Liberdade de imprensa: autonomia ou exercício de...

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107 Educação, Batatais, v. 1, n. 1, p. 107-131, jan./dez. 2011 Liberdade de imprensa: autonomia ou exercício de poder? Ibsen José Fabis Marques 1 Marcelo Donizete da Silva 2 1 Pós-Graduado em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). Email: <[email protected]>. 2 Doutor em Educação pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Graduado em Filosofia pela Ponti- fícia Universidade Católica (PUC), de Campinas (SP). Coordenador das áreas de Pós-Graduação e Gradu- ação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). 3 Venício A. de Lima, nacido em 1945, natural de Sabará-MG, doutor e pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois, é pesquisador e professor titular (aposentado) de Ciência Política e Comunicação na UNB. Autor de vários livros sobre Comunicação, Mídia e Imprensa, dentre eles Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Editora Publisher, 2010 e articulista do Observatório da Imprensa na internet. Resumo: A grande mídia brasileira considera a Liberdade de Imprensa seu direito fun- damental e irrevocável, portanto, absoluto, utilizando como base de sustentação os filó- sofos liberais clássicos. Apoiado no professor Venício A. de Lima 3 e a partir do diálogo entre as diversas correntes do pensamento clássico que trataram das questões da liberda- de do indivíduo, pretendo demonstrar a impossibilidade do uso dessa base filosófica que lhe sustenta e acusá-la de uma incorrigível parcialidade e atrelamento ao autopoder, ao poder dos anunciantes e, consequentemente, ao poder do capital. Palavras-chave: Liberdade. Liberalismo. Imprensa. Poder. Capitalismo.

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Liberdade de imprensa: autonomia ou exercício de poder?

Ibsen José Fabis Marques 1

Marcelo Donizete da Silva 2

1 Pós-Graduado em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). Email: <[email protected]>.2 Doutor em Educação pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Graduado em Filosofia pela Ponti-fícia Universidade Católica (PUC), de Campinas (SP). Coordenador das áreas de Pós-Graduação e Gradu-ação em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP).3 Venício A. de Lima, nacido em 1945, natural de Sabará-MG, doutor e pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois, é pesquisador e professor titular (aposentado) de Ciência Política e Comunicação na UNB. Autor de vários livros sobre Comunicação, Mídia e Imprensa, dentre eles Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Editora Publisher, 2010 e articulista do Observatório da Imprensa na internet.

Resumo: A grande mídia brasileira considera a Liberdade de Imprensa seu direito fun-damental e irrevocável, portanto, absoluto, utilizando como base de sustentação os filó-sofos liberais clássicos. Apoiado no professor Venício A. de Lima3 e a partir do diálogo entre as diversas correntes do pensamento clássico que trataram das questões da liberda-de do indivíduo, pretendo demonstrar a impossibilidade do uso dessa base filosófica que lhe sustenta e acusá-la de uma incorrigível parcialidade e atrelamento ao autopoder, ao poder dos anunciantes e, consequentemente, ao poder do capital.

Palavras-chave: Liberdade. Liberalismo. Imprensa. Poder. Capitalismo.

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1. IntRodução

Realizo uma análise dirigida, tão completa quanto possível a um pequeno artigo, do diálogo entre os vários interlocutores envolvidos na problemática da liberdade de imprensa, apresentando argumentos, pro-blemas e contra-argumentos desenvolvidos pelas correntes filosóficas li-berais e suas opositoras diretas: a neo-republicana e a marxista que possa promover um diagnóstico elucidador sobre a questão.

Os grandes conglomerados de comunicação do Brasil acusam o go-verno Lula e sua base política de apoio de promover sistemático atentado contra a Liberdade de Imprensa e Expressão ao convocar, em cumprimen-to à Constituição Federal de 1988, a 1ª Confecom4 que deveria organizar um debate envolvendo a regulação sobre as concessões públicas de radio-difusão, o monopólio e a propriedade cruzada sobre essas concessões, a ra-diodifusão comunitária etc. Segundo esses conglomerados, discutir sobre monopólio e propriedade cruzada seria um retrocesso e falar sobre regula-ção ou “controle social da mídia” não passaria de uma tentativa velada de censura prévia que rememora o período de exceção sob a ditadura militar. O objetivo desse artigo é expor a manipulação conceitual e ideológica por parte dos conglomerados de mídia sobre a expressão “Liberdade de Im-prensa” através de um diagnóstico crítico do momento atual. Para isso, evidenciou-se necessário identificar e apresentar uma discussão crítica sobre as origens dessa expressão e de toda base filosófico-conceitual que a envolve, contextualizando-as na origem e durante suas atualizações his-tóricas, explorando seus vários sentidos no decorrer da história e fazendo emergir as motivações e conflitos, oriundos de um diálogo entre diversos interlocutores (forças) causadores dessa atualização, que remetem direta-

4 Confecom – Conferência Nacional de Comunicação convocada pelo governo federal com a finalidade de chamamento da sociedade civil organizada para debater políticas públicas visando propostas de moderniza-ção da legislação referente ao setor visando atender suas novas realidades.

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mente às questões de poder num sentido foucaultiano5 do termo, i.e. (isto é), às relações de poder entre os diferentes atores envolvidos e como ele é por eles exercido.

2. LIBERdAdE, IMPREnSA E PodER

2.1 Liberdade

Para muitos de nós, liberdade é uma palavra que remete a um con-ceito absoluto, universal e atemporal proveniente do senso comum, cujo sentido não é outro que não a liberdade de o sujeito não ser impedido por seus pares ou pelo Estado de fazer aquilo que quer fazer. Esse conceito de liberdade como não impedimento permeia toda a sociedade como a mais perfeita verdade e bastião da democracia. Porém, como se confirmará a seguir, essa visão reflete uma opção histórica que pode conviver, sem gran-des problemas, com sistemas políticos totalitários ou, pelo menos, não democráticos.

