Latim e esperanto, via internet luiz fernando dias pita

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LATIM E ESPERANTO, VIA INTERNET Luiz Fernando Dias Pita (Unigranrio/UCB) O recém-terminado século XX foi palco de uma série de revoluções contínuas e complementares no âmbito das comunicações, culminando com o advento não apenas das comunicações de massa, mas também das chamadas tecnologias de informação. O surgimento destas tecnologias, centradas na rede mundial de computadores - a Internet - teve um efeito retro-alimentador nas comunicações: paradigmas como distância, espaço, tempo etc., vem sendo radicalmente redimensionados a partir de e por causa do estabelecimento de novos conceitos como realidade virtual, ciberespaço e comunicações de longa distância em tempo real. Diversas das possibilidades de aplicação destas novas tecnologias estão ainda em desenvolvimento, mas é certo que conceitos que até recentemente se consideravam definitivamente estabelecidos, vêm se redesenhando. Exemplo disso é o desenvolvimento das tecnologias de educação à distância: o impulso que tiveram a partir da internet não pode ser ainda contabilizado, mas é possível afirmar que, dentro desta nova realidade, as presenças físicas de professor e aluno já não são mais condições sine qua non da relação ensino-aprendizagem. Outrossim, ao estabelecer novas possibilidades de configuração de espaços aglutinadores que permitem - em escala muito maior e mais abrangente que no passado - a formação de grupos humanos congregados unicamente no compartilhar de interesses comuns, a internet passa a agir como seu principal elemento integrador, por disponibilizar a esses grupos espaços, ainda que virtuais, para discussão e intercâmbio de experiências. Importa destacar, dentre estes grupos, aquelas comunidades linguísticas minoritárias que se têm valido do processo acima descrito para a), compensar o fato de viverem em diáspora; b), preservar seus respectivos idiomas e c), valendo-se das inovações da própria tecnologia no âmbito da educação à distância, aumentar o número de membros de sua própria comunidade. Tais possibilidades - impensáveis há duas e inéditas há apenas uma década - interessam às Ciências da Linguagem tanto pela relativização de conceitos que comportam, como pelo reescalonamento dos objetos a que tais conceitos são geralmente impostos. Assim, pretendendo analisar o modus operandi pelo qual comunidades linguísticas minoritárias se valem da internet para alcançar os objetivos expressos acima, selecionamos como objeto de análise comunidades usuárias de idiomas cujo crescimento na rede não pode ser creditado ao aumento do número de seus falantes nativos, pois será justamente a ausência destes nativos a primeira das peculiaridades que compartilham: o Esperanto e o Latim. A estes dois idiomas costuma-se agregar, respectivamente, os epítetos de “língua artificial” e “língua morta”, dadas às condições de sua origem, no caso do Esperanto, e da ausência de seus falantes e/ou fossilização do seu sistema linguístico, no caso do Latim. Estas, no entanto, são condições que nos parecem, em virtude da ação de suas comunidades, merecedoras de reavaliação. Analisemo-lhes os casos, começando pelo do Esperanto, para o qual será mister algum preâmbulo:

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LATIM E ESPERANTO, VIA INTERNET Luiz Fernando Dias Pita (Unigranrio/UCB)

O recém-terminado século XX

foi palco de uma série de revoluções

contínuas e complementares no âmbito

das comunicações, culminando com o

advento não apenas das comunicações

de massa, mas também das chamadas

tecnologias de informação. O

surgimento destas tecnologias,

centradas na rede mundial de

computadores - a Internet - teve um

efeito retro-alimentador nas

comunicações: paradigmas como

distância, espaço, tempo etc., vem

sendo radicalmente redimensionados a

partir de e por causa do estabelecimento

de novos conceitos como realidade

virtual, ciberespaço e comunicações de

longa distância em tempo real.

Diversas das possibilidades de

aplicação destas novas tecnologias estão

ainda em desenvolvimento, mas é certo

que conceitos que até recentemente se

consideravam definitivamente

estabelecidos, vêm se redesenhando.

