lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da...

15
Pier Paolo Pasolini e o teatro: uma introdução MARIAROSARIA FABRIS Em fins de março de 1966, uma hemorragia provocada por uma úlcera obrigou Pier Paolo Pasolini a ficar dois meses convalescendo. Durante o período de repouso forçado, o intelectual dedicou-se à leitura dos Diálogos (395-347 a.C.), de Platão e, a partir de abril, começou a esboçar peças, que terminou em anos sucessivos: Orgia (1966-1968), Bestia da stile (1966-1974), Pilade (1966-1967), Affabulazione (1966-1969), Porcile (1967-1972) e Calderón (1967-1973), sem contar Teorema (cuja primeira versão inédita data de 1966), transformada em roteiro cinematográfico e em romance. O longo tempo de gestação de algumas dessas tragédias (Bestia da stile, Porcile e Calderón) ou sua transposição para outro gênero (Porcile e Teorema) atestam a recorrência de certos temas no grande laboratório pasoliniano de experimentações. Em consequência dessa atividade de escrita dramática, o autor começava também a lançar as ideias do que chamará “teatro di Parola” (teatro da Palavra), ideias que, entre fins de 1967 e o início de 1968, se consubstanciaram no Manifesto per un nuovo teatro (Manifesto por um novo teatro), o qual, publicado no número de janeiro-março de 1968 da revista Nuovi argomenti, integrará depois o volume Teatro (Milano: Mondadori, 2001). Reportando-se ao “teatro da democracia ateniense”, no qual, como ele mesmo dizia, não havia ação no palco, Pasolini (2001: 8, 9, 18) propugnava, em oposição ao teatro tradicional e ao de vanguarda, “a falta quase que total de ação cênica”, de modo que só o texto (a Palavra) se apresentasse ao público, por intermédio de seu “veículo vivente”, o ator. Este, portanto, não deveria expressar-se na linguagem convencional do teatro, mas trazer para o palco uma fala corriqueira, caracterizada ainda pela inflexão dialetal de sua região de origem. Isso na teoria, porque na prática, quer dizer nas tragédias, o autor se valeu de uma linguagem culta, extremamente poética, sem contaminações regionais, exceto no caso do monólogo do Espírito da Mãe em Bestia da stile, no qual o dialeto friulano é “uma língua inventada” (NASCIMBEN, 2012: 84), como sempre o foi em Pasolini. Universidade de São Paulo (docente aposentada), pós-doutorado.

Transcript of lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da...

Page 1: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

Pier Paolo Pasolini e o teatro: uma introdução

MARIAROSARIA FABRIS

Em fins de março de 1966, uma hemorragia provocada por uma úlcera obrigou Pier

Paolo Pasolini a ficar dois meses convalescendo. Durante o período de repouso forçado,

o intelectual dedicou-se à leitura dos Diálogos (395-347 a.C.), de Platão e, a partir de

abril, começou a esboçar peças, que terminou em anos sucessivos: Orgia (1966-1968),

Bestia da stile (1966-1974), Pilade (1966-1967), Affabulazione (1966-1969), Porcile

(1967-1972) e Calderón (1967-1973), sem contar Teorema (cuja primeira versão inédita

data de 1966), transformada em roteiro cinematográfico e em romance. O longo tempo

de gestação de algumas dessas tragédias (Bestia da stile, Porcile e Calderón) ou sua

transposição para outro gênero (Porcile e Teorema) atestam a recorrência de certos

temas no grande laboratório pasoliniano de experimentações.

Em consequência dessa atividade de escrita dramática, o autor começava também a

lançar as ideias do que chamará “teatro di Parola” (teatro da Palavra), ideias que, entre

fins de 1967 e o início de 1968, se consubstanciaram no Manifesto per un nuovo teatro

(Manifesto por um novo teatro), o qual, publicado no número de janeiro-março de 1968

da revista Nuovi argomenti, integrará depois o volume Teatro (Milano: Mondadori,

2001).

Reportando-se ao “teatro da democracia ateniense”, no qual, como ele mesmo dizia, não

havia ação no palco, Pasolini (2001: 8, 9, 18) propugnava, em oposição ao teatro

tradicional e ao de vanguarda, “a falta quase que total de ação cênica”, de modo que só

o texto (a Palavra) se apresentasse ao público, por intermédio de seu “veículo vivente”,

o ator. Este, portanto, não deveria expressar-se na linguagem convencional do teatro,

mas trazer para o palco uma fala corriqueira, caracterizada ainda pela inflexão dialetal

de sua região de origem. Isso na teoria, porque na prática, quer dizer nas tragédias, o

autor se valeu de uma linguagem culta, extremamente poética, sem contaminações

regionais, exceto no caso do monólogo do Espírito da Mãe em Bestia da stile, no qual o

dialeto friulano é “uma língua inventada” (NASCIMBEN, 2012: 84), como sempre o foi

em Pasolini.

Universidade de São Paulo (docente aposentada), pós-doutorado.

Page 2: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

2

Nas tragédias que escreveu a partir da segunda metade dos anos 1960, os atos e as cenas

foram substituídos por episódios e estásimos; além disso, estavam presentes o coro e o

corifeu (transvestido em moderno speaker). Em algumas delas, a referência à mitologia

grega foi mais direta; em outras, mais velada, mas quase sempre lida à luz das teorias de

Sigmund Freud, que se tornou personagem de uma das peças. E havia muito mais, como

explicitou Stefano Casi (2014: 116):

Não se trata de simples emulação da tragédia grega: as tragédias em versos

respiram as tensões de [William Butler] Yeats, o lirismo de Federico García

Lorca, a música recitativa do amplo blank verse de Thomas Starts Eliot ou

Paul Claudel, o rigor político do verso de Peter Weiss e Heiner Müller, que

naquela mesma época estavam revitalizando o teatro alemão. Sem esquecer

a entonação das poesias “teatrais” de Allen Ginsberg, “poeta irmão” que

Pasolini conhece justamente no período em que escrevia suas tragédias1.

