Lima Barreto - Numa e Ninfa

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NUMA E A NINFA

Numa e a Ninfa, de Lima Barreto

Fonte:

BARRETO, Lima. Numa e a ninfa. Rio de Janeiro : Grfica Editora Brasileira, 1950. p. 306.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Srgio Simonato Campinas/SP

Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para .

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NUMA E A NINFA

Lima Barreto

a Irineu Marinho

Cette nation (lEgypte) grave et srieuse

connut dabord la vraie de la politique,

qui est de rendre la vie commode et les

peuples heurex BOUSSET

I

O grande debate que provocara na Cmara o projeto de formao de um novo Estado na federao nacional apaixonou no s a opinio pblica, mas tambm ( extraordinrio) os profissionais da poltica.

Em torno do projeto, interesses de toda a ordem gravitavam. Um grande nmero de cargos polticos e administrativos iam ser criados; e, se bem que a passagem do projeto de lei no fosse para j, os chefes, chefetes, subchefes, ajudantes, capatazes polticos se agitavam e pediam, e desejavam, e sonhavam com este e aquele lugar para este ou aquele dos seus apaniguados.

De resto, alm desse resultado palpvel do projeto, havia nele outro alcance que s os profissionais da poltica entreviam. Com a criao de um novo Estado nasceria naturalmente uma nova bancada da representao nacional no Senado e na Cmara; e o partido dominante, republicano radical, temia no eleger a totalidade dela.

Bastos, o seu poderoso e temido chefe, que detinha o domnio poltico do pais, hesitava em apoiar ou contrariar francamente o projeto e, a respeito, s tinha frases vagas e gestos de duvidoso sentido. Os seus asseclas, os muitos que lhe obedeciam cegamente, sem a palavra devida, no sabiam o que dizer; e os mais atarantados eram os seus jornalistas e parlamentares. Uns, apoiavam; outros, combatiam; outros, ainda, ora apoiavam, ora combatiam.

Essa desordem nos arraiais polticos, essa interrupo do trilho guiador, excitava os nimos dos legisladores, preocupados, todos, quer combatessem, quer apoiassem, em agradar o chefe e revelar que haviam descoberto o pensamento oculto de Bastos - porque o Congresso era todo deste, a no ser uma reduzida minoria que, no af de combat-lo, ora dizia no, ora sim, conforme supunha que Basto queria ou no a criao de uma nova unidade federal.

Deputados houve que cortaram as relaes amistosas, to somente porque, no calor da discusso, um aparte mais veemente um deles proferira, quase sem reflexo.

Dizia-se boca pequena que o projeto tinha por fim acrescer a representao federal de jeito que, na prxima legislatura, tivesse o Congresso os dois teros necessrios para rejeitar o veto ao projeto de venda de um dos mais importantes prprios nacionais. Cochichavam que tal influncia receberia tanto; que tal outro j havia recebido metade da gratificao prometida; que a esposa de um diplomata tambm tinha interesse no negcio, alm de apontarem outros padrinhos, j conhecidos por todos, como protetores de tais cambalachos.

Ao certo, o que havia em torno da proposio parlamentar, o grosso pblico no sabia, e que ela podia trazer no bojo tudo o que se dizia, era admissvel. A imitao do regime poltico dos Estados Unidos no ficou restrita Constituio; aos poucos, como conseqncia ou no, conscientemente ou sem pensamento anterior, a imitao se estendeu aos seus escusos processos de traficncias em votos e medidas de governo.

A massa, a populao interessava-se pelo debate, pesava argumentos, sem suspeitar que tanto esforo de inteligncia escondesse uma vulgar mascateao ou um arranjo de polticos.

Fosse a importncia do assunto ou fossem os interesses subalternos em jogo, o certo que ocuparam a tribuna os mais mudos deputados e os mais cticos foram ainda encontrar no fundo deles mesmos, ardor e vigor combativos.

Entre as revelaes parlamentares que surgiram no momento, uma causou espanto. Era quase desconhecida da Cmara, e completamente do pblico, a existncia do Deputado Numa Pomplio de Castro.

Apesar de nome to auspicioso para o ofcio de legislador, os prprios contnuos no lhe guardavam com facilidade nem o nome nem os traos fisionmicos. Durante muito tempo, chamaram-no de Nuno; e, nos primeiros meses de seu mandato, freqentemente impediram-lhe a entrada em certas dependncias, a menos que o fizesse pela porta por onde penetrara na vspera. Reconhecido e empossado, no deu sinal de si durante o primeiro ano e meio de legislatura. Passou todos esses longos meses a dormitar na sua bancada, pouco conversando, enigmtico, votando automaticamente com o lder e designado pelos informados como - O genro do Cogominho. Era o deputado ideal; j se sabia de antemo a sua opinio, o seu voto, e as suas presenas nas sesses era fatal. Se na passagem de algum projeto, anteviam dificuldades na obteno da maioria, contavam logo com o voto do genro do Cogominho. Ele vota conosco, diziam os cabalistas, a questo saber o que o Bastos quer e o lder manda.

A sua colaborao, por esse tempo, para a felicidade nacional, se no foi fecunda, foi das mais tcitas de que se h notcia.

O deputado Pieterzoon, um gordo descendente de holands, mas cuja malcia no tinham nem o peso do seu corpo, nem o da sua raa, disse certa vez: Numa ainda no ouviu a Ninfa; quando o fizer - ai de ns!

O deputado Salvador. que ouviu a frase indagou: Ele fauno? O homenzinho tinha visto um quadro - Ninfas e Faunos - e no havia meio de se separar na sua inteligncia uma coisa da outra. Pieterzoon redargiu: No sei, meu caro, mesmo porque no se est bem certo de que os faunos fossem mudos.

Foi, portanto, com extraordinria surpresa, que se viu o deputado Numa tomar a palavra e fazer um discurso valioso. Parecia um milagre ver aquele sujeito to mudo, to esquivo, to aparentemente sem idias, lidar com as palavras, organiz-las convenientemente, exprimindo-se com bastante lgica.

A sua argumentao foi at das mais perfeitas e eruditas, sem que a erudio perturbasse a concatenao, a seriao lgica da tese a demonstrar. Mostrou que a nossa federao no atendia a tradies locais de costumes, de lngua ou e histria; que no foram pequenos pases que se uniram por ter um liame comum, mas, to somente um imenso pas que se dividiu e procurou com uma mais ampla autonomia local, perfeio administrativa: e, assim sendo, no se compreendia nem o patriotismo estadual nem a existncia de desmedidos Estados, verdadeiros imprios.

Os representantes dos jornais, no contando com to inesperada revelao, denunciaram o entusiasmo com calorosos elogios publicados nas suas folhas, ao dia seguinte.

Dizia A Aurora: O debate sobre a formao do Estado de Guaxup (projeto 244-A), se outro servio no prestou, pelo menos teve a vantagem de ter revelado ao pas um poderoso orador. O sr. Numa Pomplio, at agora considerado como uma perfeita excrescncia parlamentar, produziu ontem um discurso cheio de critrio, em que se notam saber, elegncia e propriedade de frases.

Na seo competente, O Intransigente noticiava: Ontem, na Cmara, naquele indecente valhacouto de caixeiros de oligarcas abandalhados, houve novidade. O sr. Numa de Castro, que at o dia de ontem era tido por idiota, revelou-se um orador. verdade que no pode emparelhar-se com os grandes oradores da Cmara. Faltam-lhe imagens, o seu vocabulrio pobre, a sua construo rasteira; fala como conversa. quase terra terra, sem as imagens que tanto tornam notvel o sr. Gracimundo Rocha. O seu discurso foi ouvido no maior silncio e impressionou francamente a Cmara. Ainda bem que isso lhe desculpa um pouco o ser associado deslavada oligarquia dos Cogominhos.

Um outro jornal, que se tinha por neutro, e aqui e ali, encontravam-se nele opinies bem firmadas, contava a estria da seguinte forma: O Sr. Numa Cogominho parece ter esperado o momento azado de revelar-se. At agora, depois de ter entrado para a Cmara, os trabalhos parlamentares tm se limitado a discusses corriqueiras de projetos pessoais, de questinculas polticas e mesmo do estafado oramento. A sua cultura histrica e o seu saber sociolgico pediam outros pretextos para se revelarem. Ontem, eles foram encontrados na discusso do projeto n. 244-A. Toda gente sabe de que cuida esse projeto, mas o que toda gente no sups era de que maneira elegante e sbia, ao mesmo tempo, ele podia ser tratado. O Sr. Numa fez isso e com muita discrio oratria, poucos tropos, sem guirlandas de frases. simples a sua maneira de falar, calma e sbria, sem nada daquilo que os latinos chamavam de asitico. Pode-se dizer dela o que j se disse do estilo de Descartes: il na que des ides et pas de style visible.

Antes que acabasse a semana, as revistas ilustradas - Os Sucessos - A Nota - O Mequetrefe - publicaram o retrato da nova glria parlamentar e a primeira, a sua biografia desenvolvida. A repercusso do triunfo foi tal que, quando, dias aps, o Dr. Numa atravessou a rua do Ouvidor, trazendo ao lado a mulher, era j uma notabilidade apontada e gloriosa. Aquela gente que a enche, gente habituada a respeitar as glrias retratadas nas revistas ilustradas e gabadas diariamente nos quotidianos, reconheceu-o e olho-o com o alto respeito que se deve a um grande orador parlamentar.

Numa caminhava acanhado, de cabea baixa, trpego um tanto, mas a mulher, D. Edgarda, pisava com segurana, muito naturalmente, e com a fisionomia cheia de alegria contida.

Esforava-se por no perder o que diziam; e, ao menor comentrio feito glria do marido, procurava de soslaio ver no grupo de quem partia. Os seus olhos, ao chegar aos cantos das rbitas, fulguravam um instante e rapidamente se punham na posio normal. Se parava para falar a um conhecido, a alegria contida arrebentava em demorados sorrisos e frases meigas, dirigidas s amigas ou aos filhos destas, se as acompanhavam; e nunca o seu longo olhar foi to longo e to lquido e nunca brilhou tanto o esmalte de seus dentes na concha nacarada dos seus lbios.

Desceram assim os dois lentamente a rua, parando aqui e ali, gozando aos goles o licor inebriante do triunfo. Cumprimentos no faltavam. Numa era detido por este e aquele, mas, dos muitos que o cumprimentaram. um ele apreciou sobremodo. As palavras do Incio Costa foram-lhe ao fundo dalma. A mulher no as ouvira bem, ficara atendendo outro conhecimento e Costa passara a dizer:

Meu caro Dr. Numa, gostei imensamente do seu discurso. Para mim, achei nas suas palavras um blsamo tranqilizador e patritico. Estvamos voltando muito ao carrancismo egosta dos conselheiros monrquicos. Os princpios republicanos estavam sendo esquecidos. Precisamos sempre reaviv-los. Ao mais digno! - o meu pensamento.

Este Costa era funcionrio pblico e fora da Escola Militar, donde trouxera uma frmulas positivistas e um forte crena nos efeitos milagrosos da palavra repblica. Havia no seu feitio mental uma grande incapacidade para a crtica, para a comparao e fazia depender toda a felicidade da populao numa simples modificao na forma de transmisso da chefia do Estado. Passara pelos jacobinos, florianistas e tinha a intolerncia que os caracteriza, e a ferocidade poltica que os caracterizou.

Feroz e intolerante, com o apoio do positivismo autoritrio, a sua concepo de governo se consubstanciava na ditadura e da resvalava para o despotismo militar. No se dir que no fosse sincero; ele o era, embora houvesse nos seus intuitos, alguma mescla de interesse de melhoria na sua situao burocrtica.

