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17revista Liberdades.
| Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – se tembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 |
Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS2Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
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EexpedienteDiretoria da Gestão 2013/2014
Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Diretoria Executiva
Presidente:Mariângela Gama de Magalhães Gomes
1ª Vice-Presidente:Helena Lobo da Costa
2º Vice-Presidente:Cristiano Avila Maronna
1ª Secretária:Heloisa Estellita
2º Secretário:Pedro Luiz Bueno de Andrade
Suplente:Fernando da Nobrega Cunha
1º Tesoureiro:Fábio Tofic Simantob
2º Tesoureiro:Andre Pires de Andrade Kehdi
Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:Eleonora Rangel Nacif
Conselho Consultivo
Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo MalanGustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad
Ouvidor
Paulo Sérgio de Oliveira
Suplentes da Diretoria Executiva
Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega CunhaLeopoldo Stefanno G. L. Louveira Matheus Silveira PupoRenato Stanziola Vieira
Assessor da Presidência
Rafael Lira
Colégio de Antigos Presidentes e Diretores
Presidente: Marta Saad
Membros: Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico MañasLuiz Flávio GomesMarco Antonio R. NahumMaurício Zanoide de Moraes Roberto PodvalSérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira
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Coordenadores-Chefes dos Departamentos
Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. BecharaBoletim: Rogério FernandoTaffarelloComunicação e Marketing: Cristiano Avila MaronnaConvênios: José Carlos Abissamra FilhoCursos: Paula Lima Hyppolito OliveiraEstudos e Projetos Legislativos: Leandro SarcedoIniciação Científica: Bruno Salles Pereira RibeiroMesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina D’AngeloMonografias: Fernanda Regina VilaresNúcleo de Pesquisas: Bruna AngottiRelações Internacionais: Marina Pinhão Coelho AraújoRevista Brasileira de Ciências Criminais: Heloisa EstellitaRevista Liberdades: Alexis Couto de Brito
Presidentes dos Grupos de Trabalho
Amicus Curiae: Thiago BottinoCódigo Penal: Renato de Mello Jorge Silveira CooperaçãoJurídica Internacional: Antenor Madruga Direito Penal Econômico: Pierpaolo Cruz BottiniEstudo sobre o Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de AndradeJustiça e Segurança: Alessandra TeixeiraPolítica Nacional de Drogas: Sérgio Salomão ShecairaSistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda
Presidentes das Comissões Organizadoras
18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais: Fernanda Regina Vilares20º Seminário Internacional: Sérgio Salomão Shecaira
Comissão Especial IBCCRIM – Coimbra
Presidente:Ana Lúcia Menezes VieiraSecretário-geral:Rafael Lira
Coordenador-chefe da Revista Liberdades
Alexis Couto de Brito
Coordenadores-adjuntos:Bruno Salles Pereira RibeiroFábio LoboscoHumberto Barrionuevo Fabretti João Paulo Orsini Martinelli
Roberto Luiz Corcioli Filho
Conselho Editorial: Alexis Couto de BritoCleunice Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes
revista Liberdades.Fábio LoboscoGiovani Agostini SaavedraHumberto Barrionuevo FabrettiJosé Danilo Tavares LobatoJoão Paulo Orsini Martinelli João Paulo SangionLuciano Anderson de Souza Paulo César Busato
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resenhas de filmes
Eexpediente ........................................................................................................................2
Apresentação ...................................................................................................................6
Entrevista
Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués ....................................................................................8
Artigos
Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal ................................................................................11
Aury Lopes Jr. e Caio Paiva
Reflexões acerca do Direito de Execução Penal .................................................................................24
Felipe Lima de Almeida
Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 .........50
Mayara de Souza Gomes
A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização .................69
Joyce Keli do Nascimento Silva
Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? ..............................................................................85
Tânia Konvalina-Simas
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Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade ....................................................................................................99
André Lozano Andrade
História
Ressonâncias do discurso de Dorado Montero no direito penal brasileiro ........................................118
Renato Watanabe de Morais
Resenha de Livro
Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard .....................................................................................................141
Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa
Resenhas de Filmes
A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” .....149
Laila Maria Domith Vicente
Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? ...................................................................158
Yuri Felix e David Leal da Silva
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ApresentaçãoMais uma edição da Liberdades, e mais uma vez, trabalhos notáveis.