2.2 dois conceitos de liberdade

Desde o século XVIII, a partir de pensadores como Benjamin Cons-tant (1767-1830), passando pelos clássicos John Stuart Mill (1806-1873) e Alexis de Tocqueville (1805-1859) até, mais ou menos, fins do século passado com Isaiah Berlin (1909-1997), consolidou-se a ideia de que o

5 Para Foucault não há o poder, senão relações de poder que atuam como forças que coagem, disciplinam e controlam os indivíduos para adequá-los e moldá-los em conformidade aos interesses do poder domi-nante. É dessa forma que aborda, em seu livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão (FOUCAULT, 2004), as transformações nas relações de poder ocorridas na modernidade, a partir das mudanças observadas nas relações sociais, políticas e econômicas quando comparadas ao modelo medieval. Sua análise parte sempre das camadas marginais da sociedade em direção aos atores mais centrais. A partir dos delinquentes, dos loucos, dos operários, dos estudantes e dos soldados promove reflexões sobre a justiça, o sistema hospitalar, as fábricas, as escolas e o sistema educacional, os quartéis e as forças armadas como ferramental utilizado pelo poder dominante para submeter o indivíduo. É sempre esse o significado do termo relações de poder que adoto ao longo do artigo.

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mundo ocidental, em seu processo de evolução conforme aos preceitos iluministas de progresso fundados no aprimoramento e melhor uso da ra-cionalidade humana, fez uma opção entre dois modelos ou conceitos de liberdade chamados por Benjamin Constant de “Liberdade dos Antigos” e “Liberdade dos Modernos” e, posteriormente, consolidadas pelo uso como, respectivamente, “Liberdade Positiva” e “Liberdade Negativa”.

A liberdade positiva (ou dos antigos), segundo Benjamin Constant, consistia no exercício coletivo, mas direto da soberania, deliberando em praça pública e votando leis, mas ao mesmo tempo admitindo a submissão completa do indivíduo ao Estado.

Segundo Constant (1981, p. 1), “O Objetivo dos antigos era a par-tilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. A isso denominavam liberdade”.

Para Isaiah Berlin, um dos grandes interlocutores do liberalismo mo-derno, “O sentido ‘positivo’ da palavra ‘liberdade’ tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor. [...]. Quero ser instrumento de mim mesmo e não dos atos de vontade de outros homens”. (BERLIN, 1981, p. 163).

Porém, para um entendimento contextualizado dessa forma de con-ceber a liberdade, há de se compreender melhor como pensavam os anti-gos sobre si mesmos e como se davam suas relações.

Interpretando o pensamento do filósofo grego Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) expresso em suas obras Ética a Nicômaco e A Política, pode-se dizer que a alma humana executa atividades contemplativas e práticas. Virtudes como a prudência e a sabedoria derivam do intelecto, sendo con-sideradas atividades contemplativas, porém, só se manifestam e se aperfei-çoam através da mediação da razão quando postas diante das atividades da vida prática, i. e., na ação. A virtude é um hábito que se cria a partir da ação continuada, portanto é agindo que o homem se torna virtuoso e se dirige à sua finalidade última e supremo bem: a felicidade, lugar onde realiza sua plena liberdade. Sendo assim, é no agir, no convívio com seus iguais, na Pólis, que se encontra a essência humana. A família é constitutiva do Esta-do, mas é o Estado o fim último dos homens, pois é onde interagem como

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iguais. É somente na vida pública que o homem se realiza e se constitui em plenitude.

Há a liberdade do indivíduo e ela é um bem, mas ela só se realiza plenamente, como verdadeira liberdade e supremo bem, na interação do indivíduo com o outro, na coletividade, na cidade, ou seja, em sua ação política.

Se, para Aristóteles, a liberdade só se realiza no ambiente coletivo, no liberalismo encontramos uma lógica inversa, onde o concidadão e o Estado são permanentes agentes agressores e limitadores da liberdade. A liberdade positiva grega vincula-se à ação política, à possibilidade de par-ticipação nas decisões do Estado, à esfera pública. O fator mais impor-tante que se oferece como garantia para que esse objetivo seja atingido é a Educação, considerada como práxis e que permeia toda a vida do homem, desde seu nascimento até sua morte, como indivíduo e cidadão. Daí surge o conceito grego de Paidéia como a elaboração e consecução de um ideal de formação integral do homem, preocupando-se com o corpo e o espíri-to, de modo a construir o indivíduo e cidadão virtuoso capaz de traçar e modificar seu destino e garantir a grandeza da Pólis ( JAEGER, 2003).

Entretanto, é preciso salientar que a democracia grega apoiava-se no escravismo. O trabalho escravo liberava o cidadão para o exercício de funções “mais elevadas” como a filosofia, as artes e a política. Só eram considerados cidadãos os homens livres, excluindo-se os estrangeiros, os escravos, as mulheres e as crianças. Tratava-se, portanto, de liberdade e de democracia com forte cunho aristocrático (ARANHA, 2002).

Já a liberdade negativa (ou dos modernos), conforme Constant, é o direito do indivíduo de se submeter apenas às leis e de não ser coagido por outros indivíduos; ser livre para se expressar e cuidar de sua propriedade como melhor lhe convier. O objetivo dos modernos é assegurar seus privi-légios privados e nisso consiste sua liberdade (CONSTANT, 1985).

No entender de Berlin, o homem é livre quando nada, nem ninguém interfere em seu agir, sendo a coerção uma interferência proposital de ou-tras pessoas nas situações em que, de outra forma, seríamos livres para agir (BERLIN, 1981).

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A visão iluminista do pensamento de Constant justifica a necessi-dade dessa nova forma de entendimento sobre a liberdade humana já que para ele a evolução da sociedade e o progresso humano continuado, tanto moral quanto intelectual, estão na base desse novo modelo que teve suas primeiras formulações filosóficas nas reflexões e obras de dois grandes fi-lósofos ingleses: John Locke (1632-1704) em seu Segundo Tratado Sobre o Governo e Thomas Hobbes (1588-1679) no Leviatã.