Julgava-se com a certeza; e, firmado na cincia, pois tirava toda a sua argumentao do positivismo, todo ele baseado na cincia e conseqncia dela, principalmente da matemtica, condenava os adversrios fogueira.

Escusado dizer que pouco sabia de matemtica e falava por f. Era um crente que tinha a revelao da certeza poltica.

Numa prezou muito a sua opinio por dois motivos. Costa escrevia nos jornais e era ouvido com ateno pelo poderoso chefe Bastos.

Esta ltima razo era por demais pondervel, porque Bastos tinha o mesmo feitio mental de Costa; e julgava imprescindvel a manuteno da Repblica, necessria integrao do Brasil no regime poltico da Amrica. No se atina bem por que seja isso necessrio, pois perfeitamente sabido que, antes de ns, os argentinos, nos quais essa espcie de gente encontra modelo, quiseram l implantar a forma monrquica.

Costa e Bastos eram crentes, fanticos com a mania de catequese de qualquer jeito e no discutiam a sua f.

Numa viu nas palavras de Costa a aprovao do grande chefe - o que consolidava o discreto elogio que este ltimo lhe fizera: - Sr. Numa, o senhor um republicano!...

Numa Pomplio de Castro, a recente glria da tribuna poltica nacional, cuja biografia ocupou quatro pginas da Os Sucessos, no tinha histria nem interessante nem longa. Filho de um pequeno empregado de um hospital do Norte, fizera-se bacharel em Direito custa das maiores privaes. Logo menino, no lhe solicitaram os lados extraordinrios da vida. Embora humilde no foram as cumeadas da vida que ele viu. Viu a formatura, o doutorado, isto , ser um dos brmanes privilegiados, dominando sem grande luta e provas de valor, pois, com ele, afastava uma grande parte dos concorrentes.

O filho do escriturrio, desprezado pelos doutores, percebeu logo que era preciso ser doutor fosse como fosse.

Arranjou daqui e dali os preparatrios; e, durante o curso, levou a mais miservel vida que se pode imaginar. Alimentava-se dias inteiros de caf e po, dormia em ciam de jornais, mas no deixava jamais de ir s aulas, de sentar-se ao banco da msica, de fazer perguntas ao lente e prestar exames.

De quando em quando, arranjava um emprego efmero, lies e munia-se de roupa. Formou-se aos vinte e quatro anos, tendo vivido desde os dezesseis sobre si.

Parecia que uma energia dessas se devesse empregar em altos intuitos; h a, porm, uma questo de ponto de vista. No seu entender, o mximo escopo da vida era formar-se e formou-se com grande esforo e tenacidade.

No que houvesse nele um alto amor ao saber, uma alta estima s matrias que estudava e das quais fazia exame. Odiava-as at. Todas aquelas complicaes de direitos e outras disciplinas pareciam-lhe vazias de sentido, sem substncia, puras aparncias e mesmo sem grande utilidade e significao, a no ser a de constiturem barreiras e obstculos, destinados seleo dos homens.

O jovem Numa no separava o conceito das disciplinas dos da formatura; Economia Poltica, Direito Romano, Finanas e Medicina Legal no respondiam a certas necessidades da comunho humana; e, se tais matrias foram criadas, descobertas ou inventadas, o foram to somente para fabricar bacharis em Direito. Com as outras carreiras, acontecia o mesmo.

Tal idia pautava e regia o seu curso; instantes depois de acabado o exame Pomplio esquecia a disciplina.

Demais, pode dizer-se que nunca vira um livro. Todo o seu curso fora feito estudando nas apostilas, cadernos e pontos, organizados por outrem. Decorava aqueles perodos mastigados, triturados e os repetia palavra por palavra ao lente. Prevenia-se para a prova, imaginando as perguntas do professor, e organizava as respostas, citando autoridades de vrios pases.

Foi sempre dos primeiros estudantes e, se no foi o primeiro fim do curso, deveu nota baixa que tirou em Medicina Legal. Vale a pena contar o caso. O lente perguntou-lhe:

Qual a quantidade de arsnico que pode ser encontrada nas glndulas tireideas?

Respondeu logo:

Dezessete gramas.

Houve um grande espanto por parte do examinador e o estudante surpreendeu-se com o espanto do lente.

No fora a sua ignorncia que o fizera dizer semelhante dislate; foram os cadernos. O primeiro estudante escrevera certo; o copista que se seguira, atrapalhara-se na vrgula dos dcimos e, de copista em copista, de erro em erro a apostila levara Numa a repetir to imensa tolice nas bochechas dos seus sbios professores.

O seu rival no curso aproveitou a descada e tirou o prmio. Foi a nica amargura da sua vida. Nascido pobremente, tendo passado toda espcie de privaes e necessidades, nada o fazia sofrer profundamente. Logo que se viu formado partiu para a sua terra natal e l andou um ano inteiro a receber homenagens, sempre estranhando que alguns dos seus companheiros de colgio no o chamassem por doutor.

Vendo que nada obtinha, deixou os penates paternos e veio em busca da fortuna. Em breve tempo, graas sua insistncia junto a um dos potentados da Repblica, Numa foi despachado promotor de uma comarca de Estado longnquo. Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor - qualidade que lhe vinha no de uma sagacidade natural e prpria, mas de uma ausncia total de emoo, de imaginao e orgulho inteligente - foi subindo at juiz de Direito.

Durante toda a sua passagem pela magistratura, Numa adquirira fama de talento. Fundava jornais onde escrevia panegricos aos chefes, organizava bandas de msica e animava representaes teatrais em pequenos teatros de fortuna.

No representava, mas ensaiava esse pequeno repertrio da roa, velhas comdias que tm o nico propsito de fazer rir, e, aos poucos as grandes cidades as banem e vo refugiar-se no interior - Os Trinta Botes, A Senhora Est Dormindo, O Bilontra.

Aos atores improvisados ensinava a entonao, a gesticulao, marcava a pea melhor que o prprio autor.

Fazendo de sua vara de juiz alfanje de emir obediente aos desgnios de Neves Cogominho, no estranharam que, eleito este presidente do Estado, Numa fosse feito chefe de polcia.

O novo presidente vivera sempre afastado do Estado, desde a proclamao da Repblica. Sucessivamente deputado e senador, deixava-se ficar nas margens da Guanabara dominando o feudo por intermdio de delegados e prepostos.

No conhecia bem Numa, embora o tivesse recomendado para obter a primeira nomeao; e o aceitou como chefe de polcia para satisfazer os chefes locais.

Cogominho sabia que esse seu afastamento do Estado no era bem visto pelos semi-rebeldes do seu domnio. Uma vez ou outra, acusavam-no pelas rubras folhas oposicionistas de ter um imenso desprezo pelo torro natal e s lembrar-se dele para obter vantagens polticas.

No intuito de calar esse murmrio, Cogominho fez-se eleger governador, embora fosse grande a diferena de subsdio entre aquele cargo e o de senador; e foi para Itaoca, a capital.

No foi s; e, para mais completamente demonstrar o seu amor terra natal, levou para o Estado toda a famlia. Deixou o filho que andava pelos estudos no Rio de Janeiro; e instalou-se no palcio com a filha, uma velha tia e os fmulos de confiana que levava. Era vivo desde muito e a chegada da famlia ducal muito alegrou os itaoquenses. As festas foram as mesmas com que se recebiam ali os governadores, a alegria foi a mesmas, os discursos foram os mesmos, as boas vindas as mesmas e a dvida de sua estabilidade no domnio de Sepotuba foi a mesma no nimo de Cogominho.

Numa esforara-se muito para provar ao grande sepotubense o seu talento e a sua dedicao. Discursara ao desembarque, ao jantar, e notou com especial agrado que a filha de Cogominho no era de todo indiferente sua oratria.

De indstria, o juiz se mantivera at ento solteiro. Esperava, com rara segurana de corao, que o casamento lhe desse o definitivo empurro na vida. Aproveitara sempre o seu estado civil para encarreirar-se. Ora ameaava casar com a filha de Fulano e obtinha isto; ora deixava transparecer que gostava da filha de Beltrano, e conseguia aquilo; e se estava chefe de polcia, devia ao fato de ter julgado o Coronel Flores, poderosa influncia do municpio de Catimbao, que Numa pretendia casar-se com a filha dele.

A presena da menina Cogominho f-lo pensar mais alto e relembrar as suas desmedidas ambies casamenteiras. No que ele fosse belo e galanteador, mas, perfeitamente sabia que essas coisas no so indispensveis para um bom casamento, desde que o noivo no viesse a fazer m figura no eirado dos diplomatas e outras pessoa exigentes da representao interna e externa do Brasil.

Com toda firmeza, com aquela firmeza que empregou para formar-se, Numa tratou de casar-se com a filha de Cogominho e no viu diante dele obstculo algum, como aquele no vira quando tratou de casar-se com a filha do capitalista Gomes.

Edgarda era bem mais moa, mas j tinha passado dos vinte anos e viera para Itaoca cheia de uma curiosidade constrangida. Nascida e criada no Rio, tendo vivido sempre nas rodas senatoriais e burguesas, tinha iluses de nobreza. Acompanhava o pai com certa repugnncia; ao mesmo tempo, porm, era atrada pela existncia dessas cidades que no so o Rio. Encontrava no bacharel quem lhe informasse sobre a vida do Estado, a sua histria, a sua indstria, as suas cidades; e as pedia com o esprito de uma marquesa ao intendente dos seus domnios.

Esta concepo de nobreza viera da educao das irms de caridade e a defeituosa instruo que recebera e no pudera ajudar sua real inteligncia a corrigi-la.

No metera em linha de conta que a nobreza supe domnio efetivo e perpetuidade na famlia desse domnio, garantida por privilgios, soberania, tradies de raa e sangue; e a iluso que as irms lhe instilaram no esprito aos dezesseis anos, ficou-lhe sempre no subconsciente.

Como castel, sonhara sempre casamentos excepcionais; e, a todos que lhe insinuavam, certos rejeitava por prosaicos; e outros, por serem desproporcionados. Talvez se iludisse a si mesma; talvez j tivesse achado um que era do seu amor, mas no era de sua prudncia. A castel mais uma vez se fizera burguesinha...

Nunca sups que aquele bacharel esguio, amarelado, cabelos duros, com um grande queixo, vestido com um apuro exagerado de provinciano, premeditasse casar-se com ela; mas, o cio provinciano, a falta de galanteadores passveis, a vontade de matar o tdio, fizeram-na esquecer a artificial representao que tinha de si mesma e aceitou as homenagens do chefe de polcia de seu pai.

O governador via com bons olhos a aproximao dos dois e pareceu-lhe que o casamento de ambos seria til sua poltica.

Conhecendo a fama do rapaz no Estado, a sua influncia, o seu atrevimento, o seu despudor em fazer do seu cargo judicial instrumento das ambies polticas do partido e de opresso para os adversrios, Cogominho percebeu bem que era melhor t-lo por aliado, antes que se unisse a Flores quase sempre disposto a no lhe obedecer totalmente.

Era bom separar um do outro para que ambos mais tarde no lhe dessem o que fazer e mesmo o tombo. A desfaatez judiciria de Numa dava medida do que ele seria capaz de fazer quando o solicitassem grandes ambies e tivesse o apoio familiar de Flores.

O processo da Boa Vista indicava bem a alma do seu chefe de polcia. Flores, o Coronel, por uma questo de gado, invadiu certa vez a estncia do rival, matando-lhe filhas, filhos e criados e deixando que a horda que o acompanhava saqueasse casas, moinhos, currais e estrebaria. At portas trouxeram.

