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    LS L GROU

    A FLUIDEZ D F O RM

    ARTE, ALTERIDADE E AGÊNCIA EM UMA

    SOCIEDADE AMAZÔNICA (Kaxinawa, Acre)

    PPGSA - UFRJ TO~OI So~

    C A P E 5

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    Copyright © 2007 EIs Lagrou

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    EditorJos é Mario Pereira

    Ed itora-assistenteChristine Ajuz

    Par a M arco e Marie

    RevisãoLuciana Messeder

    CapaMiriam Lerner

    DiagramaçãoArte das Letras

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    Sum á rio

    AGRADECIMENTOS 15INTRODU ÇÃO: AT ENÇÃO E F ORM A 19

    I. ARTF: o PODER DA IMAGEMAgência dos objetos 37Agência do desenho: relacionar, seduzir e capturar 54Etnog.afia do gosto: a ética queé uma estética 84Trilog:a da percepção: desenho (kene), figura (dami),

    imagem (yuxin) e suas relações com o corpo 108Uma perspectiva estética sobre o perspectivismo : 137

    1 1 ALT ERIDADE: A SEDU ÇÃO DO INIMI GO

    Alteri Iade e seus disfarces 159Seçõe.i, metades e gênero entre os Pano : 171

    O estrangeiro e ohumano (nawa/huni) 182

    1 1 1 FORMA : OS CA MINH OS DA COBRA E DO In k a

    A cobra 193Mito de origem do desenho e do cipó 193Matança ritual da jibóia 201A jibóia e a sucuri 213

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    Fluidos e a forma de um novo corpo 216Crianças misturadas e gêmeos 223

    O tempo e as formas 232Origem da morte e dos corpos celestes 236Origem do tempo e o roubo do sol 255O dilúvio: a rede, a sucuri e o arco-íris 272

    Encontro das cores: entre a cobra e o ln ka 281

    IV. AGÊN CIA: FLUIDEZ E FORMA FIXAO corpo e seus saberes 303

    Nascimento 303Ações e emoções como conhecimento encorporado 309Os yuxin dos humanos 315Morrer, um processo de tornar-se outro 325Um rito funerário endo-anibalfstico 329

    Os Yuxin e o desejo por um corpo 347

    Emergência do yuxin 347Código culinário e os perigos da hemofagia 350Os yu~i n dos animais 354Yuxibu, seres sem corpo 359

    Invisibilidade do xamã 366Controle dos encontros com yuxin 3 70Iniciação do muk aya 390O veneno do dauya , , 39 5

    V. FABRI CANDO C ORPOS PEN SANTES: N IXP U PI M APoética kaxinawa: perforrnance verbal e eficácia estética 413Criação da humanidade por Nete 424Batismo e o despertar da sexualidade 438Dentes e contas 447Milho e nixpu , ,. .. , . . ,., .. . , . . . , ,. 457Agência ritual: fazer cantando , 462

    Cantos de abertura ,. ., , , ,466

    1

    Cantos de trabalho . , .. ,..... ,, .. , .. ,,.,,..,... , ,.,., ,.,., .. . , ... 480Kenan, o banquinho . ,.,. , .. . . .. ,. .,., ., ., .. ,. . ,.489Preparação da comida ,.. ,,,.., ,..,.. 505Remodelagem ritual dos iniciandos Kawa 511

    A alquimia do cozimento: gestação, ni x/)u e funeral 527

    A FIXIDEZ DA FORMA · · · ·533BIBLIOGRAFIA , , , , .. , .. , , 541

    II

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    .' A· ~

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    A G R A D E C I M E NT OS

    ESTE lIVRO É O RESUL TADO DE QU INZE ANOS DE REFLEXÃO SOBRE M INHA

    experi ência entre os Kaxinawa. Este período abrange praticamente o pe-ríodo inteiro da minha vivência no Brasil e do meu envolvimento com aantropologia. Neste período muitas pessoas contribuíram de maneira dire-ta ou indireta para a realização deste trabalho.

    Agradeço a extrema generosidade dos Kaxinawa do Alto Rio Purus queme receberam nas suas casas, me .alirnentaram, me ensinaram e cuidaramde mim durante os dezoito meses que morei nas suas aldeias com um ca-rinho e preocupação com meu bem-estar que formaram a base para umaprendizado e um afeto que me marcaram para sempre. Meus anfitriõesconhecem a arte de realmente adotar o antropólogo, de lentamente fazeracostumar seu corpo pensante , como o conhecem, aliás, os próprios bra-sileiros com relação aos estrangeiros que aqui chegam.

    Em Cana Recreio morei na casa de Pancho e Maria Anisa. Em NovaAliança foram Manuel Sampaio e Maria das Dores que me hospedaram.A casa de Antônio Pinheiro e Cassilda, Mílton Maia e Sebastiana Pi-nheiro, Maria Sampaio, Rosa e Marciano, Marlene e Arlindo, de Abel,José Paulo, Graça, Rubin e F iló estava sempre aberta para minhas visitas elhes agradeço pelo carinho e pelos ensinamentos. Em Moema fui adotadapor Augusto Feitosa e sua esposa Alcina, meus pais classificatórios, e porLaura, Maria Antônia, Denis e Santa, irmãos, Edivaldo, cunhado. Nacasa deles, tive a sensação de estar realmente em casa. Ainda de Moema,

    I~

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    me lembro com afeto dos jovens Francisco, Delicia, Adão e Maria Elena.Cana Recreio e NOV2 Aliança marcaram o primeiro período de aprendi-zado no Alto Purus, Moerna, para onde segui acompanhando Augusto,marcou o último.

    Tudo começou no Rio, quando, visitando Berta Ribeiro à procura da minha tribo , ela me apresentou a Nietta Lindenberg Monte, então coor-denadora da Comissão Pró-Índio do Acre. Agradeço a Nietta pelo convite

    e a ela e aos outros membros da CPI pela boa recepção, pela amizade e pelaajuda. Paulo Alencar pela assessoria em assuntos médicos, Terri Aquinopelos conselhos de veterano, txai dos kaxi, Agostinho Manduca e Siã pelasvaliosas conversas antes e depois de chegar da aldeia, assim como Malu,Renato, Marcello Iglesias, Dêdê, Verinha, Joaquim Yawanawa e mais tardeIngrid Weber, que veio integrar a nova geração. Luís e Uta Carvalho mehospedaram em Rio Branco e foram grandes amigos, agradeço-lhes pelasconversas estimulantes, pela ajuda, pelo carinho. Em Manuel Urbano re-cebi ajuda de Antônia, das Irmãs e de Roberto, da Sucam. Uma vez volteido campo por Sena Madureira, onde fui apresentada a Padre Paulino queme contou sua apaixonante história de vida e me hospedou em sua casa.

    Jean Langdon, amiga de muitos anos, me colocou no caminho da an-tropologia, me orientou na UFSC e despertou em mim as grandes ques-tões que me acompanham até hoje. Dos ex-professores, colegas e amigosdos tempos em que estudei e lecionei na UFSC contribuíram diretamentepara o trabalho Rafael de Menezes Bastos, Miriam Grossi, llka BoaventuraLeite, Sonia Maluf, Sílvio Coelho dos Santos, Carmen Ríal, Gloria Valle,Luís Euardo Luna, Alberto Groismann, Maria Inês Mello, Acácio Pieda-de, Aristóteles Barcelos, Deise Montardo.

    Lux Vidal acompanha meu trabalho com generosidade e conselhos des-de o começo, nos tempos da UFSC, quando me cedia pilhas de bibliogra-fia, e depois como orientadora no doutorado na USP. Sua visão crítica eengajada mudou minha percepção do universo indígena e do lugar neleocupado pelos Kaxinawa. Na USP marcaram minha trajetória intelectualos cursos de Roberto Cardoso de Oliveira, Manuela Carneiro da Cunha eJoanna Overing, assim como 8. calorosa recepção, a amizade e conversas

    I; ,

    estimulantes com Paula Monteiro, Miguel Chaves, Sílvia Caiuby Novaese Ornar Thomas. Agradeço também Edilene Coffaci, Martha Amoroso,Flora e Aloísio Cabalzar, Luís Donisete, Denise Fajardo, Paula Morgado eOscar Calavia, que colaboraram com discussões sobre o trabalho no Labo-ratório de Antropologia Visual e no Núcleo de História Indígena.

    [oanna Overing me convidou como Research Assistan t para St. An-drews. A inspiração e orientação informal se transformaram em orien-

    taç i.o formal. Agradeço pelo convite, pelo entusiasmo e o constanteestímulo, pela hospitalidade ameríndia e pela amizade. Aos amigos naEsc 5cia: Napier Russel, [uliet O Keeffe, Alan Passes, Karen Jacob, Gi-sela Pauli, Carlos Londorío, Barry Reeves, Guilherme Werlang, StevenKid, Lindsy, Nick Barker, Rebecca, Gonzalo. Elvira Belaunde, amiga fieldesde os tempos de St. Andrews, acompanhou o processo de elabora-ção do livro de perto, pelas suas valiosas e entusiasmadas contribuições,sempre grata.

    Cecília McCallum, com generosidade, acompanhou minha pesquisacorr os Kaxinawa desde o começo, em Londres, em Florianópolis, em St.Andrews. Agradeço Kensinger pelas sugestões dadas durante conversas emSt. Andrews e pelo estímulo e confiança ao me ceder suas notas de camposobre o ritual ixpupim a

    Outras pessoas contribuíram com discussões e idéias ao trabalho: Lu-cia van Velthem, Regina Müller, Robert Crépeau, Nadia Farage, PeterGow, Steven Hugh-Iones, Eliane Camargo, Philippe Erikson, Sven-ErikIsacsson, Angela Hobart, Bruno Illius, Denise Amold, Benny Shanon,Gustaaf Verswijver, Bonnie e jean-Pierre Chaumeil, Philippe Descola,

    Anne-Christine Taylor. Do grupo de trabalho sobre agentivité em Paris:

    Valentina Vapnarsky, Aurore Monod-Becquelin, IsabeIle Daillant, PatrickDeshayes, Dominique e ]acques.

    No Rio agradeço meus colegas do Programa de Pós-Graduação em So ciologia e Antropologia do IFCS (UFRJ), que ajudaram de muitas manei-ras:. osé Reginaldo Santos Gonçalves, José Ricardo Ramalho, Maria LauraViveiros de Castro Cavalcanti, Maria Rosilene Barbosa Alvim, MirianGoldenberg, Glaucia Villas Boas, Neide Esterci, Peter Fry, e especialmen-

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    te Yvonne Maggie, Bila Sorj e Beatriz Herédia pela ajuda concreta naviabilização da publicação deste livro.