Exemplo disso é o desenvolvimento das

tecnologias de educação à distância: o

impulso que tiveram a partir

da internet não pode ser ainda

contabilizado, mas é possível afirmar

que, dentro desta nova realidade, as

presenças físicas de professor e aluno já

não são mais condições sine qua non da

relação ensino-aprendizagem.

Outrossim, ao estabelecer novas

possibilidades de configuração de

espaços aglutinadores que permitem -

em escala muito maior e mais

abrangente que no passado - a formação

de grupos humanos congregados

unicamente no compartilhar de

interesses comuns, a internet passa a

agir como seu principal elemento

integrador, por disponibilizar a esses

grupos espaços, ainda que virtuais, para

discussão e intercâmbio de

experiências.

Importa destacar, dentre estes

grupos, aquelas comunidades

linguísticas minoritárias que se têm

valido do processo acima descrito

para a), compensar o fato de viverem

em diáspora; b), preservar seus

respectivos idiomas e c), valendo-se das

inovações da própria tecnologia no

âmbito da educação à distância,

aumentar o número de membros de sua

própria comunidade. Tais possibilidades

- impensáveis há duas e inéditas há

apenas uma década - interessam às

Ciências da Linguagem tanto pela

relativização de conceitos que

comportam, como pelo reescalonamento

dos objetos a que tais conceitos são

geralmente impostos.

Assim, pretendendo analisar

o modus operandi pelo qual

comunidades linguísticas minoritárias

se valem da internet para alcançar os

objetivos expressos acima,

selecionamos como objeto de análise

comunidades usuárias de idiomas cujo

crescimento na rede não pode ser

creditado ao aumento do número de

seus falantes nativos, pois será

justamente a ausência destes nativos a

primeira das peculiaridades que

compartilham: o Esperanto e o Latim.

A estes dois idiomas costuma-se

agregar, respectivamente, os epítetos de

“língua artificial” e “língua morta”,

dadas às condições de sua origem, no

caso do Esperanto, e da ausência de

seus falantes e/ou fossilização do seu

sistema linguístico, no caso do Latim.

Estas, no entanto, são condições que nos

parecem, em virtude da ação de suas

comunidades, merecedoras de

reavaliação. Analisemo-lhes os casos,

começando pelo do Esperanto, para o

qual será mister algum preâmbulo:

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Dua Lingvo por Ĉiuj

O Esperanto é resultado das

pesquisas do oftalmologista polonês

Lazar Zamenhof, que elaborou o projeto

do idioma em razão das ondas de

violência racial que presenciara na

infância e adolescência: sua província

natal era habitada por quatro grupos

etno-lingüístico-religiosos - alemães

luteranos, lituanos ortodoxos, poloneses

católicos e judeus - cujo ódio mútuo era

manipulado pelo governo czarista russo

para impedir qualquer articulação pela

independência.

Crendo que a existência de uma

língua comum seria o primeiro passo

para o fim das divergências, Zamenhof

publicou em 1887 o primeiro manual do

idioma que idealizara. Assim, o

Esperanto nasce ao mesmo tempo com

um propósito idealista e uma aplicação

prática: propõe-se a ser tão somente a

“segunda língua de cada indivíduo” e

não a substituir os idiomas nacionais.

Não sendo um linguista por

formação, Zamenhof pôde, ainda que

arbitrariamente, resolver diversos dos

problemas que atrairiam a atenção de

um linguista: o Esperanto não apresenta

nenhuma irregularidade em seus

sistemas fonético, morfológico,

sintático e ortográfico, fato que acaba

sendo um elemento facilitador da

aprendizagem do idioma. Outro ponto

estrategicamente positivo utilizado por

Zamenhof foi lançar mão do léxico

comum à maioria das línguas europeias;

tornando o idioma transparente para

grande parte da população do mundial,

falante - graças ao processo de expansão

colonial da Era Moderna - destes

idiomas.

Se, considerando-se o estágio

das comunicações no fim do século

XIX, poderíamos aguardar do Esperanto

alguma utilização unicamente como

código de escrita, observe-se que já em

1905 realizava-se o primeiro congresso

internacional de seus usuários, onde a

aplicabilidade oral da língua seria

testada. A partir de então, os congressos

internacionais têm sido o evento

máximo do esperantismo mundial.

