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Karine Finn A Relevância do Interesse Público na Implantação de Barragens Hidrelétricas em Terras Indígenas DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social Curitiba, julho de 2006 CCJS centro de ciências jurídicas e sociais

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Karine Finn

A Relevância do Interesse Público na Implantação de Barragens

Hidrelétricas em Terras Indígenas

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito

Econômico e Social

Curitiba, julho de 2006

CCJS centro de ciências jurídicas e sociais

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Karine Finn

A Relevância do Interesse Público na Implantação de Barragens Hidrelétricas em Terras Indígenas

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Curitiba Julho de 2006

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Karine Finn

A Relevância do Interesse Público na Implantação de Barragens Hidrelétricas em Terras Indígenas

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. _________________________________________

Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho Orientador

Departamento de Direito – PUCPR

_________________________________________

Prof.

_________________________________________

Prof.

Curitiba, de de 2006.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Karine Finn

Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em 2002. Advogada. Atuou junto à Procuradoria-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em Brasília – DF.

Ficha Catalográfica

Finn, Karine F514r 2006

A relevância do interesse público na implantação de barragens hidrelétricas em terras indígenas / Karine Finn ; orientador, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. – 2006.

125 f. : il. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade

Católica do Paraná, Curitiba, 2006 Inclui bibliografia 1. Solo – Uso. 2. Nativos. 3. Barragens e açudes. 4.

Usinas hidrelétricas. 5. Interesse público. 6. Direito ambiental. I. Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDD 21. ed. – 333.13 Dóris 4. ed. – 341.347

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Aos meus pais, Alcirio e Maria, pelo amor incondicional. E ao meu esposo, Sérgio Luis, pela dedicação e

cumplicidade.

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Agradecimentos Ao meu orientador, Professor Marés, que abriu meus olhos para a

sociodiversidade.

À Capes, pelo auxílio concedido, sem o qual este trabalho não poderia ter sido

realizado.

Aos meus professores, especialmente Blanchet, Vladimir e Flávia, pelo

entusiasmo das aulas e pelas palavras que tanto contribuíram no desempenho

desta pesquisa.

À Eva e à Isabel, pela paciência e pela amizade construída ao longo do curso.

Aos queridos colegas que, com seus conhecimentos, cooperaram de forma

essencial para o esclarecimento de inúmeras questões ligadas aos problemas

socioambientais.

Aos amigos, em especial, Gustavo, Andréia, Letícia, Gilson, Paulinho, Joslai,

Carina, Patricia, Carolina, Robson, Leonardo, Luciano e Daiana, pela

generosidade em compartilhar suas experiências.

Ao meu esposo, pelo admirável esforço e pela dedicação em todas as horas.

Aos meus amados pais, porque me dotaram de princípios, sem os quais eu não

saberia viver.

À Lia, minha irmã, pelo estímulo e compreensão nas ausências. E à minha

sobrinha Katherine, motivo de orgulho e inspiração.

A todos que, de tantas maneiras, colaboraram para que este trabalho se

concretizasse.

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Resumo

Finn, Karine; Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. A Relevância do Interesse Público na Implantação de Barragens Hidrelétricas em Terras Indígenas. Curitiba, 2006, 120p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

A relevância do interesse público na implantação de barragens

hidrelétricas em terras indígenas. Vinculada à linha de pesquisa de Direitos

Socioambientais, o presente trabalho discorre sobre o conteúdo jurídico da

expressão “relevância”, empregada pela União quando da autorização para a

exploração de recursos hídricos em terras indígenas. Pressupondo o conflito nestas

áreas, há que se admitir a relevância de um interesse público sobre o outro: de um

lado, os índios e seus direitos reconhecidos constitucionalmente e, de outro, os

grandes grupos empresariais que realizam as obras necessárias para o

desenvolvimento econômico do país. Neste sentido, entende-se que a ausência de

lei complementar que esclareça seu significado jurídico deva ser suprida com o

aprofundamento da leitura do art. 231 da Constituição Federal de 1988. Esta

compreensão se torna essencial para a justa solução de embates travados em solos

indígenas, visto a flagrante distância entre a realidade autóctone e a visão

ocidental de progresso. A discussão acadêmica é motivada pela identificação dos

impactos socioambientais causados nas situações de implantação de

empreendimentos hidrelétricos, dentre eles a remoção compulsória das

comunidades atingidas pelas inundações dos reservatórios, e, também, pela forma

de mitigação desses impactos, por meio de alternativas energéticas sustentáveis.

Apesar de entender que a análise antropológica é fundamental, o estudo aborda a

questão sob o prisma jurídico. Partindo de princípios constitucionais e formadores

do Estado Democrático de Direito, investiga-se qual é o interesse público

relevante para a sociedade e que, portanto, deve ser realizado.

Palavras-chave

Direitos Socioambientais, Barragens, Hidrelétricas, Povos Indígenas,

Interesse Público.

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Abstract

Finn, Karine; Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. The Public Interest Relevance on the Implementation of Hydroelectric Dams in Indian Reserves. Curitiba, 2006, 120p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

The public interest relevance on the implementation of hydroelectric dams

in Indian reserves. Connected to the research of Socio-environmental Rights, this

research concerns the juridical content of the expression “relevance”, used by the

government when giving permission to exploit water resources in Indian reserves.

Assuming the conflict in these areas, we must admit that there is a relevance of

one public interest over another: On the one side, the Indigenous people and their

recognized constitutional rights, and on the other, the big companies that do the

necessary work for the economic development of the country. In this sense, we

understand that the absence of a complementary law that clarifies its juridical

meaning must be supplied with the deepening of the reading of the article 231 of

the Federal Constitution from 1988. This understanding becomes essential for a

fair solution of conflicts that happen in Indian soil, since it is clear the distance

between autochthonous reality and the occidental view of progress. The academic

debate is motivated by the identification of the socio-environmental impact caused

by the implementation of hydroelectric undertaking, among them the removal of

the communities that suffer from the flooding of the reservoirs, and also, by the

way these impacts have been soften through sustainable alternative energies.

However, although we understand that the anthropologic analysis is fundamental,

the study approaches the issue under the law aspect. Taking in consideration the

constitutional and forming principles of the Democratic State of Law, we verify

which the relevant public interest is for society and therefore what must be done.

Keywords

Socio-environmental Rights, Dams, Hydroelectric, Indigenous People,

Public Interest.

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Sumário

1. Introdução 11

2. Barragens e Hidrelétricas 15

2.1. Barragens: o uso e a disponibilidade da água 15

2.2. Comentários à gestão de águas no Brasil 17

2.3. O aproveitamento das águas 21

2.4. Apresentação do setor elétrico brasileiro 28

2.5. Hidrelétricas e desenvolvimento 33

2.6. Fontes alternativas de energia: tendências para uma variação da matriz energética brasileira 38

2.7. Aspectos jurídicos do processo de implantação de usinas hidrelétricas 46

3. Os Índios 56

3.1. A filosofia ocidental e os indígenas 56

3.2. A crítica de Dussel à ontologia da totalidade 60

3.3. A tendência global de resgate da ótica universalista 63

3.4. Multiculturalismo: o direito à diferença na nova ordem global 67

3.5. Cultura indígena e Direito 70

3.5.1. A exploração da terra indígena para o Direito brasileiro 80

3.5.2. A vontade indígena como um direito 89

4. Barragens Hidrelétricas e Povos Indígenas 93

4.1. Implantação de barragens hidrelétricas: efeitos da degradação ambiental nas comunidades indígenas

93

4.2. O impacto social do deslocamento compulsório dos grupos indígenas 97

4.3. A preservação da cultura indígena enquanto interesse público 110 4.4. O conteúdo da relevância dos interesses indígenas 115

5. Conclusão 118

6. Referências Bibliográficas 120

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Lista de Ilustrações

Figura 1 – Lago formado pela Grande Barragem de Assuã. 22

Figura 2 – Parque eólico. 42

Figura 3 – Células fotovoltaicas. 43

Figura 4 – Vista parcial da represa de Balbina. 46

Figura 5 – Povo Awá. 92

Figura 6 – Vista parcial do lago da hidrelétrica Samuel. 95

Figura 7 – Vista parcial da barragem de Tucuruí. 99

Figura 8 – Vista parcial da barragem de Itaipu. 102

Tabela – Barragens em terras indígenas no Brasil. 104

Mapa – Localização das barragens planejadas no Rio Xingu 109

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Cuándo nuestros hogares hayan sido destruidos y nuestras tierras devastadas, dónde viviremos? Nuestras tierras, nuestro sustento, han disminuido Los lagos se han elevado Los ríos se han secado Las corrientes cantan con voces melancólicas Las tierras se ennegrecen, el verde se marchita Las aves silencian y se van.

Paulus Utsi (saami), Mientras que

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1 Introdução

As técnicas de construção de barragens fazem parte de um rol de

conhecimentos humanos milenares que auxiliaram muito os processos de

desenvolvimento social e econômico de vários países, proporcionando um maior

controle sobre a disponibilidade e a qualidade da água fornecida para os mais

diversos usos, nas mais diferentes regiões.

Em termos gerais, as barragens sempre fizeram parte de importantes ciclos

de desenvolvimento, simbolizando, inclusive, a independência econômica. Afinal,

a geração de energia elétrica e a correta utilização da água, tanto na agricultura

quanto na indústria, são fatores indispensáveis para a formação de uma economia

estável.

Foi o aumento populacional e o estabelecimento humano nas áreas de

várzea o que impulsionou, até a década de 1960, a construção de grandiosas

barragens nos países considerados desenvolvidos, a qual somente veio a ocorrer

nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, após 1970.

Quando o meio ambiente se transformou em tema de importância

internacional1, a sociedade começou a adquirir uma consciência ambiental e social

que, de certo modo, alterou sua percepção com relação aos impactos causados

pelas grandes barragens. Atualmente, existe uma cobrança maior por melhores

resultados na exploração dos recursos hídricos, ou seja, pela otimização dos custos

e benefícios ambientais e sociais dos projetos de implantação desses

empreendimentos.

A partir da consciência dos problemas ambientais, surgem questões

relevantes quanto aos impactos que o progresso causa no modo de vida de certas

populações. Isso ocorre, por exemplo, quando a água utilizada para gerar energia

tiver de ser armazenada em território indígena.

Os povos indígenas possuem uma forte ligação com as terras que ocupam;

as têm como sua referência cultural. Em inúmeros casos, a construção de uma

barragem implica em remoção da comunidade, comprometendo sua tradicional

organização social.

1 Referente à convocação das Nações Unidas, em 1972, para a primeira conferência internacional sobre o meio humano, em Estocolmo.

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Os modelos de reassentamento propostos nos projetos hidrelétricos, em

sua maioria, não trazem benefícios para as populações indígenas, nem tampouco

melhoram sua qualidade de vida na maneira como estas esperam, considerando

que seus objetivos e aspirações não se baseiam em padrões ocidentais de

apropriação individual, e sim num modo de viver coletivo.

Sob a perspectiva da sociedade contemporânea, as questões indígenas

estão limitadas ao passado, como se o caminho desses povos rumo à civilização

fosse algo inevitável. Os seus interesses são menosprezados pelo público em

geral, que se mantém atento apenas aos casos sensacionalistas que rendem

algumas matérias jornalísticas.

Este fato parece esclarecer o motivo pelo qual o reconhecimento dos

direitos indígenas – seu modo de vida, que compreende a sua organização social,

os seus costumes e as suas tradições – foi tratado apenas ao final do texto

constitucional. De qualquer modo, estão garantidos os direitos originários que

estes povos detêm sobre as terras que tradicionalmente ocupam, o que impõe à

União um dever de proteção.

É notório, pois, que as questões indígenas nunca tiveram muita relevância

no cenário político do Brasil, mesmo depois que as discussões sobre os direitos

destas minorias cresceram no âmbito internacional, passando-se a protegê-los

mais expressivamente. Entretanto, o reconhecimento desses direitos não dispensa

a luta pela efetividade.

Os constantes conflitos que os índios encaram para permanecer em suas

terras são provas cabais de que o sistema de proteção dos direitos indígenas

merece desvelo. Tais fatos ocorrem não apenas pelas disputas agrícolas com

latifundiários, mas também pelo flagrante interesse na disponibilidade de recursos

naturais existentes na área autóctone, especialmente quanto aos minérios e às

águas.

Nestas situações, é possível revelar a fragilidade do aparato legislativo,

que viabiliza a contraposição de interesses: de um lado, os índios e seus direitos

sobre a terra e aos recursos naturais nela existentes e, de outro, os grandes grupos

empresariais e a realização de obras necessárias para o desenvolvimento

econômico.

Se por um lado a Constituição reconheceu aos indígenas a posse originária,

por outro a excepcionou, ressalvando a ocupação das terras nos casos de

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“relevante interesse público”. Porém, a falta de lei complementar que conceitue

essa expressão vem gerando uma série de interpretações que estão muito longe de

salvaguardar os direitos das comunidades atingidas.

Deste modo, o exame mais acurado do texto constitucional, leva a uma

reflexão acerca do conteúdo da expressão “relevante interesse público”.Neste

sentido, o presente trabalho pretende discorrer sobre a acepção jurídica mais

adequada desse conceito de relevância a ser empregado na solução de conflitos de

interesses gerados em terras indígenas, especificamente, na implantação de

barragens hidrelétricas.

Para tanto, o trabalho foi dividido em três partes, de forma que ocorresse

uma melhor visualização do problema.

O objetivo da primeira parte, cujo título é “Barragens e Hidrelétricas”, é o

de inserir o leitor numa área de conhecimento que não é, propriamente, familiar ao

Direito, indicando a importância do uso da água na geração de energia e como isto

se desenvolve técnica e juridicamente.

A partir desses conceitos, será possível entender que o desenvolvimento

proposto no modelo adotado pelo setor elétrico brasileiro não é compatível com os

objetivos de vida das populações indígenas afetadas pela implantação de grandes

hidrelétricas, principalmente porque não preserva a cultura.

Na segunda parte, “Os Índios”, busca-se demonstrar, no contraste da visão

ocidental, o significado da terra e a importância da manutenção da posse,

incluindo a preservação dos recursos naturais para a sobrevivência da cultura

indígena. Para isto, se faz necessário reconstruir um pouco do pensamento

eurocêntrico e de como foi estabelecida a relação com os povos indígenas e sua

diferente cultura.

Esta parte do estudo se inicia com a justificativa kantiana para a

instauração do Estado Liberal, sem o qual as pessoas não poderiam estabelecer

relações jurídicas e, conseqüentemente, adquirir direitos individuais, como a

propriedade. Destaca-se, no pensamento de Immanuel Kant, a forma como é

tratada a questão da alteridade, admitida sem a preocupação do reconhecimento de

suas peculiaridades, dentro dos estritos limites da legalidade.

Sob uma ótica inversa, tecem-se alguns comentários sobre a filosofia de

Enrique Dussel, em que a relação com o outro é permeada de moralidade. A teoria

dusseliana critica a exclusão do outro, daquele que é diferente, e incita o

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rompimento com o modelo eurocêntrico, que está baseado na universalidade do

conceito de dignidade humana.

Com Wolfgang Kersting, observa-se a tendência global ao resgate da

teoria universalista de direitos humanos, na medida em que todos os homens

teriam interesses essenciais comuns, que são revelados independentemente do

contexto cultural em que vivem. Assim, o anseio pelo desenvolvimento seria,

também, uma característica humana universal.

Em contraposição a esta perspectiva, considerando que o universalismo

pode não atender aos objetivos de desenvolvimento de todo o ser humano e que

tem servido de instrumento para atender fins exclusivamente econômicos, são

trazidos à exposição os argumentos de Carlos Frederico Marés de Souza Filho e

de Boaventura de Sousa Santos.

Finalmente, na terceira parte, “Hidrelétricas e Povos Indígenas”, procura-

se evidenciar o papel do Estado a ser desempenhado no conflito de interesses

decorrente da geração de energia a partir dos recursos hídricos existentes em

terras indígenas, ressaltando a relevância da cultura indígena enquanto interesse

público difuso.

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2 Barragens e Hidrelétricas 2.1 Barragens: o uso e a disponibilidade da água A água, enquanto recurso natural, influencia constantemente as relações

que o homem mantém sobre a terra, como a produção de alimentos e de matérias-

primas. Há milênios, a descoberta do uso de sua força vem auxiliando no processo

de evolução dos métodos agrícolas, entre os quais se exemplifica a moagem de

grãos.

A facilitação do trabalho já era uma preocupação dos romanos quando da

invenção da roda d’água por Marcus Vitruvius Pollo, arquiteto que viveu antes de

Cristo e que buscou uma forma de substituir o trabalho realizado por homens e

animais nos moinhos, utilizando um instrumento que pudesse, verticalmente, ser

colocado numa correnteza.2

“Era impulsionada por baixo, isto é, a água corria na direção da roda e caía dentro de caçambas presas ao longo do seu aro, fazendo-a girar. Um engenhoso sistema de engrenagens ligava a roda às mós por meio de um eixo horizontal”.3

Muitos séculos depois, surgiu um outro invento, uma roda capaz de

aproveitar muito melhor a força da água, porque estava apta a recebê-la por cima,

por meio de canais oriundos de pequenos diques construídos sobre riachos.4

Assim, a humanidade evoluiu e o uso da água se diversificou bastante,

multiplicando-se. Sua força hoje importa na geração de energia elétrica para

atender às necessidades de bilhões de pessoas, movimentando gigantescos parques

industriais por todo o mundo.

De certo modo, a humanidade sempre tratou a natureza como uma dádiva

divina, cuja existência servia apenas para satisfazer as suas vontades, vez que,

nesta visão, os recursos seriam infinitos e inesgotáveis. O pensamento sempre foi

o de que a terra se renovaria eternamente e, com ela, todos os seus ciclos naturais,

como os da água.

2 CULLEN, A. H. Rios prisioneiros: a história das barragens, p. 36. 3 CULLEN, A. H. Idem, p. 37. 4 CULLEN, A. H. Idem, p. 38.

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No entanto, a poluição do meio ambiente, resultante dos mais variados

processos de industrialização e do consumismo exasperado, é a pior herança que

este pensamento legou à sociedade, que, na contemporaneidade, desafia o homem

a superar a crise de abastecimento de água potável.

A disponibilidade de água é um fator decisivo para se determinar o

potencial de desenvolvimento econômico e social dos países e é por isso que o seu

uso racional se tornou o cerne de todas as discussões acerca da sustentabilidade.

Controlar a quantidade e a qualidade dos recursos hídricos é algo, realmente,

fundamental para concretizar esse desenvolvimento e melhorar as condições de

vida da população.

A demanda pela água se eleva expressivamente com o passar dos anos,

visto que mais sofisticada se mostra a cadeia produtiva de bens de consumo. Em

decorrência, a poluição atinge níveis cada vez maiores, diminuindo a quantidade

desse recurso para o abastecimento público.

Sendo que a água doce representa cerca de 2,5% do volume total, apenas

0,27% destes pode ser encontrada na superfície, em rios e lagos. Pelos dados

levantados5, 69,5% da água doce do planeta encontra-se congelada e 30,1% está

no subsolo, o que pressupõe a utilização de técnicas mais apuradas para sua

extração.

Por outro lado, considerando a estimativa de crescimento da população

para os próximos vinte anos, será exigido um aumento significativo na

disponibilidade de água para irrigação, cerca de 17% além dos 70% a mais para o

abastecimento urbano. Os usos associados da água deverão representar um

acréscimo de 40% na demanda total.6

Mas o grande problema não está associado apenas a uma possível carência

desse recurso na natureza, e sim aos irrecuperáveis prejuízos causados com a

poluição dos corpos hídricos, principalmente pelo lançamento de resíduos urbanos

e industriais no meio ambiente.

5 Descontados os pântanos insalubres e a água atmosférica. MAGALHÃES, P. C. de. O custo da água gratuita, p. 46. 6 World Comission on Water – dados da ONU e do Banco Mundial. SANTOS, M. R. M. O princípio poluidor-pagador e a gestão de recursos hídricos: a experiência européia e brasileira, p. 293.

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Logo, há que se pensar na água como um recurso limitado e indispensável

à vida, um bem destinado ao uso comum, cujo valor econômico deve ser sempre

considerado, para todos e por todos os seus usos.7

Conforme explica USSUAMI, “o modelo de desenvolvimento econômico

predominante não tem encarado a água como um bem econômico finito”8 e é por

isso que se faz necessária a implantação de um sistema eficiente de gestão.

Além da viabilidade de um uso múltiplo, já que todos os setores de

usuários detêm direitos de acesso aos recursos hídricos, igualitariamente, é

imprescindível conservar certas características da água disponível, mantendo-a

apropriada para quaisquer espécies de consumo, pelo máximo de tempo possível.

Esta pode parecer ser uma preocupação contemporânea, todavia a história

humana demonstra que o controle do uso da água sempre foi muito importante

para garantir a sobrevivência de diversas civilizações. Contudo, foi no despertar

ecológico do século XX que se pretendeu criar uma gestão mais eficaz e que

possibilitasse a sustentabilidade.

A gestão dos recursos hídricos pressupõe um planejamento, no sentido de

se “conciliar recursos escassos e necessidades abundantes”9. Somente dessa forma

é possível avaliar a situação de escassez da água e solucionar o problema que

assola as mais variadas regiões do globo terrestre.

Este planejamento tem por objetivo proporcionar um uso mais adequado

da água, ou induzi-lo ao máximo de aproveitamento, seguindo-se critérios sociais,

econômicos e ambientais. Em resumo, é a base para que se possa percorrer os

caminhos do desenvolvimento, satisfazendo as necessidades do presente sem,

porém, prejudicar a sobrevivência e o progresso das gerações futuras.

2.2 Comentários à gestão de águas no Brasil

Os lagos, os rios e quaisquer correntes de água existentes em terrenos sob

o domínio da União, ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de limites, se 7 Conforme as diretrizes para as políticas de gestão dos recursos hídricos, definidas na Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento de Dublin e, após, confirmadas na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1992. 8 USSUAMI, M. A. Gestão dos recursos hídricos para o desenvolvimento sustentável, p. 808. 9 USSUAMI, M. A. Idem p. 809.

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estendam ou provenham de outros países, devem ser considerados federais, sendo

esta uma norma constitucional.10

Do mesmo modo, todas as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes,

emergentes e em depósito dentro de limites estaduais são consideradas bens dos

Estados, com exceção daquelas decorrentes de obras da União; o gerenciamento

daquelas águas, por conseqüência, fica adstrito aos respectivos domínios

estatais.11

As águas brasileiras são, em suma, administradas tanto pela União como

pelos Estados federados. No entanto, a gestão dos recursos hídricos ocorre de

forma apartada da legislação que disciplina as relações humanas com o meio

ambiente em geral.12

Muito embora ocorra integração com a Política Nacional de Meio

Ambiente13, o sistema de gestão implantado, inspirado no modelo francês14, prevê

uma descentralização em Comitês de Bacias Hidrográficas e Agências de Bacias

Hidrográficas. É neste sentido que a legislação se torna inovadora, pois repassa

gerenciamento para o âmbito das bacias hidrográficas, deixando de ser realizado

exclusivamente pelo Poder Público.

Basta dizer que não se cogitava essa hipótese quando da elaboração do

Código de Águas, como ficou conhecido o Decreto nº 24.643, de 10 de julho de

1934, que previa a expansão do setor elétrico, admitindo a água como um recurso

infinito, passível de apropriação privada.

A lei disciplinou o uso das águas, o regime de concessões para o

aproveitamento hidráulico e o regime contábil e tarifário a que se submeteriam as

empresas concessionárias, mas não demonstrou um grande interesse pelos

problemas ambientais.15

O Código de Águas não foi rigorosamente cumprido, especialmente no

tocante às concessões que, a princípio, seriam conferidas a brasileiros ou a

10 Art. 20, III. Constituição Federal de 1988. 11 Art. 26, I. Constituição Federal de 1988. 12 Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997. 13 Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. 14 “O sistema institucional francês é composto por entidades colegiadas que representam os usuários e as comunidades, além dos órgãos estatais. O sistema foi subdividido em seis bacias hidrográficas constituído [sic] por Comitês de Bacia e Agências de Água, além do prefeito coordenador da bacia, assistido pela comissão delegada e pela Direção Regional de Meio Ambiente da Bacia”. SILVA, E. R. da. O curso da água na história: simbologia, moralidade e a gestão de recursos hídricos, p. 127. 15 SILVEIRA, R. O processo decisório para a construção de aproveitamentos hidrelétricos, p. 46.

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empresas organizadas no Brasil. Apesar de não estar expressamente abolido, o

novo ordenamento jurídico, instituído a partir da Constituição Federal de 1988,

não recepcionou integralmente o Código de Águas, prejudicando a continuidade

de sua aplicação.

Os mencionados Comitês são órgãos compostos por usuários das águas,

por organizações da sociedade civil ligadas às ações desempenhadas numa

determinada bacia e, também, por representantes do Poder Público. Trata-se de

órgãos colegiados e verdadeiros administradores do sistema, responsáveis pela

implementação dos instrumentos técnicos definidos em lei e pela utilização

racional e sustentável dos recursos hídricos.

O sistema de gestão brasileiro, ainda em fase de implantação, já conta com

sete comitês de rios federais: o da bacia hidrográfica do rio Doce, dos rios Muriaé

e Pomba, do rio Paraíba do Sul, do rio Paranaíba, dos rios Piracicaba, Capivari e

Jundiaí, do rio São Francisco e do rio Verde Grande.16

A gestão das águas brasileiras admite como passíveis de autorização

somente aqueles usos dispostos na legislação.17 Assim, para garantir o uso

múltiplo da água, com quantidade e qualidade adequada, a Política Nacional de

Recursos Hídricos instituiu, como instrumento, a outorga dos direitos de uso desse

recurso.

A autorização, ou outorga do direito de uso, é uma ferramenta fundamental

de controle para que se faça uma utilização mais organizada dos recursos hídricos.

Por meio da outorga se pretende, também, evitar a degradação ambiental que

possa decorrer desse uso, viabilizando, assim, uma maior fiscalização dos

empreendimentos implantados.

Trata-se de um ato administrativo, que faculta o direito de uso de um

determinado corpo hídrico por prazo determinado ou, em outras palavras, é “uma

manifestação de vontade funcional apta a gerar efeitos jurídicos, produzida no

exercício da função administrativa”18.

16 Informações do Ministério do Meio Ambiente – MMA. http://www.mma.gov.br/port/srh/sistema/comites.html. Acessado em 10/01/2006. 17 Vide inc. III, do art. 5º e art. 11 e seguintes da Lei nº 9.433, de 1997. 18 JUSTEN FILHO, M. Curso de direito administrativo, p. 185.

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No modelo brasileiro, cabe à Agência Nacional de Águas – ANA19

outorgar, por meio de autorização20, o direito de uso de recursos em corpos

hídricos de domínio da União.21

Os critérios gerais para esta outorga são estabelecidos pelo Conselho

Nacional de Recursos Hídricos – CNRH22, órgão normativo e deliberativo

bastante expressivo na concretização dos objetivos da Política Nacional de

Recursos Hídricos.

Como integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos

Hídricos23, a atuação do CNRH tem por base a elaboração dos Planos de Recursos

Hídricos, a nível federal24 e estadual.25 É, por assim dizer, o verdadeiro

responsável pelo planejamento hídrico como um todo, inclusive pela análise dos

projetos de aproveitamento de recursos hídricos no país.

A elaboração de todo esse planejamento hídrico vem provando ser tarefa

das mais complexas, tendo em vista as dimensões do Brasil e a expressiva

quantidade de recursos hídricos existentes ao longo de toda a sua extensão.

Inserindo-se neste cenário, será proposto, a seguir, o estudo das barragens,

que são as obras de engenharia responsáveis pelo armazenamento de grandes

volumes de água para os mais diferentes aproveitamentos, como o abastecimento

potável, a irrigação e a geração de energia elétrica.

19 Criada pela Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000. 20 “Autorização de uso de bem público é o ato unilateral pelo qual a autoridade administrativa faculta o uso de bem público para utilização episódica de curta duração”. MELLO, C. A. B. de. Curso de direito administrativo, p. 794. 21 Art. 4º, IV. Lei nº 9.984, de 2000. 22 Art. 34 e seguintes. Lei nº 9.433, de 1997. 23 Art. 32 e seguintes. Lei nº 9.433, de 1997. 24 O Plano Nacional de Recursos Hídricos, elaborado pelo Ministério de Minas e Energia - MME e aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos - CNRH, é, na verdade, um conjunto de diretrizes, metas e programas para garantir o uso racional da água no país até 2020. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a possuir um plano de Gestão Integrada de Recursos Hídricos, expressão que deriva de “Integrated Water and Resources Management” - IWRM e que significa gerir de forma coordenada todos os recursos relacionados com a água, viabilizando um bem-estar econômico e social que não comprometa a sustentabilidade ecológica. Com este plano, o Brasil espera cumprir uma das metas de desenvolvimento estabelecidas para o milênio pela Organização das Nações Unidas – ONU. 25 Vide art. 33, I e art. 34 e seguintes da Lei nº 9.433, de 1997.