Devido celeuma que o caso levantou no Rio, houve processo e Numa, apesar das testemunhas, apesar de todas as provas, despronunciou Flores e seus sequazes.

Como esta, eram muitas as causas em que o juiz se fizera criatura do caudilho e seu casamento com a filha deste dar-lhe-ia uma fora extraordinria na poltica do Estado. O brao juntar-se-ia cabea...

Pouco depois de eleito deputado estadual, Numa Pomplio de Castro casara-se com a filha de Neves Cogominho sem surpresa para ningum, nem mesmo para Flores que apadrinhara o antigo chefe de polcia.

Quando se fizeram as eleies federais, o genro do presidente foi feito deputado federal e, como tal, partiu par o Rio, apressado em tomar assento na Cmara Federal.

Tinha poucas relaes e o seu desembarque no foi concorrido como era o do seu sogro. Contudo, alguns conhecimentos da mulher vieram, entre os quais um primo de que ele tinha notcia como extravagante de marca. Numa, ento, conheceu-o; tratou-o com a polida severidade de suas virtudes judicirias e admirou-se da satisfao com que sua mulher o acolheu e do olhar doce e curioso que o cobriu todo.

Neves Cogominho ficou em Itaoca acabando o mandato de presidente; e, durante o primeiro ano, o genro foi fazendo com cautela a sua iniciao de deputado e de bacharel bem casado. No faltava s sesses, conversava pouco, no adiantava opinies e guardava de cor as de Bastos, cuja casa no deixava de ir em obedincias s recomendaes do sogro.

No se demorava na rua, mas pouco conversava com a mulher; dava os passeios e fazia as visitas de circunstncias.

A vida e ambos era, entretanto, plcida como a de um velho casal.

A mulher lia, lia muito e ele, a princpio, admirou-se muito com aquela leitura.

Para qu? No sabia bem que prazer pudesse ela encontrar nos livros com os quais s lidou por obrigao... Nada disse, no entanto; ambos se entenderam e ele mesmo, as mais das vezes, se prontificou a trazer este ou aquele volume.

Os observadores que o viam entrar nas livrarias, adquirir livros e revistas, comearam a estim-lo como estudioso e homem de bom gosto. No fim de poucos meses, era conhecido dos caixeiros e o deputado Numa Pomplio de Castro continuava a ser obscuro, os dirios no falavam nele e, mesmo quando aparecia nas festas as sees mundanas dos jornais no lhe davam o nome.

A mulher em que o casamento j comeava a pesar, aborrecia-se com essa obscuridade. No o amara, no o supunha inteligente, mas havia no sei que de organizado nele, de mdio, de segurana de processo, que esperou sempre que a poltica o fizesse pelo menos conhecido; mas, assim no o queria e o seu enlace era um desastre sem desculpa aos seus olhos.

Esperava-o na Cmara barulhento, discutindo e ele vivia calado; esperava-o atacado pelos jornais da oposio e eles no diziam nada; esperava-o conhecido de todos e ningum o conhecia, at mesmo as suas amigas. Ainda h dias a Hortnsia no lhe tinha perguntado: Edgarda, teu marido deputado? Precisava anim-lo; fazia-se mister isso.

De volta do enterro de uma parenta, a mulher de Numa vinha satisfeita. Nem sempre isso acontece, mas muitas vezes se d, apesar de ns. No se colhem bem os motivos, as razes profundas de se ter passado de uma emoo contrria, o certo que se tem como que um alvio nalma, a impresso que se diminuram os nossos pecados; ficamos melhor diante de ns mesmos, mais de acordo com Deus e com o Mistrio.

Ficara Edgarda at o saimento, voltara e jantara muito contente com o marido e o primo Benevenuto, que raras vezes os visitava. A tarde passaram excepcionalmente comunicativos; e, muito ternos, marido e mulher, recolheram-se hora do costume.

O dia amanheceu lindo, transparente, tranqilo; e os galos se esqueceram das horas e foram cantando pela manh em fora. As alturas destacavam-se na tela fina do azul infinito; o Corcovado curvava-se curioso sobre a casa em que habitavam e as janelas tiveram pressa em se abrir.

Num conservava os seus hbitos de estudante. Erguia-se da cama cedo, tomava banho e cedo procurava o caf e os jornais. A mulher, que se demorava mais no leito, naquele dia acompanhara o marido. Ela ainda tomava o caf, quando j o esposo lia os jornais.

O deputado buscava imediatamente o que, nas folhas, se dizia dos debates, os comentrios, os artigos de fundo; e, ao ler um dos jornais, no pode deixar de dizer mulher:

Que elogio ao Caldas!

Que Caldas? O Eduardo?

Sim.

E o que fez ele?

Um discurso ontem.

A mulher serviu-se novamente de caf, aucarou-o bem, arrepanhou o roupo que lhe ia deixando muito mostra o peito rosado, e disse:

Voc por que no faz um, tambm?

Sem deixar o jornal, Numa atendeu, sacudindo os ombros:

Ora!

Edgarda, depois de levar a xcara aos lbios, sorver um gole e descans-la, observou:

preciso aparecer, Numa!

Com preguia e mansido, o marido objetou:

Para que, Edgarda? Para qu? H l tanta gente inteligente que no preciso incomodar-me.

Eu - fez ela - se estivesse no caso de voc, por isso mesmo que me incomodava. Voc tem vergonha?

No, ao contrrio; sou at desembaraado, mas... mas... preciso estudar.

Pois ento estude! Que dificuldade h? Voc por que no experimenta? No se discute a tal questo do novo Estado?

Discute-se.

Por que voc no fala?

... ... Mas...

Precisa estudar, no ?

.

Eu ajudo.

Como? Voc sabe?

No. Vejo os livros - pergunto a papai; voc indica outros, tomo notas e depois voc as redige. L alguns discursos e o resto se arranja.

No vai sair a coisa com algumas inconvenincias!

Qual! Passo a limpo e voc leva a papai, para ver o que h.

A pea oratria foi assim composta; e, na redao final, Numa ficou muito contente com a habilidade da mulher. Encontrou muitas modificaes felizes, muita frase bonita e cheio de um intensa alegria, perguntou:

Voc j escreve h muito tempo, Edgarda?

No, nunca escrevi. Por qu? - respondeu a mulher com algum estremecimento na voz.

Por qu?... Porque tem muita coisa que voc escreveu melhor do que eu.

Pois voc pode ficar certo de uma coisa: escrevi o que est no teu rascunho, modificando uma ou outra coisa, naturalmente.

Obtida a aprovao do sogro, Numa estudou o discurso como se fosse um papel de teatro. No era sem antecedentes o processo; e ele o soube empregar magnificamente, pois a Cmara admirou-o e o seu sucesso foi grande e notado em toda a cidade.

Quando terminou, recebendo abraos, ouvindo aqui e acol comentrios, a sua lembrana ia para a casa paterna, l no seu Estado longnquo; e agora, passada a emoo da estria, colecionando parabns e olhares admirativos, naquela rua que sagra as celebridades nacionais, as recordaes lhe voltavam mais vivas e mais cheias de ternura.

Recordou-se bem da casa de seu pai, das suas dificuldades, das suas nsias, e sobressaltos para se prevenir contra os chefes polticos que lhe queriam sempre arrebatar o emprego. Subia um partido, descia outro; os Castriotos reconciliavam-se com os Cceros; os Cceros deixavam os Castriotos e iam para os Coimbras; e sempre seu pai tinha que adivinhar essas marchas, essas reconciliaes e separaes, para manter o seu emprego, sem pode abster-se, obrigado a tomar partido para a sua prpria segurana.

Lembrava-se bem da casa, caiada, meio de telha v, meio forrada, com um largo quintal, tendo, aqui e ali, uma rvore, um cajueiro e os urubus teimosos misturados com as aves domsticas. E agora? Habitava um palcio, no meio da abundncia, ao lado de uma linda mulher bem educada, onde iria... Muito pode a formatura! Se ele no se fizesse doutor, que seria?... Bem lhe pareceu desde menino, que a carta era a chave da riqueza, uma chave mgica a abrir todas as fechaduras da vida, suavemente, docemente, rapidamente, sem o mais tnue rudo. Uma gazua...

Tinha saber? No sabia. Tinha talento? No sabia. Que que sabia ao certo? que era formado. Examinou toda a sua vida de juiz e as claudicaes lhe vieram com afiada nitidez. Devia ter procedido de outra forma? Devia, ma que lhe adiantava? Ficar l pelo interior a vegetar em lugarejos. O que ele sentia bem, o que lhe tocavam o que penetrava nele, no eram as faltas no cumprimento dos seus deveres; era a sensao de que estava em uma grande cidade, que tinha uma casa, que o dia de amanh estava garantido e para viver no precisava esforar-se. De resto, discursando hoje, falando amanh, a ascenso era certa; e ele que quisera algum tinha muito; e ele que no ambicionara a celebridade, era clebre; e ele que no procurara os livros, os livros o elevavam.

Olhou um pouco a mulher, e algum, quando passavam, disse perceptivelmente: o triunfo dele, mas a glria dela.

Edgarda, distrada da multido, olhando aqui e ali sem ver, continuava a caminhar com segurana e com uma grande alegria em todo o rosto. Em breve estavam em uma saleta pretensiosa, onde de bom gosto tomar ch. Era um luxo novo da cidade, um luxo bem nosso, barato e cauteloso.

L, aps o passeio, encontravam conhecidos, e, como sempre, achavam-se j sentados a uma das mesas catitas, Mme. Forfaible, esposa do general do mesmo nome, acompanhada de uma amiga, e o primo Benevenuto.

No sabe - foi logo dizendo este ltimo - como me agradou os eu discurso. H muito pensamento nele, muito estudo...

O deputado sorriu convencido e respondeu:

Muito obrigado! Muito obrigado!

Mme. Forfaible concluiu:

O doutor deve levar em conta a opinio do Dr. Benevenuto. Ela desinteressada, perfeitamente desinteressada... No de oficial do mesmo ofcio.

Sei bem, minha senhora. Sei bem.

A Numa seguiu-se Edgarda:

Como vai o General, Anita?

O General! Vai bem, vai bem.

Benevenuto indagou, ento:

No foi para o Supremo?

Qual! - acudiu a mulher. Qual! Eu no dizia at agora que a coisa pior deste mundo oficial do mesmo ofcio? Pois bem: meu marido um dos generais mais ilustrados e de mais servios no Exrcito. At hoje, at hoje, ainda no o fizeram marechal nem ministro do Supremo Tribunal. isto! Entretanto nomearam o Castelo que escreve corneta com qu.

Minha senhora, posso garantir-lhe que me interessei muito...

Olhe Anita - disse Edgarda - no havia dia em que no lembrasse a Numa, que no deixasse de recomendar teu marido a papai.

Sei bem - disse Mme. Forfaible - que a culpa no dos civis. dos colegas, doutor; dos colegas... Bem fez o Dr. Benevenuto que no quis ser nada.

No sou eu quem no quer, minha senhora; so os obstculos. A minha vocao no para esse steeple-chase de pistoles, choradeiras, casamentos, intrigas, abdicaes, pedidos, mofinas... Para isso, h uma raa especial... Eu...

Numa interveio:

mesmo um tormento! E as injustias? J no meu curso, no me deram a medalha. Mas tenho trabalhado para subir. Esta sabe bem.

A mulher foi ao encontro do marido, dizendo angelicamente:

A questo esperar. Pacincia... No s um caminho que leva a Roma.

