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Lacunas e Sistemas Normativos
A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
Trabalho apresentado no Seminário de Metodologia
de Análise do Direito do Curso de Doutoramento da
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
regido pelo Prof. Doutor José Lamego
Setembro de 2016
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
iii
Abreviaturas
IVA Imposto sobre o Valor Acrescentado
LPN Lógica de Proposições Normativas
LN Lógica de Normas
SDL Standard Deontic Logic
TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia
UA Universo de Acções
UC Universo de Casos
UD Universo de Discurso
UP Universo de Propriedades
US Universo de Soluções
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
v
Resumo
O problema das lacunas é um tópico clássico da teoria do direito de orientação
analítica e reclama, como ponto prévio, a resposta à questão da incompletude dos
sistemas jurídicos.
A partir da perspectiva logicista-formal de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin,
procede-se à análise das propriedades lógicas e formais dos sistemas normativos, por
forma a alcançar uma conclusão sobre a respectiva (in)completude, necessária ou
contingente, e obter um quadro definitório de lacuna normativa.
Pretende-se delimitar o conceito de lacuna normativa e distingui-la de figuras
próximas: a lacuna de conhecimento, a lacuna de reconhecimento, a lacuna axiológica e a
deficiência normativa ou lacuna de lege ferenda.
Os poderes do juiz e a base fundacional da sua decisão não são idênticos num caso
e noutro(s), pelo que a distinção não reveste implicações (apenas) teóricas.
Em jeito de nota final, apresentam-se alguns pontos de cepticismo sobre a
abordagem lógica.
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Abstract
Legal Gaps are a classical topic of analytical Legal Theory. As a preliminary point,
the question regarding completeness of the legal system has to be answered.
In this text, we analyze the logical and formal properties of normative systems,
from the formal-logic perspective of Carlos Alchourrón and Eugenio Bulygin, so as to
reach a conclusion on whether normative systems are (in)complete, and to obtain a
framework for the definition of legal gap.
The objective is to set out a clear notion of legal gap enabling to distinguish it from
other similar concepts with which it is frequently confused with: gap of knowledge, gap of
recognition, axiological gap and law’s imperfection or gap of lege ferenda.
Judges discretionary authority and the grounds for adjudication are not identical in
the case of legal gaps, thus, the distinction does not trigger (only) theoretical implications.
As a final remark, we underline some points of skepticism on the logical approach.
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I. INTRODUÇÃO
Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin reconstroem o conceito de sistemas
normativos desenvolvido pela lógica deôntica, na perspectiva de sistemas lógicos
puramente formais, com o objectivo de fornecer ao discurso normativo, que não é
estritamente formal (racional), nem estritamente empírico, uma base pré-analítica
essencial à resolução dos problemas da teoria do direito.
Partindo desta perspectiva, analisam as propriedades lógicas e formais dos
sistemas normativos - completude, consistência (ou coerência) e independência – e, em
função das conclusões alcançadas, delimitam o conceito de lacuna jurídica, inerente à
incompletude ou subdeterminação deôntica, que constitui o objecto deste texto1.
Os autores baseiam-se na distinção, que já remonta a Jeremy Bentham, entre
normas (enunciados prescritivos) e proposições acerca de normas (enunciados
descritivos) e declinam a tese da completude conceptual necessária dos sistemas
jurídicos2. Concluem pela existência de sistemas incompletos que são, aliás, a grande
maioria e o jurista é confrontado com o problema das lacunas.
A completude é, porém, admitida pelos referidos autores como atributo
contingente dos sistemas normativos e ainda como ideal racional para o qual todos os
sistemas jurídicos devem tender.
Nas ordens jurídicas modernas existem situações em que esta qualidade ideal
pode ser empiricamente verificada, como sucede com o exemplo típico do direito penal,
graças à regra de fecho do sistema (closure rule): “nullum crimen, nulla poena sine lege”3.
1 Um outro tópico que a análise dos sistemas normativos suscita é o das antinomias normativas, devidas a inconsistência ou sobredeterminação deôntica, do qual aqui não se cuida, por extravasar a problemática das lacunas. 2 Um dos seus principais percursores, Hans Kelsen, refere que “quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo realizar determinada conduta, permite esta conduta. A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível neste caso a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica – e isso também é aplicação do Direito. (…) o Direito vigente é sempre aplicável, pois não há “lacunas” neste sentido” – in Teoria Pura do Direito, 2.ª edição (1960), Tradução de João Baptista Machado, 7.ª edição da tradução portuguesa, Almedina, 2008, pp. 275-279 (excertos retirados de p. 275 e de p. 277 respectivamente). 3 Regra que consagra, no direito penal, a permissão de todas as condutas que não sejam proibidas. Salienta-se que não estamos, porém, num sistema absolutamente fechado, este só o é em relação ao universo (universo de casos
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O ideal de completude pressupõe que as normas de um dado sistema permitem
correlacionar todos os casos com alguma solução, atribuindo um significado normativo a
todas as acções humanas, numa versão do Princípio de Razão Suficiente “nihil est sine
ratione”, pressuposto usual da actividade científica, enquanto actividade racional, seja de
natureza empírica, formal ou normativa4.
Da exigência que os sistemas devam-ser (as they ought to be) completos, não
pode inferir-se, no entanto, que o sejam (as they are), mas apenas que um “bom” sistema
normativo é completo, à semelhança do que sucede com a “rule of law”, como
representação de um ideal moral de juridicidade, que não se encontra preenchido em
todos os sistemas jurídicos (degenerate law) e que pode ser subvertido sem, contudo, tais
sistemas deixarem de ser identificados com a coisa direito5.
O problema das lacunas é um tópico clássico da filosofia ou teoria do direito de
orientação analítica indissociável de uma correcta abordagem metodológica no processo
de realização do direito. É à face de uma adequada delimitação do conceito de lacunas
que se podem identificar e distinguir realidades próximas, que com aquelas não se devem
confundir.
Para além de legítimas preocupações de cariz analítico, o tema da integração de
lacunas dita desvios ao modelo tipicamente cognoscitivo e dedutivo do processo de
aplicação do direito, porquanto, à face da inevitável obrigação de julgar6, coloca o juiz na
posição de criar uma norma individual, que reveste necessariamente carácter retroactivo
relevantes) das soluções penais, pois a permissão penal não vigora noutros domínios, designadamente civis ou disciplinares. As regras de fecho ou clausura de um sistema jurídico são regras de inferência, i.e., regras de segundo nível, que se referem aos enunciados do sistema, e têm natureza supletiva, pelo que apenas se aplicam quando não se consegue inferir o carácter ou conteúdo deôntico [de obrigação, permissão ou proibição] de uma conduta. Estas regras tornam o sistema a que respeitam completo e preservam, em princípio, a sua consistência (dizemos em princípio, porque pode assim não ser nos sistemas normativos hipotéticos, sendo-o, contudo, nos sistemas categóricos). Para assegurar a consistência, as regras de fecho devem ser permissivas no sentido de “toda a acção não proibida ser permitida” – cf. Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems, Wien New York, Springer Verlag, 1971, pp. 134-144. 4 Cf. Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 6 e 171. 5 Cf. John Gardner, “Hart on Legality, Justice and Morality” in Law as a Leap of Faith, Essays on Law in General, Oxford University Press, 2012, pp. 229-235, e Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 165-180. 6 Veja-se no sistema português o artigo 8.º do Código Civil, que, sob a epígrafe “Obrigação de julgar e dever de obediência à lei” dispõe no seu número 1 que “[o] tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”.
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e não é passível de ser encarada, como preconiza a rule of law, como norma de
orientação da conduta em causa (ou, noutra perspectiva, razão para a acção), mas antes
como um ex post facto.
As lacunas põem, desta forma, à prova alguns “dogmas” tradicionais, a começar
pelo princípio da separação de poderes como limite da função jurisdicional, passando
pelo princípio da legalidade como fundamento da decisão (dever de obediência à lei) e o
princípio da não retroactividade. Razão pela qual reclamam critérios de identificação
precisos e directrizes metodológicas de preenchimento (incluindo as vinculações do juiz
no processo decisório), uma vez que as decisões dos casos omissos não assentam no
sistema primário, de fonte legislativa.
A própria lei pode prever remédios para as situações de lacuna, designadamente
através de regras semelhantes à prevista no artigo 10.º do Código Civil, ou de outras
regras de fecho do sistema. Mantém-se, mesmo nestas condições, a importância da
delimitação do conceito e a sua correcta aferição, pois destas continua a depender a
conformação material (solução) do caso.
Com efeito, quando o artigo 10.º do Código Civil, sob a epígrafe “Integração das
lacunas da lei”, determina, no seu n.º 1, que “[o]s casos que a lei não preveja são
regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos” e dispõe, no seu n.º 3, que
“[na] falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio
intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” importa precisar
o respectivo âmbito de aplicação.
Bem assim, quando, sob a égide do princípio da legalidade, numa formulação
estrita, o Código Penal Português proíbe o recurso à analogia para qualificar um facto
como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de
segurança correspondente (artigo 1.º, n.º 3), ou a Lei Geral Tributária veda a integração
analógica em matéria de incidência tributária, taxas, benefícios fiscais e garantias dos
contribuintes (artigo 11.º, n.º 4), cabe identificar se na situação em causa existe, na
verdade, uma ausência de conformação jurídica do caso, i.e., uma lacuna.
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Não é, pois, indiferente à (adequada) aplicação destas regras a correcta
identificação dos casos omissos e a sua diferenciação relativamente a outras situações.
Em matéria penal e tributária assinalam-se os efeitos permissivos resultantes do fecho do
sistema previsto em caso de lacunas, o que pode conduzir a sentidos decisórios variados,
em função da constatação ou não de uma lacuna, e, dependendo das circunstâncias, por
vezes opostos.
Distintos das lacunas são, por exemplo, os casos de indeterminação semântica,
vaguidade, ou “penumbra”. Neste ponto, e como salienta Herbert Hart, a textura aberta
do direito encerra sempre um grau de indeterminação e a incerteza constitui uma
vicissitude inevitável resultante da natureza da linguagem, suporte do direito, e dos
limites daquela.
