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    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal

    Sistema de Informacin Cientfica

    Lygia SigaudOcupaes de terra, Estado e movimentos sociais no Brasil

    Cuadernos de Antropologa Social, nm. 20, 2004, pp. 11-23,

    Universidad de Buenos Aires

    Argentina

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    Cuadernos de Antropologa Social,

    ISSN (Verso impressa): 0327-3776

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    Cuadernos de Antropologa Social N 20, pp. 11-23, 2004 FFyL - UBA - ISSN: 0327-3776

    Ocupaes de terra, Estado e

    movimentos sociais no Brasil

    Lygia Sigaud*

    Nos ltimos vinte anos, ocupar terras e nelas montar acampamentos tornou-se a forma apropriada para reivindicar a reforma agrria no Brasil. Dela se valem

    o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o movimento sindicale outras tantas organizaes existentes no mundo rural. O Estado brasileiro temconferido legitimidade pretenso dos movimentos, ao desapropriar as fazendasocupadas e redistribuir as terras entre os que encontram nos acampamentos.

    Tais ocupaes de terra constituem fato novo na histria brasileira. Certoque houve ocupaes no perodo anterior ao Golpe Militar de 1964. Nopossuam, no entanto, as mesmas caractersticas e amplitude das que segeneralizaram nos ltimos 20 anos, nem se tornaram a forma apropriada de de-mandar a reforma agrria. Prevaleciam ento outras modalidades de faz-lo, comoas mobilizaes pela mudana na Constituio, no que diz respeito s regras paradesapropriar terras. Com o Golpe, as ocupaes se tornaram impossveis. As terrasobtidas por meio delas foram devolvidas aos seus proprietrios e os militantes

    tornaram-se alvo da represso policial e militar.A partir do final dos anos 70 as ocupaes foram retomadas no sul do pase estiveram associadas instalao de acampamentos com dezenas, centenas defamlias. As primeiras foram organizadas por jovens filhos de pequenos produtores,com apoio da Comisso Pastoral da Terra (CPT), vinculada Igreja Catlica. Foieste ncleo que criou, em 1984, o MST. Em meados da dcada de 80 h registrosde ocupaes em vrios estados brasileiros, graas a uma poltica de expanso da

    * Doctora en Antropologa. Profesora del Museo Nacional, Universidad Federal de Ro de Janeiro(UFRJ). Correo electrnico: [email protected]. Texto de la conferencia dictada en Buenos

    Aires el 22 de octubre de 2004.

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    organizao. Em 1993, o Congresso Nacional estabeleceu que a improdutividadedas terras caracterizava o no cumprimento da funo social da propriedade, caso

    previsto pela Constituio de 1988 para proceder desapropriao. As ocupaesgeneralizaram-se em todo o pas. Durante o perodo, o Instituto Nacional daReforma Agrria (INCRA), que at ento tinha uma atuao modesta, comeou adesapropriar as terras ocupadas e as redistribuiu entre os que estavam nosacampamentos, tornando-os titulares de uma parcela de terra. As ocupaes, osacampamentos e as desapropriaes indicam uma inflexo no modo de procederdas diversas organizaes no mundo rural e do Estado. Da poder-se falar de umfato novo.

    Para examinar esta mudana tomarei o caso de Pernambuco, estado dafederao com o maior nmero de ocupaes de terras desde a segunda metade dadcada de 90. O foco ser a Zona da Mata, onde se registra uma das maioresconcentraes de acampamentos instalados em engenhos, como so denominadasas grandes plantaes produtoras de cana de acar. Cabe esclarecer que esta uma das reas de colonizao mais antigas do Brasil e na qual a agricultura da canae produo do acar sempre foi a atividade econmica dominante. Nesta regioestruturou-se uma sociedade fortemente hierarquizada. No topo da pirmideencontram-se os usineiros, industriais do acar e os grandes proprietrios, am-bos a explorar a agricultura da cana, e na base uma massa de cerca de 200 miltrabalhadores, submetidos por relaes de assalariamento. Procurarei aqui inscreveras ocupaes na histria recente da regio canavieira, mostrar as condies sociaisque contriburam para que ocupar e acampar se tornasse a forma apropriada parareivindicar a reforma agrria e examinar as implicaes desta transformao so-cial. A reflexo estar amparada em pesquisa desenvolvida nos municpios de RioFormoso e Tamandar, situados no litoral sul do estado.