E, ainda, certo parentesco com o Teatro da Crueldade – o recorrente tema pasoliniano

da doença corresponderia à peste em Antonin Artaud; com Jean-Baptiste Racine, no

encontro entre “emotividade e intelectualidade em histórias aberrantes” (CASI, 2012:

185); e com L’illusion comique (A ilusão cômica, 1635), de Pierre Corneille.

Em Orgia, em busca do estado inicial, ao Homem (de traços andróginos) e à Mulher

(Medéia reencarnada) só resta a morte. Sob o título de Orgia: uma tragédia de Pasolini,

a peça foi encenada no Brasil em 2003 por Roberto Lage. E, dirigida pelo próprio autor,

havia sido apresentada, em novembro de 1968, no Teatro Stabile de Turim, mas a

montagem não foi bem recebida:

A utopia teatral de Pasolini entrava em choque com a realidade social e

cultural do país: uma hora e meia de diálogo poético, numa rarefação total

de signos e ações, numa dicção teatral quase de recitativo melodramático,

não podia estar em sintonia com um público que esperava algo diferente:

discursos claros, diretos, “políticos” e não uma esquálida história de

sadomasoquismo sexual e cerebral, que parecia um caso de masturbação

intelectual (CASI, 2014: 118).

Nomeadas em Bestia da stile, as Erínias são, para Pasolini (1988: 670), divindades da

“podre Antiguidade burguesa”, que se transformaram em “Eugênias, Heurísticas,

Eucarísticas, Eumênides”, para “proteger (e integrar) com sua antiga Loucura as obras

da nova Razão”, a partir de 1945.

1Em agosto de 1966, Pasolini foi aos Estados Unidos pela primeira vez. O impacto foi tão grande, que ele

cogitou fazer de Nova York uma das locações do filme San Paolo, projeto não realizado. Descontente

com os atores italianos, pensou em montar suas peças naquela cidade.

Page 3: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

3

Pilade é uma espécie de apêndice da Oréstia esquiliana que, a pedido do ator Vittorio

Gassman, Pasolini havia traduzido em 19592. O personagem-título, expulso de Argos

por acreditar na volta das Fúrias, em seu exílio nas montanhas, encontra as Eumênides

de Atenas, as quais lhe preveem um futuro luminoso. O jovem, no entanto, acaba por

recusar a luz da Razão consoladora. Em 2010, Pílades foi apresentada em São Paulo

pelo Teatro de Narradores.

Em Affabulazione, surgem imbricados o mito de Cronos, devorador da própria prole, e o

de Édipo parricida (mas focalizado do avesso, porque é o pai, voyeur e andrógino

confesso, que mata o filho pelo qual está apaixonado), cuja história é contada pela

Sombra de Sófocles, que já surge no prólogo.

Porcile focaliza uma Alemanha neonazista, na qual a “Godesberg goethiana” foi

cedendo lugar a “uma Atenas de cimento” (PASOLINI, 1988: 462, 457). Ao levar a

peça para a tela, em 1969, Pasolini acrescentou o episódio do jovem bárbaro

antropofágico, interpretado por Pierre Clementi. Traduzida e dirigida por Alessandra

Vannucci, diretora italiana atuante no Brasil, Pocilga foi representada no Rio de Janeiro

em 2006.

Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é

um sonho, 1635), em Calderón, nos sonhos de Rosaura, o mítico incesto edipiano se

repete três vezes, numa delas em seus matizes femininos. Sigismondo (de ascendência

judaica, que absolve os outros com sua terapia) é pai de Rosaura e se une à filha para

gerar Pablo, por quem ela se apaixona, projetando esse amor também no jovem Enrique.

Ideada por João Denys Araújo Leite, a representação de Calderón foi levada para

nossos palcos em 1989.

Essas tragédias

confirmam a ideia de um teatro enquanto espaço da confissão e do

escândalo, e a prática de uma dramaturgia baseada na oposição entre um

protagonista “heroico” pelo alcance de seu escândalo e uma rede social à

qual se sente alheio e que tende a isolá-lo ou a expulsá-lo (CASI, 2012: 183).

2Nas palavras de Giacomo Trevisan (2013): “Uma tradução exemplar moderníssima, na qual Pasolini

experimenta, na dimensão oral, todas as nuances da língua por ele empregada em Le ceneri di Gramsci”,

livro de poesias publicado em 1957. Sempre a pedido de Gassman, em 1963, o escritor traduzirá, em três

semanas, Miles gloriosus (O soldado fanfarrão, 197 a.C.), de Tito Mácio Plauto, sob o título de Il

vantone. A peça acabou sendo encenada por outra companhia teatral naquele mesmo ano, quando também

o texto traduzido foi lançado em livro. Pasolini inovava mais uma vez, ao fazer uso do dialeto de Roma e

ao remeter ao teatro de variedades.

Page 4: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

4

Para Casi (2014: 118), o empecilho para a fruição das peças não se encontra “na suposta

verbosidade ou na igualmente suposta estaticidade ou na ainda mais suposta dificuldade

linguística. A dificuldade está no constante entrelaçamento do nível político com aquele

sagrado”. As tragédias ao provocarem “a irrupção do sagrado na cotidianidade

burguesa”, devem levar “o público burguês à reflexão sobre sua própria tragédia, ou

seja, a tragédia de ser burguês sem nenhuma possibilidade de solução”. Com suas

“histórias aberrantes” acabam sendo um desafio “lançado com os olhos voltados não

para o passado, para o teatro grego, mas para o futuro, para um teatro que ainda precisa

ser inventado”.