Iniciamos com a entrevista do professor Ramón Ragués realizada pelo professor Spencer Toth Sydow, e faz considerações sobre a teoria da cegueira deliberada.
Nos artigos científicos, variadas reflexões.
No campo processual, Aury Lopes Jr. e Caio Paiva abordam o projeto de lei 554/11 e as vantagens da implementação, no Brasil, da audiência de custódia e imediata apresentação do preso ao juiz.
Em uma abordagem histórica da execução penal na legislação brasileira, Felipe Lima de Almeida disserta sobre a natureza jurídica da execução penal e as finalidades que pretende alcançar.
Passando ao direito material, sobre a tensão que existe entre a violência domestica contra a mulher e a política criminal de ultima ratio, Mayara de Souza Gomes analisa a dicotomia sugerindo uma solução que possa atender aos anseios sociais e sistêmico-penais.
Joyce Keli do Nascimento Silva parte da ação comunicativa de Habermas para analisar autoria mediata e o domínio do fato em aparatos organizados de poder.
Mudando da dogmática para a criminologia, a abordagem de Tânia Konvalina-Simas sobre a importância da profissão de criminologista no cenário jurídico-penal português oferece um entendimento acerca de uma melhor operacionalização da criminologia e sua capacidade de rendimento para os procedimentos penais
André Lozano Andrade também navega pela criminologia e pela política criminal ao discorrer sobre o direito penal simbólico e a intervenção mínima e como tais conceitos podem ser sentidos e absorvidos pelo contexto social.
A abordagem histórica nos é trazida por Renato Watanabe de Morais. O sempre atual e discutido Dorado Montero e seu correcionalismo são revisitados em busca de uma aplicação prática no campo da política de drogas.
Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa nos trazem a resenha do livro “A rota antiga dos homens perversos”, do sempre crítico René Girard, que apesar de sua formação essencialmente religiosa nos traz observações muito interessantes sobre o ser humano e seus desejo de vingança.
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Por fim, Laila Maria Domith Vicente, Yuri Felix e David Leal da Silva nos trazem duas resenhas de filmes absolutamente recomendáveis. “O outro lado da Rua” interpreta a forma de ser e estar no mundo, e “Match Point” tem como tema de reflexão a competitividade, aceleração e a busca do sucesso no mundo moderno.
Como se vê, mais uma interessante edição, elaborada com a ajuda dos colaboradores, que continuam apostando e prestigiando a nossa publicação.
A todos, uma boa leitura.
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A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua”
Laila Maria Domith VicenteMestre e Doutoranda em Psicologia – Estudos da Subjetividade, Política e Exclusão Social do Programa de Pós Graduação da UFF – Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora atuante no Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura, do programa de pós-graduação em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Professora de Psicologia Jurídica e advogada.
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle.1
Branca de Neve estava aposentada.2 Não se sabe ao certo o que ela fazia antes disso, mas agora se ocupava de uma função que considerava nobre: salvar a cidade do Rio de Janeiro do crime. Em sua vivência de trabalho voluntário em nome da segurança e do combate ao crime mantinha sempre seu corpo e seus olhos em alerta e buscava toda manhã nos jornais a manchete que se referisse à sua prática na noite anterior. Branca de Neve era o seu codinome e ela integrava o grupo organizado de pessoas aposentadas que colaboravam com denúncias para as Delegacias de Polícia.
A nossa heroína saia às ruas noturnas, adentrava boates de prostituição, se inseria em seus interstícios escuros, encontrava a normatividade além da lei e a denunciava. De manhã nas bancas de jornal procurava a manchete que estamparia o enredo de seu serviço:
1 Música Esquadros de Adriana Calcanhoto(2003). 2 As análises aqui propostas giram em torno do filme “O outro lado da Rua” (2004) e a personagem em tela refere-se de maneira livre à protagonista e ao
enredo do filme.
