LIMA&DASCENZI ImplementaçãoPerspectivasAnalíticas

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Trata da apresentação de diferentes perspectivas analíticas da implementação das políticas públicas.

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  • VI ENAPEGS EIXO TEMTICO 2: GESTO SOCIAL, POLTICAS PBLICAS E TERRITRIO

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    Implementao de Polticas Pblicas: perspectivas analticas

    LIMA, L.L.1; D'ASCENZI, L.

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    Resumo

    Esse artigo tem dois objetivos interrelacionados. O primeiro sistematizar e analisar a literatura sobre modelos analticos de implementao de polticas pblicas. Identificamos dois principais modelos, top-down e bottom-up, que so operados com base em uma dicotomia entre a valorizao de variveis independentes relacionadas hierarquia organizacional, com foco no processo de formulao, e a nfase em variveis referentes s caractersticas dos espaos locais de implementao. Em comum os modelos enfatizam as condies materiais do desenvolvimento do processo de implementao. A partir dessa constatao, o segundo objetivo propor um modelo analtico baseado na integrao entre as variveis centrais daqueles modelos e variveis ligadas s ideias, valores e concepes de mundo dos atores. Tal desenvolvimento baseou-se em pesquisas empricas realizadas pelos autores sobre a implementao de polticas pblicas de sade e educao.

    Palavras-chave: polticas pblicas, implementao, avaliao.

    1 Luciana Leite Lima. UFRGS. E-mail: [email protected]

    2 Luciano D'Ascenzi. IFRS. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    Esse artigo tem dois objetivos complementares. O primeiro sistematizar e analisar a literatura sobre modelos de anlise de implementao de polticas pblicas. O segundo propor uma abordagem analtica que integre os modelos tradicionais, minimizando suas limitaes, e inclua novas variveis ligadas especialmente dimenso cognitiva e das ideias, valores e concepes de mundo dos atores. Tal desenvolvimento foi baseado em pesquisas que realizamos sobre implementao de polticas pblicas de sade e educao.

    O campo de estudos de implementao de polticas pblicas est fortemente atrelado s necessidades de desenvolvimento de melhorias nos processos poltico-administrativos, que permitam o incremento das atividades implementadoras. Essa uma caracterstica explcita na literatura internacional. [...] a anlise de polticas pblicas [...] uma forma de pesquisa aplicada desenhada para entender profundamente problemas sociotcnicos e, assim, produzir solues cada vez melhores (Majone e Quade, 1980:5, traduo nossa) i. A anlise de implementao o estudo do por que decises autoritrias (poltica, planos, leis) no levam ao resultado esperado (Berman, 1978).

    A imbricao entre anlise e proposio, contudo, gerou um vis: o foco nos problemas de implementao. Uma mxima da implementao de poltica pblica assegura que seja l o que puder dar errado, ir dar errado. Essa mxima [...] (re) afirmada por meio da experincia universal, pois no h registro que a conteste (Bardach, 1980: 138, traduo nossa)ii.

    Partir do pressuposto de que existem problemas indica que h um olhar de expectativa em relao ao objeto. A consequencia disso que os trabalhos nesse campo giram em torno da definio de variveis que expliquem o sucesso ou fracasso da implementao de polticas pblicas. Nesse sentido, por exemplo, Mazmanian e Sabatier (1983) elaboraram uma listagem de condies para a efetiva implementao, um check list para estudantes e administradores de fatores especficos a serem considerados para estimar a probabilidade de um programa atingir os objetivos. A primeira condio que a legislao deve oferecer objetivos claros e consistentes. Em segundo lugar, a legislao deve incorporar uma teoria slida, identificando os principais fatores e links causais, que afetam os objetivos, e dar aos implementadores jurisdio suficiente sobre o grupo alvo e outros pontos de influncia para atingir os objetivos. A terceira condio que a legislao deve estruturar a implementao para maximizar a probabilidade de que implementadores e grupos alvo faam o que se deseja. Isso envolve trabalhar com agncias solidrias e integrao hierrquica adequada, recursos financeiros suficientes e acesso a suporte. Em quarto lugar, os lderes das agncias implementadoras devem possuir habilidades polticas e gerenciais e estarem comprometidos com os objetivos da poltica. A quinta condio que o programa deve ser apoiado por grupos organizados e por alguns legisladores-chave ao longo da implementao. Por fim, a sexta condio se refere as mudanas contextuais que podem constranger a implementao, como a emergncia de polticas pblicas conflitantes ou mudanas nas condies socioeconmicas.

    i [...] policy analysis [...] is a form of applied research designed to acquire a deeper understanding of sociotechnical problems and to bring about better solutions (Majone e Quade, 1980: 5). ii A well-known law of policy implementation holds that `whatever can go wrong will`. This law is

    affirmed by universal experience, and there is no use protesting against it (Bardach, 1980: 138).

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    Mesmo aqueles que criticam a iniciativa de elencar variveis que podem prever o sucesso ou fracasso do processo de implementao, o fazem apontando para a incapacidade de orientar e antecipar os problemas, julgando as proposies apticas e estrategicamente vagas. o caso de Elmore (1979) e Berman (1978), que defendem que as variveis no podem ser definidas a priori. Para eles, os problemas da implementao originam-se, em sua maior parte, da interao da poltica com as organizaes executoras. Podemos citar tambm Silva e Melo (2000) que sugerem modelos de implementao que podem minimizar as vicissitudes do processo. E Pires (2009) que defende que os estilos de implementao empregados pelas burocracias influenciam os resultados (sucesso ou fracasso) da poltica pblica.