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21

2.3 O aproveitamento das águas Barragens são estruturas de retenção de água que vêm sendo construídas

há milênios, fazendo parte da história e do desenvolvimento das mais importantes

civilizações humanas. A princípio, auxiliavam nos processos primitivos de

irrigação, armazenando a água das chuvas e corrigindo o fluxo dos rios, por meio

de canais.

Tamanha era sua utilidade para a agricultura que os povos árabes, como os

nabateus26, se beneficiavam do armazenamento da água das chuvas para

cultivarem cevada, trigo, legumes, figos, uvas, tâmaras e outros alimentos durante

os períodos de seca.

As primeiras edificações desse mecanismo permitiram, ao mesmo tempo, a

irrigação do solo e o abastecimento populacional e se tratava de valiosas obras de

engenharia, uma vez que datam de mais de cinco mil anos. Conquanto haja

imprecisão com relação ao surgimento da primeira barragem, suspeita-se que

tenha sido construída na antiga Mesopotâmia.

A necessidade do controle de enchentes também motivou alguns povos,

como os sumerianos27, a levantarem uma série de diques para dominar a água.

Contudo, o sistema hidráulico mais complexo da Antigüidade foi elaborado pelos

egípcios, entre os anos de 3400 e 1500 A.C.

As inundações provocadas pelo Nilo e responsáveis pela fertilização do

solo puderam ser controladas a partir da construção de barreiras às margens do rio

e de canais que levavam a água para os campos a serem cultivados. Isso

possibilitou que se fizessem várias culturas no decorrer do ano, ao invés de uma

única durante o período de inverno.28

Já na modernidade, a partir de 1902, várias barragens foram levantadas.

Pode-se citar como exemplo a barragem de Assuã, também no Egito. Com um

reservatório de, aproximadamente, um bilhão de toneladas de água, havia cerca

26 Povo árabe da região de Israel, que construíram represas no deserto de Negueve. Utilizavam canais oriundos de processos naturais de erosão do solo para regularizar o fluxo da água das chuvas e, assim, represá-la para ser utilizada durante os períodos de seca. CULLEN, A. H. Obra citada, p. 30. 27 Primitivos habitantes do vale do rio Eufrates. CULLEN, A. H. Idem, p. 17. 28 CULLEN, A. H. Idem, p. 20.

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22

de cento e oitenta comportas, distribuídas ao longo de dois quilômetros e meio de

extensão, a uma altura de trinta e seis metros.29

Um pouco mais tarde, uma nova barragem deveria ser construída para

regularizar o caudal30 do Rio Nilo. Trata-se de uma imensa obra, conhecida como

a Grande Barragem de Assuã.

Figura 1 – Lago formado pela Grande Barragem de Assuã, no Egito, a 6,5 km ao sul da cidade de Assuã. Fonte: BLUMBERG, A. Egitomania: o fascinante mundo do antigo Egito, p. 181.

Sua construção se deu em meio a desavenças políticas. Em meados do ano

de 1956, o presidente egípcio Gamal Abdul Nasser solicitou a ajuda dos Estados

Unidos e da antiga União Soviética na construção da barragem, a fim de poder

proporcionar melhores condições para a agricultura local e uma rápida

industrialização, a partir da geração elétrica menos onerosa.31

Entretanto, o governo dos Estados Unidos revogou o prometido auxílio

financeiro, fazendo com que, em represália, o presidente egípcio se apropriasse do

Canal de Suez. Com a negativa americana, em 1958, a União Soviética concordou

em providenciar o financiamento de cerca de 400 milhões de dólares e, também, o

apoio técnico para a obra, que se iniciou em 1960.

29 CULLEN, A. H. Idem, p. 22. 30 Significa a quantidade de água transportada na unidade de tempo. 31 CULLEN, A. H. Obra citada, p. 23.

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23

Concluída em 1970, ao custo de 1 bilhão de dólares, a barragem formou o

Lago Nasser, com capacidade para acumular 163 milhões de metros cúbicos de

água. Com doze geradores, foi projetada para produzir cerca de 10 bilhões de

quilowatts de energia elétrica por ano, além de propiciar uma significativa reserva

de irrigação.32

Esta, sem dúvida, é uma das mais grandiosas e fantásticas obras de

engenharia já realizadas e, como tal, não poderia deixar de gerar importantes

impactos a nível econômico, social e ambiental.

É importante ressaltar que, até a década de 70, nenhuma avaliação formal

sobre os possíveis impactos ambientais era considerada necessária. Desse modo,

não se realizava qualquer espécie de Estudo de Impacto Ambiental – EIA33 para a

implantação de grandes projetos hidrelétricos.

Como instrumento para avaliação dos impactos ambientais, e porque não

dizer socioambientais, este estudo é de fundamental importância para se prever o

potencial de degradação ou de poluição de um determinado projeto com relação

ao seu entorno, e será detalhado adiante.

Apesar dos efeitos ambientais negativos sofridos com o megaprojeto de

Assuã, alguns especialistas continuam afirmando que o Egito estaria “em estado

de catástrofe contínua”34, caso a grande barragem não tivesse sido construída.

“Sempre é possível saber o que ser deveria feito [sic] depois que aconteceu, e não importa quão bem planejamos, desenhamos e construímos infraestruturas grandes, sempre haverá problemas, por causa das complexidades e incertezas envolvidas. Não podemos esperar até termos conhecimentos e sabedoria perfeitas, em qual caso nada jamais será construído, e o mundo se tornará cada vez mais desconfortável para viver. Isso não beneficiará nem a humanidade, nem o meio-ambiente”.35

A ânsia desenvolvimentista levou, até 1960, a uma intensa construção de

grandes barragens nos países desenvolvidos, como Estados Unidos, Austrália,

32 SCHÜÜR, G. Equilíbrio ecológico. http://www.photographia.com.br/texto1.htm. Acessado em 22/12/2005. 33 No Brasil, instituído pela Política Nacional de Meio Ambiente, Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e regulamentado pela Resolução nº 001, de 23 de janeiro de 1986, do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA. 34 BISWAS, A. K. TORTAJADA, C. Barragens, meio-ambiente e desenvolvimento: o ponto de vista do mundo em desenvolvimento, p. 4. 35 BISWAS, A. K. TORTAJADA, C. Idem, ibidem.

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24

Canadá, Europa Ocidental, antiga União Soviética e Japão36, afinal, a energia

hidrelétrica se tornou a mais importante fonte de energia.

Em países africanos e asiáticos, as construções ganharam um ritmo mais

acelerado a partir de 1950, juntamente com o período de descolonização e

independência. A prioridade era acelerar o processo de desenvolvimento nacional,

melhorando as condições de vida da população.

A implantação desses grandes projetos ajudou em muito o fortalecimento

da economia, podendo-se citar as barragens de Bhakra e Hirakud na Índia, a do

Volta em Gana, a de Kariba na Zâmbia, além da mencionada Assuã.37

Nos países em desenvolvimento, como Brasil, China, Índia, Indonésia,

Malásia, Tailândia e Turquia, o planejamento das grandes barragens começou a

ser arquitetado somente a partir da década de 1970, quando este processo de

construção já havia se encerrado nos países desenvolvidos.38

As grandes barragens são obras que contam com mais de 15 metros de

altura e com reservatórios de capacidade superior a 3 milhões de metros cúbicos

de água.39

Estão concentradas na China, nos Estados Unidos, na Índia, no Japão e na

Espanha, sendo que, atualmente, cerca de 40 mil dessas represas estão espalhadas

pelo mundo40, número confirmado pela Comissão Mundial de Barragens –

CMB41, que estima a existência de pelo menos uma grande barragem em quase

metade dos rios do mundo42.

De acordo com a Comissão, a maior parte das grandes represas do mundo

é destinada, primordialmente, à irrigação; mais de 80 milhões de hectares de terras

irrigadas dependem dessas construções. Com base nestes dados, concebe-se a

importância das barragens para a economia global.

36 BISWAS, A.K. TORTAJADA, C. Idem, p. 1. 37 BISWAS, A. K. TORTAJADA, C. Idem, ibidem. 38 BISWAS, A.K. TORTAJADA, C. Idem, ibidem. 39 Segundo definições da International Commission on Large Dams – ICOLD, criada em 1928 com o objetivo de desenvolver projetos ecológico e sócio-economicamente seguros para a construção de grandes barragens. 40 GARRIDO, R. A sustentabilidade das intervenções no ambiente aquático, p. 7. 41 A World Commission on Dams – WCD foi fundada em maio de 1998 com o intuito de examinar a eficácia da construção de grandes barragens e estudar alternativas para o desenvolvimento de recursos hídricos e energéticos, além de elaborar critérios, diretrizes e padrões internacionalmente aceitáveis para o planejamento, projeto, avaliação, construção, operação e monitoramento de barragens. CMB. Barragens e desenvolvimento: um novo modelo para tomada de decisões, p. 2. 42 CMB. Idem, ibidem.

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25

Como benefício da implantação dessa espécie de empreendimento, os

especialistas apontam para o desenvolvimento regional, a partir da geração de

empregos e do avigoramento das bases industriais, visando ao mercado externo.

Este é, portanto, o principal argumento para a elaboração dos grandes projetos

hidráulicos.

Embora sirvam como impulsionadoras da economia mundial, além de sua

grande utilidade para a conservação dos solos, combate às secas, irrigação e

geração de energia elétrica, há que se levar em conta que essas construções

também revelam desvantagens e pontos negativos.

Uma delas diz respeito aos ciclos naturais de algumas espécies de peixes,

como o salmão. Os salmões, instintivamente, têm por hábito desovar no mesmo

local de sua origem, ou seja, do oceano retornam para o leito do rio onde

nasceram. Percorrem quilômetros, lutando incessantemente contra a correnteza,

para se reproduzirem. Apesar de sua capacidade de saltar por pequenas barreiras

naturais, grandes barragens se tornam impossíveis de serem transpostas.

Pode-se dizer que a ignorância do homem nos primeiros anos de

implantação de grandes barragens na era moderna prejudicou bastante a indústria

pesqueira. As dificuldades somente puderam ser contornadas quando se resolveu

instalar uma série de comportas e escadas que permitiram, finalmente, a

transposição dessas barreiras e a continuidade do ciclo de reprodução dos peixes.

Mesmo assim, alguns peixes acabam por morrer ao regressarem para o

oceano, seja devido à queda nas escadas ou pela absorção das turbinas que geram

a energia elétrica e cujo funcionamento será explicado no capítulo a seguir.

Outro problema é a sedimentação que ocorre no fundo dos reservatórios,

após anos de acúmulo de resíduos. Partículas do solo são carregadas rio abaixo,

até sua chegada na represa, formando um grande lamaçal. Além de terra, detritos

maiores vão sendo carregados, como pedras e galhos de árvores, tornando a água

impura, o que leva ao mau funcionamento das turbinas e à sua conseqüente

inutilização. Exemplos dessas ocorrências são as barragens de Hoover43 e de

Elephant Butte44.

43 Instalada desde 1930 no Lago Mead, próximo a cidade de Las Vegas, Estado de Nevada, nos Estados Unidos. CULLEN, A. H. Obra citada, p. 68. 44 Construída em 1916 no Rio Grande, Estado do Novo México, nos Estados Unidos. CULLEN, A. H. Idem, p. 145.

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26

Para se livrar desse problema, as empresas são obrigadas a arcar com o

alto custo dos processos de limpeza. Existem vários métodos, e um deles se baseia

na construção de outras barragens menores, encarregadas de escoar a água para o

reservatório principal, provocando a liberação dos detritos mais pesados.

“Essa água, ao entrar aos borbotões no reservatório, desencadeia uma série de ondas violentas, que fazem com que se desprendam os detritos acumulados à entrada do lago, os quais são arrastados até junto da barragem, cujas comportas de descarga se encarregam de despejá-los rio abaixo”.45

Os cuidados com a sedimentação importam em sustentabilidade ambiental,

porque o acúmulo de biomassa putrefada, além de alterar a qualidade da água,

gera gases identificados como agentes do “efeito-estufa”. Sendo assim, o dióxido

de carbono (CO2) e o metano (CH4) podem se concentrar da mesma forma como

outros sedimentos.

Segundo explica FEARNSIDE, no reservatório de Tucuruí46, a

concentração de gás metano a trinta metros de profundidade era, em março de

1989, de seis miligramas por litro de água.47 Este é um dos gases originados nos

processos de decomposição, geralmente da vegetação existente no fundo dos

reservatórios.

Além da emissão natural do metano para a atmosfera terrestre, a

oxigenação ocorrida no momento em que a água vaza do reservatório para as

turbinas de uma hidrelétrica provoca mais liberação desse gás, o que,

teoricamente, contribui na formação de efeitos climáticos indesejáveis.

“O metano também é liberado no percurso da água pelo vertedouro, onde a liberação de gás é causada não só pela mudança de pressão e temperatura, mas também pela provisão súbita de uma vasta área da superfície, quando a água é pulverizada em pequenas gotas”.48

Por outro lado, o impacto do gás carbônico, em relação ao metano, é bem

menor, visto que boa parte da emissão é absorvida em processos fotossintéticos.

45 CULLEN, A. H. Idem, p. 147. 46 Situada no Rio Tocantins, está a 300 km de Belém, no Estado do Pará. Entrou em operação em 1984, com 4.000 MW de potência. Em junho de 2006, quando serão concluídas as obras de ampliação, a usina passará a ter capacidade para gerar 7.960 MW, e será a maior usina brasileira. CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL (Eletronorte). http://www.eln.gov.br/Usinas/Tucurui/MeioTucurui.asp. Acessado em 01/05/2006. 47 FEARNSIDE, P. M. Gases de efeito estufa em hidrelétricas da Amazônia, p. 41. 48 FEARNSIDE, P. M. Idem, p. 42.

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27

FEARNSIDE explica que a existência desse gás nos reservatórios se dá a partir

das sínteses de fitoplânctons49 e de macrófilas50, mas também pela decomposição

das árvores inundadas e de outros materiais orgânicos.51

Ainda sob este aspecto, perdas ambientais importantes estão relacionadas

aos produtos da floresta, principalmente à madeira. Segundo análises realizadas

para avaliar os custos das barragens sobre o meio ambiente, o valor da floresta

sacrificada geralmente não está incluído nos cálculos do reservatório.52

Outras evidências devem ser consideradas na análise dos impactos

causados pelas barragens, como a durabilidade das edificações. Muitos são os

relatos de tragédias e inundações causadas por rompimentos. Num mesmo ano, o

de 1959, dois episódios marcaram a história dessas construções.

O primeiro, ocorrido na Espanha, arrasou a aldeia de Rivaldelago quando a

barragem de Vera de Tera cedeu, fazendo rolar pelas colinas mais de 65 milhões

de metros cúbicos de água. Logo em seguida, foi a vez da represa de Malpasset,

construída no rio Reyran, na França. Cerca de quatrocentas pessoas morreram

com a inundação de uma aldeia na Riviera Francesa.53

Levando-se em conta todas essas observações, não se pode deixar de

acrescentar o que é considerado o maior efeito negativo da implantação desses

grandes empreendimentos: o deslocamento compulsório das populações que

vivem nos locais escolhidos para a instalação dos reservatórios.

Povoados inteiros com suas respectivas heranças arqueológicas são, nas

palavras de CULLEN, “engolidos pelas águas invasoras”. Poder-se-ia descrever

centenas dessas situações, porém, tratando-se o presente trabalho daqueles

projetos hidráulicos que atingem essencialmente o solo indígena, serão tecidos

comentários a este respeito em capítulo próprio.

Para o momento, é o bastante saber que a inundação de grandes áreas pode

inviabilizar a preservação de uma identidade cultural, já que, num novo ambiente,

nem sempre se pode reproduzir as mesmas condições de vida.

49 Do grego planktón. Comunidade de pequenos vegetais que vivem em suspensão nas águas doces, salobras e marinhas. FERREIRA, A. B de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, p. 1582. 50 Do grego makróphyllos. Vegetal dotado de grandes folhas. FERREIRA, A. B. de H. Idem, p. 1250. 51 FEARNSIDE, P. M. Obra citada, p. 43. 52 FEARNSIDE, P. M. A Hidrelétrica de Balbina: o faraonismo irreversível versus o meio ambiente na Amazônia, p. 36. 53 CULLEN, A. H. Obra citada, p. 150-151.

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28

“(...) a razão mais forte para o impacto reside no fato de os realocados serem levados de uma região onde, na maioria dos casos, existe água à vontade, para um sítio distante do curso d’água. Aliado a isso, o reassentamento se dá em vilas que são construídas tirando-se proveito do efeito da aglomeração, com o que reduzem-se os custos com a nova infraestrutura”.54

No Brasil, este problema não se diferencia de outras partes do mundo que

mantêm sérios conflitos socioambientais. Em decorrência, surgem diversos

movimentos populares, entre eles o Movimento dos Atingidos por Barragens –

MAB, que vem atuando intensivamente para a não concretização de

megaempreendimentos hidráulicos em áreas de concentração populacional.

2.4 Apresentação do setor elétrico brasileiro

As atividades em geral, principalmente as econômicas, demandam algum

tipo de energia. Não é difícil perceber o quanto a sociedade contemporânea

depende desse recurso. Das simples tarefas cotidianas às cadeias de produção

mais modernas, é impossível não visualizar a energia elétrica como um facilitador

da vida humana.

Cabe aqui ressaltar que a eletricidade nada mais é que um produto, uma

manifestação da energia primária ou uma conseqüência da conversão desta em

corrente elétrica.55 Enquanto fonte primária, a energia é encontrada na natureza,

como as quedas d’água de um rio e, depois de empregada uma determinada

tecnologia, resulta na energia secundária, a eletricidade.

Para ASPELIN, “hidroelétrica produz muita coisa mas não produz

energia”, porque “simplesmente converte energia”. Na sua explicação, a energia já

existe no rio e é uma energia potencial. As turbinas hidrelétricas, portanto, apenas

transformam essa energia potencial em energia cinética.56

“Normalmente para realizar essa conversão da energia potencial não-atômica em energia cinética, constrói-se uma represa. (...) As normas para construção de hidroelétricas são portanto as seguintes: a) quanto maior o volume da represa,

54 GARRIDO, R. Obra citada, p. 9. 55 ROLIM, M. J. C. P. Direito econômico da energia elétrica, p. 99. 56 ASPELIN, P. Para que colocar barragens em áreas indígenas, p. 99.

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29

melhor; b) quanto maior o rio que a abastece, melhor; c) quanto maior a represa em relação ao rio, melhor; quanto maior a queda da água, melhor”.57

Sejam construídas maiores ou menores usinas, a sistemática de engenharia

para transformação da energia hidráulica em energia elétrica é, praticamente, a

mesma.

“A água é conduzida até a turbina por meio de condutos forçados, túneis e canais. A turbina localiza-se em uma casa de força, onde estão os componentes hidráulicos, mecânicos e elétricos, como os canais em espiral (...), a turbina com suas pás (cujo eixo transmite movimento ao gerador), os reguladores de velocidade, os mancais, o sistema de refrigeração, assim como os dispositivos de vedação e drenagem”.58

A energia elétrica é, pois, um bem econômico, uma vez que, satisfazendo

as necessidades sociais, é agregado a ela um certo valor de uso. Seu caráter

público, no entanto, decorre da sua importância para o desenvolvimento das

potencialidades humanas, para o conforto e, também, para o progresso econômico

mundial.

Assim, conforme ensina ROLIM, a eletricidade é “um bem econômico, de

produção, de caráter público, em função da sua importância e o seu alcance na

economia, independentemente de ser fornecida pela iniciativa privada ou pelo

governo”.59

O valor econômico da energia está amparado pela legislação pátria que,

por meio do inciso I, do art. 83 do Código Civil Brasileiro, chega a considerá-la

um bem móvel meramente para efeitos legais.

Para CALDAS, é possível ponderar que a energia elétrica seja um bem

fungível, porquanto seja suscetível de substituição pela mesma espécie, qualidade

e quantidade, sendo que se pode determiná-la por meio de medição. É, nas suas

palavras, um “bem naturalmente consumível, pois sua existência na forma elétrica

termina com o primeiro uso, e bem divisível, visto que tem como característica

essencial a quantidade”. Trata-se, ainda, de “coisa singular homogênea”.60

A produção de eletricidade pode ser destinada tanto à comercialização

quanto ao fornecimento público. Aquela destinada à comercialização do produto 57 ASPELIN, P. Idem, p. 100. 58 MÜLLER, A. C. Hidrelétricas, meio ambiente e desenvolvimento, p. 17. 59 ROLIM, M. J. C. P. Obra citada, p. 103. 60 CALDAS, G. P. Concessões de serviços públicos de energia elétrica: face à Constituição Federal de 1988 e o Interesse Público, p. 35.

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30

em si é considerada uma atividade econômica, e não se caracteriza como serviço

público. Ao contrário disso, a transmissão e a distribuição de eletricidade, por

atenderem diretamente a um universo de consumidores, são entendidas como tal.

O serviço público de energia é prestado em conformidade com os preceitos

introduzidos pela Constituição Federal de 1988, que introduziu no meio social um

novo contexto acerca do papel desenvolvido pela Administração.

Isto quer dizer que, obedecendo a uma tendência global, o Estado passou a

exercer mais as funções de normatização, fiscalização e regulação das atividades

econômicas, deixando a cargo da iniciativa privada a prestação direta desses

serviços.

Esta nova conjuntura recebeu influência do pensamento neoliberal,

iniciado após a crise do petróleo de 1973 nos Estados Unidos e na Inglaterra e

instituído pelo sistema da livre iniciativa, e pretende desonerar o Estado de

investimentos na área econômica, deixando que empresas privadas invistam

nessas atividades como bem aprouverem.

Neste novo cenário, se desenvolveu uma economia de mercado, em que o

Estado passa a cuidar apenas daquilo que se diz imprescindível para sua

manutenção, como a defesa nacional, a elaboração de leis e a manutenção da

ordem política, iniciando um processo de desestatização, desregulamentação e

privatização dos serviços públicos.

A prestação dos serviços de eletricidade, então, passa a se encaixar num

novo modelo, que incentiva a concorrência entre os agentes do setor, e que

proporciona, em tese, mais vantagens aos consumidores.

O setor elétrico brasileiro, conseqüentemente, vem passando por um

período de adaptação, de reestruturação, desde 1990 com o Programa Nacional de

Desestatização.

Todas as grandes companhias que, ao mesmo tempo, geravam,

transmitiam, distribuíam e comercializavam energia foram desverticalizadas.

Logo, cada segmento passou a constituir uma nova empresa, deixando de existir o

monopólio nas diversas áreas de atuação.61

Do fenômeno da reestruturação, restaram que as empresas distribuidoras

de eletricidade foram, na sua maioria, privatizadas. Além disso, as tarifas, que

61 As empresas desverticalizadas, agora passam a desempenhar, separadamente, as atividades de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica.

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31

antes eram definidas pelo custo do serviço, passaram a ser reguladas pelo preço

estabelecido em licitação.

A constituição desse novo modelo pressupõe a criação de órgãos e

mecanismos de atuação do Estado para manter o controle dos serviços, os quais

serão brevemente explanados.

Com inspiração no modelo norte-americano, foi criada uma agência

reguladora, a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, uma autarquia sob

regime especial, com personalidade jurídica de direito público e autonomia

patrimonial, administrativa e financeira, vinculada ao Ministério de Minas e

Energia - MME, como prevê o art. 1º do Decreto 2.335, de 06 de outubro de 1997,

que a criou.

Cabe aqui mencionar que a transferência desse modelo para a realidade

brasileira não foi bem aceita pela maioria dos cientistas políticos. Dentre as falhas

apontadas, discute-se a responsabilização destes entes autárquicos, pelo seu alto

grau de autonomia num ambiente de baixo controle social.

A titularidade do serviço público de eletricidade continua sendo da União,

como preceituado na alínea b, do inciso XII, do art. 21 da Constituição, sendo que

o controle estatal passa a ser exercido por meio da agência. O principal controle é

a fiscalização, que garante a defesa dos interesses dos consumidores, incumbência

do Estado por força constitucional do inciso XXXII, do art. 5º.

Ademais, para o comando das operações de geração e transmissão de

eletricidade, foi criado o Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS, órgão

constituído por concessionários, permissionários e autorizados, com natureza

jurídica de direito privado.

Trata-se de um órgão independente, cuja competência está definida pelo

art. 13 da Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998. Dentre outras atribuições, é

responsável pelo planejamento e programação das operações que envolvem o

Sistema Interligado Nacional - SIN, bem como pelas propostas de ampliação da

rede básica de transmissão, que devem ser sempre aprovadas pela ANEEL.

O sistema interligado de energia elétrica cobre, praticamente, todo o

Brasil, mas exclui os estados do Amazonas, Roraima, Acre, Amapá e Rondônia,

ou seja, 3,4% da capacidade de produção de energia do país.62

62 Dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), divulgados no site http://www.ons.org.br/conheca_sistema/o_que_e_sin.aspx. Acessado em 12/08/2005.

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32

Por intermédio deste sistema, é possível haver troca de energia entre as

diversas regiões. Basicamente, da sua composição fazem parte as empresas das

regiões sul, sudeste e centro-oeste, formando o Sistema Interligado Sul/ Sudeste/

Centro-Oeste e as das regiões norte e nordeste, do Sistema Interligado Norte/

Nordeste.

Os agentes setoriais devem cooperar entre si para que o mercado se torne

competitivo - objetivo do novo modelo estabelecido para o setor - e o ONS

desempenha uma função primordial nisto.

É que, levando-se em conta uma matriz energética hídrica constituída por

95% de usinas hidrelétricas, estando garantido o livre acesso à rede básica63, cabe

ao ONS a coordenação da geração de eletricidade e da sua disponibilização,

evitando o desperdício de água e de energia e otimizando os recursos dos

reservatórios.

Nesse ambiente regulatório foi criada, também por força da Lei nº 9.648,

de 1998, uma pessoa jurídica de direito privado responsável pelas atividades

comerciais de compra e venda de energia elétrica realizadas nos sistemas

interligados. O Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE viabiliza as

transações entre os agentes do setor elétrico, por meio de contratos bilaterais. É

neste ambiente negocial que ocorre a contabilização de toda a energia gerada e

consumida no Brasil.

O MAE se submete à regulamentação da ANEEL, tendo sido estabelecido

pela Lei nº 10.433, de 24 de abril de 2002, que foi revogada pela Lei nº 10.848, de

15 de março de 2004.

Este é, em resumo, o novo setor elétrico brasileiro. Está instituído sobre

uma política econômica ideologicamente reguladora e competitiva, cujas regras,

que são impostas pelo sistema econômico capitalista, norteiam o conceito de

desenvolvimento nacional.

63 “Art. 15 - (...) § 6º. É assegurado aos fornecedores e respectivos consumidores livre acesso aos sistemas de distribuição e transmissão de concessionário e permissionário de serviço público, mediante ressarcimento do custo de transporte envolvido, calculado com base em critérios fixados pelo poder concedente”. Lei nº 9.074, de 07 de julho de 1995.

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33

2.5 Hidrelétricas e desenvolvimento

O Brasil é um país privilegiado em termos de abastecimento de água, com

um dos recortes hídricos mais exuberantes do mundo, principalmente quando

comparado às regiões áridas e aos países que passam pelo que se convencionou

chamar de “stress hídrico”64, como Israel.

A quantidade desse recurso determina o grande potencial hidrelétrico do

país, o que significa dizer que sua matriz energética é, essencialmente, hídrica.

Isto também se deve ao fato de a extensão territorial abranger configurações

geográficas propícias à implantação de sistemas que aproveitam a força e o

movimento das águas para gerar energia.

A primeira vez que a energia hidráulica foi utilizada no Brasil foi em

1883, com a instalação de uma usina em Diamantina, Minas Gerais. Essa

iniciativa partiu das empresas de mineração e da indústria têxtil da região, que

visavam à autoprodução.65 Então, já havia 5,5 Megawatts de potência instalada no

ano de 1900.66

As empresas que realizam estudos e projetos para a implantação de usinas

hidrelétricas surgiram no Brasil a partir da década de 1950, pois anteriormente

somente empresas européias e norte-americanas desenvolviam este trabalho. Essa

atividade se consolidou com a criação da Eletrobrás, em 1963, que abriu

oportunidades para a ampliação da capacidade instalada no país.67

Naquela época, o conhecimento sobre a capacidade geradora brasileira era,

sem dúvida, bastante limitada. Passados mais de cem anos, com o auxílio de

tecnologias mais avançadas, novos aproveitamentos energéticos ainda vêm sendo

descobertos.

O setor elétrico brasileiro foi o que mais incentivou a implantação de

grandes barragens, porque das 343 levantadas até 1990, 124 destinavam-se

somente à produção de energia.68 Os demais reservatórios destinavam-se aos

64 Termo utilizado para designar o desequilíbrio entre a oferta e a demanda de água ou, ainda, quando a baixa qualidade restringe sua utilização, geralmente devido à poluição. 65 ROSA, L. P. [et al]. Impactos de grandes projetos hidrelétricos e nucleares, p. 17. 66 ELETROBRÁS. Plano 2015: plano nacional de energia elétrica 1993-2015 (Projeto 4: a oferta de energia elétrica), p. 4. 67 ELETROBRÁS. Idem, ibidem. 68 MÜLLER, A. C. Obra citada, p. 36.