Graças à conjugação da

regularidade absoluta com a

transparência lexical, acrescida da

ideologia humanista que o acompanha

desde sua criação, o Esperanto tem

conseguido manter uma taxa de

crescimento internacional bastante

regular - apesar de retrocessos, como o

ocorrido durante a Segunda Guerra

Mundial, período em que muitos

esperantistas europeus morreram em

campos nazistas, acusados de serem

“agentes do sionismo internacional” -,

estimando-se hoje um total de dois

milhões de esperantistas ativos no

mundo.

Uma vez que o Esperanto é

sempre uma segunda língua, deve-se

mencionar que é impossível,

principalmente após o advento

da internet, aquilatar-se com rigor

metodológico o número exato de seus

falantes - assim como também os de

Latim. Entretanto, pode-se rastrear os

países em que o movimento esperantista

é mais ativo, e, dentre estes, destaca-se

o Brasil, tanto pelo número de

atividades que desenvolve, pelo número

absoluto de esperantistas aqui

residentes, como por sua antiguidade: a

fundação da Liga Brasileira de

Esperanto remonta a 1907.

Se o movimento esperantista

sempre foi - por sua própria ideologia -

propenso ao internacionalismo, e,

portanto, fértil em contatos

internacionais, atente-se para o fato de

que o uso da língua não se restringiu

unicamente à chamada “cultura de

congressos”: ao longo de sua existência,

o Esperanto tem desenvolvido uma

literatura e uma música próprias -

gênese de outros movimentos artísticos,

em sua maioria ainda incipientes - cujos

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nomes em geral se dedicam a escrever

unicamente para o público esperantista.

No caso específico da literatura

esperantista, esta já tem apresentado,

além da compreensível apropriação de

formas literárias das mais distintas,

advindas de diferentes culturas humanas

e com diferentes matizes de

literariedade, algumas formas próprias

de versificação, como os

“monosilaboj” desenvolvidos pelo poeta

esperantista brasileiro Diderto Freto.

O esperantismo, como

movimento, sempre se caracterizou pela

busca de novos adeptos para sua causa.

Tal processo fez-se, ao longo do século

XX, dentro das possibilidades de os

esperantistas acompanharem as

inovações no campo do ensino-

aprendizagem de idiomas e dentro da

estratégia de vincular seu movimento a

outras causas que compartilhassem seus

ideais, criando assim simbioses em que

o esperantismo garantia, dentro de

determinados círculos sociais - que

variavam segundo o país - a captação de

novos falantes.

Evidentemente, tal modelo de

crescimento acabaria limitando os

esperantistas à condição de sub-grupo

daquele grupo a que se ligava,

reduzindo o movimento esperantista a

uma situação de semi-clandestinidade.

Conquanto não houvesse - como no

Brasil - nenhuma restrição ao

Esperanto, este não conseguia

desvincular-se da condição simbiótica

nem, em última análise, mostrar-se ao

grande público. Assim, ainda hoje, não

é de estranhar-se que, mesmo no meio

acadêmico, haja quem pense no

Esperanto como um projeto fracassado

ou natimorto, ou mesmo encontrar-se

quem nunca haja ouvido falar neste

idioma: o modelo de crescimento

adotado, assim como as estratégias de

divulgação, passavam longe das

atenções do meio acadêmico ou do

mercado de ensino-aprendizagem de

idiomas, mas não impediu - como

dissemos - o desenvolvimento de uma

cultura particular.

A situação acima descrita

modificou-se nos últimos anos, pois o

acesso dos esperantistas aos meios

eletrônicos de comunicação e de

produção de material didático

possibilitou à divulgação do Esperanto

uma escala até então inatingida, levando

não apenas à ultrapassagem daqueles

círculos a que se limitava: o

crescimento dos que estudam Esperanto

- e consequentemente daqueles que se

engajam no movimento esperantista,

tornando-se não apenas um falante, mas

um consumidor da produção cultural

veiculada neste idioma - tem alcançado

patamares impensáveis há alguns anos.