O doutor - disse ento Benevenuto - pode gabar-se de ter muita pacincia. As injustias no lhe fazem mossa.

J estou habituado com elas.

uma grande vantagem na nossa vida - continuou o primo. - Sem esse hbito, no se ia para diante... Eu sei que, s vezes, a gente se revolta....

Eu! - exclamou Numa - Eu! No me revolto nunca. Trabalho, trabalho e consigo.

A amiguinha de Mme. Forfaible falou por a, timidamente:

Quem tem talento, como o doutor, consegue tudo.

No tanto assim, menina! - fez Mme. Forfaible, com alguma irritao. - O talento serve muito, no h dvida; mas para ajudar os outros.

Calaram-se e puseram-se a tomar o ch que esfriava nas xcaras.

II

O ar estava translcido e fino. A manh ia adiantada mas tinha ainda um pouco do encanto das primeiras horas. Botafogo dos lugares do Rio de Janeiro aquele em que mais agradvel o amanhecer. A proximidade do mar e a vizinhana das altas montanhas, cobertas de vegetao, quando o sol meigo, a pelas primeiras horas do dia, casam-se, unem-se, fundem-se sob a luz macia e o cu azul, de tal forma que o encanto da manh inesquecvel. Esquecemo-nos da spera e violenta atmosfera das outras horas e mesmo de certas manhs; deixamo-nos envolver na tnue e carinhosa gaze azulada do momento, totalmente, inteiramente, corpo e alma, idias e sonhos, como se nos preparssemos para suportar os outros bravios instantes do dia.

Aquele dia amanhecera soberbo e quem andasse pelo arrabalde, pouco notaria as pretensiosas fachadas das casas, os gradis pelintras dos jardins, o movimento da criadagem, dos banhistas, para s aspirar o ar, aspirar e v-lo e tambm as flores daqueles prudentes jardins minsculos que bem medem a nossa riqueza, a nossa magnificncia e o nosso luxo.

As palmeiras farfalhavam suavemente na rua Paissandu, levando o mar para as montanhas e trazendo a montanha para o mar; as rvores estremeciam na atmosfera e todos pareciam contentes. Os criados tagarelavam em grupos, cestos ao brao, mais animados para o rduo servio; os caixeiros olhavam as cozinheiras com a ternura da manh; os colegiais caminhavam brincando para as escolas; as patroas no tinham no rosto o enfado necessrio do matrimnio, e os maridos, de volta do banho de mar, tiritavam alegres, sorridentes, esperanados nos seus negcios. A jocundidade da manh porejava nas pessoas e nas coisas.

O diretor do Dirio Mercantil, muito interessado no negcio da venda da Estrada de Ferro de Mato Grosso, tinha resolvido procurar Numa Pomplio, naquela manh. Demandava a casa do deputado, sem notar a inocncia e a bondade do momento e da paisagem, preocupado com a transao, desprezando as rvores, o ar, as montanhas, as flores e a gente.

Fuas Bandeira era portugus de nascimento e desde muito se achava no Brasil, metido em coisas de jornal. Homem inteligente, no era nem ignorante, nem instrudo. Tinha a instruo e a inteligncia de homem de comrcio e pusera na sua atividade jornalstica o seu esprito e educao comerciais. Escrevia, mas escrevia como um guarda-livros hbil. A influncia da correspondncia sentia-se bem na sua redao econmica de pontos, perodos longos, procurando dizer tudo sem suspender a pena.

Emigrado de Portugal, por motivos suspeitos, tendo recebido unicamente os princpios da educao secundria, Fuas foi durante muito tempo um fura-vidas sem felicidade. Sucessivamente guarda-livros, gerente de frontes, professor de montar em velocpedes de que era alugador, editor de pequenas revistas, concessionrio de patentes que escondiam jogos de azar, um belo dia a magnanimidade de um patrcio f-lo empregado da gerncia do Dirio, mais tarde gerente e, quando o proprietrio foi Europa, deu-lhe procurao em causa prpria para tratar dos negcios da empresa; e Fuas se serviu do instrumento para se apossar dos cabedais do protetor, no s dos que giravam na empresa, como dos particulares que ele soube, com a mais requintada m-f e com a ousadia de ladro profissional, arrancar inexperincia de uma velha parenta do seu benfeitor e amigo, sob cuja guarda estavam.

Voltando precipitadamente o proprietrio que fora prevenido dos desvios dos seus bens, levado a efeito pelo procurador infiel, reclamou imediatamente a restituio dos haveres, sob pena de queixar-se polcia. Fuas foi ter com o chefe de Estado que ordenou ao Tesouro fornecer-lhe os fundos necessrios. Da em diante sua fortuna estava feita e os seus processos de foliculrio firmemente estabelecidos. Nunca mais lhe faltou dinheiro, e muito sempre obteve, por este ou aquele meio escuso e cnico. Apesar disto, a sua folha sempre andava em concordatas, devendo ao pessoal; o que, a todos, causava admirao, pois Fuas, ao que diziam, tinha at a, recebido de vrios governos do Brasil cerca de trs mil contos. No de espantar, quando se considera que s da vez que em que seu viu atrapalhado com o antigo proprietrio do Dirio, ele conseguiu em dias, graas s ordens do Presidente da Repblica, obter quase mil e quinhentos contos. Todo esse dinheiro que ele cavava, empregava em aparentar largueza, peitar disfaradamente os influentes e mais depressa perdia cinqenta contos no jogo do que pagava, dos trs em atraso, um ms reportagem. Era preciso no perder a linha...

Encarava todo o debate jornalstico como objeto de comrcio ou indstria e estendera esse critrio aos casos polticos, s pretenses de qualquer natureza. Dizia o mesmo francamente e francamente agia, embora, quando acusado publicamente, se defendesse indignado.

Fazia uma vida brilhante: gastava, jogava, presenteava, mas a sua generosidade era sempre interesseira. Ele a tinha com os poderosos da indstria, do comrcio, da poltica e dos negcios; e, nos apertos, no sacrificava um ceitil de suas despesas, para atender o pagamento dos salrios dos seus prprios criados.

A sua venalidade provinha de um ceticismo inconsciente quanto ao valor da poltica, da ao do governo, mas o curioso que ceticismo ele s o tinha quanto ao Brasil. No que toca sua ptria de origem, era crente e desinteressado, esperando resultados fecundos dos atos acertados do governo.

Seguia-lhe a poltica, advogava este ou aquele partido, gabava tal ou qual personagem sem remunerao alguma, at com prejuzo. Fazia sistematicamente porm, ente ns, a indstria do jornal e no havia empreendimento ou obra por mais til que fosse, representando emprego de capitais avultados e lucro para os empreiteiros de que no se procurasse tirar o seu quinho.

No acumulava dinheiro, talvez no sentisse vontade de voltar terra de origem e tinha o Brasil na conta de mina inesgotvel que, para dar-lhe lucro, precisava estar-lhe testa.

Conhecia todos os poderosos, os que se faziam de poderosos, os que se iam fazendo e prometiam s-lo, e a nenhum se acanhava de pedir isto ou aquilo. proporo que subiam, subiam os seus pedidos; e, dessa forma, quando no fastgio podia pedir-lhe o que quisesse.

Lendo os jornais, fumando teimosamente, sem sentir a olente fragrncia dos jasmins e a rua pitoresca, Fuas chegou residncia do parlamentar.

A casa do deputado Numa Pomplio ficava pelas bandas de Humait, por aqueles lados de Botafogo onde Darwin morou e ao anoitecer, punha-se a ouvir embevecido o hino que a Natureza, por intermdio das rs humildes, entoa s estrelas distantes. Era um casaro comum, sem movimento, quer na fachada, quer na massa toda do edifcio. Muito simplesmente um paraleleppedo, com largas aberturas de portas e janelas, tinha um s pavimento, mas o poro era to alto que bem se podia contar como outro.

Vasto de fato era, e as seis janelas da frente e a situao ao centro do jardim, mais amplo que os comuns, com velhas fruteiras nodosas, corrigiam de algum modo a indigncia de sua arquitetura. Tinha uma certa imponncia e, demais, com o fundo para a escarpa verde-negra dos contrafortes do Corcovado, o casaro ressaltava, saa, adquiria certa distino solarenga entre as jovens e acanhadas edificaes dos arredores. No era novo; pertencera aos avs da mulher de Numa e fora edificado a pelos meados do sculo passado.

O velho Gomes (assim fora conhecido o av de Edgarda) era portugus de origem humilde, traficara, enriquecera e se fizera, com os anos, uma potncia comercial a cidade. Quando edificou aquele casaro, ainda era roa Botafogo e o fizera amplo e franco como uma casa de campo. Viveu muito e enterrou quase todos os descendentes, exceto a filha, que se casou com o Dr. Neves Cogominho.

O genro, graas previdncia do velho negociante, no pudera desbaratar os haveres da mulher; ele mesmo no precisava disto. Mdico, novamente formado, s necessitava de representao para ganhar fortuna na clnica; no teve tempo porm de o fazer, porque, antes de cinco anos de casado, proclamara-se a Repblica e a poltica ofereceu-lhe campo mais vasto e menos trabalhoso para a vida abundante,

Lembrou-se de que era republicano, e seu tio, o Coronel Fortuna, amigo ntimo de Deodoro, tomou conta do seu Estado natal e ele foi feito deputado, enquanto os seus primos, concunhados, sobrinhos, aderentes e afins ocuparam outros cargos no Estado, implantaram nele o domnio dos Cogominhos de que ele se fez chefe por morte do venerando Fortuna.

A mulher no lhe viu a ascenso na poltica; morrera pouco depois de proclamada a Repblica, deixando-lhe uma filha de dois ou trs anos que foi criada por uma velha tia do pai.

Cogominho no abandonou o casaro de Botafogo e s o deixou de habitar continuamente quando casou a filha. Assim mesmo tinha nela aposentos, mas dera para ficar em Petrpolis, onde antigamente costumava passar s trs ou quatro meses.

Seu genro, em comeo, custou muito a habituar-se velha casa. Achava-se deslocado, julgava-a grande em demasia; era como se tivesse vestido a roupa de um gigante. Aquelas amplas salas, grandes quartos e longos corredores, quase sem habitantes, s com mveis, as mais das vezes fechados, pareciam-lhe povoados de duendes. Habituado s pequenas casas, rfs de trastes e outros adereos, Numa esforava-se por entrar na significao e necessidades daqueles consolos, reposteiros e divs. Achava os sofs estufados baixos demais e as cadeiras frgeis; o que o aborrecia muito era a falta de escarradeiras.

O cunhado estava na Europa e grande parte da casa vivia fechada, s vindo a conhecer algumas dependncias quando a velha tia de Cogominho, D. Romana, voltou de Sepotuba. A velha fazia abrir, varrer e espanar tudo aquilo diariamente e movia-se dentro do casaro com a liberdade de quem conheceu daqueles como centro de lguas quadradas de uma fazenda.

Era de supor que Numa esperasse por tudo isso, mas no pedia tanto a sua ambio de posio e dinheiro. Nela, no havia necessidade interna de grandeza, de luxo, de comodidade, de magnificncia; havia to somente preguia, preguia fsica preguia mental, vontade de ficar a coberto dos vaivns da sorte, das rebordosas, o pavor nacional do dia de amanh. Ficou estranho casa, s alfaias e continuou com os seus hbitos medocres.