Em geral, qualquer norma tem um núcleo central de casos nítidos, incontestáveis
(“core cases”) e, em simultâneo, uma “orla de imprecisão”, de dúvida, de variantes, que
também exigem uma classificação7. Neste sentido, segundo Hart: “There must be a core
of settled meaning, but there will be, as well, a penumbra of debatable cases in which
words are neither obviously applicable nor obviously ruled out. These cases will each have
some features in common with the standard case; they will lack others or be accompanied
by features not present in the standard case. Human invention and natural processes
continually throw up such variants on the familiar, and if we are to say that these ranges
of facts do or do not fall under existing rules, then the classifier must make a decision
which is not dictated to him”.8
Aliás, esta penumbra é, por vezes, intencional e não uma deficiência. A porosidade
dos textos legais pode ter finalidades diversas, desde logo, deixar margem de apreciação
7 Cf. Herbert Hart, O Conceito de Direito (trad. “The Concept of Law” [1961], incluindo o pós-escrito da segunda edição [1994], a cargo de A. Ribeiro Mendes), 6.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, Lisboa, pp. 134-149. Hart considera que a escolha entre alternativas abertas, nestas circunstâncias, sem prejuízo de não ser arbitrária ou irracional não é mero raciocínio silogístico e implica uma actividade judicial criadora, um acto de vontade e não mera actividade cognoscitiva. Este autor perfilha a posição de que os sistemas jurídicos comportam lacunas (incompletude) e que podem existir várias soluções para o mesmo caso, contrariamente a Ronald Dworkin que, alicerçado na sua visão interpretativa de sistema jurídico e no predicado de consistência, reclama a possibilidade de existir sempre uma e uma só solução para cada caso (one right answer), numa “resposta directa” à tese de Hart sobre a textura aberta e a inerente judicial discretion – cf. para maiores desenvolvimentos Ronald Dworkin, Law’s Empire, Harvard University Press, London, 1986. 8 Cf. Herbert Hart, “Positivism and the Separation of Law and Morals”, in Harvard Law Review, 71(4), 1958, pp. 593-629 (transcrição de p. 607).
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aos órgãos executivos (administração) ou jurisdicionais, como forma optimizada de
alcançar a justiça na geometria variável dos casos concretos. Idêntica asserção pode ser
feita a propósito das lacunas.
Importa não esquecer que a um sistema jurídico se pede que satisfaça racionais
ideais de consistência e completude, mas também de justiça. A ideia de completude pode
ser sacrificada a ideais de justiça, circunstância em que deixar lacunas é uma das opções a
equacionar pelo legislador, por considerar que a solução “geral e abstracta” gera
injustiças. Tal não significa o abandono do ideal de completude, pois o legislador pode
“delegar” que o sistema seja completado por outro órgão (administrativo ou
jurisdicional). O requisito (ideal) da completude mantém-se.
Um exemplo de indeterminação deliberada em matéria fiscal9 é-nos dado pela
norma constante do artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA. A incidência objectiva de IVA é
delimitada por dois conceitos base: as operações sobre bens (corpóreos) e as prestações
de serviços. A definição das duas tipologias de operações é realizada através de técnicas
diversas, sendo as prestações de serviços conformadas, a título residual, como quaisquer
operações efectuadas a título oneroso que não constituam transmissões, aquisições
intracomunitárias ou importações de bens (artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA), numa
formulação marcadamente abrangente e díspar daquela que, para efeitos cíveis, é a
noção de contrato de prestação de serviços constante do artigo 1154.º do Código Civil10.
O desiderato desta redacção é a aplicação do imposto ao maior número de casos
possíveis (atenta a vocação do IVA como broad based tax) e, na prática, funciona quase
como uma regra de fecho do sistema, no sentido de que tudo o que não seja enquadrável
na classificação de operação sobre bens (transmissão, importação ou aquisição
intracomunitária de bens) acaba por cair na categoria de prestação de serviços e é
tributável a esse título (embora se trate de uma “regra de fecho” impositiva e não
permissiva).
9 Sujeita aos princípios da legalidade, nas vertentes de reserva de lei e tipicidade e, por tradição, avessa ao fenómeno de integração de lacunas. 10 Segundo o qual “[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
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Se uma tal definição pela negativa pode constituir um argumento para afastar a
invocação de uma lacuna11 (colocando a discussão jurídica noutro patamar,
nomeadamente o de saber se estará observado o princípio da tipicidade perante uma tal
amplitude da “factispecies” tributária), suscita outros problemas jurídicos no plano da
individualização que têm reclamado o constante desenvolvimento jurisprudencial do
TJUE12. São, todavia, problemas distintos, cuja abordagem metodológica apresenta
contornos e soluções diferenciados.
Assim, retomando o exemplo, perante a questão concreta de saber se uma
indemnização contratual por incumprimento do período mínimo de fidelização está, ou
não, abrangida pelo campo de incidência objectiva do IVA, a resposta não deve ser
alcançada pela consideração de uma lacuna, da qual resultaria por singelo o regime de
não sujeição a imposto, mas, ao invés, pela delimitação do conceito de prestação de
serviços, no sentido de aferir se a referida indemnização pode considerar-se, e em que
condições, a contrapartida (remuneração) de uma prestação de serviços. Como é
antecipável, as soluções de um e outro caminho são bem diversas.
Contextualizámos acima o âmbito desta investigação – a completude dos sistemas
jurídicos e as lacunas sob uma perspectiva logicista-formal. Ao longo do texto,
procuraremos dar nota dos principais argumentos lógicos identificados por Carlos
Alchourrón e Eugenio Bulygin em prol da existência de lacunas e a sua correcta
demarcação. O nosso objectivo não é, contudo, puramente descritivo, pelo que na parte
final problematizamos alguns pontos em jeito de conclusão.
Cabe fazer a ressalva de que o campo de discussão do presente trabalho não versa
a questão (de índole metodológica) respeitante aos procedimentos que os juristas devem
usar (ou usam) para encontrar a solução do caso omisso e resolver uma situação de
11 O que queremos dizer é que qualquer operação/actividade que não corresponda a uma operação sobre bens estaria sempre abrangida pelo sistema, na qualificação residual de prestação de serviços. Não haveria, pois, possibilidade de lacunas. 12 São múltiplos os casos em que o TJUE tem sido chamado a pronunciar-se sobre a interpretação do conceito de prestação de serviços, pois, afinal, nem tudo é prestação de serviços à luz da Directiva que estabelece o sistema comum do IVA na União Europeia (Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006, JO L 347, de 11 de Dezembro de 2006). A título de exemplo, podem ver-se os seguintes Acórdãos do TJUE, disponíveis on line em curia.europa.eu ou em eur-lex.europa.eu, Apple and Pear, 102/06, de 08.03.88; Tolsma, C-16/93, de 03.03.94; Jürgen Mohr, C-215/94, de 26.02.96; Landboden, C-384/95, de 18.12.97; Kennemer Golf, C-174/00, de 21.03.02; SPÖ Kärnten, C-267/08, de 06.10.09; e Le Rayon D’Or, C-151/13, de 27.03.14.
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lacuna, seja ampliando o alcance das normas existentes, ou mediante a introdução de
novas normas por apelo a argumentos como a analogia, o argumento simétrico a
contrario, os princípios gerais de direito, ou natureza das coisas, entre outros.
Esta exposição situa-se numa fase logicamente anterior, a jusante, e prende-se
com a delimitação do conceito de lacuna, antecedente e condição prévia necessária à sua
concreta recognição e subsequente preenchimento.
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II. UMA ANÁLISE LÓGICA DOS SISTEMAS NORMATIVOS
1. Lógica deôntica. Normas e proposições normativas. Validade e verdade
O modelo formal de Alchourrón e Eugenio Bulygin para os sistemas normativos
assenta na lógica deôntica padrão (Standard Deontic Logic “SDL”) e no trabalho
conduzido por Georg Henrik von Wright13 que, em primeira linha, desenvolveu estudos
lógicos aplicados ao raciocínio normativo, numa derivação da clássica lógica
proposicional, adicionando ao cálculo proposicional um par de operadores deônticos
monádicos: O “é obrigatório que” e P “é permitido que”14.
A matéria-prima são as normas (prescritivas) encaradas como entidades
linguísticas, que constituem um caso particular de uso prescritivo da linguagem, numa
concepção pragmática ou expressiva15. A forma gramatical e lógica dos enunciados
jurídicos que expressam prescrições é a de orações hipotético-condicionais16. O termo
norma é empregue em sentido estrito para designar as expressões ou enunciados que
relacionam casos com soluções. Um conjunto de normas é um sistema normativo17.
A análise lógica moderna revela-se eficaz na aplicação a expressões linguísticas,
como conceitos puramente sintácticos, referidos à estrutura sintáctica da linguagem, não
a sentidos ideais, essências. Nesta medida, como sublinha José Lamego, “se a lógica trata
de relações de consequência entre uma conclusão e as suas premissas, então as técnicas
lógicas podem, em princípio, ser usadas para a “reconstrução” formal das inferências
normativas.”18
13 A obra de referência de Georg Henrik von Wright é, neste âmbito, Norm and Action. A Logical Enquiry, London, Routledge & Kegan Paul, 1963. Os autores reconhecem ainda as influências de Rudolf Carnap e Alfred Tarski, sobre o conceito de sistema dedutivo, e de filósofos do direito de matriz positivista: Hans Kelsen, Alf Ross e Herbert Hart. 14 Cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 17-34. Com desenvolvimento adicional, José Lamego, que salienta a influência do positivismo lógico de Viena sobre von Wright, in Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, no prelo. Exemplar em ficheiro informático amavelmente cedido aos alunos do Doutoramento em Direito da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do qual foi produzido este texto e que se agradece) p. 188. 15 Em contraposição, a concepção mais tradicional, de base semântica, considera as normas como entidades semânticas, de sentidos ou significados, puramente ideais ou conceptuais. Para mais desenvolvimentos sobre esta distinção veja-se José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 192. 16 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 205. Às normas hipotéticas contrapõem-se as normas categóricas. 17 Se bem que a inversa não é verdadeira, pois um sistema normativo pode conter outros enunciados para além de normas – cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit, p.15. 18 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 186.
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Contudo, como os enunciados normativos não são verdadeiros nem falsos, mas
válidos ou inválidos (por referência aos respectivos critérios de identificação e validade),
têm por esse motivo “menor” aptidão para constituírem objecto de explicação científica,
que radica em proposições verdadeiras ou falsas. Validade e verdade não são
sinónimos19.
Este obstáculo é superado através de uma lógica de proposições sobre normas,
i.e., de expressões normativas interpretadas descritivamente, às quais assiste a
qualificação de verdadeiro/falso, configurando uma Lógica de Proposições Normativas
(“LPN”)20. Neste sentido, von Wright afirma que a lógica deôntica é uma teoria de
expressões interpretadas descritivamente e acrescenta que as leis (princípios, regras) que
são específicas desta lógica respeitam a propriedades lógicas das próprias normas, que
são então reflectidas em propriedades lógicas das proposições normativas21.
O modelo em análise restringe-se às normas prescritivas, consideradas como
enunciados que se empregam para ordenar, proibir ou permitir condutas humanas (“o
que deve ser feito”). As proposições normativas são enunciados descritivos que se usam
para transmitir informações acerca das normas ou das obrigações, proibições ou
permissões por estas estabelecidas.
Merece uma breve referência outra concepção, que se designa por semântica ou
hilética, que sem prejuízo de reconhecer que às normas não assistem valores de verdade,
considera que lhes correspondem outros valores (“válido” e “inválido”) que se
comportam da mesma maneira que “verdadeiro” e “falso”. Com base nesta analogia
formal, preconiza-se a construção de uma lógica de normas. O debate entre as duas
concepções está na origem de uma conhecida troca de correspondência que, durante
anos, ocorreu entre Hans Kelsen (concepção expressiva) e Ulrich Klug (concepção
19 Hans Kelsen refere a este propósito que a ciência jurídica apenas pode descrever o Direito, ela não pode prescrever seja o que for. “[A]s proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer direitos e deveres, podem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem direitos e deveres aos sujeitos jurídicos – não são verídicas ou inverídicas mas válidas ou inválidas”. Cf. “A Teoria Pura …”, ob.cit., p. 85. 20 Não abordamos aqui a Lógica das Normas (“LN”) ou lógica normativa acolhida por Carlos Alchourrón e, mais tarde, por von Wright. Sobre este tópico, vide José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., pp. 197-198. 21 Referindo-se à lógica deôntica, afirma que esta é “a theory of descriptively interpreted expressions” - cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 134.