    Depreende-se que a forma como concebido o problema de implementao molda a anlise. Cline (2000) apresenta duas definies predominantes. A primeira, estabelece que a natureza do problema administrativo-organizacional e sua resoluo depende da especificao de objetivos e do controle dos subordinados. Nesta situao, os fatores que inibiriam a implementao efetiva seriam, por exemplo, a incompetncia tcnica dos burocratas, as caractersticas estruturais das instituies implementadoras, as falhas de comunicao entre formuladores e subordinados. O sucesso da implementao resultaria da criao de formas mais efetivas de gerenciar comunicaes, recursos e dispositivos burocrticos. O gerenciamento efetivo a chave para soluo dos problemas que surgem durante a implementao.

    Na segunda definio, o problema da implementao decorre de conflito de interesses. A preocupao com a obteno de cooperao dos participantes do processo. Ao contrrio da primeira definio, o poder disperso e os participantes devem barganhar para lograr capacidade para agir. Dificuldades para gerar cooperao atrapalham a implementao antes mesmo que questes de administrao organizacional se tornem obstculo. A soluo para os problemas da implementao construir instituies ou mecanismos que criem um contexto de cooperao para os participantes.

    Essas definies operam com base na dicotomia entre poltica e administrao e as abordagens analticas em implementao de polticas pblicas equilibram-se, grosso modo, nesses pressupostos. A definio do problema da implementao influencia a escolha das variveis, o foco da anlise e as proposies decorrentes.

    As duas abordagens de anlise de implementao de polticas pblicas, top-down e bottom-up, que sero discutidas a seguir reproduzem as caractersticas citadas. E, por isso, acabam por se conformar em modelos dicotmicos. Tal dicotomia produz limitaes analticas.

    Nosso argumento o de que, embora os modelos tradicionais sejam operados de forma dicotmica, eles se assemelham quanto ao foco nas condies materiais da implementao. Tal nfase deixa espao insero de variveis ligadas s ideias, valores e concepes de mundo dos atores. Interessa-nos identificar variveis independentes da trajetria dos processos de implementao mais do que de seu sucesso ou fracasso.

    O artigo formado por duas sees alm desta introduo e da concluso. Na primeira, so discutidos os dois modelos analticos basilares, top-down e bottom-up. Na segunda seo destacamos as variveis consideradas relevantes desses modelos e apresentamos elementos, cognitivos e ideolgicos, que acreditamos poderem incrementar anlise dos processos de implementao.

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    Modelos de anlise do processo de implementao de polticas pblicas

    Na literatura sobre implementao de polticas pblicas encontramos referncia a duas perspectivas possveis de anlise para esse processo: os modelos top-down e bottom-up. Algumas vezes tambm referidos como desenho prospectivo e retrospectivo (Elmore, 1996).

    A questo bsica por trs desta classificao est relacionada com o nvel de discricionariedade exercido pelos implementadores. Os modelos trabalham com diferentes nveis e possibilidades de autonomia em relao ao plano ou normas que estabelecem os objetivos da poltica.

    O modelo top-down, ou desenho prospectivo, se assenta na abordagem seqencial. Esta apresenta a poltica pblica como uma seqncia de etapas distintas e guiadas por lgicas diferentes (Muller e Surel, 2002). Enquanto o processo de formulao seria permeado pela lgica da atividade poltica, a implementao estaria no mbito da prtica administrativa. A implementao corresponderia execuo de atividades [...] com vistas obteno de metas definidas no processo de formulao das polticas (Silva e Melo, 2000: 4). Assume-se que uma vez criada a poltica conforma-se um processo tcnico de implementao (Walt, 1994).

    Prevalece o pressuposto da teoria organizacional de que o processo de implementao ordenado hierarquicamente. Quanto mais perto da fonte da policy, maior a autoridade, a influncia e a capacidade de resolver problemas. Fica clara a distino entre deciso e sua operacionalizao, que possuem arenas e atores distintos.

    O foco direciona-se para o processo de formulao. Pois se compreende que a administrao uma mquina que segue especificaes. Este tipo de desenho parte do topo do processo decisrio, a partir da declarao mais precisa possvel da inteno de quem decide, e se desenvolve por uma seqncia de passos cada vez mais especficos para definir o que se espera de cada um dos responsveis pela implementao em cada nvel (Elmore, 1996).

    A anlise centrada nas normas que estruturam o processo de implementao e suas lacunas. As lacunas de implementao correspondem a mudanas que ocorrem na poltica durante sua execuo. Tais problemas so responsabilidade dos formuladores que devem evit-los seguindo determinadas orientaes para a elaborao das regras que estruturam a implementao. Alguns desses conselhos clssicos (Hill, 2007: 66) so: manter a poltica clara, evitar ambigidades; estruturar a cadeia de implementao com o menor nmero possvel de elos: elaborar estruturas simples para minimizar a dependncia entre rgos no que se refere execuo; manter controle efetivo sobre os implementadores. Com isso, os implementadores teriam margem de manobra limitada. Sua atuao poderia afetar principalmente as estratgias, mas no os objetivos da poltica (O`Brien e Li, 1999).

    Limitar, regular e controlar a discricionariedade dos implementadores so questes centrais no modelo top-down. A discrio pode ser definida como o grau de latitude ou flexibilidade exercido por administradores pblicos quando tomam decises ou conduzem qualquer negcio da agncia (Bastien, 2009). Regras claras, compreensveis e especficas visam a minimizar a discrio que considerada uma distoro da autoridade governamental, um

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    problema na democracia. Nesse sentido, evitar ambigidades no plano um dos conselhos fundamentais para garantir a efetividade da implementao. Por um lado, essa estratgia limitaria a discricionariedade. Por outro, produziria um plano claro, condio necessria para o sucesso do processo de comunicao dos objetivos e estratgias, cuja funo promover o alinhamento dos implementadores. s falhas de comunicao comumente creditado o fracasso do processo de implementao que sempre julgado com base no grau de alcance dos objetivos previamente definidos.