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“Operação policial fecha duas casas de prostituição na zona sul do Rio”3
Branca de Neve se orgulhava pelo serviço prestado à Delegacia de Copacabana 12ª DP.
Em seu afã às vezes esbarrava em dinâmicas extralegais toleradas, extras, mas legais – mais que toleradas muitas fazem parte das relações de poder normalizadas.4
Certo dia, ou melhor, certa noite, nossa heroína portava um binóculo de sua janela a contemplar – janela indiscreta5 – a janela vizinha. Estava em busca de acontecimentos que tivessem o formato jornalístico de narração e espetáculo e que assim pudessem preencher a vida de manchetes que povoam as cidades. Em seu olhar, Branca de Neve via os (aparta)mentos vizinhos em quadrados, enquadrados (“eu vejo tudo enquadrado, remoto controle”),6 em quadros – como em uma fotografia, ou ainda mais, como nas imagens em movimento dos cinemas e da televisão. Como a vida em recorte, apartada e sem continuidade.
Já nos dizia Walter Benjamin (2000) sobre a necessidade de o sistema sensorial adaptar-se às mudanças na percepção acarretadas pela vida moderna. Ainda que seja tão difícil delimitar o conceito de modernidade, de maneira breve, indicaremos tal momento como aquele que foi demarcado pelos historiadores como posterior à Alta Idade Média em que os modos de produção tomaram um caráter mecânico e não mais artesanal, em que as pessoas se acumularam no que veio a ser chamado de cidades. Diversas foram as modificações econômicas e sociais exaustivamente ressaltadas pelos economistas e historiadores. Entretanto, com Benjamin, veremos que nesta nova forma ao viver lado a lado com a técnica e a tecnologia de produção, as pessoas se viram forçadas a criarem outros corpos e outros sistemas sensoriais. Para tanto, o cinema em seus recortes, e na maneira de ser projetado a partir dos choques de vinte e quatro quadros por segundo,7 de alguma forma nos treinou a percepção no ritmo de produção capitalista:
3 Disponível em [www.mancheteonline.com.br/operacao-policial-fecha-duas-casas-de-prostituicao-na-zona-sul-do-rio/]. Acesso em 23.09.2012.4 Neste sentido Fonseca (2002) contribui com a sua análise sobre o conceito de ilegalismo em seu estudo sobre Foucault e o Direito: “O ilegalismo não é um
acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. É um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel está previsto na estratégia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo dispôs espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros enfim, em que as infrações são sancionadas (...) Ao final de contas, diria que a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de se fazer circular a própria lei” (p. 139-140) .
5 Remição ao filme Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock.(1954).6 Música Esquadros, de Adriana Calcanhoto (2003).7 A história do surgimento do cinema pode nos ajudar a entender como este pode ser considerado o precursor da arte/espetáculo de (educação de) massa.
Em 1895 os irmãos Lumière criaram o cinematógrafo – aparelho de captação e projeção de imagens a 24 quadros por segundo o que nos dá a impressão do movimento – que, na época, era utilizado apenas como atração para chamar a atenção do público e não como uma forma de linguagem narrativa, o que atualmente faz com que os historiadores denominem o período histórico de 1895 até 1906/1907 como “Cinema de Atrações” face ao Cinema Clássico
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“A técnica submeteu, assim, o sistema sensorial a um treinamento de natureza complexa. Chegou o dia em que o filme correspondeu a uma nova e urgente necessidade de estímulos. No filme, a percepção sob a forma de choque se impõe como princípio formal. Aquilo que determina o ritmo de produção na esteira rolante está subjacente ao ritmo de receptividade, no filme” (BENJAMIN, 2000, p. 125).