No mesmo período de elaboração das peças, também a filmografia pasoliniana se

alimentou dos mitos gregos: em 1967, o cineasta rodou Edipo re (Édipo rei), inspirado

na grande tragédia de Sófocles; em 1968, em Teorema (Teorema), a personagem da

filha também apresenta traços sofoclianos: como Antígona, Odetta assistirá o pai em sua

enfermidade; este, por sua vez, é mais um Édipo da galeria pasoliniana, por ser antes um

filho do que um pai; em 1969, foi a vez de Medea (Medéia, a feiticeira do amor), no

qual Pasolini fundiu as lendas tessálicas do centauro Quíron, dos argonautas e de Jasão

e Medéia com a tragédia homônima de Eurípides, e de Appunti per un'Orestiade

africana (Anotações para uma Oréstia africana), a partir da trilogia de Ésquilo,

formada por Agamenon, As coéforas e As Eumênides. Neste documentário, o diretor

estabelecia uma analogia entre a civilização grega arcaica e a sociedade tribal do

continente negro, entre a democracia que Orestes leva para Argos e a descoberta da

democracia na África, tentando articular um discurso que lhe permitisse auspiciar às

novas nações a passagem de estados tribais, regidos pela religião ancestral, para

modernas democracias3.

Outros filmes se ressentiram dessa centralidade do teatro na obra de Pasolini do

período. Bastaria pensar em produções como Uccellacci e uccellini (Gaviões e

3Esta parte inicial do texto, embora atualizada, está baseada em trabalhos anteriores de minha autoria –

FABRIS (2009); FABRIS (2011); FABRIS (2014a).

Page 5: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

5

passarinhos, 1966), que ele estruturou a partir do ideário brechtiano4, ou “Che cosa

sono le nuvole?” (“O que são as nuvens?”), terceiro episódio do filme Capriccio

all’italiana (Capricho à italiana, 1967), quando transpôs para a tela Othello (Otelo, c.

1604), de William Shakespeare, acrescentando-lhe uma pitada de Bertolt Brecht, de

Calderón de la Barca (La vida es sueño), de Corneille (L’illusion comique), de

Aristófanes (As nuvens, 423 a.C.) e muito de formas populares de espetáculo, como a

commedia dell’arte e o teatro de marionetes em sua versão do fim do século XIX na

Itália, na qual atores substituíam os bonecos de madeira5.

As seis peças canônicas dos anos 1960-1970 não representam, porém, a primeira

incursão de Pasolini no campo teatral, pois nele a “tensão dramatúrgica” (TREVISAN,

2012: 37) havia se manifestado ainda na juventude, como demonstram textos e esboços

recuperados, bem como o interesse do jovem Pier Paolo por aspectos técnicos, como

montagem e direção. Pesquisas mais recentes revelaram que, em 1938, Pasolini, aos 16

anos de idade, participou, em sua cidade natal, do Ludi Juveniles, concurso anual de

cultura fascista, arte e esporte, instituído para estudantes não universitários. Dentre as

três seções literárias – poesia, novela e drama –, Pier Paolo optou pela escrita teatral,

apresentando La sua gloria, que o levou a ganhar o primeiro lugar. Dessa forma, a

estreia literária de Pasolini não se deu como poeta em 1942, com a publicação de Poesie

a Casarsa, mas como dramaturgo, quatro anos antes, se entendermos por publicação

não a impressão de uma obra, mas o fato de esta vir a público. Descoberto por um grupo

de estudantes secundários no Arquivo de Estado de Bolonha, o manuscrito de La sua

gloria foi publicado no n. 40 da revista Rendiconti, em março de 1996.

O drama aborda a história de Guido Solera, um carbonário, o qual, no início do século

XIX, tendo se rebelado ao império austríaco, é condenado à pena capital, transformada

depois em 20 anos de reclusão numa cela da fortaleza de Spielberg, na Morávia.

Embora em consonância com o tema proposto pelo concurso – o Risorgimento –,

Pasolini, partindo da vida do patriota Antonio Solera e inspirando-se no livro de

4O filme está dividido em esquetes. Nesse mesmo período, Pasolini concebeu uma série de esquetes para

os espetáculos de cabaré-teatro de Laura Betti, como o ato único Italie magique (1964), um “libelo

zombeteiro contra o teatro tradicional e brechtiano” (TREVISAN, 2013). 5Para uma análise mais detalhada da relação desses filmes com o teatro, consultar FABRIS (1999);

FABRIS (2014b).

Page 6: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

6

memórias Le mie prigioni (Minhas prisões, 1832), de Silvio Pellico, resgatava um

episódio que relatava um fracasso em vez de exaltar o triunfo do ideário que havia

animado a luta pela unificação da Itália. Em 2002, um grupo de estudantes da Faculdade

de Letras de Bolonha levou para o palco a peça, com toda sua variedade linguística: os

burgueses falando numa língua italiana culta; os guardas austríacos, com um sotaque

teutônico carregado; o povo, no dialeto de Veneza. Mais uma vez, o jovem autor se

opunha à política cultural vigente, visto que o Fascismo havia banido os dialetos.