    Agradeço as contribuições dos amigos do grupo de discussão dos semi-nários de etnologia amerínida no IFCS e dos encontros do NUTI/Abaeté:Tânia Stoltze Lima, Márcio Goldman, Bruna Franchetto, Aparecida Vi-laça, Carlos Fausto, Eduardo Viveiros de Castro, Cesar Gordon, CristianeLasmar, Marcela Coelho. Agradeço também os instigantes questionamen-

    tos dos meus alunos, Luana Wedekin, Maria Acselrad, Ana Amélia Bra-sileiro, Luciana Barbio, Ana Gabriela Dickstein, Mylene Mizrahi, RafaelPessoa, Tiago Coutinho, Peter Beysen e Sonja Ferson, que me ajudaram aampliar os horizontes da pesquisa.

    Meus pais me deram o gosto pela viagem e me apoiaram em toda estajornada. Por seu afetuoso apoio logístico em vários momentos decisivosdesta trajetória. Meus irmãos (Anncleen, Pierer, David) e amigos próximosna Bélgica (especialmente Karen Phalet e Veerle Fraeters) me mantinhamperto deles por vias virtuais; assim como minha irmã gêmea, Katrien, queme acompanha sempre, mesmo quando longe.

    A Marco Antonio Gonçalves, companheiro de viagem desde St. An-drews, diretamente envolvido na produção do livro, por tudo e por estarsempre perto, e a Marie, nossa filha, que me ensinou que existe algo maisforte com o poder de fazer o trabalho parar.

    Recebi financiamento para a pesquisa das agências financiadoras CNPq,CAPES, FAPESP e FAPERJ no Brasil; do Vlaams Ministerie voor Kultuuren Wetenschappen na Bélgi a;da University ofSt. Andrews e o SutasomaTrust na Grã-Bretanha.

    INTRO DUÇÃO : A TE NÇÃO E O R M

    A DISCUSSÃO TEÓRICA PROPOSTA NESTE LIVRO SE BENEFICIA DE UMAsaudáve l desestabilização, nos anos noventa, das fundações de uma antro-pologia daarte e da estética que tinham se firmado como um campo re-lativamente autônomo dentro da antropologia, marginal às preocupaçõesteóricas centrais da disciplina. Para alguns a antropologia da arte pareciaconer o sério risco de desaparecer da agenda da disciplina, somente para

    reaparecer das cinzas em nova roupagem, com novas questões e com umaconsciência renovada, partilhada por autores renomados no campo da te-oria antropológica em geral, da central idade das questões colocadas pelaforma, pela objetificaçãoe pela visualização de idéias e relações.

    Minha própria relação como tópico da estética - ao fazer campo compessoas que visivelmente partilhavam nossa fascinação pelo mundo dasimagens, mas lidavam com elas de maneira muito diferente, começandopor um interesse muito menos marcado na materialização das imagens per-cebidas e imaginadas do que nós - levava em conta a crise do campo daantropologia da arte e sua subseqüente revitalização nas últimas décadas.Iconoclasme e iconofilie são conceitos que caminham juntos, como sugereLatour (2002), pois lidamos, neste nosso mundo repleto de imagens vir-tuais e fugidias, com o interessante fenômeno dos iconoclashes: o encontrodas imagens em tensão e em movimento, onde a destruição de uma ima-gem leva, necessariamente, à criação de outra. Os Kaxinawa estariam semdúvida de acordo com este diagnóstico do estado das coisas, sobre o poderde fascinação das imagens e a ambígua tensão entre produção e destruição

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    Crary argumenta que a atenção surgiu enquanto objeto discursivoquando a percepção se separou dos códigos e práticas históricos quea investiram com um pressuposto de certeza e naturalidade. Quandose tornou claro qUE a visão não era transparente, que um mesmo ob-jeto era passível de ser percebido de diferentes maneiras pelo mesmoou outros sujeitos, tentativas foram feitas para explicar e controlar asvariações da forma em termos de atenção. (Kingston, 2003: 683)

    Os Kaxinawa nunca consideraram as formas das coisas como dadas ounaturais, pois é na própria fluidez da forma perceptível que se baseia oconceito de agência e de poder kaxinawa. Os seres não humanos,yuxine yuxibu, são os mestres da transformação da forma e a condição huma-na reside na conquista de uma determinada forma fixa no meio de umamultípl icídade de formas possíveis. A cuidadosa produção da forma apro-priadamente kaxinawa de pessoas enquanto corpos pensanres , ou seja,de sujeitos com princípios sociais compartilhados, depende de uma lógicaespecífica que rege a atenção dada ao poder das imagens e da forma. É do

    poder das imagens de criar e destruir as formas na vida kaxinawa queestelivro trata.Igualmente na região amazônica Overing (1989, 1991, 2000, 2003) su-

    gere uma exploração sistemática das diferentes estéticas da vida cotidiana,onde forma e sentido estão inextrincavelmente entrelaçados através daprodução de sentido no contexto da interação. Podemos, desta maneira,entender forma e estilo como materializações do impacto da vida sobreas pessoas ( ofthe hold life has onp eople , Malinowski, 1976; Gow, 1999).Uma abordagem que chame a atenção para a forma e as imagens levà au-tomaticamente à poética da vida cotidiana (Overing, 2000), ondeo papelinventivo da metáfora e do processo contínuo da interpretação enquantoreinvenção do sentido num processo contínuo de autopoiesis são fatoresque remetem igualmente à dinâmica da forma enquanto fenômeno de-terminado pela atenção. Com relação a este processo Toren afirma que a au topoiesis humana implica que no processo de fabricação de sentido oconhecimento é transformado mesmo quando é mantido e que o sentido ésempre emergente, nunca fixo (Toren, 2003: 710).

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    1)este modo uma nova chamada para a importância da forma que a vidaassi.me significa tomar cuidado em não separar forma e sentido ou oporagê.icia e sentido. Entender o processo da emergência do sentido comofenômeno histórico significa prestar atenção não somente nas formas erelações entre formas, mas também na relação temporal entre o apareci-mente e o desaparecimento das formas, na relação entre forma e ausênciade arma (Kingston, 2003), assim como entre fixidez e fluidez da forma.Est.i questão nos remete à crucial relação entre forma e corporalidade, umtema obsessivamente trabalhado pelos rituais kaxinawa, que visam a fixara forma corporal no ritual de saída do recém-nascido e desfazê-Ia no anti-go ritual endocanibalístico, assim como remodelar a forma e endurecer ocorpo durante o ritual de passagem.

    A filosofia moral kaxinawa associa a solidez e a relativa fixidez da formaao comportamento social, definindo a pessoapela sua imersão em relaçõesmutuamente constitutivas,enquanto os seres não-humanos, yuxibu, sãodefinidos pela ausência de laços e raízes que garantem a constante troca defluidos eafetos. O yuxibu é o ser não localizável que passa pela aldeia semdestino conhecido nem lugar de origem identificável. A volatilidade deseus laços sociais ea aleatoriedade de seus deslocamentos significam umacorrelata volatilidade das formas potencialmente assumidas por este ser. Operigo representado por seres sem forma fixa é que estes podem produzir al-terações nas formas dos seres com os quais interagem, humanos incluídos.

    Na Amazônia como na Melanésia, a pessoa não é concebida como umser indivisível, um indivíduo . Desde o início do século passado conhe-CeITiOS,través da obra de Leenhardt (1971), a pessoa kanaque enquantoser relacional de natureza essencialmente processual: a pessoa existe en-

    quanto lugar de encontro de diferentes tipos de relações. Os especialis-tas da Melanésia batizaram o mesmo fenômeno de divíduo em oposiçãoao conceito de indivíduo (Strathem, 1988) ou de pes soa fraetal (Wagner,1991). Na Melanésia a troca de valores e bens significa a objetíficação derelações entre pessoas e grupos de pessoas e implica na concepção divisf-vel da pessoa: pessoas são feitas de partes de outros seres humanos e dosprol lutos das ações destas pessoas. O conceito de divíduo alude ao caráter

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    ainda permanecia não explorado. Os primeiros escritos sobre os Kaxinawaapareceram no início do século da pena do padre francês Constantin Tas-tevin (1919,1920, 1925a, 1925b, 1925c, 1926; Rivet & Tastevin, 1921)que descreve os costumes dos Kaxinawa e outros grupos pano que encontradurante suas viagens pela bacia do [uruá-Purus. Ainda durante as primei-ras duas décadas desse século, aparece uma coleção extremamente valiosade narrativas e mitos kaxinawa, uma transcrição e tradução interlinear,produzida por Capistrano de Abreu (1913, 1941, 1969) em colaboraçãocom dois jovens kaxinawa que haviam deixado suas aldeias para viveremna cidade.

    Kenneth Kensinger (vide bibliografia e 1995) foi o primeiro antropó-logo a viver com os Kaxinawa, no Peru. Kensinger produziu uma vastacoleção de artigos sobre virtualmente todos os tópicos que dizem respeitoà vida e sociedade kaxinawa. A geração de antropólogos que sucedeu aKensinger deu continuidade às questões tratadas em seus trabalhos. Igual-mente no Peru, os Kaxinawa foram estudados por Deshayes Keifenheim(1982, 1994, 2003 e vide bibliografia). Ambos os autores privilegiaram

    inicialmente os temas de identidade e alteridade e sistemas classificatórios. v1ais recentemente estudaram também temas relacionados à antropologiados sentidos (Keifenheim, 1998, 2002; Deshayes, 2000). Marcel D'Ans(1973, 1975, 1978, 1983) estudou o sistema de nominaçã? e classifica-ção das cores e elaborou um compêndio romanceado sobre mitologia. NoBrasil, os Kaxinawa foram estudados por Aquino (1977), Iglesias (1993),Lindenberg (1996) e Weber (2004), nos rios [ordão e Humaitá respecti-vamente, que centraram suas pesquisas nos temas de relações interétnicase educação. Guimarães (2002) se dedica a uma releitura dos cantos. Os

    Kaxinawa do Alto rio Purus, o mesmo grupo com quem obtive os dadospara a realização deste trabalho, foram estudados por McCallum (1989a;2002 e vide bibliografia). O estudo de McCallum focaliza a organizaçãosocial e as relações de gênero. No contexto das relações de gênero a autoraanalisa o ritual katxanaw a. A grafia adotada para as palavras em kaxinawasegue a sugerida por Camargo e segue a pronúncia das letras em português(1987,1991,1995).

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    I ARTEo PODER DA IMAGEM

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    AGÊNCIA DOS O B]ETOSs

    Podemos notar na teoria antropológica contemporânea um renovadointeresse pela 'vida dos objetos', assim como pela 'vida das imagens', nosseus respectivos contextos de significaçã o, transformando as relações entreestética, arte e antropologia em assunto de acalorado debate. Uma abor-dagem da chamada 'cultura material', considerada como excessivamenteclassificatória, técnica e formal, tinha desviado, por muito tempo, a aten-ção da antropologia social dos artefatos para os sistemas de pensamentoe organização social- negligenciando o fato de sistemas de pensamentopoderem ser sintetizados e expressos, de maneira exemplar, nos objetosproduzi. 10spelos grupos em questão.