    A primeira ocupao de que se tem notcia na rea foi organizada por mili-

    tantesdo MST e sindicalistas do municpio. Em abril de 1992 cerca de mil eduzentas pessoas (homens, mulheres e crianas) entraram no engenho Camaari,instalaram um acampamento e reivindicaram a desapropriao das terras. Camaariera tido como patrimnio da Rede Ferroviria Federal. Os donos de uma dasusinas da rea conseguiram provar que o engenho lhes pertencia e a Justiadeterminou o despejo dos ocupantes. Muitos voltaram para suas casas. Cerca de800, no entanto, remontaram o acampamento em Vermelho, rea de pequenapropriedade em Rio Formoso, e a partir de l iniciaram uma saga de ocupaesem engenhos que poderiam ser considerados improdutivos, conforme critriosdo Incra, e, portanto, passveis de desapropriao. Elas foram promovidas con-

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    juntamente pelo MST e pelos sindicatos at 1996, quando os sindicalistas passarama organiz-las sozinhos.

    Desde o incio, os acampamentos apresentavam aspectos recorrentes.Possuam uma organizao espacial semelhante, com barracas de madeira cobertascom um plstico preto grosso que denominam lona. As barracas eram alinhadasde modo a formar ruas. Em todos eles era iada a bandeira da organizao que oestava promovendo. O nmero de pessoas que participava da ocupao era varivel:desde mais de cem, at apenas uma dezena de pessoas. Aps a ocupao e montagemdas barracas, os acampamentos tanto cresciam, com a chegada de mais pessoas,quanto se reduziam. As redues eram provocadas tanto pela sada espontnea,quanto pela excluso daqueles cujo comportamento era considerado inaceitvelpelos demais. Do ato da ocupao tendiam a participar os homens adultos. Asmulheres e as crianas chegavam depois. A montagem da barraca sinalizava aparticipao no acampamento. Os indivduos com freqncia ali no permaneciamtodo o tempo. Saam para trabalhar nos canaviais, fazer biscates na construocivil. As famlias ficavam cuidando das barracas. Havia ainda aqueles que passavamlongos perodos fora. Deixavam um parente ou conhecido tomando conta, oumesmo a barraca s. Periodicamente retornavam e assim reafirmavam seus laoscom os demais. Havia uma diviso do trabalho em comisses, como as encarregadasda segurana, que zelava pelo acampamento, sobretudo noite, e da alimentao,que administrava o aprovisionamento dos participantes. Os movimentos tratavamde conseguir dos rgos governamentais, sobretudo do Incra e das Prefeituras, eainda de polticos e das igrejas locais, alimentos para os acampados e tambmpromoviam cortes nas estradas para arrecadar dinheiro e coleta de gneros nosestabelecimentos comerciais. As pessoas que se encontravam nos acampamentoseram oriundas da regio canavieira e tinham histria de trabalho e de vida noscanaviais. Alguns haviam passado por outros ofcios. Havia famlias com filhos

    pequenos e adolescentes e indivduos ss, pessoas que ainda trabalhavam e apo-sentados. Muitos se dirigiram para os acampamentos aps terem sido alvo deconvites feitos pelos militantesdo MST ou por sindicalistas. O trabalho demobilizao era realizado nas periferias das pequenas cidades da Zona da Mata,aonde residem os trabalhadores manuais. Convites tambm eram feitos nosengenhos junto aos que possuam um contrato de trabalho. O tempo de duraodos acampamentos era varivel. Havia os que duravam meses e eram desfeitoscom a desapropriao das terras e os que se permaneciam anos. Quase todos osacampamentos da rea foram despejados, aps mandato judicial. Os proprietriosdas terras requereram a reintegrao de posse e o juiz da comarca a concedeu. Aos

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    despejos seguia-se via de regra a remontagem do acampamento no mesmo localou em suas imediaes, na beira das estradas. Os acampamentos estiveram tambm

    sujeitos aos ataques de milcias privadas de fazendeiros que agiram por conta prpriapara desalojar os ocupantes. Uma vez ocorrida uma primeira ocupao, o engenhose tornava objeto de reivindicao de desapropriao e os que se encontravam noacampamento pretendentes redistribuio das terras. Mesmo fora das terras pre-tendidas o acampamento permanecia a elas associado e era reconhecido pelo nomedo engenho.

