LINGUAGEM, EPISTEMOLOGIA, CONTEXTO E SUJEITO E ENSINO DE FÍSICA/EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: TRAJETOS

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XIV Encontro de Pesquisa em Ensino de Física Maresias 2012 1 Referência: SILVA, Henrique C. Linguagem, epistemologia, contexto e sujeito e ensino de física/educação em ciências: trajetos. In: CAMARGO, Sérgio et al. (orgs.). Controvérsias na pesquisa em ensino de física. São Paulo: Livraria da Física, 2014. ISBN: 978-85-7861-293-1 LINGUAGEM, EPISTEMOLOGIA, CONTEXTO E SUJEITO E ENSINO DE FÍSICA/EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: TRAJETOS LANGUAGE, EPISTEMOLOGY, CONTEXT AND SUBJECT AND PHYSICS EDUCATION/SCIENCE EDUCATION: PATHS Henrique César da Silva Centro de Ciências da Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica UFSC, [email protected] Considerando a temática geral do evento, a da controvérsia, minha intenção foi buscar contribuir no sentido de evidenciar a existência de diferenças, de pensar a controvérsia como diferença, convicto de que os mais de 40 anos de pesquisas na área de educação em ciências/ensino de física produziram uma diversidade de olhares, perspectivas, possibilidades que nos impele hoje muito mais a considerar educações em ciências 1 , do que buscar um modelo hegemônico, totalizante que definiria uma única concepção. Como o tema é linguagem, optei por tomar a própria mesa redonda como uma situação de linguagem, ou seja, como objeto de um pensar sobre a linguagem que tem suas especificidades, trajetos na área, trajetos a um dos quais meus trabalhos têm se filiado. Destaco dessa situação um acontecimento discursivo, ao qual a produção do meu texto esteve necessariamente ligada, trata-se do enunciado que nos foi proposto como base para pensar sobre a temática da mesa. Eis o enunciado: Linguagem e suas estruturas lógico-gramaticais como base dos raciocínios lógicos. Conflito cognitivo no Ensino de Física, elemento central da estratégia de construção do conhecimento? Eis a situação de linguagem: uma mesa redonda de um evento acadêmico de pesquisa que tinha como título o enunciado Linguagem, cognição e leitura na pesquisa em ensino de física: concepções e controvérsias, relacionado intertextualmente com o tema geral do evento, o XIV EPEF, assim enunciado “Controvérsia na pesquisa em Ensino de Física”. O nosso convite foi acompanhado ainda de algumas recomendações. Destaquei em itálico ao longo do texto algumas categorias que farão funcionar essa leitura que apresento do enunciado em sua situação concreta. Assim 1 Ou ensinos de física.

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Capítulo do Livro do SNEF 2014

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  • XIV Encontro de Pesquisa em Ensino de Fsica Maresias 2012 1

    Referncia: SILVA, Henrique C. Linguagem, epistemologia, contexto e sujeito e ensino de fsica/educao em cincias: trajetos. In: CAMARGO, Srgio et al. (orgs.). Controvrsias na pesquisa em ensino de fsica. So Paulo: Livraria da Fsica, 2014. ISBN: 978-85-7861-293-1

    LINGUAGEM, EPISTEMOLOGIA, CONTEXTO E SUJEITO E ENSINO DE FSICA/EDUCAO EM CINCIAS: TRAJETOS

    LANGUAGE, EPISTEMOLOGY, CONTEXT AND SUBJECT AND PHYSICS EDUCATION/SCIENCE EDUCATION: PATHS

    Henrique Csar da Silva

    Centro de Cincias da Educao e Programa de Ps-Graduao em Educao Cientfica e Tecnolgica

    UFSC, [email protected]

    Considerando a temtica geral do evento, a da controvrsia, minha inteno foi buscar contribuir no sentido de evidenciar a existncia de diferenas, de pensar a controvrsia como diferena, convicto de que os mais de 40 anos de pesquisas na rea de educao em cincias/ensino de fsica produziram uma diversidade de olhares, perspectivas, possibilidades que nos impele hoje muito mais a considerar educaes em cincias1, do que buscar um modelo hegemnico, totalizante que definiria uma nica concepo.

    Como o tema linguagem, optei por tomar a prpria mesa redonda como uma situao de linguagem, ou seja, como objeto de um pensar sobre a linguagem que tem suas especificidades, trajetos na rea, trajetos a um dos quais meus trabalhos tm se filiado. Destaco dessa situao um acontecimento discursivo, ao qual a produo do meu texto esteve necessariamente ligada, trata-se do enunciado que nos foi proposto como base para pensar sobre a temtica da mesa.

    Eis o enunciado:

    Linguagem e suas estruturas lgico-gramaticais como base dos raciocnios lgicos.