    Ilustres exceções com relação ao descrédito intelectual em que se en-contrav 1 o estudo da produção material nativa são as reflexões clássicas aela dedícadas por Boas, Bateson, Geertz e Lévi-St rauss , onde cada um usou

    a 'arte' como campo privilegiado para explicitar suas propostas teóricas emetodológicas mais gerais. Assim, para Boas (192 8) os temas da arte e daestética foram peças-chave na sua argüição contra um evolucionismo re-ducioni: ta ou um difusionismo que negava a criatividade à maior parte das

    5 Este car ítulo se baseia em texto publicado na Revista Ilha em (2003a). Outros artigosonde discuto a relação entre arte e antropologia são Lagrou, 2000c, 2002c e 2002d, 2005.

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    culturas. E Lévi-Strauss (1958) usou a recorrência da 'representação des-dobrada' em tradições artísticas sem contato histórico demonstrável parailustrar o método estruturalista. Geertz (1983), por sua vez, propõe para oestudo da arte uma etnografia do gosto. A arte como materialização não doqu e se pensa, mas de cemo se pensa. O gosto compartilhado por um povosupõe capacidades de interpretação de elementos visuais, para distinguircertos tipos de formas e de relações de formas.

    Mas em geral, os antropólogos da arte não participavam das prin-cipais discussões teóricas da disciplina; esta situação começou agora amudar e a obra de Gell (1993,1998) teve papel decisivo nesta revirada.A obra de Gell se situa no contexto de um grupo expressivo de estudosetnográficos dedicados ao Facffico - como o de Nancy Munn (1977),Strathern (1988) e muitos outros - que deu novo impulso à reflexãosobre o potencial de renovação teórica contido no estudo dos objetos;objetos pensados como extensões de pessoas e com papel crucial nainteração social.

    Até recentemente, no entanto, além dese r associada a uma abordagemexcessivamente museológica, resquício de uma herança evolucionista daqual a moderna antropologia queria se livrar, o tema da 'arte' ou 'produ-ção material' nativa sofria de outro incômodo, que era o de se encontrarparcialmente no campo de competência de outra disciplina acadêmica,totalmente oposta em seus valores e critérios à antropologia: a da estética.Se a antropologia se define como disciplina não valorativa por excelência,desconfiando de qualquer juízo de valor com pretensões universalistas, aestética lida por definição com valores e distinção desde o momento emque define seu objeto: arte é aquele objeto que responde a determinados

    critérios mínimos que permitem que ele seja distinguido de outros obje-tos não produzidos com este fim. E esta foi a razão pela qual a abordagemestética na antropologia da.arte foi atacada de forma tão veemente pordefensores de uma nova antropologia da arte, como Gell.

    Ao acompanhar este debate, é interessante notar que se por um ladoa discussão européia, representada recentemente pela obra de Gell e pelodebate de Manchester (Ingold, 1996), se concentra sobre o direito àdi -

    ,\0

    fer en:a, o debate norte-americano, por outro lado, reclama o direito àigua lifade na diferença. Autores como Clifford (1988) e Marcus e Myers(199)) chamam a atenção para a simultaneidade e a interdependênciado n iscimento da arte moderna e daantropologia enquanto disciplina.A ar tropologia teria dado aos artistas a alteridade que procuravam parapode' se opor ao establishment. Na visão de Marcus e Myers, o dever daantrcpologia não seria o de se abster de qualquer julgamento, mas o de seunir à vocação da arte moderna e contemporânea e de ser o motor de umapermanente 'crítica cultural'.

    James Clifford, por sua vez, questiona o caráter provocador e o potencialrevolucionário da exposição no Museu de Arte Moderna em Nova Yorkem 1984, que celebrava a influência da arte primitiva sobre os modernis-tas. O autor acusa a curadoria da exposição de tratar de maneira manifes-tamente convencional e desigual as artes 'primitiva' e moderna, relegandoa primeira ao anonimato e à existência a-histórica. Clifford aponta comoa exposição cristalizou em torno de si as opiniões antagônicas de críticosde arte, por um lado, e antropólogos por outro com relação ao modo como

    a arte não-ocidental deve ser apresentada.Importante contribuição a este debate se encontra também emArte

    primii,iv a em l uga res c iv i li zados,de Sally Price (2000). Price chega a con-clusões similares às de Clifford: há um equívoco nesta celebração pelosconncisseurs das qualidades supostamente inerentes e universalmente re-conhecíveis que são encontradas nas 'obras-primas' da 'arte primitiva',selecionadas entre a massa indistinta de curiosidades colecionadaspelosetnól ogos. Este equívoco, segundo Price, se resume na simples constataçãode que os produtores destas obras-primas não foram consultados a respeito

    nem de seus próprios critérios estéticos, nem de sua própria avaliação epercepção. Mais ainda, para que as obras possam ser reconhecidas comoobras -pr imas p r imi ti va s ,os produtores das peças precisam ser esquecidos,envoltos pela sombra do anonimato atemporal que os torna universais.Como solução, Price defende a inclusão da arte não-ocidental em exposi-ções de arte, porém segundo os critérios dos próprios produtores e recepto-res originais da estética local em questão e com o mesmo tratamento que

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    porâneos que visam constantemente reformular o sentido que a arte tempara nós.

    Ninguém expressou melhor, em vida e obra, a relação ambígua cxisten-te desde a sua origem entre a antropologia e a arte moderna do que AlfredGell. Se Marcus e Myers chamam a atenção para as suas semelhanças, poisambas, a arte rnoderna.e a antropologia, se caracterizariam pela vocaçãocrítica e por seu fascínio pela alteridade, Gell afirma categoricamente emartigo produzido especialmente para um livro dedicado à antropologia,arte e estética, e editado pelos especialistas em antropologia da arte, Cootee Shelton, que a antropologia social moderna é essencialmente, constitu-cionalmente, anti-arte (Gell, 1992: 40). Com esta afirmação, Gell- emestilo agonístico muito apreciado pelos intelectuais ingleses - não visavasomente irritar os seus colegas ao subtrair-lhes o seu campo de pesquisa,decretando a inexistência deste último; ele estava, sobretudo, preparandoo campo para o esboço de uma proposta de abordagem totalmente novado tema e, para tanto, as abordagens anteriores precisavam ser derrubadascom veemência.

    Esta nova proposta teórica. será esboçada em sua obra póstuma A rt andAgency (1998), e visará uma abordagem antropológica do tema, pois, se-gundo Gell, o que se fez antes dele não foi antropologia, pelo menos não aantropologia social inglesa que ele defende, e sim uma antropologia cultu-ral que sempre teria ido buscar inspiração em outras disciplinas tais como aestética, a semiótica e a lingüística, a história da arte ou a crítica literária.Mas entre a provocação citada acima e a solução proposta para o dilemaem Art and Agency, Gell escreveu dois outros trabalhos: um livro sobre ta-tuagem, chamado W raPPing in Im ages (1993), e um artigo que foi traduzido

    para o português sob o título A rede de Vogel, armadilhas como obras dearte e obras de arte como armadilhas (1996, 2001).

    Em cada um destes trabalhos que antecederam A rt and Agency , Gelltenta olhar para o tema da arte sob uma ótica dessacralísanre, pondo sobsuspeita a veneração quase religiosa que a nossa sociedade tem pela es-tética e pelos objetos de arte. No texto em que diagnostica o antagonismoentre os pontos de vista antropológico e estético, propõe uma aproxima-

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    ção entre magia e arte, vendo em ambos os fenômenos uma manifestaçãodo 'encantamento da tecnologia'. Estaríamos inclinados a negar este as-pecto de oíuscamento tecnológico, presente na eficácia de certos obje-tos decorados, como a proa da canoa usada em expedições de kula pelosTrobriandeses, porque tendemos a diminuir a importância da tecnologiana J iossacultura, apesar de nossa grande dependência dela. A técnica se-ria ~onsiderada um assunto chato e mecânico, diametralmente oposta àvercadeira criatividade e aos valores autênticos que a arte supostamenterepresentaria. Esta visão seria um subproduto do estatuto quase-religiosoque a arte detém, como que substituindo a religião numa sociedade laici-zada pós-iluminista,

    f\ssim, Gell se afasta do critério da fruição estética para chamar a aten-ção para a eficácia ritual de uma proa superdecorada: a decoração não' seque bonita, mas poderosa, visa a uma eficácia, a uma agência, a uma pro-duçío de resultados práticos em vez de contemplação. A maestria decorati-va cativa e terrifica os que olham, param e pensam sobre os poderes mágicosde quem produziu e possui tal canoa. Ou seja, a arte possui uma funçãonas relações estabelecidas entre agentes sociais. Neste sentido, o texto jáantecipa o livro sobre agência. Só que fica ainda muito preso a uma idéiaque só identifica arte nos fenômenos extraordinários, mágicos, que fogem àcompreensão humana e demonstram um domínio técnico tão excepcionalque parecem não terem sido feitos por seres humanos. Isto já não supõeuma visão nada universalizável do campo abrangido pelos objetos de arte?Lembra aclássica separação entre objetos cotidianos e os extraordináriós,necessariamente extracotidianos. E os povos que não valorizam tal estéticado excesso, apreciando, pelo contrário, uma estética rninirnalista

    Mais convincente, ou pelo menos muito mais inovador, é o texto sobrea rede de Vogel, onde Gell propõe um diálogo direto entre arte conceituale produções não-ocidentais. O que produziu a reflexão foi uma exposi-ção cnde Suzan Vogel, antropóloga e curadora de uma exposição chamada

    7 Ver a crítica de Overing ao uso rranscultural do conceito de estética e sua íntima relaçãocom a 'religião' do sublime, do extraordinário (Overing in Ingold, 1996: 249-293).

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    Art/Artifac t, no Center for Afr ican Art, em Nova York, expõe uma rede decaça amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte conceitual. Acuradora plantou uma verdadeira armadilha para o público, \..]uese equi-vocou totalmente acerca do que viu, sem saber se se tratava de uma obrade arte conceitual ou não. O texto de Gell visa mostrar o quanto a idéiade armadilha e as engenhosas formas que assume em diversas sociedades seaproxima do conjunto de intencionalidades complexas postas em opera-

    ção em torno de uma obra de arte conceitual. Ou seja, melhor do que pro-curar aproximar povos não-ocidentais da nossa arte através da apreciaçãoestética de uma máscara ritual seria identificar o que têm em comum mui-tos artistas contemporâneos trabalhando com o tema da armadilha - comoDaniel Hirsch, que colocou um tubarão numa piscina com formol - e asarmadilhas indígenas, dando mostra de um mesmo grau de inventividade,complexidade e dificuldade.