O primeiro teatro de Pasolini abrangeu também outros tipos de escrita dramatúrgica,

dentre eles o poema “La domènia uliva”, que fecha Poesie a Casarsa, escrito em 1941-

1942, que a crítica, muitas vezes classificou como “mistério medieval” ou “lauda

iacoponica”6 (Antonio Russi), ou ainda como “sacra representação” (Alberto Asor

Rosa, Stefano Casi), por se tratar de diálogos em versos (BIASI, 2012: 19-20).

Esse tipo de composição será retomado nos três poemas de “Dialoghi e figure” e em

“Le piaghe illuminate”, publicados na revista Il setaccio em dezembro de 1942 e em

fevereiro de 1943, respectivamente; e nos Dialoghi friulani – dentre os quais “Discòrs

tra na fantasuta e un rosignòul” [Dialogo tra una giovinetta e un usignolo], “Discòrs tra

la Plèif e un fantàt” [Dialogo tra un cappellano e un fanciullo], “Discòrs tra na Veça e

l’alba” [Dialogo tra una vecchia e l’alba] e “Discòrs tra un frut e un Pelegrin” [Dialogo

tra un fanciullo e un pellegrino], publicados na revista Stroligùt di cà da l’aga, em abril

e em agosto de 1944, em agosto de 1945 e em junho de 1947, respectivamente –, os

quais, reelaborados em italiano, integrarão o primeiro núcleo do livro de poesias

L’usignolo della Chiesa Cattolica (1958)7. “Discòrs tra la Plèif e un fantàt” e “Discòrs

tra un frut e un Pelegrin”, renomeado “Dialogut tra Sòpula e Ciasarsa”, foram

apresentados durante um Meriggio d’arte, duas vezes em Casara e uma vez em Zoppola

(pequena localidade próxima à cidade natal da mãe de Pasolini), entre o fim de junho e

o início de julho de 1944. Meriggi d’arte eram pequenos espetáculos teatrais idealizados

pelo autor e realizados com os alunos da escola secundária de Valvasone, outra

6Trata-se de uma lauda dialogada, que confere ao texto uma dimensão teatral, característica da obra do

frade franciscano Jacopone da Todi, um dos mais importantes poetas italianos da Idade Média. 7Os diálogos correspondem, respectivamente, às composições VIII, IV, III e I, que integram o segundo

conjunto de poesias [“L’usignolo”] da primeira parte [“L’usignolo della Chiesa Cattolica (1943)”] do

livro publicado em 1958 (PASOLINI, 1982: 22, 18, 17, 15).

Page 7: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

7

cidadezinha dos arredores8. Articulados em esquetes ou breves diálogos líricos,

guardavam semelhança com o teatro católico desenvolvido na Itália (Diego Fabbri) e na

França (Henri Ghéon e Léon Chanceler) naquele mesmo período. Ao ser interpretado

apenas por homens, esse tipo de encenação acabava sendo uma espécie de “psicodrama

cultural, no qual o grupo toma[va] consciência de si mesmo pelo jogo cênico” (PUPPA,

2012: 72)9.

Segundo Casi (2014: 115), na fase friulana, Pasolini teve como propósito criar

um teatro original para dar à pequena comunidade um teatro político

próprio, como numa nova Atenas (entendendo a cidadezinha de Casarsa

como polis democrática e homogênea), mas também um teatro pedagógico,

com textos escritos especialmente para as crianças e encenados com elas.

Em Dialoghi friulani, o escritor levava a cabo “a experimentação de uma escrita

dramática, que, talvez, seria mais correto definir poesia dramática, e que depois, nos

anos 1960, se tornará uma escolha estilística” (LOCANTORE, 2012: 35), uma vez que,

em suas peças, o poético prevalecerá sobre o teatral. Como afirmou o próprio Pasolini

numa entrevista a Il giorno (1 dez. 1968), tratava-se de “um misto de ‘poesia lida em

voz alta’ e de ‘convenção teatral’, embora reduzida ao mínimo” (LOCANTORE, 2012:

35).

As sugestões de La sua gloria – em que a palavra já se sobrepunha à ação, numa

antecipação das propostas teóricas teatrais dos anos 1960 – e dos pequenos textos de

caráter pedagógico desembocarão em I Turcs tal Friúl, que o autor escreveu em maio de

1944. No ato único em dialeto friulano, o passado ajudava a refletir sobre o presente. As

escolhas de dois irmãos da família Colùs10 diante da invasão dos turcos em 1499,

quando Pauli opta pela reflexão, à espera de um milagre, e Meni parte para a luta11,

ecoavam as posturas de Pier Paolo e de Guidalberto frente ao domínio dos nazifascistas

8Na época, Casarsa, Zoppola e Valvasone (Valvasone Arzene, desde 1 de janeiro de 2015) pertenciam à

província de Údine; posteriormente, passaram a integrar a província de Pordenone, criada em 1968. 9Esses fragmentos dialogados poderiam remeter ainda a Operette morali, do poeta Giacomo Leopardi,

coletânea de 24 textos de caráter filosófico, em forma de diálogo, escrita entre 1824 e 1832 e publicada,

em sua versão definitiva, em 1835 (cf. PUPPA, 2012: 71). 10Colùs, em friulano, ou Colussi, em italiano, era o sobrenome de solteira de Susanna Pasolini, mãe do

escritor. 11Além dos dois protagonistas, há um terceiro irmão, Nisiuti (desdobramento de Pauli), um menino que,

em sua inocência, remete à poesia de Giovanni Pascoli, autor sobre o qual Pasolini estava desenvolvendo

sua tese de conclusão de curso, Antologia della poesia pascoliana: introduzione e commenti, que

defendeu em fins de 1945, na Faculdade de Letras da Universidade de Bolonha.