Aps a caf e a leitura dos jornais, viera o deputado at a sala de visitas espairecer um pouco. Vinha ver pelas janelas a rua que lhe ficava em frente da casa. Antes de espiar o movimento matinal do bairro, quis o acaso que examinasse um pouco os adornos da sala. A, parou um pouco, convidado por esse ou aquele mvel. Julgou uns antipticos, gostou dos antigos, pesados e amplos; examinou os bibels e demorou-se a considerar uma estatueta de bronze. Sentada em xedra, de marfim, uma mulher tinha os braos abertos sobre os ramos da cadeira. O busto estava nu, a parte inferior coberta, e, aos ps, uma coroa de louros. Viu-lhe o olhar perscrutador, a expresso do rosto de serena imaterialidade, a atitude geral de suspenso. Olhou-a ainda demoradamente e descobriu qualquer coisa naquele pedao de bronze que at ali no tinha sentido nunca. Afastou-se um pouco, examinou um biscuit, um outro bronze; mas, sempre aquela mulher em expectativa, espera no sei de que atraa o seu exame.

Teve medo de apanh-la; afinal, o fez. Leu alguma coisa na base; no decifrou bem ou no teve confiana na leitura. Apesar da manh muito clara, devido s cortinas, a luz entrava escassamente e a sala estava em uma meia penumbra. Trouxe-a bem junto janela e leu claramente: Histoire - Histria!

Numa no precisou bem a relao entre a estatueta e a legenda, mas ainda assim olhou o bronze, o modo natural de seus braos abertos, a sua serenidade total, quando lhe avisaram que havia uma pessoa que queria falar-lhe. Leu o carto e mandou que fizessem entrar para a saleta o Sr. Fuas Bandeira, diretor do Dirio Mercantil.

Apurou melhor a toilette matinal e foi ao encontro do jornalista, depois de ter ao acaso lanado o olhar sobre o retrato do av de sua mulher, enquadrado em uma grande moldura dourada.

Fuas Bandeira desculpou-se preliminarmente por ter vindo incomod-lo to cedo e exps com franqueza o objeto da sua visita. A rejeio do veto oposto ao projeto de venda da Estrada de Mato Grosso devia ser posta em ordem do dia e Fuas esperava que Numa voltasse pela rejeio.

O legislador afastou da lembrana a figura da estatueta e respondeu:

Qual a opinio de Bastos?

A mim, meu caro doutor, ele j me disse que no tinha opinio firmada. D mesmo a entender que questo aberta...

Mas no disse claramente?

No, no disse. O doutor sabe como o doutor Bastos. Ele no costuma dizer, quando se trata de insignificncias. penso assim ou no. Parece-lhe que dizer a tal respeito a sua opinio insinuar que os seus amigos votem com ele. O doutor Bastos j est to farto de ouvir dizer que ele violenta a conscincia dos seus amigos, que um ditador, que a sua vontade que domina a dos outros, que ele o partido. Ora, doutor, quando se trata dessas coisas de nonada, ele abstm-se de falar para que os republicanos votem como entendam.

Mas no caso do Peixoto...

Ah! doutor! O caso a outro. Tratava-se, verdade, de uma licena, mas Peixoto inimigo do partido, inimigo acrrimo. Com o caso da Estrada, no h nada disso, posso garantir-lhe!

E o povo?

O povo! O povo! Que tem o povo com estas questes? Por acaso ele pode raciocinar sobre finanas? Creio que no, meu caro doutor. No a sua opinio?

Dizem que o governo gastou cem mil contos e vai vender pela metade.

No certo; mas, se o fosse, valia a pena contar tambm com o deficit que ela d. A operao, meu caro doutor, traz desafogo para o governo, no s para j, como para o futuro. O meu interesse como republicano, facilitar meios de vida repblica e tambm educar o Brasil no caminho da iniciativa particular. Se at agora ela no se tem feito sentir na economia do pas, devido timidez dos senhores diante da algazarra dos caluniadores.

A teimosa fragilidade da estatueta passou de novo pelos olhos do antigo juiz de Catimbao.

Fuas Bandeira acendeu o charuto e continuou de p:

O doutor, certamente, conhece bem a questo?

Pouco.

Pois se quer... Ah!

Que procuras, Sr. Fuas?

A minha pasta... Est no automvel.

Numa fez vir o criado para busc-la e dela tirou o jornalista um folheto explicativo sobre a vantagem da operao. Ainda falaram sobre outras questes; Fuas no aceitou o almoo e despediu-se recomendando:

Leia, doutor! Leia! Quanto opinio do doutor Bastos, no se incomode, pois ele d toda a liberdade a seus amigos.

Quando Numa voltou em demanda ao interior da casa, ainda olhou distrado a estatueta que continuava repousada, serena, na meia penumbra do salo.

A vida do casal continuava a ser a mesma. Viviam um ao lado do outro, sem grandes ternuras, sem dio, sem tambm a perfeita e mtua penetrao que o casamento supe. Pareciam habituados quele viver desde muito tempo; e D. Edgarda costumava a velar, a animar a carreira poltica do marido, maternalmente.

Era a sua ambio que se realizava na celebridade do marido. Educanda das irms, de Botafogo, ela no queria ficar atrs das outras e lembrava-se do que lhe dissera certo dia a irm Teresa, com sua voz macia e aquele olhar inteligente que dava tanta vida sua ctis de pergaminho.

Veja s, Edgarda, quase todos os homens importantes do Brasil tm casado com moas educadas aqui. A mulher do Indalcio, O Ministro da Justia, foi nossa discpula; a Rosinha, que se casou com o Castrioto, do Supremo Tribunal, tambm; e a mulher do almirante Chavantes? e a Laurentina? como era bonita, meu Deus! Coitada! essa morreu cedo mas o marido foi longe. rara, minha filha, a educanda nossa que no leva o marido longe.

Nunca havia se esquecido do que lera naquele palimpsesto debaixo de tais palavras; e casara, certa de que Numa ia fazer o seu nome ecoar por todo o pas. era preguioso, descansado; mas j dera o primeiro passo e a questo estava em continuar. A sua satisfao foi grande quando o viu elogiado, apontado, em caminho da notoriedade; mas, era necessrio que no ficasse ali. Precisava insistir, ter o seu nome em todas as bocas, ser falado diariamente pelos jornais, como era o marido da Ilka, sua antiga colega.

Notava ela que a celebridade do marido comeava a esfriar, a ser esquecida; e ficava contrariada quando lhe diziam nas lojas, aqui ou ali que no o conheciam. Fizera o marido comprar muitos nmeros da Os Sucessos e mandar para o Estado; insistira com o pai para que a biografia fosse transcrita no rgo oficial do partido em Itaoca. Esforava-se por adivinhar os golpes que ele pudesse levar e s os via por parte de Salustiano, um contra-parente do pai, que parecia no ver com bons olhos o domnio de Cogominho.

Tinha nascido no Estado, ocupava um bom emprego e todo o desejo dela era t-lo sempre afastado de Sepotuba, para no obter influncia direta, ficar sempre na dependncia de Cogominho e no fazer valer em proveito prprio a tradio do pai dele, Salustiano.

Recomendava muito ao marido que fosse gentil com ele, que o convidasse a jantar, que perguntasse pela famlia; mas Numa tinha uma pequena implicncia com o parente, por saber que sempre o tratava como - o genro do Cogominho.

Dissera mesmo isso mulher; ela, porm, lhe recomendara que no desse ateno e lhe captasse a boa vontade.

Edgarda lembrou-se naquela manh de insistir com Numa para que ele aparecesse na tribuna. A visita de Fuas f-la adiar de propsito e ocupou toda a manh em coisas caseiras. Foi ao jardim, correu chcara, viu bem a horta, porque era ela unicamente quem se interessava por aquelas dependncias da casa.

O marido, apesar de ter nascido em cidade pequena do interior, no as apreciava; e se ia por ali, passava por sobre os canteiros um olhar distrado e indiferente. S uma mangueira despertava-lhe interesse e era de antipatia. Ele no notava a beleza da fruteira, os seus grandes ramos alongados como braos, a sua sombra maternal e piedosa; Numa antipatizava com a rvore porque no dava frutos.

A mulher era quem se interessava por aquelas silenciosas e consoladoras vidas, que lhe sugeriam recordaes de menina, de moa, da me, do av.

D. Romana, a tia-av, ficava no interior e tinha pelos velhos trastes, pelas velhas terrinas rachadas, por tudo quanto era alfaia velha ou utenslio antigo, um interesse de depositria do passado. No deixava pr fora um mvel bichado, um bule sem tampa, s se de todo no lhe fosse possvel esconder em qualquer socavo da casa.

Entre as duas, a velha tia e a sobrinha moa, havia esse acordo tcito de tratar uma do exterior e a outra do interior do velho casaro do falecido Gomes.

D. Edgarda viu com prazer a visita de Fuas. Estava no fundo do quintal, mas de l mesmo pode reconhec-lo pelo automvel. Continuou, porm, na chcara e no notou a sada do jornalista.

At quase hora do almoo ficou vendo as hortalias, os preparativos do chacareiro para proteg-las do vero; e, quando deixou a horta, j a mesa estava posta.

Numa empregava o tempo fazendo lentamente a sua toilette de sair. Sempre a fizera com lentido e vagar; desde os tempos de pobreza, que ele oficiava no vestir a cala, no abotoar os punhos e estudava bem ao espelho o atar da gravata.

mesa, sentaram-se, como de costume, ele, a mulher e a mulher e a velha D. Romana.

Em comeo, antes de desdobrarem o guardanapo, Edgarda perguntou:

Numa, no foi o Fuas quem esteve aqui?

Foi

Numa respondeu e, sem alongar a resposta, comeou a servir-se. A mulher insistiu:

Que queria ele?

O parlamentar reprimiu um pouco o aborrecimento que a insistncia da mulher lhe causava e respondeu:

Nada! Um negcio de venda de uma estrada de ferro.

Que estrada? A de Mato grosso?

, Edgarda.

Voc prometeu o voto?

Disse que ia pensar.

Pensar? Voc j sabe a opinio de Bastos?

No, mas dizem que ele no faz questo.

preciso cuidado.

Arrependeu-se o marido da mau humor com que recebera as perguntas da mulher e indagou com afeto, olhando-a demoradamente:

Se ele no faz questo e coisa de dinheiro, quer dizer...

Quer dizer...

Quer dizer; quer dizer - o qu?

Quer dizer que voc deve aproveitar, seu tolo!

Como?

A mulher riu gostosamente e a velha ficou espantada com atitude da neta e o espanto de Numa.

Como?! - fez Edgarda. - Eu sou deputado, por acaso? Por que no pergunta aos seus colegas... Veja como o Cristiano est rico! Quando foi eleito, tinha alguma coisa? Tinha nada, seu tolo! Tinha nada!

Houve entre os dois um silncio de inteligncia; e, aproveitando uma ausncia do copeiro, Numa refletiu:

Esse Fuas no coisa muito boa.

A mulher descansou o garfo, serviu-se de vinho e disse com vagar:

Em poltica, nessas coisas, a gente no tem muito o que escolher. Se uns no so amigos dos outros, uns tm necessidade dos outros e as coisas vo passando. Voc deve saber disso.

, mas esses homens de jornal... estrangeiro...

Olhe, papai diz sempre: ningum cospe no prato em que comeu; e papai j antigo na poltica, muito considerado... O que voc deve fazer aparecer, falar, dar pareceres...

No tenho tido ocasio...

H sempre ocasio, desde que...

O copeiro interrompeu-os e avisou o patro de que estava ali o Lucrcio que lhe queria falar.