    Ou seja, aqui também Gell se afasta do critério beleza, inclusive porqueeste também não é mais o critério através do qual a arte contemporânea éavaliado, para ver como se poderia melhor colocar em ressonância produ-ções não ocidentais com o nosso campo deprodução artística atualmentemais prestigiado, o conceitual. Na sua discussão com o filósofo de arteArthur Danto, que defende que a rede não é uma obra dearte porque nãofoi feita com esta intenção e mais ainda porque foi feita para um uso ins-trumental e não para a contemplação, Gell mostra como instrurnentalida-de e arte não necessariamente precisam ser mutuamente exclusivas. Umaarmadilha feita especialmente para capturar enguias, por exemplo, poderiarepresentar muito melhor o ancestral, dono das enguias, do que sua más-cara, visto que não representa somente sua imagem (apesar da forma daarmadilha ter a forma de uma enguia), mas presentifica, antes de tudo,a ação do ancestral, sua eficácia tanto instrumental quanto sobrenaturale a relação complexa entre intencionalidades diversas postas em relaçãocomo aquelas da enguia, do pescador e do ancestral.

    Gell supera, desta forma, a clássica oposição entre artefato e arte, mtro-duzindo agência e eficácia onde a definição clássica só permite contempla-ção. Mas o autor mantém, por outro lado, seu fascínio pelo difícil, carac-

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    terística que mais marcaria, segundo Bourdieu (197 9), a nossa concepçãode arte desde Kant: onde o valor é dado àquilo que distingue, ao gostorefir ado e informado que não se deixa levar pelo prazer fácil que satisfazos Sé ntidos. O difícil requer esforço intelectual e/ou técnico e se sobressai,disti ngue; ou seja, se para Gell a obra de arte teria alguma característi-ca que a distinguisse de outros objetos, esta jX1SScHiaelo seu caráter dealgu na maneira excepcional. Muitas produções analisadas como arte não-

    ocid ental, no entanto, como a pintura corporal, a cerâmica e a cestaria,todas de uso cotidiano, não se encaixariam nesta categoria. Vê-se como édifícil dizer algo com validade universal sobre um fenômeno que em mui- .tas culturas sequer tem nome.

    Ainda asim, podemos dizer, resumindo a discussão dos dois textos ci-tados, que estes atacam principalmente a definição do objeto de arte emtermos de estética, mostrando como esta, por ser essencialmente avalia-tiva, não combina com uma abordagem comparativa do tema. Tambémno livro sobre tatuagem (Gell, 1993)nada de estética. O autor provocainclLSive os amantes da tatuagem, afirmando que assim como o fenômenoera sinônimo de mau gosto para o burguês vitoriano do século XIXna In-glaterra, ele continua mantendo uma ligação com a rnarginalidade e o maugosto para os intelectuais de hoje. É claro que o autor não visitou as praiascariocas Aqui também a idéia é a de analisar o fenômeno como fenômenosocial, mais especificamente na Polinésia, e de ver quais poderiam ser asrelações entre um tipo de organização social, com alta competitividade epouca hierarquia estável, e a arte guerreira da tatuagem, que florescia, porexemplo, nas ilhas marquesas, onde a tatuagem funcionava como se fosseum escudo, uma segunda pele.

    Em Art and Agency (1998), o mais visado não é mais a estética. Vere-mos inclusive que a estética entrará, disfarçada sob o manto da análiseformal, pela porta de trás no capítulo sobre estilo. Não existe preocupa-ção com o estilo de uma obra ou de um conjunto de artefatos possívelsem um mínimo de atenção às qualidades da forma, simetria etc.; e Gellacaba dando muita atenção à forma e às várias relações de transformaçãoentre as formas. Segundo Nicholas Thomas, que escreve a introdução da

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    obra, esta seria a parte menos revolucionária ou inovadora do trabalho(1998: X). A mim me parece, por outro lado, ser também o momenroem que Gell faz as pazes com um assunto ao qual dedicou os últimos dezanos da sua vida com tanta paixão, o de entender o ser da arte em termoscomparativos.

    Mas as razões para deixar a estética relativamente em paz são tambémoutras. Na abertura do trabalho, onde propõe a sua nova teoria, Gell não

    revoga seus pontos de vista anteriores - simplesmente os reitera. Tam-bém tinha ocorrido, ern 1993, um debate promovido pela Universidade deManchester a respeito da aplicabilidade transcultural do conceito 'estéti-ca', onde Overing e Gow defenderam urna idéia similar à de Gell, a de abo-lir o conceito de estética como conceito com aplicabilidade transcultural(Ingold, 1996: 249-293). O uso do conceito com fins comparativos foi de-fendido por antropólogos da arte como Morphy e Coote com o argumentode que a apreciação qualitativa de estímulos sensoriais é uma capacidadehumana universal, e que a sua negação seria equivalente a excluir parte da

    humanidade de uma dimensão essencial da condição humana. Overing eGow, por outro lado, argumentaram contra o uso do mesmo, apontandopara as origens históricas eculturais do conceito 'estética'.

    Gow invoca A Dist inção, de Bourdieu (1979). Este localiza a origem daestética ocidental na Crítica do ju ízo, de Kant e explica por que a aplicaçãodo julgamento estético não pode senão representar o ápice do exercícioda distinção social através da demonstração de capacidades de discrimi-nação, que não seriam inatas e universais como queria Kant, mas apren-didas e incorporadas através de longo processo de exposição e aquisiçãodo habitus específico da sociedade em questão. Overing, por sua vez, to-mando como exemplo a sociedade Piaroa, demonstra como em contex-tos não-ocidentais a apreciação do belo e da criatividade não recai sobreuma área específica da atividade humana, mas engloba todas as áreas deprodução da sociabilidade, desde a procriação até os processos produti-vos da vida cotidiana. Em votação da platéia, que se segue a um longodebate do qual o próprio Gell participa, o conceito 'estética' é derrotadoenquanto instrumento de análise transcultural e os defensores da estética,

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    cátedras da antropologia da arte, voltam para casa de mãos vazias, com seuobjeto de pesquisa declarado inexistente.

    Não era mais preciso, portanto, continuar anatematizando a estética, eGell dedica agora toda a sua força a outro obstáculo da nova antropologiada arte: a abordagem lingüística, semiótica e/ou simbólica. A sua recusaem tratar a arte como uma linguagem ou como um sistema de comunica-ção é veemente.

    Recuso totalmente a idéia de que qualquer coisa, exceto a próprialíngua, tem 'sentido' no sentido proposto ... No lugar da comunica-ção simbólica, ponho a ênfase em agência, intenção, causa çã o, r esul -tado e tra nsformação. Vejo a arte como um sistema de ação, com aintenção de mudar o mundo em vez de codificar proposições simbó-licas a respeito dele. (Gell, 1998: 6)

    Esra abordagem centrada na ação seria mais antropológica do que aabord agem serniótica,

    'porque está preocupada com o papel prático de mediação dos obje-[Osde arte no processo social, mais do que com a interpretação dosobjetos 'como se' fossem textos. (Gell, 1998: 6)

    Um dos autores visados pela crítica de Gell, sem, no entanto, ser cita-do, é, evidentemente, Geertz (1983), o último a propor antes de Gell ummétodo geral de abordagem antropológica da arte. Poderíamos dizer, em'defesa de Geertz, que para este autor os símbolos e as artes enquanto siste-mas simbólicos agem tanto como modelos de ação quanto para a ação; ouseja, Geertz seria o primeiro a afirmar que símbolos não somente represen-tam, mas transformam o mundo. Também para Lévi-Strauss , que trabalhacom o modelo lingüístico e enfatiza a qualidade comunicativa da arte, atosfalam e palavras agem, sendo impossível separar ação, percepção e sentido(Léví-Strauss, 1958, 1993; Charbonn ier, 1961).

    O uso restritivo que Gell faz da idéia de 'sentido' foi recentemente criti-cado por Robert Layton (2003) que revela o quanto Gell faz de fato uso da

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    semiótica de Peirce para definir seu modelo para a agência específica atri-buída à arte. Para Layton existe um problema no uso indiscriminado feitopor Gell de conceiros peirceanos distintos, como ícone e índice. Lavtonargumenta que, por não querer pensar ou falar em cultura ou quadros dereferência que guiam a percepção, Gell acaba chamando todos os objetosartísticos de índice s inseridos em redes de ação; mas é claro que estes índicessó funcionam deste modo porque são de fato de alguma maneira íconese que requerem certo tipo de interpretação informada e contextualizadapara desencadearem arede de interações nas quais Gell está interessado.

    A vantagem da proposta de Gell, por outro lado, está na significativaampliação da categoria de objetos que podem ser tratados a partir destanova definição:

    H[A] premissa da teoria se baseia na idéia de que a natureza do ob-jeto de arte é uma função da matriz sócio-relacional na qual estáinserido. Não possui 'natureza' intrínseca, independente do con-texto relacional. [...] Mas, na verdade, qualquer coisa poderia ser

    pensada como objeto de arte de um ponto de vista antropológico,incluindo-se aí pessoas vivas, porque uma teoria antropológica daarte (que podemos definir em grandes linhas como 'as relações so-ciais na vizinhança de objetos que mediam agência social') se fundesem problemas com a antropologia social das pessoas e seus corpos. (Gell, 1998: 7)

    A proposta é, portanto, tratar objetos como 'pessoas', proposta quequando percebida do pomo de vista das cosmologias dos povos sob estudo,- no caso de Gell, os povos melanésios, no nosso caso, os ameríndios - pa-

    'rece ser convincente. A aproximação dos conceitos de artefato e pessoa setorna ainda menos estranho ao esforço teórico da antropologia se lembrar-mos que esta se debruça, desde os seus primórdios, sobre discussões acercado animismo ( a atribuição de sensibilidade a coisas inanimadas, plantas,animais etc. ). De Taylor até aos dias de hoje, portanto, interessou-se adisciplina na reflexão sobre as relações peculiares entre pessoas e coisasque de alguma maneira 'se parecem com', ou funcionam como, pessoas .

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    A proposta deve ser lida em termos maussianos, adverte Gell, onde substi-tuiríamos prestações por objetos de arte (Gell, 1998: 9).