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34

diversos usos da água, dentre outros, o abastecimento urbano, a irrigação, a

piscicultura e o controle das cheias.

O cenário militar que se instaurou a partir de 1964 serviu para impulsionar

“projetos macroeconômicos”, como as represas de Itaipu69 e de Tucuruí, tendo

como objetivo principal firmar o Brasil como potência. Também, a crise

internacional do petróleo da década de 70 forçou a maioria dos países a buscar

outras soluções e, assim, cumprir suas metas de desenvolvimento.70

De acordo com as avaliações da Eletrobrás, o aproveitamento do potencial

hidrelétrico se concentra na região amazônica, que representa 53% do total

brasileiro, 69% do potencial ainda não aproveitado e 6% do total mundial, que

está estimado em 1.100.000 Megawatts por ano.71

Para se aproveitar todo esse potencial de forma racional e eficiente, sem

deixar de atender aos anseios de desenvolvimento nacional e sem produzir

caóticos efeitos ambientais, seria necessário ponderar mais profundamente a

viabilidade dos megaprojetos hidrelétricos.

Se os planos de regionalização da produção energética fossem analisados

com mais atenção, a construção de hidrelétricas deixaria de ser, exclusivamente,

uma obra de abastecimento de centros urbanos e passaria, também, a atuar no

atendimento das comunidades locais, vislumbrando uma produção energética de

menor porte e mais moderada.

A vantagem social desta proposição seria uma inserção regional mais

acentuada, que beneficiaria o desenvolvimento da população do interior, em que

estão localizados estes empreendimentos, com o aumento do número de empregos

a partir da instalação de novas indústrias e do aprimoramento do comércio local.

Se por um lado os impactos ambientais podem ser mitigados com a

redução do porte das usinas e das áreas afetadas, por outro é possível obter um

69 Itaipu é uma entidade binacional criada por tratado entre Brasil e Paraguai, em 26 de abril de 1973, com a finalidade de prestar serviço público internacional de energia elétrica aos dois países, estando submetida ao regime de direito internacional. ITAIPU Binacional (Brasil). Natureza Jurídica de Itaipu. Curitiba: Itaipu Binacional, Diretoria Jurídica, 2004, p. 13. A Hidrelétrica de Itaipu começou a ser construída em 1975, em meio ao cenário desenvolvimentista instituído pela ditadura militar que comandava as decisões políticas no Brasil entre 1964 e 1984. É a maior hidrelétrica do mundo e está localizada no Rio Paraná, próximo às cidades de Foz do Iguaçu e Hernandarias (Paraguai), com extensão de 170 km e capacidade para gerar 14.000 MW, por meio de seus 20 geradores. SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. A UHE Binacional Itaipu e os Índios do Ocoí, p. 21. 70 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e o desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia, p. 71. 71 ELETROBRÁS. Obra citada, p. 18.

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35

maior controle do desenvolvimento regional, de forma a preservar o ecossistema

de ações antrópicas desorganizadas.

Quer-se dizer que, nas circunstâncias atuais, as grandes hidrelétricas

desempenham a função de levar aos centros consumidores o insumo necessário

para a produção capitalista. A economia gerada é a riqueza necessária para, cada

vez mais, aumentar a produtividade e expandir o sistema na busca de novos

mercados consumidores.

Todavia, as áreas de implantação destes empreendimentos hidrelétricos

não coincidem com os centros de produção. Estão, na grande maioria das vezes,

dispostas em regiões não muito habitadas, onde o desenvolvimento econômico é

pouco assimilado, cuja importância socioambiental, entretanto, traduz grande

significado.

São áreas destinadas à formação de imensos reservatórios de água, já que

mesmo as pequenas usinas requerem a construção de barragens de derivação72, e

que levam ao reassentamento de várias comunidades locais.

Poucas décadas atrás, esses projetos não dispunham de análises críticas

dos impactos sociais sobre a população afetada pela inundação de suas

propriedades, ou dos danos causados à natureza. Como mencionado, era comum a

idéia de que o meio ambiente sempre se renovaria, apesar das interferências

humanas, pois o ciclo natural da Terra haveria de ser algo constante e perpétuo.

Historicamente, as organizações não-governamentais vêm desempenhando

um papel importante nas discussões acerca dessas questões, movimentando a

opinião pública e despertando a consciência coletiva.

O questionamento da sociedade quanto aos benefícios e malefícios que

estes empreendimentos podem gerar, obrigou as empresas a realizar planos de

mitigação dos efeitos negativos para o meio ambiente, especialmente a partir da

Rio 9273. Isto fez, também, com que houvesse um melhoramento da equipe

técnica das empresas na realização dos estudos de viabilidade.

A coletividade passou a se preocupar mais com a crise ambiental, que

ficou atrelada às manifestações das populações atingidas por obras hidrelétricas e

72 São estruturas hidráulicas dispostas em leitos de rios e que interceptam as correntes naturais ou as regularizadas. “Barragem que se destina a desviar um curso de água”. AMBIENTE BRASIL. Glossário.http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./educacao/index.php3&conteudo=./glossario/b.html. Acessado em 14/04/2006. 73 Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada de 03 a 14 de junho de 1992, na cidade do Rio de Janeiro, que contou com a participação de 175 países.

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36

que vinha sendo divulgada desde a década de 1970, após a Conferência de

Estocolmo74.

No Brasil, o apelo público ocorreu na década de 1980, quando o país

deixava para trás o período ditatorial e as mudanças políticas abriam espaço para o

início de um amplo debate sobre conservação ambiental.

Nessa época, as empresas de geração de eletricidade começaram a

enfrentar dificuldades para lidar com o sentimento da sociedade, e os projetos de

grandes usinas começaram a ser discutidos com um pouco mais seriedade. Os

casos mais polêmicos àquela época são os pertinentes a Itaipu, Itaparica75, Tucuruí

e Itá76.

Na ocasião dessas construções, foram preditos por cientistas de diversas

áreas muitos desastres ecológicos e, a partir de então, as populações afetadas pela

implantação de obras hidráulicas começaram a se organizar num movimento de

combate, principalmente, ao reassentamento forçado. Foi em 1989, que se

realizou o “Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Atingidos por

Barragens”.77

A dimensão e a importância do impacto socioambiental provocado sobre

as regiões brasileiras com grande concentração de empreendimentos hidrelétricos

podem ser demonstradas por meio da quantidade de água que é armazenada com a

finalidade de se gerar energia; mais de 364 trilhões de metros cúbicos78.

Comparativamente, ao se tentar mensurar o grau desse impacto, deve-se

levar em consideração, no mínimo, a relação existente entre a área necessária para

inundar e formar o reservatório e a potência instalada que terá a usina, sua

capacidade de geração medida em Megawatts.

Com base nesta razão, é possível calcular e prever, antecipadamente, a

intensidade dos benefícios e dos pontos negativos que a implantação de uma dada

74 Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, ocorrida em 1972, em Estocolmo, na Suécia. Evento que consolidou as bases da política ambiental mundial, de forma que os países adotassem, em maior ou menor grau, legislações internas adequadas à proteção do meio ambiente. 75 Passou a se chamar Usina Luiz Gonzaga e está localizada em Pernambuco, 25km a jusante de Petrolândia. Instalada no Rio São Francisco, possui potência para gerar 1.479.600 kW. Seu reservatório abrange uma área de 828 km2. Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf). http://www.chesf.gov.br/energia_usinas_luiz_gonzaga.shtml. Acessado em 19/04/2006. 76 Localizada em Santa Catarina, no Rio Uruguai, tem um reservatório de 141 km2 e capacidade para gerar 1.450 MW. TRACTEBEL ENERGIA. http://www.gerasul.com.br. Acessado em 11/04/2006. 77 Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB. http://www.mabnacional.org.br. Acessado em 01/12/2005. 78 MÜLLER, A. C. Obra citada, p. 36.

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37

hidrelétrica poderá levar para o meio ambiente local, considerando aqui também o

impacto sobre as populações do entorno.

“Os impactos sócio-ambientais decorrentes da implantação de usinas hidrelétricas alteram, muitas vezes de forma significativa, os sistemas físico-biótico, sócio-econômico e cultural dos locais e regiões em que as usinas são instaladas”.79

Pode-se dizer que as usinas maiores provocam impactos socioambientais

de profusas dimensões. Dentre eles, relacionam-se a transformação do rio em um

lago artificial, o alagamento de áreas vegetadas e de infra-estruturas locais, as

interferências nas populações locais, a submersão de sítios arqueológicos e o

aumento da demanda dos principais serviços públicos locais.80

Nas conseqüências desses impactos se inclui o desequilíbrio dos recursos

hídricos e da qualidade da água devido ao fluxo de sedimentos, a perda

agropecuária e de jazidas minerais, o comprometimento da flora e da fauna, o

remanejamento de grupos étnicos, como os indígenas, e a intensificação do fluxo

migratório para as regiões associadas à obra.81

O deslocamento compulsório dos habitantes da área a ser alagada é um dos

problemas mais complexos a ser tratado no estudo de viabilidade de um

empreendimento hidrelétrico.

Um dos fatores primordiais para se avaliar o tamanho do impacto social é

a elaboração de planos que garantam melhores condições para o desenvolvimento

dos reassentados. Esta é a grande preocupação e luta do Movimento dos Atingidos

por Barragens – MAB, corroborando com o entendimento explicado de que o

desenvolvimento não chega à região atingida, pois a produção energética está

predestinada aos grandes centros urbanos.

“Assim, por exemplo, nas vizinhanças de Tucuruí há localidades sem energia elétrica: ao lado destas localidades passa o linhão que abastecerá as fábricas que produzem o alumínio que será exportado”.82

Na verdade, vários são os fatores que devem ser considerados quando do

traslado da população para outras regiões. Em resumo, além da análise das

79 ELETROBRÁS. Plano 2015: plano nacional de energia elétrica 1993-2015 (Projeto 7: fontes de geração de energia elétrica), p. 32. 80 ELETROBRÁS. Idem, p. 33. 81 ELETROBRÁS. Idem, ibidem. 82 MAB. http://www.mabnacional.org.br. Acessado em 01/12/2005.

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38

condições econômicas, devem ser levados em conta também fatores físicos,

ambientais e culturais, especialmente porque a capacidade humana de se

desenvolver não pode ser assimilada de forma apartada desse conjunto. Cada

grupo social detém características e processos de desenvolvimento próprios e,

assim, o próprio conceito de desenvolvimento pode ser relativizado.

Esta idéia fica mais clara quando se trata de povos indígenas, visto que o

contraste social é inegável quando comparados à sociedade nacional. O

reassentamento de indígenas pode ser visto como algo letal para as comunidades,

justamente por sua visão com relação ao seu entorno ser diferenciada. O

desenvolvimento e o futuro dos povos indígenas não estão segregados da terra, de

sua origem, conforme se verá adiante.

2.6 Fontes alternativas de energia: tendências para uma variação da matriz energética brasileira

Os megaprojetos hidrelétricos necessitam de altos investimentos, numa

escala de centenas de milhões a dezenas de bilhões de dólares, e que,

resumidamente, são aplicados desde a captação da água até a sua transformação

em energia elétrica.

Indubitavelmente, isso requer financiamentos provenientes de bancos e

instituições estrangeiras, o que motiva a significativa dependência de recursos

econômicos internacionais.

Na crítica de ASPELIN, as hidrelétricas de grande porte não são

consideradas um bom negócio para os brasileiros, principalmente porque os altos

financiamentos incentivam e aumentam a dívida externa.83

“O maior consumidor da eletricidade no Brasil atual é a indústria. Indústria para o Brasil. Indústria para o Brasil para o seu consumo interno. Indústria para o Brasil para sua exportação. Para pagar a extraordinária dívida externa brasileira. Pagar a dívida cobrada para construir as hidroelétricas para converter a energia para produzir produtos para pagar a dívida contratada para sua construção” [sic].84

83 ASPELIN, P. Obra citada, p. 104. 84 ASPELIN, P. Idem, ibidem.

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39

Mesmo sendo indefensáveis sob o ponto de vista socioambiental, os

empreendedores das megausinas alegam benefícios intermináveis para toda a

população, apesar de saberem que esses empréstimos acabam por desestimular a

economia nacional e só favorecem interesses particulares de alguns grupos.85

O Brasil, da mesma forma que a maioria dos países, adotou um modelo

econômico que, por meio da produção industrial, acabou por incentivar o êxodo

rural e acelerou o processo de urbanização. Como conseqüência deste modelo, a

energia elétrica tende a ser produzida em “grandes blocos” e de modo

centralizado, o que não satisfaz a população rural.86

Contrariando a cultura do setor energético brasileiro, sabe-se que a energia

elétrica não deve ser destinada com exclusividade para os centros urbanos, uma

vez que as áreas rurais também necessitam de tecnologias sofisticadas que

favoreçam a produção agrícola.

Entretanto, muitas dessas áreas estão localizadas em sistemas isolados de

produção e transmissão de eletricidade, ou seja, não integram o SIN - Sistema

Interligado Nacional que, como anteriormente mencionado, cobre quase todo o

país e cerca de 96,6% da capacidade de produção.87

O modelo de sistema elétrico adotado, com uma vastíssima rede de

transmissão, favorece a matriz energética 95% hídrica, embora existam novas

tecnologias que possibilitam a geração de eletricidade a partir de outras fontes e

que beneficiam diretamente as áreas rurais. Algumas dessas alternativas são tidas

como sustentáveis e incentivam a possibilidade de um avanço econômico por

meio de um uso mais racional dos recursos naturais.

A energia elétrica advinda de fontes como o sol, o vento ou mesmo dos

resíduos da indústria madeireira, tende a se tornar cada vez mais comum, abrindo

algumas possibilidades para a variação da matriz.

As tecnologias que permitem essa variação são recebidas com ânimo pelos

ambientalistas, pois o impacto na fauna e na flora da região onde são implantadas

é mais moderado se comparado às dimensões do dano causado pela construção de

85 SIGAUD, L. Implicações políticas e sociais de grandes projetos hidrelétricos sobre as populações indígenas e camponesas, p. 02. 86 Parafraseando. RIBEIRO. C. M. Universalização do serviço de energia elétrica, eletrificação rural e o papel da energia solar fotovoltaica, p. 267. 87 Além dos Estados da região norte, observam-se alguns sistemas isolados distribuídos entre os estados do Maranhão, Tocantins, Pernambuco, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul.

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40

grandes barragens hidrelétricas. O impacto nas comunidades rurais,

conseqüentemente, é significativamente menor, pois, geralmente, não inviabilizam

sua reprodução física e cultural, desincentivando o êxodo.

Na verdade, restrições ambientais cada vez mais rigorosas vêm

impulsionar as indústrias para o aproveitamento dos resíduos, dando conta de boa

parte de suas necessidades energéticas. Tanto que os recursos da Conta de

Consumo de Combustíveis Fósseis - CCC88 passaram a subsidiar projetos de

fontes renováveis que substituem o uso de combustíveis fósseis para a geração de

eletricidade nos sistemas isolados.

No Brasil, como exemplo, são produzidas, aproximadamente, 300 milhões

de toneladas de cana-de-açúcar89, sendo que o bagaço derivado dos processos de

fabricação de açúcar e de etanol, na sua maioria, é destinado à autoprodução de

eletricidade, ou seja, para a geração elétrica da própria usina sucro-alcooleira.

“(...) o bagaço de cana é um recurso natural renovável, o que lhe confere uma vantagem sobre os combustíveis não renováveis. O pequeno porte das unidades de geração previstas é mais um fator que constribui para que esta fonte possa ser considerada pouco agressiva ao meio ambiente, uma vez que libera pequena quantidade de gases, partículas e resíduos sólidos e líquidos”.90

Estudos indicam que a utilização de biomassa pode ser uma excelente

opção na complementação da produção energética a partir de fontes hídricas,

sobretudo levando-se em conta as diferenças dos períodos de cheias das bacias

hidrográficas e, também, os custos ambientais.

“No Brasil, na geração de energia elétrica a partir da biomassa florestal está sendo considerada a utilização de florestas energéticas, isto é, projetos de reflorestamento em áreas degradadas e onde não haja competição com outros

88 Em vigor desde 1993, foi criada para arrecadar recursos junto às concessionárias do SIN para subsidiar a compra de carvão, óleo diesel e óleo combustível utilizados nas termelétricas dos sistemas isolados. Sub-rogam-se nos benefícios do rateio da CCC os titulares de concessão ou autorização de empreendimentos que substituem derivados de petróleo ou que permitam a sua redução, de acordo com as regras definidas pela Resolução ANEEL nº 146, de 14 de fevereiro de 2005. A sub-rogação dos recursos da CCC está prevista no § 4º, do art. 11, da Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998, que diz que “a geração de energia elétrica a partir de fontes alternativas que venha a ser implantada em sistema elétrico isolado, em substituição a geração termelétrica que utilize derivados de petróleo, se sub-rogará no direito de usufruir da sistemática referida no § 3º, pelo prazo e forma a serem regulamentados pela ANEEL”. 89 TOLMASQUIM, M.T. Alternativas energéticas sustentáveis no Brasil, p. 17. 90 ELETROBRÁS. Plano 2015...(Projeto 7: fontes de geração de energia elétrica), p. 36.

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41

usos prioritários do solo, utilizando-se tecnologias de cultivo com a finalidade específica de obtenção de energia”.91

A estimativa, em 2003, era que a produção de energia a partir de biomassa

florestal pudesse chegar a 20.000 MW, caso fosse admitida a possibilidade de se

utilizar 5% da área de cada estado da região nordeste, muito propícia ao

reflorestamento de finalidade energética. As florestas implantadas absorvem os

gases lançados na atmosfera, como o gás carbônico, tornando os efeitos da

combustão na produção de energia praticamente nulos. 92

Outros resíduos, como o lixo urbano, também podem ser aproveitados

neste processo. A combustão para a produção de energia chega a ser menos

agressiva que a própria decomposição das matérias orgânicas.

“Esta fonte, mesmo requerendo cuidados para evitar potenciais agressões ao meio ambiente na forma de gases, partículas e resíduos sólidos, pode ser considerada como uma opção futura relevante para a geração de energia elétrica, devido ao balanço positivo decorrente do benefício que traz ao meio ambiente por meio da queima do lixo urbano, bem como pela sua necessária proximidade aos centros de carga”.93

Além da produção de eletricidade com o aproveitamento de resíduos

florestais e industriais, a força dos ventos e a luz solar também são consideradas

boas opções para complementação da geração.

Apesar dos custos elevados da implementação de parques eólicos, existe

um crescimento desta espécie de investimento, principalmente na Europa e nos

Estados Unidos. A energia eólica produzida no mundo passou de 32.000 MW e

cresce cerca de vinte por cento ao ano.94 É obtida por meio do movimento do ar e

já ultrapassou os 22 MW implantados no país até 2004.

“A energia eólica, proveniente da ação dos ventos, caracteriza-se principalmente por ser renovável, de baixa densidade energética e de natureza intermitente. Esta fonte é uma das mais antigas formas de energia aproveitada pelo homem, historicamente utilizada na moagem de grãos e bombeamento de água”.95

91 ELETROBRÁS. Idem, p. 33. 92 ELETROBRÁS. Idem, ibidem. 93 ELETROBRÁS. Idem, p. 41. 94 TOLMASQUIM, M. T. Obra citada, p. 19. 95 ELETROBRÁS. Plano 2015...(Projeto 7: fontes de geração de energia elétrica). Obra citada, p. 37.

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42

Figura 2 – Parque eólico. Fonte: LEITE, R. C. C. Energia renovável: sonho ou realidade?, p. 90.

O programa governamental PROINFA96, instituído pela Lei nº 10.438, de

26 de abril de 2002 e revisado pela Lei nº 10.762, de 11 de novembro de 2003,

visa intensificar os investimentos privados nesta área, devendo ser considerado de

suma importância, porque fixa claramente as metas contributivas para o

desenvolvimento de projetos implantados a partir de fontes energéticas

sustentáveis, ditos de energia limpa.

Atualmente, a opção mais utilizada nos lugares de difícil acesso, nas

regiões onde não existe rede de distribuição interligada, é a produção de

eletricidade a partir de geradores movidos a óleo diesel. Todavia, não se pode

afirmar que esta é a alternativa mais confiável, mesmo com os baixos custos de

implantação e operação, visto que a combustão dos motores elimina uma alta taxa

de gás carbônico para a atmosfera.

Por isso, alguns especialistas acreditam na expansão do aproveitamento da

radiação solar para a eletrificação rural. A vantagem desta técnica está na

96 O Projeto de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA visa à diversificação da matriz energética brasileira, incentivando a regionalização das soluções para o abastecimento elétrico. Será garantida, por um período de vinte anos, a compra da energia produzida pelas empresas que investirem na implantação de sistemas geradores a partir de biomassa, de energia eólica, ou de pequena central hidrelétrica, com entrada em operação até 30 de dezembro de 2008.

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43

disponibilidade da fonte energética, uma vez que a radiação solar é encontrada em

todo o lugar, mesmo que em níveis e padrões diferenciados.97

A energia elétrica é obtida com a instalação de painéis, ou módulos, que

captam a luz solar a partir de células fotovoltaicas, e tende a se tornar uma

excelente opção para os sistemas isolados.

A estimativa é a de que, aproximadamente, 1,3 milhões de residências já

contem com este sistema nos países em desenvolvimento, revelando um aumento

expressivo na demanda, com cerca de 50 milhões de novos consumidores por

ano.98

“O maior obstáculo para a utilização da radiação solar como fonte efetiva de geração de energia são seus altos custos, tanto para equipamentos de captação como para o sistema de armazenamento. Somente os avanços tecnológicos serão capazes de minimizar estes custos de forma a permitir que a utilização desta fonte se torne competitiva e extensível para escalas maiores de suprimento ao mercado”.99

Figura 3 – Células Fotovoltaicas. Fonte: LEITE, R. C. C. Idem, ibidem.

97 RIBEIRO, C. M. Obra citada, p. 300. 98 RIBEIRO, Idem, p. 307. 99 ELETROBRÁS. Plano 2015...(Projeto 7: fontes de geração de energia elétrica). Obra citada, p. 37.

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44

Sem dúvida, para as regiões que ainda não dispõem da rede interligada, é

de fundamental importância o desenvolvimento de tecnologias que produzam

eletricidade a custos acessíveis e que não causem fortes impactos no meio

ambiente. Neste cenário, a energia solar, ou fotovoltaica, demonstra ser uma

alternativa interessante, já que os habitantes das áreas agrícolas se encontram

dispersos.

Para RIBEIRO, condições básicas de permanência podem reverter o fluxo

migratório para os grandes centros, fazendo com que a população das zonas rurais

obtenham melhora na qualidade de vida a partir da geração de energia elétrica.

“A possibilidade de retirada de água do subsolo, a purificação desta água, a irrigação, o apoio na educação, a conservação de medicamentos e alimentos, o processamento pós-colheita, a iluminação, o acesso a informação e entretenimento, são apenas alguns dos benefícios associados à disponibilidade de energia elétrica no meio rural”.100

A diversificação da matriz energética, portanto, é algo necessário para

fortalecer as atividades econômicas no interior do país. A universalização do

acesso à energia elétrica realizada com fontes renováveis traz oportunidades de

desenvolvimento às populações rurais, sem que estas tenham que ceder seu espaço

territorial originário, fato que não ocorre quando da construção de grandes

barragens.

Na mesma linha, as pequenas centrais hidrelétricas – PCH’s se encontram

dentre as soluções para a ampliação da oferta de energia nas áreas isoladas e para

os pequenos centros agrícolas e industriais.

Embora utilizem a força das águas, o impacto dos reservatórios tende a ser

muito menor se comparado o daqueles construídos junto às grandes hidrelétricas.

Por isso, os projetos de implantação de pequenas centrais hidrelétricas também

são beneficiados pelo PROINFA e pelos recursos oriundos da CCC.

“(...) podemos aproveitar o mesmo volume de água e a mesma queda ao longo do rio, considerado como um todo, com uma série de barragens de pequeno porte. Cada uma converterá menos energia do que cada grande, mas somando todas as pequenas dará quase o mesmo resultado. Além disso, a inundação será mais bem equilibrada ao longo do seu curso, sem tão grandes prejuízos para as propriedades localizadas imediatamente rio acima das grandes barragens”.101

100 RIBEIRO, C. M. Obra citada, p. 268. 101 ASPELIN, P. Obra citada, p. 101.

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45

O porte da usina, resultado da relação entre a dimensão do reservatório e

sua potência instalada, ou seja, a quantidade de energia capaz de gerar, é o que

caracteriza uma central hidrelétrica. Legalmente, diz-se pequena a usina

implantada com potência para gerar entre 1 MW e 30 MW e com reservatório

igual ou inferior a 3 km2.102

Porém, mesmo com reservatórios menores, os projetos de PCH’s

necessitam de aprovação da ANEEL e seguem muitos dos procedimentos exigidos

para a construção de grandes hidrelétricas, especialmente os adotados pela

Resolução ANEEL nº 395, de 04 de dezembro de 1998.

Em particular, salienta-se a importância da apresentação do Estudo de

Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA, pois se

trata de projetos que interferem no meio físico-biótico e, também, nos processos

sociais, culturais, econômicos e políticos da região afetada.

É neste estudo que são analisados todos os elementos ambientais que

interagem com o projeto, compreendendo os ecossistemas aquático e terrestre,

além do modo de vida, da organização territorial e da base econômica da

população local.

Ademais, devem ser consideradas outras possibilidades para a área

pretendida, ponderando-se, dentre as alternativas de geração elétrica, aquela capaz

de atender às necessidades humanas sem que o custo ambiental seja

demasiadamente alto.

Essa recomendação nem sempre é seguida pelos empreendedores e vários

equívocos são cometidos, como no caso de Balbina103. Nas palavras de

FEARNSIDE, a futilidade se torna ainda mais evidente quando se considera que o

gás natural existente na bacia do Rio Juruá poderia abastecer Manaus, que está há

apenas 500 km.104

102 As características das pequenas centrais hidrelétricas foram definidas na Resolução ANEEL nº 394, de 04 de dezembro de 1998, revogada pela Resolução ANEEL nº 652, de 09 de dezembro de 2003. 103 A Usina Hidrelétrica Balbina (UHE Balbina), construída pela Eletronorte - Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A., situa-se no rio Uatumã, município de Presidente Figueiredo, no Estado do Amazonas, distando aproximadamente 146 quilômetros, em linha reta, da cidade de Manaus. A área inundada para o reservatório é de 2.360 quilômetros e a capacidade instalada é de 250 Megawatts. http://www.eln.gov.br/Usinas/Balbina/MeioBalFichaTec.asp. Acessado em 13/06/2006. 104 Parafraseando. FEARNSIDE, P. M. A Hidrelétrica de Balbina... Obra citada, p. 39.

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Figura 4 – Vista parcial da represa de Balbina. Fonte: http://www.ademar.org/fotos/manaus/balbina-2004-12-05/img_0233.html.

Assim, pelas características brevemente delineadas e expostas, conclui-se

que as fontes alternativas interagem melhor com o meio físico e cultural, visto

que, ao contrário das grandes hidrelétricas, dispensam extensas áreas de

instalação.

Sob este aspecto, destaca-se o valor das pesquisas e do aprimoramento das

técnicas de geração, de forma que as populações mais distantes obtenham acesso à

eletricidade sem, no entanto, deixar para trás o local que habitam, o que

geralmente ocorre quando grandes complexos hidrelétricos são implantados.

2.7 Aspectos jurídicos do processo de implantação de us inas hidrelétricas

A decisão de se construir usinas hidrelétricas parte de análises

aprofundadas sob vários aspectos políticos, econômicos e sociais. Decorre de um

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47

planejamento de médio e longo prazos e da captação de recursos financeiros na

ordem de milhões.

Como dito anteriormente, para se produzir energia elétrica é

imprescindível que se utilize a força das águas de um rio ou, ainda, um

reservatório localizado acima da central geradora, que impulsione as turbinas

hidráulicas.

Isto tudo se processa em etapas que estão submetidas a regras jurídicas

muito específicas, estabelecidas pela Constituição Federal e pela legislação do

setor elétrico brasileiro, objeto do estudo a seguir.

A ELETROBRÁS105 106, holding estatal de energia elétrica, recomenda

que o planejamento de uma usina hidrelétrica comece com o levantamento do

potencial hidráulico do rio, onde será implantada.

Nessa fase, denominada de pré-inventário, são observadas as

características da bacia hidrográfica e estimados os prazos e custos da etapa

seguinte, quando será realizado o estudo de inventário hidrelétrico. Trata-se de

realizar um “trabalho de escritório”, em que não se exige quaisquer autorizações

do poder público.107

“Consiste na avaliação preliminar do potencial hidráulico de um trecho de rio ou de uma bacia hidrográfica, com base em plantas cartográficas, estudos hidrológicos sumários e reconhecimentos locais, com a emissão de relatório final dando as estimativas de potência aproveitável, divisão de quedas e outros custos aproximados”.108

No estudo de inventário se permite estabelecer a melhor divisão de quedas,

isto é, a melhor combinação de aproveitamentos em termos de custos e efeitos

socioambientais e está pautado por uma série de informações técnicas, dentre elas,

geológicas, hidrometeorológicas, energéticas, geotécnicas, ambientais e de outros

usos da água.