    Silva e Melo (2000) distinguem entre dois tipos de perspectivas top-down: a viso clssica e a viso linear. Enquanto a viso clssica percebe o policy cicle como uma seqncia de fases estanques e unidirecional, a viso linear incorpora o monitoramento para corrigir desvios de rota na implementao. Assim, so inseridas na anlise as vicissitudes da implementao, associadas com problemas especificamente do ambiente local. Esses problemas derivariam da capacidade institucional dos agentes implementadores e de conflitos polticos, envolvendo os grupos ou setores negativamente afetados pela poltica em muitos casos setores da prpria mquina administrativa estatal. Entretanto, percebe-se que a viso linear mantm o foco no processo de formulao (Silva e Melo, 2000). O feedback da implementao utilizado como insumo para incrementar o plano, o qual incorpora as possveis dificuldades locais visando evitar os desvios de rota.

    Alguns autores como Howlett e Ramesh (1995), Van Meter e Van Horn (1996) e Sabatier e Mazmanian (1996) empreenderam o esforo de delimitar variveis independentes para o estudo da implementao de polticas pblicas no escopo da perspectiva top-down. Pode-se sistematizar a contribuio desses autores em quatro tipos de variveis que influenciam o xito do processo de implementao. O primeiro tipo se refere natureza do problema alvo da poltica: a existncia de tecnologia de interveno disponvel e acessvel, de uma teoria causal vlida e o tamanho da populao-alvo. O segundo grupo de variveis so as normativas e referem-se ao grau em que o plano estrutura a implementao. O sucesso da implementao decorre da clareza dos objetivos, pois imprescindvel que os implementadores compreendam perfeitamente a poltica e saibam exatamente o que se espera deles. Essas questes vinculam-se com a maior ou menor possibilidade de resistncia ao plano. Soma-se a isso a previso e disponibilidade de recursos, principalmente, financeiros. O terceiro bloco alude a variveis contextuais. O contexto social comumente relacionado ao apoio do pblico poltica, muitas vezes considerado uma varivel crtica porque esse apoio mostra-se instvel e no perdura ao longo do tempo. O contexto econmico influencia a disponibilidade de recursos, essencial para o sucesso da implementao. O contexto poltico tange, fundamentalmente, a mudanas de governo e ao apoio das elites. O quarto grupo de variveis se refere organizao do aparato administrativo, basicamente, disponibilidade e qualidade dos recursos humanos e estrutura organizacional.

    Os autores esto preocupados com os elementos que podem comprometer o xito da implementao. O parmetro de sucesso so os objetivos definidos no plano. As variveis se referem arena de formulao e focam elementos considerados estruturantes da implementao.

    Elmore (1996: 254) afirma que o maior defeito do desenho prospectivo o suposto implcito e inquestionado de que os formuladores das polticas controlam os processos organizacionais, polticos e tecnolgicos que condicionam a implementao (traduo

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    nossa) iii. Silva e Melo (2000: 9) sustentam que estudos empricos revelam um padro muito distinto, onde prevalece a troca, a negociao e barganha, o dissenso e a contradio quanto aos objetivos. Ao invs de controle, autoridade e legitimidade verifica-se ambigidade de objetivos, problemas de coordenao [...], recursos limitados e informao escassa.

    As crticas a abordagem top-down baseiam-se na constatao de que dificilmente somos capazes de elaborar normas que possam prever as condies, dinmicas e comportamentos de uma cadeia de atores diversos e interdependentes. Isso porque as condies existentes no momento da concepo do plano sofrem mudanas e, com elas, os acordos estabelecidos, antagonismos e conflitos se tornam evidentes somente com o passar do tempo, impossvel (e indesejvel) especificar todos os participantes com antecedncia e resolver barganhas futuras sob circunstncias passadas (Pressman e Wildavsky, 1984).

    A perspectiva top-down tem um vis organizacional. As agncias formuladoras e implementadoras so apreendidas em seus aspectos organizacionais formais: hierarquia, controle, centralizao do comando, descentralizao da execuo, coordenao, comunicao etc. Toma como varivel explicativa o planejamento (plano, normas estruturantes do processo de implementao) e desconsidera o processo decisrio que deu origem a ele. Assim, enfatiza a estrutura organizacional em detrimento de atores-chave (Matland, 2010).

    O estudo da implementao requer a compreenso de que seqncias de eventos aparentemente simples dependem de complexas correntes de interao recproca. Assim, cada elo deve ser construdo levando em considerao os outros (Pressman e Wildavsky, 1984). Tanto as observaes casuais quanto as sistemticas sugerem que os resultados das polticas sociais e de planos inovadores so imprevisveis (Mazmanian e Sabatier, 1983; Berman, 1978).

    Essa imprevisibilidade, para Pressman e Wildavsky (1984), deve-se s seguintes caractersticas do processo de implementao. Em primeiro lugar, h uma multiplicidade de atores de diferentes tipos de organizaes com interesses diversos que so agregados para operar a poltica. Esses atores interagem em uma trajetria de pontos de deciso nos quais suas perspectivas se expressam. Em segundo lugar, esses atores mudam com o passar do tempo. Isso faz com que a interao tambm mude, pois mudam as perspectivas e a percepo que um ator tem do outro e insere pontos de descontinuidade e de necessidade de novas e mais negociaes. A existncia de uma multiplicidade de atores ocorre independentemente de estar previsto no plano, uma caracterstica intrnseca da implementao de uma poltica pblica.