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semântica), em que Ulrich Klug defendia a analogia entre “validade” e “verdade” e Hans
Kelsen rejeitava a correspondência entre “validade” e “verdade” (o isomorfismo entre a
lógica das proposições normativas e a lógica das normas só seria verificável em
determinadas condições ideais que, na prática, não se constatam)22.
A lógica deôntica é um sistema lógico adequado para a reconstrução do modelo
ideal logicista-dedutivista da aplicação do direito e alinha com a tendência moderna de
prevalência do conceito de consequência dedutiva sobre princípios (axiomas ou
postulados).
Esta asserção não é prejudicada pelos recentes desenvolvimentos trazidos pela
“lógica não monotónica” ou lógica do raciocínio corrigível ou revogável (defeasible
reasoning), referente aos raciocínios cujas conclusões não estão estritamente implicadas
pela informação disponível e que podem ser corrigidos ou revogados se nova informação
for adquirida.
Como salienta José Lamego, não é necessário abandonar o quadro da lógica
clássica, que, com ligeiras adaptações, pode acolher um sistema não monotónico “em
termos de uma lógica dos condicionais revogáveis (defeasible conditionals), como
formalização lógica do reforço do antecedente normativo”. Desta forma, ao acrescentar-
se ao antecedente normativo a propriedade relevante (por exemplo, o homicida ter agido
em legítima defesa – “reforço do antecedente”), revoga-se ou corrige-se a conclusão23.
2. Concepção de sistema, sistema normativo e completude
A moderna concepção de ciência pôs em crise a clássica dicotomia aristotélica
entre, por um lado, as ciências racionais e formais, que partiam de princípios aceites
como auto-evidentes (axiomáticos) e prosseguiam por dedução lógica, regidas pelo
racionalismo e pelos postulados da evidência e da dedutividade, cujo paradigma é a
22 Cf. Hans Kelsen e Ulrich Klug, , Normas Juridicas y Analisis Logico, Centro de Estudios Constitucionales, 1988 Madrid, em especial o prólogo de Eugenio Bulygin, pp. 9-26, no qual este conclui que a concepção de Ulrich Klug reclama a elaboração de uma lógica específica das normas, passo que lhe faltou dar. 23 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 205. A lógica deôntica tradicional é uma lógica monotónica - o acréscimo de uma premissa adicional a um argumento válido resulta num novo argumento válido Num sistema lógico não monotónico o acréscimo de nova informação pode envolver a perda de validade do argumento (p. 203).
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matemática, e, por outro lado, as ciências empíricas, sob a égide do empirismo e dos
postulados de realidade e verdade.
As ciências racionais e empíricas passaram a usar o mesmo sistema dedutivo que,
entretanto, ganhou vida sem o postulado da evidência. A diferença reporta-se agora à
selecção das primeiras afirmações do sistema (axiomas). Temos, assim, problemas
empíricos, relativos à selecção da base (axiomas) do sistema, e problemas racionais ou
lógicos, relativos à dedução e consequências que se extraem dos axiomas. Estes últimos
são os problemas de sistematização que subjazem à análise lógica e à reconstrução do
raciocínio normativo.
Na ciência do direito, esta visão repercute-se no afastamento da(s) doutrina(s)
jusnaturalista(s) cimentada(s) no sistema racionalista (ideal). O direito positivo substitui o
direito natural e surge um novo conceito de sistema jurídico que provém da aceitação
dogmática das normas do legislador positivo24.
Os axiomas do sistema já não são auto-evidentes, nem imutáveis, mas normas
contingentes emanadas de seres humanos. A tarefa do jurista apresenta, neste contexto,
duas vertentes, descobrir os princípios gerais subjacentes às normas (indução jurídica) e
inferir consequências desses princípios gerais e das normas positivas a fim de resolver os
casos (genéricos e individuais).
A dogmática jurídica continua a ser uma ciência eminentemente racional (não
empírica). Com efeito, o importante não é determinar o que os juízes fazem, mas o que
devem fazer25.
24 Esta importante mudança produz-se no século XIX, com o movimento de codificação napoleónica em França, o surgimento da Escola Histórica de Friedrich Carl von Savigny na Alemanha e, no Reino Unido, as doutrinas positivistas do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Austin. Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 50-51. 25 Esta posição não é unívoca. Têm sido plúrimas as abordagens que, unificadas no seu pendor anti-formalista, ensaiaram fundar a ciência jurídica numa base empírica, a partir da primeira metade do século XX, como a escola da livre investigação científica, (François Gény), a jurisprudência dos interesses (Philipp Heck), o Movimento do Direito Livre (Hermann Kantorowicz), o realismo jurídico norte-americano (Oliver Holmes, John Gray, Karl Llewellyn, Jerome Frank), incluindo a recente vertente desconstrucionista ou pós-estruturalista (Roberto Unger, Duncan Kennedy) e o realismo jurídico escandinavo (Axel Hägerström, Karl Olivecrona e Alf Ross). Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., p.52. Note-se que a referência efectuada não tem pretensões de exaustividade.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
13
O carácter empírico de uma ciência não é, todavia, conceptualmente incompatível
com uma estrutura dedutiva face ao moderno conceito de sistema, que somente
distingue entre enunciados primitivos ou axiomas e enunciados derivados ou teoremas. O
conceito de sistema é baseado no de consequência dedutiva que passa a ocupar um lugar
central. A noção de consequência depende das regras de inferência que sejam admitidas.
Um sistema dedutivo é um conjunto de expressões que contêm todas as suas
consequências, sendo o sistema axiomático uma espécie do género sistema dedutivo, ou
seja, um conjunto de consequências de um conjunto finito de expressões ou enunciados:
a base axiomática ou a base do sistema. Qualquer conjunto de enunciados pode servir,
desde que seja finito. Os enunciados não têm de ser verdadeiros, ou independentes, ou
compatíveis. Os sistemas incompletos e/ou redundantes continuam a ser sistemas26.
Enquadrado como sistema dedutivo, um sistema normativo é definido como um
conjunto de enunciados normativos - estabelecem correlações entre casos e soluções -
que contêm todas as suas consequências. Um sistema é puramente normativo se apenas
tiver consequências normativas e não tiver consequências factuais (nenhuma expressão
factual é consequência de X). Os sistemas morais e jurídicos são puramente normativos, a
sua função é regular a conduta humana e não descrevê-la27.
O sistema jurídico ou a ordem jurídica são uma subclasse ou caso especial dos
sistemas normativos, ou seja, um conjunto de enunciados que têm consequências
normativas para um dado universo de casos e um dado universo de soluções.
A juridicidade das normas deriva da verificação do(s) critério(s) de pertença ao
sistema que, na perspectiva positivista, é um critério formal, de pedigree (seja ele uma
regra de reconhecimento, procedimental, de eficácia social ou de consenso). Renuncia-se
à definição do direito ao nível da norma jurídica, substituindo-a por uma definição ao
nível do sistema.
26 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 54-55. 27 Porém, como referem Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin um requisito não deve ser confundido com um facto. Nem todos os sistemas são puramente normativos, na generalidade os textos legais contêm inúmeros enunciados declarativos, incluindo as Constituições – cf. Normative Systems …, ob.cit., pp. 57-58.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
14
São jurídicas as normas que fazem parte desse sistema pré-estabelecido. Neste
sentido, para Joseph Raz a normatividade do direito, estando dependente das relações
internas entre os enunciados jurídicos, reconduz-se ao conceito de sistema jurídico. O
conceito de norma jurídica depende do conceito de sistema jurídico, pelo que a análise da
estrutura do sistema é indispensável para a definição de norma jurídica28. As partes
(normas) são definidas em função do todo (sistema).
A definição de sistema normativo em termos de consequências normativas
permite acomodar enunciados não normativos que fazem parte do sistema (por exemplo,
definições), sem que tenham de ser tratados como normas incompletas a exemplo de
Hans Kelsen.
O conceito de completude normativa reclama que todos os casos tenham uma
solução e que as soluções dos casos sejam tais que todas as possíveis acções sejam
determinadas deonticamente. Tem uma estrutura relacional, definindo-se em relação a
três elementos ou, melhor dito, consiste numa relação entre três conjuntos: um conjunto
de normas (um sistema normativo), um conjunto de circunstâncias fácticas ou casos
possíveis (um universo de casos) e um conjunto de respostas ou soluções possíveis (um
universo de soluções).
A plenitude do sistema ocorre se (e só se) o sistema concreto em relação a um
universo de casos e a um universo de soluções não tiver lacunas no universo de casos em
relação ao universo de soluções. Um sistema normativo estabelece uma dedução
correlativa entre os elementos de um determinado universo de casos e os elementos de
um universo de soluções.
28 Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito de sistema jurídico como sistema de normas veja-se Joseph Raz, The Concept of a Legal System, Clarendon Press, 2nd edition, Oxford University Press, 1980 (reimpressão 1997), pp. 168-170, e, sobre os critérios de pertença ao sistema vide pp. 189-196. No mesmo sentido milita a regra de reconhecimento de Herbert Hart. Diferentemente, para Hans Kelsen norma jurídica é aquela que estabelece uma sanção coercitiva, todas as normas prescrevem sanções. Assim sendo, só algumas normas se ajustam ao esquema kelseniano, que tentou ultrapassar esta “auto-limitação” com a tese das normas incompletas ou fragmentos de normas. Esta teoria não fornece nenhum critério de identidade para as normas – cf. Hans Kelsen, Teoria Pura …, ob.cit. pp. 57-59, 61-65.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
15
Em consequência, uma lacuna normativa no sistema em causa verifica-se em
relação a um universo de casos e a um universo de soluções se, e só se, a lacuna for um
elemento do universo de casos e não pertencer ao domínio do universo de soluções29.
Se a completude do sistema normativo é relativa a certo universo de casos e certo
universo de soluções, então a existência de lacunas é uma questão empírica que só pode
ser avaliada em cada situação particular.
Um sistema aberto pode ser completo relativamente a um dado universo de casos
e a um particular universo de acções, mas incompleto em relação a outros. Um sistema
fechado é necessariamente completo.
3. Problemas de sistematização. Mudanças no sistema e inalterabilidade das
regras de inferência
Cumpre traçar uma linha divisória entre os problemas lógicos relativos à
sistematização dos enunciados normativos e os problemas empíricos a respeito da
identificação prévia desses enunciados. A metodologia ocupa-se da reconstrução racional
dos procedimentos lógicos mediante os quais o cientista justifica as suas afirmações.