Page 8: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

8

no Centro e no Norte da Itália naquele período: o escritor incipiente permanecerá em

Casarsa della Delizia, onde, graças ao ensino, aos estudos e ao labor artístico, tentará

adquirir “uma relativa serenidade” contra a ameaça de ser convocado para servir o

exército da República de Saló12; o irmão caçula começava a acariciar a ideia de se juntar

aos partisans nas montanhas, alcançando-os em junho daquele ano (NALDINI, 2001:

LXIV)13. Apogeu da produção teatral de Pasolini em friulano, a peça foi redescoberta

em 1976, portanto depois da morte do autor.

Mais uma vez, o jovem Pier Paolo se tornava personagem de uma obra teatral, como já

o havia sido em La mia gloria, embora adotando o nome do irmão. Guido Solera

representará “o protótipo dos personagens teatrais pasolinianos” (MICHELUZ, 2012:

12), o ancestral do Filho em Teorema (ambos sucumbem à própria incapacidade

criativa) e de Jan em Bestia da stile (dois jovens poetas que lutam pela liberdade da

Pátria). Todos vítimas do poder: Guido, que desperdiçará sua juventude numa

masmorra; Pauli que enfrentará a morte interior, enquanto Meni, seu duplo, conhecerá a

morte física; Jan que se sacrificará por um ideal14.

Pasolini espelhava “seu profundo tormento existencial”, fosse ele “a busca da glória, a

rebelião ao poder ou um martírio de natureza sexual” (MICHELUZ, 2012: 15), nesses e

em outros personagens “autobiográficos”, como Paolo em La poesia o la gioia (1947),

12A República Social Italiana – mais conhecida como República de Saló, em virtude da localização de seu

comando nessa cidadezinha da Lombardia, às margens do Lago de Garda, e em outras pequenas

localidades vizinhas – foi proclamada, em 23 de setembro de 1943 e durou até 25 de abril de 1945.

Governada por Benito Mussolini, abrangia o Centro e o Norte da Itália, ocupados pelas tropas nazistas.

Pier Paolo havia sido chamado para servir o exército poucos dias antes do armistício de 8 de setembro de

1943, quando a Itália rompeu com a Alemanha para aliar-se à Inglaterra e aos Estados Unidos. Naquele

dia fatídico, o destacamento de Pasolini foi aprisionado pelos alemães, mas ele conseguiu fugir e alcançar

Casarsa. 13Guido, vulgo Ermes, faleceu em 12 de fevereiro de 1945, aos 19 anos de idade, mas a notícia de seu

assassinato só chegou aos familiares várias semanas depois do fim da guerra na Itália (25 de abril). Seus

restos mortais foram transladados para Casarsa no dia 21 de junho. Os combatentes da Brigata Osoppo à

qual pertencia, acusados de conivência com os nazifascistas, foram executados por partisans comunistas

italianos e eslavos. As investigações realizadas no pós-guerra demonstraram que o massacre de Porzûs se

deu por divergências ideológicas, ou seja, os estalinistas tinham ordens expressas de eliminar quem não

professasse seu credo (cf. NALDINI, 2001: LXVII-LXVIII; CACUCCI, 2016: 202). 14O personagem é inspirado em Jan Palach, um jovem estudante que ateou fogo em si mesmo em protesto

contra a invasão da Tchecoslováquia, comandada pela União Soviética, com o apoio da República

Democrática Alemã, da República Popular da Polônia, da República Popular da Hungria e da República

Popular da Bulgária. A chamada “Operação Danúbio” foi deflagrada entre 20 e 21 de agosto de 1968 para

deter a “Primavera de Praga”, ou seja, as reformas de liberação política levadas a cabo por Alexander

Dubcek a partir de 5 de janeiro daquele ano.

Page 9: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

9

em que o “protótipo inquieto” de 1938 amadurecia “principalmente na busca

desesperada da salvação nos versos poéticos” (MICHELUZ, 2012: 15); como o

protagonista de Il cappellano, o qual padecerá dos “males ampliados e alargados para a

esfera sexual , de Solera” (MICHELUZ, 2012: 14).

Esta peça, em quatro atos, começou a ser esboçada em 1947, foi reelaborada em 1957,

em 1959 e em 1960, de forma descontínua, sendo completada em 1965, quando foi

intitulada Nel ’46!, depois do autor ter pensado em outros títulos: Storia interiore e

Venti secoli di gioia. A partir de anotações feitas na segunda metade de 1960, entre este

ano e 1965, o texto sofreu modificações significativas: Dom Paolo, o capelão desde a

primeira versão, torna-se Giovanni, um jovem professor de letras interiorano,

perseguido pelo padre e pelo diretor da escola em que ensina “por sua excessiva

dedicação socrática aos alunos e por seu envolvimento, em tempo integral, em suas

vidas” (PUPPA, 2012: 74-75); “é acrescentada a voz de um alto-falante que expõe o

prólogo e é inserido um final que constitui uma paródia da ópera lírica” (CHIESI, 2012:

61), quando o protagonista, em sonho, se vê na cruz, como Cristo15. A presença de Lina

não passa de um escudo para disfarçar a atração de Giovanni por Eligio, o irmão

seminarista da moça, de 14-15 anos, que provoca o protagonista exibindo o próprio

corpo; este, em sonho, tenta estrangular o objeto de seu desejo. O drama previa que a

moça, o seminarista e a mãe do protagonista (que assistirá à sua morte) deviam ser

interpretados pela mesma atriz, num jogo ambíguo de indistinção de gêneros, que

“esconde e revela, misturando-as entre si, as pulsões relativas ao Eros do personagem,

enquanto se afirma a relação entre o pai-mestre e o filho-discípulo” (PUPPA, 2012: 75),

característica da dramaturgia do escritor.