    O desenho retrospectivo, ou bottom up, questiona o suposto da influncia decisiva dos formuladores sobre o processo de implementao e de que as diretrizes explcitas, a determinao precisa de responsabilidades administrativas e a definio exata de resultados aumentam a probabilidade de que as polticas sejam implementadas com xito (Elmore, 1996). Este modelo enfatiza que a discricionariedade dos implementadores inevitvel e pode ser desejvel j que esses atores detm conhecimento das situaes locais e podem adaptar o plano a elas (O`Brien e Li, 1999). Tais ajustes podem ser possveis fontes de inovao, dependente, no entanto, das capacidades do Estado.

    iii El mayor defecto del diseo prospectivo es el supuesto implcito e incuestionado de que los

    elaboradores de polticas controlan los procesos organizativos, polticos y tecnolgicos que condicionan a la implementacin (Elmore,1996: 254).

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    As anlises so centradas nos atores dos nveis organizacionais responsveis pela implementao. Considera-se que a poltica muda medida que executada. O padro de sucesso condicional, relacionado com a capacidade limitada dos atores de cada nvel de implementao de influenciar o comportamento dos atores dos outros nveis e com a limitada capacidade das organizaes pblicas de influenciar o comportamento privado (Elmore, 1979).

    Em contraste com a viso linear do modelo top-down, o bottom-up considera a implementao como um processo disperso e descentralizado, reconhecendo o papel importante dos implementadores. Esses podem mudar a forma como a poltica implementada ou redefinir objetivos em virtude de constrangimentos encontrados. Nesta perspectiva, a implementao percebida como um processo interativo de formulao, implementao e reformulao (Mazmanian e Sabatier, 1983). Da mesma forma que a formulao pode ser caracterizada pela barganha, a implementao pode ser distinguida pelo conflito e negociao (Walt, 1994). Desse modo, a implementao entendida como processo autnomo onde decises cruciais so tomadas e no s implementadas (Silva e Melo, 2000: 10) e que influencia a configurao da poltica pblica.

    [Nesta perspectiva sugere-se] uma abordagem mais realista sobre como ocorre a implementao, mais do que sobre como a implementao deve ser controlada. [...]. A realidade, [...], no se refere a um controle imperfeito, mas s aes como processo contnuo da interao, com polticas mutantes e passveis de mudanas, uma estrutura complexa de interaes e um mundo externo que condiciona a implementao [...] (Hill, 2007: 74).

    A anlise parte do nvel mais inferior do processo de implementao, onde a ao administrativa se entrecruza com as decises privadas, centrando-se nos atores. Atm-se especialmente aos fatores sobre os quais os formuladores exercem influncia indireta: o conhecimento e capacidade de resolver problemas dos implementadores, a estrutura de incentivos na qual operam os sujeitos da poltica e as relaes de negociao entre os atores em diferentes nveis do processo (Elmore, 1996).

    A perspectiva assume que o poder disperso e sua distribuio no somente hierrquica e atenta para a autoridade informal que deriva do conhecimento, habilidades e proximidade das tarefas essenciais que a organizao desempenha (Elmore, 1979). Assume-se que quanto mais perto se est da fonte do problema, melhor a habilidade para influenci-lo. E a habilidade de resolver problemas em sistemas complexos no depende do controle hierrquico, mas da maximizao da discricionariedade no ponto onde o problema mais imediato (Browne e Wildavsky, 1984; Elmore, 1979). Na grande maioria dos casos, o plano deve ser visto apenas como um ponto de partida de um processo de experimentao, de definio de objetivos e de procura por uma estratgia de implementao melhor adaptada s circunstncias particulares (Browne e Wildavsky, 1984; Mazmanian e Sabatier, 1983).

    Diferentemente do modelo top-down, a discrio vista como um mecanismo adaptativo. A resoluo de problemas ocorre por meio da ao dos atores, da implantao de suas estratgias, da gesto de seus conflitos e dos processos de aprendizagem e requer habilidade e discrio. A poltica pblica pode direcionar a ateno dos indivduos para o problema e oferecer uma ocasio para aplicao de suas habilidades e julgamento, mas ela no pode resolver o problema (Muller e Surel, 2002; Elmore, 1979).

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    Tambm a ambiguidade percebida de forma diversa. Matland (2010) e Deleon e Deleon (2002) declaram que a elaborao de regras rgidas para a operao da poltica pode ser contraproducente, pois priva os implementadores de flexibilidade. A ambiguidade do plano seria uma das formas de superar e/ou evitar o conflito. Na fase do desenho da policy, a ambigidade uma das formas de minimizar os conflitos que se originam da necessidade de compor diferentes interesses. Ela permite que a policy sobreviva politic. Na fase da implementao, a ambigidade deixa espao para a interpretao do plano de acordo com as condies de seu espao de operao.

    Na perspectiva bottom-up a burocracia responsvel pela implementao varivel relevante que explica o xito ou o fracasso da poltica (Vaquero, 2007). No que tange dinmica de funcionamento das organizaes implementadoras, no podemos deixar de tratar da contribuio de Lipsky (1980).