A primeira etapa é a identificação e selecção dos enunciados que vão constituir a
base do sistema. Este é um problema empírico. A segunda consiste na reformulação do
sistema para uma base mais simples. É uma actividade dedutiva, que não é puramente
mecânica, sendo perfeitamente compatível com o carácter criador da ciência.
A tarefa mais importante da ciência jurídica é a descrição do direito positivo, a sua
ordenação sistemática e respectiva reconstrução. A descrição do direito compreende a
operação de interpretação que consiste na determinação das consequências que se
extraem das normas (de um conjunto de enunciados de direito), para um problema ou
tópico determinado (a este nível, da ciência do direito e não da judicatura, em regra,
29 Quanto às demais propriedades do sistema, consistência e independência: (i) a primeira considera-se verificada quando um dado caso for relacionado com duas ou mais soluções e a conjugação destas não for uma contradição deôntica; (ii) a segunda verifica-se se duas normas não forem redundantes num determinado caso. Porém, como anteriormente realçado trata-se de um ideal racional e não de propriedades necessárias do sistema – cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 61-62.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
16
casos genéricos30). A interpretação é vista como a construção de um sistema dedutivo
axiomático que adopta os referidos enunciados como axiomas.
Para derivar as consequências das normas, que integram a base do sistema e que
foram previamente seleccionadas por critérios de identificação e pertença31, os juristas
utilizam um conjunto de regras de inferência. São estas que definem a noção de
consequência. O conteúdo de um sistema axiomático é determinado conjunta e
cumulativamente pelos enunciados da sua base e pelas regras de inferência aplicadas. O
seu tratamento sistemático é, porém, recente32.
O jurista não cria a base, identifica-a. O labor de sistematização consiste em
derivar as consequências. Os limites da função cognoscitiva da ciência são transgredidos
quando se invade o terreno da criação do direito que é função política que compete ao
legislador. Daí que a actividade de reconstrução do direito levada a efeito pela ciência
jurídica não possa implicar alterações ao sistema, ou seja, não deve materializar-se na
modificação, eliminação ou adição das consequências jurídicas pré-existentes.
No entanto, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin consideram um erro grave a
identificação da lógica dedutiva com uma actividade automática, como se todas as
operações no campo da lógica fossem mecânicas, visão que ignora o papel insubstituível
que a imaginação criadora desempenha nas ciências lógicas e matemáticas.
Qualquer mudança do sistema normativo significa uma alteração das suas
consequências normativas. As causas para tanto podem ser de duas ordens:
(a) A modificação da base, seja pela mudança do critério de identificação do
direito, seja pela sucessão no tempo dos enunciados válidos, por exemplo por
via de alterações legislativas; ou
30 Segundo Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 68-69, à ciência do direito interessa determinar o estatuto normativo conferido a certas condutas (universo de acções) em certas circunstâncias (universo de discurso). 31 Aqui se suscitam os clássicos problemas de filosofia do direito acerca da validade e das fontes. A selecção da matéria, sendo empírica e não lógica, está condicionada por dois factores: os enunciados de base devem ser válidos e a base deve conter todos os enunciados que tenham consequências para a matéria, com referência a um dado momento cronológico. 32 Remonta ao primeiro ensaio de von Wright sobre Lógica Deôntica: Logical Studies, Routledge & Kegan Paul, London, 1957.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
17
(b) A modificação das regras de inferência. Num certo sentido, por vezes é mais
fácil mudar as regras de inferência, dado que normalmente não são
expressamente evidenciadas, ficando implícitas, mas uma tal mudança supõe
sempre a modificação dos critérios de identificação do direito, i.e., da “regra
de reconhecimento”.
As mudanças do sistema podem acontecer por via interpretativa, com destaque
para as interpretações jurisprudenciais susceptíveis de provocar uma alteração das
consequências normativas. Vicissitude que coloca a questão de saber se, nestes casos,
estamos perante uma mudança da base ou das regras de inferência.
A ideia de que o juiz ao interpretar a lei de forma distinta modifica a lei implica
reconhecer-lhe uma função criadora do direito, “para além da função judicial”.
Por outro lado, tratar as modificações interpretativas como alterações das regras
de inferência do sistema descaracteriza a noção de consequência definitória do sistema.
As regras de inferência deixam de ser apriorísticas e convertem-se em regras
contingentes, podendo ser introduzidas a qualquer momento novas regras de inferência
ad hoc, com a eliminação das anteriores. O raciocínio normativo perde estabilidade e
torna-se arbitrário ou errático.
Como se salientou supra, a noção de consequência é central a todo o esquema
conceptual da ciência jurídica. Não pode deixar de assegurar-se o status de necessárias (a
priori) às leis que regem a noção de consequência. Isso implica que não devem ser
admitidas outras regras de inferência para além das da lógica.
De onde se conclui que, para um sistema normal, a mudança de consequências
significa uma mudança dos enunciados da base, permanecendo inalteradas as regras de
inferência33.
33 Cf. com maior aprofundamento Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 91-94.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
18
4. Síntese do modelo
4.1. Caracteres ou operadores deônticos
Existem diferentes sistemas de lógica deôntica, sendo o mais comum o que se
baseia nos caracteres normativos “P” (permitido), “O” (obrigatório), “Ph” (proibido) e “F”
(facultativo). Um problema normativo é uma questão sobre o estatuto deôntico de
determinadas acções ou condutas. Estas podem ser permitidas, obrigatórias, proibidas ou
facultativas.
Enunciado deôntico é toda a expressão formada por um operador (caracter ou
modalidade) deôntico, seguido de um conteúdo também ele deôntico, desde que não
seja tautológico (redundante) ou contraditório (inconsistente: “é proibido R” e “é
obrigatório R”).
Adopta-se “P” como operador primitivo e assume-se que todos os outros podem
ser definidos em função de “P”. Se do conjunto de expressões deônticas excluirmos
aquelas que são tautológicas ou contraditórias obtemos um conjunto de afirmações
designadas soluções.
Solução é uma expressão deôntica, não tautológica nem contraditória, uma
modalização dos elementos do universo de acções (“UA”) configurado através de acções
genéricas (tipificadas e não individuais).
Existe um subconjunto de expressões deônticas que se designam constituintes
deônticos, precedidos do operador “P” ou “~P”. Qualquer permissão ou proibição de uma
descrição de situação (state-description) é um constituinte deôntico. Para qualquer
descrição de situação podemos construir dois constituintes deônticos: a sua permissão ou
proibição (par deôntico).
São os elementos do universo de soluções (“US”) que determinam se o sistema é
completo. As normas são completas quando relacionam os casos de qualquer tipo com
uma solução plena. Quando a solução é parcial as normas chamam-se incompletas.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
19
4.2. Âmbito fáctico
O modelo dos “Sistemas Normativos” é construído a partir da reprodução de um
problema real de direito civil argentino, a aquisição do direito de propriedade de um
imóvel por um terceiro, tendo a transmissão sido efectuada por quem não era o legítimo
proprietário (problema também versado no direito português encontrando-se na origem
da figura da aquisição tabular). As possíveis soluções equacionadas variam em função de
determinados elementos reputados relevantes (propriedades), como a boa ou má fé do
putativo transmitente; a boa ou má fé do adquirente e o carácter oneroso ou gratuito do
acto translativo.
Neste caso, saber se a restituição do bem é obrigatória é determinar o estatuto
deôntico da acção.
O âmbito fáctico do problema é-nos dado, por um lado, por um conjunto de
acções básicas (no sentido de que as demais são compostos veritativo-funcionais
daquelas) que constitui o universo de acções e, por outro lado, pelo conjunto de
circunstâncias factuais ou estado de coisas cujos elementos têm uma determinada
propriedade (boa fé, má fé, posse, carácter oneroso ou gratuito, entre outros) que
constituem o universo de discurso (“UD”). No caso, o universo do discurso corresponde às
circunstâncias em que a restituição pode ter lugar.
Cada propriedade divide os elementos do UD em duas classes, a que tem a
propriedade e a que não a tem: “F” e “~F” (esta última negação da propriedade em causa,
propriedade complementar, ou complimentary property). Na teoria dos conjuntos,
corresponde à diferença de conjuntos, ou seja ao conjunto de elementos de B que não
estão em A.
À soma das propriedades presentes ou ausentes dos elementos de um UD dá-se o
nome de universo de propriedades (“UP”). A selecção (pelo legislador) das circunstâncias
relevantes para decidir se deve ou não ocorrer a restituição do imóvel pelo terceiro
adquirente, é uma escolha valorativa e não um problema lógico.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
20
Quando a propriedade definidora é uma conjunção que contém todas as
propriedades do UP ou as suas negações (mas não ambas) o caso definido por essa
propriedade é elementar. O conjunto dos casos elementares é o universo de casos (“UC”).
O número de casos elementares possíveis pode determinar-se facilmente pois é função
das propriedades do UP e determina o âmbito fáctico do problema. No exemplo
concreto, trata-se dos casos em relação aos quais procede a pergunta acerca da
obrigatoriedade de restituição do imóvel por parte do terceiro adquirente ao seu legítimo
proprietário.
Se a noção de plenitude de sistema implica que este resolve todos os casos
possíveis que constituem o universo de casos, o conceito de caso tem de ser restringido,
eliminando as situações de casos impossíveis (contraditórios) e tautológicos
(necessários)34.
A análise lógica postula ainda a distinção entre casos genéricos e casos individuais.
Temos três sentidos de casos genéricos: (i) casos genéricos do universo de discurso
(subclasses do UD); (ii) casos genéricos do universo de casos; ou (iii) simples casos
genéricos (propriedades).
Os casos são caracterizados como propriedades. Qualquer propriedade pode ser
usada para formar uma classe de coisas dentro de um dado universo de coisas: todas as
coisas que nesse universo apresentem tal propriedade. As coisas que não tiverem essa
propriedade formam uma complementary class (classe complementar).
As propriedades podem ser usadas para classificar os elementos de qualquer
universo. Os casos também podem ser usados para classificar os elementos do universo
de discurso. Os elementos do universo de discurso são casos individuais.
34 O que implica que as propriedades do Universo de Propriedades, do qual provém o UC sejam logicamente independentes; que todos os elementos do UD têm de ter alguma propriedade do UP e que nenhuma das propriedades é logicamente vazia (impossível) mesmo que, de facto, não seja exemplificada. Existem casos de UC caracterizados não por um conjunto finito de propriedades, mas através de um valor numérico, por exemplo, a taxa de IRS %. Estas situações dão origem a um número infinito de casos o que não implica que seja impossível resolvê-los todos. Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin Normative Systems …, ob.cit., pp. 21 e 26-27.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
21
Um caso individual do universo de discurso pertence necessariamente a um, e só
um, dos casos genéricos determinados pelo universo de casos. Assim, a solução de todos
os casos (genéricos) do universo de casos também resolve todos os casos individuais do
universo de discurso.
É este processo que possibilita o fenómeno legislativo através do qual se emitem
normas gerais para resolver casos individuais. Uma norma geral é aquela que correlaciona
um caso genérico com uma solução. Indirectamente, essa norma também resolve todos
os casos individuais que pertençam ao caso genérico. O legislador pode resolver um
número infinito de casos através de um número finito de normas.