105 As Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobrás, foi criada em 1962 com a finalidade de os estudos e projetos necessários para a construção e operação das usinas hidrelétricas e, também, das linhas de transmissão. É uma empresa de economia mista e de capital aberto, com controle acionário do Governo Federal. Está dividida em subsidiárias (Chesf, Furnas, Eletronorte, Eletronuclear e CGTEE). A Eletrobrás fornece, ainda, suporte para programas federais do setor elétrico. ELETROBRÁS. http://www.eletrobras.com.br/EM_Empresa.asp. Acessado em 12/05/2006. 106 ELETROBRÁS. Diretrizes para elaboração de projeto básico. 107 SILVEIRA, R. Obra citada, p. 49. 108 SILVEIRA, R. Idem, ibidem.

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48

Nesta fase, a execução dos estudos deve ser autorizada pela ANEEL, que a

formalizará por meio de portaria específica.109

“Trata-se de uma avaliação mais realística, feita por meio do nivelamento do curso d’água, instalações de postos plúvio e fluviométricos, investigações geológicas e geotécnicas, inclusive sondagens sísmicas piloto, permitindo a otimização da divisão de queda e a determinação das energias firmes produtíveis e respectivas potências a instalar, em cada aproveitamento, uma idéia das interferências ambientais dos reservatórios, bem como dos custos aferentes de cada alternativa”.110

A partir de então, o projeto poderá ser, realmente, dimensionado, nele

estando incluídas todas as informações acerca das obras de infra-estrutura, de

modo que possa ser objeto de uma licitação, com a finalidade de se obter a

concessão da usina.

Esta é a etapa em que são realizados os estudos de viabilidade técnica,

ambiental e econômica, sendo de extrema importância para se saber quais

interferências socioambientais poderão ocorrer e, assim, indicar a exeqüibilidade

ou não do empreendimento.

“O relatório final dos estudos de viabilidade é encaminhado ao Ministério das Minas e Energia, instruindo o requerimento referente ao pedido de concessão, a qual, desde que aprovados os estudos, é outorgada por meio de decreto federal, onde são definidas as condições básicas (...), bem como prazos para apresentação do projeto básico e para operação da usina”.111

Deve estar inserido nesta fase o EIA/RIMA, para análise do impacto

socioambiental, na forma como determinam as Resoluções do Conselho Nacional

de Meio Ambiente – CONAMA, n º 001, de 23 de janeiro de 1986, e nº 237, de 19

de dezembro de 1997.

Atendendo à Política Nacional de Meio Ambiente, o EIA/RIMA deverá

contemplar as alternativas tecnológicas para o projeto, além de identificar os

limites das áreas geográficas direta e indiretamente afetadas, com todos os

impactos gerados nas fases de implantação e operação da hidrelétrica. Cabe aos

109 SILVEIRA, R. Idem, ibidem. 110 SILVEIRA, R. Idem, ibidem. 111 SILVEIRA, R. Idem, p. 50.

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elaboradores do estudo também considerar a compatibilidade do projeto com os

programas implementados pelo governo federal.112

Não apenas o meio ambiente físico deve ser analisado, mas todo o meio

sócio-econômico, especialmente o uso e a ocupação do solo e das águas, com

destaque aos sítios arqueológicos, históricos e culturais da comunidade afetada

pelo projeto, bem como a sua relação de dependência com os recursos ambientais

disponíveis.113

É aconselhável para aprovação do estudo de viabilidade e para a obtenção

do licenciamento ambiental, que haja estudos relativos à natureza antropológica

da população local, especialmente quando se tratar de indígenas. Nesse caso,

conforme se verá posteriormente, é obrigatório que se ouçam as opiniões dos

indivíduos atingidos pelo empreendimento.

“O EIA é um procedimento que obriga a colheita de informes para posterior análise. Não é a ocasião de se fazer uma tese ou o momento necessário para a criação de teorias científicas (...). Contudo, é preciso equilíbrio no dimensionamento do estudo para que não fique somente na superfície das questões, como, também, não dilate para fronteira longínquas. A análise a ser feita é a da “área de influência do projeto”, assim não é só do projeto em sim mesmo, mas do contexto em que está inserido” [sic].114

Na próxima fase, ocorrerá a aprovação do projeto básico, que é o que

garante a qualidade técnica e socioambiental da implantação, por meio do

detalhamento das características técnicas da usina. É a fase anterior ao projeto

executivo; quando são tomadas todas as medidas para a construção do reservatório

e para que sejam implementadas as ações socioambientais necessárias.

“Quanto aos aspectos ambientais, trata-se de detalhar o que deva ser feito em termos de limpeza da área de inundação, reassentamentos faunísticos, florísticos e populacionais, uma vez que esses impactos e seu susto “deveriam” ter sido avaliados, acuradamente, na fase de viabilidade”.115

As etapas descritas estão consignadas na legislação brasileira, observado o

texto constitucional e as garantias que ele confere aos cidadãos, no respeito ao uso

dos bens da União e aos direitos fundamentais.

112 Art. 5º. Resolução CONAMA nº 001, de 1986. 113 Art. 6º. Resolução CONAMA nº 001, de 1986. 114 MACHADO, P. A. L. Regulamentação do estudo de impacto ambiental, p. 78. 115 SILVEIRA, R. Obra citada, p. 50.

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50

No tocante às hidrelétricas, além da Constituição Federal de 1988 e do

Código de Águas, de 1934, o setor elétrico vem se pautando sobre os ditames das

Leis nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996.

Com base nestas leis, a agência regulamentadora elabora regras que

tornem possível o cumprimento das fases de implantação dos empreendimentos

hidrelétricos. Assim, inclui-se no rol normativo a Resolução ANEEL nº 395, de

04 de dezembro de 1998, que estabelece os procedimentos para registro e

aprovação dos estudos de viabilidade e dos projetos básicos para geração de

eletricidade.

Enfaticamente, o texto constitucional agrega ao domínio hídrico da União

os potenciais de energia hidráulica.116 Isto importa em dizer que toda e qualquer

obtenção de eletricidade por meio do uso da força das águas deve ser realizada

com o consentimento do Poder Público, respeitando as regras e procedimentos

específicos para esta finalidade.

Desta forma, o uso do bem público, que é a água, por particulares deverá

ser objeto de autorização ou concessão outorgadas pela União, nos termos do art.

176 da Constituição.117

A União, sendo pessoa jurídica de Direito Público interno, é titular de

direitos reais e pessoais, nos termos dos artigos 98 e 99 do Código Civil brasileiro,

ou, em outras palavras, a propriedade dos recursos hídricos não deixa de ser do

Estado, que apenas concede o seu uso para exploração.118

Na explicação de JUSTEN FILHO, os potenciais de energia hidráulica

encontram-se dentre os bens públicos de uso especial, pois “o critério de

116 Art. 20, VIII. Constituição Federal de 1988. 117 “Art. 176 – As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas”. Constituição Federal de 1988. 118 “Art. 98 – São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. Art. 99 – São bens públicos: (...) II – os de uso especial, tais como edifício ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias (...)” Constituição Federal de 1988.

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identificação reside, então, na afetação do bem ao desempenho de função pública,

configure-se ou não um serviço público em sentido próprio”119.

É que, a princípio, o uso dos potenciais hidráulicos é destinado à satisfação

de necessidades externas à Administração Pública e que atingem toda a

coletividade. São considerados instrumentos de prestação de serviço público,

porque sua exploração está, de certo modo, reservada ao abastecimento de energia

elétrica.

Este domínio sobre o bem público de uso especial, sobre os potenciais

hidráulicos, pressupõe uma titularidade ao Estado quando da prestação do serviço

público de eletricidade. Quando não o faz diretamente, a União consente que a

exploração do serviço seja feita por particulares, sob o regime de permissão ou

concessão.120

De qualquer modo, a prestação de serviços públicos - incluído o de

fornecimento de energia elétrica -, seja realizada diretamente ou sob o regime de

concessão ou permissão, é sempre uma obrigação do Estado, conforme previsto na

Constituição.

Esta prestação surge como uma atividade estatal e visa satisfazer o

interesse geral, melhorando a qualidade de vida dos usuários e aumentando a

produção de bens e serviços.

Assim, o serviço público, como ensina BASTOS, “consiste no conjunto de

atividades que a Administração presta visando ao atendimento de necessidades

que surgem exatamente em decorrência da vida social, própria do homem, embora

também atendam interesses individuais”.121 É, portanto, a “satisfação de algo que

emerge da vida em sociedade”.122

Para JUSTEN FILHO, o serviço público é reconhecido, juridicamente,

quando a atividade satisfaz direitos fundamentais e é publicizada, ou seja, quando

consta em lei.123 É, por conseqüência, a Constituição Federal de 1988 que define

119 JUSTEN FILHO. M. Obra citada, p. 714. 120 Constituição Federal de 1988. “Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre por meio de licitação, a prestação de serviços públicos”. 121 BASTOS, C. R. Curso de direito econômico, p. 288. 122 BASTOS, C. R. Idem, ibidem. 123 “Essa consideração é de extrema relevância porque significa que, na ausência da publicização legislativa, a atividade não é considerada serviço público, presumindo-se sua qualificação como atividade econômica em sentido estrito”. JUSTEN FILHO, M. Curso de direito administrativo, p. 483.

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quais são os serviços públicos, repartindo a competência de prestá-los entre a

União, os Estados e os Municípios. 124 125

Do que se depreende da interpretação da alínea b, do inciso XII, do art. 21,

todas as atividades necessárias para a exploração, transmissão e distribuição de

energia elétrica, devem ser incluídas no conceito de serviço público. No entanto, o

serviço público se caracteriza, justamente, pela universalidade de seus usuários.

Consoante lembra ROLIM, “é importante ressaltar que a interpretação

ampla atribuída ao dispositivo constitucional não abrange aqueles casos em que,

efetivamente, não se verifique, direta ou indiretamente, o caráter coletivo da

prestação”.126

A Lei nº 8.987, de 1995, traz a forma como se procede a concessão dos

serviços públicos. Do texto legal subentende-se a existência de duas espécies de

concessão, sendo a primeira uma forma de “delegação”, “feita pelo poder

concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica

ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por

sua conta e risco e por prazo determinado”.127

Porém, para MELLO, a letra da lei deixou de trazer um elemento

importante na caracterização do instituto da concessão que, segundo ele, é uma

“condição sine qua non” 128. Na sua observação, o beneficiário da “delegação” se

remunera pela própria exploração do serviço, distinguindo a concessão de mero

contrato administrativo de prestação de serviços.

“Vale dizer: se se recebe o conceito tal como formulado, o contrato de prestação de serviços – como, por exemplo, o de coleta de lixo, remunerado pelo própria entidade contratante mediante pagamentos predeterminados – converte-se, também ele, em concessão de serviços públicos, ainda que a lei, por certo, não haja pretendido abraçar tal conseqüência descabida”. [sic]129

124 “Art. 21 – Compete à União: (...) XII – explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) b) os serviços de instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; (...)”. Constituição Federal de 1988. 125 Vide arts. 21, 25 e 29 da Constituição Federal de 1988. 126 ROLIM, M. J. C. P. Obra citada, p. 157. 127 Art. 2º, II. Lei nº 8.987, de 1995. 128 MELLO, C. A. B. de. Obra citada, p. 649. 129 MELLO, C. A. B. de. Idem, ibidem.

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O segundo conceito expressa outra espécie de concessão, onde se destaca a

necessidade de se executar uma obra, tida como pública, antes que o

concessionário comece a prestar o serviço, senão veja-se:

“A construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado”.130

Discordando do conceito traduzido na Lei em estudo, MELLO ensina que

a exploração de obra pública “configura concessão de obra pública, e não

concessão de serviço público”. Logo, o texto legal deveria enfatizar a diferença

entre os dois institutos, concessão de obra pública e concessão de serviço público.

“(...) Equivalentes reparos valem para o conceito de concessão de serviço público precedida de obra pública, acrescendo-se a necessidade de esclarecer que sob tal designação normativa estão impropriamente compreendidas ora uma concessão de serviço público, ora uma concessão de obra pública, conforme se trate de “delegação” para explorar serviço ou “delegação” para explorar obra, objetos perfeitamente distintos e discerníveis”.131

Lembra bem o jurista que a concessão de serviço público se distingue

também da concessão de uso de bem público. Sendo assim, o bem público pode

ou não ser utilizado para atender a uma universalidade de usuários, o público em

geral. A utilização do bem público não pressupõe, necessariamente, a satisfação

imediata dos interesses da coletividade, podendo ocorrer apenas para atender às

conveniências do próprio concessionário, ou seja, para que este “se sacie com o

produto extraído em seu proveito ou para que o comercialize limitadamente com

alguns interessados”132.

Em se tratando da exploração de potenciais hidráulicos, esses casos são

freqüentes e estão disciplinados pela Lei nº 9.074, de 1995, como se verá logo

adiante.

130 Art. 2º, III. Lei nº 8.987, de 1995. 131 MELLO, C. A. B. de. Obra citada, p. 650. 132 MELLO, C. A. B. de. Idem, p. 651.

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Ainda, a Lei 8.987, de 1995, estabelece a diferença entre os institutos da

concessão e da permissão do serviço público. Nessa última, a delegação ocorre a

título precário e também é exigida a participação dos interessados em processo de

licitação.133

Segundo a Lei, as permissões são regidas por contratos de adesão e podem

ser revogadas unilateralmente pelo Poder Público. Essa precariedade é

característica, tratando-se, pois, de um ato administrativo unilateral de outorga.134

De um modo geral, é o instituto recomendado para o exercício de muitas

das atividades econômicas, ou, conforme bem resume MELLO, para as hipóteses

“em que a possibilidade de revogação unilateral a qualquer tempo e sem qualquer

indenização (...) não acarretaria conseqüências econômicas perniciosas para o

permissionário”.135

De acordo com a Lei nº 9.074, de 1995, o potencial hidráulico será objeto

de concessão, mediante licitação, quando a potência determinada for superior a 1

Megawatts e o destino da exploração for ou a prestação de serviço público ou a

produção independente de energia elétrica.136

A característica da produção independente é, justamente, a

comercialização da energia gerada, prevista no art. 11 da mencionada lei. Seja

praticada de forma livre, ou regulamentada137, a venda da energia gerada correrá

sempre por conta e risco de quem a produziu.

São outorgados, igualmente por meio do instituto da concessão, os

aproveitamentos com potencial superior a 10 Megawatts e que destinam a energia

obtida para o próprio consumo de quem a produziu. Estes produtores, diferente

dos acima mencionados, são conhecidos por autoprodutores de energia elétrica.

Muitas indústrias têm optado por gerar a própria energia que consomem,

com ótimos resultados em termos econômicos e ambientais. Uma das alternativas

133 Art. 2º, IV. Lei 8.987, de 1995. 134 “Art. 40 - A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente”. Lei 8.987, de 1995. 135 MELLO, C. A. B. de. Obra citada, p. 693. 136 Art. 5º. Lei nº 9.074, de 1995. 137 A comercialização regulamentada ocorre quando o produtor independente fornece eletricidade a concessionário de serviço público de energia elétrica, a conjunto de consumidores ou ao consumidor que não foi atendido pelo concessionário local responsável. Art. 12. Lei nº 9.074, de 1995.

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é a utilização dos resíduos que têm algum poder calorífico, resultantes dos

próprios processos de produção, como se explicou anteriormente.

As imprevisões legais, inclusive constitucionais, dificultam a formação de

um entendimento pacífico da doutrina a respeito dos conceitos aqui trazidos.

Diante da divergência de opiniões sobre o que foi consignado na Lei e,

também, sobre a interpretação doutrinária mais correta quanto à essência de cada

instituto, basta saber para o estudo proposto que o uso dos potenciais hidráulicos

enquanto bens da União, é outorgado com a finalidade de se produzir energia

elétrica, mesmo que esta não seja destinada ao consumo do público em geral, e

sim à satisfação exclusiva do próprio produtor.

A partir dessa exposição, crê-se ser possível entender a produção de

eletricidade como um interesse estatal que mobiliza o desenvolvimento

econômico, com o atendimento a um universo de consumidores, principalmente

industriais. Sendo a energia elétrica um insumo da produção de bens consumíveis,

a implantação de hidrelétricas se caracteriza como um interesse público que, em

tese, atende aos objetivos da sociedade nacional.

Por outro lado, consoante se verá no decorrer deste estudo, a noção de

interesse público já não é mais a de um interesse singular e universal, não

podendo como tal ser estendível, indiscriminadamente, a todos os grupos sociais.

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3 Os Índios 3.1 A filosofia ocidental e os indígenas

Continuando a análise da problemática proposta, pretende-se agora expor

um pouco da base filosófica sobre a qual o Estado se firmou e que foi a

responsável pelo “encobrimento” dos direitos indígenas, ou das questões que

envolvem a aceitação de uma cultura diferenciada.

Esta exposição é importante na trajetória de se reconhecer, para a cultura

indígena, um direito de preservação que enseje uma escolha: a de participar, ou

não, do processo de desenvolvimento econômico do país.

Para tanto, remete-se, historicamente, à formação do Estado Liberal, no

século XVIII, quando o poder absoluto sofreu sua limitação. Nesta época,

KANT 138 se preocupava em estabelecer um tratado de paz entre os povos e, na sua

teoria, seria necessário que o homem abandonasse o estado de natureza para

investir uma condição civil.

O estado de natureza significava um constante estado de guerra que

deveria ser superado com a passagem para um estado constitucional, o qual

proporcionaria a todos os indivíduos a manutenção de seus direitos naturais, como

a propriedade.

“Este tipo de comunidade deve ser nitidamente distinguido de uma comunidade primitiva (communio primaeva), a qual é uma ficção, pois uma comunidade primitiva teria que ser a que fosse instituída e que surgisse de um contrato pelo qual todos renunciassem às posses particulares e, unindo suas posses àquelas de todos os outros, as transformassem numa posse coletiva – e a história teria que nos fornecer evidência de um tal contrato”.139

KANT idealizava uma comunidade universal e pacífica, de todas as nações

da Terra, de modo que pudessem estabelecer relações jurídicas, especialmente as

de comércio, entre si. Para o filósofo, este não era um princípio ético, mas

138 Immanuel Kant (1724-1804). Tomou-se por base a obra A metafísica dos costumes, publicada em 1797. 139 KANT, I. A metafísica dos costumes, p. 97.

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jurídico, porque a moral do direito só se consumaria “na dimensão cosmopolita, a

saber, no direito internacional ou das gentes e no direito cosmopolita”140.

A idéia cosmopolita tem o objetivo de se tornar universal, como uma idéia

vinculadora de todos os povos que possuem padrões culturais, de certa forma,

compatíveis entre si.141 As nações, portanto, manteriam uma relação universal de

comércio pelo fato de se encontrarem numa contínua interação física sobre o

globo terrestre, em que todos deveriam ser considerados livres e iguais.142

Essa relação de comércio era entendida como um direito e deveria ocorrer

sempre sem hostilidades. Por isso, KANT acreditava que ainda que se atos de

violência tivessem origem num determinado ponto da Terra e repercutissem por

toda ela, o estabelecimento de relações comuns seria um direito dos cidadãos do

mundo, de sorte que estes poderiam visitar todas as regiões.143

Neste ponto de sua filosofia, expunha a seguinte questão: “em terras

recentemente descobertas, pode uma nação instalar-se para aí habitar a título de

vizinho apoderando-se, das terras de um povo das vizinhanças que já tenha se

instalado na região e o subjugando, mesmo sem o seu assentimento?” [sic].144

Na concepção kantiana, se as terras estivessem ocupadas por povos como

os indígenas americanos, que necessitavam delas para sua subsistência, a

140 O autor justifica a necessidade de uma leitura cosmo-política da Crítica de Kant. HÖFFE, O. Critica da razão pura: uma leitura cosmo-política, p. 77. 141 O autor explica a expressão “cosmopolita” por quatro aspectos que considera serem “mutuamente complementares”, muito embora, como ele mesmo menciona, esses aspectos não recorram, ainda, “à definição kantiana mais exata do conceito cósmico de filosofia”: “(1) Ao invés de ser apenas um jogo intelectual de contas de vidro, a filosofia cosmopolita trata do mundo, e como filosofia teórica trata da quintessência daquilo que é: a natureza. (2) Esse mundo-natureza é compartilhado por todas as pessoas. Mesmo que não sejam cidadãos do mundo em termos jurídicos, porque o direito de caráter cosmopolita em sentido genuíno e jurídico, o direito internacional ou das gentes e o direito cosmopolita, ainda está faltando, eles já são cosmopolitas epistêmicos: todos os seres humanos são vocacionados, em pé de igualdade, para o conhecimento do mundo que lhes é comum e são, igualmente em pé de igualdade, capazes disso. (3) Se em outros mundos ainda houver outros seres racionais, eles estão sob as mesmas condições epistêmicas. (4) A respectiva república mundial, porém, não se contenta com o mundo do conhecimento e seu correspondente, o mundo-natureza. Consoante as famosas três perguntas de Kant – o que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? (B 832s.; cf. Logik, p. 25) –, o campo da filosofia em sua acepção cosmopolita estende-se a um total de três mundos comuns em termos cosmopolitas: todas as pessoas são membros, com igualdade de direitos, a) do mundo do conhecimento, b) do mundo da ação moral e c) do mundo da esperança fundamentada”. (grifos nossos). HÖFFE. O. Idem, p. 95. 142 Neste sentido, a posse da terra é um direito originário de cada habitante e, conseqüentemente, de cada Nação. As pessoas interagem fisicamente, de sorte que só é possível deter parte do todo. KANT, I. Obra citada, p. 194. 143 KANT, I. Idem, ibidem. 144 KANT, I. Idem, p. 195.

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instalação da nação não poderia ocorrer mediante a força, e sim, somente

mediante contrato.

Entretanto, por meio de tal contrato não se poderia tirar vantagem da

ignorância dos autóctones, uma vez que, nestes casos, os fins – boas intenções das

nações que se propõem a civilizar os rudimentares – não justificariam os meios.

É neste sentido que, de certo modo, mesmo durante o eurocentrismo145,

KANT reconhecia aos indígenas o direito sobre a terra, todavia insistia em dizer

que era necessário instituir o constitucionalismo a todo o custo.

Deveria ser concebido, então, um Estado único e singular, que abrigaria e

obrigaria a todos a abandonar suas individuais peculiaridades, de forma que uma

só voz ecoaria das terras descobertas e apenas uma vontade ali regeria. Haveria de

ser uma Nação culturalmente hegemônica e que impusesse como correto um único

modo de vida, o do colonizador.

A ética kantiana, considerada como um marco histórico na filosofia, é

fundamentada na autonomia do sujeito, sendo rejeitadas quaisquer outras

fundamentações externas, como a convicção na vontade de Deus e nas

tradições.146

A singularidade do sujeito não é importante, já que este é admitido apenas

em relação à lei, e não por ele mesmo. É a submissão à lei que produz o respeito

mútuo entre as pessoas. Logo, as relações de convivência não estão reguladas pela

existência corpórea dos indivíduos, mas pelo Direito.147

No mundo fenomênico, o outro - o diferente, o indígena no estado de

natureza - não pode ser sentido. Sua presença não é percebida, visto que é

impossível qualquer relação de Direito.

O sujeito acaba, assim, por conceber a si próprio, “apagando o outro sob a

forma de uma legislação (moral, jurídica, ou política)”. Neste sentido, só consegue

pensar em si como sujeito “sem qualquer possibilidade de reconhecimento (e

muito menos acolhimento) do outro”. 148

145 “Considera-se o eurocentrismo como uma visão de mundo que tende a colocar a Europa (assim como sua cultura, seu povo, suas línguas, etc.) como o elemento fundamental na constituição da sociedade moderna, sendo necessariamente a protagonista da história do homem”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Eurocentrismo. Acessado em 27/06/2006. 146 Parafraseando. HÖSLE, V. Grandeza e limites da filosofia prática de Kant, p. 99. 147 HECK, J. N. Direito Subjetivo e Dever Jurídico, p. 4. 148 Conforme explicações acerca do estrangeiro, no conceito de hospitalidade. PEREZ, D. O. Os significados dos conceitos de hospitalidade em Kant e a problemática do estrangeiro, p. 2.

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59

Não se quer dizer com isso que a ética kantiana expulsou a alteridade,

porém seu reconhecimento é limitado, na medida da lei. O outro deve ser

respeitado, mas porque se deve respeito à lei. Seu conteúdo, por isso, deve ser

universal e querido por todos. 149

Deste modo, apesar de repudiar a violência e a força utilizada pelos

colonizadores, KANT não pensava em outra relação com os indígenas que não

fosse regida pelo contrato; logo, teria que ser uma relação jurídica. O Estado

haveria de ser estabelecido, de um jeito ou de outro.

É compreensível o interesse que demonstrava pela diversidade de povos,

contudo, na sua visão, deveria ocorrer uma metamorfose dos habitantes

primitivos, num caminho sem volta rumo à civilização.

Talvez o filósofo pensasse, como na explicação de HÖFFE, que “todos os

seres humanos, como quer que se distingam sob outros aspectos, de certo modo

formam um único ser humano”, de maneira que “no nível transcendental o ser

humano é um sujeito (determinado por regras) e constitui, ao mesmo tempo, uma

sociedade (segundo regras e, neste sentido, com forma jurídica)”.150

Esta é uma visão universalista e a instalação de uma condição civil sugere

que a liberdade de cada povo esteja condicionada a regras impostas pela lei, que é

escolhida e querida por todos.

“Esta idéia racional de uma comunidade universal pacífica, ainda que não amigável, de todas as nações da Terra que possam entreter relações que as afetam mutuamente, não é um princípio filantrópico (ético), mas um princípio jurídico”.151

Na filosofia kantiana, a sociedade não pode anuir o estilo de vida do

indígena, baseado nos seus usos e costumes e fundado em outros princípios que

não os enunciados pelo Direito.

O Estado, que intencionava a homogeneidade, nasceu excludente, porque a

mera aceitação da diversidade não seria o suficiente para encarar o índio sem

transformações, como sujeito de direito.

149 “Age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal”. Imperativo categórico formulado por Kant. KANT, I. Obra citada, p. 67. 150 Esclarecendo o “quinto momento anti-solipsista e, ao mesmo tempo, político de Kant”. Em resumo, para o solipsismo, a única realidade do mundo é o eu. HÖFFE, O. Obra citada, p. 93. 151 KANT, I. Obra citada, p. 194.

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60

Afinal, para que a maquinaria estatal funcionasse, para que todos pudessem

ser considerados iguais perante a lei, a condição de indígena deveria ser

passageira, apenas transitória.

3.2 A crítica de Dussel à ontologia da totalidade

A doutrina iluminista propagada no século XVIII, à época de KANT,

reforçou a idéia de Estado instaurado num território delimitado, soberano e

homogêneo, em que todas as pessoas são livres para exercer os seus direitos

individuais. Esta filosofia moderna européia, enquanto ideologia fundamental da

era moderna, sempre privilegiou uma realidade política dominadora e excludente,

que rejeitava o reconhecimento da diferença.

Esta influência de dominação, que estabeleceu a hegemonia do pensamento

europeu sobre o resto do mundo, deu-se, principalmente, sob a forma de

colonização e foi imposta violentamente aos povos “descobertos”.

A ideologia que previa a homogeneidade dos anseios humanos,

estabeleceu-se na temporalidade, naquilo que possibilita a afirmação e a

construção do sujeito para o futuro. No modelo filosófico europeu, o sujeito é o

“eu”, é o homem, e a partir dele podem ser organizados espacialmente outros

entes, “desde os mais próximos e com maior sentido até os mais distantes e com

menor sentido: estes últimos são os entes periféricos”.152

Porém, para DUSSEL, a construção de planos futuros subjetivos só pode

ser realizada por meio da ligação com o passado, ensejando uma relação com o

local do surgimento do sujeito, ou com a espacialidade.153 O futuro do sujeito

estaria intimamente determinado pela sua origem.

“O onde-nasci é a predeterminação de toda outra determinação. Nascer entre os pigmeus da África ou num bairro da Quinta Avenida de Nova Iorque, certamente, é nascer da mesma forma. Mas é nascer em outro mundo, é nascer especialmente num mundo que predetermina como passado, e por isso determina, nunca

152 Enquique Dussel (1934-), filósofo argentino autor da “Teoria da Libertação”. DUSSEL, E. D. Filosofia da libertação, p. 30. 153 DUSSEL, E. D. Idem, ibidem.

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61

absolutamente mas é suficiente que determine radicalmente, a implantação do projeto futuro”.154

DUSSEL explica que o sujeito é o fundamento e a identidade de si mesmo.