    Lipsky define burocracias street-level como as agncias nas quais os trabalhadores interagem diretamente com cidados no curso de suas tarefas e que tm substancial discrio na execuo de seu trabalho. As decises tomadas pelos burocratas street-level, as rotinas que estabelecem e os dispositivos que criam para lidar com as incertezas e presses do trabalho, efetivamente se tornam as polticas pblicas que implementam. O papel de policy making desses burocratas construdo sob duas facetas interrelacionadas de suas posies: o alto grau de discrio e a relativa autonomia em relao autoridade organizacional. Lipsky expe que so as condies de trabalho que determinam a atuao das burocracias street-level e destaca as caractersticas que considera mais relevantes.

    Primeiro, os recursos so cronicamente inadequados para as tarefas que devem ser desenvolvidas. Segundo, a demanda pelo servio tende a aumentar at encontrar a oferta. Para Lipsky isso acarreta a priso dos burocratas street-level em um ciclo de mediocridade: quanto melhor o programa e mais sensvel s necessidades dos cidados, maior ser a demanda para o servio. Terceiro, os objetivos dos servios pblicos tendem a ser vagos, conflitantes, ambguos e, muitas vezes, representam horizontes desejveis e no alvos fixos. Quarto, difcil medir a performance desses trabalhadores, que relativamente livre de superviso, dada a discricionariedade. Isso significa que as agncias no so auto-corretivas e a definio de performance adequada altamente politizada. Quinto, o carter no voluntrio dos clientes. Clientes no voluntrios no tm condies de disciplinar os burocratas que geralmente no tm nada a perder por falhar com os clientes. Se a demanda inesgotvel, o fato dos clientes ficarem insatisfeitos significa apenas que outros estaro na fila para tomar seu lugar. Assim, a perda de clientes no determinante do comportamento dos burocratas street-level.

    Disso depreende-se que os burocratas street-level sempre estaro sujeitos a constrangimentos. Dentro desses, eles tm ampla discrio sobre a utilizao dos recursos. Lipsky salienta que esses atores tm muita responsabilidade na alocao de recursos sociais, mas pouca determinao externa de como definir e atingir objetivos.

    Para o autor o problema dos burocratas street-level relaciona-se com a necessidade de tomar decises sob condies de considervel incerteza onde decises satisfatrias sobre alocao de recursos devem ser pessoalmente derivadas e no organizacionalmente. Para lidar com as incertezas do trabalho desenvolvem trs repostas. Em primeiro lugar, criam padres de prticas que tendem a limitar a demanda, maximizar a utilizao de recursos disponveis e obter a conformidade dos clientes. Ou seja, organizam seu trabalho para obter solues dentro dos constrangimentos que encontram. Em segundo lugar, modificam o conceito de seu trabalho, restringem seus objetivos e reduzem o gap entre recursos

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    disponveis e objetivos atingidos. Em terceiro lugar, transformam o conceito de matria-prima (seus clientes) para tornar mais aceitvel o gap entre realizaes e objetivos.

    Essas rotinas e simplificaes so criadas para lidar com a complexidade do trabalho. Quando as polticas pblicas consistem em muitas low-level decisions, as rotinas e categorias desenvolvidas para processar estas decises efetivamente determinam a policy. Nesse sentido, street-level bureaucrats make policy (Lipsky, 1980: 84).

    Matland (2010) critica a nfase no papel dos burocratas street-level das anlises bottom-up. O autor declara que questes fundamentais so negligenciadas, como o fato de que nas democracias o controle sobre as polticas deve ser dos representantes eleitos e o poder dos implementadores no deriva desta base. Contudo, hegemnica a ideia de que se a discricionariedade, por um lado, indispensvel para o desenvolvimento das atividades, por outro, seu exerccio permite modificar a policy a revelia das concepes de seus formuladores e dos grupos que lhes deram apoio. Esse mais um elemento de imprevisibilidade para a anlise da implementao.

    Os modelos top-down e bottom-up se diferenciam quanto ao foco de anlise. O primeiro centra-se nas normas e nos planos, o segundo nos atores executores e suas aes. Em comum as abordagens enfatizam as condies e limitaes materiais, vistas como determinantes da trajetria do processo de implementao.

    Top-down, bottom-up e alm

    Os modelos apresentados encontram seus limites na superestimao da importncia do centro ou da periferia de forma excludente. O foco top-down nas normas e atores localizados no topo da hierarquia organizacional desconsidera a influncia dos implementadores. Por outro lado, a capacidade de determinao atribuda a esses no modelo bottom-up subestima a influncia que as variveis top-down exercem na implementao. Ambos os modelos, entretanto, privilegiam as condies materiais do processo de implementao, no tomando como varivel relevante os aspectos culturais que so mediadores, por vezes necessrios, ao entendimento do resultado alcanado.

    Se levarmos em conta que existe uma relao entre o plano e sua execuo, parece aceitvel pensar que a anlise da implementao deve contempl-la. Analisar como algo feito inevitavelmente criar a necessidade de entender a ideia que est sendo executada e como ela se conformou. Com isso, pode-se diluir a dicotomia que se criou nos modelos top-down e bottom-up.

    Podemos definir a implementao como um processo de apropriao de uma ideia que, nesse sentido, conseqncia da interao entre a inteno e elementos dos contextos locais de ao. Acreditamos que a anlise do processo de implementao que deriva dessa dinmica deve considerar alguns fatores, entre os quais destacamos: as caractersticas do plano, a organizao do aparato administrativo responsvel pela implementao e as ideias, valores e concepes de mundo dos indivduos. Esses elementos sero tratados a seguir.