Pasolini, na função de diretor e no papel de Eligio, havia apresentado a primeira cena do

segundo ato de Il cappellano na seção de arte dramática do “Festival della Gioventù”,

em Florença, no pós-guerra. Nel ’46! foi representada pela “Compagnia dei Non”,

15O tema do sacrifício de Cristo, ou análogo, é constante também na lírica e na cinematografia do autor.

Bastaria lembrar do primeiro conjunto de seis poesias (“La passione”) da parte inicial de L’usignolo della

Chiesa Cattolica, ou de filmes como Accattone (Desajuste social, 1961), Mamma Roma (Mamma Roma,

1962), “La ricota” (“A ricota”), episódio de Ro.Go.Pa.G – Laviamoci il cervello (Relações humanas,

1963) e Il vangelo secondo Matteo (O evangelho segundo São Mateus, 1964). No teatro, já em La sua

gloria, a identificação com Cristo estava presente. No patíbulo em Veneza, Guido Solera, pouco antes de

sua pena ser modificada, “tem os traços de Jesus na cruz, visto que invoca o auxílio de Deus e sente que

seu papel de vítima sacrifical é necessário para o bem da comunidade” (MICHELUZ, 2012: 15).

Page 10: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

10

estreando em 31 de maio de 1965 no Teatro dei Satiri, em Roma, mas não convenceu

nem a crítica nem o público.

Na peça foram assinalados ecos da representação dentro da representação de Sei

personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor, 1921), de Luigi

Pirandello, da “dramaturgia do eu” de August Strindberg – que se intensificarão em

Edipo all’alba (1942) –, da relação entre sonho e realidade derivada de Calderón de la

Barca, da atmosfera mórbida de Il piccolo santo (1912), de Roberto Bracco, da comédia

Un angelo peccatore (1873), de Isnardo Sartorio, primeira montagem de Pasolini como

diretor, e dos dramas de Eugene O’Neill, estudados com a pequena companhia da

“Academiuta de lenga furlana”, espécie de salão literário fundado por Pier Paolo e seus

amigos de Casarsa, em 18 de fevereiro de 1945 (cf. CHIESI, 2012: 59; PUPPA, 2012:

75).

Edipo all’alba, peça em cinco atos, parcialmente publicada no volume Teatro de 2001 e

integralmente em Théatre 1938-1965 (Besançon: Les Solitaires Intempestifs, 2005), foi

a primeira reelaboração do mito clássico executada por Pasolini, a qual, pela

“multiplicação das pulsões incestuosas” e pela invocação final a Cristo se relaciona com

Oedipe (1931), de André Gide (TREVISAN, 2012: 39), que o autor italiano pode ter

lido no ano anterior ao da redação de sua tragédia em verso e em prosa, tendo

provavelmente se inspirado também em Mirra (1784-1786), de Vittorio Alfieri, cuja

protagonista também sofre pelo amor proibido que dedica a seu pai. Na invocação do

deus salvífico, no qual se espelha, “Pasolini parece dar forma a suas recorrentes

fantasias infantis nas quais se imaginava Cristo na cruz, no centro de um verdadeiro

martírio público” (TREVISAN, 2012: 40)16. Estar exposto por uma transgressão era

uma forma de alcançar a salvação.

16“Aquele corpo nu, coberto apenas por uma estranha faixa nos quadris (que eu supunha uma discreta

convenção), suscitava em mim pensamentos não abertamente ilícitos, e, embora várias vezes olhasse

aquela tira de seda como um véu colocado sobre um abismo inquietante (era a absoluta gratuidade da

infância), dirigia logo aqueles meus sentimentos à piedade e à oração. Depois, em minhas fantasias

apareceu expressamente o desejo de imitar Jesus... Via-me pendurado na cruz, pregado. Meus quadris

estavam envoltos sucintamente por aquele pano leve e uma multidão imensa olhava para mim. Aquele

meu martírio público acabou tornando-se uma imagem voluptuosa: e, aos poucos, fui sendo pregado com

o corpo inteiramente nu...” (NALDINI, 2001: LI). Criado pela mãe na religião católica, Pier Paolo foi um

praticante fervoroso até os 14 anos de idade.

Page 11: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

11

O tema recorrente do sonho incestuoso, do “sonho não lembrado” (TREVISAN, 2012:

41), percorre Edipo all’alba (o sonho de Ismênia prenuncia sua paixão por um dos

irmãos, motivo de sua morte pelas mãos de Édipo, porque contaminada pelo mal de

família), Affabulazione (o pesadelo do pai), Calderón (os sonhos de Rosaura) e o filme

Edipo re (Édipo rei, 1967), que leva o protagonista a procurar o oráculo de Delfos. O

embate geracional potencializado na “trilogia edípica” (FELICE, 2012: 48) da segunda

metade dos anos 1960 – Affabulazione, Edipo re e Porcile – caracterizará também uma

“fábula dramática”, que, como Dialoghi friulani, estava eivada de arcadismo: I fanciulli

e gli elfi (1944), escrita por Pasolini para seus alunos da escola de Versuta17, e La

poesia o la gioia.