    Conflito cognitivo no Ensino de Fsica, elemento central da estratgia de construo do conhecimento?

    Eis a situao de linguagem: uma mesa redonda de um evento acadmico de pesquisa que tinha como ttulo o enunciado Linguagem, cognio e leitura na pesquisa em ensino de fsica: concepes e controvrsias, relacionado intertextualmente com o tema geral do evento, o XIV EPEF, assim enunciado Controvrsia na pesquisa em Ensino de Fsica. O nosso convite foi acompanhado ainda de algumas recomendaes.

    Destaquei em itlico ao longo do texto algumas categorias que faro funcionar essa leitura que apresento do enunciado em sua situao concreta. Assim

    1 Ou ensinos de fsica.

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    as deixo apontadas, com alguma referncia, suprindo em parte a deficincia de no poder explic-las. Essa leitura nos mostrar uma viso da relao da rea da educao em cincias/ensino de fsica com a questo da linguagem.

    Trata-se de uma viso que, panormica, ocultar detalhes, passar por cima de diferenciaes mais sutis. O resultado disso, antecipo, a ideia de que nossa rea tem se apropriado muito pouco de alguns avanos que a questo da linguagem conheceu no sculo XX. Avanos que de certa maneira esto implicados numa srie de trajetrias muito diferentes: a que vai do positivismo lgico vira lingustica, do primeiro ao segundo Wittgenstein contra ele mesmo e contra Carnap; a que vai de uma filosofia centrada no sujeito a uma filosofia da comunicao baseada no vis lingustico em Habermas2 ou uma arqueogenealogia baseada num apriori histrico de Foucault; a de uma filosofia da linguagem logicista (como a derivada de Frege) teoria do discurso em Pcheux3; de uma epistemologia centrada no sujeito do conhecimento para uma epistemologia social de Fleck, de Kuhn, e todos um amplo leque de autores, que, nas ltimas quatro dcadas, no mbito dos estudos da cincia, de relativistas assumidos a crticos do relativismo, que tiveram necessariamente que incluir outra concepo de linguagem, talvez consciente em Kuhn4 e no consciente, mas facilmente detectvel em Fleck5, na oposio de ambos ao positivismo lgico.

    Um modo de conceber a linguagem

    O modo como meu texto participa dessa controvrsia marcado pela relao com esse enunciado-objeto. Essa relao se d em duas escalas. No contexto imediato, pela solicitao explcita para tom-lo como ponto de partida, e, num contexto mais amplo, marcado pelo fato de que tal proposio que me foi colocada para produzir minha fala na mesa implica numa filiao de sentidos qual os trabalhos que tenho feito, e inmeros trabalhos na rea, no fazem parte. Portanto, se a proposta teve a inteno de ser polmica numa direo, ou seja, a de responder a pergunta dentro da concepo que ela representa a trajetria, a partir mesmo de certo lugar em que possvel formul-la, ao estender o convite participao a mim, o fato de eu falar de outro lugar implicou num desvio para a polemizao em outra direo.

    Aqui j deixo uma pista sobre um dos modos possveis de se conceber a linguagem e o discurso. Uma concepo em que a inteno de quem fala importa menos porque o processo objeto de anlise, enquanto processo discursivo tem suas regras, sua ordem annima, ordem e regras que vo alm do controle consciente do sujeito. Na verdade, regras annimas de um processo sem sujeito e que constri as prprias subjetividades pelos efeitos de identificao (Pcheux, 1995).

    2 Cf. Habermas (2007).

    3 Num de seus principais livros, Semntica e Discurso (1995), aparece sua brilhante argumentao contra o

    logicismo e o subjetivismo, em que parte da importante noo de pressuposio de Frege para desloc-la para a

    noo de pr-construdo e de efeito de anterioridade, demonstrando que os mecanismos lgicos no do conta de

    explicar o funcionamento da linguagem. Embora a linguagem tenha como base mecanismos lingusticos, e, a

    eles possam ser associados mecanismos lgicos, ela no pode ser reduzida a esse funcionamento. Trata-se de

    encontrar o impensado do pensamento no sujeito, deslocando tambm a noo de subjetividade como fonte da linguagem. Cf. Maldidier (2003) e Gadet, Haroche e Pcheux (2011 [1982]). 4 Cf. Assis (1993) sobre a relao entre Kuhn e o segundo Wittgenstein.

