Leiroz Flávia_Egos Escritos

download Leiroz Flávia_Egos Escritos

of 7

description

Sobre autobiografia

Transcript of Leiroz Flávia_Egos Escritos

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Ego-escritos: possveis alternativas de produo terica

    Flvia Leiroz, doutoranda (PUC-Rio)

    Resumo: Este trabalho pretende analisar escritos contemporneos de intelectuais que narram suas trajetrias profissionais tentando encontrar molduras tericas que se localizam, de forma complexa, nos limites entre historiografia autobiogrfica e fico, ensaiadas pelas chamadas ego-histrias, a partir do livro de Pierre Bourdieu Esboo de auto-anlise (2004). A principal base terica a cincia da literatura emprica construtivista, desenvolvida por Siegfried J. Schmidt em torno de crescentes evidncias empricas sobre a conscincia construtiva do observador. Assim, discutir a escrita em primeira pessoa do singular como capaz de produzir teoria utilizando recursos estticos e literrios e envolver o leitor na discusso sobre memria, fico, histria e subjetividade transforma-se num caminho prazeroso da prtica terica e da reflexo sobre questes como tica e esttica.

    Palavras-chave: literatura; observador; memria; narrativa; trajetria.

    Introduo Havendo emergido algo novo no

    campo e no mundo acadmico, h que aparecer algo novo na pgina!

    Clifford Gertz

    Neste texto, o objetivo apresentar a anlise da produo de tericos (professores e intelectuais de diferentes reas) que transformam a teoria em narrativa escrita na primeira pessoa do singular. Ao deslocarem para fora o sujeito da construo terica tradicional, que representa uma instncia geral do discurso, e trabalharem com a idia de autobiografia como uma possvel inveno do eu no discurso narrativo, questionam a separao entre cincia e experincia, vida e trabalho, arte e poltica, teoria e escrita literria. Mais do que narrar etapas de vida, cronolgica e afetivamente, o que se percebe nesses escritos a construo de uma memria que relata, ou pretende relatar, trajetrias intelectuais.

    O roteiro inicial utilizado para discutir a escrita em primeira pessoa do singular como capaz de produzir teoria, propor a construo de uma experincia e, utilizando recursos estticos e literrios, envolver o leitor na discusso sobre memria, fico, histria e subjetividade, o livro de Pierre Bourdieu Esboo de auto-anlise (2004). O livro, finalizado em 2001, foi publicado logo aps a morte do autor, em 2002.

    Esse roteiro ir guiar a relao entre a autobiografia intelectual e a Cincia Emprica da Literatura, orientada por pressupostos construtivistas e desenvolvida, principalmente, por Siegfried J. Schmidt. Uma de suas principais perspectivas que toda produo de sentido, da percepo formao de teorias, torna-se relativa ao tempo, isto , determinada social e culturalmente (SCHMIDT, 1994, p. 120).

    1 Molduras tericas para relatos de experincia Na introduo do livro Esboo de auto-anlise, Bourdieu avisa:

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Isto no uma autobiografia. No pretendo me sacrificar ao gnero autobiogrfico, sobre o qual j falei um bocado como sendo, ao mesmo tempo, convencional e ilusrio. Queria apenas tentar reunir e revelar alguns elementos para uma auto-anlise (BOURDIEU, 2004, p. 37).

    Quanto ao termo auto-anlise, ressalta: Ao adotar o ponto de vista do analista, obrigo-me a reter (e permito-me faz-lo) todos os traos pertinentes do ponto de vista da sociologia, isto , necessrios explicao e compreenso sociolgicas, e to-somente esses traos (BOURDIEU, 2004, p. 37).

    Interessa, aqui, ressaltar as justificativas para a escrita em primeira pessoa e, ao mesmo tempo, esclarecer que apesar de ser um livro de memrias, no ficcional ou biogrfico, no sentido que ele mesmo chamou de iluso biogrfica e autobiogrfica: a tentativa de construir um texto que possibilite a iluso da singularidade das pessoas frente s experincias compartilhadas ou a iluso da coerncia perfeita (cronolgica e afetiva) numa trajetria de vida (BOURDIEU, 1996). Talvez, por isso, no h, em todo o livro, referncias de Bourdieu a seu casamento ou a seus filhos, por exemplo. H, entretanto, a explicitao de suas escolhas tericas, de seus embates intelectuais e de suas angstias diante das disputas do mundo intelectual.