Na primeira obra, três filhos derrotam o pai-ogro, interpretado pelo próprio autor, cujo

nome não aparece nos cartazes, sendo substituído por N.N.18, abreviação que pode levar

a pensar que Pasolini quisesse se anular atrás daquele nome (PUPPA, 2012: 72) ou que

se sentia “filho da ‘fortuna’ como Édipo” (FELICE, 2012: 48); a segunda é

protagonizada por Antonio, que volta da guerra consumido pelo álcool e maledicente, e

seu irmão Paolo, um poeta que guarda em segredo sua diversidade sexual19. Nesse jogo

de espelhos, o escritor assume o papel do pai ou o transforma, com todas as

características de Carlo Alberto Pasolini, em irmão; ou seja, a figura paterna é

denegrida, reprimida ou anulada, como em I Turcs tal Friúl. E, no entanto, em

Consolazione (1942), o pai havia sido evocado como um fantasma noturno de boa

índole; mas esse diálogo em versos é anterior ao período em que Carlo Alberto foi

prisioneiro de guerra no Quênia (1941-1945), de onde voltou alquebrado e alcoolizado,

e da adesão de Guidalberto à luta partisan e sua consequente morte.

Quanto às mães presentes na obra teatral pasoliniana, elas também se originaram de um

protótipo: a figura materna de La sua gloria, à qual se remetem as de I Turcs tal Friúl,

La poesia o la gloria, Porcile, Affabulazione – mas não o Espírito da Mãe em Bestia da

17Versuta é um pequeno distrito de Casarsa, no qual Pier Paolo e a mãe se refugiaram em outubro de 1944

para fugir das razias nazifascistas na região. O ato único foi representado no Teatro dell’Asilo de Casarsa,

em 15 de julho de 1945, e, em seguida, no vizinho distrito de San Giovanni. 18A abreviação latina N.N. está por “nomen nescio” (ou “nescio nomen”, isto é, “não conheço o nome”);

em italiano, N.N. corresponde a “non nominato” (“não nomeado”) e designa, dentre outras coisas, pessoa

anônima ou pessoa cuja paternidade é desconhecida (acepção hoje em desuso). 19Na fase friulana, Pasolini elaborou ainda o ato único La morteana (1945) e, já em Roma, Un pesciolino

(1957), monólogo escrito para uma atriz (cf. TREVISAN, 2013).

Page 12: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

12

stile – e, no âmbito cinematográfico, as de Mamma Roma e Il vangelo secondo Matteo,

para citar alguns exemplos. Nesse caso também, parece haver todo um jogo entre o

revelar e o mascarar as intenções do autor, pois a mãe tanto pode ser a encarnação da

Virgem Maria, como Susanna Pasolini em Il vangelo secondo Matteo, quanto fonte de

desejo. Sempre no âmbito cinematográfico, bastaria pensar em personagens

interpretados por Silvana Mangano: de um lado, Nossa Senhora, mãe espiritual, em Il

decameron (Decamerão, 1971); de outro, a Mãe de Teorema e, principalmente, Jocasta

em Edipo re, mães carnais, mães violadas. Ou seja, a figura da atriz representava para

Pasolini “as duas faces de eros”20.

Para Angela Felice (2012: 51), a dramaturgia do escritor bolonhês se alimenta

da contaminação entre “gêneros”, a sacra representação e a tragédia

grega: formas originárias de fundação teatral, tornadas paradigmáticas pelo

tempo, das quais Pasolini aproveita tanto a divisão em quadros-episódios,

quanto, com sua adesão ao gênero trágico antigo, a compacidade das três

unidades e os motivos da agnição21 e da catarse, além, naturalmente,

daquele do bode expiatório cruzado com a obsessão cristológica.

Dessa forma, os temas do teatro pasoliniano se confundem com as ações que motivaram

sua vida: a busca do reconhecimento intelectual; o embate com o sistema; a condenação

pública por ser causador de escândalo em virtude de sua diversidade, não apenas em

termos sexuais; a sombra da morte; o sacrifício que o identificava com Cristo. O

dramaturgo e ator napolitano Eduardo De Filippo soube entender as inquietações

existenciais e intelectuais de Pasolini – que havia transformado as pedras que lhe

atiravam em instrumento para defender suas ideias –, resumindo sua árdua luta numa

composição poética 22 que lhe dedicou:

20Leitura inspirada nos comentários de Gilda de Mello e Souza (1994: 165) sobre as mulheres no filme

81/2 (Oito e meio, 1963), de Federico Fellini, principalmente quando afirma que, neste, “o leque de

possibilidades femininas [...] se reduz à oposição básica das duas faces de eros, à duplicação pura e

impura do amor, encarnada na mãe e na Saraghina” [prostituta]. 21Conceito estabelecido por Aristóteles: numa obra literária ou teatral, se refere ao momento em que um

personagem toma conhecimento de sua verdadeira identidade, depois de enfrentar várias vicissitudes, o

que pode causar uma mudança na trama. 22

Eduardo De Filippo deveria ter sido o protagonista de Porno-Teo-Kolossal, projeto cinematográfico

interrompido pelo assassinato de Pasolini, na praia de Óstia (Roma), na noite de 1 para 2 de novembro de

1975. Tocado por sua morte, em “Pier Paolo”, escreveu sobre o pequeno monumento erguido no local do

nefasto acontecimento: “Non li toccate / quei diciotto sassi / che fanno aiuola / con a capo issata / la

spalliera di Cristo. / I fiori, / sì, / quando saranno secchi, / quelli toglieteli, / ma la spalliera, / povera e

sovrana, / e quei diciotto irregolari sassi, / messi a difesa / di una voce altissima, / non li togliete più! /

Penserà il vento / a levigarli, / per addolcirne / gli angoli pungenti; / penserà il sole / a renderli cocenti, /

Page 13: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

13 Não toquem nelas,

nas dezoito pedras

feito um canteiro;

à cabeceira, ergue-se

o espaldar de Cristo.