    5 Cf. Cond (2012) sobre a relao entre Fleck e Wittgentein; e Otte (2012) sobre Fleck e W. Benjamin.

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    Ou seja, a polmica no se instaura apenas porque a comisso desejou que assim o fosse feito e porque cada um de ns da mesa tenha se esforado para cumprir a contento essa proposta. Mas porque h uma historicidade que nos constitui diferentemente, e possibilidades historicamente construdas de dizer diferentemente. E no apenas porque j h uma incorporao dessa diversidade na rea, h vrias dcadas, mas porque o campo da linguagem muito mais vasto do o que o do trajeto ao qual pertence o enunciado-objeto, desse campo em sua diversidade, que se podem produzir essas diferentes possibilidades no campo de educao em cincias/ensino de fsica.

    O enunciado-objeto de meu texto um enunciado composto por duas frases, uma afirmativa e uma interrogativa. Esse enunciado tem toda uma memria dentro do campo da educao em cincias/ensino de fsica, poderia ser facilmente identificado como um membro de uma rede de outros enunciados escritos em diversos artigos, pronunciamentos em outros eventos, que o repetiriam com inmeras outras formulaes, evidenciando uma regularidade e ao mesmo tempo uma disperso.6 Mas, neste contexto local/imediato ele, embora repetido, emerge, dentro do meu texto, na figura e no processo do deslize, na figura do descontrole parcial, na figura do equvoco, no enquanto erro, mas enquanto possibilidade provavelmente no prevista, enquanto fenmeno que se d pela inscrio da linguagem na histria, no espao heterogneo de memrias, filiaes. Entre os membros da mesa, chegamos a trocar mensagens discutindo diferentes interpretaes possveis para esse enunciado, alm das diferenas produzidas pelas nossas diferentes posies, a partir de cada uma delas, tambm o enunciado em sua formulao lingustica envolvia a possibilidade do deslize, possibilidades de diferentes leituras, no se fechava totalmente.

    Eis outra pista sobre um dos modos possveis de se conceber a linguagem e o discurso: o fato de que a linguagem sempre aberta7 (mesmo na cincia!8), o que implica, consequentemente, que seu processo est sempre associado a formas de controle, porque no seria linguagem se pudesse significar qualquer coisa para qualquer um. No entanto, nenhum controle jamais ser total, porque jamais dominar totalmente a abertura da linguagem, mas essa jamais prescindir de mecanismos de controle, ou no funcionar como linguagem.

    E a trago duas citaes que indicializam a filiao dessa concepo de linguagem:

    Suponho que em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de processos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade. (Foucault, 2004, p. 8-9)

    A condio da linguagem a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos esto completos, j feitos, constitudos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relao, da falta, do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do simblico, pois a falta tambm o lugar do possvel. Entretanto, no porque o processo de significao

    6 Cf. Foucault (2005).

    7 Cf. Orlandi (1996).

    8 Cf. a esse respeito os interessantes insight de Jean-Marc Levy-Leblond (2009) no livro A velocidade da

    sombra.

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    aberto que no seja regido, administrado. Ao contrrio, pela sua abertura que ele tambm est sujeito a determinao, institucionalizao, estabilizao e cristalizao. Esta ainda uma maneira de referir a linguagem aos limites moventes e tensos entre a parfrase e a polissemia. (Orlandi, 1999, p. 52)

    Mecanismos que envolvem as linguagens, suas diferentes materialidades, mas que apenas a linguagem no basta, preciso pressupor seu funcionamento num contexto. a relao linguagem e contexto que faz o processo ter essa dinmica de controle/abertura.

    Essa seria uma caracterstica de todo discurso. Isso no significa que todo discurso seja igual, que cincia e literatura, por exemplo, sejam a mesma coisa. So os diferentes modos pelos quais se estabelecem as diferentes relaes entre controle/abertura no funcionamento da linguagem, que caracterizam diferentes discursos. Cincia e literatura so discursos que no tm o mesmo compromisso com a verdade9. O que, entre outros aspectos, implica em condies de controle especficas e diferentes para cada modo de produo da linguagem.

    Mas, se a cincia em geral, e particularmente a fsica, possuem sentidos to precisos apesar de se valer inescapavelmente da linguagem (mesmo que na fsica haja a linguagem matemtica) pode-se supor que precisou desenvolver mecanismos de controle muito eficientes.10

    A fsica um discurso em que a linguagem matemtica implica em relaes de controle/abertura bastante singulares em relao a outros discursos, ao mesmo que tempo em que certos aspectos dessa relao controle/abertura esto associados no matemtica em si, mas a tradies de seu uso no ensino e na prtica profissional.

    Considerar a cincia, e, particularmente a fsica, do ponto de vista discursivo, no significa, portanto, aderir s tentativas absurdas de homogeneizao que certos discursos sobre cincia visam produzir11 como se surtisse algum efeito alm de confuso intelectual atacar os poderes da cincia por esse vis.

    Como discurso cuja caracterstica a pretenso de verdade (mesmo que produza tambm falsidade), pensar esse discurso no pode prescindir da epistemologia, assim como outros discursos exigiro outros aportes tericos para dar conta de seu funcionamento.