    Ou seja, interessa ver o que estes objetos e seus variados usos nosensinam sobre as interações humanas e a projeção da sua socialidadesobre o mundo envolvente; é na sua relação com seres e corpos humanosque máscaras, ídolos, banquinhos, pinturas, adornos plumários e pulsei-ras têm de ser compreendidas. Do mesmo modo que o alargamento doconceito de pessoa está na base da teoria antropológica desde Mauss(1934), com especial relevância para a discussão amazônica e melanésia,os dierentes sentidos que a relação entre objeto e pessoa pode adquirirse ccnstitui em problemática legitimamente antropológica. Conceitosde pé ssoa podem ser unitários (como no Ocidente) ou múltiplos; a Me-lanés ia cunhou o conceito de dividu al (Strarhern, 1988) ou distributedperso.i', a pessoa distribuída (Gell, 1998), a pessoa que se espalha pelostraço'; que deixa, pelas partes de si que distribui entre outras pessoas; dornesrr.o modo, ainda segundo Gell, existem distrib uted o bjects (objetosdistribuídos) e a extend ed m ind (mente estendida) que se espalha atravésde um grupo de objetos relacionados entre si como se fossem membros deuma mesma família.

    A relação entre objetos e pessoas tal como descrita, relativamente aocaso ela Melanésia, por Gell e Strathern, entra muito bem em ressonânciacom (: material amazônico em geral e kaxinawa em particular. na relaçãoentre o esquema conceitual de um povo, suas interações sociais e a mate-rialização destes em artefatos e imagens que se encontra a fertilidade dónovo método proposto. E, se relativizarmos os excessos cometidos pelo au-tor com relação ao sentido dado ao sentido, a proposta de inserir o assunto

    da arte no cerne da discussão teórica da disciplina é evidentemente muitobem-vinda. Um autor que pode nos ajudar a pensar de modo diferenteo sentido dos objetos é Daniel Miller (1994) que mostra como é muito

    8 Almeida (2000) produziu uma tese sobre a arte shipibo, inspirada em Gell, ondeestuda o conjunto de objetos e escritos em torno do estilo shipibo como uma ex tendedmind.

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    ressaltam o fato de objetos serem imbuídos de agência e serem pensadoscomo 'pessoas' de maneira parecida ao que foi notado para o contextomelanésio (Strathern, 1988; Munn, 1986; Gell, 1998).

    Deste modo, entre os Waurá (Wauja) do Alto Xingu, máscaras e pa-nelas encarnam poderosos seres, chamados de apapaa tai. As máscaras sãoas roupas e instrumentos destes apapaatai, que precisam delas para se pre-sentificar e dançar no mundo. O próprio ritual que os põe em cena é umaresposta à doença por estes provocados. O xamã identifica o causador dadoença ao vê-Ia em miniatura no corpo do doente, que se torna dono deuma festa em homenagem ao seu agressor. Ao dar-lhe a chance de se vi-sualizar com toda presença teatral que uma performance ritual xinguanapermite, o aposxuuo: causador da doença se torna o aliado de sua vítima, eanfitrião (Barcelos, 2002).

    Entre os Wayana, Lúcia Van Velthem (1995, 2003) descreve como osartefatos têm um tempo e m ritmo de vida iguais aos de uma pessoa,com direito a descanso nas vigas das casas durante a vida, e com a morteanunciada quando perdem a sua funcionalidade e razão de ser. Os motivosda cestaria têm uma iconografia precisa, que não omite nem a alimenta-ção dos seres sobrenaturais ali capturados. Arte, para os Wayana e outrosgrupos karib das Giuanas, é a captura e domesticação dos predadores docosmos através da miniatura.

    Mais importante do que a maneira como o conhecimento é estocadoem objetos externos é o modo como as pessoas incorporam o conhecimen-to. Para os Kaxinawa a arte é, como memória e conhecimento, incorpora-da. Esta prioridade explica por que as expressões estéticas mais elaboradasdos grupos indígenas são ligadas à decoração corporal: pintura corporal,

    arte plumária, colares e enfeites feitos de miçanga, roupas e· redes tecidascom elaborados motivos decorativos. Os Kaxinawa não estocam suas pro-duções artísticas; estão convictos, como muitos outros povos ameríndios,de que objetos rituais perdem o seu sentido e a sua beleza, a sua 'vida',depois de usados. Se durante o ritual o banco é belamente pintado e podesomente ser usado pelota) iniciando(a), depois ele se torna um simplesbanco, com a decoração desaparecendo lentamente, podendo ser usado

    ~

    por iualquer homem (no cotidiano, mulheres não se sentam em bancos,mas em esteiras).

    fi etnografia sobre objetos na Melanésia é interessante para a etnogra-fia aneríndia, não somente pelas questões que sugere, mas também pelasgrandes diferenças entre a vida dos objetos lá e aqui. Vimos que entre osKaxinawa e muitos outros povos ameríndios, o importante na vida de umobjeto não é que sobreviva ao seu produtor ou usuário, mas que desapareça

    junto com ele: assim como pessoas e outros seres vivos, o objeto tem o seuprocesso de vida, que acaba com o envelhecimento e com a sua destrui-ção. Às vezes, este processo ocorre pouco tempo depois de sua fabricação,outras vezes não. Mas um objeto em geral não sobreviverá à morte do seudono. Os objetos 'morrem' e, na floresta amazônica, costumam cumprireste destino com uma velocidade muito maior do que em outros contextosetnográficos. Quando o corpo se desintegra e as almas têm de partir, tudoo que lembra o dono e que pode provocar o seu apego precisa se dissolverou ser destruído.

    A vida dos artefatos tende a seguir na Amazônia um ritmo diferentedo ri :mo que segue na Melanésia, onde os colares e braceletes do kula,por exemplo, sobrevivem por muito tempo à morte biológica dos seus do-nos, tornando-se extensões do seu corpo e da sua pessoa, mantendo a sualernbança viva (Gell, 1998). Como já assinalava Malinowski (1976), oprocesso de vida destes objetos de valor ganha uma relevância toda espe-cial, ()objeto incorpora uma história que faz falar e lembrar, e se torna umaextensão do seu dono original, aquele queo fez começar a circular ..

    0 (, mesmo modo que a pessoa pode ser concebida como uma 'entida-de distribuída', como sugere Gell, transcendendo o espaço-tempo de seu

    corpo biológico através dos atos, produtos e lembranças que produz, o ob -jeto pode se tornar igualmente uma 'entidade distribuída', à medida que ocampo da sua ação se amplia em termos de tempo e espaço. Deste modo,uma canoa usada no círculo do kula continuava ligada ao seu dono, mesmodepoi. de ter sido trocada por objetos de valor, e acabava representandotoda a rede de interações e transformações que vinha sofrendo no decorrerde sua vida enquanto objeto (Munn, 1977). Deixava, portanto, de ser um

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    mero objeto material, agregando em torno de si uma rede densa de rela-ções entre ilhas, pessoas e objetos (Gell, 1992).

    E é igualmente porque objetos não são meros objetos na Amazônia que,em vez de incorporarem a lembrança do falecido produtor ou possuidor_ possibilitando que ele continue vivendo entre os vivos através das suasextensões materializadas -, precisam ser desfeitos para ajudarem vivos emortos a aceitarem a profunda e inegável transformação significada pela

    morte. Nada continua igual depois da destruição dos corpos.

    AG~NCIA DO DE SENHO: RELA CIONAR, SEDUZIR E CAPTURAR

    José de Paulo Kaxinawa, 1989.

    Duas linhas de força se entrelaçam no material a ser apresentado comrelação à produção de imagens entre os Kaxinawa: o tema da alteridade

    e o de agência. Mostrarei como algumas idéias germinais de Gell (1998)receberão necessariamente uma inflexão específica quando vistas sob aperspectiva da importância da alteridade para o pensamento amazônico.

    Como argumentamos acima, o que torna Gell tão atrativo para a et-nologia é o fato de ele propor uma abordagem de objetos, artefatos ouarte como se fossem pessoas , enfatizando suas qualidades agentivas. Aotraduzir esta proposta para o contexto das preocupações teóricas dos ama-

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    zonistas, poderíamos formular a questão de forma menos específica e per-guntar, com Gow (1988,1999), o que poderia ser a relação entre corpo eproduçao de imagens para os ameríndios, e também o que poderia ser arelaç ão entre corpo e artefatos para sociedades amazônicas específicas, nomeu caso, os Kaxinawa.

    Visto que outros seres, especialmente animais, recebem o status degente ou sujeitos no pensamento amazônico, a questão sobre o que fazercom artefatos, feitos de plantas e animais por humanos, se coloca auto-maticamente (Viveiros de Castro, 2004). Mas a questão pode ser apli-cada também a imagens produzidas pela agência combinada de plantas,memória, cantos e outras entidades. Devem estes também ser conside-rados como agentes, isto é, agentes sociais, ou mesmo pessoas, entidades'querendo se tornar pessoas, de determinado ponto de vista? O materialkaxinawa sugere que este é o caso para alguns artefatos e algumas ima-gens. Mas veremos que apesar de podermos falar de agência de desenhose objetos para os Kaxinawa, a relação entre artefatos e pessoas é diferentepara a Amazônia e a Melanésia. Esboçarei também algumas considera-ções críticas com relação aos conceitos de agência e a relação de sujei-to-objeto usada por Gell. Esta consideração crítica será empreendida apartir da discussão corrente entre americanistas sobre o tópico animismoou perspectivismo.

    É importante frisar que existe um marcado contraste no livro de Gell,Art and Agency, entre a primeira e a segunda parte, e que cada parte merece-ria um tratamento diferente. Os primeiros capítulos tratam o objeto de arteseparadamente, como índice numa cadeia interativa de tipos muito diferen-tes de sujeitos, todos ligados, uns aos outros, numa relação unídirecional de

    causa-efeito, isto é, de agentes cujas ações produzem pacientes, que, por suavez, pxiem se tornar agentes, quando reagindo à ação que sofreram.

    A .iltirna parte do livro segue um caminho totalmente diferente, pro-pondu u:n método quase oposto: isto é, uma vez tendo reconhecido que umíndice de ar te é parte de um grupo de objetos ou formas relacionados, comouma r essoa é parte deuma família, somos obrigados a prestar atenção aoestilo, isto é, às relações formais entre as formas. Uma vez idenrificadas tais

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    relações algumas hipóteses muito temidas sobre relações possíveis entre termo 'produção de imagens' (imag e-making) Falo aqui de imagens (tanto

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    relações, algumas hipóteses muito temidas sobre relações possíveis entreformas e o tipo de sociedade que as produz podem ser formuladas, comoa lei da menor diferença ( the law of lea st d ifference ) proposta por Gellpara o corpus das Ilha Marquesas composto por Karl Von den Steinen noséculo XIX. Gell fala em correlações em termos de forças culturais e ide-ológicas sincrônicas sem postular qualquer laço causal; uma abordagemmuito diferente da teoria de causa-efeito que propôs para a agência naprimeira parte do livro (Gell, 1998: 168).