Lucrcio, ou melhor: Lucrcio Barba-de-Bode, por sua alcunha, que to intempestivamente interrompia o almoo do deputado Numa Pomplio, no era propriamente um poltico, mas fazia parte da poltica e tinha o papel de lig-la s classes populares. Era um mulato moo, nascido por a, carpinteiro de profisso, mas de h muito no exercia o ofcio. Um conhecido, certo dia, disse-lhe que ele era bem tolo em estar trabalhando que nem um mouro; que isso de ofcio no dava nada; que se metesse em poltica. Lucrcio julgava que esse negcio de poltica era para os grados, mas o amigo lhe afirmou que todos tinham direito a ela, estava na Constituio.

J o seu amigo fora manobreiro da Central, mas no quis ficar naquela joa e esteva arranjando coisa melhor. Dinheiro no lhe faltava e mostrou-lhe vinte mil ris: Sabes como arranjei? - fez o outro. Arranjei com o Totonho do Catete, que trabalha para o Campelo.

Lucrcio tomou nota da coisa e continuou a aplainar as tbuas, de mau humor. Que diabo? Para que esse esforo, para que tanto trabalho?

Fez-se eleitor e alistou-se no bando do Totonho, que trabalhava para o Campelo. Deu em faltar oficina, comeou a usar armas, a habituar-se a rolos eleitorais, a auxiliar a soltura dos conhecidos, pedindo e levando cartas deste ou daquele poltico para as autoridades. Perdeu o medo das leis, sentiu a injustia do trabalho, a niilidade do bom comportamento. Todo o seu sistema de idias e noes sobre a vida e a sociedade modificou-se, se no se inverteu. Comeou a desprezar a vida dos outros e a sua tambm. Vida no se fez para negcio... Meteu-se numa questo de jogo com um rival temido, matou-o e foi sagrado valente. Foi a jri, e, absolvido, por isto ou por aquilo, o Totonho fez constar que o fora por empenho do Dr. Campelo. Da em diante se julgou cercado de um halo de impunidade e encheu-se de processos. Quando voltou a noes mais justas e ponderou o exato poder de seus mandantes estava inutilizado, desacreditado, e tinha que continuar no papel...

Vivia de expedientes, de pedir a este ou aquele, de arranjar proteo para tavolagens em troco de subvenes disfaradas. Sentia necessidade de voltar ao ofcio, mas estava desabituado e sempre tinha a esperana de um emprego aqui ou ali, que lhe haviam vagamente prometido. No sendo nada, no se julgava mais operrio; mesmo os de seu ofcio no o procuravam e se sentia mal no meio deles. Passava os dias nas casas do congresso; conhecia-lhe os regimentos, os empregados; sabia dos boatos poltico e das chicanas eleitorais. Entusiasmava-se nas cises por ofcio e necessidade. Era este o Lucrcio que, ao entrar, fez com tos jovialidade:

Bons dias.

Todos responderam e ele esperou que lhe perguntassem a que vinha.

Esperou com muito acanhamento e respeito. Respondeu:

O doutor Neves manda dizer a V. Exa. que no deixe de ir logo tarde ao Senado.

A que horas?

A pelas trs horas.

Edgarda voltou-se para Lucrcio e indagou naturalmente:

Voc sabe de alguma coisa?

Eu, minha senhora, no sei bem, mas ouvi rosnar.

O qu?

No sei... mas parece... eu no sei... A questo do novo presidente. O Dr. Bastos...

Ele sabe?

Homem, minha senhora, ele o macaco fino...

Quem o novo? No o Xisto?

No sei, mas se h encrenca! porque no do gosto do velho.

Numa ps fim conversa mandando que ele fosse almoar. Lucrcio conhecia a casa e os criados, com os quais era familiar. Almoou na copa com todo o desembarao, como fazia na casa deste ou daquele parlamentar. O copeiro perguntou-lhe:

Que h, Lucrcio?

Olha: no digas nada. A fora no quer o Xisto. No digas nada. Querem pr l o ministro deles, o general Bentes... No digas nada!

A sada do Barba-de-Bode no produziu o reatamento da conversa. Marido e mulher calaram-se. Pairou sobre eles uma atmosfera de apreenses e pressentimentos. As novidades do emissrio, as suas meia palavras, o vago de suas informaes, a impreciso delas escondia algo tenebroso para as suas ambies. Viam na estrada obstculos, viam-na interrompida bruscamente, violentamente. Sentiam a proximidade do imprevisto e esse sentimento se engolfava, avolumava-se, crescia neles, perturbava-lhes as sensaes e as idias, misturava umas com as outras, baralhava as lembranas; a conscincia fugia de regul-las, de encade-las; a personalidade perdia os pontos de referncia. Era a catstrofe prxima, a catstrofe jamais esperada.

O dia ainda continuava lindo, fresco e tranqilo; o ch foi servido quase em silncio; a velha Romana olhava um e outro e no tinha nada a dizer. As breves palavras do servial e as que lhe eram dirigidas morriam no silncio como se no fossem pronunciadas. O prprio copeiro servia sem desembarao; parecia novo no ofcio, constrangido. O rudo das xcaras era logo abafado. De quando em quando, o marido olhava a mulher, e esta aquele; e aos dois, com um olhar perscrutador, cheio de esforo de adivinhar, a velha D. Romana, tia-av de D. Edgarda.

Ia assim o almoo j ao fim, quando a cadelinha apareceu na sala. Correu para junto da dona, com acentuados trejeitos de contentamento; festejou-a e a moa afagou-a, dizendo:

Olha a minha pobre Lili.

Apanhou-a ao coo, abraou-a, dizendo:

Coitadinha! Coitadinha dela! Onde estiveste, meu bem?

Levantaram-se da mesa e D. Edgarda pode dizer:

No deixe de ir ver papai. Essas coisas no se adiam.

Ela continuou a afagar a cachorrinha; Numa acendeu o charuto que teimava em apagar-se e respondeu com firmeza:

No deixo, no deixo!... Sei bem, muito bem, que preciso ouvi-lo.

As mulheres afastaram-se, enquanto Numa sentado cadeira de balano, fumava, vendo desfazer-se a mesa do almoo. Essas reviravoltas, essas contramarchas na poltica, ele ainda no sabia adivinhar. s vezes estava na votao de um projeto; outras vezes na notcia de um jornal; outras vezes em um boato, de forma que no sabia se sua inexperincia ou a outra qualquer coisa devia atribuir essa falta de acuidade para descobri-las.

Ainda ontem sara da Cmara e nada vira, nada notara de extraordinrio, a no ser um tenente do seu Estado a conversar parte com um deputado veterano. Vira-os, lembrava-se de que quase sempre confabulavam; mas agora que notava os reiterados encontros de ambos e o cuidado que tinham em falar baixo, quando se acercava deles. Haveria uma revoluo? Mas no podia haver! Deviam estar satisfeitos os militares! A recomendao era dar-lhes tudo. No tinham? O montepio das filhas que deviam perder ao casar, no ficava com elas depois do matrimnio? Queriam mais postos? A reforma no se fizera? As suas vivas no viviam em casas do Estado sem pagar aluguel? Os seus filhos no tinham um luxuoso colgio de graa? Mas seria mesmo revoluo?... Quem seria vencedor, se houvesse uma? Era preciso adivinhar. Mas como adivinhar, meu Deus? Quem estava garantido em um pas desses? Quem? O imperador, um homem bom, honesto, sbio, sem saber por que, no foi de uma hora para outra tocado daqui pelos batalhes? Quem podia contar com o dia de amanh? Ele, Numa? Julgara isto at ali, mas via bem que no. S havia um alvitre; ir para fora e esperar que as coisas se decidissem, aderindo ento ao vencedor. Seria bom.

A sua vontade era esta, mas... o seu sogro havia de indicar-lhe o a caminho. Tinha experincia dessas coisas.

O copeiro acabava de tirar a toalha e sacudiu pela janela as migalhas que tinham ficado nela. Numa reparou a operao sem nenhum pensamento, esquecido um instante de suas apreenses. A idia da revoluo voltou-lhe novamente e dirigiu suas idias para o governo. Que fazia ele? No sabia? Ento o governo no tem tanta fora que o pas paga para mant-lo - como no tinha tomado providncias? Para que servia a Polcia, os Bombeiros? Que poder?! E a Constituio? Lembrou-se Numa que era tambm poder, poder Legislativo; e a revoluo podia atingi-lo. A mulher apareceu:

Pensei que voc j tivesse ido.

No. Que que h?

Eu sei l!

Deve haver alguma coisa, porque...

O melhor voc fingir que no sabe nada.

o que vou fazer.

Outra coisa, Numa: voc v se os meus livros j vieram.

O deputado, com essas comisses da mulher, j ganhara uma certa prtica dos livros e matara um pouco em si a averso que sempre sentira por eles. S julgava perdoveis aqueles que lhe serviam carreira, os outros julgava que deviam ser queimados.

Passava freqentemente pelas livrarias, comprava um e outro, dava-os mulher que sempre tivera o hbito de ler. E ela lia poetas, lia os romances, e foi alargando o campo de leitura. Deste e daquele modo foi completando a sua instruo, adquirindo essa segunda que as mulheres, no dizer de Balzac, s adquirem com um homem. Apanhara bem a relao que h entre a vida que no vivera e o livro que lia: entre a realidade e a expresso.

Numa tinha o cuidado de no dizer aos indiscretos que os livros eram para a mulher; e gostava daqueles encargos, mirando s vezes as estantes da esposa com ntimo orgulho.

O marido fora atender uma visita; ela abriu o livro que trazia marcado e seguro em uma das mos e ps-se a l-lo sentada mesa de jantar.

Numa que estava completamente preparado para sair, no se demorou em ir sala. Nela encontrou uma elegante senhora de quarenta anos, luxuosamente de luto, irrepreensivelmente espartilhada, muito alva, com uns lindos olhos negros que mais se encheram de brilho e seduo quando disse:

O Doutor h de desculpar-me t-lo incomodado agora, mas...

No, minha senhora. Prefiro mesmo ser procurado esta hora, porque tarde, ou mesmo noite, estou quase sempre ocupado com estudos, lavrando pareceres... Faa o favor de sentar-se... Os deputados trabalham muito, minha senhora.

Os dois sentaram-se, e a dama tomou uma posio natural e irrepreensvel, como se posasse para o retrato.

Sei bem, Doutor. Sei perfeitamente. Meu marido j me dizia isso.

Seu marido foi deputado, minha senhora?

No, Doutor. Sou viva do Sr. Lopo Xavier.

Oh! Conheci muito...

Deu-se com ele?

No. De nome, era um belo talento. Queira aceitar os meus psames.

Obrigada, Doutor.

Calou-se um instante; com o dorso da mo esquerda, assentou melhor a blusa na cintura delgada e continuou a viva mais melodiosa.

O Doutor sabe que ele no deixou nada. Morreu pobre. S deixou a casa em que moramos, o montepio, muito pequeno, e quase nada mais... No nos possvel viver com isso, tudo est to caro, Doutor, que requeri ao Congresso uma penso.

Pronunciou as ltimas palavras adoando as slabas com uma leve inflexo de sofrimento.

Numa perguntou:

Muitos filhos, minha senhora?

Um, uma filha.

Julguei que fossem mais. Os jornais, se no me engano, disseram...

So do primeiro casamento. Esto maiores, os filhos; e a filha, casada.

A senhora alongou o busto e explicou imediatamente:

No justo, Doutor, que o governo deixe na misria a viva e a filha de um homem que tanto trabalhou pela ptria. Foi propagandista da Repblica, bateu-se pela abolio...

Sei bem disso, mas esse negcio de penso... esse negcio de penso... A senhora j falou com o senador Bastos?