A lacuna normativa ocorre se (e só se) o legislador não resolver um caso genérico.
O problema da completude surge ao nível dos casos genéricos e não dos casos
individuais, confusão que gera afirmações do género que as lacunas existem porque o
legislador não consegue prever toda a infinita variedade de casos possíveis35.
A infinita variedade de casos é irrelevante para o problema da completude. O
legislador não necessita de prever todos os casos individuais, uma vez que ele não emite
normas para cada caso individual. A sua função consiste em criar normas genéricas que
resolvam casos genéricos. A mesma conclusão resulta da investigação que Donato Donati
desenvolveu sobre o problema das lacunas, em 1910, reconhecendo que todos os casos
possíveis podem ser previstos, se não particularmente, pelo menos como género36.
A subsunção dos casos individuais nos casos genéricos gera os problemas de
penumbra que não devem confundir-se com os problemas de completude normativa. As
locuções “lacuna de conhecimento” (gap of knowledge) e “lacuna de reconhecimento”
(gap of recognition) aludem a questões distintas das lacunas normativas (normative
gaps).
35 Herbert Hart tece uma afirmação semelhante: “os legisladores humanos não podem ter tal conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer”. Cf. O Conceito de …, ob.cit., p. 141. E, bem assim, Hans Kelsen: “A norma jurídica geral positiva não pode prever (e predeterminar) todos aqueles elementos que só aparecem através das particularidades do caso concreto”. Cf. A Teoria Pura …, ob.cit., p. 274. 36 Para maiores desenvolvimentos, Donato Donati, Il Problema delle Lacune dell’Ordinamento Giuridico, Societa Editrice Libraria, 1910, Milano.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
22
4.3. Âmbito normativo
O âmbito normativo de um problema é-nos dado pelo universo de respostas
possíveis. Uma resposta satisfatória é uma solução do problema. Toda a acção de um UA
(e todo o composto veritativo funcional de tais acções, sempre que não seja tautológico
nem contraditório) reveste conteúdo normativo ou deôntico. No exemplo versado,
“Acção R = restituição do imóvel”, ou “Acção ~R = não restituição do imóvel”.
Toda a solução determina deonticamente algum conteúdo.
Quando a solução determina todos os conteúdos que correspondem a um
universo de acções dizemos que é uma solução maximal. O conjunto de soluções
maximais relativas a um UA é o universo de soluções maximais, ou seja, o conjunto de
todas as respostas completas à questão. Neste caso, todas as acções possíveis estão
deonticamente determinadas. Se assim não for, a resposta ou solução é parcial: há pelo
menos uma acção cujo estatuto deôntico não foi determinado.
5. Regras de fecho dos sistemas. O princípio da proibição. Interdefinibilidade
entre permitido e proibido, permissão forte e permissão fraca
Os sistemas normativos não são necessariamente fechados, contudo, é possível o
seu fechamento.
Uma das formas de alcançar a clausura do sistema é através do fechamento dos
casos, i.e., pressupor um conjunto limitado de casos e um conjunto limitado de soluções,
em que todos e cada um dos casos está relacionado com uma solução. No entanto, feito
desta forma, não há qualquer garantia de que o sistema, completo relativo ao universo de
casos e de soluções escolhidos, permaneça completo relativamente a variações destes ou
com referência a outros universos.
Outra modalidade passível de maior sucesso é o fecho do sistema através de uma
regra que qualifique deonticamente todas as acções que não tenham sido qualificadas
pelo sistema em apreço, conforme sucede com o denominado princípio da proibição,
segundo o qual tudo o que não for proibido é permitido. Joseph Raz entende que esta
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
23
tese é válida independentemente do conteúdo que os sistemas jurídicos possam ter:
“[A]ccording to every momentary legal system, every act-situation which is not prohibited
by a specific law of the system is permitted”37.
Os lógicos discordam no que se refere à questão de saber se todo e cada operador
deôntico pode ser definido um em relação ao outro. A definição de proibição em termos
de obrigação (e negação) é incontroversa, mas a definição de permissão em termos de
obrigação (e negação) é mais problemática.
Se os operadores “permitido” e “proibido” forem interdefiníveis, ou seja, se se
considerar que “permitido” significa “não proibido” e que “proibido” significa “não
permitido”, então a afirmação de que os sistemas normativos são sistemas fechados é
trivial e o princípio da proibição limita-se a expressar uma verdade necessária.
Numa primeira fase, é esta a conclusão a que chega von Wright, mas dada a
evidência factual das lacunas, na sua obra Norm and Action rejeita a interdefinibilidade e
considera a permissão um operador deôntico autónomo: “[The] view that a permission to
do a certain thing is the same as the absence or lack of a prohibition to do this thing is
common. I have accepted it myself in previous publications. It seems to me, however, that
this view is in serious error, for a variety of reasons”38. Mais tarde, volta a aceitar a
interdefinibilidade, mas distingue seis conceitos diferentes de permitido e de proibido,
considerando que os sistemas abertos se verificam quando os conceitos de permitido e
proibido em causa não sejam correspondentes39.
Segundo Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, as dificuldades de von Wright
prendem-se com o facto de este abraçar a tese de que a interdefinibilidade de
“permitido” e “proibido” implica que os sistemas normativos são necessariamente
fechados. No entanto, apesar de, do ponto de vista analítico, o princípio da proibição ser
verdadeiro, não fecha o sistema.
37 Cf. Joseph Raz, The Concept of …, ob.cit., pp. 169-170. 38 Cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 87-88. 39 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 119-120.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
24
Para esclarecer este ponto, retoma-se a distinção fundamental acima escrutinada
entre normas e proposições normativas. Relativamente às normas, verifica-se a
interdefinibilidade dos três caracteres normativos: “permitido”, “não obrigatório”, ou
“não proibido”. Eles são equivalentes e significam o mesmo.
Quanto às proposições normativas a situação é distinta. Dizer que uma acção está
proibida num dado sistema corresponde a afirmar que a norma que a proíbe faz parte
desse sistema ou que é uma consequência do sistema. Essa norma pode expressar que a
acção é “proibida” ou que a acção “não é permitida”. Se do sistema se infere uma norma
que permite a acção, dizemos que ela está permitida no sistema e a norma pode
expressar-se de formas diferentes: a acção “é permitida” ou “não proibida”.
Os conceitos de permissão e proibição aqui em causa são os de permissão forte e
proibição forte, aplicáveis quando no sistema existe uma norma que permite ou proíbe a
acção.
Adicionalmente, cumpre fazer uma distinção entre os caracteres das normas e os
caracteres das condutas. Os caracteres das condutas são elementos das proposições
normativas, os caracteres normativos são elementos das normas. A permissão ou
proibição forte não constituem um caracter da norma, mas da conduta regulada.
Permitido e proibido como caracteres das normas são conceitos contraditórios. Mas a
permissão forte e a proibição forte, enquanto caracteres das condutas, não são
contraditórias, pois cabe uma terceira possibilidade: que do sistema não se possa inferir
nem a permissão, nem a proibição da conduta. É justamente o que se constata quando
entre as consequências do sistema não figura nenhuma norma que permite ou que
proíbe a acção.
Os dois enunciados “do sistema infere-se uma norma que permite a acção” e “do
sistema infere-se uma norma que não permite a acção (que a proíbe)”, não são
contraditórios, nem sequer opostos. Os dois enunciados podem ser ambos falsos, como
também podem ser ambos verdadeiros. Nesta última hipótese, não se trata de uma
impossibilidade, implica apenas que o sistema em causa é inconsistente, pelo menos num
caso, já que as normas “a acção é permitida” e “a acção não é permitida” são, sem
dúvida, contraditórias.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
25
O facto de um sistema conter normas inconsistentes (contraditórias) não implica
que as proposições normativas que descrevem este sistema sejam inconsistentes. Não há
nada de paradoxal numa descrição consistente de um sistema inconsistente.
Se se considera que uma acção é permitida só porque não há uma norma a proibi-
la, estamos perante uma permissão fraca (exprime um facto negativo).
Outra das características das proposições normativas é a possibilidade de dois
tipos de negação. Quando o que é negado não é a proposição mas a norma por aquela
referida estamos perante uma negação interna. Pode também existir a própria negação
da proposição normativa e aí fala-se de negação externa. A título de exemplo, a negação
externa da proposição “a norma que permite a acção é uma consequência do sistema” é
“a norma que permite a acção não é uma consequência do sistema”. A proposição
normativa não é incompatível com a sua negação interna, mas já o é com a sua negação
externa.
A negação interna da proibição forte é uma permissão forte: dizer que a norma
que não proíbe a acção (permite a acção) se infere do sistema ou é uma consequência
deste, é o mesmo que dizer que a acção é permitida no sentido forte.
Porém, a negação externa de um enunciado que afirma a proibição forte da acção
não significa que a acção seja permitida no sentido forte. Este enunciado limita-se a dizer
que uma certa norma (de proibição da acção) não se infere do sistema, mas deixa em
aberto a questão de saber se entre as consequências do sistema existe alguma outra
norma que se refira àquela acção. A acção pode estar permitida no sentido forte
(existindo uma norma que permite a acção) ou ser apenas permitida em sentido fraco
(não existindo nenhuma norma do sistema que permita a acção). Esta última situação
denomina-se “permissão fraca”, o que equivale a dizer que no sistema não existe uma
norma que proíba a acção.
A permissão fraca é um caracter da conduta e não da norma. A diferença da
permissão forte é que esta manifesta um facto positivo (a existência de uma norma
permissiva) e a primeira apenas alude a um facto negativo (a inexistência de norma
proibitiva).
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
26
David Duarte salienta a este respeito que a teoria das permissões fracas e fortes
tem-se mantido, ao longo do tempo, como o principal suporte da negação da
interdefinibilidade40 e, alicerçado na norma permissiva geral, extrai a interessante ilação
de que as “normas de obrigação, quer se trate de normas de proibição ou de normas de
imposição, são todas, por isso, normas excepcionais, na medida em que o respectivo
domínio material conduz à produção de efeitos de sinal contrário aos que decorreriam da
aplicação da norma permissiva”41.
O princípio da proibição, no sentido de que o que não é expressamente proibido
(forte) é permitido (fraco), é verdadeiro, mas tautológico e compaginável com a
existência de lacunas, pois não tem por efeito fechar o sistema. De facto, se a lacuna é um
caso não correlacionado pelo sistema com uma solução, então a permissão fraca
consubstancia uma verdadeira lacuna42.
Uma outra leitura possível do princípio da proibição, que não é a adoptada, faz
derivar de tudo o que não for proibido no sentido forte uma permissão, também no
sentido forte, implicando que a permissão passe a ser uma consequência do sistema43.
Nesta acepção, o princípio não é necessariamente verdadeiro, é uma proposição
contingente, pois só seria verdadeiro se todos os sistemas normativos fossem
absolutamente fechados, completos na relação entre qualquer universo de casos e
qualquer universo de soluções.