Tomemos alguns dados ilustrativos:

Uma das estratégias mais

utilizadas na divulgação do idioma tem

sido a criação de listas de discussão que

congreguem os esperantistas em rede.

Citando unicamente as listas em maior

atividade no Brasil, vemos três casos

que merecem menção: A primeira das

listas criadas - denominada Veki

(Virtuala Esperanto-Klubo Internacia)

alcançou o número de 160 membros

apenas no ano de 1998 - considerando-

se o ritmo do crescimento da rede no

país, esse dado é relevante - e seu

sucesso fez com que, durante o ano de

1999, seus então 350 membros fossem

divididos em duas listas: Veki,

congregando os esperantistas

experientes, e Eki (Esperanto-Klubo

Internacia, mas embutindo uma

plurissignificação, já que eki em

esperanto significa começar) bilíngue e

reunindo os iniciantes no idioma. Em

2000, esperantistas descontentes com as

duas listas fundariam uma terceira,

denominada Esperanto-br, também

bilíngüe e que tem hoje cerca de 650

membros.

Os números apresentados podem

parecer irrisórios e, descontado o

percentual de pessoas que pertencem às

três listas concomitantemente, menor

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ainda; contudo, deve-se considerar que

este percentual traduziria apenas o

número de esperantistas com acesso à

rede e não a totalidade dos do país.

Como exemplo basta o fato de que a

Liga Brasileira de Esperanto tinha, no

ano de 2000, 1458 membros.

Ademais, devemos atentar para

outro fato significativo quanto ao

crescimento do esperanto: a criação de

cursos pela rede, nos quais se utilizam

diversas técnicas oriundas da tecnologia

de educação à distância, tomemos como

exemplo o “Curso de Esperanto pela

Rede” realizado pelo sistema de

monitoria e que, contando com 45

monitores, tinha em 2000 uma lista de

espera de 198 candidatos a aluno - e o

recém-lançado “Kurso de Esperanto”,

desenvolvido pelo Prof. Carlos Alberto

Pereira e que, distribuído gratuitamente

pela internet, contabiliza já mais de

8.000 cópias distribuídas licenciadas.

Tais dados nos permitem afirmar que a

divulgação, o ensino e o crescimento do

esperanto no Brasil - para nos

restringirmos unicamente a nosso país -

tem nas “infovias” sua preferencial.

Ainda em fases iniciais de

desenvolvimento, o uso de salas virtuais

de discussão em tempo real tem sido

uma contribuição para transpor-se a

restrição do esperanto à língua escrita.

O surgimento destas salas tem

possibilitado aos esperantistas

oportunidades de encontros virtuais e o

exercício de sua oralidade.

O aumento do número de

esperantistas brasileiros tem se refletido

também no mercado cultural: além de

maior produção e consumo de uma arte

produzida em, por e para esperantistas,

o mercado que o esperanto representa

tem atraído a atenção de elementos

alheios a esta cultura; prova disso é a

atuação do escritor e cartunista Ziraldo,

que publicou versões em Esperanto de

seus livros O Menino

Maluquinho e Flicts. O escritor declarou

que não esperava a repercussão

internacional que estes livros tiveram ao

alcançar espaços que as traduções em

línguas nacionais não atingiriam, por

razões políticas, econômicas etc., de que

o Esperanto se vê desimpedido.

Como se demonstra, o processo

de estabelecimento do esperanto, e de

uma cultura veiculada através deste

idioma, deu-se em dois ritmos distintos:

um anterior às tecnologias de

comunicação, em que o crescimento do

número de falantes se faz em progressão

aritmética, e outro posterior ao seu

advento, em que este crescimento atinge

uma progressão geométrica.

A sobrevivência e a trajetória do

Esperanto subvertem, por si sós, aquele

paradigma dos estudos linguísticos que

estabelece que línguas são resultado e

espelho de uma cultura e de um povo:

no caso do Esperanto, criou-se antes a

língua, que hoje expressa uma cultura

ainda em processo de formação, e cujo

“povo” - em total diáspora e sem

pretensões de reunião - não apresenta

sequer um passado histórico comum

que lhe transmita a consciência de

coletivo que se creria necessária. De

fato, o único traço comum deste “povo”

é o voluntarismo, pois todos que dele

fazem parte o fazem por absoluta opção.