J. Ele me disse que dava o voto dele.

Vou ver.

Do-se tantas. No deram viva de um calafate que morreu no incndio de um navio de guerra? Meu marido foi um juiz ntegro...

No h dvida, minha senhora; mas houve grande dificuldade em dar-se viva daquele general...

Ah! Doutor! O montepio muito grande; no como o nosso, viva de civis.

Numa passou o olhar pela sala e demorou-se um instante olhando o retrato do av de sua mulher. Notou-lhe a expresso de energia, a agudeza do olhar e considerou depois a espessa moldura dourada. O legislador ia falar, mas a viva tomou-lhe a palavra.

de toda a justia, Doutor, o que peo.

No h dvida, minha senhora! No h dvida! Conte comigo, minha senhora.

A viva levantou-se e, estendendo a mo irrepreensivelmente enluvada, despediu-se:

Obrigada, Doutor. Obrigada. E, sem querer incomod-lo mais, desde j lhe agradeo muito o favor que me vai prestar.

Encaminhou-se para a porta e a marcha fez que ondas de essncias caras envolvessem o doutor carinhosamente.

Ao pisar no patamar da escada, arrepanhou gentilmente as sedas da saia, voltou-se e cumprimentou, sorrindo, o deputado, que a levara at aporta da entrada.

Edgarda tinha continuado, na sala de jantar, a leitura do seu querido Anatole France. Relia o volume e se detivera na frase em que um velho acadmico, depois de cochilar um tanto, afirma: Rassurez-vous, madame: une comte ne viendra pas de si tt heurter la terre. De telles rencontres sont extremement peuprobables!.

Lembrou-se bem do fim do almoo e ficou segura de que o fim do mundo estava indefinidamente adiado.

Tendo-se despedido da viva, Numa voltou sala de jantar, j com o chapu na mo, para sair. A mulher perguntou.

Quem era essa senhora?

a viva do Lopo Xavier.

Que queria ela?

O meu voto para que lhe fosse concedida uma penso que requereu.

Prometeste?

Prometi.

E o Bastos?

No se incomoda

Tu a conheces?

No.

Pois saibas tu de uma coisa: ela rica, no muito, mas tem com que viver.

Quem te disse?

Todos sabem. O pai deixou-lhe dinheiro e o marido alguma coisa. O que ela quer luxar... No precisa... O que tem d e sobra.

Os dois calaram-se e Numa ficou um instante parado, hesitando em despedir-se da mulher. No achava nenhuma gravidade na promessa. Que podia ser? Trezentos ou quatrocentos mil-ris por ms. Adiantou-se para beijar a mulher, quando esta lhe perguntou de repente:

Numa, vocs j votaram a penso para a viva daquele bombeiro que morreu num incndio da Sade?

Que bombeiro?

Homem, no sabes? O presidente pediu at em mensagem especial... No te lembras?

Ah! verdade!

Ento?

Ainda no. A comisso ainda no deu parecer.

Beijaram-se e Numa saiu para a sesso da Cmara dos Deputados.

III

O general Manoel Forfaible almoava cedo e logo procurava a sede da sua comisso. Presidia a comisso de inventrio do material blico inutilizado e avaliava do proveito provvel de algumas peas pelas listas que os sargentos lhe enviavam. Era uma comisso tcnica e os outros seus auxiliares tinham tambm conhecimentos slidos de cincia e artes militares que aplicavam nas listas, a exemplo do chefe.

Sua jovem mulher empregava o cio matrimonial fazendo visitas, correndo casa de modas, assistindo a sesses cinematogrficas. Havia ente ambos uma efusiva simpatia. No era bem marido e mulher; eram pai e filha. Mais do que a diferena de idade, cerca do dobro entre os dois, determinava esse aspecto de suas relaes a diferena de temperamento. O general era bonacho, simplrio, lento de esprito, j um tanto desmilitarizado; a mulher, porm, era viva, convencida dos bordados do marido e das prerrogativas que os dourados lhe davam.

Ela o via a cavalo passando revista s tropas, garboso, ereto na sela, com um olhar de batalha; ele se via sempre em chinelas, lendo os jornais na varanda da casa.

Desde muito que D. Ana Forfaible no visitava a sua amiga Mariquinha. Era tera-feira, dia morto para a rua do Ouvidor; os cinemas no tinham mudado de programa; ela vestiu-se e resolveu-se a ir ver a amiga. Certamente estava em casa, pensou ela; Mariquinhas caseira, tem filhos; demais, o marido ainda tenente e no pode andar em passeios. No tinha muito que esperar para melhorar, pois as coisas iam mudar. Mme. Forfaible desejava ardentemente a prosperidade do marido da sua amiga. Ele era engenheiro militar, tinha um bom curso, sabia bem matemtica, no podia estar a lidar com soldados, a fazer servio de quartel. O seu lugar era ocupar uma boa comisso, dessas que os paisanos tm, esses paisanos que no sabem nada....

Muito bem vestida, enluvada, fechou o rosto na sua importncia, radiou a patente de seu marido e seguiu para a casa da amiga. Chegou.

No sabes - disse ela suspendendo a toilette - como tenho andado azafamada... No te tenho podido visitar... Tambm tu no vais l em casa?

No tenho podido, Anita; o Descartes anda s doente e ...

No ficou no colgio?

No. Aquele idiota do comandante mandou-o para casa... Se fosse filho de um coronel...

Isso tudo vai mudar, Mariquinhas. Tem pacincia....

Qual pacincia, minha filha. Aquele colgio assim mesmo. J nos exames o diabo. Perseguem o pequeno... lvaro vai l, fala, mas o que queres?

So os paisanos?

Qual paisanos, minha filha! So os colegas mesmo do lvaro...

Vai melhor?

Vai... l est bom.

E a Helosa?

Muito bem. Est no colgio. No queres tomar caf?

Foram para a sala e jantar. Sentando-se mesa Mme. Forfaible descansou a bolsa, tirou as luvas, juntou tudo - leno, luvas e carteira - e ps do lado esquerdo. A dona da casa comeou a colocar as xcaras; ia e vinha do guarda-loua, para a mesa, conversando.

Estou sem criada, Anita. Um inferno!

As minhas tambm no param.

No h leis...

Esses paisanos, esses deputados no servem para nada.

No h quem cuide disso. Ganham um dinheiro...

Se fossem militares...

Ho de acabar.

Olha, queres saber de uma coisa: o Xisto no vai.

Corre isso.

Pois eu lhe digo que sim. Est tudo preparado... Bastos ainda no deu o sim, mas quem vai o Bentes.

Ouviste dizer isto?

O Manoel no te disse nada?

Nada. E o lvaro?

lvaro no diz coisa com coisa, mas ouo as conversas deles... Quem vai mesmo o Bentes... Quem fez a Republica no foram eles? Ento fizeram a Republica para os outros? No achas?

Certamente. No nos tem adiantado nada. Os paisanos tomaram os lugares, os bons, e nos deixaram os ossos. Uma ova!

V tu o que ganha o lvaro. soldo de um oficial, de um engenheiro? Qualquer civil a, que no sabe o que ele sabe, ganha contos de ris! No tem lugar nenhum!... um desaforo!

Mas Bentes quer?

Bentes quer, mas tem medo. Sabes bem que quem o faz querer no ele, o Gomes.

Os militares sempre provam bem.

E so honestos!

O que era preciso, minha filha, era melhorar tambm o montepio.

De tudo isso, eles vo tratar; e agora que so elas!

Se o velho no quiser - como h se der?

Contra a fora no h resistncia, Anita. Sabes bem disso.

O caf foi servido e ambas deixaram um instante de conversar.

Mme. Foirfable perguntou:

Quem ser o Ministro da Guerra?

No sei; mas lvaro no pode deixar de ser promovido. Agora por antigidade e merecimento. O Supremo j disse... Queres ver o Almanaque?

No preciso... Sei bem... No vai ser ministro o Costa?

Qual Costa? Costa est barrado;

No sabes nada?

Nada.

Se fosse o Manoel?

Era bom... O lvaro estava feito... Mas ele no quer lugar no ministrio, quer civil.

Isto arranja-se

Tudo vai ser militar.

Acabaram de tomar caf e Mme. Forfaible ainda pediu que D. Anita se interessasse junto a Neves Cogominho pela nomeao de um parente. Como se fosse hora adequada, Mme. Forfaible dirigiu-se ao Senado. No estava certa de obter, mas servia amiga e podia ver o que havia. No lhe foi difcil falar ao pai de Edgarda, que prometeu interessar-se; sobre poltica, porm, nada pode adiantar. Observou as fisionomias dos contnuos, dos solicitantes, dos jornalistas e parlamentares; notou o tom das conversas aos cantos da janela, e pareceu-lhe que havia alguma coisa de anormal. Esses rumores, esses cochichos, ela os ouvia desde muito tempo; mas agora, depois das revelaes da amiga, Anita j sabia do que se tratava. Era preciso aproveitar. O marido devia esforar-se por ser ministro e viu na coisa uma promoo.

No tinha inteno de vir, mas as sombras, as vitrinas, a agitao da rua do Ouvidor atraam-na como para um afago. Mergulhou nela sentindo a volpia de um banho morno. J pisava de outra forma, j olhava sem morgue; sentia-se bem no seu elemento. No tardou a encontrar conhecimentos. Parou um pouco a falar com o poeta Albuquerque, um poeta curioso, s poeta nas salas, s conferencista nas salas, teimoso em s-lo por toda a parte, mas mesmo os que o conheciam nos sales, no admitiam que o fosse fora deles. Mme. Forfaible gostava de falar com ele e gostava de seus versos, mas os compreendia melhor quando os recitava nas casas de famlia, entre moas e senhoras, de casaca ou smoking, com o seu grande olhar negro quase parado, sem fixar-se em nenhuma fisionomia.

Sabendo como julgavam a sua potica, Albuquerque fazia o possvel para desmentir esse julgamento. Empenhava-se para publicar os seus sonetos, nos grandes jornais, aos domingos; aderia s revistas chics e das quais se dizia redator. Todos, porm, nas rodas de literatos, como fora delas, no se convenciam de que fosse outra coisa que um poeta de salas e festas burguesas.

A sua elegncia era procurada e o seu falar todo cheio de sibilos, de chiantes, que sublinhavam gestos demorados e quase sempre imprprios. A sua inspirao, a sua versificao de colegial, as suas imagens talvez fossem muito do gosto das nossas salas; mas, luz do dia, nas revistas e jornais, provocavam risos e galhofas. Apesar de rico, era delicado e atenciosos com os pobretes dados a versos, e todos perdoavam o seu fraco, no o debochavam publicamente, e ele vivia com a sua infantil iluso e o seu grande olhar negro que supunha fascinador.

Albuquerque ofereceu-lhe ch e foram tomar na saleta chic.

Tenho, minha senhora, uma nova produo. Creio que vai gostar muito dela.

No a recite na rua, senhor Albuquerque. Podem pensar que sou tambm literata....

No havia mal nisso. Guardarei, entretanto, para dize-la aos servirmo-nos do tea; e, entre um gateau e outro, poderei contar-lhe, minha senhora, a histria vernal dos meus amores.

do soneto?

, minha senhora.

Logo vi.

No caminho, encontraram Benevenuto, o primo de D. Edgarda, que os cumprimentou e continuou a caminhar. Albuquerque disse por a a D. Anita:

Dizem que este moo tem talento... Ele faz versos, a senhora sabe?

Sr. Albuquerque, penso que poeta aqui o senhor...