    Eis uma questo, seno polmica, bastante incmoda para ns, aceitar que lidamos com o descontrole como aspecto constitutivo tambm da cincia. Mas

    9 Segundo Canguilhem, a cincia o lugar especfico, prprio da verdade. Por outro lado, relacionar

    intrinsecamente cincia e verdade no significa dizer que todo discurso cientfico seja necessariamente

    verdadeiro (Machado, 2009, p. 18). (...) antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no verdadeiro. (Foucault, 2004, p. 34). 10

    Minha hiptese de que o apagamento das revolues cientficas pelo de uso de manuais reescritos a cada

    revoluo, a prtica de resoluo de exemplares, entre outros aspectos apontados por Thomas Kuhn, podem ser

    considerados alguns desses mecanismos de controle dos sentidos implicados na formao de novos cientistas, na

    manuteno dos paradigmas e das prprias revolues. Notemos que em Kuhn so mecanismos que tm essa

    dupla natureza: so sociais e so de linguagem. 11

    Alguns muito apenas supostos e carecendo de qualquer base emprica. O trabalho de Foucault um bom

    exemplo sobre como as relaes de poder podem ser apontadas sem a necessidade de pregar a destruio da

    prpria cincia.

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    reforo que a aceitao desse aspecto no pode prescindir da considerao do controle. E, portanto, no significa descambar para o relativismo.

    Portanto, retomando, dentre as vrias filiaes e sentidos sobre linguagem na nossa rea, o enunciado da mesa pode ter uma leitura interna prpria filiao a que pertence ou externa a ela. nesta filiao externa a esse enunciado que me reconheo.

    Concepes de linguagem em tenso, diferenas, diferentes trajetos e filiaes

    Para as duas frases que compem esse enunciado texto-proposta, uma afirmativa e uma interrogativa, podem ser estabelecidas diferentes relaes de sentido. Pode-se supor que haja uma relao de complementaridade entre ambos. Pode-se supor que se trata de duas formulaes independentes... Eis a abertura do simblico. Mas no se pode interpret-lo de qualquer maneira. Em relao s falas produzidas na mesa, tambm poderia haver um distanciamento. Algum membro da mesa poderia ter desviado do enunciado e proposto outra abordagem ainda que dentro da temtica geral da mesa. A essa possibilidade a comisso se antecipou, buscando controlar, agora sim, conscientemente, mas sob o imaginrio de seu papel, essa possvel e no desejada disperso e nos solicitou, e mais de uma vez, que nos mantivssemos fixados na proposta da mesa, ou seja, a esse texto-proposta. Trata-se de outra condio de controle, sem a qual a mesa no funcionaria. Se o texto tem caractersticas materiais que remetem linguagem, ele funciona num contexto extra-lingustico que tem suas caractersticas locais, imediatas como tambm histrico-sociais mais amplas. Uma mesa, a temtica geral de um evento, a intencionalidade da comisso, mas ao mesmo tempo a academia, uma comunidade de pesquisa, a historicidade dos eventos...

    Mas esse texto (enunciado-objeto), como todo texto, tem tambm uma memria, e diria melhor, a leitura desse texto se faz a partir de diferentes memrias. Ele certamente nos lembra de outros textos, nos lembra de outros sentidos e at mesmo autores. Neste caso, por se tratar de um contexto acadmico, temos um arquivo que pode ser recuperado. Esse texto-proposta se produz no espao de uma rede histrica que constitui a nossa rea h dcadas e que busca compreender os processos da cincia escolar e no-escolar a partir de uma representao do que sejam aspectos da relao entre cincia e linguagem: esses aspectos, na rede de formulaes que constitui a memria que este texto atualiza esses aspectos seriam: o cognitivo e o lgico, se encadeiam numa mesma rede em que se encontram uma anlise de discurso de cunho psicolgico (lembrando autores como Edwards e Mercer12), o argumentativo, o interacionismo ou socio-interacionismo. Pode ser lido tambm sob a filiao a uma concepo de racionalidade inicialmente tomada como fenmeno individual e subjetivo, que posteriormente, vai buscar na linguagem um deslocamento para uma concepo de racionalidade intersubjetiva. Movimento extremamente importante no campo da educao em cincias, mas que manteve a exclusividade nesses elementos: o lgico, o raciocnio, o cognitivo, o argumentativo e, indiretamente, o sujeito consciente e controlador e fonte dos sentidos. Sentidos que no se originam mais de uma mente e um sujeito isolado, do encontro de duas

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    D. Edwards and N. Mercer (1987): Common Knowledge: the development of understanding in the classroom.

    London, Methuen/Rutledge.