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    Em relao ao primeiro elemento, caractersticas do plano, gostaramos, inicialmente, de trabalhar com uma viso mais flexvel das normas que orientam a implementao. Seguindo o caminho proposto por Majone e Wildavsky (1984) podemos tratar o plano como um conjunto de dispositivos que funcionam como ponto de partida para um processo de experimentao, de procura por uma estratgia melhor adaptada a circunstncias particulares. Nessa concepo, os planos existem apenas como potencialidades e sua realizao depende de qualidades intrnsecas e de circunstncias externas. Policies surgem de ideias, e ideias so inesgotveis. []. Assim como os problemas s so realmente entendidos depois de terem sido resolvidos, as implicaes de uma ideia s podem ser percebidas de forma retrospectiva, aps sua utilizao e adaptao a variadas circunstncias (Majone e Wildavsky, 1984: 169-70, traduo nossa)iv.

    Tratar o plano como um conjunto de dispositivos permite escapar da disputa sobre quem controla o processo de implementao, pois assume seu carter intrinsecamente descentralizado e aberto. No que se refere medio do sucesso ou fracasso, essa concepo abre espao para o resultado alcanado. A medida de sucesso ou fracasso deve estar de acordo com o esforo de ao produzido. Restringi-la conformidade com objetivos previamente definidos nos leva a desprezar os resultados reais da implementao. O mais relevante verificar quais foram os efeitos gerados e se eles so desejveis ou no.

    Nesse sentido, o plano estimula e orienta a implementao, a maioria dos participantes desse processo atua em um contexto de expectativas de que alguma coisa vai acontecer. O plano afeta a implementao pela definio da arena na qual ocorre o processo, da relao de causalidade, do papel dos principais atores, da extenso das ferramentas permitidas de ao e da alocao de recursos. A teoria inserida na policy fornece o insumo para os debates e aes. E, mais importante, ela prov uma conceitualizao do policy problem (Majone e Wildavsky, 1984).

    Majone e Wildavsky (1984) afirmam que consequncias de poltica que no tm um relacionamento reconhecvel com a ideia original (implementation monsters) so raros. Porm, no to rara a reconstruo a posteriori de objetivos para que se encaixem nos resultados alcanados. uma via de mo dupla, o plano norteia a implementao e o desenvolvimento da implementao modifica o plano.

    O contedo das normas que estruturam as policies no ser recebido de forma acrtica em espaos vazios. Pelo contrrio, ser inserido em processos estabelecidos e adaptado s concepes e capacidades das instncias de governo e das burocracias street-level. Nesse quadro, a anlise das caractersticas do plano pode ser til para a compreenso da reao gerada nas instncias de implementao. Os objetivos definidos, os atores envolvidos e seus papis, o fluxo da alocao de recursos, todos so elementos que criam expectativas, geram interpretaes e dinmicas diversas de reao.

    interessante tambm verificar as formas de divulgao e convencimento utilizadas para gerar conformidade com o plano. Pois o alinhamento a ele uma varivel valorizada tanto por autores que enfatizam a autonomia local (Lipsky, 1980; Berman, 1978), quanto pelos que focam o controle hierrquico (Mazmanian e Sabatier, 1983).

    iv Policies grow out of ideas, and ideas are inexhaustible. []. As problems are truly understood only

    after they have been solved, so the full implications of an idea can often be seen only from hindsight, only after the idea has been used and adapted to a variety of circumstances (Majone e Wildavsky, 1984: 169-70).

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    De forma sinttica, nesse primeiro bloco, destacamos o plano, suas caractersticas e antecedentes, como uma das matrias-prima de anlise. Com isso, incorporamos a contribuio top-down com modificaes: flexibilizamos a definio de plano e consideramos sua interao com os espaos locais. A superestimao da capacidade de determinao do plano foi minimizada e procuramos trat-lo como parte de uma dinmica mais complexa.

    O segundo elemento que deve ser considerado na anlise de processos de implementao a organizao do aparato administrativo responsvel. A operacionalizao de novas polticas, programas, projetos ou atividades depende de um conjunto de estruturas e normas internas. O plano ser absorvido, traduzido e adaptado s possibilidades e constrangimentos das agncias e indivduos que o devero executar. Assim, fatores como disponibilidade e qualidade dos recursos humanos e materiais, estrutura e a dinmica das regras organizacionais (formais e informais), fluxo e disponibilizao de informaes influenciam a forma como se dar a apropriao e implementao do plano nos espaos locais.

    Os implementadores adaptaro o que se espera que seja feito ao que conseguem (ou querem) fazer. Os recursos afetam a interpretao do plano e sua implementao. A estrutura e a dinmica dos espaos de trabalho so elementos importantes que conformam a percepo dos atores locais e sua ao.

    Alm das regras e estruturas especficas das organizaes implementadoras, Autor (2006) chama ateno para a influncia que exercem as organizaes (e as regras) profissionais e as relaes de poder estabelecidas com base na diviso do trabalho na atuao dos indivduos dentro dessas agncias. O autor etnografou a implementao do modelo gerencial do Programa Paidia de Sade da Famlia nos centros de sade de Campinas e verificou duas consequncias para o processo relacionadas com aqueles elementos. Em primeiro lugar, embora o programa visasse democratizao da gesto dos centros de sade, por meio da constituio de espaos coletivos, sua implantao se valeu da hierarquia formal que ocupou esses espaos, reproduziu as relaes de poder estabelecidas entre categorias profissionais e entre os profissionais e os usurios, pouco alterando a centralizao decisria. Em segundo lugar, as instncias representativas das categorias profissionais no foram consideradas no plano. Isso impossibilitou a modificao dos processos de trabalho que so regrados por elas. So trabalhadores que [...] chegam ao ambiente de trabalho cooperado com concepes e processos de trabalho j prontos e definidos. A implementao do programa no redundou em mudanas [...] graas a esta slida estrutura [...] (Autor, 2006: 36). O fato que o modelo planejava uma mudana cultural, mas praticamente ignorou uma das instncias formadoras do sistema de representaes locais (Autor, 2006: 58).