    Minha crítica com relação à última parte do trabalho de Gell seria quea correlação com a qual trabalha foi descoberta a partir de uma visão ex-terior, não interior; isto é, as conexões entre padrões de desenhos e sua ló-gica gerativa com a lifeworld (o mundo vivido) da sociedade que as produznão foram encontradas através de uma conversa com as pessoas para asquais significam, mas através de correspondências formais entre as estrutu-ras sociais da sociedade e as estruturas formais guiando a produção dos de-senhos. Desta forma, Gell, um dos mais virulentos críticos da tradicionalantropologia da arte, faz concessões à forma estudada por conta própria,

    isto é, à análise formal (apesar de evitar, cuidadosamente, falar em 'bele-za'), mas não ao conteúdo. Ou talvez esta afirmação também não estejacorreta, ou somente se aplicaria ao capítulo sobre estilo e cultura, porqueGell só foi capaz de tornar seus 'índices de arte' em agentes porque admitiualgum tipo de sentido e contexto de interpretação, que possibilitaram seusartefatos ou imagens de agir.

    Uma nova abordagem da arte certamente terá de encontrar uma con-ciliação teórica entre essas diferentes partes conflitantes de um mesmotrabalho. E tal síntese só pode ser encontrada em uma et no g ra fi a f in aondeo papel do discurso nativo é abertamente reconhecido no processo de au-topoiesis (Toren, 2003: 710); isto é, o processo constante de produção denovos sentidos. E este processo continua, no nosso caso, no contexto doencontro ernografico. Neste processo, atenção deve ser dada tanto àquiloque é dito quanto ao que é silenciado.

    Por isso, antes de começar com o papel da alteridade na produção dasimagens pelos Kaxinawa, me deterei um pouco no que quero dizer com o

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    termo produção de imagens (imag e-making). Falo aqui de imagens (tantoverbais e visuais, quanto virtuais) e não de ar tefa tos porque estou tão inte-ressada em imagens veladas e imateriais e com a importância de experiên-cias às quais apenas se alude, mantendo-as essencialmente secretas, quan-to em objetos interagindo uns com os outros num mundo imediatamenteobse rvável. Outros autores chamaram recentemente atenção para estemesno fenômeno. Mentore fala da glorious tyranny of s il en ce (Mentore,200'f: 132-156), a tirania gloriosa do silêncio, e Anne-Christine Taylor,do s-gredo em torno do encontro com o aru tan, onde a interiorização darelacão estabelecida com o ancestral é tornada visível na pintura corporal,enquanto o conteúdo do encontro nunca é revelado (Taylor, 2003: 223-248:. Taussig, em Mimesis and Alterity, também aponta para a importânciade s« pensar sobre o que escapa à 'objetiticação'. Quando fala sobre o ima-ginário verbal usado por Florêncio, curandeiro colombiano, para esboçarsua visão, Taussig afirma:

    Parece-me crueial entender que este poder somente pode ser captu-rado através de uma imagem, e melhor ainda, entrando nesta imagem.A imagem é mais poderosa do que aquilo de que é uma imagem.(Taussig, 1993: 62)

    Ao escrever sobre um ritual de cura cuna, onde uma mordida de cobraé curada através da queima de imagens de mercadorias, Taussig volta aenfatizar a importância do efêrnero:

    [ ...] a criação do poder espiritual como im agem animada pela morteda materialidade da imagem. Dito de outra maneira, aparência pa-

    rece crucial, aparência pura, aparência como o impossível - umaentidade sem material idade. É como se uma lógica perversamentenostálgica se aplica onde a forma- esPírito só fJ od e e xistir como ag enteativo fJelo ap agar r,ento da sua forma material. Criação requer destrui-

    ção - daí a importância da terra dos mortos dos Cuna onde imagensflutuam com tanta abundância; daí a qualidade fantasmagórica dasfotografias. (Taussig, 1993: 135)

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    Autores que identificam a agência humana com a intenção predatória

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    ~\.\.~.. } • f4 t ~

    mente constitutiva da própria vida em geral e da vida social em particular(Overing, 1985b, 1986b, 1993b). O colapso desta precária 'vida tranqüila'está no horizonte de todo discurso ameríndio sobre doença, morte, confli-to e infortúnio.

    Fausto (2004: 172) se coloca a pergunta: O que significa ão basearuma cosmologia numa oposição clara entre o bem e o mal? Que tipo de so-

    ciedade assim o faz? , e concl . i com certa ironia que a mesma cultura quebaseia sua ética numa distinção universal entre o bem e o mal desenvolveu[...] uma capacidade insuperável para a violência e a destruição. Culturasindígenas que prosperaram em ambivalência, pelo contrário, não tiveramtanto sucesso. A questão sobre a relação entre a capacidade de um grupoou sociedade de aumentar seu poder de ação violenta e a ênfase de umacosmologia na predação recebeu diferentes tratamentos na literatura.

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    Autores que identificam a agência humana com a intenção predatóriachegam à paradoxal conclusão de que ninguém seria mais humano que o ja-guar e ninguém mais divinamente poderoso que o deus canibal, superlativodo humano. A 'falta de sucesso' dos ameríndios na imposição da sua própriaviolência sobre o mundo foi, por outro lado, também o ponto de partida deum outro tipo de reflexão que se ateve às implicações morais deste tipo defilosofia social. Não parece ser um mero acidente, portanto, que visões demundo maniqueístas levaram a mais destruição em grande escala do queaquelas que colocam a ambigüidade no próprio âmago do ser.

    Reichel-Dolmatoff(1971), Ârhem (1993,1996) e Isacsson (1993) formu-laram teorias de equilíbrio cósmico e Ârhem incorporou o conceito de eco-sofia de Guattari (1989), enquanto Overing (1993a, 1996,2000), Belaunde(2001,2005), Teixeira-Pínto (1997) e outros se concentraram nas implica-ções morais e psicológicas de teorias ameríndias de ambigüidade. Overing su-gere l ma interpretação que está também claramente presente na cosmologiakaxinawa, de que a existência de Fallible Gods , deuses falíveis, pode ser umamitologia muito mais saudável para a construção de sociedades igualitárias

    que o infalível bom exemplo de uma só figura paterna poderosa (Overing,19851,). A idéia da incorporação da alteridade, e sua presença dentro do queconst tui o mais interior dos interiores de sociedades e pessoas, não é, portan-to, ononopólio do pensamento psicanalítico. No pensamento ameríndio,entretanto, este processo é realizado sem a correspondente divisão internaem natureza e cultura e tem, portanto, resultados diferentes. 10

    A importância da alteridade para a constituição do eu recebe uma infle-xão especial entre os Pano (e os Kaxinawa são Pano, também neste aspec-to). Os Pano são tão explícitos com relação à regra amazônica que diz queo 'eu é constituído pelo outro', que têm sido considerados especialmenteinteressantes para pensar esta modalidade especificamente amazônica de serelacionar com o outro. Dito de modo sintético, esta modalidade amazônica

    10 Fausto (1999b) chama a atenção para uma lógica da qualidade na guerra indígena, ondese procura o máximo de rendimento simbólico da morte de um inimigo em vez de umamaximalização da morte em termos quantitativos. Em vez de coisificar o inimigo, este équalificado e individualizado. .

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    d l ã i li d bj ti ã d t j it t a um lento e cuidadoso processo que visava habituar seus corpos à nova

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    de relação implica em processos de subjetivação, do tornar-se sujeito, atra-vés do processo de tornar-se parcialmente outro, sendo que a subjetividadedo eu é significativamente aumentada pelo contato íntimo e a eventual in-corporação do outro (seja este um inimigo, espírito, animal ou planta).

    Esta incorporação pode assumir diversas formas, entre as quais as maisespetaculares, bem conhecidas da literatura, são o costume de comer oinimigo, tomar sua cabeça como troféu, os casos em que o matador incor-

    pora a alma, o canto ou o sangue de sua vítima para sempre em seu própriocorpo; além dos casos de crianças inimigas adotadas e mulheres raptadasque são esposadas.' Se estas práticas, com relação a inimigos humanos,têm, por razões óbvias, se tornado cada vez mais raras na sua forma maisobjetivada, a mesma lógica continua valendo com relação a relações esta-belecidas com animais, plantas e outros seres do universo.

    Esta observação tem conseqüências para o significado dos artef atos .Todas essas práticas estão mais ou menos relacionadas a um modelo es-pecífico de predação, onde o outro, mesmo quando morto ou capturado,não é nunca totalmente aniquilado, mas é de alguma maneira, mantidovivo dentro do próprio matador - como Viveiros de Castro (1986a) foi oprimeiro a demonstrar para o matador-cantor araweté -, ou é incorporadocomo novo membro dentro da comunidade.

    Os Pano eram famosos pelo último modelo de predação, o de atacarinimigos para raptar suas mulheres. Estas eram em geral tatuadas com omesmo motivo minimalista que o usado por seus capturadores, para me-lhor demonstrar a intenção de totalmente incorporá-Ias (Erikson, 1986).Nenhuma marca tinha a intenção de marcá-Ias para sempre enquanto ca-tivas, como estrangeiras ou inimigas. Pelo contrário, a intenção era de se

    casar com elas. Pessoas de outros grupos não eram incorporadas como es-cravos ou para sempre marcados como estrangeiros, mas eram submetidas

    11 Apenas alguns exemplos deste vasto universo são: exocanibalismo (Tupinambá - Fer-nandez, 1970; Viveiros de Castro, 1986a; Viveiros de Castro e Carneiro da Cunha, 1993;Wari - Vilaça, 1992); redução de cabeças (jfvaro - Tavlor, 1985); fusão matador-inimigo(Araweté - Viveiros de Castro, 1986); rapto (mulheres: Yawanawa - Carid, 1999; Perez,1999; crianças: Kadiwéu - Lévi-Srrauss, 1955; Ribeiro, 1980).

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    a um lento e cuidadoso processo que visava habituar seus corpos à novavida, até se tornarem partes integrantes das suas novas comunidades. Foiatravés deste método que o falecido chefe fundador dos Yawanawa obteveum respeitável número dem~lheres (Perez, 1999; Carid, 1999). Todas elasforam raptadas de grupos de nawa vizinhos, muitos deles hoje extintos, oumelhor, misturados com outros grupos nawa. Este exemplo mostra que afilosofia e etnonímia pano sobre o outro sendo constitutivo do eu pode emalguns casos ser entendido de forma bastante literal.