No , minha senhora. No! Perdoe-me... Ouo sempre dizer que ele tem muito talento e informava-me simplesmente.

Benevenuto no fazia versos nem coisa alguma. A sua preocupao era mesmo no fazer nada. No tinha isso como sistema e at estimava que os outros o fizessem. Era o seu modo de viver, modo seu, porque se julgava defeituoso de inteligncia para fazer qualquer coisa e intil faz-la desde que fosse defeituoso. Gastara uma parte da fortuna em prodigalidades e aes vulgares e ganhara a fama de extravagante. Moo, ilustrado, a par de tudo, rico ainda, podia bem viver fora do Rio, mas dava-se mal fora dele, sentia-se desarraigado, se no respirasse a atmosfera dos amigos, dos inimigos, dos conhecidos, das tolices e bobagens do pas. Lia, cansava-se de ler, passeava por toda a parte, bebia aqui e ali, s vezes mesmo embebedava-se, ningum lhe conhecia amores e as confeitarias o tinham por literato. No evitava conversas, tinha relaes em toda a parte e, por sinal, depois de passar por Mme. Forfaible e Albuquerque, encontrou o Incio Costa, com quem foi tomar caf.

A estranha mania do Costa era a poltica. Estava sempre a par dos reconhecimentos, das manobras, das intrigas. Benevenuto, que no lia essas coisas, que passava os olhos distrados pelas sesses parlamentares dos jornais, a no ser quando se tratava de Numa, estimava a sua palestra por lhe informar a respeito desse aspecto de nossa vida que ele no prezava absolutamente.

Acabo de saber que o general Bentes quer mesmo; o Bastos no se ope, pois acha a candidatura do Xisto inslita.

Ele falava quase em segredo e o companheiro compreendia por alto o que dizia.

J mandei a minha adeso... O seu parente...

Quem?

O Salustiano.

No meu parente. parente do Cogominho e da minha prima, de quem sou parente por parte de me.

No quer dizer nada... Vamos ter um governo forte, um governo como o do grande Frederico, que conciliou a liberdade e a ditadura, realizando espontaneamente o voto sistemtico de Hobbes.

Costa esquecia-se muito de quem fora Frederico e de quem era o General Bentes; mas Benevenuto no lhe quis lembrar.

Costa - disse-lhe este - no te parece semelhante conciliao um tanto difcil.

A ditadura no isso que vocs pensam. a ditadura republicana.

Em que consiste a diferena?

Em que consiste? Consiste em suprimir, em diminuir as atribuies desse Congresso, dessa Justia, que perturbam o regime.

Mas Costa, voc no quer conciliao da liberdade com o governo?

o que diz o Mestre, o maior pensador dos tempos modernos, que completou Condorcet por de Maistre.

Sei; se voc quer isso, deve querer Justia e Congresso, porque assim se obtm a conciliao. Todo o pensamento em cri-los e faz-los independentes no foi seno com esse fim. Voc lembre-se bem da histria da revoluo...

Nada! Nada! Isto tudo entorpece a ao do governo... Esses debates, essas chicanas...

Mas Costa, voc quer um sultanato, uma khanato oriental e pior do que isso, porque nesses h ainda uma lei: o Coro; e, no teu, no h lei alguma. Como limitar a vontade do governo, como saber os nossos direitos e deveres? Com a Politique de Comte ou simplesmente com o Lagarrigue?

Qual lei! Lei so as naturais que so irrevogveis.

Nem tanto assim, meu caro, so tambm hipteses possveis...

Como?

So. Voc deve conhecer a histria das cincias. H o exemplo muito curioso da queda dos corpos que tm tido diversas leis pelos anos em fora, desde Aristteles e outros muitos.

Mas agora est certa?

Quem afirma isso a voc?

Benevenuto, voc um metafsico!

Incio Costa despediu-se e correu atrs de um amigo a quem desenrolou o manifesto para o qual pedia assinaturas.

Benevenuto tinha vagas notcias dessa candidatura presidencial de Bentes, mas, como toda a gente, no a levou a srio. Ouvira num bonde que fora levantada pela A Cimitarra, um jornaleco do interior, e no deu ateno ao caso. A agitao do Costa, o seu entusiasmo no lhe pareceram de bom agouro. Sabia que o Costa passara pelo florianismo e essa concepo nacional de governo traz no bojo, no fim de contas, um grande desprezo pela vida humana. Numa, com quem estivera, parecia amedrontado; e fora com insistncia que perguntara pelo Salustiano. No dera o devido valor insistncia; mas, com os dados que ia colhendo, parecia que esse Salustiano aderira ao candidato improvisado para subir e galgar posies polticas, talvez mesmo retirar Cogominho da chefia.

Ainda uma vez ele no compreendia esse negcio de poltica e ainda uma vez sentia bem que, ao contrrio dos que abraam uma qualquer profisso, os polticos no pretendem nunca realizar o que a poltica supe, e isto logo ao comearem. Singular e honesta gente! Que se diria de um mdico que no pretendesse curar os seus doentes?

A esmo ps-se a passear, a andar daqui para ali a ver as montras de jias, o vazio das fisionomias naquela constante curiosidade aterrada que parecia domin-las.

A satisfao que ele encontrou em Incio Costa no era o sentimento que ele via na massa da populao. Os boletins dos jornais eram avidamente lidos, embora insignificantes. Os transeuntes paravam, amontoavam-se porta dos jornais para ler a notcia de um simples falecimento. A cidade estava apreensiva e angustiada. que ela conhecia essa espcie de governos fortes, conhecia bem essas aproximaes de ditadura republicana. O florianismo dera-lhe a viso perfeita do que eram. Um esfacelamento da autoridade, um pululamento de tiranos; e, no fim, um tirano em chefe que no podia nada. A liberdade conciliada com a ditadura! Quem regulava essa conciliao, quem determinava os limites de uma e de outra? Ningum, ou antes: a vontade do tirano, se fosse um, ou de dois mil tiranos, como era de esperar. Os moos, os que tinham visto os acontecimentos de 93, quando meninos, no instante da vida em que se gravam bem as dolorosas impresses, anteviam as execues, os fuzilamentos, os encarceramentos, os homicdios legais e se horrorizavam.

Benevenuto era desses, desses que aos doze anos, viram as maravilhas do Marechal de Ferro, o regime de irresponsabilidade; e no podia esquecer pequenos episdios caractersticos do esprito de sua governana. todos eles brutais, todos eles intolerantes, alm do acompanhamento de gritaria dos energmenos dos cafs.

No supunha que a ressurreio fosse adiante, como profetizava Costa. Ele sabia bem que a principal funo do governo desagradar, e todos ns sempre estamos a pedir um rei; mas desta vez parecia que as rs queriam o que estava e contentavam-se com o seu toco de pau de soberano, manso, fraco e inerte.

Continuou a caminhar, fatigou-se, no quis entrar em caf conhecido. Procurou um fora da Avenida e da rua do Ouvidor. Comprou um jornal da tarde onde nada leu de novo. Era de maravilhar isto, pois corriam tantos boatos, tantas verses, havia tanta ansiedade, como as folhas no se apressavam em dizer alguma coisa? Calavam-se; calavam-se como se tivessem medo de despertar o monstro que dormitava.

O caf no ficava longe, mas no era visitado pelos habitus da Avenida. Ocupava uma velha casa baixa, cujo andar trreo, tendo as paredes violadas em portas, aqui e ali, dava a entender que suportavam com esforo o pavimento superior. No nascera para aquele destino e as colunas de ferro mal dissimulavam a fadiga. Benevenuto sentou-se e emendou a leitura do jornal que vinha comeada. Em uma mesa prxima, um grupo conversava. O recm-chegado no os examinou bem, mas ouviu-lhes a conversa.

melhor ser assim... Isso de estar com negaas, no vale... Quem quer, quer mesmo!!

A histria era o Bastos.

Ora Bastos! Bastos tutu? Todo o mundo tem medo do Bastos.

Ora! Enquanto mulher parir, no h homem valente. Ele tem mesmo que engolir a espada.

dos nossos.

No podia deixar de ser assim... Este chefe no pode continuar. No d emprego gente e no quer jogo... A gente tem que viver de qu?

Se o general vier...

Se vier?! Vem mesmo!

um modo de falar... Tudo muda. Vocs no viram o Floriano? Estava tudo barato. Agora?

Qual! Paisano no d pra coisa.

Benevenuto ouvia a conversa, mas no se atrevia a examinar os vizinhos. Descansou da leitura, ps-se a tomar caf; e, por acaso, demorou o olhar sobre o grupo. Reconheceu nele Lucrcio Barba-de-Bode e foi reconhecido.

Doutor, como est?

Como est, Lucrcio?

Eram trs e todos tinham um aspecto desembaraado e descansado, de quem est habituado a encarar a vida em qualquer ponto de vista. Conheciam todas as misrias e todos os constrangimentos. Pareciam tranqilos, seguros de si e esperanados. A conversa entre eles continuou:

Era mesmo preciso mudar... As necessidades aumentam cada vez mais.... Voc no viu, Lucrcio, o suicdio daquela moa?

Foi coisa de amor.... Ora, bolas!

, mas pelos domingos se tiram os dias santos.

No h dvida! - disse o terceiro - um preto que mascava um charuto. - No h dvida! O velho queria tomar conta de tudo, no deixava ningum agir...

Ele mesmo que deu azo a tudo isso.

Pra acabar! Vocs sabem de uma coisa: se ns no ganharmos, perder que no perdemos... Vamo-nos embora!

Lucrcio cumprimentou Benevenuto e seguiu com os companheiros em direitura ao largo de So Francisco. Anoitecia e o largo tinha um maior movimento. Os sinos da igreja soavam Angelus; soavam quase sem ser ouvidos pelos transeuntes apressados, correndo atrs desse ou daquele bonde. A igreja, porm, continuava imvel, a anunciar, como fazia h sculos e tanto, as Ave-Marias. Barba-deBode lembrou-se de ir para casa, jantar e voltar. Uma fora estranha o prendia no centro da cidade. No se cansava de andar deste para aquele ponto, de subir e descer as escadas da Cmara e dos escritrios, de estar de p horas e horas; fatigava-se da monotonia do interior, do sossego da sua rua pobre, sem bonde, sem trnsito algum, povoada tarde pelos brincos das crianas da vizinhana.

No foi; ficou ainda. A noite foi fechando e pelas nesgas abertas pelas ruas no horizonte, ele viu, sem demorar-se vendo, um pouco do crepsculo rosado.

Quando de todo veio a noite, o largo tomou outro aspecto. Eram s mulheres, moas, s duas, s trs, s quatro. Eram modistas, eram as costureiras. Quase todas, traindo o ofcio no apuro do vesturio, fazendas pobres, mas bem talhadas e provadas; e todas elas grrulas, lous, contentes, como se no tivessem trabalhado doze horas e no trabalhassem. As retardatrias passaram e o largo ficou um instante vazio. No vinham mais homens aos magotes, nem moas aos bandos, nem dos bondes desembarcavam levas de passageiros. Havia passeantes solitrios, homens e mulheres. Paravam nas vitrines, demoravam-se no ponto dos bondes, sempre marchando vagarosamente como se esperassem algum. Por vezes um deles se encontrava com uma delas, trocavam breves palavras e o caminho de casa era encontrado. A igreja se escondia na sombra e a s Escola Politcnica, muito alta, parecia dormir filosoficamente.

Lucrcio olhou o relgio e despediu-se dos companheiros. No gostava daquela hora ali no largo, preferia-a na Avenida, onde sempre encontrava um conhecido ou outro que lhe oferecia de beber. D