    Nos setores que se caracterizam pela alta regulamentao dos processos de trabalho, a atuao das organizaes representativas torna-se relevante uma vez que so arenas de definio das normas que regem a conduta dos profissionais. Essas expressam representaes sobre o trabalho e sua funo social e, por isso, influenciam a percepo dos indivduos sobre as polticas e suas aes. De outra forma, as relaes de poder estabelecidas nos espaos de trabalho tendem a se reproduzir na execuo de novas atividades. Assim, a leitura dos planos se d por meio de lentes especficas. O novo interpretado com base no conhecido, isso traz segurana em um contexto de incerteza que caracteriza processos de mudana. Nesse sentido, os determinantes da ao s podem ser evidenciados a posteriori.

    Neste segundo bloco, enfatizamos as condies e caractersticas dos espaos locais como uma das matrias-prima de anlise. As especificidades jogam um papel importante quando

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    se quer compreender os processos de implementao. O plano ser adaptado s possibilidades e constrangimentos encontrados nas instncias implementadoras. Com isso, mesclamos os aspectos centrais das duas abordagens basilares e colocamos foco nos processo de interao entre estes elementos.

    O terceiro elemento mais amplo e diz respeito influncia das ideias sobre a ao dos atores. As ideias podem ser definidas, por exemplo, como afirmao de valores, podem especificar relaes causais, podem ser solues para problemas pblicos, smbolos e imagens que expressam identidades pblicas e privadas, bem como concepes de mundo e ideologias (John apud Faria, 2003: 23). As ideias conformam a percepo que os tomadores de deciso tm dos policies issues, influenciando a ao. Podemos encontrar outros conceitos que se propem ao mesmo objetivo: enfatizar o peso das ideias, valores e da dimenso simblica para o estudo da ao do Estado. Muller e Surel (2002: 59), por exemplo, destacam o conceito de matrizes cognitivas: sistemas de representao do real no interior dos quais os diferentes atores pblicos e privados inscrevem suas aes.

    Tal conceito foi utilizado para analisar a implementao da poltica nacional de educao profissional e tecnolgica por meio dos Institutos Federais de Educao Cincia e Tecnologia (Ifes) (Autor, 2011). Constatou-se que algumas dificuldades encontradas nesse processo estavam relacionadas com a reproduo da matriz cognitiva da poltica precedente. Isso se deu da seguinte forma. A criao dos Institutos Federais marcaria uma mudana de perspectiva em relao ao ensino profissional, de formador de mo-de-obra para o mercado de trabalho para promotor de desenvolvimento social e econmico. Esse era o objetivo explcito da poltica pblica. Para tanto, os processos de formao seriam orientados pela integrao e articulao entre cincia, tecnologia, cultura e conhecimentos especficos e pelo desenvolvimento da capacidade de investigao cientfica. Isso tudo deveria ser traduzido em atividades de ensino, pesquisa e extenso. Essa integrao seria a novidade dos Institutos Federais em relao poltica precedente, das Escolas Tcnicas Federais e Agrotcnicas (Cefet), na qual prevalecia a perspectiva do ensino tcnico que se pretendia superar e cujas estruturas foram utilizadas para implementar a nova poltica. Os atores provenientes dos Cefets foram alados a cargos de chefia nos Ifes e sua atuao foi orientada pelas concepes que tinham sobre o ensino profissional, sua funo e operao. A reproduo de tal concepo foi evidenciada em duas instituies. Em primeiro lugar no organograma que, num primeiro momento, criou apenas as diretorias administrativas e de ensino e, num segundo momento, subordinou pesquisa e extenso diretoria de ensino, em contradio com as normas que tratavam de forma interdependente tais instncias. Em segundo lugar, nos regulamentos internos que desincentivavam o envolvimento do corpo docente com as novas atividades. A estrutura organizacional e as normas internas expressavam a tentativa de acomodar as novas exigncias aos conhecimentos e prticas estabelecidos.

    Inserida nas abordagens que atentam para a importncia das ideias, destacamos ainda a relevncia da noo de advocacy coalitions: atores de vrias organizaes pblicas e privadas que compartilham um projeto de poltica pblica e procuram realizar seus objetivos comuns ao longo do tempo (Sabatier, 1986). Este conceito, segundo Sabatier (1986), combina elementos dos modelos top-down e bottom-up: adota a unidade de anlise bottom-up com foco nos policy subsystem e nas estratgias dos atores, e a preocupao top-down com a forma com que os instrumentos legais constrangem o comportamento.

    A definio de advocacy coalition considera que h articulao entre atores inseridos em diferentes instituies. O projeto compartilhado para o setor corresponde referncia primria dos indivduos e se sobrepem aos conflitos administrativo-organizacionais ou poltico-partidrios. Alm disso, o conceito permite trabalhar com a participao de atores

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    externos s organizaes pblicas, fator geralmente negligenciado nas abordagens top-down e bottom-up. Isso permite introduzir na anlise o papel dos grupos sociais, suas relaes com os atores estatais e o impacto disso para a implementao.

    Uma dinmica que expressa esse tipo de conformao pde ser observada na atuao de integrantes do movimento pela reforma sanitria na implementao do Sistema nico de Sade. Esse movimento contou com a participao de atores de diferentes vinculaes organizacionais e poltico-partidrias, alguns deles vinculados s secretarias estaduais e municipais de sade. Esses atores, aps o perodo mais intenso de mobilizao, constituram gestes empenhadas em concretizar a reforma (Autor, 2006; Autor, 2010).