Existem autores para quem não existem lacunas porque entendem que o sistema
jurídico providencia os meios necessários para as eliminar. Tal asserção evidencia uma
40 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da Interdefinibilidade dos Modos Deônticos em Alf Ross: a Crítica, a Inexistência de Permissões Fracas e a Completude do Ordenamento em Matéria de Normas Primárias”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLIII, N.º 1, Coimbra Editora, 2002, pp. 257-281. 41 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da …”, ob.cit., pp. 279-280. 42 Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin reconhecem que é teoricamente possível definir lacuna como um caso que o sistema não correlaciona com uma solução e que não beneficia de uma permissão fraca. Neste caso, não haveria lacunas. Mas isso seria um “definitional stop” nas palavras de Herbert Hart, ou seja, definir-se-ia o conceito de modo a que a lacuna fosse logicamente impossível, o que não tem qualquer sentido útil. Cf. Normative Systems …, ob.cit., pp. XX. 43 Esta era a posição inicial de Hans Kelsen para quem a completude do sistema era retirada do princípio da proibição, no sentido de permissão forte. No entanto, na 2.º edição da Teoria Pura do Direito (1960), acaba por adoptar o sentido de permissão fraca, mantendo que não há lacunas, porquanto, apesar de aí não se aplicar uma lei específica, se aplicar a ordem jurídica como um todo. Kelsen baseia aquele princípio na concepção do “mínimo de liberdade” – cf. Teoria Pura …, ob.cit., pp. 47 e 275.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
27
contradição nos próprios termos. A possibilidade de eliminar e colmatar lacunas não
implica que elas não existam, pelo contrário, pressupõe precisamente a sua existência.
Outros afirmam que não há lacunas porque há juízes e estes terão de decidir o
caso. Que os juízes têm que decidir não é disputável. O que interessa, porém, saber é
como é que o juiz pode resolver este caso, com que fundamentos e que directrizes e
vinculações deve observar. A obrigação de julgar que impende sobre os juízes nada
acrescenta acerca das lacunas e sobre a forma de resolver os casos não previstos. Como
refere Joseph Raz, se a tese das fontes reclama que (apesar das lacunas) existe jurisdição,
terá de explicar como é que essa jurisdição deve ser exercida.44
Uma outra corrente considera que a legislação pode ser incompleta, mas que
existe um conjunto de enunciados (como, por exemplo, os princípios de direito natural)
que, em articulação com as leis, completam o sistema. É o domínio da tese da plenitude
hermética do direito. De novo, em rigor esta tese não contradiz que as lacunas tornam o
sistema incompleto. A resolução do problema das lacunas, dentro do sistema ou por
apelo a outro sistema (por exemplo, o direito natural, ou a natureza das coisas) é uma
questão distinta e fora do âmbito da análise lógica do sistema.
6. As lacunas
6.1. Reconstrução do sistema normativo – corolários
Do modelo lógico desenvolvido por Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin,
emergem importantes conclusões para a dilucidação do problema das lacunas e o
estabelecimento de limites conceptuais coerentes:
i) Uma lacuna normativa ocorre quando a um caso não corresponde, no sistema
dado, qualquer solução;
ii) Um sistema normativo é incompleto se (e só se) tiver pelo menos uma lacuna. Um
sistema que não tenha lacunas é completo;
44 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons, Sources and Gaps, in The Authority of Law, Essays on Law and Morality, Oxford University Press, 1979, p. 54.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
28
iii) As lacunas e as inconsistências são fenómenos distintos. O sistema normativo é
inconsistente se (e só se) existirem duas ou mais soluções incompatíveis para o
mesmo caso;
iv) A questão acerca de existência de lacunas é sempre relativa a um sistema
normativo. O mesmo caso pode ter soluções distintas em sistemas diferentes.
Determinar se um caso tem uma solução implica, primeiro, identificar as
normas do sistema, a amplitude de casos possíveis (o universo de casos) e de
soluções possíveis (o universo de soluções).
6.2. Distinção entre lacunas normativas (problema lógico), lacunas de
conhecimento e lacunas de reconhecimento (problemas de aplicação)
Como tem sido mencionado, do ponto de vista lógico, uma lacuna normativa
ocorre quando a um caso não corresponde, no sistema dado, uma qualquer solução.
Existem, no entanto, determinados problemas que têm sido tratados a propósito
das lacunas e que não se enquadram nesta definição. Tais problemas colocam-se num
plano distinto.
Antes de mais, convém fazer a destrinça entre os problemas conceptuais que
surgem no plano dos casos genéricos e das normas genéricas, daqueles problemas
empíricos e semânticos que decorrem da aplicação das normas individuais aos casos
individuais, que constitui tarefa do juiz.
A classificação dos casos individuais como pertencentes aos casos genéricos
resulta do processo de subsunção. Neste âmbito, as dificuldades podem surgir
dificuldades por duas razões:
(a) Por falta de informação relativa a um facto relevante (gap of knowledge),
configurando um problema empírico derivado da ignorância sobre alguma(s) da(s)
propriedades do facto: desconhece-se se um determinado caso individual
pertence a um caso genérico o que causa dificuldades na classificação. Esta
dificuldade pode ser (e em regra é) tecnicamente resolvida por recurso a
presunções e regras sobre o onus probandi; ou
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
29
(b) Por indeterminação semântica ou vaguidade dos conceitos (gap of recognition).
Aqui, trata-se de condicionantes de natureza empírico-semântica, que temos
referido como situações de penumbra. Em virtude da indeterminação semântica
de conceitos que caracterizam um caso genérico, não sabemos se um específico
caso individual pertence a um determinado caso genérico.
As lacunas normativas não se enquadram em nenhuma destas espécies. Uma
lacuna normativa é um problema conceptual de ordem lógica.
Numa posição próxima, Karl Engisch preconiza que “já não deveria falar-se de
lacuna quando o legislador, através de conceitos normativos indeterminados, ou ainda
através de cláusulas gerais e cláusulas discricionárias, reconhece à decisão uma certa
margem de variabilidade”45.
O facto de um sistema ser normativamente completo no sentido de que resolve
todos os casos possíveis, sejam genéricos ou individuais, não exclui a possibilidade de
lacunas de reconhecimento ou de conhecimento, o que não significa que o caso não
esteja resolvido no sistema.
Questão autónoma, de natureza axiológica, é a de saber se o caso está bem ou
mal resolvido (se a solução normativa é boa ou má), que se aborda de seguida.
6.3. O problema das lacunas axiológicas. A Tese e a Hipótese de Relevância
Considera-se que dois casos têm um estatuto normativo idêntico quando estão
relacionados com as mesmas soluções ou (ambos) não estão com nenhuma. Têm um
estatuto normativo diferente quando uma dada solução está relacionada com um dos
casos e não com o outro.
Uma propriedade é relevante quando, num determinado estado de coisas, um
caso e o seu correlativo caso complementar têm um diferente estatuto normativo. A
45 Cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, Tradução de J. Baptista Machado, 9ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, Lisboa, pp. 280.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
30
relevância da propriedade é uma (mera) constatação de facto (usa-se aqui o sentido
descritivo, pois numa acepção prescritiva, significaria que algo deveria ser relevante).
A Tese da Relevância é a proposição que identifica o conjunto das propriedades
que “são” relevantes em relação a um universo de acções. A Hipótese de Relevância é a
proposição que identifica as propriedades que “devem ser” relevantes para um universo
de acções.
A questão de saber se uma propriedade deve ser relevante para um universo de
acções é um problema axiológico, supõe um critério de valor (que pode ser subjectivo ou
objectivo, não é isso que está em causa).
Considera-se que um sistema normativo satisfaz o critério de adequação
axiológica dado por uma Hipótese de Relevância se (e só se) a sua Tese de Relevância
coincidir com a Hipótese de Relevância em questão.
Esta é uma condição necessária da adequação, porém, não suficiente. Com efeito,
um sistema para o qual sejam relevantes todas as propriedades que o devam ser pode
não correlacionar alguns casos com as soluções e, neste sentido, pode prever soluções
desajustadas. Deste modo, um sistema normativo pode ser axiologicamente
desadequado (injusto), seja porque (a) não se adequa à Hipótese de Relevância
(selecciona mal os casos); seja porque (b) não relaciona os casos com as soluções devidas,
ou seja, por resolver “mal” os casos que foram correctamente seleccionados (neste caso,
não se verifica qualquer lacuna).
Utiliza-se com frequência a expressão lacuna para designar situações em que a lei
prevê uma solução axiologicamente desadequada, porque o legislador não teve em
conta, no sentido de não ter previsto, uma distinção que deveria ter sido atendida. O
legislador não considerou uma dada distinção ou característica, porque não antecipou a
propriedade em causa, pois se a tivesse considerado não teria dado uma solução
genérica, mas uma solução diferenciada e específica.
É o que sucede quando uma propriedade deva ser relevante para o sistema de
acordo com a Hipótese de Relevância, mas não o seja, de facto (de acordo com a Tese da
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
31
Relevância). Ocorre, nestas circunstâncias a chamada lacuna axiológica que cumpre, de
igual modo, distinguir da lacuna normativa (esta última determinada pelo facto de a lei
não fornecer solução ao caso).
Para a existência de uma lacuna axiológica é necessário que o caso tenha uma
solução, de outro modo seria uma lacuna normativa e estes são conceitos mutuamente
exclusivos e logicamente incompatíveis.
Acresce que a propriedade valorada como relevante tem de ser irrelevante para o
universo de acções e não apenas para o caso em questão. Pois se essa propriedade for
relevante para outros casos do mesmo universo de acções (embora não o seja para esse
caso específico), então não se pode afirmar que a propriedade não foi prevista ou
considerada pelo legislador. Esta situação não se enquadra na definição de lacuna
axiológica, pois o legislador, sabendo e ponderando a propriedade não a quis atender,
deu deliberadamente uma solução injusta. Não existe aqui uma lacuna, mas um defeito
axiológico do sistema.
6.4. O espaço livre do direito
Uma das críticas dirigida ao modelo lógico de sistemas normativos é a de que nos
casos não regulados pelo legislador não existe critério de distinção entre aqueles que o
direito pretende regular, mas não regula, e aqueles que não regula, nem quer regular
(que “não interessam ao direito”). Fernando Atria considera que, ou bem se aceita que
devemos distinguir estas duas categorias de casos, ao que atribui a consequência de,
nestes termos, ser rejeitada a proposição positivista do direito, ou bem que não se aceita
e não é possível distinguir os dois tipos de casos, caindo-se no formalismo (o direito
pretende regular apenas os casos que efectivamente regula) ou no cepticismo (o direito
pretende regular todos os casos)46.
José Juan Moreso realça, em discordância com o argumento, que o mesmo ignora
que os casos são definidos em função das propriedades que, em conformidade com as
fontes admitidas como válidas para a produção do direito, possuem relevância normativa
46 Cf. Fernando Atria et alii, “Réplica: entre Jueces y Activistas Disfrazados de Jueces”, in Lagunas en el Derecho, Marcial Pons, 2005, Barcelona, pp. 159-183.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
32
e não estão correlacionados com nenhuma solução. Deste ponto de vista, nem toda a
situação em que uma conduta não está proibida nem permitida positivamente é uma
lacuna normativa47.