    Havia um vocabulrio prprio associado s ocupaes e aos acampamentos.Dizia-se preferencialmente ocuparao invs de invadir, verbo empregado pela mdia,pelos proprietrios e pelo senso comum. Para descrever a ocupao individual, ostrabalhadores utilizavam o verbo entrar. Quando chegavam com a inteno deentrarperguntavam antes ao coordenador responsvel se havia vaga, como seestivessem procurando um emprego. O objetivo da entrada era tratado comope-gar terrae a vida no acampamento freqentemente descrita como um estar debaixoda lona pretaque sinalizava uma situao de penria e de sujeio s intempries(chuva, calor excessivo durante o dia e frio noite):

    Os acampamentos eram muito mais do que a mera reunio de pessoas parareivindicar a desapropriao de um engenho. Compreendiam tcnicas ritualizadaspara realizar a ocupao, uma organizao espacial, uma etiqueta para entrar noacampamento e nele se instalar, regras para ali conviver, um vocabulrio prprio eelementos dotados de forte simbolismo como a bandeira do movimento e a lonapreta, que constituam os marcos distintivos de um acampamento. Esta combinaode aspectos modelares constitui uma forma, aforma acampamento. Trata-se de ummodelo engendrado no Sul do pas, ao longo do processo que desembocou naconstituio do MST. Seus militantes, deslocados para o Nordeste, ali oimplantaram. Na mata pernambucana o modelo foi progressivamente sendo ajus-

    tado s condies locais.Entre 1987 e 2003, o Incra desapropriou 194 imveis em Pernambuco,

    dentre os quais dezesseis engenhos na rea compreendida pelos dois municpiosestudados e contemplou com parcelas de terra os que j residiam e trabalhavamno engenho, conforme determina a legislao, e tambm os que se encontravamacampados. Em catorze deles tinham ocorrido ocupaes.

    A implantao daforma acampamentonada tem de evidente. No h ele-mentos na histria recente da regio que autorizem a supor que o territrio dosengenhos, tradicionalmente controlado pelos patres, viesse a ser ocupado comacampamentos; que o MST viesse a agir junto massa de trabalhadores ali onde

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    os sindicatos tinham uma hegemonia incontestvel; que os sindicalistas passassema ocupar terras; e que os trabalhadores se dispusessem a ocupar propriedades de

    outrem. Para entender como tais descontinuidades notveis tornaram-se possveis preciso examinar as ocupaes e os acampamentos a partir de quadros sociais ehistricos mais amplos.

    No final da dcada de 80, o Governo brasileiro alterou as diretrizes emrelao agroindstria aucareira, no bojo de uma poltica mais geral de retiradado Estado da economia: suprimiu os subsdios que h dcadas garantiam o preoda cana e do acar; privatizou as exportaes; e permitiu a elevao da taxa dejuros. Estas medidas, ass im como uma grande seca ocorrida no perodo,desencadearam uma crise no setor. Muitos patres no lograram adaptar-se faltade proteo do Estado e faliram. Outros tantos trataram de se reestruturar. Milharesde trabalhadores perderam o emprego, quer pela falncia dos patres, quer pelareduo dos efetivos promovida pelas empresas. No final dos anos 90, das quatrousinas que exploram a cana na rea estudada apenas uma estava em situao tidacomo slida e equilibrada. A segunda saa de um pedido de concordata; a terceirano havia modo na safra de 96-97 e desde 1995 no pagava regularmente seustrabalhadores; a quarta entregara ao Banco do Brasil treze de seus engenhos parapagar dvidas e habilitar-se a novos emprstimos. Esta ltima usina que na safra de1988-89 havia modo quase 650 mil toneladas de cana chegava de 96-97 comuma produo de 350 mil toneladas. Nos engenhos explorados por grandesproprietrios, a queda de produo tambm era acentuada. Um dos maioresengenhos de Rio Formoso, com uma produo de 30 mil toneladas de cana nosanos 1970, produzia seis mil em meados dos anos 1990. Segundo estimativa dosdirigentes sindicais, trs mil trabalhadores encontravam-se desempregados. Asocupaes ocorreram precisamente em terras de patres falidos. Como noexploravam mais adequadamente o engenho, as terras tornaram-se improdutivas

    pelos critrios tcnicos do Incra. Vulnerveis, muitos patres no tiveram maiscondies de garantir o territrio de seus engenhos. Os trabalhadoresdesempregados tornaram-se o alvo privilegiado dos convites para realizar asocupaes.