    Tal processo foi observado em estudo que comparou a implementao da poltica de regulao dos prestadores privados no sistema de sade em Belo Horizonte e Porto Alegre entre 1994 e 2008 (Autor, 2010). A existncia de atores implementadores alinhados ao projeto da poltica pblica foi relacionada, juntamente com outros elementos, ao sucesso do desenvolvimento da poltica em Belo Horizonte, de outro modo, a ausncia de dados que apontassem para a articulao da advocacy coalition com o governo foi relacionada s dificuldades encontradas em Porto Alegre.

    Em Belo Horizonte foi constatado a existncia de um grupo de profissionais mdicos, originalmente inseridos institucionalmente, como alunos ou professores, na Universidade Federal de Minas Gerais que atuava tambm na gesto pblica na rea da sade. Esses atores participavam do governo estadual e municipal e pertenciam a diferentes partidos polticos. Militantes do movimento da reforma sanitria compartilhavam seus projetos e, assim, estavam comprometidos com o SUS. Na Secretaria Municipal de Sade, muitos desses atores eram servidores pblicos que se alternavam entre cargos tcnicos na rea mdica ou postos gerenciais, dependendo da coalizo que estivesse no poder. Sua permanncia em diferentes cargos aliada a sua vinculao programtica imprimia em sua ao continuidade e coerncia. Isso gerou um impacto na trajetria da poltica uma vez que a torna relativamente autnoma das instabilidades e rupturas provenientes das disputas poltico-partidrias. Alm disso, a confluncia de preferncias entre atores em diferentes nveis de governo, mesmo que de partidos polticos diversos, se expressou em uma srie de iniciativas conjuntas com vistas a implementar a reforma no sistema de sade.

    Em Porto Alegre, embora houvesse uma defesa generalizada do SUS, isso fazia parte de discursos individuais sem referncia a um grupo mais amplo e heterogneo de atores cuja referncia primria fosse o compartilhamento de um projeto setorial. A discusso sobre a implementao do SUS estava dominada pelos conflitos ideolgicos das tendncias partidrias. A coalizo de defesa estava fragmentada em torno do projeto poltico-partidrio no sendo capaz de unificar as preferncias sob o projeto setorial.

    Disso destacamos a importncia da articulao das coalizes de defesa com o governo para a implementao de polticas pblicas. Isso remete importncia das ideias para a disposio dos atores locais em executar determinado projeto. No caso exposto, o esforo e comprometimento com a implementao decorreram do alinhamento de valores e preferncias. Considerando que os planos incidem em espaos j ocupados e, muitas vezes, superlotados de atividades e compromissos, nos quais os processos j se encontram estabelecidos, a definio de prioridades de ao e o empenho em execut-las ser influenciado pela disposio dos implementadores.

    Por fim, a inteno de expor esses elementos foi colaborar para a ampliao do ngulo de anlise de processos de implementao de polticas pblicas. Acreditamos que a trajetria e conformao desse processo so influenciadas pela interao entre as caractersticas e

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    contedo do plano, as estruturas e dinmicas dos espaos organizacionais e as ideias, valores e concepes de mundo dos atores implementadores. Isso pressupe que esses atores exercem sua discricionariedade, com base em sistemas de ideias especficos, que as normas organizacionais formais e informais constrangem e incentivam determinados comportamentos e que o plano um ponto de partida que ser interpretado e adaptado s circunstncias locais.

    Os elementos elencados permitem diversas possibilidades e formam um quadro amplo para a anlise. Porm, como todo plano, sua adequao depende da aplicao em situaes reais.

    Consideraes finais

    Nas primeiras pginas de Implementation, precisamente na pgina anterior ao sumrio, Pressman e Wildavsky (1984) apresentam o significado do verbo implementar: levar algo a cabo, realizar, cumprir, executar. Desde o princpio os autores esclarecem que o termo se refere a ao e perguntam: mas o que est sendo implementado? Deve haver algo prvio implementao, que estabelea o que deve ser alcanado, o que deve ser executado. O verbo implementar precisa ter como objeto uma policy (Pressman e Wildavsky, 1984: 21, traduo nossa) v. Com isso, marcam os termos de um debate que dura at hoje: o da interdependncia entre a formulao e a implementao.

    Apesar disso, e das reverncias a essa obra, os estudos sobre implementao ainda esto presos na dicotomia top-down/bottom-up e focados nos incentivos e constrangimentos materiais ao dos atores. Partimos da constatao emprica de que esse quadro analtico estreito e no permite acessar elementos essenciais para o entendimento dos processos de implementao. Nossas pesquisas em polticas sociais nos setores de sade e educao exigiram ampliar as variveis explicativas e explorar elementos como as ideias e concepes de mundo dos atores, suas estrategicidades, normatividades e intencionalidades prprias. Esses elementos formam o link entre as intenes contidas no plano e sua apropriao pelos contextos locais de ao.

    O quadro que buscamos desenvolver neste artigo considera que devemos trabalhar com a interao entre as ideias contidas no plano, as caractersticas e condies dos espaos de implementao e as concepes de mundo dos indivduos responsveis pela execuo da policy. Esperamos que ele contribua para o incremento do campo de estudos que instiga nossa curiosidade como pesquisadores.

    Referncias bibliogrficas

    v A verb like implement must have an object like policy (Pressman e Wildavsky, 1984: 21).

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