O outro, por sua vez, é o que determina o sujeito, porquanto “a diferença dos entes

indica, com relação ao fundamento, dependência; com relação aos outros entes,

negatividade; um não é o outro, são diferentes”.155

“Para Kant “el Otro” ha desaparecido del horizonte del saber, del conocer, y queda sólo reducido a ser tema de una fe racional. En efecto, el homo phaenomenon (el hombre en tanto experimentado por la sensibilidad y conceptualizado por el entendimiento) es un ente físico-biológico más. Su libertad empírica no indica, para Kant, ningún tipo de incondicionalidad y debe estudiarse, dicho hombre, como un eclipse de Sol o la caída de un cuerpo: como un fenómeno óntico más. Sin embargo, el homo noumenon, es el espíritu que participa del Rei de fines, del Reino de las almas o de Dios. Pero ese ámbito onde "el Otro" es persona, es alguien, es libre (con libertad noumenal o real) no es objeto del entendimiento ni de la volutad, sino un supuesto o postulado de fe. La relación con "el Otro" es exclusivamente moral, entendiendo por esto una refrencia al Otro que no puede ser racional (vernünftie)”.156

Na teoria e crítica de DUSSEL, é possível se pensar numa constituição do

sujeito a partir do reconhecimento do outro, que não pode ser uma mera referência

racional de respeito à lei, como indicava KANT, pois a relação que aqui se tem é

exclusivamente moral.

“O respeito é a atitude metafísica como ponto de partida de toda atividade na justiça. Mas não é respeito à lei (que é universal ou abstrata), nem pelo sistema ou seu projeto. É respeito por alguém, pela liberdade do outro. O outro é o único realmente sagrado e digno de respeito sem limite. O respeito é silêncio, mas não silêncio daquele que nada tem a dizer, e sim daquele que tem que escutar tudo, porque nada sabe do outro como outro”.157

Ao contrário do que é pregado pela ontologia da totalidade158, a negação

do outro como outro deve ser rejeitada. O outro não deve ser constituído como

inimigo, como estranho, como aquele que é diferente, como o “ainda não ser”159.

154 DUSSEL, E. D. Idem, ibidem. 155 DUSSEL, E. D. Idem, p. 32. 156 DUSSEL, E. D. Para una ética de la liberación latinoamericana, p. 109. 157 DUSSEL, E. D. Filosofia... Obra citada, p. 65. 158 Compreensão do ser como fundamento, identidade, totalidade. 159 DUSSEL, E. D. Filosofia... Obra citada, p. 51.

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62

O outro deve ser interpretado como a exterioridade do ser, como “outro

homem”, que “tem eventos, que tem história, biografia, liberdade”, mesmo

quando mergulhado em situações extremas de humilhação, de fome e de dor.160

DUSSEL entende que a filosofia moderna estava muito distante dos povos

indígenas, pois se ligava a uma vontade universal de dominação e os considerava,

por isso, como “descobertos”, “dominados”, “controlados”. É uma filosofia que

desconsidera a verdadeira essência com a afirmação de que “o ser é, e o não ser,

não é”161.

“El poderoso, al universalizar su polo dominante, oculta al que sufre su poderío la situación de oprimido, y con ello lo torna irreal. (…) Desde su irrealidad alienada y alienante se autointerpreta (ya que el dominador ha introyectado en el dominado su propia interpretación abusivamente universalizada como "ciencia") como "naturalmente" dominada. Es decir, el europeo, y por ello su filosofía, ha universalizado su posición de dominador, conquistador, metrópoli imperial, y ha logrado, por una pedagogía prácticamente infalible, que las élites ilustradas sean, en las colonias, los sub-opresores que mantienen a los oprimidos en una "cultura del silencio", cultura que no sabe decir su palabra, y que sólo escucha —por sus élites ilustradas, por sus filósofos europeizados— una palabra que los aliena: los hace otros que sí mismos, les da la imagen de ser dominadores como sus dominadores, estando efectivamente dominados. La conciencia desdoblada es propiamente la conciencia desdichada”.162

Em sua crítica, o outro não pode ser universal, porque, apesar das

semelhanças, a espécie humana é formada por indivíduos distintos.163 Sendo

assim, é de se questionar se o diferente poderia escolher se relacionar com todos

os outros, livres e iguais, sem deixar de lado o que o constitui, que é a própria

diferença.

Com os olhos voltados na proximidade, DUSSEL pensou na aceitação do

outro como outro por meio de uma relação aberta e “face-a-face”. O ser, afinal,

deve responsabilizar-se pelo outro enquanto próximo e, para isso, deve reconhecê-

lo e não se distanciar dele.164

A teoria de DUSSEL, empregada para o reconhecimento do outro e que não

consiste na mera aceitação de sua existência, vai ao encontro das lutas contra-

160 DUSSEL, E. D. Idem, p. 47. 161 Citando PARMÊNIDES. 162 DUSSEL, E. D. Para una ética... Obra citada, p. 153. 163 DUSSEL, E. D. Filosofia... Obra citada, p. 119. 164 DUSSEL, E. D. Idem, p. 25.

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63

hegemônicas que se insurgem no cenário político internacional do século XX,

dentre as quais se podem citar as indigenistas ocorridas na América Latina.

Estes movimentos se apresentam cada vez mais organizados, demonstrando

a capacidade que as populações indígenas têm de defender os seus direitos

culturais, por si mesmas, passando a depender menos das estruturas

governamentais.

3.3 A tendência global de resgate da ótica universalist a

O fenômeno da globalização não é apenas uma tendência de aproximação

de mercados, mas também de aproximação de culturas e isto causa interferências

nas perspectivas de desenvolvimento dos países periféricos, ou daqueles que,

economicamente, ainda não se fortaleceram.

Não sendo o objetivo deste trabalho discorrer sobre as origens e todas as

conseqüências deste processo global, apenas sublinhar-se-á um dos fundamentos

dessa “nova ordem” e que diz respeito à configuração de um sistema moral

universal.

Pelo que se observou das palavras de DUSSEL, há uma semelhança com o

discurso relativista que se opõe à filosofia moral moderna, esta última tendente ao

universalismo. Desta análise, não se pode compreender o sujeito sem integrá-lo ao

ambiente de seu nascimento, agregando-lhe aspectos culturais na sua formação;

assim como não se pode admitir a existência de um sistema de valor que atue,

indiscriminadamente, sobre todas as regiões da Terra. Isto seria, no entendimento

dusseliano, negar as peculiaridades de cada indivíduo, encobrindo sua diferença.

O relativismo é uma versão do ceticismo prático165 que tenta demonstrar a

validade relativa dos diversos sistemas morais, ou seja, uma validade que varia de

cultura para cultura.166 Nesta concepção, não há como reconhecer um sistema de

valores único, cujos princípios transpusessem as barreiras culturais e pudessem ser

reconhecidos por todos os indivíduos.

165 O ceticismo, científico ou prático, é “uma postura científica e prática, em que alguém questiona a veracidade de uma alegação, e procura prová-la ou desaprová-la usando o método científico. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ceticismo. Acessado em 01/07/2006. 166 KERSTING, W. Em defesa de um universalismo sóbrio, p. 624.

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KERSTING, contrariando os pressupostos relativistas, busca comprovar a

necessidade de se criar uma “moeda normativa” compatível com todas as culturas

e que seja “universalmente comensurável”. Para ele, é a proximidade causada

pelos processos de globalização, os quais, no seu entender, “são apenas uma

continuação coerente da modernização”, que incita essa necessidade.167

Os direitos humanos representam, portanto, a constituição desses valores

morais universais e, para protegê-los e fazê-los cumprir, seriam válidas as práticas

intervencionistas.168

A contraposição aos argumentos de DUSSEL, mesmo que não diretamente,

se faz muito presente no discurso de KERSTING, que condena as críticas à

política internacional de intervenção e ao estigma do universalismo dos direitos

humanos como sendo uma forma de neocolonialismo. Na sua concepção, a

demasia do empenho pelo outro, por aquele que é diferente, acaba se tornando

uma ferramenta útil para os ditadores de regimes autocráticos.169

“Temos aí, por um lado, os contritos e penitentes filhos e filhas do Ocidente que se comprazem no papel de consciência suja do liberalismo e, num gesto de resistência recuperada com atraso, estigmatizam o universalismo relacionado aos direitos humanos como colonialismo moral, como a continuação do colonialismo com meios morais. O engajamento deles pelo outro, não-idêntico e estranho/estrangeiro é tão decidido, que não percebem que estão se tornando idiotas úteis dos ditadores deste mundo que, a pretexto da autodefesa cultural, isolam seus regimes autocráticos contra a penetração de exigências de democracia e Estado de direito”.

No entanto, KERSTING não desconsidera a crise pela qual passam os

direitos humanos, enquanto fundamentação de uma ética da intervenção. Sugere,

assim, que a saída para salvar o universalismo seria a minimalização do conceito

de direitos humanos.

“Mediante essa minimalização, o conceito de direitos humanos vai adquirir resistência contra o relativismo e o particularismo e também dissipar o temor de um missionarismo hipermoral e disposto à violência, relacionado aos direitos humanos e à democracia, por parte do Ocidente”.170

167 KERSTING, W. Idem, p. ibidem. 168 KERSTING, W. Idem, p. 627. 169 KERSTING, W. Idem, ibidem. 170 KERSTING, W. Idem, 629.

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65

Para tanto, seria apropriado utilizar o igualitarismo como elo com o outro,

visto que se atribui, a cada pessoa, “direitos iguais imperdíveis e inalienáveis”171,

o que garantiria aos direitos humanos um sentido de norma geral. Isto garantiria

uma fundamentação jurídica para a política internacional, que não mais se

justificaria na homogeneidade cultural.

O igualitarismo que fundamenta a normatividade geral dos direitos

humanos provém, para KERSTING, da noção antropológica de ser humano e da

presença de elementos pré-culturais na sua formação.

“Não sou de opinião que a antropologia esteja envenenada em termos de fundamentação teórica. Pelo contrário, só com a ajuda de argumentos antropológicos se consegue fundamentar os direitos humanos. A idéia fundamental, a ser desenvolvida no que se segue, da existência de elementos humanos comuns que são pré-culturais e moralmente significativos é conhecida”.

A sua teoria pretende desvendar o ser humano na acepção biológica do

termo, como um “ser humano nu”172, que prescinde de ideologias e de

interpretações culturais. O ser humano relevante para o estudo do conceito de

direitos humano é, para KERSTING, aquele “finito, mortal, vulnerável e capaz de

sofrer”173.

Dessa “naturalização” do ser humano, é possível extrair o fundamento dos

direitos humanos, já que a igualdade está na classificação biológica e a diferença

passa a ser meramente ideológica e cultural.

“Portanto, só mediante a naturalização estrita do ser humano se chega ao cerne do conceito de direitos humanos. Na igualdade classificatória biológica anterior a toda diferenciação ideológica e autointerpretação cultural se encontra a contraparte do igualitarismo normativo dos direitos humanos”.174

A vulnerabilidade do ser humano pressupõe uma proteção inquestionável

por parte do Estado, que sendo o protetor dos direitos humanos comuns aos

cidadãos, não pode recusar as intervenções quando viola esses preceitos, mesmo

alegando prejuízo a sua autodeterminação.175

Para KERSTING, o ser natural é a chave para se estabelecerem os direitos

fundamentais e universais que devem ser protegidos. Os direitos humanos 171 KERSTING, W. Idem, ibidem. 172 KERSTING, W. Idem, p. 631. 173 KERSTING, W. Idem, p. 632. 174 KERSTING, W. Idem, ibidem. 175 KERSTING, W. Idem, ibidem.

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66

condicionais, que alcançam o status de imprescindibilidade à própria existência

humana, são regidos por “condições de vida sem violência” e por uma “ordem

política confiável e previsível”.176

Integrando e complementando estes direitos, estão os direitos humanos

programáticos, que “representam o máximo daquilo que se pode realizar

coletivamente, por meios políticos, por intermédio do estabelecimento de ordens e

instituições, para que os indivíduos possam levar uma vida bem-sucedida”.177

A teoria de KERSTING procura demonstrar a existência de certos

interesses humanos fundamentais, que fazem parte de sua natureza e, portanto,

possuem status antropológico. Em suma, interesses que se não forem satisfeitos

poderão impedir o desenvolvimento individual, mesmo considerando cada

contexto cultural.

São, então, interesses sem os quais se torna impossível a realização de

projetos de vida e que, por isso, carecem de proteção jurídica prioritária. Eis que

o pleno funcionamento das capacidades biológicas do ser humano deve estar

sempre assegurado, abolindo-se toda a ação conflitante com os interesses

existenciais básicos.178

KERSTING conclui pela existência de uma “zona central inegociável”,

referente a uma “área de carência básica” de todas as pessoas, que dispensa

qualquer interpretação cultural.179

Entretanto, nesse contexto, o desenvolvimento também é um fator

antropológico de “caráter transcendental”180. Além dos níveis de significado

relativos à existência e à subsistência, KERSTING acrescenta o desenvolvimento

como mais uma camada dos direitos humanos, uma vez que a capacidade de

otimização é algo inerente às pessoas.181

Logo, o que caracteriza o “universalismo sóbrio” para KERSTING, é uma

tríade de interesses, baseada na existência, na subsistência e no desenvolvimento,

o que traduz pressupostos para a construção de uma vida digna,

independentemente do contexto cultural em que esteja inserida.

176 KERSTING, W. Idem, p. 633. 177 KERSTING, W. Idem, ibidem. 178 KERSTING, W. Idem, p. 635. 179 KERSTING, W. Idem, p. 636. 180 KERSTING, W. Idem, ibidem. 181 KERSTING, W. Idem, ibidem.

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67

O entendimento aqui exposto é peculiar à tendência atual que privilegia a

globalização neoliberal, ou o estabelecimento hegemônico de práticas econômicas

agressivas. Esta hegemonia não apenas descaracteriza a diferença como um fator

fundamental para a elaboração do conceito de desenvolvimento, como também se

torna perniciosa às populações economicamente mais frágeis que precisam se

adaptar a uma única lei de mercado.

3.4 Multiculturalismo: o direito à diferença na nova or dem global

A análise realizada até aqui procurou evidenciar o árduo caminho de se

pensar na efetividade de direitos coletivos por meio da filosofia moderna, uma vez

que nunca se admitiu a possibilidade de coexistência entre múltiplos sistemas de

valores.

A regra imposta pelo padrão universal, e agora mais ainda pela

globalização hegemônica, sugere que o desenvolvimento econômico seja

direcionado para um mesmo ponto, independentemente de critérios culturais que

possam ser levantados.

Esta circunstância privilegia mais a proteção dos interesses individuais,

como a propriedade privada, que a defesa de interesses coletivos, como o direito à

terra das populações indígenas.

Para SOUZA FILHO, a universalidade dos direitos humanos é parcial,

notadamente quando se trata de direitos econômicos. Estes seriam nada mais que

interesses por um desenvolvimento de padrão capitalista, vinculados à cultura

ocidental dominante e que demonstram “uma forma de colonialismo”.182

Se a universalidade das garantias individuais de liberdade, de vida e de

dignidade acontece na medida de sua constitucionalização, então “a

universalidade criada pela Constituição impositiva é parcial, porque não alcança

toda a população, mas somente a que está integrada, ainda que de forma relativa,

ao sistema”183.

182 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 84. 183 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Idem, ibidem.

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“Se tomássemos a liberdade de traduzir as concepções de Las Casas para institutos jurídicos modernos, despidos do Direito natural e da teologia, talvez pudéssemos dizer que a universalidade dos direitos humanos consiste exatamente, em que cada povo constrói seus próprios direitos humanos, segundo seus usos costumes e tradições, quer dizer não existem direitos humanos universais, mas existe um Direito universal de cada povo elaborar seus direitos humanos com única limitação de não violar os direitos humanos dos outros povos”.184

Nesta mesma linha de pensamento contra-hegemônico, SANTOS explica

que a concepção universal de direitos humanos tenderá sempre à ocorrência de

choques civilizatórios, como “arma do Ocidente contra o resto do mundo”185. Para

ele, a aplicação dos direitos humanos não é universal, o que justifica a criação de

quatro regimes internacionais de proteção, quais sejam, o europeu, o

interamericano, o africano e o asiático.

SANTOS afirma que a política desenvolvida para os direitos humanos está

a serviço de interesses econômicos e que isto pode ser comprovado

historicamente.186 O argumento de que os direitos humanos são universais

funcionaria como um “pano de fundo”, como um mero mecanismo de ações

utilitaristas para o atendimento do mercado capitalista.

Por isso, toda a luta travada pela sociedade organizada em prol dos

direitos humanos e contra o capitalismo agressivo deve ser considerada. Os

movimentos sociais vêm revelando uma outra face dos direitos humanos, não

necessariamente ocidental, e que acaba promovendo um diálogo intercultural.187

SANTOS entende que este diálogo é salutar para a promoção de um

projeto cosmopolita, incentivador da “solidariedade transnacional entre grupos

explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemônica”188. Todavia,

sua concretização depende de uma transformação no conceito de direitos

humanos, que comece com a superação dos debates entre universalismo e

relativismo cultural.

184 SOUZA FILHO, C. F. M. Idem, p. 83. 185 SANTOS, B. de S. Por uma concepção multicultural de direitos humanos, p. 438. 186 Conta a história do genocídio do povo maubere, em Timor Leste, ocultado da mídia européia por mais de uma década, para que as relações comerciais com a Indonésia fossem preservadas. SANTOS, B. de S. Idem, p. 440. 187 SANTOS, B. de S. Idem, ibidem. 188 O cosmopolitismo aqui defendido é o da “luta contra a sua subalternização”. SANTOS, B. de. S. Idem, p. 437.

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“Contra o universalismo, há que se propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas, isto é, sobre preocupações convergentes ainda que expressas em linguagens distintas e a partir de universos culturais diferentes. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios que permitam distinguir uma política progressista de uma política conservadora de direitos humanos, uma política de capacitação de uma política de desarme, uma política emancipatória de uma política regulatória”.189 Tendo em vista que os princípios de dignidade humana, e

conseqüentemente o conceito de desenvolvimento, podem variar de cultura para

cultura, faz-se necessário lutar pela valorização máxima dos direitos humanos, e

não por padrões ou exigências mínimos, contrariando o que foi exposto por

KERSTING.

A transformação cosmopolita dos direitos humanos induz ao diálogo

intercultural e, por isso, é necessário identificar preocupações de mesma ordem –

aspirações semelhantes, ou “isomórficas” – entre as diferentes culturas.

O diálogo intercultural, ou o multiculturalismo, pressupõe uma diversidade

de culturas e exibe sua coexistência também dentro de um mesmo Estado. Isto

vem demonstrar a interinfluência dessas diferentes culturas tanto dentro como

para fora do território.190

O multiculturalismo proposto por SANTOS se diz emancipatório, haja

vista não só reconhecer a diferença e o direito à diferença, como pregar a

construção de uma vida em comum além dessas diferenças.

Dentro dessa lógica, é possível conceber os direitos humanos em termos

multiculturais, reciclando a compreensão do conteúdo da cidadania: cosmopolita e

baseada no “reconhecimento da diferença e na criação de políticas sociais voltadas

para a redução das desigualdades, a redistribuição de recursos e a inclusão”.191

Para atender às expectativas indígenas, há que ser valorizado o caráter

coletivo dos direitos humanos, pois, enquanto “povo”, suas necessidades e

aspirações não podem ser atendidas individualmente.

“É claro que os direitos coletivos, especialmente dos povos indígenas, não se limitam à questão do território, ultrapassam-no e atingem o âmago do direito ao desenvolvimento, ou aos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais. A diferença destes direitos daqueles estabelecidos nos pactos internacionais de direitos humanos está no caráter coletivo que estes adquirem e

189 SANTOS, B. de S. Idem, p. 441. 190 SANTOS, B. de S. NUNES, J. A. Indrodução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade, p. 28. 191 SANTOS, B. de S. NUNES, J.A. Idem, p. 34.

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que por isso representam uma novidade para o sistema jurídico, potencializando sua função emancipatória”.192

O multiculturalismo deixa claro que a luta pelos direitos humanos é

possível também dentro do contexto cultural das sociedades indígenas, mesmo

que o conceito de desenvolvimento não seja hegemônico. Basta que seja capaz de

acolher as pretensões peculiares a cada modo de vida, ou seja, variáveis de

sociedade para sociedade.

3.5 Cultura indígena e Direito

Os usos, costumes e tradições de um povo representam mais que um mero

estilo de vida: é o que verdadeiramente revelam suas raízes, a sua própria alma. A

cultura é o berço da identidade social, um indicador de valores e,

conseqüentemente, a idealizadora das normas de conduta que se espera sejam

cumpridas por todos os indivíduos do grupo.

Se por um lado a cultura não prescinde da sociedade, esta, por sua vez,

nada seria sem a constituição dos valores culturais, que fornecem verdadeiro

significado à vida humana. A cultura circunda, portanto, todo o agir do indivíduo,

estando presente em sua língua e em sua consciência em relação ao mundo.

Entretanto, a cultura não desempenha um padrão estático, ela segue em

movimento. O cotidiano, com seus objetivos e aspirações, é capaz de provocar-lhe

modificações, criando lugar para novos paradigmas.

“(...) as culturas são dinâmicas, comportam mudanças. Mesmo que tais inovações sejam estimuladas pelo contato interétnico, não significa que haja descaracterização da cultura. Ao contrário, o sistema cultural opera nas situações de contato, fornecendo um referencial para o entendimento da nova realidade e para a seleção do que é ou não incorporado”.193

Esta é a realidade hodiernamente vivenciada. O fenômeno da globalização

é responsável pela convivência entre as mais diferentes culturas e também por

provocar um característico sentimento de ambigüidade. Ao mesmo tempo surge a

192 SOUZA FILHO, C. F. M de. Multiculturalismo e direitos coletivos, p. 105. 193 CIR, Conselho Indígena de Roraima. CPISP, Comissão Pró-Índio de São Paulo. Parecer sobre o relatório de impacto ambiental da Hidroelétrica de Cotingo, p. 24.

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preocupação com o resgate da identidade dos povos e cresce o respeito para com

outras culturas.

O efeito disso é a transformação das sociedades, o que enseja amplos

debates acerca da suposta imposição de uma hegemonia cultural ocidentalizada.

Na verdade, foi a esperança de se construírem comunidades de indivíduos,

onde todos fossem considerados livres e iguais em direitos, o que impulsionou o

surgimento dos Estados constitucionais.

É certo que o Estado está fundado sobre os direitos individuais e que estes

nada mais são do que a capacidade que cada homem livre tem de adquirir um

determinado direito, como expressado na concepção kantiana.

O estado de natureza, a “selvageria”, não poderia garantir os direitos

individuais, como a propriedade, pois pressupõe uma posse meramente física

sobre algo – uma posse que seria provisoriamente jurídica.

Assim, a conversão da posse física numa posse jurídica somente poderia

ocorrer após a instauração da condição civil. É somente nesta condição que se

pode conceber a idéia de algo externo ser adquirido, originando-se o contrato.

Como bem observa SOUZA FILHO, “o direito se construiu sobre a idéia

da propriedade privada capaz de ser patrimoniada, isto é, de ser um bem, uma

coisa que pudesse ser usada, fruída, gozada. Logo, essa propriedade é material,

concreta. Isto significa que o direito individual é, ele também, físico e

concreto”.194

Por isso, “tudo o que fosse coletivo e não pudesse ser entendido como

estatal não teria relevância jurídica”195, da mesma forma que o “titular do direito

haveria de ser sempre uma pessoa individual que inclusive pudesse ser

responsabilizada por seus atos”196.

A sociodiversidade agora pugna pelo reconhecimento dos direitos

coletivos, mas o Estado, que garante solidamente os direitos individuais, custa a

perceber a sua essencialidade.

Até pouco tempo atrás, o Direito não conseguia visualizar a aquisição

coletiva da terra - uma aquisição coletiva do direito - e ainda existe uma

194 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 167. 195 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Idem, p. 168. 196 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Idem, ibidem.

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significativa dificuldade em ampará-la. A titularidade difusa era invisível para o

Direito e, como ela, também os povos indígenas.

Neste panorama, os povos autóctones, que nunca assimilaram os direitos

individuais como a propriedade - visto que seu trabalho na terra é realizado de

forma comunal -, deixaram de receber do Estado a devida proteção de sua

coletividade.

A falta de reconhecimento dos territórios indígenas - que por anos vem

sendo a exigência mais explícita dos povos latino-americanos - é apenas um dos

exemplos desse descaso estatal. Esta é uma questão vital, já que estes povos

necessitam da terra, acima de tudo, para sobreviver e preservar a identidade

cultural, intimamente ligada ao ambiente que tradicionalmente ocupam.

Seria correto, então, presumir a inexistência de direitos indígenas, uma vez

que sua cultura não se encaixa na mesma fôrma dos direitos individuais?

O Direito reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e

tradições indígenas e, também, os direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam197. Contudo, sua aplicabilidade restou adstrita àquelas

regiões do país onde não há significativa pressão política e onde predominam

interesses econômicos mais fortes.

“Além da conjuntura política, as disputas judiciais por terra no Brasil continuam fortemente influenciadas pelos direitos individuais estruturados no século XIX, com opção preferencial pela propriedade individual da terra. O caráter individualista e absoluto da propriedade da terra tem sido o traço distintivo do direito ocidental e a matriz do direito civil latino-americano”.198

Paradoxalmente, o reconhecimento dos direitos indígenas não significa sua

aplicabilidade. A ausência de força política implica na fragilidade dos direitos

coletivos que, muito embora estejam amparados por preceitos constitucionais, não

dispõem de instrumentos jurídicos eficazes para sua proteção.

A própria constituição do Estado, em verdade, aniquila a assimilação de

quaisquer direitos coletivos, porque afasta do consciente social a diferença entre

os indivíduos, na medida em que conjetura uma cultura individualista e

homogênea.

197 Reporta-se ao art. 231 da Constituição Federal de 1988. 198 SOUZA F, C. F. M. de. Multiculturalismo... Obra citada, p. 97.

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73

Sendo assim, aos olhos das sociedades ocidentais, a cultura indígena é algo

que deixaria de existir a partir da formação do Estado, ou que, pouco a pouco, se

miscigenaria ao pensamento nacional. Afinal, seria inútil pensar em direitos

coletivos quando se pode deter propriedade individual sobre todas as coisas.

Vê-se logo que a verdadeira proteção constitucional se volta, única e

exclusivamente, para a propriedade privada, símbolo máximo da realização e

cobiça humanas. As sociedades indígenas, por sua vez, permanecem

despatrimoniadas e sob o olhar crítico do Ocidente.

É certo que a ótica evolucionista impôs uma ordem para a ascensão das

sociedades e o cume, indubitavelmente, seria a formação do Estado. A

organização social humana poderia ser medida em escala, em que a selvageria

seria apenas o primeiro degrau do desenvolvimento.

O “bando”, a “tribo” e a “chefaria” seriam meros estágios de organização

política anteriores à constituição do Estado e a passagem da barbárie para a

civilização seria, por conseguinte, obrigatória.199

A teoria antropológica evolucionista200, construída no século XIX, excluiu

os sistemas sociais não constitucionais da sua análise parcial, cuja referência única

era a européia, que sempre privilegiou o acúmulo de bens materiais.

As sociedades órfãs de escrita e baseadas numa economia de subsistência

foram classificadas, sob o ponto de vista europeu, como “arcaicas”.201 E este

arcaísmo assumiu uma feição antropológica negativa, na visão de que tudo o que

se contrapõe ao desenvolvimento tecnológico é prejudicial à inteligência humana.

No entanto, como descreve CLASTRES, a linha que separa as sociedades

arcaicas das ocidentais passa “menos pelo desenvolvimento da técnica que pela

transformação da autoridade política”202.

199 “(...) o bando (grupo homogêneo e autônomo, de pouca importância demográfica); a tribo (unidade social mais ampla, que conhece certa diferenciação interna, entre grupos especializados); chefaria (em que a autoridade é exercida de maneira permanente por um único indivíduo); e enfim, o Estado (instância de poder separada de uma sociedade vasta, centralizada e fortemente estratificada)”. ROGNON, F. Os primitivos, nossos contemporâneos, p. 23. 200 A antropologia evolucionista pensava na sociedade européia como o apogeu do processo evolutivo, estigmatizando as populações aborígines e as rotulando como “primitivos”. De certo modo, esta teoria foi utilizada para justificar a dominação e a colonização branca ocidental. Este pensamento originou o etnocentrismo, baseado na superioridade de um grupo em relação aos demais. 201 CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado, p. 11. 202 CLASTRES, P. Arqueologia da violência: ensaios de antropologia política, p. 44.

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74

Nas sociedades indígenas, a autoridade não se confunde com a coerção. A

chefia se estabelece pelo prestígio e as ordens são emanadas em momentos

provisórios, como nas guerras.

Na organização ocidental, pelo contrário, a coerção é um elemento

garantidor do Estado. Sem a coerção, sem o sentimento de que é preciso obedecer

ao jus imperium, à lei, não existe unidade e, conseqüentemente, o Estado deixa de

existir. O pacto da sociedade ocidental é, portanto, coercitivo. Enseja uma vontade

que não é compartilhada pelos indivíduos de grupos autóctones, a de submeter-se.

Possivelmente, o que mais espantou os exploradores portugueses e

espanhóis, foi a forma como as sociedades primitivas se organizavam, a ponto de

sequer visualizarem a existência de uma estrutura política. Isto, posto que

concebiam uma idéia muito diferente de poder, imposto pela violência.