Locke foi um dos primeiros filósofos a oferecer uma nova base con-ceitual para se pensar a liberdade que, segundo ele, é a possibilidade de “[...] seguir a minha própria vontade em tudo quanto a regra não pres-creve” (LOCKE, 1973, p. 43). Ele é considerado a pedra fundamental do liberalismo (apesar de nunca ter utilizado o termo) não só pela forma como definiu a liberdade do indivíduo, mas ao pensar a sociedade política como uma união entre os homens, visando “[...] preservar a si próprios, a sua liberdade e propriedade”, submetida a um governo de ação restrita cuja função é dar plena garantia de satisfação dessas necessidades funda-mentais.

Hobbes, outro autor fundante desse novo conceito, afirma que, “um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e enge-nho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer” (HOBBES, 1997, p. 171). Hobbes considera como função principal do Estado a garantia da vida que, do contrário, correria risco por conta do conflito natural existente entre os homens. Na consecução do pacto social hobbesiano, os homens renunciam a todos os seus direitos, exceto a vida, e os transferem preferencialmente a um monarca que deve exercê-lo de forma absoluta para melhor garantir a ordem e a paz entre os cidadãos.

No liberalismo moderno prevaleceu a tese de John Locke tanto na concepção de um Estado Mínimo e legalista quanto na teoria de liberda-de como não impedimento. As garantias e limitações ao exercício dessa liberdade devem ser oferecidas pela lei criada por um poder legislativo re-presentante do público a ser aplicada a todos igualmente.

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2.3 Liberdade de expressão, de impressão e de imprensa segundo o viés liberal clássico

Desde o seu surgimento, a intelectualidade burguesa lutou pelo direi-to e pela liberdade de cada indivíduo pertencente à nova classe emergente poder expressar suas ideias e opiniões, via de regra, contrárias aos poderes estabelecidos da aristocracia, da monarquia e da Igreja Católica. Em face das grandes extensões e populações dos Estados, tornou-se necessário a ampliação dessa luta pelo direito e liberdade de também poder, individu-almente, imprimi-las para obtenção de melhores resultados quanto à sua divulgação e difusão. É sob essa ótica que deve ser interpretado o famoso panfleto Areopagitica de John Milton (1608-1674) que jamais poderia ser requisitado, como comumente é feito pela imprensa, para advogar a causa absolutista de sua liberdade. O mesmo talvez não se possa dizer de Stuart Mill que considerava a imprensa como local apropriado para circulação de um “mercado livre” de ideias onde a verdade poderia vir à tona. Preocu-pava-se que da falta de liberdade de imprensa se originassem corrupção e perseguições políticas e fazia uma defesa contundente contra a ingerência dos poderes constituídos sobre ela (MILL, 2000) e de Tocqueville, para quem os jornais exerciam uma função bem mais complexa do que a sim-ples garantia das liberdades individuais, pois considerava que a igualdade obtida entre os homens a partir dos Estados modernos é a principal causa de seu individualismo, porque sentindo-se iguais não buscam no outro o que podem encontrar em si mesmos. Sendo autossuficiente o homem prescinde da atividade pública e a imprensa passa a ser interlocutora entre os iguais. Segundo ele, um jornal produz coletivamente o que um indiví-duo produziria individualmente; é o ponto de encontro e a luz guia para onde se dirigem os iguais. Defende uma imprensa plural como garantia de que haveria lugar para diversidade de ideias. Sem o jornal, os iguais rapidamente dispersariam (TOCQUEVILLE, 2004). Em ambos os casos há um profundo esvaziamento do espaço público no sentido da realização do homem como ser político, principalmente em Tocqueville, para quem mesmo o último espaço de organização pública – a imprensa – só se cons-

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titui para a defesa de interesses individuais em comum e não do interesse público em geral. Não é por outro motivo que a imprensa ganha espaço e sua liberdade se torna uma necessidade fundamental. Na sociedade liberal o espaço público da vida em sociedade se constitui como que tomado por interesses privados de tal sorte que é possível dizer do homem que ele é um ser social que se relaciona com o outro tendo em vista interesses privados em comum, mas evita-se dizê-lo um ser político que só se constitui na re-lação com a sociedade visando o bem coletivo e não somente a realização estanque do próprio bem.

2.4 da imprensa moderna à contemporânea

Seria realmente lícito transportar a liberdade de imprensa como con-cebida pelos pensadores do liberalismo clássico para a contemporaneida-de de forma literal e sem as devidas contextualizações? Guarda a imprensa contemporânea similitude com a da modernidade? John Milton defendia o direito à liberdade de imprimir suas ideias e opiniões sem qualquer tipo de censura; afirmava que, “[...] apenas mediante a diversidade de opinião existe, no atual estado do intelecto humano, possibilidade de fazer justi-ça a todos os lados da verdade” (MILTON apud LIMA, 2010, p. 74). Já Stuart Mill acreditava ser a imprensa o local onde cada indivíduo poderia exercer seu direito de imprimir a totalidade de suas ideias e, a partir desse debate entre a diversidade, a verdade poderia se constituir em plenitude. Considerava também que a falta do debate poderia omitir partes de uma verdade que normalmente não se restringe a uma única posição e opinião, mas costuma se mostrar e consolidar a partir do conflito, da conciliação e da combinação de pensamentos opostos (MILL, 2000). Tocqueville conside-rava que cada jornal deveria representar um grande número de indivíduos que, por possuírem interesses individuais comuns, se organizavam em as-sociações. Numa democracia deveria haver um grande número de associa-ções e, consequentemente, um igual número de jornais que passariam a ter não só a função de arena para debate de ideias, mas a de representação do

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pensamento organizado de uma determinada parcela da população com interesses privados comuns. Nesse caso, para que a diversidade de opiniões se torne pública é de fundamental importância a existência de um grande número de periódicos capazes de dar voz a todas elas (TOCQUEVILLE, 2004).