Neste sentido, o olhar da Branca de Neve – treinado – já via enquadrado. E eram os recortes dos apartamentos vizinhos que vinham ao seu olhar que estava em busca de notícias. Quando uma se sobressai:
“Juiz aposentado assassina mulher com seringa de remédio letal em condomínio de luxo de Copacabana”.
“Eu sei o que eu vi” era a frase que repetia para si e para o mundo, a protagonista, enquanto buscava a concretização (publicação) de sua manchete. Em sua avidez lhe parecia que tornar real uma situação era fazer dela notícia, espetacularizá-la. Com o intuito de afirmar a sua visão, o seu serviço voluntário, a sua lucidez, Branca de Neve, ao não ver publicada no jornal a manchete supracitada que decorreria de sua denúncia, se põe a seguir o Juiz pelas ruas em buscas de outros indícios que comprovem o homicídio.
Só que a vida é outra história. Ela foge em outras histórias que nem sempre cabem na notícia. A vida sempre vaza como a grama entre as pedras do calçamento, conforme já nos sussurrava Deleuze e Parnet (1998).
A vida que é notícia de jornal, mas também é ainda tecida em narrativas que nos contaria Shahrazad.8 Benjamin (1996b) nos fala de três formas comunicativas (Narrativa, Romance e Informação) que se impõe e sobrepõe em determinadas
considerado de narrativa. A história do cinema se insere na história mais ampla dos divertimentos populares e do deslocamento das pessoas para os grandes centros, fazendo surgir as massas e o processo de urbanização consequente. Alguns autores como Walter Benjamin (1996 b e 2000) entendem que o ritmo e a velocidade do cinema (projeção de 24 fotogramas por segundo) foi uma forma de educar as pessoas para a produção em série nas fábricas e para acostumar os olhos e a percepção ainda lenta de pessoas que viviam no campo e que eram consideradas por ele como uma “geração que ainda fora à escola de bonde puxado por cavalos [e] se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, 1996b, p. 198). Sobre os primórdios de o cinema consultar: COSTA, Flávia Cesarino. História do cinema mundial: primeiro cinema. Campinas: Papirus, 2006.
8 Shahrazad é conhecida como uma grande narradora que conseguia por meio de suas histórias sobreviver noite após noite ao mergulhar sua narrativa na vida do ouvinte – o rei, seu marido e futuro carrasco. Sinopse do livro: “tendo sido traído por todas as mulheres do palácio – esposa e concubinas –, o rei Shahriyar mata as traidoras, decidindo tomar, daí por diante, uma esposa por noite e executá-la logo ao amanhecer, tarefa de verdugo, essa incumbida ao grão-vizir. Lida e instruída nos mais variados assuntos, Shahrazad – justamente a filha do vizir – voluntaria-se em casar-se com o rei, arriscando a própria vida para livrar as demais mulheres da morte a que estavam fadadas. Ela possuía um plano: depois de se entregar ao esposo, durante a noite, passaria a lhe contar histórias fantásticas recheadas de traições e mortes, mas também de paixões e loucuras, homens estúpidos e astutos, reis, sábios, comerciantes, vagabundos, gênios, seres zoomórficos, maravilhas de toda sorte que revelam sabedoria e conhecimento em história, filosofia, justiça e comportamento… Aos primeiros sinais da aurora, ela se calaria, sem mais, interrompendo a narrativa. Curioso por saber o final, o rei adiaria a execução
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épocas, mas que, de alguma forma, mantém-se, ainda que em potência, em sua existência e prática concomitantes. Benjamin (1996) nos mostra ainda como a narrativa perde espaço no mundo contemporâneo. No texto “Experiência e Pobreza” (1996a), ainda em 1933 – em meio ao capitalismo moderno – o autor questionava se os homens e mulheres do contexto urbano e do pós-primeira-grande-guerra seriam capazes de transmitir experiências da forma como faziam em outrora, por meio da narrativa que seria o meio comunicativo da transmissão coletiva de experiências por excelência.
De forma ainda mais específica, em 1936 o autor questiona se a narrativa como “a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1996b, p. 199) ainda se fazia possível em um mundo em que, como já havia dito Marx (2009), tudo o que era sólido desmanchava no ar.