O problema é antigo e foi objecto de reflexão sendo conhecido através de
múltiplas designações (“espaço livre de direito”, “espaço de indiferença normativa”,
“espaço de irrelevância jurídica ou rechtsleerer raum”, entre outros).
A este respeito compulsa-se o entendimento de David Duarte para quem o
ordenamento é naturalmente incompleto, mas a sua incompletude apenas se manifesta
nas normas secundárias, que se reportam a outras normas, ou seja, quando não existe ou
é limitada a ordenação que permite a aplicação de uma norma que carece de outra para
cumprir a sua tarefa de regulação. A lacuna só existe relativamente a insuficiências que
resultem da falta regulativa de uma norma secundária, prescindindo-se das considerações
tradicionais que eram necessárias para a diferenciar do espaço de indiferença
normativa48.
6.5. Cotejo de alguma doutrina
Na teoria jurídica é frequente confundirem-se lacunas normativas e axiológicas e
outros tipos de defeitos axiológicos, misturando problemas de valor e questões
puramente lógicas. Esta confusão é apontada pela doutrina alemã, sem prejuízo de, não
raro, na sua concretização, os autores alemães acabarem por recorrer, de forma
desconcertante, a critérios valorativos.
Karl Engisch pressupõe logicamente o conceito de lacuna que qualifica como uma
deficiência do direito positivo. A lacuna é uma “incompletude insatisfatória no seio do
todo jurídico”, quando o direito não dá resposta a uma questão jurídica49 e implica a
47 José Juan Moreso, “A Brilliant Disguise: entre Fuentes y Lagunas”, in Lagunas en el Derecho, Marcial Pons, 2005, Barcelona, pp. 185-203. 48 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da …”, ob.cit., p. 279. 49 Cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento …, ob.cit., pp. 276-277. O autor procede a diversas classificações de lacunas: (i) de lege lata ou do direito vigente vs. de lege ferenda, estas últimas correspondentes a deficiências da lei e não à falta de solução, pelo que não as considera verdadeiras lacunas; (ii) voluntárias (intencionais) vs. involuntárias (situações não previstas pelo legislador); (iii) primárias ou originárias vs. secundárias ou supervenientes em virtude da modificação de valorações ou das circunstâncias de facto relativas ao objecto da regulamentação. Relativamente às denominadas “lacunas de colisão”, estas inserem-se na temática das antinomias normativas. Existindo uma contradição
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
33
integração do direito (praeter legem, supplendi causa).
Avaliar se a incompletude é “insatisfatória” apela a uma valoração e o problema
de saber se existe ou não uma solução dada pelo sistema não é, na esteira de Carlos
Alchourrón e Eugenio Bulygin, um problema valorativo é um problema lógico50.
Para Karl Engisch ao discordarmos de uma determinada solução podemos falar de
uma lacuna político-jurídica não autêntica, de lege ferenda, mas não de uma lacuna
verdadeira do direito vigente, de lege lata. Curiosamente, como apontam Carlos
Alchourrón e Eugenio Bulygin, o exemplo citado pelo autor como típico caso de lacuna é
um ostensivo caso de lacuna axiológica (solução insatisfatória porque o legislador não
previu a característica ou propriedade) e não de uma lacuna normativa (ausência de uma
solução). Estava em causa um caso relativo a um aborto (tipificado como crime na lei
penal) realizado por prescrição médica para salvar a vida da mulher. A lei efectivamente
dava uma solução (punindo a conduta) que, porém, o tribunal achou injusta.
A mesma ambivalência surge noutros autores alemães como Karl Larenz. Para
Larenz a incompletude insatisfatória que reclama o conceito de lacuna (e a sua ulterior
integração) é aquela imperfeição que é contrária ao plano do legislador, lacuna e silêncio
não são a mesma coisa51. Porém, a constatação de uma lacuna exige uma valoração
crítica da lei segundo a pauta da sua própria teleologia e do princípio do tratamento igual
daquilo que tem igual sentido.
Deste modo, Karl Larenz convoca critérios axiológicos (descobrir “o plano do
legislador” e a pauta valorativa que lhe subjaz) para a determinação do que é uma lacuna,
numa intersecção que obscurece a destrinça entre problemas lógicos e valorativos, e
sustenta que a analogia e a redução teleológica (operações normalmente equacionadas
no ulterior processo de preenchimento da lacuna) são essenciais à própria fase preliminar
de constatação das lacunas, concluindo que uma lei só pode conter lacunas sempre e na
insanável entre normas, caso que Karl Engisch considera “deveras raro”, e concluindo-se que as normas devem ser invalidadas (nenhuma prevalece sobre a outra) surge a lacuna de colisão que deve ser colmatada segundo os princípios gerais do preenchimento das lacunas – cf. pp. 275-325. 50 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp.110-111. 51 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, Trad. José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, Lisboa, p. 525.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
34
medida em que falte pelo menos uma regra que se refira a uma questão que não tenha
sido deixada ao “espaço livre do Direito”, enquanto sector que a ordem jurídica deixa por
regular. A solução do problema da lacuna contribui, nesta visão, para a identificação do
mesmo52.
Nesta medida, como o próprio reconhece, só se consegue saber se é uma lacuna
contrária ao plano (ou não) através de um juízo de valoração e não de um juízo sobre
factos ou de uma conclusão lógica (em sentido similar, como se verá adiante, se
pronuncia Riccardo Guastini). A existência ou não de lacuna há-de aferir-se do ponto de
vista da intenção reguladora da lei, dos fins com ela prosseguidos e do plano legislativo
(interpretação histórica e teleológica)53.
Nos casos em que uma norma específica é inexequível e não pode ser aplicada
sem que se acrescente uma nova norma (existe uma norma, porém está incompleta), Karl
Larenz fala de “lacunas normativas”. Contudo, na maior parte das situações, ocorre uma
falta de regulação global (não apenas parcelar) de um problema jurídico, em que a
situação de facto é desprovida de qualquer consequência jurídica. Verifica-se aqui o que
designa por “lacuna de regulação”.
Se a lei não está incompleta, mas defeituosa, por falha de política legislativa, não
pode a questão ser tratada por intermédio da integração de lacunas, não é lícito ao
tribunal completar a lei. A falta de um instituto tão pouco se deve considerar uma “lacuna
do Direito” quando se refere a uma decisão consciente do legislador, que a deixa por
regular e a adscreve ao “espaço livre do direito”. Nestes pontos, não há dissonância da
análise lógica de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin.
Sobre a contraposição entre “lacuna da lei” e “lacuna do Direito”, Karl Larenz
considera que só se pode falar de plano em relação à lei e não à ordem jurídica no seu
conjunto, razão pela qual um sistema aberto não se coaduna com lacunas do Direito e
não se pode deduzir uma faculdade (ou até obrigação) da jurisprudência de colmatar tais
“lacunas de Direito”, que colidiria com o primado de criação das normas pelo legislador54.
52 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 569-570. 53 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 529-532. 54 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 533-535.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
35
Quanto à distinção entre lacunas patentes e lacunas ocultas, as primeiras ocorrem
quando não se encontra prevista qualquer regra para um grupo de casos e as segundas
quando, apesar de estarem previstas regras para casos da espécie, a solução genérica,
segundo o seu sentido e fim, não se ajusta a um subgrupo específico de casos, não atende
às suas particularidades. Estas lacunas ocultas correspondem às acima designadas lacunas
axiológicas e Karl Larenz propõe que sejam resolvidas por via da “redução teleológica da
norma”55.
Para Esser “Só a única (e decisiva) pergunta sobre se já que admitir a existência de
uma “lacuna” na lei, constitui um juízo valorativo e uma decisão da vontade”56. No prisma
lógico, se a existência das lacunas depender de uma decisão da vontade, toda a discussão
racional do problema é obviamente impossível.
Perante estas dificuldades, alguns autores optam por negar a existência de lacunas
e afirmam que, na realidade, as lacunas são uma ficção que pretende ocultar a pretensão
de alterar o direito vigente (subentende-se, por parte dos juízes). É o caso de Hans
Kelsen57.
Apesar de discordarmos da natureza ficcional das lacunas, a objecção é pertinente
no que se refere às lacunas não verdadeiras. Com isto pretendemos dizer que a
qualificação como lacunas de realidades para as quais a lei consagra solução pode, em
algumas circunstâncias, visar o contorno das limitações (a começar pelas constitucionais)
inerentes à função jurisdicional, designadamente as induzidas pelo princípio da separação
de poderes e pelo princípio da legalidade.
Outra distinção da doutrina alemã que se associa à confusão conceptual em
matéria de lacunas é a que resulta da classificação das lacunas em primárias ou
originárias (que surgem desde o momento da criação da lei) e secundárias ou derivadas
(que aparecem supervenientemente como consequência de uma modificação da situação
55 Esta solução pode ser vista como próxima do modelo do activismo judicial que não é o modelo aquele que prevalece entre nós. 56 Apud Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., p .113. 57 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 113-114, e Hans Kelsen, A Teoria Pura …, ob.cit., pp. 275-279.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
36
fáctica, originada, por exemplo, pelo progresso técnico ou por uma mudança de valores).
É o caso de Karl Larenz e de Karl Engisch, que distinguem as “lacunas iniciais” (“lacunas
primárias”) das “lacunas subsequentes” (“lacunas secundárias”), identificando o primeiro
duas subclasses de lacunas iniciais, as que são conhecidas do legislador e as que o não
são.
Na grande maioria dos casos, as lacunas secundárias são ou lacunas axiológicas, ou
lacunas de reconhecimento. No exemplo típico de surgimento de uma nova propriedade
como resultado do desenvolvimento tecnológico, o “problema de lacuna (axiológica)” só
se coloca se a nova propriedade for valorada como prescritivamente relevante, ou seja,
se for acompanhada por uma nova valoração.
No quadro dos autores que endossam a tese da incompletude dos sistemas
normativos Joseph Raz (em concordância genérica com a abordagem lógica de Carlos
Alchourrón e Eugenio Bulygin, sem prejuízo de algumas restrições) conclui que as lacunas
não são apenas uma possibilidade dos sistemas, mas, mais do que isso, são
incontornáveis, no sentido de necessárias: “legal gaps are not only possible but, according
to the sources thesis, inescapable.”58 Uma lacuna existe quando uma questão jurídica não
tem uma resposta completa59.
Joseph Raz introduz a distinção entre lacunas jurisdicionais (“jurisdictional gaps”) e
lacunas normativas (“legal gaps”). Verifica-se uma lacuna jurisdicional quando os
tribunais não têm jurisdição sobre todas as questões. Em matéria de lacunas normativas,
o sistema encontra-se completo se houver uma solução plena para todas as questões
sobre as quais os tribunais têm jurisdição. As lacunas devem ser identificadas na
perspectiva dos tribunais pois a aplicação do direito é feita por estes órgãos60.
Afigura-se que o conceito de lacuna de Joseph Raz encerra especificidades e é
distinto da noção de lacunas normativas que acima se delineou e só abrange as lacunas
de valores de verdade, não as lacunas genuínas que acaba por resolver com as regras de
fecho. O autor enquadra o problema das lacunas no da indeterminação, que acima
58 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 77. 59 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 70. 60 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 70-71.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
37
classificámos de “lacunas de reconhecimento”, e no contexto de antinomias normativas
(sobredeterminação deôntica).