    Foi nesta conjuntura que o MST chegou zona canavieira. Seus militantesaliaram-se aos sindicalistas e comearam a ocupar os engenhos. O MST trouxe atecnologia apropriada para ocupar terras, montar e administrar os acampamentos.Os sindicalistas colaboraram com seus quadros, com os contatos entre ostrabalhadores e com a infra-estrutura que dispunham, sobretudo as instalaessindicais. A ocupao de 1992 foi o produto desta cooperao e sua ocupao

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    vista at hoje como um marco inaugural. A partir de ento, o MST logrou recrutarjovens e em pouco tempo montou uma rede de militantesque passaram a atuar na

    rea a servio do movimentoe de suas ocupaes.A aliana de sindicalistas com o MST chama ateno. Embora a reforma

    agrria fosse uma reivindicao sempre presente na agenda do movimento sindi-cal, no se cogitava ocupar terras para obt-la. As pretenses de sindicalistas maisjovens a ascenderem no campo sindical e as pretenses dos mais velhos a construiruma carreira na poltica municipal teriam contribudo para que tal aliana seproduzisse no litoral sul naquele momento de crise da agroindstria aucareira. Apartir de 96, os sindicalistas passaram a montar sozinhos os acampamentos nosengenhos da regio. No plano estadual a Federao que rene os sindicatos (Fetape)foi sendo progressivamente pressionada por alguns sindicalistas j envolvidos emacampamentos a incluir as ocupaes em sua programao. Naquele momento ossindicalistas j no detinham mais o monoplio da representao dos trabalhadores,que haviam adquirido progressivamente a partir do incio da sindicalizao ruralem 1962 e estavam ameaados de perder a fora e o prestgio que desfrutavam.Em 1997, a Federao j ocupava tantas terras quanto o MST. A inflexo domovimento sindical deu um impulso espetacular s ocupaes, que aumentaramem progresso geomtrica. Entre 1990 e 1994, Pernambuco era o 6 estado emnmero de ocupaes, com 28 sobre um total nacional de 421, e o 4 em famliasenvolvidas, com quase cinco mil sobre um total de aproximadamente 75 mil.Entre 1995 e 1999, perodo no qual a Fetape j fazia ocupaes, tornou-se o 1estado em nmero de ocupaes: 308 sobre 1855; e em nmero de famlias: 35mil sobre um total de cerca de 256 mil. E permanece sendo o campeo de ocupaesat hoje.

    No que diz respeito aos trabalhadores rurais, instalar-se, por meio daocupao, num engenho, sem a autorizao do dono, para obter uma parcela das

    terras desapropriadas dos patres, no fazia parte do horizonte dos possveis. Ostrabalhadores s instalavam-se em um engenho aps terem sido aceitos para pres-tar servios e se estabeleciam em locais designados pelo patro e seus prepostos.Havia a utopia doengenho libertono qual pudessem cultivar seus produtos desubsistncia, criar tanto animais quanto o desejassem e trabalhar para o patroapenas quando necessitassem de dinheiro. Tal utopia pressupunha a presena dodono e no implicava a idia da propriedade para o trabalhador. Explicar o ato deocupar os engenhos como o produto de uma vontade prvia de ter a terra no sesustenta, portanto, luz dos conhecimentos disponveis.