Para além da simples subversão

de um paradigma, fica nítido que, ainda

que sua origem seja artificial, o

percurso do idioma provou sua

funcionalidade e, mais importante, sua

capacidade de engendrar e veicular não

apenas informações, mas uma cultura

particular, adquirindo, por isso mesmo,

aquela “naturalidade” de cuja falta seus

detratores sempre lhe acusaram.

Esta capacidade de produzir uma

cultura própria - acelerada através de

processo para o qual a tecnologia de

informação em muito contribuiu - seria

ainda, a nosso ver, o atestado do

abandono de sua condição de artificial -

posto que este epíteto só é, hoje,

aplicável quando da exposição da

origem do idioma - e da aquisição de

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uma nova condição: a de “língua

moderna de cultura”.

Todo o processo vivido pelo

Esperanto, acima demonstrado, guarda

paralelos e divergências com aquele

vivido pelo Latim. Como este idioma

dispensa maiores apresentações,

permitir-nos-emos demonstrar a

problemática que lhe envolve a partir de

recorte baseado em sua situação

contemporânea.

Vere mortua sepultaque lingua latina iacet?

Variadas são as causas para a

decadência do ensino-aprendizagem do

Latim no Brasil; dentre elas, a opção

por um ensino que prioriza a área

tecnológica em detrimento das áreas

humanas. Além disso, o Latim esteve

associado àquela tradição eclesiástica

católica romana que o pensamento dos

séculos XIX e XX estigmatizou.

Pensamos, no entanto, que outro

fator - que se revela quando da análise

dos materiais didáticos para ensino de

Latim - deve ser considerado como uma

das razões por que o Latim foi banido

das escolas brasileiras: trata-se da

esclerose das técnicas de ensino-

aprendizagem utilizadas nos livros

didáticos deste idioma.

Uma rápida consulta aos

materiais didáticos publicados até 1961

- ano em que o Latim deixou as grades

curriculares - sinaliza este fato, pois

todos os materiais consultados utilizam

a metodologia gramaticalista,

aplicando-a a textos ora completamente

dissociados da realidade dos alunos, ora

em nível de complexidade acima da

capacidade de compreensão daquele

público-alvo. Somados aos fatores já

expostos, não é estranho que se

considerasse o Latim como o “cadáver

ambulante” das escolas.

O fato é que atualmente - pelo

menos no Brasil - o ensino do Latim se

restringe aos estudantes e profissionais

da área de Letras e Direito e, mesmo

nestes casos, objetiva unicamente à

aquisição de uma capacidade leitora

aplicada para uma única tipologia

textual: o texto literário em Latim

clássico. Pode-se constatar, portanto,

que, mesmo tendo um público menor e

para o qual a aprendizagem do idioma

teria uma razão imediata, a metodologia

do ensino do Latim não se alterou, o

que se constata naqueles materiais

didáticos publicados durante os anos 70

e 80 e que, mesmo após todos os

avanços da Linguística Aplicada,

repetem invariavelmente a metodologia

gramaticalista, sem romper tampouco

com seu objetivo geral: confere-se ao

Latim, na melhor das hipóteses, o

tratamento de uma língua instrumental

para leitura.

Pode-se argumentar que, não

possuindo o latim falantes nativos, e

não se tendo sequer a certeza de como

pronunciá-lo, o estudo de sua gramática

é a única atividade concreta que se pode

realizar. Com isso, o divórcio entre as

metodologias de ensino de Língua

Latina e dos demais idiomas ensinados

nos cursos de Letras se acentua, com o

que se perpetua e se transfere para os

estudantes de Letras aquele desinteresse

que mencionamos.

O principal argumento contra a

adoção de novas abordagens - como a

comunicativa - no ensino do Latim é

reforçado por aquela ideia de que, sendo

o sistema linguístico latino um sistema

fechado, dar-lhe o tratamento de língua

viva equivaleria a uma total

desconfiguração. A conjugação deste

argumento com o do parágrafo anterior

condena o Latim a estar mais morto do

que poderia, pois congela as

possibilidades de modificação do

quadro que se desenhou.