    Assim, o texto de Pierre Bourdieu (2004) pode ser includo na idia de ego-escritos. O termo foi cunhado pelo historiador Pierre Nora (1987), que lanou a idia de ego-histria numa coletnea de ensaios, no fim dos anos 1980, que reuniu oito importantes historiadores franceses. Para ele, era o laboratrio de elaborao de um novo gnero, surgido de necessidades: adequar a prtica historiogrfica aos movimentos que abalaram as referncias clssicas da objetividade, reivindicar a investigao do presente tambm pelo historiador e perceber a relao entre vida e prtica acadmica.

    Dos muitos convidados, apenas oito aceitaram a tarefa de escrever uma autobiografia intelectual e confessar a ligao ntima e pessoal que mantiveram com suas escolhas tericas, conceituais e profissionais. No entanto, Pierre Nora ressalta a dificuldade que tiveram, alm de certa timidez, em realizar o exerccio proposto:

    Toda uma tradio cientfica levou os historiadores, desde h um sculo, a apagarem-se perante seu trabalho, a dissimularem a personalidade por detrs do conhecimento, a barricarem-se por detrs de suas fichas, a evadirem-se para outra poca, a no se exprimirem seno por intermdio de outros, permitindo-se fazer, na dedicatria da tese, no prefcio do ensaio, uma confidncia furtiva (NORA, 1987, p. 9).

    A produo terica que propem a construo de uma experincia e no apenas um relato de vida ou relatos de e sobre documentos no nova. Mas dar-se conta de sua possibilidade no contexto paradoxal da condio de narrador contemporneo que, como diz Heidrun Krieger Olinto, ao falar de si, sabe da impossibilidade de falar de si, inaugura um novo estilo (auto)biogrfico intelectual (OLINTO, 2006, p. 221).

    Os ego-escritos e seus autores, ao transformarem a teoria em narrativa e entenderem a autobiografia como uma possvel inveno do eu no discurso narrativo, possibilitam aos tericos se fundirem com o objeto e aquecem o debate sobre o vnculo entre suas idias particulares e o pensamento contemporneo. Alm disso, por utilizarem a escrita ficcional mas no com situaes e personagens inventados explicitam o carter construtivo de nossa identidade, refletem sobre seus papis sociais e institucionais, expem as prprias perplexidades diante de suas transformaes.

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Dessa forma, a anlise de ego-escritos no mbito da literatura pressupe um senso

    tico e crtico. A produo consciente de teoria e literatura implica discutir a maneira pela qual entendemos conceitos como verdade, realidade e literatura e seus sistemas de referncia. Tudo isso ensaia na vida cotidiana a difcil aplicao prtica de teorias que privilegiam intersubjetividade, dilogo e aceitao de mudanas paradigmticas. Novos usos, velhos dilemas e, por que no, novas formas de escrita.

    O caminho escolhido para analisar e investigar esses escritos parte da Cincia Emprica da Literatura orientada por pressupostos construtivistas, proposta por Siegfried J. Schmidt e desenvolvida pelo grupo de pesquisas Nikol (a sigla significa cincia da literatura no-conservativa)1 nas universidades de Bielefeld e Siegen, na Alemanha, desde meados da dcada de 1970. No se trata de uma concepo uniforme desenvolvida por um grupo homogneo de pesquisadores e fundada em uma matriz disciplinar bsica, mas da utilizao de tradies cientficas, filosficas e religiosas para desenvolver algo novo em torno de crescentes evidncias empricas acerca da conscincia construtiva do observador (SCHMIDT, 1994, p. 112).

    Para Schmidt (1989), que trabalha com conceitos desenvolvidos pelos bilogos Humberto Maturana e Francisco Varela, sistemas vivos so sistemas cognitivos e a vida, enquanto processo, um processo de cognio.

    A vida e os sistemas vivos no so determinados pela qualidade dos elementos que o compem, mas por sua organizao, ou seja, pela relao de seus elementos e por seu funcionamento. H constantes influncia e relao entre o sistema e o ambiente, num crculo criativo. Como diz Maturana: Ao sermos seres vivos, somos seres autnomos, mas no viver no o somos (MATURANA, 2005, p. 35).

    Nessa corrente terica, a literatura entendida como um sistema social, que tem diferentes agentes que desempenham os seguintes papis: produo, distribuio, recepo e ps-processamento. No texto Sobre a escrita de histrias de literatura: observaes de um ponto de vista construtivista, Schmidt (1996) observa que o ps-processamento inclui a crtica, a interpretao e o ensino da literatura. Para o autor, crtica e ensino so atividades profissionais que exigem engajamento e risco por parte dos especialistas e se alimentam de sua subjetividade exposta. Seguindo essa linha de raciocnio, Heidrun Krieger Olinto (2003) argumenta que, por isso, crticos e professores devem tentar fazer com que o cdigo simblico que permite a produo do conhecimento, corresponda, tambm, s percepes e aos afetos que marcaram suas vidas.