Com efeito, Segundo Joseph Raz “They [legal gaps] arise, however, where the law
speaks with an uncertain voice (simple indeterminacy) or where it speaks with many
voices (unresolved conflicts). Contrary to much popular imagining, there are no gaps when
the law is silent. In such cases closure rules, which are analytic truths rather than positive
legal rules, come into operation and prevent the occurrence of gaps”61.
Em Itália, incontornável na análise do problema das lacunas é o texto clássico de
Donato Donati em defesa da posição (então) tradicional da plenitude da ordem jurídica,
como sistema fechado que não conhece lacunas62. Não sendo esta (plenitude necessária
do sistema) a conclusão que se extrai da análise lógica, não deixam de ser pertinente e
interessante a perspectiva aportada por Donato Donati.
Nesta concepção, o poder criativo do juiz compromete ideais políticos
imprescindíveis como o da separação de poderes, da representação e da democrática dos
órgãos legiferantes (a lei é criada por “delegação” voluntária em órgãos electivos que
exprimem a vontade popular) e, ainda, da responsabilidade dos representantes face ao
povo (diversamente, o juiz rege-se por princípios opostos, de independência e
irresponsabilidade).
Perante um caso de lacuna, o juiz não pode ser obrigado a aplicar uma norma
jurídica que não existe. E a norma atributiva de competência jurisdicional também não
pode valer para dar vida a uma norma jurídica materialmente conformadora do caso
concreto. Uma das consequências da completude seria a de admitir-se a imposição ao juiz
de um dever (de decidir todos os casos aplicando uma norma legal) que ele não poderia
cumprir.
61 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 77. 62 Cf. Donato Donato, Il Problema delle Lacune dell’Ordinamento Giuridico, Societa Editrice Libraria, 1910, Milano.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
38
A resposta ao paradoxo surge através da formulação de uma norma geral de
exclusão, em linha com o princípio da proibição: do complexo de normas particulares
que, prevendo determinados casos, consolidam para estes a existência de certas
obrigações (ou limitações) deriva uma norma geral, segundo a qual todos os outros casos
não devem sofrer qualquer limitação. Por força desta norma, numa formulação
“positiva”, todos os casos possíveis acabam por encontrar a sua solução na ordem
jurídica.
Dito de outro modo, esta norma geral de exclusão contém implícita a declaração
de vontade de que nenhuma limitação deve impender sobre todos os outros casos (os
não previstos). Se assim não fosse significaria que desconhecíamos o escopo ou âmbito
de aplicação da lei.
Esta norma de exclusão não pode ser concebida como uma norma puramente
negativa que não tem aptidão para constituir a norma de fecho de um dado sistema
jurídico. Uma norma negativa não afirma a existência de uma norma jurídica nova, limita-
se a reafirmar a existência das normas particulares. Da concepção da norma negativa
resultaria, ao contrário do pretendido, a demonstração da existência de lacunas.
Assim, para evitar a conclusão que extraímos do princípio da proibição (na sua
formulação negativa) que é a da incompletude dos sistemas normativos, Donato Donati
constrói uma norma de fecho da ordem jurídica que, sendo uma verdadeira norma
jurídica, produz uma declaração de vontade distinta da declaração de vontade expressa
nas normas particulares.
É a norma geral da qual emana um dever de abstenção de qualquer acção que
possa introduzir uma limitação não prevista na lei e, em simultâneo, o correlativo direito
de estar livre de qualquer limitação não prevista na lei (lei fundada nas várias normas
particulares). A relação jurídica fica bem definida e corresponde à esfera na qual não se
aplicam as (nem podem estender-se os efeitos das) diversas normas particulares.
Os casos não particularmente previstos são, para este efeito, divididos em duas
categorias. No primeiro nível, inserem-se os casos aos quais, por analogia com casos
particulares previstos, devem ser aplicados efeitos jurídicos no mesmo sentido. No
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
39
segundo nível, enquadram-se os demais casos, que ficarão sujeitos a efeitos jurídicos em
sentido contrário, caindo na norma geral de exclusão acima enunciada que está na base
de (e implícita em) todo o ordenamento legislativo. Esta é configurada como uma norma
geral fundamental que confere um “direito de liberdade” que existe necessariamente na
ordem jurídica e cujo conteúdo é a abstenção de qualquer acto que possa impedir a
actividade no espaço de liberdade, e que inclui o direito à remoção ou à reparação.
Nestes moldes, na tese de Donato Donati, o espaço livre do direito (rechtsleerer
raum), como espaço de irrelevância jurídica não existe nem pode existir.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
40
III. NOTA FINAL
1. A abordagem lógica do direito apresenta virtualidades analíticas de valia
indiscutível, contribuindo para a tarefa de reconstrução do raciocínio normativo
realizada pela ciência do direito e adequado tratamento e sistematização
(científicos) dos problemas normativos.
2. O modelo analítico apresentado é contundente na demonstração dos equívocos
da conhecida tese da completude conceptual necessária de todos os sistemas
normativos (postulado da completude ou dogma da plenitude da ordem jurídica),
segundo a qual as lacunas normativas não existem. Esta tese baseia-se na
interdefinibilidade das categorias deônticas de “proibição” e “permissão”, que se
aceita para as normas, mas não para as proposições normativas, e é o corolário da
ausência de distinção entre normas e proposições normativas, que von Wright
veio clarificar.
3. Se da análise lógica do direito empreendida por von Wright este conclui que os
sistemas jurídicos são necessariamente incompletos, Carlos Alchourrón e Eugenio
Bulygin ficam-se pela incompletude contingente e demonstram a existência de
lacunas como um dado lógico, mas não necessário. A incompletude é uma
vicissitude da generalidade dos sistemas que, todavia, devem tender para a
completude como ideal racional.
4. As lacunas normativas, inerentes à incompletude normativa, constituem um
problema lógico. Num plano diferente, empírico e de aplicação ou realização do
direito, situam-se as lacunas de conhecimento, as lacunas de reconhecimento, as
lacunas axiológicas e as deficiências da lei (lacunas de lege ferenda).
5. A perspectiva da análise lógica é, todavia, eminentemente formal e mecanicista.
Apesar de indispensável para a compreensão racionalizada dos problemas e sua
correcta teorização não acomoda o facto de, nalgumas dimensões, a
argumentação prática ou jurídica e o processo de ponderação decisória (em
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin
41
especial o jurisdicional) não obedecer, ou não obedecer apenas, a modalidades de
lógica formal63 e a cânones logicistas.
6. Um outro ponto de cepticismo prende-se com algumas deficiências de que a lógica
deôntica (ainda) padece, continuando, a título de exemplo, a ignorar a existência
de enunciados jurídicos não prescritivos e a suscitar equívocos frequentes entre a
linguagem-objecto prescritiva e a metalinguagem assertiva acerca das prescrições.
7. Acresce que a análise lógica assenta num conjunto de pressupostos, alcançados de
forma empírica, francamente manipuláveis. Referimo-nos à escolha das premissas
(enunciados do sistema ou axiomas) das quais são, de forma encadeada e através
de processos dedutivos de inferência, derivadas as consequências jurídicas.
8. A análise lógica estancada dos problemas empíricos de subsunção dos casos
individuais nos casos genéricos (de identificação prévia da base do sistema, da
amplitude de casos possíveis ou universo de casos, e da amplitude de soluções
possíveis ou universo de soluções) pode revelar-se improdutiva nos objectivos a
que se propõe. É, cremos, por esta razão que Riccardo Guastini conclui pelo
artifício da distinção logicista entre problemas de reconhecimento, atinentes à
interpretação e qualificação das situações de facto, e problemas lógicos
propriamente ditos.
9. Esteado numa teoria realista da interpretação e na característica da
derrotabilidade ou revogabilidade (defeasibility) das normas, Riccardo Guastini
demonstra que o processo interpretativo é que conduz o processo lógico que,
assim, perde autonomia. “… las actividades de sistematización del derecho siguen,
no preceden, las decisiones interpretativas: no se hacen inferências desde los
textos (todavia no interpretados), sino sólo desde los significados, que,
precisamente, presuponen la interpretación.”64
63 De que dá nota José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 187. 64 Cf. Riccardo Guastini, Guastini, Riccardo, “Variaciones sobre Temas de Carlos Alchourrón y Eugenio Bulygin. Derrotabilidade, Lagunas Axiológicas e Interpretación”, in Análisis Filosófico XXVI N.º 2, Noviembre 2006, Buenos Aires, p. 284.
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin
42
10. Neste sentido, é o intérprete que, perante as escolhas que faz e o caminho
interpretativo que escolhe percorrer65, “decide” se a lacuna existe ou não existe.
Assim, se a lacuna se apresenta é porque já foi realizada uma interpretação
(prévia) que concluiu nesse sentido. Do mesmo modo a interpretação pode evitar
uma lacuna.
11. Nesta perspectiva, que tendemos a seguir, as lacunas não são principalmente um
problema lógico, mas antes um problema interpretativo.
* * *
65 Neste âmbito, Riccardo Guastini identifica diversas técnicas interpretativas idóneas para criar ou evitar lacunas, como o argumento de dissociação, em que o intérprete distingue onde a norma não o fez explicitamente, e o argumento a contrario. Cf. “Antinomias e Lagunas”, in Anuario del Departamento de Derecho de la Universidad Iberoamericana, Número 29, 1999, Ciudad de México, pp. 437-450.
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43
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45
Índice
Lista de Siglas ......................................................................................................................... iii
Resumo ................................................................................................................................... v
Abstract ................................................................................................................................. 1
I. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 2
II. UMA ANÁLISE LÓGICA DOS SISTEMAS NORMATIVOS ................................................. 9
1. Lógica deôntica. Normas e proposições normativas. Validade e verdade .................. 9
2. Concepção de sistema, sistema normativo e completude ........................................ 11
3. Problemas de sistematização. Mudanças no sistema e inalterabilidade das regras de
inferência ................................................................................................................... 15
4. Síntese do modelo...................................................................................................... 18
4.1. Caracteres ou operadores deônticos ......................................................................... 18
4.2. Âmbito fáctico ............................................................................................................ 19
4.3. Âmbito normativo ...................................................................................................... 22
5. Regras de fecho dos sistemas. O princípio da proibição. Interdefinibilidade entre
permitido e proibido, permissão forte e permissão fraca ......................................... 22
6. As lacunas ................................................................................................................... 27
6.1. Reconstrução do sistema normativo - corolários ...................................................... 27
6.2. Distinção entre lacunas normativas (problema lógico), lacunas de conhecimento e
lacunas de reconhecimento (problemas de aplicação) ............................................. 28
6.3. O problema das lacunas axiológicas. A Tese e a Hipótese de Relevância ................. 29
6.4. O espaço livre do direito ........................................................................................... 31
6.5. Cotejo de alguma doutrina ........................................................................................ 32
III. NOTA FINAL ................................................................................................................ 40
Referências bibliográficas ................................................... Error! Bookmark not defined.43
Índice ................................................................................................................................... 45