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    O desemprego resultante da crise econmica poderia ser uma explicaoatraente. Dela se valem sindicalistas e militantes para justificar o afluxo aos

    acampamentos. Uma vez perdido o emprego, os trabalhadores teriam atendidoaos convites e ido para os acampamentos. O problema que sempre houvedesemprego na entressafra da cana, no perodo que vai de maro a agosto. Certo que com a crise ele se agravou e que as ocupaes tenderam a ocorrer exatamenteao trmino da safra. Estar desempregado no parece, no entanto, ser condiosuficiente para estar nos acampamentos. Havia milhares de trabalhadores sememprego que preferiam continuar fazendo biscates a ir instalar-se sob a lona preta.Recusavam o convite para participar de acampamentos com o argumento de queno queriam a terra. Por outro lado, havia trabalhadores com um contrato detrabalho em vigor que participaram das ocupaes, tratando de conciliar a presenano acampamento com o trabalho formal para o patro.

    Os trabalhadores que se encontravam nos acampamentos entre 1997 e 2000afirmavam que l estavam parapegar terra. A anlise de suas trajetrias revela umadiversidade de situaes que precederam a entrada no acampamento. Assim haviaos que tinham perdido emprego; os que queriam recomear a vida aps uma crisefamiliar (separao, doena e morte); os que se sentiram atrados pela presena deconhecidos e parentes no acampamento e pela proximidade deste do local demoradia; os que aceitaram o convite porque tinham relaes estreitas com mili-tantes e sindicalistas e neles confiavam. Em meio a uma tamanha diversidadecompartilhavam, no entanto, uma crena: a de que uma vez debaixo da lona pretapoderiam, no curto prazo, melhorar suas condies de vida: ter terra para plantare criar animais e crdito do Governo para construir uma casa e produzir e,sobretudo, poder estabelecer-se por conta prpria sem depender de um patro.

    A crena de que um futuro melhor passava pela lona pretaconstitui-se assimem um elemento decisivo para explicar e compreender a disposio dos

    trabalhadores de se instalarem nas terras dos patres. Como ela teria surgido difcil, seno impossvel, reconstituir. Pode-se apenas indicar a sua existncia eformular a hiptese de que teria se constitudo progressivamente, a partir daprimeira ocupao, em Camaari. Alguns dos que participaram daquela ocupaocontam que no incio poucos iam s reunies preparatrias. Desconfiavam doque lhes era dito e temiam o que pudesse vir a lhes acontecer. Progressivamente ogrupo foi aumentando. A presena dos sindicalistas naquelas reunies certamenteavalizou o que estava por vir e contribuiu para que as resistncias fossem sendodesmontadas. Quando, a partir de 1993, o Incra comeou a desapropriar terras

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    ocupadas, a crena ganhou fora e solidez e as pessoas passaram a ter menos medoe menos dvidas a respeito da pertinncia de entrar nas terras dos patres.

    O que novo neste momento a crena de que debaixo da lona pretapoderiam almejar a um futuro melhor. A migrao, a mudana de emprego e depatro, a assinatura da carteira de trabalho figuravam no repertrio dos possveispara melhorar de vida. Na dcada de 90, a lona pretapassa a fazer parte desterepertrio. Tratava-se de uma alternativa nova, mas, nem por isso, deixava de seruma alternativa como qualquer outra. Interpretando-a desta forma pode-se melhorexplicar fatos que permaneceriam obscuros se vssemos a ida para os acampamentoscomo o produto de uma converso luta pela terra, tal como sugerem anlisesencantadas sobre movimentos sociais. Um destes fatos a sada dos acampamentos.Quando um indivduo vai para uma ocupao ele cr e aposta nas possibilidadesda lona preta. Os despejos, os ataques das milcias privadas, a demora em sair adesapropriao contribuem para produzir em muitos o desnimo, abalam a crenae a convico de esto fazendo uma boa aposta. Se, nestas circunstncias, surgiruma outra possibilidade que o trabalhador represente como mais atraente nohesitar em ir embora. A partida no significa que tenha perdido a crena. Encon-tramos trabalhadores que regressavam ao mesmo acampamento, passado algumtempo, ou entravam em outro acampamento mais para frente.

    A crena nas possibilidades abertas pela lona pretano uma crena gene-ralizada. H os que no crem. O fato de no crer hoje no implica em um nocrer amanh. Desde 1997 estive com trabalhadores que no queriam nem ouvirfalar empegar terrae que depois os encontrei em um acampamento. Por outrolado, a crena no produz efeitos automticos. Muitas vezes as pessoas crem, maspreferem aguardar uma oportunidade melhor. De um ponto de vista sociolgicoo que importa que a crena tenha passado a figurar no horizonte dos possveis.