    Este, no entanto, não parece ter sido prática recorrente entre os Ka-xinawa que eram chamados txananawa, os numerosos , já no início doséculo XX (Tastevin, 1925a). Os Kaxinawa parecem ter escolhido ummodelo endogâmico de se casar perto de casa, preferencialmente na mes-ma c ldeia com primos cruzados de primeiro grau, algum tempo antes dachegada dos seringueiros na região. Não se pode decidir pela antiguidadedo modelo e existe um debate entre panólogos com relação à questão seos nawas e sua prática de captura representam o modelo originalmentepane ou preto-pano, ou se o modelo preto-pano deve ser encontrado

    entre os auto-contidos Kaxinawa. É interessante notar que os Culina, vi-zinhos e inimigos tradicionais dos Kaxinawa, parecem optar pelo mesmomodelo endogâmico de casar com parentes próximos que cresceram jun-tos (Pollock, 2004). O discurso kaxinawa sobre identidade, no entanto,é, como veremos a seguir, o dos Pano. O outro é .sernpre de alguma ma-neira reconhecido como parte do eu num sentido temporal assim comoconstitutivo; deste modo todas as coisas próprias são feitas de alteridade,e esta lógica também vale para 'todas as coisas feitas' ( ali thi ngs mad e ,parafraseando um subtítulo de Guss, 1989), todos os sujeitos estão a ca-

    minho de se tornarem outros.A produção da sociedade kaxinawa consiste em um tipo de domestica -

    çõo ou melhor, familiarização ou sedução da alteridade. O problema como termo 'domesticação' é que este termo se refere à domesticação de ani-mais, algo que os ameríndios explicitamente escolheram não fazer (Desco-la, 2001; Hugh- ]ones, 2001). Erikson (1984) usa o termo familiarisation eFausto fam iliarizar (1999a; 1999b; 2001) para falar do processo de habituar

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    mas no padrão unificante encontrado na maneira em que o estilo específico largo tem a ver com a eficácia ritual: quanto maisescuras e grossas aslinhas

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    dosKaxinawa é gerado. Ao observar o uso do desenho no nix puPim a pude deuma vez por todas descartar esta suposta função da arte corporal kaxinawa derefletir a organização social, assim como sua suposta função iconográfica narepresentação de entidades. Mais adiante mostraremos que os desenhos, en-quanto traços , linguagem dos yuxib u remetem a estes seus donos (ibu). Nainiciação feminina na tecelagem existem cantos dirigidos aosyuxibu , donosdos desenhos, para pedir sua obtenção. Nossa ênfase aqui, no entanto, é emoutro aspecto da agência do desenho, o de ligar universos e abrir caminhospara a transformação perceptiva em vez de funcionar como instrumento declassificação socíocogniti vo.

    Desenho entre os Kaxinawa é sobre relações (relatedness, o estar re-lacionado). Com isso quero dizer que o desenho alude a relações, ligandomundos diferentes, e aponta para a interdependência de diferentes tiposde pessoas. Nesta sua qualidade de 'veículo apontando para o estar relacio-nado' residesua capacidade de agir sobre o mundo: sobre os corpos ondeodesenho adere como uma segunda pele e sobreas mentes dos que viajam

    a mundos imaginários em sonhos e visões, onde a visualização do desenhofunciona como mapa, permitindo aosb e du y u xi n,alma do olho, de homense mulheres de encontrar a morada dosyuxibu, donos dos desenhos.

    O uso e a agência do desenho no rito de passagem setomaramclaros paramim quando via diferença entre os desenhos usados por adultos e criançaspassando pela intervenção ritual. Os desenhos donixpuPima não diferemem padrãoou forma dos verdadeiros desenhoskene ku in, mas diferem namaneira em que são aplicados, assim como na largura das linhas pintadas. Osdesenhos dos neófitos são chamados desenho largo (huku kene ) ou dese-nhos malfeitos (tube kene). Os desenhos em jenipapo nos rostos dos adultos,por outro lado, são finos e bem feitos, kuin. A razão de ser para o desenho

    iz Em pesquisa em andamento exploro mais a fundo o caráter cartográfico do desenho.Os nomes dos motivos referem a seres e partes dos seus corpos, assim como a relações ecaminhos. A tradução dos cantos dos desenhos visarevelar a cartografia cósmica presentena descrição estilística kaxinawa. Veremos assim que nomes de motivos não representamseus donos, mas levam a eles.

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    na pi:ttura corporal e facial, mais profunda seria a penetração doscantos nocorpe da criança. A agência do canto dependia, portanto, da intensidade dacor eda largura das linhas. Depois dos cantos terem entrado nos corpos, acriança pensará sobre eles, os cantos guiarão seus pensamentos. A pinturacorporal funciona como filtro e a diferença na distância entre aslinhas tem aver com a agência do desenho, dos cantos edos banhos medicinais que têmde penetrar a pele. O desenho chama a atenção para a permeabilidade dapele a influências exteriores. O corpo ingere pelos orifícios epela pele.

    Retomando ao desenho em geral, os Kaxinawa partilham com os Shipi-bo-Conibo (Gebhart-Sayer, 1984; Illius, 1987) e com os Piro (Gow, 1988,1999) a presença e a importância simultânea do desenho nas experiênciasvisionárias e na vida cotidiana. Os três grupos também partilham uma espe-cialização de gênero na sua relação com o desenho, onde tomarayahuasca(uma bebida conhecida por seus efeitos poderosos na indução de visões)éconsiderado atividade masculina, enquanto as mulheres se especializaramna ex:.cução do desenho. 13 Entre osKaxinawa padrões com desenho são tan-to tecidos em algodão e cestaria, quanto pintados no corpo e na cerâmica.

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    ••~ ; .. .. i ~ .•• .•• .y n. \..~ .• .r.... ...Rede com motivo dunu kose (espinho decobra).

    Motivo central: txede bedu. Pintura com guache.Elena Pinheiro Kaxinawa, 1994.

    Tecelagem motivo baxu xaka (escama dopeixe tamburatá).

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    senho em si e o tecer com desenho mais especificamente parecem se cons-tituir em metáfora-chave para pensar o tema de como se produz identidadea partir de alteridade no pensamento kaxinawa. A vida é feita do entre-laçar de fios, mas nesta visão os Kaxinawa não estão sozinhos. Tambémnão são os únicos a terem elaborado uma técnica de tecelagem onde oentrelaçamento de qualidades contrastantes ganhou a forma de duas corescontrastantes, produzindo figuras e contrafiguras de igual força visual com

    o efeito de os olhos não poderem decidir onde focar permanentemente afigura e o fundo.

    Poderia se elaborar várias ressonâncias entre esta característica formaldo estilo e um estilo de pensamento, como sugerido por Roe para os Shi-pibo e por Guss (1989) para os Yekuana, que enfatizaram a relação entreo visível e o invisível, ou a natureza transformacional da realidade paraestas cosmologias ameríndias. As ressonâncias entre estilo e mundo vi-vido podem também ser estendidas para a maneira como a sociedade éconstituída, no caso kaxinawa, por exemplo, pelas capacidades produtivas

    combinadas de homens e mulheres, de pessoas pertencendo à metade dosinu com as pertencendo à metade dos dua.

    Estas inferências de correlações entre estilo e sociedade explicadas emtermos de forças ideológicas e culturais sincrônicas como Gell sugere(Gell, 1998: 168), entretanto, ainda seriam muito incertas e efêmeras esomos imediatamente lembrados do crítico Boas que já no final do séculoXIX, início do século XX (1914), olhava com muita desconfiançaestascorrelações entre forma e conteúdo encontradas por antropólogos ansiosospor descobrirem sentido onde se supunha que a densidade dos sentidosainda não tinha sido 'perdida', ou seja, entre os nativos.

    Ests s correlações, portanto, não seriam mais que conjecturas ou espe-culações sobre formas silenciosas se as pessoas que as fazem não tivessemtambém algo a dizer sobre elas. E aqui nos deparamos de novo com a im-portância de levar o silêncio a sério. As mulheres kaxinawa eram muitosilenci: .sas com relação ao sentido do desenho e mesmo assim, no final,muito inha sido dito por caminhos que para mim, no momento, tinham

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    parecido como maneiras muito indiretas de conferir sentido. Muitas mu-lheres já tinham me drto várias e es que os desenhos h bi ki são todos

    mito de origem do dono do desenho e das imagens. Por ora, resumo asquestões que nos interessam aqui

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    lheres já tinham me drto várias vezes que os desenhos habias ki são todosiguais, é tudo um grande desenho. Depois de perguntas demais, a velhaMaria Sampaio, minha protetora e uma mulher que sabia do que estavafalando (isto é, o assunto dos yuxin, pois tinha sido tratado para parar devê-Ias), terminou o assunto com o comentário k eneki yuxinin hantxaki ,ou seja, o desenho é a linguagem dos yuxin .

    Voltaremos a esta célebre frase mais de uma vez neste trabalho. Por

    ora, corria introdução ao assunto, é interessante lembrar que yuxin e suaamplificação em yuxib u são seres à procura da forma, sempre tentando setransformar em algo diferente. Estas imagens flutuantes são poderosas e pe-rigosas porque podem causar corpos a mudaremsuas formas e adotar outrasformas como demonstrado em alguns casos de doença, desaparecimento eespecialmente por ocasião da morte. O mesmo assunto da transformaçãocorporal está no âmago do rito de passagem, onde corpos são pintados, mo-delados eendurecidos, isto é, onde a forma e a força futura dos corpos dospequenos está sendo trabalhado. Aqui pode ser útil a distinção usada por Vi-veiros de Castro (1979) para os Yawalapiti entremetamorfosee fa bricação.

    O rito de passagem tem a ver com a fabricação de corpos, enquantoaingestão ritual daa) ahuasca tem a ver com uma metamorfose temporária,vestindoas roupas, isto éos corpos de outros seres,animais ou outros tipos depessoas. O desenho tem um papel importante a desempenharem am.bososprocessos rituais; um papel diferente do desempenhado pelo desenho piro emcontextos similares defabricação e metamorfose decorpos, poisse entre estesúltimoso desenho somente v=rn completar ou anunciar uma transformaçãovisual oucorporal quando da saída da moça pú bere (como nocasoxinguano)e como prelúdio à verdadeira visão (Gow, 1988, 1999,2001), no casokaxi-

    nawa, o desenho tem papel de agente ativo e crucial neste processo.Para entender a origem do desenho, diversos mitos são importantes,

    Para uma primeira aproximação ao tema que nos acompanhará ao longodeste trabalho, começaremos no item que segue esta introdução com omito de origem do desenho (kene), por um lado, e da bebida que revelao mundo das imagens fluidas, por outro, para passar, depois, à análise do

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    questões que nos interessam aqui.O desenho foi ensinado a uma mulher kaxinawa pelo yuxin da jibóia,

    Sidika, na forma de uma senhora de idade. A técnica através da qual ospadrõ: s foram ensinados foi a tecelagem (informação de crucial importân-cia seg undo a linha boasiana e que não escapou a atenção da museólogaDawscn, 1975 e de Gow, 1988). Esta técnica primordial foi responsávelpelas características estilísticas específicas do desenho pintado. Encontra-

    mos o mesmo tipo de motivos labirínticos de gregas e losangos na pintu-ra faci.il e corporal dos Kaxinawa que os encontrados em muita cestariaamazônica. A originalidade do fazer kaxinawa reside na tecelagem destespadrões em tecidos de algodão.