Nesse passo, o questionamento que se faz é o quanto a impossibilidade de intercambiar experiências afeta a própria maneira de ser e estar no mundo, o quanto isso se refere aos processos de subjetivação correntes no contemporâneo. Neste sentido o contar a história da Branca de Neve pode nos ajudar a construir outros entendimentos do mundo.
Na busca por manchetes, Branca de Neve pautava a sua forma de estar e acreditar no mundo. Assim como uma notícia – considerada uma informação e que “aspira a uma verificação imediata” (BENJAMIN, 1996, p. 203b), Branca de Neve queria acreditar no que via (“eu sei o que eu vi”). Queria que o mundo respondesse aos padrões de verificabilidade das notícias, que pudesse ser descrito em uma manchete de jornal, e que fosse espetacular nos padrões das sensações e dos choques dispostos na televisão. Neste sentido é a explicação de Carlos Henrique Schoroder – diretor geral de jornalismo – citado por Willian Bonner (2009, p. 23) em seu livro sobre o modo de fazer o Jornal Nacional:9 “Quando você torna aquilo mais claro, mais dinâmico e inteligível para o telespectador, você atingiu o seu objetivo. Não é só levar a informação – mas fazer com que ele entenda. Esta é a nossa contribuição”.
Por outro lado, o dom do narrador é “poder contar a sua vida. Sua dignidade é poder contá-la por inteiro” (BENJAMIN, 1996 b, p. 221).
Branca de Neve decide, então, conhecer para contar a história inteira que havia sido recortada em seu olhar na manchete que planejara estampada informando o acontecido acerca da vida do Juiz Aposentado e de sua esposa. Neste caminho, ela é atravessada pelo narrar da vida que em nada se parece com a vida de informação e o modo de subjetivação jornalístico que pautava seus dias até então.
de Shahrazad até a manhã do outro dia, após ter concluído a história interrompida na noite anterior. E nisso passariam (e de fato se passaram) muitas e muitas noites.” Trecho da matéria sobre Shahrazad e As Mil e Uma Noites na Revista Cult. Disponível em <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/metamorfoses-de-uma-narradora/>. Acesso em: 26 set. 2012.
9 Jornal Nacional é o jornal transmitido no Brasil pela emissora Globo de Televisão nos dias de semana e no horário das 20h.
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Mais uma vez é Benjamin (1996b) que vem nos dizer que a forma narrativa foi tornando-se arcaica com o desenvolvimento do romance, entretanto, a forma comunicativa que de fato afronta a narrativa é a informação. Esta que tem seu desenvolvimento junto à consolidação da burguesia e à formação da imprensa que “no alto do capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes” (BENJAMIN, 1996b, p. 202).
Recuando um pouco para entender o declínio da narrativa, Benjamin (1996b) o entende como que atrelado ao desenvolvimento secular das forças produtivas. O desenvolvimento do romance se mostraria como um indício do declínio da narrativa. O romance está atrelado à invenção da imprensa em função da produção gráfica do livro. O livro dissemina uma leitura individual, silenciosa, para dentro, enquanto a narrativa está muito mais próxima da tradição oral e da troca de experiências entre narrador e ouvintes, a história como o plano de trocas.
“O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas às experiências dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1996b, p. 201).
E dar conselhos, segundo Benjamin (1996b, p. 200) é muito menos “responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. E se o romance que em seu âmbito isolado e individual não permite a transmissão de uma experiência coletiva, ainda mais ameaçadora é a difusão da informação como o modo de comunicação primordial e imposto no contemporâneo.
A personagem e o que ela lê todos os dias nas manchetes dos jornais se entremeiam, os modos de ser no mundo passam a ser jornalísticos, as informações viram subjetividade, os pensamentos e os modos de ser: concisos, atuais, urgentes e de verificação imediata. Isso de acordo com os “princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade...)”, segundo Benjamin (2000, p. 107). Da mesma forma os assuntos que viram notícia passam a fazer parte das prioridades das pessoas e a urgência com que são passados se insere nas percepções delas. O crime passa a ser importante,10 assim como o seu combate, a denúncia e a vigilância passam a ser toleradas, ou muitas vezes desejadas.