Os filósofos do liberalismo clássico (e do neorromanismo como o historiador Quentin Skinner considera John Milton, dentre outros, como se verificará a seguir) lutavam pela liberdade de expressão e impressão contra o poder de censura de um Estado totalitário, mas também contra o poder dos costumes e da uniformidade do pensamento que poderiam contribuir para o cerceamento das liberdades individuais. Como para os liberais o autogoverno não é condição de possibilidade para se garantir a liberdade e a propriedade, sua luta contra a censura por parte do Esta-do terá que ser constante. Observandoses situação atual, percebe-se fa-cilmente que a imprensa contemporânea não guarda proximidade com a imprensa pretendida pelos filósofos liberais clássicos, nem seria lícita uma transposição imediata das justificativas clássicas da liberdade de imprensa para o momento presente. Para um melhor entendimento sobre esse ca-minho percorrido pela imprensa, Venício (2010) transcreve em seu livro as principais diferenças entre a imprensa dos séculos XVII, XIX e XXI observadas por nove professores titulares da University of Illinois e pu-blicadas no livro “Lastrights – revisiting four theories of the PRESS” or-ganizado por John Nerone e publicado em 1995. Segundo eles, no século XVII a Liberdade de imprensa era considerada um direito natural e o di-reito de imprimir uma extensão das liberdades de pensamento e expressão. Já no século XIX, a Liberdade de imprensa (impressão) era tida como um direito utilitário que garantia um melhor preparo para o autogoverno. A filosofia política liberal entendia a liberdade de imprensa como um direito do indivíduo. Imprensa significava meramente o direito de acesso ao equi-pamento de imprimir, à impressora.

Hoje a imprensa é composta por empresas que, além de informar, mantém relações comerciais e econômicas com seus leitores e anunciantes. Como empresa, não possui direito individual, portanto, só há liberdade

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de imprensa se considerarmos que essas empresas recebem em confiança a liberdade e o direito que o leitor tem de se informar. Sendo assim, não podem trabalhar contra os interesses do leitor, nem equiparar seus inte-resses aos dele. Entretanto essa tripla relação: leitor, imprensa, anunciante, provoca muitas vezes conflitos de interesses. Sendo assim, a liberdade de imprensa como vista pelos liberais clássicos já não faz sentido desde que se passou a associar a imprensa às empresas de notícias.

Parece claro não ser correto que argumentos desenvolvidos por filó-sofos do liberalismo clássico em favor da liberdade de imprensa daquele período histórico sejam diretamente apropriados e dispostos como forma de argumentação válida para reivindicar e justificar a liberdade de impren-sa como concebida e pleiteada hoje pelos grandes conglomerados nacio-nais ou globais de comunicação. Além disso, a denúncia que fazem esses conglomerados de que o Estado brasileiro ameaça censurá-los não só é falsa como esconde uma lógica inversa, pois o próprio ato contínuo desse denuncismo sem que sua voz tenha, em nenhum momento, sido calada, aliado ao fato de vivermos em pleno Estado Democrático de Direito e segundo preceitos e garantias constitucionais os desmentem, enquanto a coação e demissão de jornalistas por parte desses conglomerados por não compartilharem de sua linha editorial, a omissão nas discussões de temas de interesse público contrários a seus interesses privados ou a pu-blicação comentada de textos que deveriam ser postos na íntegra para co-nhecimento e julgamento do leitor configuram-se como atos de censura ao direito que tem o cidadão de ser informado. Podemos afirmar que, em nossos dias, a censura à liberdade de expressão foi em parte privatizada e não se pode mais atribuí-la somente ao Estado, mas também ao poder econômico privado e a autocensura. Liberdade de imprensa hoje se vincu-la à liberdade de empresas que precisam sobreviver e oferecer lucro a seus controladores e anunciantes (LIMA, 2010).

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2.5 uma terceira via para a liberdade

Tem-se apresentado desde as últimas décadas do século XX, uma te-oria que, atualizada, se oferece como alternativa contemporânea ao libera-lismo. Ela surge na modernidade inglesa e, como o liberalismo, decorre da ascensão da burguesia, como nova classe social, ao cenário de poder.

O historiador do pensamento, Quentin Skinner, propõe uma teoria em que o conceito contemporâneo de liberdade tem sua origem a partir da revolução inglesa do século XVII, como uma opção de um momento histórico em que outra concepção de liberdade, também negativa e por ele denominada neo-romana ou neo-republicana foi preterida, e que, em seu entender, configurava-se como uma alternativa factível à liberdade como mero “não-impedimento” proposto pelo liberalismo. Dentre os pensado-res considerados por Skinner como neorromanos e, portanto, não libe-rais, estão John Milton e James Harrington (1611-1677). Para esses pen-sadores neorrepublicanos, em oposição ao pensamento liberal, não pode haver liberdade sem um Estado livre, sem autogoverno e, para que ele seja livre, as leis que o governam precisam ser elaboradas e aprovadas sob estri-ta anuência popular (burguesia). Sua concepção de liberdade individual baseia-se na ausência de dependência da vontade arbitrária de terceiros (Estado ou concidadão), o que torna o conceito tanto diferente quanto mais complexo que o liberal. Sua teoria é a de que para viver como escra-vo basta a simples possibilidade de se cair numa condição de sujeição ou dependência política de formas de governo que permitam o exercício de poderes discricionários (SKINNER, 1999).

Assim, mesmo que o detentor do poder opte por não exercê-lo, oferecendo-nos uma sensação de plena liberdade, o simples fato da exis-tência de alguém que possa, a qualquer momento, segundo sua vontade, restringir ou retirar-nos os direitos e a liberdade, já nos impõe viver sob a condição de servidão.

Além dessa forma de liberdade definida pelo republicanismo inglês e como garantia do autogoverno, eles ressaltam, na esteira do pensamento renascentista de Maquiavel, os deveres e a participação política dos cida-

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dãos como prática para a conquista das virtudes cívicas. Quanto maior (e com o tempo, melhor) a participação do povo, mais virtuoso e livre ele será, bem como o Estado em que vive.