    A implantao daforma acampamentona mata pernambucana foi assim o

    produto de uma mudana na figurao social. Uma conjugao de condies sociaisfavoreceu esta mudana: a crise entre os patres, a atuao do MST, a inflexo dossindicalistas e a gnese de uma nova crena.

    As ocupaes no ocorreram num quadro preexistente de conflitos porterra. O exame da conjuntura nos engenhos revela a inexistncia de sinais dedescontinuidades notveis nas relaes sociais. Havia interrupo de pagamento,morte do dono, a entrega dos engenhos ao Banco para pagamento de dvidas.Todas estas situaes poderiam ter sido enfrentadas de forma costumeira, comopor meio de processos na Justia do Trabalho, ou espera da chegada de novosdonos, e no necessariamente evoluiriam para a desapropriao das terras.

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    Foram os movimentosque, ao promoveram a entrada nos engenhos e osacampamentos, produziram uma inflexo no rumo dos acontecimentos: criaram

    um conflito de terra ali onde ele no existia e solicitaram ao Incra a desapropriao.Foi portanto por meio da forma acampamentoque problemas passveis de umasoluo costumeira foram transformados em um conflito por terra.

    O Incra, por sua vez, aceitou a legitimidade dos procedimentos: reconheceuos movimentoscomo representantes autorizados a solicitar desapropriaes, aca-tando suas demandas, e os participantes das ocupaes como pretendentes legti-mos terra, dando-lhes uma parcela. Conferiu tambm aos movimentos e aosparticipantes dos acampamentos uma existncia oficial em seus registros. Nas tabelasreferentes s ocupaes, nomeadas como reas de conflitos, conflitos que como seviu foram criados pelos movimentos, figuram, ao lado das colunas com informaesrelativas localizao do conflito, ao tamanho da propriedade, ao nmero defamlias residentes, uma coluna com o nmero de famlias acampadas e outracom o nome do movimentoque esteve na origem da ocupao. Nos formulriosdestinados a cadastrar os futuros beneficirios, figura o acampado, categoria semamparo legal, ao lado de outras reconhecidas pelo direito como trabalhador rural,posseiro, etc.

    Como mais de 90% das desapropriaes feitas pelo Incra contemplam asditas reas de conflito, ocupar engenhos e neles montar acampamentos, ou dito deoutra forma, valer-se daforma acampamento, tornou-se um recurso incontornvel.Este o ato que cria o conflito por terra e desencadeia o processo que poderdesembocar na desapropriao.

    As ocupaes e os acampamentos constituem uma linguagem simblica,um modo de fazer afirmaes por meio de atos, e um ato fundador de pretenses legitimidade. Ao promover uma ocupao e um acampamento o movimentodizao Incra que deseja a desapropriao das terras, ao proprietrio que quer suas

    terras e aos outros movimentosque aquela ocupao tem um dono. Esta linguagem bem compreendida por todos: o Incra entende que h um pedido dedesapropriao e desencadeia o processo, o proprietrio percebe que pode vir aficar sem suas terras e age na defesa de seus interesses solicitando a reintegrao deposse, e os outros movimentosrespeitam a bandeira do concorrente e no ocupamaquela terra. Com o ato de ocupar os movimentos legitimam suas pretenses desapropriao e ao reconhecimento de que aquela ocupao sua. Ao montarsua barraca o trabalhador diz que quer a terra. Esta afirmao est dirigida aoIncra, que no momento de selecionar os futuros beneficirios ir contabilizar osque se encontram debaixo da lona preta; ao movimentoque o incluir em suas listas

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    a serem apresentadas ao Incra; e aos demais que se encontram no acampamentoque iro reconhec-lo como algum que quer a terra. A barraca legitima a pretenso

    apegar terra; a prova do interesse em ser contemplado pela redistribuio dasterras. O estar debaixo da lona preta representado como um sofrimento quetorna aqueles que a tal se submetem merecedores da recompensa terra.