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    ou mais mentes e dois que continuam individualizados. Nessa vertente intersubjetiva, os sentidos no provm mais de um controle individual, no porque interveio o simblico com sua face indomesticvel, trazendo a figura constitutiva do descontrole, associado ao ideolgico, ao inconsciente, ao afetivo... no porque, ao dizer e pensar, ele esteja trabalhando com uma matria fluida que a da linguagem, mas porque h uma alteridade, h o outro. No se passa para a tenso controle/descontrole, mantm-se uma concepo de linguagem como algo que pode ser totalmente controlada. Se a figura do outro intervm, trata-se de um outro que diz, tambm como origem, outra coisa, e preciso ento, negociar o que duas origens estariam produzindo subjetivamente de modo diferente. Da a figura da negociao. Eis como recupero, muito sinttica e grosseiramente, a memria desse enunciado.

    Ora, esse trajeto que faz chegar a linguagem ao nosso campo do ensino de fsica, traz uma concepo de linguagem bastante diferente da que apontei anteriormente. Concepo aquela em que, diferentemente, encontramos as figuras do ideolgico, das relaes de poder, justamente a figura da dupla controle/descontrole e do descentramento do sujeito-origem, do sujeito que no antecede, no pr-existe ao dizer, que se significa ( significado) ao significar. Se esta concepo de linguagem enfatiza a lgica e o cognitivo como elemento principal, aquela trabalha uma concepo linguagem que no se reduz lgica. Ora, e justamente o afastamento desse reducionismo da linguagem lgica e ao cognitivo, e consequentemente a uma subjetividade pr-existe, auto-centrada e tomada como origem de si e do dizer, que marca uma srie de trajetos de diferentes autores que tm refletido sobre a linguagem ao longo do sculo XX, deslocamentos que j sintetizei no incio deste texto.

    Retomo alguns desses trajetos.

    Pcheux, por exemplo, num artigo de 1982, junto com Franois Gadet, Claude Haroche e Paul Henry, intitulado Nota sobre a questo da linguagem e do simblico em psicologia, vai polemizar tanto com Chomsky quanto com Piaget fazendo intervir Lacan, e vai lembrar que a funo simblica para Piaget a condio geral da constituio das operaes lgicas elementares, e uma precondio para o acesso linguagem. E, portanto, se trata de outra concepo de simblico, diferentemente daquele que tratada no mbito das teorias da linguagem que vo justamente problematizar a constituio da subjetividade, dos mecanismos de produo de identidade, os efeitos de interpelao do indivduo em sujeito e as dimenses imaginrias constitutivas dos processos discursivos. O tom polmico de Pcheux bastante forte: A posio piagetiana, que parece reconhecer a existncia do simblico, acaba por terminar no mesmo lance do reducionismo neo-positivista do behaviorismo (p. 63), ao continuar se basear na distino entre afetivo e cognitivo.13

    importante lembrar que o espao do dizer, segundo as teorias lingusticas do sculo XX, no jamais um espao homogneo, mas sempre constitudo por regies de diferena mantidas sob relaes de poder. Embora a dimenso ideolgica/imaginria e as relaes de poder sejam categorias que apaream nas teorias que subjazem trabalhos na rea, em muitos desses trabalhos essas

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    Vale notar que Pcheux tambm se refere dualidade lgica/retrica, lembrando que h uma srie de trabalhos

    envolvendo retrica e semitica no campo do ensino de fsica/educao em cincias que no puder tratar nos

    limites deste artigo.

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    categorias no so to enfatizadas e suficientemente exploradas, quando no totalmente apagadas. Mesmo que se trate de encontros entre sujeitos, em geral so encontros suaves14; mesmo que se trate de assimetrias, so assimetrias apenas cognitivas e conceituais e no aquelas vinculadas a situaes de poder e controle. Controle que envolve muitas vezes elementos do funcionamento social mais amplo para sua compreenso alm daquele restrito situao local. Social enquanto sociedade, enquanto instituio, e no apenas enquanto interao face-a-face local. Mesmo quando aparecem relaes de autoridade, aparecem sem resistncia, sem relaes de fora. Embora figuras como relaes de controle, poder, autoridade enquanto relaes de fora, dimenso imaginria, inconsciente, estejam hoje presentes em praticamente todas as teorias sobre linguagem (da filosofia lingustica, passando pela semitica; de Bakhtin a Foucault) so ainda aspectos muito menos frequentemente considerados na apropriao da linguagem ao nosso terreno do ensino de fsica e da educao em cincias de maneira geral.

    Mas que no entram a no ser externamente na filiao da memria a partir da qual foi produzido e enunciado texto-proposta para essa mesa, embora sejam aspectos extremamente presentes em diversas teorias de linguagem, principalmente a partir da dcada de 60, justamente quando diversos campos vo explorar mais detidamente as relaes entre linguagem e ideologia e subjetivao, de todo modo, pressupondo todas elas, processos materiais que no tm origem no sujeito cartesiano.

