Língua portuguesa em Timor-Leste: o desenvolvimento da língua na perspetiva da descentralização

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O presente texto foi originalmente escrito em 2010, com o intuito de participar, como orador, no WorkshopInternacional para a Comemoração do 10º Aniversário do INAP, a convite do presidente do Instituto Nacionalda Administração Pública (INAP), que me pediu que apresentasse uma comunicação subordinada ao tema“desenvolvimento da língua portuguesa na perspetiva da descentralização”. Lamentavelmente, vi-me impedidode participar no referido evento, realizado a 26 de abril daquele ano, em Díli, pelo que tal comunicação nuncachegou a ser apresentada.

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Língua portuguesa em Timor-Leste: o desenvolvimento da língua na perspetiva

da descentralização.1

Nuno Carlos de Almeida2

0. Introdução

Com o processo de descentralização administrativa em marcha, em Timor-Leste, os governantes

começam a pensar em aliar a este processo uma estratégia de desenvolvimento da língua

portuguesa. É crucial a definição de tal estratégia, contudo, para se falar de uma estratégia de

desenvolvimento da língua portuguesa na perspetiva da descentralização (governativa e

administrativa) será essencial, em momento anterior, perceber e valorizar a ligação entre a

administração e o desenvolvimento da língua. Uma vez percebida a potencialidade do setor da

Administração Pública para a difusão da língua portuguesa pelo território timorense, qualquer

estratégia será então delineada de modo mais consciente, logo, terá mais hipóteses de alcançar

melhores resultados.

A realidade dos últimos anos mostra-nos que a Administração Pública não tem sido

verdadeiramente assumida como um motor da dinâmica de reintrodução da língua portuguesa em

Timor-Leste. Para que se perceba esta afirmação, compare-se o relevo que tem sido dado à

questão da língua no setor educativo com o que se tem passado no setor administrativo (em

termos de cursos de formação de língua portuguesa, por exemplo).

Nas próximas linhas pretende-se, mais do que refletir sobre uma estratégia, despertar a consciência

dos leitores para a relevância do setor administrativo relativamente ao desenvolvimento da língua

portuguesa em Timor-Leste. Nesse sentido, será apresentada uma muito resumida perspetiva

histórica da presença da língua portuguesa em Timor-Leste e da sua relação com a estrutura

1 O presente texto foi originalmente escrito em 2010, com o intuito de participar, como orador, no Workshop

Internacional para a Comemoração do 10º Aniversário do INAP, a convite do presidente do Instituto Nacional

da Administração Pública (INAP), que me pediu que apresentasse uma comunicação subordinada ao tema “desenvolvimento da língua portuguesa na perspetiva da descentralização”. Lamentavelmente, vi-me impedido de participar no referido evento, realizado a 26 de abril daquele ano, em Díli, pelo que tal comunicação nunca chegou a ser apresentada. Posteriormente, estas reflexões, com as devidas alterações, foram incluídas em Almeida, Nuno C. (2011), Língua Portuguesa em Timor-Leste: Ensino e Cidadania, Lisboa: Lidel – Edições

Técnicas, Lda. 2 Formador/cooperante, no âmbito do Projeto de Consolidação da Língua Portuguesa em Timor-Leste – IPAD

(2006-2010). Formador de língua portuguesa no INAP entre fevereiro de 2009 e março de 2010.

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administrativa. Será também destacada a importância da Administração Pública no que se refere à

difusão e reforço da língua portuguesa a nível nacional e a nível regional, considerando também já

a descentralização. Por último, serão apontadas algumas implicações das questões linguísticas (não

só da língua portuguesa) no processo de descentralização administrativa.

1. Perspetiva histórica

Para se compreender a presença da língua portuguesa em Timor-Leste, é necessário recuar ao

início do séc. XVI, altura em que os primeiros portugueses chegaram a esta zona do globo. Tendo

chegado ao Oriente, os portugueses iniciaram uma série de contactos, a princípio, com fins

exclusivamente comerciais, com os reinos mais recetivos. Foi a vontade de estabelecer relações

comerciais e de evangelizar que foi reforçando o contacto dos portugueses com as muitas ilhas

desta região, dando-lhe uma certa regularidade, da qual nasceu a introdução da sua língua nestas

paragens.