Segundo Skinner, em seu livro Liberdade antes do liberalismo, a pro-posta neo-romana sucumbiu às teorias liberais porque suas teorias de não dependência fomentavam e ofereciam fundamentação teórica aos ideais de independência de sua principal colônia: os Estados Unidos; mas não podemos deixar de apontar a contradição entre essa teoria e a futura ex-pansão capitalista, pois, se para ser livre é necessário não estar a mercê de um poder que, quando necessário ou conveniente, possa ser exercido em detrimento do cidadão e seus direitos, então, as fronteiras da ação do Estado deveriam ser estendidas para além do permitido a um Estado mí-nimo – o que possibilitaria ao Estado ingerir nos negócios privados (livre mercado) – para oferecer ao cidadão garantias efetivas contra qualquer possibilidade de domínio ou interferência velada do capital à sua liberda-de e direitos.

A partir desse último argumento é possível inferir que esse concei-to liberal frouxo sobre a Liberdade de Imprensa não teria tido curso sob governos conformes aos ideais republicanos daquele período. Isso porque mecanismos teriam que ser criados para evitar que o poder discricionário do capital pudesse vir a tolher a liberdade de seus opositores se expressa-rem, o que implicaria na efetivação do que ultimamente mais abominam: a regulação. Consequentemente, não se poderia utilizar das teorias neor-romanas, nem mesmo de forma contextualizada para justificar o absolu-tismo da liberdade de imprensa pretendida pelos conglomerados de mídia nesse século XXI, porque ela representa, nos dias atuais, não o leitor e o cidadão – como quer e se arroga – mas o poder dos anunciantes e o seu próprio, considerando os leitores como consumidores.

O resgate contemporâneo do pensamento republicano não frutifica-rá porque sob o sistema capitalista, o foco primordial será sempre o capital em detrimento do homem, da liberdade e da “res publica”. De mais a mais, essa situação acaba por expor uma contradição do pensamento neorroma-no, pois ao defender a criação de um Estado Mínimo enfraquece a única

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fonte de recursos capaz de fazer frente ao poder às vezes velado, às vezes visível de coação do capital. Não são pontos de nossa Constituição que precisam ser adequados para melhor proteger nossos direitos e liberdade e melhorar a qualidade e quantidade de nossa participação pública, mas a Constituição, ela mesma, precisa ser redesenhada com vistas a atender a uma nova ordem social em que o fim último deixe de ser o livre mercado, a propriedade dos meios de produção e o capital e passe a ser o homem e o cidadão em sua completude.

Contudo, se é inapropriado a utilização de forma imediata do pen-samento liberal clássico para justificar a liberdade da imprensa contem-porânea, como afirmado anteriormente e como acreditam Venício A. de Lima e os professores da Universidade de Ilinois, dentre outros, talvez não o seja se contextualizado e atualizado; talvez mesmo conclua-se por uma relação causal entre ele (o pensamento liberal clássico) e o liberalismo contemporâneo. Seria pertinente a crítica marxista ao capitalismo liberal e à imprensa burguesa?

2.6 uma reflexão histórica sobre capitalismo e imprensa sob a política liberal6

Simplificadamente, pois um artigo não permite grande aprofunda-mento das questões, o percurso do capitalismo se inicia com o final da Idade Média e o renascimento do comércio, das ciências e das artes, de-

6 Baseio esse breve relato sobre a história do capitalismo sob a sociedade burguesa na fala proferida pelo professor e jurista Fábio Konder Comparato durante o debate ocorrido no lançamento do livro Liberdade de expressão x liberdade de imprensa de Venício A. de Lima no auditório do sindicato dos engenheiros de São Paulo no ano de 2010. Na ocasião, descreveu resumidamente o caminho histórico percorrido pelo liberalismo e pelo capitalismo desde o surgimento da burguesia, a questão da oligopolização dos meios de comunicação e os remédios constitucionais como forma de resolver o problema. Também contribuíram para essa reflexão o artigo A ideologia da “liberdade” liberal de Antonio Inácio Andrioli, doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück –Alemanha; a leitura da História da Educação de Maria Lúcia de Arruda Aranha; e os vários debates realizados em sala virtual durante os estudos de Filosofia da Educação, Ética e Política do curso de pós-graduação em Filosofia e Ensino da Filosofia do Centro Univer-sitário Claretiano (CEUCLAR), do qual fui aluno no ano de 2010.

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sencadeando a formação de grandes concentrações urbanas e, com elas, o surgimento e a ascensão de uma nova classe social que, na luta por seu quinhão nas relações de poder, iniciou oposição à aristocracia rural: a burguesia. Com a decadência do poder absolutista feudal, as relações de troca no âmbito rural e a concepção de liberdade como concessão divina administrada pelo monarca ou pela nobreza são gradativamente substitu-ídas pelo predomínio da propriedade privada dos meios de produção e da liberdade como livre-arbítrio do indivíduo poder agir sem impedimentos, mas sem interferir na liberdade do outro. Nesse momento de conquistas e efervescências sociais e políticas a intelectualidade burguesa - represen-tante de uma classe em ascensão econômica que busca uma posição de maior destaque e comando nas relações do poder político - clama pela li-berdade de exposição de suas ideias e opiniões e pelo direito de divulgá-las livremente utilizando-se de textos impressos, ao que chamavam liberdade de impressão e, posteriormente, imprensa como uma ferramenta útil de divulgação de ideias que permitissem melhor preparar o povo (burguesia) para o autogoverno. Não se pensava a imprensa como um negócio, um agente comercial lucrativo, um fim em si mesmo, senão como meio para a apresentação e o debate de ideias. É nesse sentido, como meio mecâni-co de divulgação, que a imprensa era considerada como representante do pensamento dos interlocutores envolvidos.

Observa-se que, num primeiro momento, há uma intensa luta pela expansão e extensão das liberdades individuais e da propriedade dos meios de produção (que se confunde com o capital) de tal sorte que mais pes-soas, se possível toda a nova classe burguesa, pudessem conquistar maior liberdade individual, acesso à propriedade, consequentemente, ao capital e a um novo sistema educacional, mais comprometido com as necessida-des da classe burguesa7.