    2 A construo coletiva do eu O livro de Bourdieu (2004) ganha, assim, mais um ponto de interseo com os

    pressupostos que aqui esto sendo desenvolvidos. O texto fruto de seu ltimo curso no Collge de France, quando decidiu submeter-se ao exerccio da reflexividade, um dos requisitos fundamentais, defendidos por Bourdieu (2004, p. 22), para a pesquisa cientfica: Ponho a servio do mais subjetivo a anlise mais objetiva. O carter reflexivo, elaborado como instrumento de cientificidade, visava busca pelo entendimento de sua trajetria intelectual.

    1 O grupo de pesquisa Nikol formado por Peter Fink, Walter Kindt, Jan Wirrer, Reinhard Zobel, Achim Barsch, Helmut Hauptmeier, Dietrich Meutsch, Gebhard Rusch, Reinhold Viehoff e liderado por Siegfried J. Schmidt.

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Professor durante 20 anos no Collge de France, Bourdieu, ao escrever em

    primeira pessoa do singular, acaba por focalizar os embates entre as principais escolas do pensamento francs na segunda metade do sculo XX, os conflitos entre disciplinas, e se esfora para desmistificar a atividade intelectual, mesmo expondo a centralidade dela na produo de conhecimento contemporneo.

    Antes de continuar, seria interessante falar um pouco sobre a edio do livro. H, no fim, uma cronologia de vida e obra e, no incio, uma apresentao que, s vezes, parece querer direcionar a leitura com explicaes, relaes entre o escrito e as obras publicadas pelo autor (o que o prprio Bourdieu faz durante todo o texto) para dar credibilidade ao que ali est relatado. Essa apresentao tem o sugestivo ttulo de Emoo raciocinada. Mas o que est no livro fruto da memria do autor.

    Para Schmidt (1996), a memria, compreendida tambm como um fenmeno social, apresenta-se como forte instrumento no processo de construo de uma sociedade. O sujeito, durante o processo de socializao, internaliza normas, valores, convenes e fatos sociais que o identificam e o legitimam como membro de determinado grupo. Esses fatos sociais consistem em modos de agir, pensar e sentir exteriores aos indivduos, mas dotados de um poder coercitivo pelo qual se lhe impem. Esses quadros sociais da memria fazem com que a memria do sujeito no seja independente de seu grupo social, nem da forma como narrada.

    O sujeito uma criao emprica de construo de sentidos, o observador, a base para os processos ou sistemas sociais. Porm, a concepo desse sujeito, destaca Schmidt (1996, p. 116), no pressupe a idia enftica da individualidade, nem acaba necessariamente em uma histria idealista de heris. Ou seja, o sujeito e sua memria depende, intrinsecamente, da sociedade a qual pertence.

    Dois trechos destacados do livro de Bourdieu podem nos mostrar questes paradoxais, mas no contraditrias, da relao entre sujeito e sociedade, memria e histria, as experincias e o relato delas. Duas pginas antes de narrar sua aula inaugural no Collge de France, Bourdieu confessa: O mundo intelectual, que se pensa to profundamente liberto das convenincias e das convenes, sempre me pareceu habitado por conformismos profundos, os quais agiram sobre mim como foras repulsivas (BOURDIEU, 2004, p. 128).

    Ao ingressar no Collge de France, em 1982, Bourdieu proferiu uma aula sobre a aula. Diante de uma audincia composta por Claude Lvi-Strauss e Michel Foucault, entre outros, quis chamar a ateno para as crenas que regem o meio universitrio. No trecho destacado a seguir, podemos perceber que o autor utiliza a memria para construir uma narrativa que explicita a questo da auto-anlise sociolgica e, ao mesmo tempo, ao narrar episdio pblico, nos faz pensar sobre a questo da sinceridade e da veracidade no h citao de documentos ou referncias (apenas da ilustre audincia) e refletir sobre o complexo lugar que pode ocupar a memria, que no histria nem necessariamente fico.

    Eu havia acreditado enxergar, enfim, uma sada para a contradio em que me engancha o prprio fato da consagrao social, o qual abala minha imagem de mim: tomar como objeto de minha aula o fato de dar uma aula inaugural [...] Mas subestimara a violncia do que, em lugar de um simples discurso ritual, tornava-se uma espcie de interveno, no sentido que lhe conferem os artistas. Descrever o rito na prpria consumao do rito equivalia a cometer o barbarismo social por excelncia, que consiste em pr a crena em suspenso, ou

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    pior, em question-la e coloc-la em perigo exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebr-la e refor-la [...] No foi a nica vez, em minha vida, que experimentei o sentimento de estar constrangido por uma fora superior a fazer algo que me custava muito e cuja necessidade s eu mesmo atinava (BOURDIEU, 2004, p. 131-132).