    As desapropriaes tm sido, portanto, o resultado de um processo que foidesencadeado pelas ocupaes e acampamentos, que caracterizaram uma situaode conflito por terra que foi assim reconhecida pelo Incra. Graas legitimidadeconferida pelo Incra, aforma acampamentotornou-se a forma apropriada de fazerdemandas. Para aqueles que tinham interesse em fazer viver um movimentoou empegar terra, abateu-se assim a coero de passar pela forma.

    Em suas manifestaes nos espaos pblicos, as autoridades governamentais,sobretudo do Ministrio da Reforma Agrria e do Incra, e os representantes dosmovimentos tendem a entreter uma retrica belicosa, como se suas relaes fossemde enfrentamento permanente. Nos ltimos dez anos, a mdia vem divulgando,com bastante freqncia, declaraes de autoridades nas quais afirmam que a re-forma agrria ser feita nos termos da lei e que no sero aceitas violaes daordem constitucional (as invases de propriedades privadas). Da parte dosmovimentosso habituais as acusaes de que o Governo no realiza a reformaagrria e as ameaas de novas ondas de ocupaes de terra. O tom das hostilidadesfoi elevado durante os oito anos do Governo Fernando Henrique. Amenizou-sebastante desde o incio do Governo Lula. Ora, esta retrica, ainda que remeta atenses, oculta as relaes de estreita cooperao e dependncia entre Estado emovimentos.

    At o presente momento o Estado brasileiro no colocou em marcha umapoltica, nem tpica, nem massiva, de desapropriao de terras improdutivas, quea Constituio e a regulamentao de 1993 autorizariam a implementar. Na

    ausncia de uma poltica prpria para proceder s desapropriaes tem dependidodos movimentosque lhe indicam, por meio das ocupaes e acampamentos, asfazendas a serem objeto de sua interveno. Neste sentido pode se afirmar que osmovimentostm fornecido as diretrizes para a poltica do Estado brasileiro emrelao questo fundiria: as fazendas desapropriadas so aquelas que foramocupadas. Os funcionrios do Estado justificam as desapropriaes alegando tra-tar-se de reas de conflito. Trata-se seguramente de uma linguagem que sobreviveude um tempo no qual eram efetivamente desapropriadas reas onde havia umconflito preexistente, como tendeu a ocorrer na Amaznia, onde foram registra-dos nos anos 70 e 80 enfrentamentos sangrentos. Ora, como j foi visto, quem

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    cria o conflito so os movimentos. A ocupao e o acampamento caracterizam umasituao de conflito e lhe do visibilidade. A linguagem das reas de conflitotem

    efeitos eufemizadores que ocultam o carter arbitrrio do conflito.O Estado depende ainda dos movimentospara selecionar os destinatrios

    da redistribuio das terras desapropriadas. Eles so escolhidos entre os queparticipam das ocupaes e que foram reunidos pelos movimentos. Contrariamen-te ao senso comum popular e mesmo erudito, no existe uma massa de sem-terraansiando pelo acesso a terra. Os movimentos criam a demanda por terra aoconvidarem os trabalhadores para ocupar as fazendas. So eles que lhes abrem apossibilidade de ter acesso a uma terra com a qual nunca haviam sonhado. Aoaceitarem o convite e se instalarem nos acampamentos os indivduos se tornamsem-terraporque passaram a reivindicar a terra para si. Comeam ento a se iden-tificar desta forma, que a modalidade apropriada de se representar no espao dosacampamentos e passam tambm a ser vistos pelos demais, do campo e da cidade,como sem-terra. No se costuma considerar sem-terrao trabalhador que vive nasperiferias: eles no esto envolvidos em ocupaes, condio indispensvel paraserem dessa forma identificados. Os movimentoscriam, portanto, no apenas ademanda como as condies de possibilidade de se tornar um sem-terrae de vir aser contemplado pela reforma agrria.