Após essa etapa inicial de consolidação da burguesia, da ampliação e distribuição de poder e propriedade, tem início a revolução industrial

7 Ver nota nº 5.

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e com ela a consolidação do capitalismo e um novo movimento concen-trador do capital no qual um enorme contingente de pequenos artesãos e comerciantes são rebaixados à classe operária ou lançados ao desemprego porque não conseguem enfrentar as indústrias e o menor custo e maior produtividade oferecidos por suas máquinas. Está em curso a criação da sociedade de massas. A imprensa se moderniza e profissionaliza, transfor-ma-se em empresa com interesses e finalidades próprias a tal ponto que incita em Max Webber (1864-1920) e na intelectualidade em geral, pelos idos de 1910, a preocupação de que a demanda pelo aumento de capi-tal pudesse significar um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes, ocasionando aumento de poder e manipulação da opinião pú-blica (WEBBER apud LIMA, 2010, p. 31). É uma preocupação legítima e que já aponta para um descompasso entre a imprensa da modernidade, vista pelos pensadores do liberalismo clássico como concentradora de de-mandas, e a imprensa contemporânea, como ponto gerador de demandas e formador de opinião, como vista por grande parte dos pensadores da atualidade. Isso para não dizer do diagnóstico impetrado pelo pensamen-to de Gramsci8 (1891-1937) que permite incluir a imprensa como um dos “[...] mecanismos pelos quais uma classe pode exercer a dominação sobre as outras” (GRAMSCI, 1995), operando como aparelho privado de hegemonia.

Avançando ao período pós-industrial e ao momento de globaliza-ção da contemporaneidade torna-se perceptível que o capitalismo, desde sempre, passa por períodos cíclicos de crise e expansão, mas a qualquer momento é perceptível sua incapacidade de distribuir renda e, se isso é conseguido por um país desenvolvido, só o é em detrimento de países do terceiro e quarto mundos, sempre explorados e lançados à própria sorte (poderíamos considerá-los como o fundamento escravista sobre o qual se sustenta o capitalismo moderno).

8 Antonio Gramsci, jornalista e filósofo marxista italiano. Foi co-fundador do Partido Comunista Italiano e é considerado um dos principais teóricos marxistas do século passado.

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Nesse período pós-industrial, com o excepcional avanço das ciências e o desenvolvimento de novas tecnologias, notadamente as tecnologias de informação, o mundo literalmente encolhe; fatos e notícias aconte-cidos minutos atrás a milhares de quilômetros tornam-se conhecidos e vivenciados em todo o globo por um contingente populacional sem pre-cedentes. É o início da globalização do capital, dos meios de produção, informação e do viver. Nessa era global, surge novamente a necessidade inevitável, como forma de sobrevivência, de concentração das proprie-dades dos meios de produção e da informação (que não se confundem necessariamente com o capital, agora virtualizado), e do capital, para dar conta de se fazerem presentes e atuantes em todas as partes do planeta. Mesmo considerando-se a virtualização do capital e dos proprietários dos meios de produção efetivada através do mercado de ações e do mercado financeiro, ainda assim, permanece como fundamento liberal e capitalista a agora visível pseudoteoria do livre mercado. Comprova-se a falsidade da teoria porque já se percebe de maneira escandalosa que ela não pode se sustentar numa economia mundial que tende à concentração em mono-pólios ou oligopólios todas as áreas da ação humana desde as instituições financeiras, passando pelas várias modalidades de indústria, incluindo os meios de comunicação, tecnologias de informação e as pesquisas científi-cas que, via de regra, se desenvolvem conformes aos interesses do capital. O livre mercado, portanto, não é livre, mas dirigido segundo os interesses do grande capital concentrado em poucas mãos. Entretanto, já não se sabe ao certo quem são os detentores do capital - fisicamente eles não são reco-nhecidos, a virtualização do poder econômico não nos permite identificá-los claramente.

O que se pretende afirmar é que, se o capitalismo é incapaz de distri-buir renda e se o poder e a propriedade dos meios de produção e comu-nicação seguem um caminho de cada vez maior concentração – sobretu-do nos dias atuais em que a globalização está a exigir dos conglomerados empresariais de todas as áreas um monumental esforço para que se façam presentes em todas as partes do mundo como observamos pelas, cada vez mais constantes, fusões de grandes empresas, inclusive de comunicação,

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para formarem megacorporações com faturamentos superiores a muitos países e que passam a engolir seus concorrentes – como esperar que a par-tir de uma oligopolização dos meios de comunicação se constitua uma imprensa livre e plural? Como acreditar em uma imprensa livre, represen-tante do interesse de seus leitores cidadãos e não de si própria, seus inte-resses globais e de seus anunciantes? Para Fábio Konder Comparato9, nos dias de hoje, a liberdade de expressão ou de imprensa como a enxergavam os pensadores do liberalismo clássico, esbarraria na impossibilidade de acesso aos meios técnicos de difusão das mensagens. Das relações diretas da sociedade moderna saltamos para as relações globalizadas do mundo contemporâneo onde a comunicação se dá através das sofisticadas redes de tecnologias de informação. Hoje a liberdade de expressão é privilégio dos controladores das empresas de imprensa, rádio e televisão (COMPA-RATO apud LIMA, 2010).

Pensadores liberais, como Isaiah Berlin (BERLIN, 1981), costumam creditar as mazelas proporcionadas pelo liberalismo ao mau uso que se fez e faz da liberdade negativa que opera não como um “laissez-faire”10 apli-cável a cada indivíduo, mas como uma forma de despotismo e de opressão dos mais poderosos sobre os mais pobres e desvalidos. Os pensadores libe-rais consideraram o problema e defendem mecanismos para enfrentá-lo, mas a questão é mais profunda, pois, como infere o próprio Berlin, o con-ceito de liberdade negativa está imbricado ao do capitalismo, acentuan-do gravemente as distorções sociais e promovendo extremo desequilíbrio nas capacidades de poder dos diversos agentes sociais, de tal forma que a detenção do poder econômico implica necessariamente na obtenção de poder político e dominação social. E assim, ao garantir a minimização do Estado e suas funções, o liberalismo acabou por efetivar o que tanto cri-ticou à liberdade positiva ao contribuir para que o poder político fosse

9 Fábio Konder Comparato é professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro do conselho da cátedra UNESCO-USP de Educação para a Paz, os Direitos Humanos, a Democracia e a Tolerância.10 Expressão francesa que significa “deixai fazer” e que é considerada a expressão símbolo do liberalismo capitalista em que o mercado deve funcionar livremente, sem interferências.