    Para Schmidt (1996), as histrias so construes motivadas por necessidades sociais e precisam ser legitimadas. Alis, para ele, histria uma construo cognitiva de sujeitos presentes, servindo ao propsito de organizar sua recordao de forma narrativa (SCHMIDT, 1996, p. 121).

    Nessa perspectiva, explicita-se a diferena entre a experincia e as escolhas explicativas que so feitas para narr-las. A histria de uma vida, como a de Bourdieu, encontra legitimao, ento, na tentativa de adequar o pesquisador sua concepo de verdade cientfica, na qual vida e trabalho no so instncias dicotmicas. Outra percepo importante a forma de escrita escolhida para explicar suas experincias de vida.

    Sergio Miceli, tradutor do livro de Pierre Bourdieu, diz na introduo: Quero ressaltar as manhas do narrador, que me parecem a graa do livro, ao propiciar e encorajar sentimentos de empatia no leitor. Por se tratar de uma fala, enunciada na primeira pessoa, de feitio autobiogrfico, na qual se mesclam episdios lancinantes, transcritos pela emoo escancarada, informaes histricas, afinidades eletivas, mgoas, lembranas dodas, o texto estimula no leitor disposio idntica para revirar o passado e buscar a os apertos do corao que lhe afetam (MICELI, 2004, p. 15).

    Se, para Schmidt (1994) e para o estudo emprico da literatura, os dados so sempre avaliados e interpretados, e no oferecidos objetivamente, devemos fugir das histrias que pretendem um relato verdadeiro sobre o que aconteceu de fato. O importante no a veracidade, mas a sinceridade diante dos pressupostos escolhidos no somente para o desenvolvimento de um trabalho, mas como possibilidade de um modo de vida.

    Assim, por se valer de material autobiogrfico, o exerccio auto-reflexivo na produo terico-conceitual invade o universo da literatura ao escolher a escrita considerada literria, e intensifica a discusso sobre textos reconhecidos como cientficos.

    Para Schmidt (1989), o valor cientfico deve ser encontrado nos procedimentos escolhidos pela prtica da cincia tida, tambm, como uma aquisio verbalizada, orientada terica, explcita e sistematicamente por experincias empricas intersubjetivas com o objetivo de adquirir experincia e fazer essa experincia acessvel a outros. Schmidt (1989) afirma que o cientista deve explicitar sua construo terica, intencional e holstica, os critrios de valores utilizados e os objetivos sociopolticos, definindo seu espao pblico e tendo a conscincia do local de sua fala.

    2.1 As possveis tramas da vida narrada

    Beatriz Sarlo (2005) afirma que quando historiadores comearam a falar sobre a relatividade do fato (histrico ou cientfico), referiam-se impossibilidade de falar de um relato sem inclu-lo em uma trama, uma sucesso de acontecimentos que constituem

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    a ao normalmente associada a uma obra de fico, que no necessariamente apenas uma ordem cronolgica. a trama que define a pertinncia das incluses e das excluses, que possui uma vontade construtiva, que tece hipteses de vnculos, que desenvolve processos estabelecidos por princpios e regulados por idias muitas vezes em conflito do que seja uma histria que vale a pena ser contada: os sujeitos, as sries de fatos, a relao entre fatos e sujeitos, a perspectiva, os modos da figurao e do discurso.

    Assim, para Sarlo (2005), os textos histricos (ou cientficos) tambm realizam construes e selees, estabelecem relaes e vnculos com conceitos, teorias e sujeitos que interessam ao grupo e ao contexto no qual sero apresentados. Ou seja, no simplesmente na forma de escrita escolhida que a veracidade e a sinceridade defendidas se explicitam. No entanto, a escolha da trama e da escrita possibilita uma discusso sobre memrias possveis, coletivas, que pressupem preservao e renegociao de representaes do passado que influenciam, decisivamente, nas escolhas de vida presentes.

    Por isso, essas questes nos permitem, ainda segundo Schmidt (1996), em vez de questionar nosso saber, responder em que consiste nosso conhecimento e de que maneira sabemos; permite-nos realizar a observao da observao: perceber ou indagar como atribumos sentido ao que vemos, interpretamos e descrevemos, como so organizadas nossas experincias e a percepo de nosso mundo experencial e de como so tiradas concluses.

