificiosa de foras ltimas ou espritos voluntariosos na tentativa

    de encurtar o caminho. Ambas as alternativas so desconsideradas.

    1.5- A razo da existncia (acerca da distino do lgico e do real).

    58 AK. II, pp 285.59 AK. II, pp 286.60 AK. II, pp 286.61 Kant (1766) Trume eines Geistersehers erlutert durch Trume der Metaphysik. AK II 315-373. Traduo castelhana utilizada de Chacn e Reguera. Alianza Editoril. Madrid.1987. 62 AK.II, pp 335.63 AK.II, pp 331.... recorrer a princpios imateriais um refugio da filosofia preguiosa, e por isso tem que se fazer tudo o possvel por evitar explicaes deste tipo com o fim de que sejam conhecidos os fundamentos dos fenmenos mundanos.

    30

  • Outro tpico que possvel destacar na textualidade kantiana pode ser caracterizado pela

    relao entre o lgico e o real. A preocupao kantiana orienta-se aqui para uma delimitao do uso da

    lgica na explicao do real. Trata-se de procurar um esclarecimento das regras lgicas sobre a

    elucidao da existncia. Vejamos os prprios argumentos de Kant.

    Na Nova Dilucidatio... (1755,c)64 a proposta principal enuncia-se da seguinte maneira:

    indagar os primeiros princpios do nosso conhecimento. Esta tarefa indicada como o propsito da

    metafsica em vrios de seus textos, tanto do perodo pr-crtico como do perodo crtico. No texto de

    1764 declara-se que a metafsica no mais do que uma filosofia que se debrua sobre os primeiros

    fundamentos do nosso conhecimento65. Uma afirmao semelhante acharemos no texto de 176666 e

    na prpria CRP67. Paralelamente encontraremos tambm o termo metafsica desenvolvido na definio

    de conhecimento do supra-sensvel68. Esta dicotomia, mantida durante vrios anos (s vezes sem

    muita clareza e causando confuso em alguns leitores), marcar, como veremos, um giro no

    pensamento de Kant69. Mas, apesar desta multiplicidade, para falar de metafsica neste texto (1755 c),

    Kant resolve desenvolver somente a primeira definio, e em relao a tal objetivo se prope:

    1) avaliar a primazia do princpio de contradio em relao a todas as outras verdades;

    2) expor uma compreenso verdadeira do princpio de razo suficiente;

    3) estabelecer dois novos elementos do conhecimento metafsico.

    Dado o propsito de meu trabalho no abordarei todas as conseqncias deste texto, que