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exercido via dominação tirânica pelos detentores do capital: os grandes conglomerados financistas e industriais, os grandes latifundiários e, mais atualmente, também os conglomerados midiáticos visto que, devido à vir-tualização do capital (capital financeiro), a informação, hoje, ultrapassa o conhecimento na composição do poder. Essa reflexão vai ao encontro da pertinente análise produzida por Marilena Chauí em seu artigo A univer-sidade pública sob nova perspectiva. Diz Marilena:

Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento e a informação passaram a compor o próprio capital, que passa a depender disso para sua acumulação e reprodução. Na medida em que, na forma atual do capitalis-mo, a hegemonia econômica pertence ao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez que o capital financeiro opera com riquezas puramente virtuais, cuja exis-tência se reduz à própria informação. Entre outros efeitos, essa situação pro-duz um efeito bastante preciso: o poder econômico baseia-se na posse de informações e, portanto, essas tornam-se secretas e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo em que, necessariamente, bloqueiam poderes democráticos, os quais se baseiam no direito à informação, tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e fazê-las circular socialmente (CHAUÍ, 2010). Parece lícito afirmar que as premissas do liberalismo, associadas à lógica do capital, ao implicarem a privatização e a individualização das relações humanas promoveram o es-vaziamento de todo e qualquer espaço público, inclusive o que deveria ser oferecido pela imprensa e, conforme observou Hannah Arendt, “[...] sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer” (ARENDT apud BORGES, p. 108).

2.7 A mídia como ferramenta de Controle Social

Como destacado anteriormente, a imprensa e a mídia produziram uma inversão lógica na discussão da censura e faz o mesmo em relação ao controle social.

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Seria de se esperar que, em se tratando de concessão pública, as em-presas de radiodifusão estivessem sujeitas a um conjunto de normas regu-ladoras estabelecidas por lei – como recomenda nossa Carta Maior - que permitissem regulamentar as condições de acesso a essas concessões pú-blicas, bem como avaliar seu desempenho, compromisso no exercício de suas funções públicas e garantir liberdade de ação ao jornalista que, do contrário, poderia se sentir ou ser efetivamente coagido tanto pelo Estado como pelos detentores do poder econômico. Porém, os conglomerados de mídia se opõem obstinadamente a qualquer forma de regulação, sempre com a alegação de uma intenção velada de censura prévia por parte do go-verno. Mas o que elas não revelam é que sua principal função no ambiente democrático contemporâneo é oferecer às elites democráticas, através da determinação de uma agenda pública repleta de interesses privados, um poderoso ferramental de controle social. Sendo os meios de comunicação os principais transmissores de conteúdos simbólicos na contemporanei-dade, todos os outros grupos ficam reduzidos a meros consumidores de informação, como nos indica Luiz Humberto Vieira Leite11 em seu ensaio Elitismo democrático na era dos meios de comunicação de massa (LEITE, 2008).

Dessa forma, o jornalismo já não mais representa a voz de indivídu-os, mas a sua própria e a de outros conglomerados econômicos e grupos políticos que desejam legar às suas opiniões particulares o status da obje-tividade, universalidade e verdade. O jornalista se insere nesse mecanismo como uma engrenagem pertencente a uma classe chamada por Gramsci12 de intelectual tradicional. Esse intelectual é cooptado pelas classes domi-nantes junto às classes inferiores. O intelectual cooptado não se identifica

11 Luiz Humberto Vieira Leite é pós-graduado em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Comunicação Social – Jornalismo (Universidade Federal do Ceará/2005). Especialista em Assessoria de Comunicação (Universidade de Fortaleza/2008).12 O filósofo marxista Antonio Gramsci descreve detalhadamente como ocorre a formação dos intelectuais em seu livro Intelectuais e a formação da cultura. Meu interesse particular foi dirigido à formação do que chamou intelectual tradicional, advindo das camadas sociais dominadas, mas que, sem preservar sua iden-tidade original, assimila a ideologia dominante como se sua fosse.

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com as causas de sua classe de origem, mas assimila os ideais e os projetos do novo grupo a que ascendeu e que contribuiu para sua formação. Esse processo ocorre tão naturalmente e vem sendo assim há tanto tempo que esse jornalista é levado a se perceber como possuidor de um pensamen-to crítico, isento e independente. Sua credibilidade está em sua própria convicção. Os limites espaço-temporais de seu universo estão contidos na filosofia liberal capitalista, nada há além dela.

Parece factível afirmar que a discussão sobre a interferência da mídia, como salienta Vieira Leite, não se deve dar pela via simplista, discutindo se ela é capaz ou não de promover uma universalização da opinião, senão sob a ótica de que promovem uma proposta de agenda pública de discus-são, a chamada “agenda setting”13, a nos dizer sobre quais assuntos deve-mos pensar, quais são realmente relevantes e, por conseguinte, o que deve ser mantido em esquecimento e fora de toda e qualquer discussão.