    Outra versão do mito, contada por Agostinho Manduca do rio [ordão,esboça outro contexto de aprendizado, o da sedução. Uma jovem vai todofinal de tarde para a floresta onde seencontra com seu amante, a jibóiaYube na forma de um belo jovem. Fazem amor e depois Yube se transformanovamente em jibóia, se enrola no seu corpo todo até ficar com a línguana cara da moça e fica nesta posição por horas, ensinando a ela os segredosdo desenho. Este mito demonstra muitas semelhanças com o mito de ini-ciação masculina no mundo das imagens.

    No mito de origem daayahuasca, o yuxin da cobra aparece na ,forma deuma jovem mulher belamente pintada para um caçador kaxinawa. O ho-mem queria fazer amor com ela e foi levado para o mundo debaixo da águaonde arrendeu a preparar e tomar ayahuasca, chamado dunu him iou dunaun -isun , re.pectivarnente sangue e urina da sucuri. Quando morreu, seu corpointerrac o deu origem tanto à Psichotriavir idi s, a folha, quanto ao Banisteriop-sis caapi, o cipó, que juntos fazem a bebida nixi pae, cipó embriagante.

    Resumindo, podemos dizer que oyuxib u da jibóia/suc uri deu ao homemo conhecimento tanto de preparar quanto de tomar a bebida, o conhe-cimento de produzir visões, e às mulheres o conhecimento de produzir egerar desenhos. Todos osdesenhos possíveis seencontram virtualmente napele dacobra, onde um desenho pode ser transformado em outro seguindocertas regras de composição.

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    Veremos também como o paralelismo mítico é corroborado pelo pa-ralelismo ritual: a iniciação feminina no desenho equivale à iniciação

    Às vezeslembretes destes encontros são levados para casa e guardadosna forma de um chapéu feito do couro da jibóia no caso dos homens

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    ralelismo ritual: a iniciação feminina no desenho equivale à iniciaçãomasculina na caça e na experiência visionária ou vice-versa. Isto é, am-bos, homens e mulheres podem ritualmente matar jibóias para se comu-nicarem com seuyuxin. Dieta e reclusão sãopré-requisitospara o bomêxito destes atos de predação controlada tanto para as mulheres quantopara os homens. E para associar estes rituais com a literatura amazô-nica sobre o sangue do guerreiro e o sangue menstrual, basta lembrar

    que a matança da jibóia tem a ver com o controle do fluxo de sangue(na caça e na menstruação) tanto quanto com o controle do fluxo dasimagens .

    Estes dois rituais são poderosos, perigosos e secretos, porque o que édito para oyuxin da jibóia ganha existência virtual própria e, se reveladoa outros, pode se tornarcontra o próprio enunciador originário. Mulheresnegociam com a jibóia a obtenção de um olho para desenho e o domíniosobre sua própria fertilidade através do controle do fluxo sanguíneo. Ocontrole do desenho e da fertilidade são intimamente ligados.

    Homens podem obter sorte na caça através do pacto com a jibóia, maspodem também pronunciar o desejo de provocar a morte de inimigos. Éimportante lembrar que asorte na caça é tão associadaà visão quanto odom pelo desenho das mulheres. A cobra fita a caça e aatrai pelo olharhipnótico. A sorte na caça está ligada à cautela do caçador que não seafasta dos caminhos (kene) traçados, mas atrai a caça, seduzindo-a a seaproximar. O poder da visão obtida pelas mulheres, por outro lado, podetambém ser usado como magia de amor, hipnotizando homens da mesmamaneira que o desenho da sucuri mulher hipnotizouYube no mito.

    14 Para outro contexto em que existe uma associação entre diferentes fluxos femininos eo desenho v r Gow (1999); para uma análise comparativa do significado cosmológico dosangue no pensamento ameríndio, com especial ênfase no estatuto do sangue menstrualv r Belaunde (2005).15 Entre os Culina do Alto Purus, vizinhos dos Kaxinawa, estes últimos são famosos porsua magia do amor, que pod e levar à morte se não for curado por um especialista pano.Tanto a magia quanto sua cura pertencem à esfera de competências do especialista nopreparo e i10 uso da ayahua sca (Pollock, 2004: 210).

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    na forma de um chapéu feito do couro da jibóia, no caso dos homens,ou n 1 forma de um pedaço deste mesmo couro guardado pelas ~ulheres.Tais itens, índices de um enc~ntro passado, mas duradouro, que intensifi-ca a subjetividade do detentor, têm de ser mantidos escondidos para nãocausar a fúria do dono, seuyuxin. O chapéu é exposto somente durante okatxanawa (r itual de fertilidade), enquanto o couro guardado pela mulhernunca se tornará um objeto de exposição. Estes artefatos atestam o fato de

    a jibóia permanecer viva no objeto. São objetos relacionais. Realçam ocaris.na e ascapacidades produtivas dos que se submeteram ao ritual, man-tendo amemór ia do encontro vivo,ao mesmo tempo em que o conteúdodo encontro é mantido em segredo para qualquer outra pessoa. Relaçõesdentro da comunidade de parentes e afins próximos sãodiretamente afeta-das por relações como mundo exterior.

    Estes artefatosaludem à capacidade da pessoade agir sobre o mun-do através de um conhecimento produtivo, de maneira muito similar aoscolares de miçanga ou contas de granito usados pela mulher piaroa paraaludir à quantidade de filhos que criou, ou do ruwang para visualizar suacapacidade de drenar conhecimento produtivo das fontes exteriores domundo social humano. Se dentro do corpo estas capacidades produtivassão cristalizadas na forma de contas degranito invisíveis, porque internos,fora do corpo os adornos falam de forças ocultas (Overing, 1988, 1989).

    As relações entre artefatos e humanos se parecem com as relações en-tre humanos eanimais e são conseqüências destas, como no caso da ma-tança da jibóia. As mesmas relações também valem entre humanos e seusinimigos em geral. A relação entre o caçador ou a caçadora humana e ajibóia é reveladora. A jibóia é morta, mas não se vinga. Pelo contrário,

    entra no corpo do seu matador e fica com ele/ela, estabelecendo umarelação duradoura, similar à descrita por Viveiros de Castro (1986a) parao matador e sua vítima, que continua viva dentro do corpo do matadormanifestando-se através do canto. Augusto adicionou uma alternativamuito ilustrativa à matança da jibóia: era possível também, segundo ele,criar uma jibóia pequena como bicho de estimação num vasilhame.

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    zante, o canto menciona a pena do gavião real, representando neste con-texto o pênis. O barulho das asas do gavião real quando pousa é associado

    Encontraremos vários exemplos de artefatos e 'coisas' que agem ao lon-go deste trabalho. Na análise do rito de passagem, a miçanga esua asso-

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    texto o pênis. O barulho das asas do gavião real quando pousa é associadoao som emitido pelo tambor.

    O encontro se dá na praia. Na areia, desenho da cobra , desenho docaminho da cobra . Os traços deixados pelo casal na areia são compara-dos aos deixados pela cobra que passa. Este é outro argumento para verno desenho um agente, visto que linhas estão associadas a movimentos.Outro momento em que linhas são interpretadas como materializando

    movimentos é quando os componentes do desenho são descritos como'rios' (duni) e 'caminhos' (bai). Esta é a função do desenho na visão, nãosomente como descrito nos cantos com ay ahuasca, onde se diz que o cantopinta caminhos em frente aos olhos fechados do neófito (como entre osYaminawa, Townsley, 1988; 1993), mas também na afirmação de que umapessoa doente não deve dormir em rede com desenho, para que seu yuxindo olho não se perca no labirinto quando sonha, sob risco de ser levadopara o outro lado, a aldeia dos mortos, e morrer (Keifenheim, 1996).

    Exploramos até agora a questão daagência da imagem, do traço, da for-ma, sem q~e esta seja necessariamente materializada. Tratamos do poderda imagem na sua relação com aimaginação, uma imaginação perceptiva,que ativamente imagina e constrói um mundo possível a partir de percep-tos informados pela maneira que os Kaxinawa vivem seumundo. Mas nomundo kaxinawa não são somente os desenhos e as imagens que agem,os artefatos são candidatos a um estatuto equivalente, pois assim como adesmaterialização da imagem é fonte de poder, sua materialização tambémo é. E é para esta qualidade de agente material e para o poder oculto dosartefatos que nos cercam que Miller (1987, 1994) chama a atenção. Elesnos circundam de forma silenciosa quase fazendo com que nos esqueçamos

    da sua presença, mas é exatamente este caráter dado, sua característicade moldura que permite o foco, o responsável por seu poder de agir sobrenosso ser de forma tão pervasi va.

    16 Ver Miller (1987) para uma elaboração sobre a importância da ob jectificação no pro-cesso de construção do sujeito. M iller retoma o conceito de objectificação de Hegel paramostrar o quanto o surgimento do sujeito coincide com o do objeto.

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    go deste t aba o. a a á se do to de passage , a ça ga esua associação tanto com a figura mítica do ln ka quanto com os brancos, ganharádestaque. Os Kaxinawa usam as contas para a confecção de colares dediversas cores para mulheres e crianças, usadas no cotidiano e em maiorquantidade durante as festas. Crianças doentes os usam em maior quan-tidade que crianças saudáveis. Os Kaxinawa contam que 'antigamente' ascrianças usavam pesados colares de contas cruzando seu peito. Em fun-

    ção d. s mulheres valorizarem menos os colares de sementes coletadas naflorest i do que os de miçanga obtidas através da troca com estrangeiros,usam menos colares do que gostariam. Contas brancas são usadas para te-cer puseiras, braçadeiras, tornozeleiras e joelheiras. Outro uso da miçanga,de orizern aparentemente recente é a pulseira tecida com desenho. Asmulheres fazem estas pulseiras com vívidos motivos tirados do estoque demotivos kaxinawa (kene kuin) e as dão de presente aos namorados, maridosou amantes. Não são comercializadas.

    Foi no contexto da tradução dos cantos do nixpu Pima que as 'contasde vidro' chamaram minha atenção para uma reflexão nativa sobre ofascínio e sedução pelo Outro, desde a mítica figura do lnk a ao atualnawa, o estrangeiro não-indígena. Nos cantos, as contas ligam em cadeiaassociativa, através das figuras da linguagem, conceitos-chave como den-tes, olhos, sementes, metal, ossos, milho, ke ne (desenho), lnka e yuxin.O tema de fios ou desenhos tecidos com miçanga, como caminhos queligam mundos distintos (o que os desenhos de fato são para os Kaxinawa; Lagrou 1991; 1996a; 1997; 2002a), pode servir como uma metáfora paraesta pesquisa sobre a materialização ou imagina