    Se o observador o ponto principal e est completamente includo no mundo observado, podemos trabalhar com o conceito de comunicao como uma apresentao de si mesmo, de seu grupo social, que sempre evoca o outro nos processos correspondentes da vida. Conseqentemente, pode determinar o fim da separao entre linguagem da observao e linguagem da teoria. Este um exerccio fundamental: ver o que est em volta de nossa formao histrica, perceber sob qual luz podemos extrair suas visibilidades e, com base nisso, analisar memrias e aes possveis.

    Concluso No livro Esboo de auto-anlise, a escrita literria extrapola o vivido, rene

    imaginao e experincia, expe elos entre percepo de si, vivncia em uma comunidade cientfica e as formas de impacto e interao desses modelos de teorizao de atitudes sociais e polticas. No entanto, o texto de Bourdieu (2004) vai alm do possvel gesto de auto-representao de todo um pequeno grupo. Tenta fazer com que o cdigo simblico que permite a produo do conhecimento corresponda, e d conta, das percepes e dos afetos que marcaram seu corpo, sua vida.

    A escolha pela escrita considerada literria fundamental porque permite reconhecer as molduras tericas mais pelo que elas indicam como exterioridade, perceber o eu como marca lingstica de uma vida posta em narrao, como moldura que expe a subjetividade a tal ponto que, paradoxalmente, descentra o sujeito e inverte um dos processos mais comuns na interpretao de textos literrios, que o de visualizar a produo de um personagem no discurso terico-conceitual.

    Diz Bourdieu: Logrei assumir o ponto de vista do autor, como dizia Flaubert, ou seja, colocar-me em pensamento no lugar que, escritor, pintor,

  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    operrio ou empregado de escritrio, cada um deles ocupava no mundo social: o sentimento de aprender uma obra e uma vida no movimento necessrio de sua realizao e de estar, portanto, apto a conferir-me uma apropriao ativa de ambas, simpraxia em lugar de simpatia, voltada ela mesma para a criao e a ao (BOURDIEU, 2004, p. 134).

    Siegfried Schmidt defenda a idia de a tica ser a base e o ponto final do conhecimento, pois ningum pode reivindicar para si a melhor perspectiva. Assim, concluo com as palavras de Bourdieu (2004) e as possibilidades com as quais esta pesquisa visa a trabalhar: uma nova prtica terica, auto-reflexiva, sincera, que nos ajude a produzir conhecimento e compartilhar, explicitamente, experincias de vida, com a possibilidade de incluir afetos em suas construes:

    E nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns dos meus leitores ou leitoras a reconhecer suas experincias, suas dificuldades, suas indagaes, seus sofrimentos etc., nos meus e a poder extrair dessa identificao realista, justo o oposto de uma projeo exaltada, meios de fazer e de viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem (BOURDIEU, 2004, p. 135).

    Referncias bibliogrficas

    BOURDIEU, P. Esboo de auto-anlise. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. A iluso biogrfica. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO. J. (Orgs.). Usos e

    abusos da histria oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. MATURANA, H. Emoes e linguagem na educao e na poltica. Belo Horizonte:

    UFMG, 2005. MICELI, S. A emoo raciocinada. In: BOURDIEU, P. Esboo de auto-anlise. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 7-20. NORA, P. (Org.). Ensaios de ego-histria. Lisboa: Edies 70, 1987. OLINTO, H. K. Uma intelectual de letras em primeira pessoa. In.: MONTEIRO, M.

    C.; LIMA, T. M. de O. (Orgs.). Entre o esttico e o poltico: a mulher nas literaturas de lnguas estrangeiras. Florianpolis: Editora Mulheres, 2006, p. 217-225.

    ______. Pequenos ego-escritos intelectuais. Revista Palavra publicao do Departamento de Letras da PUC-Rio, Rio de Janeiro, n.10, p. 24-44, 2003.

    SARLO, B. Paisagens imaginrias. So Paulo: Edusp, 2005. SCHMIDT, S. J. Do texto ao sistema literrio: esboo de uma cincia da literatura

    emprica construtivista. In: OLINTO, H. K. (Org.). Cincia da literatura emprica: uma alternativa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p.53-69.

    ______. Construtivismo na pesquisa da mdia: conceitos, crticas, conseqncias. Revista Palavra publicao do Departamento de Letras da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n.2, p.111-137, 1994.

    ______. Sobre a escrita das histrias da literatura: observaes de um ponto de vista construtivista. In: OLINTO, H. K. (Org.). Histrias de literatura: as novas teorias alems. So Paulo: tica, 1996, p. 101-133.