O afunilamento das discussões em torno de ideias pré-definidas por essa agenda acaba por moldar as necessidades de indivíduos e grupos de leitores, ouvintes e telespectadores aos interesses das elites e grupos dominantes. Parece ser essa a função da imprensa, dentro da perspectiva de controle e modelagem do indivíduo, proposta por Foucault (2004), vigiar e punir, para adaptá-lo e torná-lo mais apto e produtivo para atuar dentro de parâmetros bem definidos e determinados pelas elites democráticas14. Isso poderá tornar refém desse do-mínio, inclusive, governos eleitos para moldá-los e exercer controle sobre eles. É exatamente esse o caso do processo eleitoral do ano de 2010 onde, apesar de eleita em virtude dos próprios méritos e daqueles obtidos pela agenda social

13 “Agenda Setting” é uma teoria de comunicação desenvolvida por Maxwell McCombs e Donald Shaw a partir do trabalho do jormalista Walter Lippman. De acordo com ela, a mídia determina a pauta para a opinião pública destacando determinados temas e preterindo, ofuscando ou ignorando outros. Além disso, determina uma correspondência direta entre a intensidade de cobertura de um fato pela mídia e a relevância desse fato para o público.14 Se considerarmos, como Foucault, que as relações de poder agem sobre o indivíduo para dele se apropriar e para melhor adequá-lo às necessidades dos poderes dominantes, conforme aborda em Vigiar e Punir, é forçoso concluir que o conhecimento é fundamental para que essa apropriação e adequação produzam os efeitos desejados. Ora, se no mundo contemporâneo a informação é o principal fundamento do con-hecimento, nada mais natural que os poderes dominantes se utilizem da imprensa e da mídia como forma efetiva de controle sobre o cidadão, produzindo nele apenas o conhecimento que se deseja, dentro de um escopo e de limites bem definidos.

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e desempenho geral do governo Lula, a presidenta Dilma Rousseff tornou-se refém de poderosas agremiações religiosas e da própria imprensa quando de-clarou em pronunciamento seu compromisso com a mais “irrestrita liberdade de imprensa”, mesmo consciente de que ela representa o pensamento da elite democrática e não propriamente o do restante da população brasileira, justa-mente por ter assumido compromissos de campanha, gerados em face desse “agenda setting”, amplamente divulgado e debatido na e pela mídia.

3. ConCLuSão

3.1 Capitalismo ou liberdade de imprensa

É corrente entre os pensadores contemporâneos a ideia de que a im-prensa e os meios de comunicação devem ser representativos das disso-nantes vozes dos vários grupos em conflito na sociedade para permitir que cada cidadão individualmente e todo o conjunto da população tenham acesso à diversidade de opinião e possam, eles mesmos, refletir e formar conscientemente sua própria opinião. Esse pluralismo, a permitir a circu-lação das várias correntes do pensamento político através da mídia, seria a única forma de se garantir a lisura do processo democrático. Entretanto, tudo isso parece ser desmentido diante da conclusão de que o capitalis-mo, amplamente amparado pela filosofia política liberal, provoca a um só tempo a formação de oligopólios em todas as áreas, inclusive nos meios de comunicação, a atrofia dos espaços públicos de discussão (inclusive o promovido pela imprensa), bem como a manipulação, por uma imprensa representante de si mesma e do poder econômico, do que deve ou não en-trar na pauta dos grandes temas a serem debatidos pela sociedade, promo-vendo como já acusamos, uma forma de controle social por parte da elite dominante, através da mídia a seu serviço. Tudo isso é profundamente agravado pela opção hiperbólica que realizamos em prol do individual e privado em detrimento da coletividade e da coisa pública.

O grande problema parece estar, então, menos em alguma inadequa-

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ção legal ou falta de diálogo democrático sobre as questões do que na pró-pria lógica do capitalismo vivente sob a égide do pensamento liberal.

Os intelectuais liberais em sua luta contra o Estado autoritário e a ditadura social teceram uma teia complexa, visando fortalecer a relação entre um Estado mínimo garantidor das liberdades individuais e da pro-priedade privada e o capitalismo. Preocuparam-se tão reta e firmemente em se defender desses agentes nefastos às liberdades que se esqueceram de preparar uma rota de fuga que os salvasse do Frankstein que começavam a gerar: a ditadura do poder econômico.

Sendo assim, podemos inferir que a mesma argumentação usada pelo filósofo húngaro István Mészáros (1930), pensador marxista con-temporâneo, em seu ensaio A Educação para além do capital, escrito para a Conferência, proferida em Porto Alegre, em 2004, na abertura do Fórum Mundial de Educação, para justificar a impossibilidade de se obter uma reformulação do sistema de educação sob a lógica incorrigível do capital, pode ser utilizada com a mesma validade para a questão da reformula-ção das relações entre os meios de comunicação, o cidadão, o Estado e a liberdade de imprensa como direito do cidadão, visto que, assim como a educação, a informação não pode ser tratada como mercadoria. Segundo sua teoria, não é possível uma reformulação significativa da educação – e no nosso caso das comunicações e da imprensa – sem que se promova uma correspondente transformação no quadro social, onde as práticas educati-vas devem operar sua vital função transformadora. Na atualidade, a infor-mação é uma das principais fontes de material para a educação. Educação essa que deve se obrigar a oferecer o ferramental necessário para que as pessoas a transformem em conteúdo. Isso quer dizer que não serão simples modificações ou produções de novas leis operando dentro da mesma lógi-ca capitalista que irão garantir tanto uma educação de qualidade como um sistema de comunicação, informação e imprensa livre e democrático. Mais do que isso, aponta-nos Mészáros, será imprescindível que desloquemos o foco das finalidades humanas dirigido ao capital ou ao “ter-humano” para reposicioná-lo em direção ao “ser-humano”.

Em suma, a quebra da lógica do capital é a condição necessária para

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democratização das relações humanas, políticas e individuais, inclusive a educação, a imprensa e as comunicações em geral.

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title: Freedom of press: Autonomy or Practice of Power?Authors: Ibsen José Fabis Marques; Marcelo Donizete da Silva.

ABStRACt: The Brazilian media considers the Freedom of Press its fundamental and irrevocable right, being absolute therefore, using the classical liberal philosophers as base for their argument. Supported on professor Venício A. de Lima and the dialogue between the several currents of classical thought that dealt with the issues of the freedom of a person I intend to demonstrate the impossibility of using this philosophical base which sustains it and accuse it of an incorrigible partiality and engagement to self-power, power of advertisers and hence the power of capital.Keywords: Freedom. Liberalism. Press. Power. Capitalism.