    De sua parte, os movimentosdependem fortemente do Estado para levaradiante suas aes. Os benefcios a serem obtidos do Estado constituem um pode-roso argumento para chamar as pessoas para as ocupaes. Em seus relatos a respeitodo convite de que foram alvos, os trabalhadores referiam-se com freqncia aofato que lhes havia sido dito que o Incra estava dando terras; que as terras paraaonde iriam eram improdutivas e, portanto, seriam desapropriadas; que se fossempara o acampamento receberiam alimentos dados pelo mesmo Incra; que quandohouvesse a desapropriao teriam acesso a crditos para fazer uma casa, viver algum

    tempo at poderem comear a produzir e ainda recursos para tocar a produo.Cada desapropriao de um engenho ocupado, cada liberao de crditos parareas reformadas, confirmam a justeza do que anunciado e favorecem a aceitaode novos convites para futuras ocupaes. Assim, a dinmica das ocupaes tributria da poltica de Estado. Sem ela os movimentosno teriam esperanasfundadas a oferecer a seu pblico alvo e encontrariam dificuldades para reunirpessoas para as ocupaes No teriam tambm se fortalecido, nem se multiplica-do, como ocorreu na mata pernambucana, aonde so contabilizados novemovimentos.

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    Ocupaes de terra, Estado e movimentos... / Lygia Sigaud

    Incra e cada movimento esto assim vinculados por relaes de dependnciarecproca e de cooperao tcita. Como estas relaes se inscrevem numa figurao,

    nos termos de Norbert Elias, na qual figuram indivduos vinculados a outrospoderes da Repblica, como o Judicirio, a outros movimentose tambm outrosatores, como os proprietrios, as relaes tendem a ser complexas e tensas. Assim,a maioria das desapropriaes na mata pernambucana foi feita aps umaintensificao da presso dos movimentos sobre o Incra, notadamente de ocupaesprolongadas em sua sede. Via de regra o que aparece, porque objeto de ateno damdia, a tenso. Procurou-se aqui colocar em relevo a dimenso oculta dadependncia e da cooperao que tem contribudo fortemente para entreter aengrenagem daforma acampamento.

    Finalmente caberia destacar que a generalizao daforma acampamentotemsido tributria tambm das relaes de dependncia que vinculam cada movimentocom aqueles que mobilizou e conduziu com sucesso obteno da terra edasrelaes de concorrncia entre os movimentos. Os indivduos que obtiveram aterra e acesso aos crditos, por intermdio de ocupaes, se sentem devedores aomovimentoque tornou isso possvel. A dvida implica em obrigaes, como lealdadee cooperao, e descrita como um compromisso. Os movimentoscontam, portanto,com os antigos acampados hoje detentores de uma parcela quando h marchas emanifestaes a promover e, sobretudo, quando se trata de fazer novas ocupaes.Eles vo para fazer nmero, ensinar a tcnica de ocupar, animar os nefitos e como seu exemplo mostrar que a esperana na lona preta fundada. Em todas asocupaes havia um ncleo constitudo por assentados. O capital simblico e opoder relativo dos movimentosso constitudos por aquilo que reconhecido comoseus feitos e suas vitrias: as ocupaes e as desapropriaes. Os movimentoscompetem para acumular cada vez mais capitais, o que se constitui em elementodecisivo para entender a espiral de ocupaes.

    As ocupaes de terra no Brasil so reconhecidas como um fato notvel eespetacular dentro e fora das fronteiras nacionais. So freqentemente encantadascomo se fossem a expresso de uma luta por terra, um sinal de uma nova rebeliodos oprimidos e naturalizadas como se fizessem parte da ordem natural de ummundo globalizado e dominado pelo neo-liberalismo. As ocupaes no so umefeito de uma luta por terra. No se trata de dizer que ela no existe. Apenas dedesmagiciz-la. A demanda por terra produzida pelos movimentose alimentadapelas prticas do Estado. Mas desde que haja indivduos dispostos a atender aosconvites dos movimentose a crer na possibilidade do acesso terra eles participamde aes que produzem o efeito da fazer existir uma luta pela terra. Vrios so os

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    Cuadernos de Antropologa Social N 20, 2004, ISSN: 0327-3776

    efeitos desta luta. Dentre eles destaca-se a condio de possibilidade da polticade desapropriao do Estado brasileiro nos ltimos 20 anos, a criao e

    fortalecimento de movimentose, sobretudo, o fato de que, graas a ela, centenas demilhares de indivduos lograram obter a ateno do Estado brasileiro, benefician-do-se do acesso terra e a crditos. No fosse esta luta muitos permaneceriamignorados, como boa parte da populao, ou apenas alvo de programas pontuais eemergenciais.