Tais posicionamentos, contudo,

não parecem repetir-se nos países onde

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o Latim ainda é estudado, pois se

produzem materiais didáticos que - sem

romper com o sistema morfossintático

latino - escapam ao objetivo da

instrumentalidade para leitura dos

clássicos: todo o vocabulário

apresentado é referente ao cotidiano

contemporâneo, e não do da Roma

imperial, exemplos disso vêm abaixo:

Da obra Io Parlo Latino, de

1995, extraímos os seguintes exemplos

de neologismos latinos, todos referentes

à área de Cinema e Televisão:

projetor: proiectorium, -i; rádio:

radiophonia, -ae; publicidade:

commendatio, -onis propaganda;

empresa cinematográfica: exceptio, -

onis cinematographica; telespectador:

telespectator, -oris; videocassete:

caseta, -ae magnetoscopica.

Já o livro Latin for all occasions,

de 1991, apresenta seleções de frases

usuais no cotidiano contemporâneo,

como: “Tibi gratias agimus quod nihil

fumas”, (Obrigado por não fumar) e

mesmo algumas frases bem-humoradas,

como: “Si hoc signum legere potes,

operis boni in rebus latinis alacribus et

fructuosis potiri potes!” (Se você pode

ler esta mensagem, pode também

conseguir um emprego alegre e bem

remunerado no mundo do Latim),

e “Sona si latine loqueris” (Se falar

latim, buzine).

Como visto, tais materiais visam

a aquisição da linguagem pela via

estruturalista ou mesmo pelo

comportamentalismo, métodos também

já arcaicos, mas que representam um

avanço em relação ao gramaticalismo.

Além disso, tratam o Latim como um

idioma da atualidade, condição, aliás,

que o governo finlandês recentemente

corroborou ao - em razão de disputas de

hegemonia linguística na Comunidade

Europeia - decidir publicar nesse idioma

todos os seus comunicados

internacionais.

Se tais empreendimentos

comportam a diminuição daquela

defasagem entre o idioma e as modernas

tecnologias de ensino, não seriam,

contudo, suficientes - dada a distância

do grande público - para atrair novos

interessados na Língua Latina. Esse

passo se dá através do uso da

internet como veículo de integração da

comunidade latinófona, repetindo-se o

que já apontamos com relação ao

Esperanto.

Menor que a dos esperantistas, a

comunidade latinófona em rede se reúne

basicamente através da lista de

discussão denominada Grex Latine, que

congrega basicamente professores de

latim de diversas nacionalidades, e onde

são discutidos temas dos mais diversos.

Contrariamente às listas de discussão

esperantistas, as latinófonas se

desenham principalmente como o

espaço da prática cotidiana da língua e

não para o seu aprendizado. Para esse

caso há, em rede, diversos métodos de

Latim com livre distribuição, além de

cursos de língua latina oferecidos

segundo as mais diferentes

metodologias. Há também verdadeiras

bibliotecas virtuais, de onde se pode

dispor dos clássicos da literatura latina.

Ademais, a partir de qualquer

busca sobre o tema na internet, aparece

uma grande variedade de endereços que

não pertencem a unicamente

professores: profissionais dos mais

diversos têm suas páginas pessoais

em/sobre a língua latina, revelando

assim um grupo de latinistas que,

escapando ao circuito do magistério do

idioma, se articula não apenas para

mantê-lo vivo, porém para divulgá-lo,

caso do Circulus Latinus Matritensis,

grupo madrilenho que, à semelhança do

que já faziam os esperantistas desde o

século XIX, reúnem-se para usar e

divulgar o Latim.

A existência destes grupos de

latinófonos é um fato que relativiza o

tão apregoado falecimento do Latim: o

desaparecimento ocorrido foi o das

técnicas e metodologias antiquadas

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utilizadas em seu ensino, assim como

desaparecidos andam os que foram por

elas tornados antipáticos à língua. De

qualquer modo, o epíteto de “língua

artificial” parece ser hoje mais bem

aplicável ao Latim do que ao Esperanto,

não por sua origem, mas pelo modo

como tem se feito sua preservação e

prática.