As flores,

sim,

ao ficarem secas,

podem tirá-las,

mas o espaldar,

pobre e soberano,

e as dezoito irregulares pedras,

lá, a defender

uma voz altíssima,

não os tirem mais!

O vento cuidará

de alisá-las,

amaciando

os cantos pontiagudos;

o sol cuidará

de torná-las ardentes,

abrasantes

como seu pensamento;

cairá a chuva

e as deixará luzentes,

como a luz

de suas palavras;

o espaldar cuidará

de dar-nos ainda

a fé e a esperança

no Cristo pobre.

Referências bibliográficas

BIASI, Andrea. “La permanenza dei codici della sacra rappresentazione ne La domènia

uliva”. In: CASI, Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della

Delizia: Marsilio-Centro Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 19-28.

CACUCCI, Pino. “Note dell’autore”. In: Nessuno può portarti un fiore. Milano:

Feltrinelli, 2016, p. 201-205.

CASI, Stefano, “Il teatro di Pasolini: teoria vs drammaturgia”. In: CASI, Stefano et al.

(org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia: Marsilio-Centro Studi Pier

Paolo Pasolini, 2012, p. 181-192.

arroventati / come il suo pensiero; / cadrà la pioggia / e li farà lucenti, / come la luce / delle sue parole; /

penserà la spalliera / a darci ancora / la fede e la speranza / in Cristo povero”. A poesia e os demais textos

em italiano das referências bibliográficas foram traduzidos pela autora.

Page 14: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

14

CASI, Stefano, “O teatro de Pasolini entre utopia e concretude”. In: KACTUZ, Flávio

(org.). Pasolini ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo. Rio de

Janeiro: Uns entre Outros, 2014, p. 114-119.

CHIESI, Roberto. “‘Una cosa un po’ mostruosa e folle’: la storia interiore di Nel ’46!”.

In: CASI, Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia:

Marsilio-Centro Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 58-68.

FABRIS, Mariarosaria. “Um encontro frustrado”. Revista Italiano UERJ, Rio de

Janeiro, v. 11, n. 2, 2011, p. 6-16 [recurso eletrônico].

FABRIS, Mariarosaria. “Pasolini interpreta o Brasil, o Brasil interpreta Pasolini”. In:

KACTUZ, Flávio (org.). Pasolini ou quando o cinema se faz poesia e política de seu

tempo. Rio de Janeiro: Uns entre Outros, 2014ª, p. 131-138.

FABRIS, Mariarosaria. “Pasolini nas pegadas de Shakespeare”. In: SOUZA, Marly

Gondim Cavalcanti; SILVA, Agnaldo Rodrigues da (org.). Diálogo entre literatura e

outras artes. Cáceres: UNEMAT Editora, 2014b, p. 171-188.

FABRIS, Mariarosaria. “Pasolini no rumo de Brecht”. Sinopse, São Paulo, jun. 1999, p.

28-29.

FABRIS, Mariarosaria. “A tragédia grega no cinema de Pier Paolo Pasolini”. In:

CORSEUIL, Anelise Reich et al. (org.). Cinema: lanterna mágica da história e da

mitologia. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009, p. 117-140.

FELICE, Angela. “Alla ricerca del padre perduto. Dinamica di famiglia spezzata ne I

Turcs tal Friúl”. In: CASI, Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa

della Delizia: Marsilio-Centro Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 45-57.

LOCANTORE, Maura. “Un laboratorio poetico-teatrale: i Dialoghi friulani”. In: CASI,

Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia: Marsilio-Centro

Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 29-36.

MICHELUZ, Daniele. “Guido Solera, il prototipo di un personaggio”. In: CASI,

Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia: Marsilio-Centro

Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 11-18.

NALDINI, Nico. “Cronologia”. In: PASOLINI, Pier Paolo. Per il cinema. 2 v. Milano:

Mondadori, 2001, v. I, p. XLVII-CXIV.

Page 15: lançar as ideias do que chamará “ ” (tea se ao “teatro da ... · Engendrada a partir da peça de Pedro Calderón de la Barca, La vida es sueño (A vida é um sonho, ... 1967),

15

NASCIMBEN, Laura. “Riflessioni sull’esperienza linguistica del Teatro di Parola”. In:

CASI, Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia: Marsilio-

Centro Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 83-93.

PASOLINI, Pier Paolo. “Manifesto por um novo teatro”. Trad. Rosete de Sá. Folhetim,

Rio de Janeiro, n. 11, set.-dez. 2001, p. 4-21.

PASOLINI, Pier Paolo. Teatro. Milano: Garzanti, 1988.

PASOLINI, Pier Paolo. L’usignolo della Chiesa Cattolica. Torino: Einaudi, 1982.

PUPPA, Paolo. “Per una drammaturgia al plurale”. In: CASI, Stefano et al. (org.).

Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa della Delizia: Marsilio-Centro Studi Pier Paolo

Pasolini, 2012, p. 71-82.

SOUZA, Gilda de Mello e. “O salto mortal de Fellini”. In: CALIL, Carlos Augusto

(org.). Fellini visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 160-171.

TREVISAN, Giacomo. “Il teatro dell’io. Mito, sacro, tragico. Su Edipo all’alba di Pier

Paolo Pasolini”. In: CASI, Stefano et al. (org.). Pasolini e il teatro. Venezia-Casarsa

della Delizia: Marsilio-Centro Studi Pier Paolo Pasolini, 2012, p. 37-44.

TREVISAN, Giacomo. “Il teatro di Pasolini, di Stefano Casi”, 22 jul. 2013. Disponível

em: <centrostudipierpaolopasolinicasarsa.it/molteniblog/il-teatro-di-pasolini-di-stefano-

casi>. Acesso: 30 abr. 2018.