    Sobre esse trajeto de uma concepo de linguagem que remonta a uma ferrenha batalha contra o positivismo lgico, poderia elencar uma srie de trabalhos na rea que poderiam ser considerados parte dessa rede da filiao que estou apontando. O fato de no resultar de uma busca sistemtica, o que levaria a omisses, cito apenas um enunciado, que marca a prpria filiao de meus trabalhos e exemplifica esse trajeto desembocando na nossa rea.

    Quando se quer que o estudante desenvolva gradativamente a compreensibilidade do discurso cientfico e o gosto pela leitura, pode ser necessrio criar situaes de controle e cobrana diferentes das que usualmente se presencia nas escolas. (Almeida, 1993, p. 12)

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    Esse enunciado remonta a uma concepo que v o problema do ensino de fsica, da no aprendizagem como derivado de relaes de fora que controlam as possibilidades de dizer, de ler, interpretar numa aula de fsica.

    Portanto, se adentrarmos de maneira mais ampla, o campo das teorias de linguagem desenvolvidas ao longo do sculo XX, veremos que a questo proposta pelo enunciado-objeto j foi respondida e tem atrs de si uma ampla histria de polemizao. A resposta seria no. No, tanto como negao do reducionismo da linguagem dimenso lgico-cognitiva, quanto centralidade dos processos escolares no cognitivo ou no seu conflito.

    Outros trajetos da relao entre cincia, linguagem e educao em cincias/ensino de fsica

    Se no trajeto dos estudos sobre linguagem para o campo do ensino de fsica, suponho ser imprescindvel o encontro com a epistemologia, h nos trajetos

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    Cf. Ges (1997). 15

    Cf. tambm Ricon e Almeida (1991).

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    da epistemologia aqueles que j encontraram e incorporaram questes de linguagem. Esses trajetos se cruzam em vrios pontos em comum.

    O trajeto que passa por Fleck/Kuhn um deles16, como j mencionei, junto com, por exemplo, uma teoria do discurso como a de Pcheux, se cruzam na crtica ao positivismo e empirismo lgicos. Nesses autores, no ponto de cruzamento dos trajetos da epistemologia e filosofia da cincia e teorias de linguagem, encontramos um deslocamento da noo de sujeito.

    Embora haja apenas uma citao de Wittgenstein em A Estrutura das revolues cientficas (livro de 1962), essa influncia parece ter se aprofundado em textos posteriores, como o Reconsideraes acerca dos paradigmas (texto de 1974) presente no livro A tenso essencial (Kuhn, 2011). O trabalho de Kuhn, como j apontamos, parece incorporar uma concepo de linguagem wittgensteiniana na mesma esteira da tentativa de superar o positivismo e o empirismo lgicos17. Segundo Wittgenstein, o significado de uma palavra estaria no seu uso na linguagem. Wittgenstein, na segunda fase de sua obra, vai se opor a uma concepo de linguagem como relao termo-a-termo com o mundo, a uma concepo representacional. Oposio que encontramos tambm em Thomas Kuhn. Os significados da linguagem cientfica so adquiridos pela formao em seu uso, ou seja, sempre vinculados a determinadas prticas. O fato de situar o significado nas prticas e no na linguagem em si, implica numa concepo em que a linguagem jamais vista fora de contexto e que, os sentidos no tm origem nos sujeitos, j que as prticas implicam sempre num componente de tradio, e nem numa conscincia e controle completos sobre os processos de interpretao, j que estes esto em parte embutidos nas prticas. No estamos muito longe de uma concepo discursiva de linguagem como a que esbocei na primeira parte. Trata-se de uma espcie de primado do social sobre o sujeito. O social no ali o encontro entre sujeitos, mas aquilo que constitui os sujeitos em seus modos de pensar, interpretar o mundo. Para Fleck (2010),

    O processo do conhecimento representa a atividade humana que mais depende das condies sociais, e o conhecimento o produto social por excelncia. J na estrutura da linguagem reside uma filosofia imperiosa da comunidade, j numa nica palavra se encontram teorias emaranhadas. A quem pertencem essas filosofias, a quem pertencem essas teorias? (p. 85).

    Noes como as de paradigma, comunidade cientfica, estilo de pensamento, coletivo de pensamento pressupem uma racionalidade social e histrica por excelncia e que atua como a priori neokantiano, para s ento ser individual pelo uso da linguagem numa tradio de uso (Kuhn).