Com o tempo, onde a presença portuguesa se traduziu pelo estabelecimento mais ou menos efetivo

de uma soberania portuguesa, o português impôs-se como língua de administração3 – foi, entre

outros, o caso de Timor-Leste. Em 1702, quando chegou a Timor-Leste o primeiro administrador

português, a língua portuguesa passou a ter um significado político, assumindo-se como língua de

contacto com as elites administrativas, o que terá contribuído para a sua difusão, contudo, o poder

administrativo era centralizado. Entre finais do séc. XIX e princípios do séc. XX, a administração

passou a estar presente também nas zonas mais distantes, fora da capital. Com esta

descentralização, foram retirados alguns poderes aos régulos e passou a existir uma administração

burocrática de tipo colonial, espalhada pelo território. Os quadros da Função Pública cresceram e

começaram então a integrar timorenses letrados, que tinham de conhecer a língua portuguesa.

Além das motivações comerciais, a Igreja teve também um papel importante em relação à

introdução da língua portuguesa em Timor. De facto, até foi a Igreja a primeira responsável pela

construção de algumas escolas no território, visto que a administração portuguesa apenas

construíu a primeira escola oficial em 1915.4 Observando esta data da criação da primeira escola

oficial e tendo em mente o parágrafo anterior, podemos afirmar que, na verdade, o sistema

3 THOMAZ, Luís Filipe F. R. (2002), Babel Lorosa’e – o problema linguístico de Timor Leste, Cadernos

Camões, Instituto Camões, Lisboa, p. 132. 4 Cf. THOMAZ, Luís Filipe F. R. (2002), op. cit., p. 138.

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administrativo serviu para impulsionar o desenvolvimento da língua portuguesa em Timor-Leste

ainda antes da existência de um sistema educativo oficial que pudesse desempenhar esse papel.

A par da presença física da língua no território através da administração, há outro aspeto

diretamente relacionado que importa salientar. Há quem defenda que os fatores mais decisivos

para a eclosão de uma identidade nacional são as práticas administrativas e culturais adotadas

continuamente durante um período longo, associadas a circuitos económicos polarizados por

cidades que exercem durante o mesmo período uma função diretiva nos domínios administrativo,

cultural e económico.5 Significa isto que, no caso de Timor-Leste, a administração portuguesa, que

efetivamente exerceu esse papel desde o princípio do século XVIII até 1975, foi decisiva para a

criação de uma identidade nacional participada pela língua portuguesa.

Este olhar rápido sobre o passado de Timor-Leste é, então, suficiente para verificar que a

Administração Pública teve ao longo dos tempos uma relevância incontornável para a introdução e

permanência da língua portuguesa em Timor-Leste, acabando inclusivamente por ligar esta língua à

formação de uma identidade nacional, e que aquilo a que podemos apelidar de primeira

descentralização administrativa ajudou a difundir esta língua e esta identidade por todo o

território.

2. A importância da Administração Pública para o desenvolvimento da LP

Olhar para o passado é importante para que se possa analisar o presente e projetar o futuro. Nessa

medida, pode afirmar-se que, a julgar pelo que nos dizem os factos históricos, a administração

continua e continuará a ter uma importância decisiva para o desenvolvimento e difusão da língua.

Da mesma forma que, no passado, a administração durante um período de tempo alargado

contribuíu para a formação de uma identidade nacional, no presente, esse processo continua

inevitavelmente. Mais uma vez, a língua portuguesa irá participar na construção dessa identidade,

desta vez a par com o tétum, também língua de administração, o que dará possivelmente ainda

mais força à língua portuguesa, já que é fator de unidade nacional a par com uma língua local e não

somente como uma língua do outro, à semelhança do que aconteceu no passado.

5 MATTOSO, José (2001), «Sobre a Identidade de Timor Lorosa’e», in Camões – Revista de Letras e Culturas

Lusófonas, nº 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Camões, p. 8.

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De que o sistema educativo será a chave para o desenvolvimento da língua portuguesa em Timor-

Leste no futuro ninguém duvida, sendo, por isso, desde a independência, a área mais privilegiada

no que se refere à formação em língua portuguesa, contando com a grande maioria dos recursos

técnicos disponibilizados pelos parceiros de Timor-Leste para o ensino da língua. É por isso também

certo que, ao pensarmos numa estratégia de desenvolvimento da língua portuguesa em Timor-

Leste, teremos obrigatoriamente de nos centrar no sistema educativo – esse sim fará a verdadeira

descentralização no que se refere à língua portuguesa. No entanto, o sistema educativo, por si só,

tende a preparar os cidadãos do futuro, não os do presente (sobretudo em Timor-Leste) e é apenas

à população estudantil que proporciona um contacto direto com a língua portuguesa.