As histórias de nossas vidas já não podem ser narradas, devem ser estampadas, noticiadas, espetacularizadas. Entretanto, como que por uma desterritorialização,11 Branca de Neve é afetada pelo Juiz em seu encontro nas ruas da
10 Por várias vezes em seu livro, William Bonner (2009) coloca como objetivo do Jornal Nacional “mostrar aquilo que de mais importante aconteceu num dia”. Além de todas as questões que tal afirmação pode nos suscitar, parece-nos imperioso pensar a inversão desta proposta se não quisermos dar uma essência aos fatos e à importância concedida a eles. Em meio a pessoas, situações, regiões, práticas e culturas tão diversas, como é o caso do grande Brasil, como podemos pensar em assuntos mais importantes de maneira uniforme e consensual? O que de mais importante acontece é aquilo que se mostra.
11 Usamos o termo desterritorialização em sintonia com o conceito cunhado por Deleuze e Guattari como a abertura e a deriva de subjetividades territorializadas.
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cidade. E no dia-a-dia deste encontro – que no início era pautado pela avidez de impor-lhe a sentença de assassino – é tecida a troca da experiência, a história dele é narrada, é compartilhada, e Branca de Neve já se coloca em situação de dar-lhe conselhos, como ela diz: “Agora eu entendo o que aconteceu naquela noite, será que você pode me entender também?”. Dar conselhos que é como continuar uma história, se colocar na história, como o oleiro está presente no vaso de argila que artesanalmente produz, a narrativa é:
“uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir “o puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1996b, p. 205).
Nas trocas entre a Branca de Neve e o Juiz aposentado, que neste momento eram Regina e Camargo, as narrativas de vida foram se tecendo e uma experiência compartilhável foi possível. Experiência esta que acarreta transformações na vida de ambos. Regina entende que a notícia que poderia ser estampada na manchete de jornal não seria necessariamente uma mentira, assim como também pode não ser a verdade que ela acreditava existir. O Juiz talvez não seja este assassino frio que cobre a mulher com um lençol duas vezes. A mulher estava há tempos com um câncer e não queria passar por um processo mortalizador de quimioterapia. Preferia ir naquela noite. Branca de Neve percebe que a vida pode se aproximar mais dos contos de fadas12 e dos mitos que de uma manchete de jornal. Porque uma história pode estar sempre aberta aos olhares e nem sempre ela se assujeita aos enquadramentos que lhes são dados. Nem sempre cabem na moldura ou nos recortes da objetiva que se tornou nossa forma de olhar.
Referências
BenJAmin, Walter. Magia e técnica, arte e política: experiência e pobreza. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996a.
Neste sentido (GUATTARI e ROLNIK, 2000, p. 323): “A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. (...) O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir”.
12 “E se não morreram, vivem felizes até hoje.”, diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho. (BENJAMIN, 2006 b, p. 215)
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_____. Magia e técnica, arte e política: o narrador. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996b.
_____. Magia e técnica, arte e política: a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1996c.
_____. Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo: sobre alguns temas em Baudelaire. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 2000.
Bonner, Willian. Jornal Nacional: modo de fazer. Rio de Janeiro: Globo. 2009.
CAlCAnhoto. Adriana. Esquadros. Álbum: Perfil. Faixa: 4. Gravadora: Som Livre. Ano de Lançamento: 2004.
CostA, Flávia Cesarino. História do cinema mundial: primeiro cinema. Campinas: Papirus, 2006.
deleuZe, Gilles; pArnet, Claire. Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta. 1998.
FonseCA, Marcio Alves. Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.
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O outro lado da rua. Direção: Marcos Bernstein. Tempo de duração: 97 minutos; ano de lançamento (Brasil): 2003.