    Trata-se do deslocamento da noo clssica, cartesiana de racionalidade, confundida algumas vezes como irracionalismo18. Noo que a ns, da rea de cincias da natureza, nos muito cara, embora no trabalhemos explicitamente com

    16

    A falta de espao no artigo no pode permitir a omisso de um autor do campo dos estudos da cincia que tm

    desenvolvidos trabalhos que, pautados principalmente em Bourdier e Foucault, consideram a dimenso

    discursiva (o funcionamento social e material da linguagem) sem deixar de lado a epistemologia. Trata de

    Timothy Lenoir em obras como Lenoir (1994; 1997) e principalmente, Lenoir (2004) e (1998). 17

    Sabemos da relao do trabalho de Kuhn com o de Fleck. Cond (2012) vai apontar relaes entre as ideias de

    Fleck e as de Wittgenstein, mesmo que no haja indcios de que o primeiro tenha tido conhecimento das ideias

    do segundo, embora tenham vivido um mesmo contexto intelectual, o do Crculo de Viena. 18

    Cf. Assis (1993) para uma resposta a essa crtica.

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    ela, e que forma, eu apostaria, uma das bases da nossa concepo sobre cincia, de filiao no cogito cartesiano.

    O que esses dois autores fazem, Pcheux e Kuhn, em campos diferentes de batalha, sem jamais se encontrarem, mas contra um oponente comum19, recolocar os termos da relao entre epistemologia e linguagem, fazendo intervir uma concepo no-subjetiva de linguagem, em outras palavras, uma concepo bastante familiar de um processo histrico-social sem sujeito20.

    curioso como a passagem do individual para o intersubjetivo, na introduo da dimenso da linguagem via psicologia na nossa rea (na filiao que demonstramos do enunciado-objeto texto da mesa), no parea ter arranhado essa representao, realmente na base da prpria concepo de que temos de cincia pelo menos desde Descartes.

    Como j mencionei, a figura do duplo conceito abertura-controle faz parte de uma concepo no-subjetivista de linguagem. E a que encontramos esse deslocamento na concepo de sujeito, que no mais detm o controle sobre a linguagem, mas constitudo por ela enquanto tal, na relao entre linguagem e contexto. Um sujeito no-origem. Um sujeito afetado pelo simblico, pelo imaginrio, um sujeito constitudo, um sujeito que no coincide com o indivduo. Um sujeito que pode, e realmente o far, falar aqui uma coisa e ali outra coisa, porque sua fala depende mais de condies do que si. Concepo de sujeito que, pelo menos desde Benveniste, faz parte das teorias lingusticas contemporneas.

    Deslocando o sujeito como centro, do controle e da produo do sentido, poderemos pensar efetivamente numa racionalidade coletiva, socialmente construda, coercitivamente mantida e propagada (noes como a de paradigma em Kuhn, estilo de pensamento em Fleck, episteme em Foucault lembram que a coero no tem aqui um sentido necessariamente negativo21).

    idia de descentramento do sujeito se liga necessariamente a ideia de inconscincia do pensamento. Ora, o que o paradigma kuhniano faz produzir exatamente essa inconscincia que no pode ser confundida com irracionalidade, mas uma racionalidade que se poderia chamar de racionalidade encarnada. Pcheux, pela teoria do discurso, vai colocar a ideia de considerar o impensado do pensamento... Kuhn, com a noo de paradigma, vai lidar com ideia anloga, mas lida no que diz respeito a um sujeito de cincia constitudo em e por um sistema de controle sem o qual ele no poderia ser sujeito de cincia. No escutamos a memria de Bachelard nessa filiao, tanto em Pcheux quanto em Kuhn, mas acrescido das condies de controle, condies de produo, que o primeiro no trata, "socializando" aquele sujeito do conhecimento sem jogar fora, portanto, a racionalidade como elemento ainda fundamental??

    Implicaes para o ensino fsica e educao em cincia

    O fato que condies de controle/produo dos sentidos so tambm condies de controle/produo dos sujeitos, enquanto possibilidade de

    19

    Entre ambos com certeza encontramos Bachelard como autor influenciador em comum. 20

    Remontamos aqui filiao aos trabalhos de L. Althusser, socilogo e marxista, influenciado por Bachelard e

    influenciador de Foucault e Pcheux. 21

    A obra de Foucault, ao contrrio, lembra incessantemente o carter produtivo do poder.