Advindos de sociedades monárquicas, o choque com a cultura política

local era evidente, pois não havia majestade que impusesse sua vontade sobre a da

coletividade, e caso ocorresse tal tentativa, a autoridade seria de pronto perdida.203

As sociedades que compunham os Estados ocidentais e que não

compreendiam outra forma de organização política que não a exercida sob coação

e violência, afirmavam sua superioridade sobre os povos primitivos e recusavam-

se, intransigentes, a reconhecer outra forma de se estabelecer o poder.

Para o pensamento europeu, não era possível assimilar a cultural de uma

sociedade sem Estado, não apenas porque o Ocidente é etnocentrista, mas porque,

acima de tudo, sua cultura é etnocidária.

“Sendo a civilização ocidental etnocidária antes de tudo no interior de si mesma, não poderá sê-lo em seguida no exterior, isto é, contra as outras formações culturais? Não se pode pensar a vocação etnocidária da sociedade ocidental sem articulá-la com esta particularidade de nosso próprio mundo, particularidade que chega mesmo a constituir o critério clássico de distinção entre os Selvagens e os Civilizados, entre o mundo primitivo e o mundo ocidental. O primeiro reagrupa o conjunto das sociedades sem Estado, o segundo se compõe de sociedades de Estado. É nisto que é preciso tentar refletir: pode-se colocar legitimamente em perspectiva estas duas propriedades do Ocidente, como cultura etnocidária, como sociedade de Estado? Se fosse assim, compreender-se-ia por que as sociedades primitivas podem ser etnocentristas sem serem por isso etnocidárias, pois são precisamente sociedades sem Estado”.204

203 CLASTRES, P. Idem, p. 43. 204 CLASTRES, P. Idem, p. 57.

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Na explicação de CLASTRES, o etnocídio estatal ocorre na medida em

que se reduz o outro ao mesmo, suprimindo o indígena a um mero cidadão, na

tentativa de se dissolver o múltiplo em um. O Estado pratica o etnocídio ao

suprimir as diferenças culturais, reduzindo a alteridade numa identidade única e

homogênea.205

É notória a diferença do modo de vida indígena em relação à sociedade

nacional, fruto da colonização branca, européia e ocidental. Mas é preciso

entender que o Estado não aceita verdadeiramente o âmago da diversidade, como

se esta aceitação pudesse ameaçar a sua própria existência.

De fato, aceitar a cultura indígena seria o mesmo que considerar possível a

constituição de uma sociedade sem a presença da figura fictícia, porém marcante,

do Estado de Direito. Como então justificar a coerção, a violência enquanto

ferramenta de controle estatal, e assumir como realidade possível uma estrutura

social e uma organização política indígena?

Acolher o pensamento social dos povos autóctones, por conseguinte, seria

assumir que a existência do Estado é algo meramente formal e que a desejada paz

entre os homens pode ser alcançada também no estado de natureza, no qual pouco

se usa o poder.

O poder, para os povos primitivos, está no próprio corpo social e ocupa um

lugar meramente aparente na chefia. A relação de poder é recusada nestas

sociedades, porque incentivam o desejo de submissão.206

Nas sociedades indígenas não há desejo de poder, pois, mesmo que

houvesse, não haveria desejo de submissão para fazê-lo amadurecer. Os índios

vivenciam intensamente a coletividade do grupo sem, entretanto, submeterem-se a

regras impostas pela chefia representada num único indivíduo.

As normas e condutas sociais foram estabelecidas há muito tempo e são

anteriores àquela liderança, uma vez que remontam ao início do próprio grupo e

se confundem, com o passar do tempo, com os usos e costumes.

A Lei da sociedade indígena está incorporada no modo de vida não pelo

grau de poder que um indivíduo exerce sobre o grupo, mas porque retratam o que

aquele grupo realmente é. A Lei, portanto, é a própria sociedade e dela não se

dissocia, já que vivenciada dia-a-dia por todos.

205 CLASTRES, P. Idem, ibidem. 206 CLASTRES, P. Idem, p. 120.

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É exatamente por isso que na sociedade indígena não se exorta o prestígio

e nem se alimenta o poder, porque sua conseqüência seria a divisão social e a

instauração da desigualdade entre os homens. Recusando-se a relação de poder,

impede-se também que o desejo de submissão se realize.

“Em primeiro lugar, o poder existe somente em seu exercício efetivo; em seguida, o desejo de poder só pode se realizar se conseguir suscitar o eco favorável de seu complemento necessário: o desejo de submissão. Não existe o desejo realizável de mandar sem o desejo correlativo de obedecer”.207

A igualdade desejada e mantida pelos indígenas é responsável pela união

do grupo e garante a sobrevivência de seus membros. Enquanto coletividade

estabelece um modo de produção de alimentos capaz de saciar a todos,

igualitariamente.

A economia dos povos ditos primitivos, conforme mencionado

anteriormente, é uma economia de subsistência, com um sistema de produção

relativamente simples, voltado para atender às necessidades do conjunto social.

Trata-se, basicamente, de se saber o quantum de alimento necessário para

abastecer a população por um determinado período e, ao mesmo tempo, de impor

um certo limite para a fartura. Eis aqui uma importante missão desempenhada

pelo chefe, cabendo-lhe administrar e equilibrar a equação entre trabalho realizado

e satisfação das necessidades do grupo.208

“A sociedade primitiva assinala à sua produção um limite estrito que ela se proíbe de transpor, sob pena de ver o econômico escapar do social e se voltar contra a sociedade, abrindo nela a brecha da heterogeneidade da divisão entre ricos e pobres, da alienação de uns pelos outros”.209

A sociedade impõe um limite instransponível para sua própria produção,

de sorte que não ocorram apropriações em demasia, esvaindo-se o lucro

característico das sociedades capitalistas.

Consoante expõe CLASTRES, “não somente o campo econômico não

determina o ser da sociedade primitiva, mas é a sociedade que determina o lugar e

207 CLASTRES, P. Arqueologia... Obra citada, p. 120. 208 CLASTRES, P. Idem, p. 134. 209 CLASTRES, P. Idem, p. 135.

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os limites do campo do econômico”.210 Devido a este controle social rigoroso, é

possível dizer que as forças produtivas não tendem a se desenvolver.

O desenvolvimento econômico é peculiar das sociedades capitalistas que,

pelo aprimoramento da técnica, expandem infinitamente a oferta de produtos

consumíveis.

A abordagem econômica, para as sociedades indígenas, permanece voltada

ao núcleo social, na satisfação das necessidades básicas dos indivíduos. Toda a

economia gerada parte da terra, seu meio de produção e de subsistência.

A terra indígena é, de fato, o meio físico para sua reprodução social e

cultural, pois é sobre ela que os indivíduos do grupo se relacionam, praticando

rituais, plantando e caçando.

A terra que sustenta também é a terra que preserva os laços afetivos e que

possibilita a interação entre presente e passado, nas cerimônias religiosas e nos

cultos ancestrais.

Apesar da diversidade de povos, seja lingüística ou de costumes, o meio

ambiente local acaba por definir o território. Isto quer dizer que não há uma

divisão geográfica propriamente dita, calculada como de praxe pelos brancos.

Pode-se dizer que há profunda relação entre os usos e costumes e o

ambiente em torno, já que a fauna e a flora local acabam por determinar a base

alimentícia do grupo. Da mesma forma, o meio ambiente influencia a reprodução

dos mitos e crenças, preservando os costumes ancestrais.

Por conseguinte, é difícil delimitar um território indígena com os olhos

ocidentais. A simples demarcação geográfica não é imprescindível para os índios,

que se baseiam muito mais na forma como estão organizados socialmente do que

nos limites territoriais.

“Cada povo indígena tem, portanto, uma idéia própria de território, ou limite geográfico de seu império, elaborada por suas relações internas de povo e externas com os outros povos e na relação que estabelecem com a natureza onde lhes coube viver”.211

A quantidade e a qualidade dos recursos naturais existentes em seu

território influenciam o modo de vida dos indígenas, principalmente quanto ao

210 CLASTRES, P. Idem, p. 144. 211 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 44.

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estabelecimento das práticas agrícolas. Estas práticas se diferenciam de grupo para

grupo, especialmente sob influência do meio ambiente que os envolvem.

“O estudo das relações que os indígenas mantém com seu meio geográfico, ou seja, sua ecologia, é de enorme importância para a compreensão da maneira como está organizada sua sociedade. Os grupos tribais que praticam a agricultura têm nela fonte certa de alimentação e podem viver em aglomerações maiores do que os não-agricultores. Estes, apoiados na coleta de vegetais silvestres, na caça e na pesca, têm de se subdividir em bandos pequenos, a fim de que o alimento conseguido diariamente, em procuras nem sempre felizes, seja suficiente para todos os seus membros”. [sic]212

Muitas das comunidades indígenas não praticam a agricultura como única

fonte de subsistência. Existem grupos coletores e, também, pesqueiros. Disto, se

deduz o que o rio significa para as comunidades indígenas que sobrevivem da

pesca.

As atividades pesqueiras variam de acordo com a cultura tribal e nelas

podem ser utilizadas flechas, vegetais tóxicos e armadilhas.213 Seja qual for o

método escolhido, é de se presumir que a existência de recursos hídricos na região

seja um fator de influência na escolha do hábito alimentar.

Sabe-se que os recursos hídricos não apenas compõem a paisagem como

também a determinam, condicionando o surgimento de determinadas espécies de

plantas e animais. Conseqüentemente, influenciam na preservação e na qualidade

do solo.

As águas que cortam os territórios indígenas garantem a sobrevivência e a

qualidade de vida das comunidades. Durante as secas, desaparecem com os rios os

peixes e os outros animais que deles também se alimentam. A vegetação da

margem logo definha e fica sem frutos.

A preservação dos recursos naturais, portanto, garante a reprodução física

e cultural dos povos indígenas, indicando uma profunda relação de dependência

entre os indivíduos e a terra que habitam.

É, pois, no meio em que habitam que desenvolvem seu conhecimento

sobre tudo o que os envolvem, e isto é essencial para que sobrevivam. Como

212 MELATTI, J. C. Índios do Brasil, p. 58. 213 Alguns vegetais, como os cipós de timbó, são utilizados para atordoar os peixes, pois possuem propriedades tóxicas. São freqüentemente utilizados pelos índios do alto Xingu. Armadilhas como o pari, típica dos índios Tenetehára, também são usadas. O pari é um cesto cilíndrico, fechado numa das extremidades e com uma abertura afunilada que permite a entrada do peixe, mas não sua saída. MELATTI, J. C. Idem, p. 50.

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observa MELATTI, o conhecimento tradicional envolve a interpretação dos

hábitos de animais e de vegetais com que se alimentam.

“O conhecimento dos hábitos dos animais, se andam de dia ou de noite, em que locais bebem, de que vegetais se alimentam, a época em que amadurecem os frutos que certa espécie de animal aprecia, tudo isso é importante para que os indígenas tenham sucesso na caça e na pesca”.214

Neste sentido, é possível compreender a importância da terra tradicional

para o povo ocupante. Seu valor não é monetário, diferentemente do que se

possam pensar as sociedades capitalistas, porque se traduz no meio físico de sua

sobrevivência.

Os elementos da natureza, específicos de cada região, são absorvidos pela

cultura e podem ser encontrados nos costumes e nas tradições das comunidades.

Nisso consiste o valor real da terra, na formação da cosmovisão do grupo, ou seja,

da interpretação que seus indivíduos têm com relação ao mundo.

“É evidente que a questão da territorialidade assume a proporção da própria sobrevivência dos povos, um povo sem território, ou melhor, sem o seu território, está ameaçado de perder suas referências culturais e, perdida a referência, deixa de ser povo”.215

No entanto, é preciso dizer que a instauração do Estado de Direito e a

divisão das coisas em públicas e privadas impôs uma nova relação dos povos

indígenas com suas terras, introduzindo o conceito de propriedade.

Conforme se verá, as terras passaram a receber a proteção do Direito,

todavia seus donos não são mais indígenas. De território a propriedade, seus

limites precisam mais do que usos, costumes e tradições para serem estabelecidos.

Dependem agora de decreto e da vontade da União em estabelecê-los.

214 MELATTI, J. C. Idem, p. 152. 215 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 120.

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3.5.1 A exploração da terra indígena para o Direito brasi leiro

Consoante visto, a ocupação das terras pelos povos indígenas não está

estabelecida sobre bases jurídicas, na forma como entendido pelas sociedades

ocidentais, ou de Estado216.

O sistema jurídico de organização estatal dividiu os direitos em individuais

e coletivos, permitindo o surgimento de uma dicotomia entre o público e o

privado. Mais precisamente, tudo o que fosse coletivo deveria ser,

necessariamente, público.

Na explicação de SOUZA FILHO, “esta dicotomia responde e se integra

ao fato do sistema admitir como únicas instâncias o Estado e o cidadão”. Sendo

assim, “o que não concerne ao Estado, concerne ao cidadão” e “o que concerne

aos cidadãos, em geral, não concerne a cada cidadão, mas ao Estado”.217

As terras indígenas, uma vez que não se destinam a um fim exclusivo do

Estado, nem ao uso público geral, não podem ser entendidas como públicas. Por

outro lado, também não são privadas devido à titularidade coletiva que os índios

exercem na sua ocupação.218

A propriedade privada pressupõe a existência de um título aquisitivo,

individual e exclusivo, e sua titularidade fica adstrita a uma pessoa física ou

jurídica.219 Não é possível, então, vincular a terra indígena ao conceito de

propriedade privada, visto que é ocupada por uma coletividade de pessoas

indeterminadas.

A ocupação coletiva da terra não pode ser absorvida pela dicotomia criada

e, assim, os sistemas jurídicos encontram dificuldades em entendê-la. Não se trata

de um número definido de pessoas físicas, cada qual com sua gleba individual,

nem tampouco de uma única pessoa jurídica.

A estrutura estatal estabelecida e que não assimila sistemas jurídicos

diversos, não permitiu encaixar a questão das terras indígenas de outro modo que

não fosse pelo instituto da propriedade.

216 ROGNON, F. Obra citada, p. 23. 217 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 65. 218 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Idem, ibidem. 219 Ver art. 1.228 e seguintes do Código Civil Brasileiro.

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Basta dizer que, constitucionalmente, a propriedade das terras indígenas é

pública, da União.220 A titularidade é pública, não se permitindo a apropriação

individual, porém garante-se aos índios a permanência e o usufruto exclusivo dos

recursos naturais existentes em suas terras.221

O conceito de terras indígenas que consta na Constituição Federal de 1988

abrange todo o meio ambiente em sua volta, a biodiversidade e os recursos

oriundos do solo e das águas.

Trata-se das terras ocupadas tradicionalmente pelos povos indígenas, onde

os indivíduos exercem livremente o seu modo de vida, tradicional e variável de

grupo para grupo.222

Entende-se, portanto, que a expressão “terras tradicionalmente

ocupadas”223 não significa um lapso temporal nem se refere a um dado período

histórico. Quer dizer, tão-somente, a existência de um espaço geográfico

destinado à sobrevivência das comunidades indígenas segundo seus usos,

costumes e tradições.

O modo de vida tradicional, entretanto, não importa no congelamento de

hábitos no tempo, como bem assevera BARBOSA, especialmente porque a

cultura, conforme visto antes, não permanece estática.

“O fato dos povos indígenas integrarem novas formas de comportamento, hábitos etc, não lhes confisca o direito às terras que ocupam, porque de outra forma seria querer condená-los ao isolamento e impedir a comunicação entre sociedades diferentes”.224

O direito à ocupação territorial indígena é, pois, um direito originário e

anterior à colonização branca, tanto que o Alvará de 1º de abril de 1680225

reconhecia os índios como “primários e naturais senhores” de suas terras.226

220 “Art. 20 - São bens da União: (...) XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Constituição Federal de 1988. 221 “Art. 231 – (...) § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Constituição Federal de 1988. 222 BARBOSA, M. A. Direito antropológico e terras indígenas no Brasil, p. 92. 223 “Art. 231 – (...) § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Constituição Federal de 1988. 224 BARBOSA, M. A. Obra citada, p. 93. 225 Confirmada pela Carta Régia de 6 de junho de 1755, que instituiu a “Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão”. http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=105&id_obra=73& pagina=514. Acessado em 01/05/2006.

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“A Constituição brasileira vigente reconhece aos índios o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Por originário quer dizer que o direito dos índios é anterior ao próprio direito, à própria lei”.227

Na afirmação de BARBOSA, a Constituição do Estado brasileiro

reconhece os direitos territoriais indígenas por serem preexistentes a ele

próprio.228

“E isso tem importância jurídica porque a nova Constituição brasileira admitiu que não é ela que veio atribuir esse direito, mas que ela simplesmente reconhece que tal direito já existia e que se trata de um direito originário, isto é, um direito anterior à própria formação do Estado brasileiro”.229

Este direito originário e reconhecido no caput do art. 231 da Constituição

Federal230 não constitui propriedade dos índios sobre a terra que ocupam. Visto

que a apropriação da terra é coletiva, segundo os usos e costumes que praticam,

não há como aqui adaptar o conceito de propriedade privada.

Uma vez que as terras indígenas não são passíveis de apropriação privada,

resta para os índios o instituto da posse. Contudo, não se trata da posse civil,

descriminada no art. 1.196 e seguintes do Código Civil Brasileiro231, já que a

relação que se mantém com a terra supera a simples exploração de ordem

econômica, eis que se trata da base de seu habitat232. Por isso, diz-se que a posse

indígena tem sua origem no instituto do indigenato.

“O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.233

226 SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo, p. 818. 227 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 122. 228 BARBOSA, M. A. Obra citada, p. 87. 229 BARBOSA, M. A. Idem, ibidem. 230 “Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Constituição Federal de 1988. 231 “Art. 1.196 – Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 232 SILVA, J. A. da. Obra citada, p. 819. 233 SILVA, J. A. da. Idem, ibidem.

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A posse indígena sobre a terra não se sujeita à legitimação, seja por não

poder ser comprovado o período temporal de ocupação, seja por não se tratar de

coisa sem dono, ou abandonada.234 Disso se conclui que “a relação entre o

indígena e suas terras não se rege pelas normas de Direito Civil”.235

“Cumpre notar, outrossim, que a posse a que se refere o preceito constitucional não pode ser reduzida a conceito de posse do Direito Civil, como pretendem os autores. A posse dos silvícolas abrange todo o território indígena propriamente dito, isto é, toda área por eles habitada, utilizada para seu sustento e necessária à preservação de sua identidade cultural”.236

O direito originário e a prática de seus usos, costumes e tradições garantem

ao indígena a permanência em suas terras, tornando-as indisponíveis ao poder

público ou a quaisquer pessoas que queiram ocupá-las.237

Sendo assim, essa indisponibilidade é estensiva também às riquezas

naturais encontradas nessas terras, inviabilizando qualquer apropriação privada. O

uso dos recursos do solo e das águas revela um caráter de exclusividade e somente

os índios podem explorá-los.

A Constituição Federal visa proteger o território indígena, garantindo a

continuidade do modo de vida do povo indígena, incluindo os seus usos com

relação ao meio ambiente entorno.

Destarte, a propriedade atribuída à União sobre o solo indígena encontra

limitações no art. 231 do texto constitucional, pois não se trata de garantir o

exercício do direito de propriedade em si, mas de preservar os direitos originários

que os índios detêm sobre a terra que ocupam.238

A Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, conhecida como Estatuto do

Índio, tratou de vedar, especialmente em seu art. 18, a realização de quaisquer

negócios jurídicos que pudessem inviabilizar ou restringir o pleno exercício da

posse direta das comunidades sobre suas terras.239

234 SILVA, J. A. da. Idem, ibidem. 235 SILVA, J. A. da. Idem, ibidem. 236 MENDES, G. F. O domínio da União sobre as terras indígenas: o Parque Nacional do Xingu, p. 56. 237 “Art. 231 – (...) § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Constituição Federal de 1988. 238 BARBOSA, M. A. Obra citada, ibidem. 239 “Art. 18 – As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas. § 1º - Nessas áreas, é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou

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Muito embora a legislação brasileira tenha sido concebida sobre a idéia de

que a condição indígena seria provisória, pois, inevitavelmente, ocorreria uma

perfeita integração com a sociedade branca, é necessária a preocupação em manter

as áreas indígenas protegidas dos efeitos danosos da ganância capitalista.

“Os direitos dos povos indígenas no Brasil não são, portanto, reconhecidos. Prevalece, nas interpretações dos textos legais, a noção que esses povos estão em transição e que seu destino é a sua incorporação pela sociedade nacional. Ou seja, ele deverão desaparecer enquanto entidades étnica e culturalmente diferenciadas. Isto é, simplesmente, etnocídio”.240

Para ANTUNES, existe uma contradição lógica que marca toda a política

indigenista brasileira, já que “o objetivo tutelar pretendido pelo Estatuto se perde

no momento em que, nos termos da própria lei indigenista, busca-se acomodar o

índio à sociedade envolvente”.241

“(...) a preservação da cultura indígena não me parece ser compatível com a sua integração em um outro universo cultural. (...) Ora, como é possível a preservação de uma cultura integrando-a a outra? Em realidade, a perspectiva integracionista, adotada pelo Estatuto, parte do pressuposto de que a cultura “branca” é uma cultura superior à cultura indígena e que esta deve, paulatinamente, ser substituída pela cultura oficial.”.242

Apesar disso, como mencionado, é visível em seu texto uma preocupação

com a preservação dessas áreas em relação ao assédio privado, mas que não

significa uma total impossibilidade de aproveitamento dos recursos ambientais

nelas encontrados.

Segundo o disposto na supracitada lei, existem algumas hipóteses em que a

União pode, excepcionalmente, intervir em território indígena, dentre elas, a

necessidade de se realizarem obras públicas que interessem ao desenvolvimento

nacional.243

comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa”. Lei nº 6.001, de 19/12/1973. 240 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e desenvolvimento... Obra citada, p. 72. 241 ANTUNES, P. de B. Ação civil pública, meio ambiente e terras indígenas, p. 138. 242 ANTUNES, P. de B. Idem, ibidem. 243 “Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. § 1º A intervenção poderá ser decretada: a) para pôr termo à luta entre grupos tribais; b) para combater graves surtos epidêmicos, que possam acarretar o extermínio da comunidade indígena, ou qualquer mal que ponha em risco a integridade do

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Isso é, a princípio, uma contradição. Ao mesmo tempo em que o legislador

garantiu a permanência das comunidades indígenas em suas terras, com exclusiva

fruição dos recursos naturais, ele excetuou a regra e autorizou a intromissão

estatal.

A exceção, por assim dizer, ganhou força quando, por meio do § 3º do art.

231, o constituinte consagrou a possibilidade de não indígenas aproveitarem os

recursos hídricos e explorarem as riquezas minerais encontradas nessas terras.244

Apesar de o § 5º do art. 231245 dizer que é vedada a remoção dos indígenas

de suas terras, como é possível viabilizar sua permanência, uma vez que é

permitida a exploração? Devido aos efeitos deste aproveitamento de recursos

ambientais, muitas vezes não é admissível conciliar a manutenção da vida

indígena no local afetado.

Desta exploração decorre a possibilidade dos grupos indígenas serem

removidos e, assim, se perde a efetividade da proteção que o próprio texto

constitucional concedeu.

Por isso, é de se questionar a amplitude da exceção contida no mencionado

§ 5º, uma vez que não apenas as catástrofes e as epidemias podem ensejar a

retirada da população, mas também a dimensão do impacto que o aproveitamento

das riquezas naturais existentes nas terras indígenas pode causar.

“Essa é outra inovação constitucional, e neste aspecto também se trata de um retrocesso, posto que, muito embora o parágrafo inicie-se por dizer que é vedada a remoção, logo vem um salvo, que exclui a regra”.246

O Estatuto do Índio, que é anterior à Constituição Federal de 1988, tratou

de estabelecer a possibilidade de remoção dos grupos quando sua permanência for

desaconselhada por algum dos motivos especificados no art. 20. Além da silvícola ou do grupo tribal; c) por imposição da segurança nacional; d) para a realização de obras públicas que interessem ao desenvolvimento nacional; e) para reprimir a turbação ou esbulho em larga escala; f) para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o desenvolvimento nacional”. Lei 6.001, de 19/12/1973. 244 “Art. 231 – (...) § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”. Constituição Federal de 1988. 245 “Art. 231 – (...) § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”. Constituição Federal de 1988. 246 BARBOSA, M. A. Obra citada, p. 99.

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realização de obras também se inclui dentre as causas a exploração de riquezas do

subsolo que interessem para o desenvolvimento nacional, no entanto, quando

necessária a remoção, esta somente ocorrerá após a deliberação do Congresso

Nacional.

Sabe-se que a legislação indígena está desatualizada com relação ao novo

contexto instaurado pela Constituição Federal de 1988. Desde a década de 1990,

um projeto de lei247 que substitua o atual Estatuto do Índio tramita nas casas do

Congresso Nacional. Porém, até o presente momento, não há previsão de quando a

nova legislação entrará em vigor e este fator também prejudica a solução dos

impasses instalados nas terras indígenas.

Insiste-se aqui em dizer que, mesmo exigindo-se a autorização do

Congresso Nacional e a oitiva das comunidades afetadas, a exploração dos

recursos naturais já foi autorizada pelo § 3º do art. 231 da Constituição, o que

implica rigorosamente na interpretação de seu § 6º.

De uma interpretação célere e literal deste parágrafo, presume-se a total

impossibilidade de serem realizados negócios jurídicos cujo objeto seja, por

exemplo, a exploração privada de um dado recurso hídrico existente em território

indígena.

“§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado o relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito à indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação”.

Todavia, conforme mencionado, o § 3º permitiu o aproveitamento dos

recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, sob a devida autorização do

Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indígenas afetadas.

No impasse gerado pelo conteúdo do texto constitucional, é necessário que

a interpretação do art. 231 seja realizada com prudência em sua totalidade,

observando que a finalidade conferida é a de proteção dos direitos indígenas.

247 Projeto de Lei nº 2.057, de 1991, de autoria do Deputado Aloizio Mercadante.

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Primeiramente, é preciso entender que o usufruto dos recursos naturais,

exclusividade dos índios, é uma conseqüência da posse direta que exercem sobre

suas terras e que compreende todas as utilidades advindas desse uso.248

Nesta perspectiva, considera-se que o aproveitamento dos potenciais

energéticos é conseqüência habitual do uso das águas e que, portanto, se traduz

em exploração de um recurso natural.

Assim, com observância aos preceitos constitucionais, especialmente

daqueles que tratam do direito originário de permanência indígena sobre a terra

que tradicionalmente ocupam, é de se concluir que a exploração dos recursos

hídricos e dos potenciais de energia hidráulica devem se submeter à regra do § 6º

do art. 231.

É plausível, então, o entendimento de que tal exploração somente deve

ocorrer quando persistir o interesse público da União e, mesmo assim, quando

definido em lei complementar.

A contradição exposta nos dois parágrafos do art. 231 da Constituição se

desfaz quando admitido que a exploração dos recursos hídricos embaraça a

manutenção da posse indígena. Sendo o aproveitamento de recursos hídricos uma

forma de exploração de riqueza natural que impacta o território indígena, sua

autorização compromete a garantia constitucional relativa à posse permanente.

Daí a necessidade de se caracterizar o relevante interesse nacional da

exploração e, também, a obrigação do Congresso em autorizá-la, depois de

ouvidas as comunidades afetadas.

“Ao Congresso Nacional se imputou o julgamento de cada situação concreta, para sopesar os direitos e interesses dos índios e a necessidade da prática daquelas atividades, reconhecido que o princípio é o da prevalência dos interesses indígenas, pois a execução de tais atividades, assim como a autorização do

248 “Art. 22 - Cabe aos índios ou silvícolas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes. (...) Art. 24 - O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades”. Lei nº 6.001, de 19/12/1973.

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Congresso Nacional, só pode ocorrer nas condições específicas estabelecidas em lei (art. 176, § 1º)(...)”.249

O texto que trata dos potenciais de energia hidráulica, que faz menção

quanto a sua distinção em relação ao solo, está contido no art. 176 da Constituição

Federal.250 No seu § 1º, expõe claramente a possibilidade das autorizações e

concessões serem outorgadas pela União, quando comprovado o interesse

nacional.251

A sua leitura gera o entendimento de que todo o aproveitamento de

potencial energético deve ser considerado na medida em que tem relevância para

o interesse na Nação. Mais ainda quando se tratar, especificamente, de exploração

em terras indígenas, onde esta somente ocorrerá se obedecerem aos preceitos e às

garantias contidos na Constituição e na legislação pertinente.

“Vale ressaltar que os artigos 176 e 231 não foram ainda regulamentados por lei complementar. Enquanto isso não ocorrer, nenhuma hidroelétrica poderá ser construída em terras indígenas”.252

De qualquer modo, com esta leitura constitucional, procurou-se

demonstrar o quanto é preciso respeitar o espaço e a cultura indígena, indo ao

encontro do exercício da vontade dos povos nas decisões que envolvem suas

terras.

249 SILVA, J. A. da. Obra citada, p. 822. 250 “Art. 176 – As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”. Constituição Federal de 1988. 251 “Art. 176 – (...). § 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas”. Constituição Federal de 1988. 252 CIR. CPISP. Obra citada, p. 27.