Relativamente à restante população, fora do sistema educativo, não podemos ignorar o papel que a

administração tem no desenvolvimento, difusão e fixação da língua portuguesa. Para mais, parte

dos cidadãos que, neste momento, não são abrangidos pelo atual sistema educativo encontra-se na

Administração Pública. Tendo em conta que nunca acontecerá uma mudança abrupta dos quadros

administrativos, o sistema administrativo terá necessariamente de se preparar para começar

brevemente a absorver os mais jovens, que vão terminando o percurso formativo em língua

portuguesa. Isto é, tem de estar preparado para receber jovens funcionários aptos a exercer a sua

atividade em língua portuguesa. Ora, se não houver esta preparação dos atuais agentes

administrativos, acontecerá um choque entre as competências linguísticas dadas pelo percurso

formativo dos mais jovens e aquelas exigidas pelo sistema administrativo. Ressalve-se, todavia, que

existirá sempre um ponto de contacto entre as duas gerações – o tétum, que é a língua

amplamente usada na Administração Pública. Contudo, a presença e o uso da língua portuguesa

tenderá a ser sempre limitada e a força que a formação dos mais jovens lhe daria tenderá a

desvanecer-se.

Atente-se agora no facto de que ser Língua Oficial confere à língua portuguesa a função de língua

de administração. Sendo a Administração Pública o meio privilegiado de relacionamento entre o

Estado e os cidadãos, a língua portuguesa passa também a ser uma língua de comunicação entre o

Estado e os cidadãos e vice-versa. Isto, só por si, confere uma importância tremenda à língua, pois

ela passa a ser um meio para o exercício da cidadania democrática, a principal conquista recente

dos timorenses. Isto é certamente uma motivação forte para as pessoas quererem aprender a

língua portuguesa. Mas, mais do que isso, atribui à língua portuguesa uma função, o que é de

extrema importância já que os timorenses contactam com diversas línguas nacionais, com funções

também diversas (para falar com a família, para falar com os amigos, para fazer compras, etc.). Ora,

se a língua não lhes servir para nada, eles nunca irão sentir necessidade de a usar nem, por isso, de

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a aprender. É por este motivo que a Administração Pública deve estar preparada para usar a língua

portuguesa neste papel. Isso contribuirá para que esta língua possa ser incluída com sucesso no

complexo mosaico linguístico de Timor-Leste, ocupando um espaço que outrora fora seu e que

entretanto foi deixado vago pelo gradual desaparecimento da língua indonésia.6

Além disto, mesmo sem ter dados concretos, pode arriscar-se dizer que o Estado é ainda o principal

empregador em Timor-Leste, tendo o setor da Administração Pública grande peso nesta vertente.

Assim, se este setor precisar de usar a língua portuguesa, o acesso ao mercado de trabalho também

passará pelo acesso à língua. Uma vez que a perspetiva de uma vida melhor através de um

emprego que garanta melhores condições de vida é, para o público adulto, uma forte motivação

para a aprendizagem, tal motivação poderá ser canalizada para a aprendizagem da língua

portuguesa.

Depois, é fundamental ter a consciência de que cada ato administrativo envolve necessariamente

um ou vários atos linguísticos, isto é, para realizar um único ato administrativo, usamos as palavras

de uma língua desde o processo de transmissão de informação, passando por uma eventual

discussão ou a comunicação de uma decisão, terminando quase sempre com o registo escrito desse

mesmo ato administrativo. Quantos atos administrativos são realizados por dia? Ora, se a língua

portuguesa é língua de administração em Timor-Leste, isto significa que, em boa verdade, o setor

administrativo é uma verdadeira fábrica de língua portuguesa, visto que está constantemente a

produzir atos linguísticos, que resultam em milhares de documentos, documentos esses que

conservam a língua e, em muitos casos, a fazem entrar na casa das pessoas ou passear nas carteiras

e nos bolsos de todos os cidadãos timorenses.

Dado que a descentralização vai trazer o governo mais perto da população7, são mais os atos

administrativos que passam a ser feitos a nível local. Logo, na perspetiva da língua portuguesa, há

uma grande vantagem que é justamente a aproximação dos atos linguísticos administrativos em

6 Sobre o panorama linguístico de Timor-Leste, cf.: COSTA, Luís (2005), «Línguas de Timor», in Dicionário

Temático da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, pp. 614-615; ESPERANÇA, João Paulo T. (2001), Estudos de

Linguística Timorense, Aveiro, SUL – Associação de Cooperação para o Desenvolvimento; CARVALHO,

Maria José Albarran de (2001), «Panorama Linguístico de Timor», in Camões – Revista de Letras e Culturas

Lusófonas, nº 14 Jul-Set 2001, Lisboa, Instituto Camões; HULL, Geoffrey (1998), «The Languages of Timor 1772-1997: a Literature Review» in Studies in Languages and Cultures of East Timor, Sydney, University of Western Sydney Macarthur. 7 CARRASCALÃO, Manuel [Vice Primeiro-Ministro para a Administração Pública] (2009), Boletim Mensal

sobre Governação Local, Volume II, Edição IX, Díli, Ministério da Administração Estatal e Ordenamento do Território, p. 3.