A integração dos latinófilos em

rede fez, inclusive, surgir um programa

de rádio totalmente voltado para esse

público: o noticiário Nuntii Latini,

realizado na Finlândia e redigido pelo

professor Reijo Pitkäranta. O texto da

página de abertura do programa é

sintomático quanto a demonstrar o

conforto que a Língua Latina encontrou,

ao expressar a realidade da informática:

Recitatio radiophonica:

Novissima emissio Nuntiorum

Latinorum per rete informaticum

Internet audiri potest, si in apparatu

phonocharta et quoddam

audioprogramma (e.g. RealAudio)

inest.

Computatrum tuum

salutationis proximae meminit

recitationemque veterem quaerit. Si

recentissimi nuntii non statim

aperiuntur, functione iterum onerandi

aut recreandi ('reload' aut 'refresh')

utere.

Transmitido semanalmente, este

programa discute em latim temas que

atestam a aplicabilidade do idioma para

debate de temas contemporâneos, como

o desarmamento e os dez anos da

tentativa de golpe de Estado na União

Soviética, emitidos recentemente, como

seguem:

NATO MILITES IN MACEDONIAM

MITTIT

Consociatio militaris NATO

in Macedoniam tria milia quingentos

milites paci tuendae mittere decrevit,

quorum esset bellatores Albanorum

tectos dearmare. De actione

suscipienda inter legatos civitatum

sociarum Bruxellas congregatos die

Mercurii convenit. Omnes cohortes in

Macedoniam decem diebus perventurae

existimantur, et tota operatio, si res

bene successerint, intra unum mensem

perficietur. Nemo tamen certe scit,

quanta sit armorum copia, qua rebelles

Albani utuntur.

DE CONIURATIONE

COMMUNISTARUM

Die Dominico in Russia

memoria coniurationis in praesidentem

Unionis Sovieticae Mihail Gorbatshov

decem annis ante factae acta est. Die

enim undevicesimo mensis Augusti

anno millesimo nongentesimo

nonagesimo primo (19.8.1991) quidam

oligarchae communistae sibi summam

in Unione Sovietica potestatem arripere

conabantur. Conspiratio autem spatio

trium dierum oppressa est, et potestas

ad praesidentem Russiae Boris Jeltsin

transiit, qui omnibus rebus turbatis in

currum cataphractum in mediam

Moscuam invectum escendit et apud

milites contionem habuit democratiam

vehementer flagitans. (Idem, ibidem.)

Fica transparente portanto que o

Latim vive, no presente, um processo

semelhante ao do Esperanto: através

da internet pôde esse idioma não apenas

integrar seus falantes, mas também

promover a renovação das práticas

pedagógicas a ele relacionadas.

Comparando o processo vivido

pelos falantes dos dois idiomas, fica

claro que o Esperanto tem, nesse

contexto, a vantagem da experiência em

conquistar novos falantes; pois, se para

o Latim apenas muito recentemente

impôs-se a necessidade dessa busca,

esse tem sido o objetivo dos

esperantistas desde a criação de seu

idioma.

Contudo, assim como se deu

com o Esperanto, o Latim também

pode, a partir da língua, recriar sua

“coletividade”, para o quê conta com a

vantagem adicional de já dispor de uma

cultura antiga e de uma importância

histórica, basta apenas que os

latinófonos se disponham, como os

esperantistas a elaborar, uma nova

cultura própria, não necessariamente

extensão da antiga.

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Fica igualmente perceptível que,

no âmbito das Ciências da Linguagem,

faz-se mister a reavaliação dos

conceitos de "língua artificial" e de

"língua morta" que normalmente são

aplicados ao Esperanto e ao Latim; pois

uma vez que as comunidades de

usuários destes idiomas parecem ter, via

internet, deixado a condição subjacente

em que se encontravam, tais conceitos -

estabelecidos anteriormente a sua

integração virtual - não mais dariam

conta de suas novas realidades.

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