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3.5.2. A vontade indígena como um direito

Observadas as garantias constitucionais de permanência dos indígenas na

terra que tradicionalmente ocupam e analisados alguns aspectos sobre o

aproveitamento dos recursos naturais nelas existentes, o objetivo agora é

esclarecer a importância do exercício efetivo da vontade dos grupos indígenas

afetados pelos efeitos dessa exploração.

O Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, é um instrumento da máxima

relevância para a defesa dos direitos indígenas, pois sua origem está vinculada a

normas de natureza internacional e convencionadas para garantir a efetividade

desses direitos.

O Decreto em questão promulga a Convenção nº 169 da Organização

Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais, que foi elaborada

em Genebra, em 27 de junho de 1989, há mais de quinze anos.253

Esta Convenção é considerada um marco da proteção internacional aos

direitos indígenas, principalmente em relação à identidade étnica e cultural desses

povos, embora a Constituição brasileira tenha anteriormente incorporado ao

sistema jurídico nacional muitas de suas determinações.

“A Constituição brasileira antes mesmo da Convenção em apreço já extirpara de nosso sistema jurídico objetivos injustos, inatingíveis e indesejáveis pelas populações indígenas, como por exemplo, a sua assimilação”.254

O art. 4º da Convenção determina a criação de medidas especiais que

salvaguardem as pessoas, as instituições, os bens, a cultura e o meio ambiente dos

povos indígenas, devendo estar manifestamente de acordo com seus desejos.255

Diante das diferenças entre as aspirações humanas, essencialmente entre os

povos autóctones e as sociedades ocidentais, é necessário que se preserve o

respeito quanto às necessidades de desenvolvimento de cada grupo social.

253 A Convenção nº 169 da OIT entrou em vigor em 1991, ratificada pela Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Noruega, Paraguai e Peru, mas o Brasil só veio a ratificá-la em 2002. Ver http://www.oit.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm. 254 BARBOSA, M. A. Autodeterminação: direito à diferença, p. 227. 255 “Art. 4º: 1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados. 2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados. 3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais”. Convenção OIT nº 169.

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Portanto, no caso indígena, há que ser levado em conta o querer da

comunidade, respeitando sua interpretação dos valores mundanos e a forma como

gostariam de viver. É preciso deixar que escolham suas próprias prioridades no

processo de desenvolvimento, como determina o art. 7º da Convenção, “na

medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual,

bem como as terras que ocupam”.

Quaisquer que sejam as circunstâncias que interfiram nas terras indígenas,

principalmente quando da exploração de suas riquezas naturais, faz-se

imprescindível permitir às comunidades sua participação na “formulação,

aplicação e avaliação” dos planos e programas que as afetem diretamente.256

“Esta é mais uma demonstração do avanço das normas da Convenção 169 que corresponde às aspirações de qualquer sistema democrático e é inconcebível uma orientação diferente desta”.257

A maioria dos projetos de desenvolvimento nacional, como a implantação

de barragens hidrelétricas, produz um significativo impacto ambiental. Nas terras

indígenas isto é desastroso porque ocasiona abruptas mudanças na vida de seus

habitantes. Por isso, além de correto, é indispensável o acompanhamento dos

planos, estando garantido aos indígenas o direito de manifestar sua escolha.

De acordo com o que foi anteriormente estudado, este já era um direito

consolidado na Constituição Federal de 1988, que prevê sejam ouvidas as

comunidades atingidas quando do aproveitamento dos recursos hídricos e das

riquezas minerais existentes em terras indígenas.258

256 “Art. 7º: 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. 2. (...) 3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas. 4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam”. Convenção OIT nº 169. 257 BARBOSA, M. A. Autodeterminação... Obra citada, p. 232. 258 Conforme art. 231, § 3º.

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Neste contexto legal, está assegurado o consentimento livre, prévio e

informado dos povos indígenas, o que os ajudará no pleito de uma participação

real nos processos de implantação de megaprojetos hidrelétricos.

“La aceptación del consentimiento libre, previo e informado al veto significaría que, en el futuro, la construcción de represas no prosperaría sin que las comunidades afectadas fueran aseguradas de que se beneficiarían de los proyectos planificados y sin que ellas fueran antes convencidas de que estuvieran asegurados los mecanismos adecuados para garantizar su compensación, reasentamiento y rehabilitación y su plena participación en procedimientos legalmente implementables para asegurar su cumplimiento”.259

Entretanto, a simples existência de dispositivo legal nem sempre é garantia

de efetividade para o direito que se pretende amparar. A falta de regulamentação

acerca dos procedimentos adequados que efetivem a manifestação de vontade dos

indígenas ainda é um problema que as comunidades devem enfrentar.

Na inexistência de procedimentos específicos que possibilitem a oitiva das

comunidades afetadas por projetos de grande impacto em suas terras, são

realizadas audiências públicas durante o processo de licenciamento ambiental260 e,

também, para os processos licitatórios, na forma como prevê a Lei de

Licitações261.

“A audiência pública é uma das etapas da avaliação do impacto ambiental e o principal canal de participação da comunidade nas decisões em nível local. Esse procedimento consiste em apresentar aos interessados o conteúdo do estudo e do relatório ambiental, esclarecendo dúvidas e recolhendo as críticas e sugestões sobre o empreendimento e as áreas a serem atingidas”.262

Muito embora o direito à consulta seja essencial, existem algumas

dificuldades para fazê-lo cumprir; nem sempre a realização de audiência pública é

259 COLCHESTER, M. Pueblos indígenas, minorías étnicas y desarrollo nacional, p. 05. 260 “Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis”. Política Nacional de Meio Ambiente, Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981com alterações pela Lei nº 7.804, de 18 de julho de 1989. 261 “Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação: (...)”. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. 262 IBAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Licenciamento Ambiental Federal. http://www.ibama.gov.br/licenciamento/index.php. Acessado em 01/06/2006.

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92

determinada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis - IBAMA, ficando à mercê das solicitações de entidades civis

(ONG’s), do Ministério Público ou de mais de cinqüenta cidadãos.263

Conforme mencionado, a importância da consulta consiste em analisar os

efeitos socioambientais que a implantação de megaprojetos em áreas indígenas

podem provocar, os quais serão detalhados na próxima parte do estudo.

Figura 5 – Povo Awá. Atingidos pela usina Canabrava, no Estado de Goiás. Fonte: http://www.cimi.org.br/?system=gallery&action=gallery&gallery=144. Acessado em 10/07/2006.

263 IBAMA. Idem, ibidem.

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4 Barragens Hidrelétricas e Povos Indígenas 4.1 Implantação de barragens hidrelétricas: efeitos da degradação ambiental nas comunidades indígenas

A consulta sobre a implantação ou não de projetos hidrelétricos em

território indígena tem um significado pouco reconhecido para as sociedades

capitalistas. A energia elétrica, como se sabe, é imprescindível nas atividades

econômicas em geral e a demanda vem crescendo surpreendentemente,

compelindo os governos nacionais a tomarem medidas que subsidiem e

fortaleçam as indústrias.

Sob este aspecto, para o senso coletivo, não parece plausível impedir o

progresso, nem tampouco ceder o uso dos recursos hídricos a povos que não

disponham de conhecimento tecnológico suficiente para cominar algum

julgamento válido acerca do desenvolvimento.

Na visão branca264, a consulta mais parece um instrumento de poder

atribuído a indivíduos que, enquanto marginalizados pelo sistema, não

dimensionam o valor da estrutura e da comodidade oferecidas pelo progresso. A

consulta, portanto, tende a se assemelhar mais a um empecilho do que a uma

salvaguarda dos direitos dos povos tradicionais.

“En contraste com las sociedades tradicionales, las modernas se caracterizan por rasgos favorables al desarrollo. El progreso consiste precisamente en la progresión contínua y lineal del mundo tradicional al moderno”.265

Porém, sem este mecanismo de escolha, que é verdadeira expressão da

vontade de grupos étnicos minoritários, os indígenas estariam à mercê de critérios

puramente técnicos e de imposições do mercado econômico quando da instalação

de usinas hidrelétricas em suas terras. É de se considerar, pois, que as sociedades

indígenas estariam fadadas ao desaparecimento.

264 Neste sentido, sociedade envolvente. 265 FOGEL, R. El impacto social y ambiental del desarrollo: el caso de comunidades indígenas, p. 20.

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“Los criterios para decidir la construcción de la represa privilegian la relación costo-beneficio, ligada a ala definición técnica del potencial energético que se aprovecharía, tal como correspondía a un proyecto de ingenieros y arquitéctos, con la incrustación de uno que otro economísta”.266

Este, sem dúvida, seria o pior e mais terrível dos efeitos que a submissão

desses povos à pretensão majoritária da sociedade envolvente poderia causar.

Existem outros, todavia, que nem por serem menos gravosos deixam de ferir a

estrutura tradicional das comunidades autóctones.

Dentre os efeitos, a degradação ambiental denota uma séria ameaça para a

sobrevivência desses grupos e para a manutenção de sua cultura. A base alimentar

está associada à caça de animais e à pesca de peixes que são encontrados em

locais muito específicos.

De acordo com a ELETROBRÁS, nem sempre estes efeitos podem ser

mitigados ou compensados “por meio de dispêndios monetários incorporados ao

projeto”. Nesses casos, os custos são sociais e ambientais, ou “coletivos”.267

A construção de uma barragem implica, severamente, em perdas

ambientais desde a submersão de uma dada floresta até os problemas oriundos de

sua decomposição. Uma das dificuldades mais freqüentes está relacionada com o

desaparecimento dos peixes nativos que servem de alimento aos índios, a partir da

introdução de espécies exóticas nos reservatórios.268

Uma vez que a implantação desses projetos envolve o alagamento de

grandes porções de terras, a eliminação da vegetação e a conseqüente escassez de

frutos afugentam os animais para lugares mais distantes - isto quando não os

elimina por completo -, impedindo também a fixação das comunidades.

“(...) tal raciocínio revela um profundo desconhecimento sobre a forma como os Macuxí e Ingaricó exploram os recursos naturais de suas terras. O modo de produção desta população está baseado não apenas na agricultura e na pecuária, mas também nas atividades de caça, pesca e coleta. Trata-se, além disso, de um sistema que pressupõe a ocupação sazonal de suas terras, ou seja, a exploração de áreas diferenciadas do território conforme a época do ano”.269

266 FOGEL, R. Idem, p. 35. 267 ELETROBRÁS. Plano 2015: plano nacional de energia elétrica 1993-2015 (Projeto7: a questão ambiental e o setor elétrico), p. 17. 268 FEARNSIDE, P. BARBOSA, R. I. A Hidrelétrica de Cotingo como um teste do sistema brasileiro para avaliação de propostas de desenvolvimento na Amazônia, p. 19 269 CIR. CPISP. Obra citada, p. 11.

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Figura 6 – Vista parcial do lago da hidrelétrica de Samuel, em Rondônia, 13 anos após o fechamento da barragem. Partes de árvores mortas permanecem acima da água. Fonte: FEARNSIDE, P.M. Gases de efeito estufa... Obra citada, p. 43.

Além dos impactos diretos, ocorrem também os ditos indiretos como, por

exemplo, a abertura de estradas de acesso para as linhas de transmissão de energia

elétrica ou a alteração na qualidade das águas dos rios, e que, muitas das vezes,

não são avaliados nos relatórios ambientais.

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96

Em casos como esses, não há como precisar o trajeto que tomará

determinada estrada de acesso, nem a sua proximidade com as aldeias ou com as

áreas de roçada, caça e coleta. Do mesmo modo, não há como prever o quanto a

alteração na qualidade da água afetará os peixes. 270 Em suma, esses problemas

são raramente abordados nos relatórios de impactos ambientais.

“A análise dos impactos de uma hidroelétrica não pode restringir-se apenas aos efeitos diretos da obra, mas deve incluir também uma avaliação dos chamados impactos indiretos”.271

Existe, certamente, “uma grave distorção no que tange aos parâmetros

utilizados para a determinação da viabilidade ambiental do empreendimento”272,

principalmente porque os relatórios não estabelecem a gravidade dos impactos em

relação aos danos causados às comunidades indígenas e ao meio ambiente, mas

sim aos benefícios do empreendimento para o restante da população.

“Estos proyectos, que ubican al Estado en el papel de sujeto del desarrollo, se orientan básicamente al aumento de la producción y de la productividad, y a la integración plena de las unidades productivas, al mercado. (…) Se asume, en esa orientación, que una vez satisfechos aquellos objetivos y utilizados los medios indicados, “el resto” vendrá por añadidura, siendo la cultura de los grupos afectados uno de los aspectos soslayados. Se asume también, en estos emprendimiento, que el cambio social provocado por el desarrollo mejorará la vida de la gente, que el estilo de vida de los pobres es inadecuado, que la integración plena al mercado puede mejorarlo y que el progreso es inevitable”.273

Este fenômeno só revela a mentalidade preconceituosa da sociedade

ocidental, que não comporta as diferenças culturais e outros modos de

desenvolvimento não baseados no acúmulo de bens materiais.

Apenas recentemente as questões ambientais começaram a ser

consideradas nos cálculos das empresas que, na perspectiva exposta, estavam mais

preocupadas em minimizar algumas das situações criadas.

270 CIR. CPISP. Idem, p. 13. 271 CIR. CPISP. dem, p. 9. 272 CIR. CPISP. Idem, p. 17. 273 FOGEL, R., Obra citada, p. 31.

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4.2 O impacto social do deslocamento compulsório dos gr upos indígenas

A degradação ambiental não é o único efeito negativo que uma usina

hidrelétrica causa na região de sua implantação, especificamente para as

populações indígenas. Os efeitos sociais não devem ser menosprezados, uma vez

que ligados a um modo de vida tradicional, o que remete a um período de tempo

imemoriável.

Um dos custos sociais mais expressivos é o remanejamento das

populações indígenas e sua conseqüente recomposição estrutural decorrentes da

inundação de milhares de quilômetros quadrados, algo que quase sempre se torna

calamitoso.

“Especificamente para as populações indígenas, todas as experiências vivenciadas em relação à implantação de projetos hidrelétricos foram desastrosas. As iniciativas de mitigação dos prejuízos sempre foram parciais e de efeitos limitados, tendo as empresas estatais do setor elétrico dificuldades em efetivamente compreender as reais dimensões da questão”.274

Para SANTOS, os impactos dessas construções sobre os povos indígenas

sempre serão enormes. O descaso para com os efeitos sociais negativos

permanecem desde a década de 70, quando o governo procedia o fechamento das

comportas das barragens “sem que as questões relativas ao reassentamento das

populações atingidas tivessem sido resolvidas”.275

Na visão de SIGAUD, a política de geração de energia empregada pelo

governo federal, visualizada nas ações do Ministério de Minas e Energia e pela

Eletrobrás, não é correta e “tem a curiosa particularidade de gerar não apenas

hidreletricidade, mas também efeitos sociais perversos, que parecem remeter

princípios e procedimentos comuns a todas as empresas do setor elétrico”.276

A opinião é a de que os procedimentos técnicos adotados para o cálculo

que estima os custos sociais não são transparentes, visto que são influenciados

pela vontade de fortes grupos empresariais que pressionam o governo federal.277

274 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Hidrelétricas... Obra citada, p. 17. 275 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e desenvolvimento... Obra citada, p. 72. 276 SIGAUD, L. Obra citada, p. 01. 277 SIGAUD, L. Idem, p. 02.

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98

“Integram este “lobby” empresas consultoras encarregadas do planejamento do setor, algumas da maiores empresas da construção civil do país, empresas que produzem equipamentos elétricos e empresas que necessitam de muita energia para se implantar, como é o caso, por exemplo, da indústria de alumínio da região Norte”. [sic]278

SANTOS esclarece que o conceito ideológico dominante no Brasil é o de

que “energia é progresso” e, justamente por isso, muitas decisões foram tomadas

sem o cuidado necessário para com as populações afetadas, principalmente

durante a ditadura militar, quando o poder estava fortemente concentrado.279

Ocorre que, como dito anteriormente, os custos resultantes do processo de

construção de hidrelétricas não podem ser dimensionados apenas

economicamente, porque afetam toda a conjuntura social da comunidade.

Pode-se dizer que os impactos sociais sofridos pelas populações indígenas

são mais agressivos, tendo em vista que as relações entre indivíduos são

intensivamente vivenciadas. O ente coletivo, a comunidade em si, mantém uma

estrutura diferenciada do restante da sociedade nacional, baseada nos valores

familiares e na sua ligação com a terra.

Apesar da proteção constitucional e legal, as inundações provocam a

expulsão dos índios para outras partes de seus territórios e, até mesmo, para outros

territórios, gerando conflitos internos e modificando sua estrutura social.

Muitas são as experiências, mas cada povo é capaz de senti-las de forma

diferente. Cada tribo indígena mantém suas peculiaridades e não seria correto

generalizar os impactos sofridos com o remanejamento dos indivíduos. De

qualquer forma, algumas situações se mostram semelhantes, especialmente sob o

ponto de vista da desintegração social.

O alagamento provocado pela barragem de Tucuruí280, por exemplo,

atingiu os povos indígenas chamados Gavião281, Parakanã282 e Guajajara283 e

causou significativa redução no número de indivíduos.

O principal problema enfrentado pelos índios Gavião foi a fusão dos três

grupos existentes numa mesma área. Denominada de Reserva Indígena Mãe

278 SIGAUD, L. Idem, ibidem. 279 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e desenvolvimento... Obra citada, p. 74. 280 Cerca de 250.000 hectares foram alagados. SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e desenvolvimento... Obra citada, p. 75. 281 Grupo Timbira da região do Médio Tocantins. SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, ibidem. 282 Grupo Awarete, do tronco lingüístico Tupi. SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, p. 76. 283 Grupo do tronco lingüístico Tupi. SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, p. 77.

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99

Maria, abrigou, sob a chefia de um único cacique, indígenas provenientes de

tribos diferentes e inimigas. Portanto, os indivíduos foram forçados a uma

convivência não querida.284

“Os Gaviões são um povo do tronco lingüístico gê, que sempre habitaram as margens do Rio Tocantins, em região de ricos castanhais, no sul do Pará. Quando foi construída a represa de Tucuruí, os militares no poder, desrespeitando suas próprias leis, alagaram o território ocupado pelos Gaviões da Montanha, seus parentes, de tal forma que toda a população passou a ter que viver num mesmo território, apesar das hostilidades ancestrais que os separavam”.285

No entanto, esta não foi a única intervenção que sofreram. Pela reserva

também passaram uma ferrovia e as linhas de transmissão da Eletronorte,

advindas de Tucuruí. Como conseqüência disso, grande parte dos castanhais

necessários para sua sobrevivência foi destruída.286

Figura 7 – Vista parcial da barragem de Tucuruí, com 8 milhões de metros cúbicos em concreto. Fonte: http://www.transportes.gov.br/bit/eclusa/tucurui/ecltucu03.jpg. Acessado em 09/09/2006.

284 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 23. 285 SOUZA FILHO, C. F. M. de. O renascer... Obra citada, p. 23. 286 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Povos indígenas e desenvolvimento... Obra citada, p. 76.

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100

Os índios Parakanã foram contatados no início dos anos 70 e, desde então,

sofrem com a depopulação. Cerca de 54% dos indivíduos morreram no primeiro

ano de contato e 25% nos contatos posteriores. A represa de Tucuruí alagou as

suas terras, obrigando-os ao remanejamento populacional por duas vezes.287

Outro grupo, os Guajajara, também sofreu as conseqüências da construção

da usina hidrelétrica de Tucuruí, pois as linhas de transmissão passam pelas terras

da Aldeia Indígena Cana Brava e ocupam uma faixa de 100 metros de largura e de

22 quilômetros de extensão. Além disso, esses índios enfrentam sérias

dificuldades com posseiros que invadem o território, cortado pela rodovia MA-

226.288

Os índios do Xingu, no Estado do Pará, vêm sofrendo muita influência da

Eletronorte desde a década de 1970, que insiste em implantar um gigantesco

complexo hidrelétrico que os afetará diretamente.

Além do deslocamento compulsório, estarão sujeitos a “pressões

migratórias, grilagem por parte de grandes projetos mineradores e agroindustriais,

ocupações clandestinas, garimpagem, extração de madeira e, por fim, à injeção

desordenada, cosmética e “modernizadora” de recursos financeiros”.289

O complexo hidrelétrico da bacia do rio Xingu seria formado,

inicialmente, pelas usinas de Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara e Cararaô, e

afetaria os índios Juruna, Arara, Kararaô, Xikrin, Asuriní, Araweté, Parakanã,

Kayapó, Xipaia-Curuaia, além de outros desconhecidos na época dos estudos.

As usinas de Babaquara e Cararaô seriam as primeiras a serem construídas.

Os projetos originais receberam alteração, sendo posteriormente rebatizadas de

Altamira e de Belo Monte.

Os primeiros estudos da hidrelétrica de Altamira indicaram uma área de

alagamento de 6.500 quilômetros quadrados, ou cinco vezes maior que a área de

Itaipu e três vezes maior que a de Tucuruí. Apesar do tamanho do lago, a potência

instalada seria correspondente à metade do total implantado em Itaipu, ou seja,

cerca de 6.000 Megawatts.290

287 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, p. 77. 288 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, ibidem. 289 CASTRO, E. V. de. ANDRADE, L. M. M. de. Hidrelétricas do Xingu: o Estado contra as sociedades indígenas, p. 7. 290 ROSA, L. P. SCHAEFFER, R. A política energética brasileira, p. 56.

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101

Belo Monte, por sua vez, inundaria uma área comparável a de Itaipu, cerca

de 1.500 quilômetros quadrados, e chegaria a gerar 11.000 Megawatts, o que

corresponde a 90% da capacidade daquela usina.291

Ambas as usinas não foram implementadas, e não são queridas pelas

populações indígenas locais. Discute-se, ainda, a validade dos estudos de impactos

ambientais de Belo Monte e a forma como o processo vem sendo conduzido pelo

governo federal, que ainda não ouviu formalmente as comunidades afetadas,

conforme determina a Constituição Federal.

Nas opiniões de ROSA e SCHAEFFER, vários fatores integram a relação

do ser humano com o meio ambiente, seja ele físico ou cultural, indicando que as

necessidades são diferenciáveis. Assim, nem sempre a oferta de energia

corresponde ao ideal de vida de todas as comunidades e, mesmo em países

desenvolvidos, “o incremento da quantidade de energia consumida e da qualidade

de vida da população cessa a partir de um certo nível, chegando, em alguns casos,

a se inverter a partir daí”.292

“Não mais se justificam grandes usinas decididas à revelia da sociedade. O fato de terem sido identificados sítios promissores em termos de potencial hidráulico no Rio Xingu não significa que, obrigatoriamente, os mesmos devam ser aproveitados”.293

Situações similares ocorrem em todas as regiões do país, inclusive no sul,

onde há grande incidência de índios Guarani, Kaingang e Xokleng. A construção

da usina de Itaipu é mais um bom exemplo de como a ideologia

desenvolvimentista aplicada pelo governo militar era capaz de, literalmente,

passar por cima das pretensões indígenas.

O processo de implantação da hidrelétrica de Itaipu é marcado por

contradições a respeito da existência ou não de índios Guarani na área de

formação da barragem. Segundo laudos antropológicos da Fundação Nacional do

Índio – FUNAI, havia, em 1977, cerca de vinte e sete indivíduos na região

conhecida como Ocoí, fato negado até então pela Itaipu Binacional.294

291 ROSA, L. P. SCHAEFFER, R. Idem, ibidem. 292 ROSA, L. P. SCHAEFFER, R. Idem, p. 57. 293 ROSA, L. P. SCHAEFFER, R. Idem, ibidem. 294 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. A UHE Binacional..., p. 22.

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102

Uma das características dos grupos indígenas Guarani é o deslocamento

que realizam por uma extensa área, parte de seu antigo território. Por realizaram

essas “andanças”, foram classificados como nômades e, muitas vezes, chegavam a

ser confundidos com índios paraguaios e argentinos que circulavam pelo país.295

Durante as tratativas que se seguiram para a construção da barragem de

Itaipu, sempre com a interferência do órgão de proteção, a FUNAI, os índios

foram compelidos a aceitar sua remoção para uma área de 253 hectares entre as

margens do lago e as propriedades agrícolas da região.296

Seu novo “lar” não atingiu às expectativas da população indígena, que

sofria tanto com a erosão das terras pelas águas quanto pelas invasões de suas

divisas por parte dos agricultores. Os fatores ambientais também incidiram sobre

o grupo realocado, como a contaminação da água pelos agrotóxicos lançados e a

ocorrência de malária.

Figura 8 – Vista parcial da barragem de Itaipu, com 8 milhões de metros cúbicos em concreto. Fonte: http://www.transportes.gov.br/bit/ECLUSA/itaipu/Foitaipui.htm. Acessado em 09/09/2006.

295 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, p. 23. 296 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, ibidem.

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103

Atualmente, os Guarani se encontram numa área de 1.744 hectares,

adquirida pela Itaipu Binacional no município de Diamante do Oeste, no Estado

do Paraná, mas mesmo depois do remanejamento as dificuldades não cessaram. 297

“A terra adquirida pela Itaipu era uma antiga fazenda de criação de búfalos e de gado, com extensa cobertura de pasto. Essa característica prejudicou a produção agrícola. O solo apresentava problemas de fertilidade, além da presença de culturas de difícil erradicação, especialmente pela não utilização de agrotóxico. (...) Isso levou a comunidade indígena a sofre durante três anos, chegando à situação extrema de acionar antigas estratégias utilizadas na TI Ocoí para superar as dificuldades, como ir ao aterro sanitário da cidade em busca de alimentos e a praticar a mendicância”. [sic]298

Ainda no Estado do Paraná, outros grupos indígenas sofrem os efeitos

socioambientais da implantação de megaprojetos hidrelétricos. Tanto os Guarani

quanto os Kaingang299 foram atingidos pelo projeto da usina de Salto Santiago300,

construída pelas Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A. – ELETROSUL, na

região média do rio Iguaçu. Sofrem, também, pela possibilidade de construção da

usina de São Jerônimo, planejada pela Companhia Paranaense de Energia Elétrica

– COPEL, na região do rio Tibagi.

As tensões provenientes das negociações entre as lideranças indígenas

Guarani e Kaigang da Bacia do rio Tibagi e a concessionária de energia elétrica

geraram estresse entre os membros das comunidades.

Uma parcela dos índios não aprovou o projeto da usina de São Jerônimo,

porque entenderam que todos deveriam ser contemplados pelos impactos

socioambientais que sofreriam. Na verdade, essas discussões abriram espaço para

o surgimento de interesses econômicos dentro das comunidades, que chegaram a

disputar a administração das compensações financeiras que receberiam se a

barragem fosse construída.301

Em vista de tantas alternativas para a geração de energia elétrica, é difícil

aceitar usinas de grande porte como a única forma de satisfazer a demanda e de

297 SANTOS, S. C. dos. NACKE, A. Idem, p. 25. 298 COSTA, Z. A usina Hidrelétrica Itaipu Binacional e os Avá-Guarani do Tekoha Añetete, p. 69. 299 Indígenas do grupo lingüístico Macro-Jê. Seu território original abrange áreas de pinheirais, no sudoeste paranaense, sendo o pinhão o seu alimento básico. HELM, C. M. V. Grandes projetos hidrelétricos e os povos indígenas, Kaingang e Guarani, no Estado do Paraná, Brasil, p. 2. 300 Localizada no município de Saudade do Iguaçu, Estado do Paraná, tem capacidade para produzir 1.420 Megawatts. 301 HELM, C. M. V. A consulta aos índios da Bacia do rio Tibagi, PR, a unisa hidrelétrica de São Jerônimo e a questão ética, p. 128.

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104

promover o desenvolvimento nacional. Soluções como a proposta por ASPELIN,

de se construírem túneis “ligando os dois lados opostos das curvas do rio”, são

bem mais viáveis, já que aproveitam quase todo o rio sem inundar as áreas em

torno.302

“Embora não inundamos nada, aproveitamos quase toda a queda disponível (mesmo para uma represa), mas não perdemos assim os tão valiosos hectares de terras agriculturáveis ou de floresta existente na beira dos rios. (...) mas há outras tecnologias para se tornar útil essa mesma energia sem realmente necessitar de barragens”.

O que se pretende dizer é que a hidroeletricidade não significa, a princípio,

a implantação de grandes barragens e a conseqüente inundação das áreas

indígenas.303 É possível utilizar a força das águas sem causar tanta destruição, ou

seja, sem necessariamente provocar os efeitos colaterais que aniquilam o meio

ambiente e, também, o modo de vida das populações tradicionais.

No quadro abaixo, estão relacionadas algumas das áreas indígenas

atingidas por barragens hidrelétricas, construídas ou ainda planejadas. Esta

relação304 não tem a pretensão de representar a totalidade das áreas, tendo em

vista a dificuldade de se conseguir todos os dados perante os órgãos e empresas

responsáveis e, também, de se dimensionar todos os impactos indiretos.