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relação às comunidades locais. Sem dúvida, em Timor-Leste, o processo de descentralização

conduzirá a uma aproximação da língua portuguesa aos cidadãos e vice-versa.

3. Questões práticas sobre a língua no processo de descentralização

No passado, a administração em língua portuguesa era feita pelos portugueses, sem grandes

complicações em relação à língua. Agora, a administração é feita pelos timorenses. Se a LP é língua

oficial e, por isso, de administração, são os timorenses a usá-la para administrar o seu país. É sabido

que isto representa muitas dificuldades para muitos dos agentes administrativos, que

desconhecem ainda esta língua. Então, terá de haver uma formação linguística continuada. Com a

descentralização, vai ser necessário aumentar exponencialmente a aposta na formação em língua

portuguesa a nível local. Certamente, haverá a necessidade de criar uma secção ou um

departamento em cada autarquia para se encarregar das questões da língua e de proceder, a nível

central, à formação especializada de formadores de língua portuguesa. Ao dizer isto, pensa-se de

imediato na estratégia de ensino da língua.

Sobre estratégia de ensino da língua portuguesa na perspetiva da Administração Pública, haveria

muito a dizer em termos de abordagens metodológicas mais ou menos adequadas, o que não é

relevante para estas breves linhas de reflexão. O que apenas se pretende aqui salientar é que o

Estado timorense tem de assumir um papel mais interventivo no ensino do português aos

funcionários e agentes da Administração Pública. Isto porque grande parte da formação de língua

portuguesa neste setor tem estado a cargo de agentes estrangeiros, particularmente, de

professores portugueses. Deve dizer-se que é, para os portugueses em geral, um grande privilégio

fazer parte deste processo inerente ao desenvolvimento de Timor-Leste. Contudo, para eles, a

questão da língua é uma questão que nunca levantou problemas, pois só têm uma. Usam a língua

portuguesa de manhã à noite, todos os dias, em qualquer situação – a mesma língua é usada na

escola, na igreja, na comunicação social, na vida familiar, nas conversas com os amigos, na

administração, enfim, em qualquer momento, qualquer que seja o contexto.

Em Timor-Leste, a situação linguística é muito diferente, muito mais complexa: existem muitas

línguas e as pessoas estão habituadas a usar diferentes línguas em diferentes momentos e em

diferentes situações na sua vida social e profissional. Cada língua tem uma determinada

funcionalidade. É precisamente a atribuição de determinada funcionalidade a cada língua que tem

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permitido uma situação não conflitual entre as diversas línguas em Timor-Leste.8 Por isso, por uma

questão de rentabilidade do processo de ensino-aprendizagem e também para evitar minar a

situação de saudável convívio das línguas que coexistem em Timor, o ensino da língua portuguesa

aos agentes da Administração Pública deve ser feito tendo em mente o tipo de funcionalidade que

estes aprendentes irão atribuir à língua – a língua para realizar atos administrativos. É aqui que os

agentes nacionais têm de intervir mais: é preciso compreender bem o que se espera da língua

portuguesa na Administração Pública, isto é, que tipo de tarefas linguísticas se pretende que sejam

realizadas com recurso à língua portuguesa? Ninguém melhor do que os próprios agentes

administrativos timorenses para tornar isto claro.

Só a partir daqui, será possível traçar uma estratégia de formação que responda às necessidades

reais dos elementos da Administração. Partindo das tarefas linguísticas que forem atribuídas à

língua portuguesa na Administração Pública, é possível perceber de que competências linguísticas e

comunicativas necessitarão os agentes administrativos, construindo-se então a base de um plano

formativo adequado. Pensando na descentralização: a nível local, existirão atos administrativos

diferentes dos que serão realizados a nível central? Se sim, é necessário que isso seja tido em conta

na delineação de tal estratégia de formação.

Claro que, imediatamente, se coloca outra questão: o português não é a única língua oficial. Por

isso, é preciso definir concretamente o tipo de relação que estas duas línguas deverão ter na

Administração. Todos os atos administrativos devem ser realizados nas duas línguas ou cada língua

deverá ter uma função específica dentro da Administração Pública? Caso seja definido que as duas

línguas devem ter o mesmo peso e a mesma função, de imediato se pensa, por exemplo, na

necessidade da criação de documentos bilingues. Caso se pretenda atribuir papéis diferentes às

duas línguas oficiais, é preciso definir então que tipo de atos serão realizados em tétum e que atos

serão realizados em português.

Enquanto a administração é muito centralizada, a vertente da língua (na administração) também se

mantém centralizada. Com a descentralização do poder governativo e administrativo, irá acontecer

também, como já foi dito, uma descentralização da língua portuguesa. Nesse momento, esta língua

8 Segundo FISHMAN, no interior de uma sociedade, a utilização de diversos sistemas linguísticos separados e a conservação da sua estabilidade dependem dos serviços prestados por cada um deles, que diferem das funções atribuídas a outros. Será, então, devido ao facto de as atribuições funcionais serem diferentes, que esses diferentes códigos linguísticos terão todas as probabilidades de estar em situação não conflitual, portanto,

estável, sem risco de acontecer o desaparecimento de uma ou várias línguas em detrimento de outra(s). (Cf. FISHMAN, Joshua A. (1971), Sociolinguistique, Paris, Nathan, pp. 87-88).

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irá aproximar-se ainda mais das outras línguas de Timor-Leste, as línguas locais. Tendo em mente a

Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, nomeadamente os números 1 e 2 do artigo 17º,9 e o

recente Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa,

também assinado por Timor-Leste no passado dia 31 de Março, concretamente o ponto 5.1 da

secção II,10 o processo de descentralização poderá contribuir para lançar com mais força a questão

das línguas locais. Será um momento muito oportuno para que o Estado dê início ao processo

efetivo de valorização destas línguas, no qual a língua portuguesa também marcaria presença.

Poder-se-á pensar na criação / emissão de documentos bilingues que incluam a língua materna da

comunidade linguística dominante em determinada região / autarquia? Isso seria não só positivo

para as línguas nacionais, que veriam o seu estudo e desenvolvimento reforçados, como também

para a própria língua portuguesa, que passaria a entrar nos lares de muitos timorenses, devido à

relação destes com o Estado, já não como uma completa estranha, mas acompanhada pela língua

materna de cada um, o que lhe daria uma maior profundidade ao tipo de relação estabelecida

entre a língua portuguesa e todos os cidadãos timorenses.

4. Em suma

Em termos históricos, a administração teve um papel de inequívoca relevância para o

desenvolvimento e fixação da língua portuguesa em Timor-Leste, verificando-se inclusivamente

que, ao ter havido um movimento de descentralização administrativa, aconteceu também uma

dinâmica de disseminação da língua pelo território.

No presente, o facto de ser língua de administração, confere uma função prática à língua

portuguesa, permitindo que as pessoas tenham contacto com esta língua na sua relação com o

Estado. Esta utilização da língua portuguesa permite-lhe a ocupação pacífica de um espaço próprio

no complexo mosaico linguístico timorense, beneficiando ainda do facto de ficar associada ao

exercício da democracia, que os timorenses tanto valorizam, tendo em conta o que sofreram para a

conseguir.

9 Artigo 17.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor e a obter na sua língua toda a documentação oficial,

qualquer que seja o suporte (papel, informático, ou outro), nas relações respeitantes ao território de que essa

língua é própria. 2. Os poderes públicos devem dispor de formulários, impressos e modelos, em papel, suporte

informático, ou outro, nas línguas territoriais, e colocá-los à disposição do público nos serviços respeitantes

aos territórios de que cada língua é própria. 10 5.1. Considerar o estudo, a preservação e o ensino das línguas nacionais de cada Estado.

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Para além disso, em termos práticos, Administração Pública é responsável pelo aumento da

presença física da língua portuguesa, através da emissão de inúmeros documentos nesta língua. O

processo de descentralização levará a um reforço da proximidade entre os timorenses e a língua

portuguesa. Nesse momento, caso haja uma política inclusiva relativamente às línguas nacionais

nos documentos emitidos pelas autarquias, a língua portuguesa terá a oportunidade de entrar nas

casas dos timorenses de mãos dadas com a sua língua materna.

Uma vez percebida a relevância da Administração Pública para a questão da língua, ao definir uma

estratégia de desenvolvimento da língua portuguesa na perspetiva da descentralização, deverão ser

tidas em conta todas estas considerações, a par de outras que se deseja que vão aparecendo no

futuro, fruto de investigação e de conhecimento efetivo do terreno. Nesta estratégia, o Estado

timorense terá de ter um posicionamento bastante mais interventivo do que até aqui, pois, melhor

do que ninguém, tem a capacidade de interpretar o papel da língua portuguesa em Timor-Leste,

aspeto considerado central para a planificação de qualquer processo que envolva esta língua neste

país.