Área/ Povo Indígena Estado UHE Andirá Marau/ Sateé-Mawê AM Itaituba

Apinajé/ Apinayé TO Santo Antônio, Santa Izabel e Serra Quebrada

Apucarana/ Kaingáng PR São Jerônimo, Apucaraninha Apyterewa/ Parakanã PA Complexo do Xingu Arára/ Arára PA Complexo do Xingu Araweté Igarapé/ Araweté PA Complexo do Xingu

Areões/ Xavánte MT Torixoréu, Barra do Peixe, Couto Magalhães e Foz do Nodoire

Avá-Canoeiro/ Avá-Canoeiro GO Serra da Mesa, Cana Brava e Mirador

Avá-Guarani Ocoí/ Avá-Guarani PR Itaipu-Binacional Bacajá/ Xicrin PA Complexo do Xingu Balaio/ Desána, Tukáno e outros AM São Gabriel Barão de Antonina/ Kaingáng PR Cebolão

302 ASPELIN, P. Obra citada, p. 102. 303 Parafraseando. ASPELIN, P. Idem, ibidem. 304 KOIFMAN, S. Geração e transmissão de energia elétrica: impactos sobre os povos indígenas no Brasil, p. 415.

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105

Caiçara Igarapé/ Xoko SE Oroco e Ibó

Capivara/ Múra AM Monte Cristo, Santo Antônio, São Jirau e Madeira

Capoto Jarina/ Kayapó e outros MT Kokraimôro e Jarina Cerrito/ Guarani Nhandéva MS Ilha Grande Coatá Laranjal/ Mundurukú e Sateré-Mawê

AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Coatinema/ Asuriní PA Complexo do Xingu Cubate/ Baniwa, Baré e Kobewa AM São Gabriel

Cuia/ Múra AM São Jirau, Santo Antônio, Madeira e Monte Cristo

Cuieri/ Baniwa, Baré e Kobewa AM São Gabriel Cuminapanema/ isolados PA Aparai

Cunhã/ Múra AM Jirau, Santo Antônio, Madeira e Monte Cristo

Erikbaktsá/ Canoeiros e Erikbaktsá

MT J. Mirim

Escondido/ Erikpatsa MT Augusto Funil/ Xerénte TO Lajeado

Gavião/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Guapenu/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Ibotirama/ Tuxa BA Luiz Gonzaga Içana Aiari/ Baniwa, Korewa e Kuripáka

AM São Gabriel

Igarapé Lage/ Pakaanóva RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Igarapé Lourdes/ Gavião RO Ji-Paraná

Igarapé Ribeirão/ Pakaanóva RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Ipixuna/ Paritintin AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Itaitinga/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Japuíra/ Erikbaktsá e Canoeiro MT J. Mirim Jarára/ Guarani-Kayowa MS Ilha Grande

Jumas/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Kaingáng de Irai/ Kaingáng RS Itapiranga Kararaô/ Kararaô PA Complexo do Xingu

Karipúna/ Karipúna RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Kariri-Xocó/ Kariri-Xocó AL Orocó

Karitiáne/ Karipúna RO Samuel, São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Kayabí/ Kayabí PA Apiacas, Sete Quedas e Celita Kayapó/ Kayapó PA Kokraimôro e Jarina Kraolândia/ Krahô TO Santo Antônio e Lajeado Krikatí/ Krikatí, Guajajára MA Tucuruí e Santo Antônio do

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Tocantins Kuripáka/ Kobewa AM São Gabriel Ligeiro/ Kaingáng RS Machadinho Mãe Maria/ Gavião PA Marabá Mangueirinha/ Kaingáng e Guarani

PR Salto Santiago, Fundão, Jacu e Pinhão

Marrecas/ Kaingáng PR Taguá

Masaká/ isolados RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Meria/ Miranha AM São Gabriel

Merure/ Boróro MT Torixoréu, Barra do Peixe, Couto Magalhães e Foz do Nodoire

Mundurukú/ Mundurukú PA Itaituba

Murutinga/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Nambikwára/ Nambikwára MT 12 de Outubro

Nata Felicidade/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Nhamunda Mapuera/ Hixkaryâna e Waiwái

AM Cachoeira Porteira

Ofayé Xavánte/ Ofayé Xavánte MS Porto Primavera

Onça/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Pacaás Novas/ Pakaanóva RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Pacre/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Pankarare/ Pankarare BA Moxoxó, Paulo Afonso e Luiz Gonzaga

Pankararu/ Pankararu PE Luiz Gonzaga Pankararu/ Paritintin AM Luiz Gonzaga Paquiçamba/ Jurúna PA Complexo do Xingu

Paracuhuba/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Parakanã/ Parakanã PA Tucuruí Pari Cachoeira I/ Makú e Tukáno

AM São Gabriel

Pari Cachoeira II/ Tukáno e Makú

AM São Gabriel

Pari Cachoeira III/ Makú e Tukáno

AM São Gabriel

Paritintin/ Paritintin RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Pimentel Barbosa/ Xavánte MT Torixoréu, Barra do Peixe, Couto Magalhães e Foz do Nodoire

Pinineus de Souza/ Nhambikwára

MT 12 de Outubro

Pirahã/ Pirahã AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

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107

Pirajuí/ Guraraní Nhandéva MS Ilha Grande Piripicura/ Kawahibe MT Matamaté Porto Lindo/ Guarani Nhandéva MS Ilha Grande Praia do Índio/ Mundurukú PA Itaituba Praia do Mangue/ Mundurukú PA Itaituba Queimadas/ Kaingáng PR Mauá

Recreio São Félix/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Rio Branco/ Makuráp e Tupari RO Cachimbo, Ji-Paraná e Alta Floresta

Rio Guaporé/ Jabuti e Makuráp RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Rodelas/ Tuxa BA Itaparica

Sagarana/ Pakaanóva RO São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Sangradouro Volta Grande/ Xavánte e Bororó

MT Torixoréu, Barra do Peixe, Couto Magalhães e Foz do Nodoire

São Marcos/ Xavánte MT Torixoréu, Barra do Peixe, Couto Magalhães e Foz do Nodoire

São Pedro/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Sapucaia/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Sassoro/ Guarani Kaiwá MS Ilha Grande Sete Setembro MT/ Surui RO Ji-Paraná Sororo/ Aikemar PA Santa Isabel Takuaraty Yvykuarusu/ Guarani Kaiwá

MS Ilha Grande

Taquaperi/ Guarani Kaiwá MS Ilha Grande Taracua/ Arapáso, Desáno, Tukáno e outros

AM São Gabriel

Tenharim Marmelos/ Tenharim AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Tibagy/ Kaingáng PR São Jerônimo Tingui Boto/ Tingui-Boto AL Orocó e Ibó Toldo Chimbangue/ Kaingáng SC Itá

Tora/ Paritintin AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Tracajá/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Trincheira/ Múra AM São Jirau, Monte Cristo, Santo Antônio e Madeira

Trocara/ Asurini PA Tucuruí Tubarão Latundê/ Aikaná e Latundê

RO Ávila

Tucumaque/ Apalaí e Wayána PA Paru Novo Waiãpi/ Waiãpi PA Coaracy Nunes Waimiri Atroari AM/ Waimiri Atroari

RR Balbina

Xambioá/ Karajá e Guarani TO Santa Isabel e Serra Quebrada

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108

Xapecó/ Kaingáng e Guarani SC Voltão Novo, Xanxerê e Salto Manela

Xerénte/ Xerénte TO Lajeado e Sono (I, II e III) Xingu Bacajá/ Xicrin PA Complexo do Xingu Xipáya Curua/ Xipáya e Curuya PA Complexo do Xingu Yanompámi RR/ Yanomámi AM São Gabriel e Paredão Yawareté I/ Makú, Kobewa e Tukáno

AM São Gabriel

Tabela – Barragens em terras indígenas no Brasil. Fonte: KOIFMAN, S. Obra citada, p. 415.

Não sendo o objetivo deste estudo esmiuçar todas as situações que

envolvem barragens hidrelétricas em terras indígenas, é o bastante saber que a

posição de grupos minoritários sempre foi considerada por grande parte da

sociedade nacional um empecilho para o progresso.

É lamentável perceber que, na história do Brasil, a acumulação do capital

sempre mereceu lugar de destaque, enquanto o “social” desaparecia em meio às

amargas controvérsias inseridas no cenário desenvolvimentista.

Não obstante, é preciso entender que os elementos sociais são de

fundamental importância para a consolidação dos ideais de progresso de uma

Nação. A melhora na qualidade de vida não acontece sem a satisfação de

interesses sociais que, por sua vez, variam dentre os conceitos vivenciados pelos

mais diferentes grupos.

Nesse sentido, consolidar os ideais de progresso não significa,

necessariamente, que esses ideais sejam unos e que representem apenas uma única

vontade. Significa, portanto, que é imprescindível a existência de um diálogo

cultural que viabilize a satisfação dos interesses da sociedade nacional sem, com

isso, impedir o exercício do direito de escolha sobre o modo de vida de grupos

étnicos minoritários.

Os deslocamentos compulsórios, que impõem outra terra, outro alimento e

outra vida, não expressam o verdadeiro sentido de progresso. Pelo contrário,

apenas reforçam um pensamento antigo e ultrapassado de dominação cultural,

cujo único objetivo é a supressão das aspirações de dignidade humana de cada

grupo diferenciado.

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109

Mapa – Bacia fluvial do Rio Xingu com a localização das Terras Indigenas, áreas desmatadas, estradas de penetração e as represas das usinas hidrelétricas projetadas no rio Xingu. Fonte: http://www.comciencia.br/reportagens/2005/02/17.shtml#. Acessado em 01/07/2006.

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110

4.3 A preservação da cultura indígena enquanto interess e público

O imperialismo cultural a que foram submetidas as sociedades indígenas é

perpetuado na história e, agora, sob a forma de globalização, insiste em submetê-

las ao molde apático de uma igualdade forçada e, por que não dizer, forjada.

O direito ao progresso, que se espera atinja a todos indiscriminadamente, é

um direito parcial, na medida em que tenta incutir a singularidade da noção de

desenvolvimento. Este direito é fruto da ascensão das práticas capitalistas e da

supervalorização da cultura ocidental.

Para FOLLADORI, o avanço tecnológico introduzido pelo capitalismo,

por um lado, aumenta a eficiência no uso dos materiais e da energia, mas, por

outro, retira da população o acesso aos recursos naturais e, também, aos bens

produzidos.305

Assim, as perdas sociais sofridas com a implantação de barragens

hidrelétricas, ao que parece, não podem ser patrimoniadas, porque isto significaria

“colocar preço no que, na prática, não o tem”.306

Como é possível se depreender deste estudo, as culturas são enrustidas de

variações que se manifestam nos diferentes meios de vida e relações que os

indivíduos mantêm com o meio ambiente. A homogeneidade cultural acontece na

medida em que não ocorre oposição aos métodos de avanço capitalista.

“A sociedade humana tem diferenças em seu interior que se cristalizam em apropriação histórica diferente dos meios de vida e da natureza externa em geral. Essa diferente apropriação cria classes e grupos sociais tão distintos em seu relacionamento com o meio ambiente, tanto em relação à responsabilidade sobre as transformações ambientais quanto aos benefícios e/ ou prejuízos que aparecem, como diferentes espécies, diante do funcionamento do ecossistema Terra”.307

A perda da diversidade cultural é o resultado da imposição forçosa do

capitalismo, que é um sistema econômico fundamentado na exploração. Aceitar as

diferenças, por conseguinte, é o mesmo que impedir o crescimento ilimitado da

produção econômica, porque se conferem às minorias um direito de escolha

quanto ao uso dos recursos naturais que detêm. 305 FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável, p. 142. 306 FOLADORI, G. Idem, ibidem. 307 FOLADORI, G. Idem, p. 137.

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111

Sob esta perspectiva, entende-se que o Estado encontra-se na posição de

mediador de interesses que emergem, de um lado, de grupos culturais minoritários

submissos às categorias ocidentais e, de outro, da sociedade envolvente que

integra o sistema capitalista.

O Estado é aqui entendido como “núcleo que reúne a capacidade

concentrada de deliberar, politicamente, sobre a alocação de bens, direitos,

oportunidades e recursos amealhados junto à coletividade social com vistas,

potencialmente a atender às necessidades dispersas por essa coletividade”.308

“Neste sentido, emerge com preponderância a noção de Estado enquanto um espaço onde se adotam decisões voltadas a controlar, coordenar, dirigir ou incentivar a sociedade. Ou seja, o espaço onde se desenvolveria o poder decisório no processo de controle político e de efetivação dos fins coletivos de uma dada sociedade”.309

Ocorre que o Estado não comporta vontades universais e homogêneas, na

forma pretendida pelos seus idealizadores, o que se prova facilmente por meio da

ocorrência de conflitos sociais. A esfera pública foi concebida para ser um espaço

de articulação de interesses comuns, como se a única luta possível fosse a da

sociedade contra o Estado, e não entre os indivíduos integrantes dessa mesma

sociedade.

Mas, com o desenvolvimento do sistema capitalista, aparece o fenômeno

da “fragmentação social”310, admitindo-se, pois, a existência de múltiplas

vontades no âmago de uma mesma sociedade. Contra a homogeneidade imposta

pelo Estado Moderno, agora renovada com o nome de globalização, emergem

múltiplos interesses dando origem a um processo conhecido como pluralismo.

“A emergência de pluralismos sociais pode ser entendida como o surgimento da segmentação social em grupos marginalizados por razões econômicas, sociais e religiosas ou culturais e que acabam por se agregar em torno de interesses comuns, normalmente relacionados, num primeiro momento, à constituição de mecanismos de proteção de contra repressões ou violações ou para compensação de sua hipossuficiência”.311

308 MARQUES NETO, F. P. de A. Regulação estatal e interesses públicos, p. 26. 309 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 27. 310 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 116. 311 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 119.

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112

Nessas circunstâncias, o que se pretende dizer é que os grupos indígenas

aparecem como “atores em uma paisagem jurídica heterogênea”312 e são parte

integrante de uma sociedade bastante complexa, em que coexiste uma pluralidade

de ordenamentos jurídicos.

“Ao trazermos para primeiro plano a coexistência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos no seio de uma unidade política única, particularmente dos direitos consuetudinários das comunidades e dos direitos religiosos a par com o direito da metrópole e com o direito criado especificamente nas e para as colônias nas sociedades (pós)-coloniais, o pluralismo jurídico questiona a centralidade do direito elaborado pelo Estado e a sua exigência de exclusividade no ordenamento normativo da vida social”.313

Admitindo-se, assim, tal pluralidade, é evidente que as sociedades

indígenas constituem núcleos de interesses destoantes da sociedade nacional. O

Estado, então, se vê obrigado a desvendar esta realidade e de buscar formas

diferenciadas de relacionamento, mediando e solucionando os atritos entre os

diferentes atores sociais.314

A fragmentação social, é possível dizer, é responsável pela evidente crise

pela qual passa o Estado, originando “um processo de multiplicação das fontes de

normatividade social, pondo, portanto, em questão a unicidade e a homogeneidade

do próprio modelo positivista de Direito”.315

“Os sistemas jurídicos constitucionais, antes fechados ao reconhecimento da pluriculturalidade e multietnicidade, foram reconhecendo, um a um, que os países do continente têm uma variada formação étnica e cultural, e que cada grupo humano que esteja organizado segundo sua cultura e viva segundo a sua tradição, em conformidade com a natureza da qual participa, tem direito à opção de seu próprio desenvolvimento”.316

A segmentação social também eclodiu a luta pelos direitos coletivos. Na

quebra do pensamento unicista, a noção de interesse público entra em convulsão,

porque não cabe mais “nos estritos limites da dicotomia clássica

público/privado”317.

312 RANDERIA, S. Pluralismo jurídico, soberania fraturada e direitos de cidadania diferenciais: instituições internacionais, movimentos sociais e Estado pós-colonial na Índia, p. 465. 313 RANDERIA, S. Idem, p. 467. 314 MARQUES NETO, F. P. de A. Obra citada, p. 123. 315 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 129. 316 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Multiculturalismo... Obra citada, p. 93. 317 MARQUES NETO, F. P. de A. Obra citada, p. 146.

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113

Como explica SOUZA FILHO, esses direitos nascem com a característica

de não terem titularidade individualizada, pois “não são fruto de uma relação

jurídica, mas apenas uma garantia genérica”, que condiciona o exercício dos

direitos individuais.318

“Isto quer dizer que os direitos coletivos não nascem de uma relação jurídica determinada, mas de uma realidade, como pertencer a um povo ou formar um grupo que necessita ou deseja ar puro, água, florestas e marcos culturais preservados, ou ainda garantias para viver em sociedade, como trabalho, moradia e certeza da qualidade dos bens adquiridos”.319

Numa perspectiva atual, numa sociedade pluralista, o interesse público

deixa de ser absoluto, exercido pelo “povo territorializado”320, para se tornar o

interesse de tantas “quantas forem as comunidades nela coexistentes”321.

O interesse público deixa de ser único e exercido pelo Estado, na

representação de uma coletividade geral e homogênea. Passa a satisfazer inúmeras

vontades, de indivíduos que se relacionam em prol de aspirações comuns.

Tantas e diferentes são essas aspirações, esses objetivos, que é de se

questionar a existência de um único interesse. Por isso, o Estado agora satisfaz e

media interesses públicos, sejam eles especiais ou difusos.

Os interesses especiais, para MARQUES NETO, são interesses

transindividuais, mas que se sustentam em grupos e são legitimados por uma

parcela da sociedade. Já, os interesses difusos, que também são transindividuais,

revelam “a principal razão de ser do poder político” e são dotados de

hipossuficiência.322

Esta multiplicidade de interesses enseja conflitos entre os interesses

especiais e, até mesmo, entre estes e os interesses difusos. O Estado passa a agir

neste contexto como mediador, ao mesmo tempo em que é o garantidor e o tutor

dos interesses difusos.

“O que se coloca, para nós, é que a ação do Estado, enquanto poder decisório confrontado com múltiplos interesses (focos de pressão), a um só tempo, deverá ter em conta critérios que sejam permeáveis aos diversos inputs de interesses

318 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Multiculturalismo... Obra citada, p. 94. 319 SOUZA FILHO, C. F. M. de. Idem, ibidem. 320 MARQUES NETO, F. P. de A. Obra citada, p. 150. 321 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 152. 322 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 161.

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114

especiais, mas que possa filtrar, politicamente, tais interesses de modo a integrar e proteger os interesses hipossuficientes”.323

Nesse panorama, os pleitos indígenas, incluídos no rol de direitos

coletivos, são entendidos como interesses públicos difusos. É de interesse público

a preservação da cultura indígena, em todo o seu significado, envolvendo os usos,

os costumes e as tradições.

É certo, entretanto, que este interesse público na preservação da cultura

indígena acaba conflitando, em inúmeros casos, com outros tantos interesses

públicos que dizem respeito à expansão da política econômica planejada para o

país.

Para NEVES, o confronto está na interação entre “universos simbólicos

diferentes”, tendo em vista que o diálogo interétnico é sempre desigual. Na

relação de contato entre povos distintos, ocorre o choque entre “sistemas

epistemológicos diferentes”.324

Ocorrendo o conflito, o Estado deve agir com base no princípio da

supremacia do interesse público que, no entendimento de MARQUES NETO,

“deve ser aprofundado de modo a adquirir a feição da prevalência dos interesses

públicos”, de sorte que haja a ponderação entre “todos os interesses públicos

enredados no caso específico”.325

Aceitando-se a convivência de múltiplos interesses, a atuação estatal passa

a se concentrar na prevalência de um interesse público sobre os demais,

enfatizando a proteção daqueles mais socialmente fragilizados. Em outras

palavras, “opondo-se interesses especiais ou confrontando-se estes com interesses

difusos, cumprirá ao poder político pender para estes últimos, tomando em conta a

relevância de sua hipossuficiência”. 326

Sem hesitação, trata-se a preservação da cultura indígena de um interesse

público difuso e, por conseguinte, dotado de relevância, especialmente por se

caracterizar num sistema social diferenciado e debilitado pelas pressões políticas

que perseguem o desenvolvimento econômico a qualquer custo.

323 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 164. 324 NEVES, L. J. de O. Olhos mágicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil, p. 123. 325 MARQUES NETO, F. P. de A. Obra citada, p. 165. 326 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 168.

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115

4.4 O conteúdo da relevância dos interesses indígenas

No entendimento de que cabe ao Estado a proteção dos interesses públicos

difusos, incluindo os pleitos relacionados à preservação da cultura indígena, leva-

se a exame o conteúdo da relevância desses interesses, sob a ótica do sistema

normativo constitucional.

Da interpretação do art. 231 da Constituição Federal de 1988, é possível a

verificação de um importante papel estatal na proteção dos direitos indígenas.

Enquanto tutor dos interesses públicos difusos, o Estado atua “compensando as

hipossuficiências e as exclusões geradas pela nova conjuntura da economia e da

sociedade contemporâneas”.327

Isto quer dizer que os direitos indígenas não são dotados de relevância

apenas por se tratar de interesses de uma minoria étnica, e sim porque sobrevivem

à exclusão forçada pela exploração econômica da sociedade envolvente. São

relevantes na medida em que não compartilham do modelo sócio-econômico

delineado, apesar das centenas de anos de violentas tentativas de integração.

O constituinte, ao reconhecer aos índios sua organização social, costumes,

línguas, crenças e tradições, enfim, a manutenção de todos os aspectos culturais de

sua história, confere proteção a algo especial que não se assemelha aos padrões

sociais ortodoxos e, assim, garante o direito à diferença.

Por sua vez, a diferença não pode ser exercida sem a intervenção estatal

nos conflitos que, em seu desfavor, tenham por fim a expansão do modelo

econômico capitalista.

É imprescindível que o Estado tutore as terras indígenas e seus recursos

naturais, elementos chave de sobrevivência cultural, impedindo o subjugo das

populações aos anseios dos interesses que, embora públicos, fundamentam-se

apenas nas perspectivas de mercado.

A previsão constitucional que confere proteção às terras e aos recursos

nelas existentes exalta o caráter de interesse público de maior importância,

decorrente da imprescindibilidade desses elementos na formação étnica e cultural

dos povos indígenas.

327 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 177.

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116

Não se trata de quaisquer terras, mas daquelas que verdadeiramente

importam como habitat de comunidades diferenciadas que, pelo seu modo de vida

e de produção, não anseiam a obtenção de lucro, apenas sobrevivem.

Neste sentido é que, como MARQUES NETO, crê-se na possibilidade de

“sustentar a necessidade de prevalência dos interesses difusos (enquanto classe

dos interesses públicos) no processo decisório levado a cabo no âmbito do

Estado”.328

Sendo assim, é chegada a hora de repensar a tomada de decisões políticas

que incluem os processos de implantação de barragens hidrelétricas em terras

indígenas, de modo que esta contraposição de interesses seja solucionada em

conformidade com os aspectos constitucionais de proteção das hipossuficiências.

No entanto, para que estes processos sejam levados a efeito com a devida

seriedade, torna-se indispensável o suprimento da ausência constatada no § 6º, do

art. 231 da Constituição, com a elaboração de lei complementar que defina outro

interesse público relevante, que não a ocupação indígena, e que permita a

exploração dos recursos hídricos naquelas terras.

Os atos que importam para esta exploração, como a construção de

barragens e o decorrente deslocamento populacional, devem ser analisados sob a

luz dos impositivos legais que indicam a predominância dos interesses difusos

sobre aqueles de cunho particularístico, meramente econômico.

É importante frisar que existem alternativas para a geração de energia que

implicam em impactos socioambientais menos agressivos e que condizem mais à

realidade que o texto constitucional veio inaugurar, especialmente no tocante à

proteção do ecossistema329.

Assim, o uso de fontes energéticas renováveis atenderia melhor à intenção

do constituinte, tanto para a preservação do meio ambiente quanto no

cumprimento dos direitos indígenas.

Sem a normativa em questão, na falta de lei complementar, é de se

considerar que não há interesse público de maior relevância que possa justificar

328 MARQUES NETO, F. P. de A. Idem, p. 176. 329 “Art. 225 – todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Constituição Federal de 1988.

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117

tão brutal intervenção, a ponto de se compelir as populações autóctones a

abandonar seus territórios originários.

O simples fato de haver previsão sobre o aproveitamento dos recursos

hídricos e de seus potenciais de energia em terras habitadas por indígenas não

significa, necessariamente, um interesse mais relevante que a própria manutenção

destes indivíduos em suas áreas.

Diante deste fato, destaca-se que o interesse público maior, que se revela

sobre os demais, não é aquele que mobiliza a construção de barragens, mesmo que

isto signifique levar a milhares de pessoas a energia elétrica necessária para o

desenvolvimento de tantas atividades econômicas.

Existe um interesse público com conteúdo mais expressivo, que diz

respeito ao risco que todos correm, enquanto Nação, de ver extinto um precioso

direito, que contempla a diferença e que, apesar do subjugo, resiste ao tempo na

esperança de ser, finalmente, realizado.

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5 Conclusão

Este estudo proporcionou uma reflexão sobre as conseqüências do modelo

de desenvolvimento proposto nos projetos de implantação de barragens

hidrelétricas, sobretudo em terras indígenas, concebido sob a perspectiva ocidental

de privilégio dos aspectos econômicos.

A filosofia moderna do século XVIII, que colocou em evidência o

pensamento europeu, abriu caminho apenas para a concretização de direitos e

interesses individuais. Transpor essa barreira ideológica é uma batalha amarga que

a história dos povos indígenas pode confirmar.

O Estado Liberal foi constituído para garantir a efetividade dos direitos

individuais e, conseqüentemente, das relações jurídicas de cunho patrimonial. Na

sua lógica, se os direitos individuais são essenciais à existência de todo o ser

humano é natural que sejam considerados universais.

Em decorrência desta ideologia, é difícil assimilar os direitos coletivos,

principalmente quando desprovidos da noção de propriedade. Isto constitui um

erro para o sistema, algo diferente e estranho que deve ser excluído.

Desta forma, pode-se dizer que os povos indígenas, juntamente com suas

aspirações, foram eliminados da estrutura estatal. O Estado negou-lhes o

reconhecimento de sua diferença, na medida em que os considerou transitórios.

No entanto, o índio sobreviveu. É uma realidade, sempre o foi, mesmo tendo sido

condenado ao desaparecimento pela “sociedade civilizada”.

Os povos indígenas não só sobrevivem como também começam a se

articular na luta pelos seus direitos, permeados de elementos culturais e que não se

resumem à simples posse da terra. Os direitos coletivos ganham a visibilidade do

Estado, como que um prêmio pela sua resistência.

O Direito já não se omite na defesa dos interesses coletivos e passa a

reconhecê-los, mesmo que para isto seja necessária a quebra de seus próprios

conceitos e valores há muito estabelecidos. A aceitação do coletivo pressupõe

uma reavaliação do individual e de sua aparente universalidade.

O índio, enfim, deixa de usar a fantasia com que o Estado lhe cobriu e

passa a ser reconhecido pelo que verdadeiramente é e pelo que deseja ser. Está

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119

livre do estigma de “selvagem”, porque o poder de escolha do seu futuro não está

mais nas mãos dos brancos.

O índio de hoje pode ser o que quiser, pois está consagrado o direito de

escolher ser diferente, muito embora os mecanismos jurídicos que garantam a

efetividade desta escolha ainda não tenham sido totalmente estabelecidos. O rumo

do futuro indígena e o seu desenvolvimento não precisam, obrigatoriamente,

andar lado a lado a um progresso econômico desenfreado e, de certo modo,

irracional.

Os critérios analisados nos projetos de construções de grandes barragens

não podem mais atender, unicamente, a fins econômicos. O avanço tecnológico

permite a racionalização das escolhas, por meio de alternativas mais sustentáveis e

que possam garantir uma variação da matriz energética brasileira com eficiência.

A otimização energética do país é conseguida pela análise mais coerente

dos impactos socioambientais. Isto reflete significativamente nas áreas indígenas,

pois detêm uma grande diversidade de recursos naturais.

É de fundamental importância a preservação dessas áreas, não apenas pela

biodiversidade que concentram, mas porque esses elementos naturais integram o

meio cultural das comunidades indígenas. A preservação de sua cultura, então,

está relacionada às terras que habitam.

A Constituição Federal de 1988 reconhece a cultura indígena em todos os

seus aspectos e a torna especial, fundamentalmente porque é diferente e

hipossuficiente em relação à sociedade envolvente. Este é, pois, o conteúdo

jurídico de sua relevância.

Não pairam dúvidas, portanto, quanto ao seu caráter de interesse público e,

sendo assim, resta ao Estado a obrigação de preservar a cultura indígena, mesmo

quando existam outros interesses em jogo. Essa preservação, e de tudo o que ela

representa para o país em termos culturais, deve ser assimilada como relevante.

Na ausência de disposição legal que contrarie esta afirmativa, é de se questionar a

importância de outro interesse público que se possa relevar.

Levando-se em conta tudo o que foi exposto, é de se concluir pela

existência de um interesse público relevante e que o Estado precisa defender

quando da implantação de barragens hidrelétricas em terras indígenas. É, por

conseguinte, um interesse público de caráter coletivo e constitucionalmente

reconhecido: a preservação da sociodiversidade.

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