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    dizer/pensar. Controlar os sentidos significa, em parte, controlar as posies de dizer/pensar e as possibilidades dos indivduos virem a ocupar determinadas posies para serem sujeitos do que dizem/pensam. Entre as condies de controle de sujeitos est a excluso... e a escola, todos sabemos um mecanismo social extremamente poderoso de excluso e a fsica, enquanto disciplina escolar, com suas prticas em tradio, talvez ainda seja, a melhor ferramenta desse mecanismo. Antes, uma excluso numericamente visvel, hoje numericamente camuflada, contornada... mas ainda sim, excluso. Excluso que permanece alm da falsa ou parcial vitria do incremento numrico escolarizao, e excluso que j podemos entrever a permanncia justamente quando se proliferam os mecanismos de informao e comunicao, aparentemente e propagandeadamente mais interativos, participativos, democrticos... Contra a alternativa de promover a incluso pela eliminao da ferramenta, ou seja, da prpria fsica escolar, seja enquanto disciplina, seja enquanto conhecimento cedendo lugar a um apenas falar sobre cincia, torna-se preciso, pensar as situaes de controle escolares simultaneamente enquanto mecanismo de poder, mecanismos de dizer/escrever, e mecanismos epistemolgicos, no sentido de buscarmos politicamente situaes inclusivas que no sacrifiquem a prpria racionalidade cientifica.

    No entanto, dizer que diferentes sentidos so possveis (j que a linguagem aberta), mas nem todos so produzidos (j que h controle), se perguntar que condies controlam e que sujeitos podem ou no falar e compreender cincia, mas no significa dizer que todos os sentidos so equivalentes do ponto de vista epistemolgico, que todos os discursos so iguais em sua relao com a verdade.

    Se no o sujeito que controla, abre-se um campo enorme de investigao para buscar compreender os mecanismos especficos da tenso controle/descontrole que caracterizam uma dada situao e um dado contexto discursivo, de excluso e incluso, de produo, seleo, organizao e distribuio de sentidos, mas simultaneamente, de seleo, organizao, distribuio e produo de sujeitos, produo de identidades.22

    assim que as figuras do cognitivo, da argumentao e do estritamente lgico aparecem como limitadas para dar conta dessas questes, pela incapacidade de lidar terico-metodologicamente com a questo do contexto, do social como constitutivo da linguagem e da razo, e, principalmente, no contexto scio-tecnolgico atual, por se tratar de um contexto em rpida mudana.

    As mudanas tecnologias nos meios de comunicao e informao esto relacionadas a mudanas sociais no regime de distribuio de vozes, espaos de dizer/pensar, possibilidades de dizer/pensar, que afetam toda a cultura e relaes de poder, incluindo a produo e a circulao do conhecimento cientfico.23

    Penso que o problema est em superar o obstculo herdeiro de uma leitura da modernidade que nos fez e faz estabelecer como natural uma ligao entre racionalidade e sujeito enquanto indivduo e no considerar as relaes entre racionalidade, a dimenso efetivamente social, na forma de um contexto constitutivo, na forma das relaes de fora, de estratgia e de poder, na forma da identificao

    22

    Interpreto trabalhos sobre leitura e uso de textos no ensino da fsica como os de Almeida (1998) e Almeida

    (2004), como filiados a essa preocupao. 23

    Cf. alguns exemplos dessa discusso: Bonetta (2007); Bubela el alli. (2009); Delgado et al. (2011), Kouper

    (2010); Levy-Leblond (1992); Oliveira (2012).

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    de prticas, padres e tradies no uso de linguagens e as tenses pela sua manuteno/transformao.

    Concluindo...

    Penso que uma maior aproximao com o campo da linguagem (do qual apresentei apenas o trajeto que me mais familiar), trazendo e colocando para funcionar a nosso favor, em favor da compreenso sobre como contribuir para socializar a cultura cientifica numa sociedade como a nossa, precisa ir alm daquelas proporcionadas pelo vis da psicologia, no sentido de recolocar a questo da relao entre linguagem/discurso e epistemologia, ou seja, a razo cientfica enquanto parte do funcionamento social, e, portanto, a razo descentrada do sujeito, a razo em sua dimenso coletiva e histrica e contextual, a razo pblica24.

    Essa aproximao no implica em irracionalismos, nem em relativismos. Essa aproximao pode nos dar subsdios para compreender melhor a circulao (sempre desigual, heterognea, excludente) do conhecimento cientfico numa sociedade como a nossa e qual o papel da escola e de nossos ensinos de fsica e educaes em cincia, tanto formais quanto no-formais, num contexto histrico-social como o nosso que passa visivelmente por profundas mudanas. Contexto que envolve essencialmente mudanas nas condies de controle dos sentidos e dos sujeitos, o que por sua vez envolve mudanas nas materialidades dos suportes, nos regimes de autoria, nos espaos e regimes de interao. H a o papel das tecnologias de informao e comunicao que no pode ser esquecido.

    A cincia no , efetivamente, um discurso como os outros. Mas tambm discurso. Tambm afetada pelo simblico com sua abertura, pelo inconsciente, pela subjetivao, por mecanismos de abertura e controle, enfim, pela linguagem. Mas circula em meio a outros discursos, principalmente nas situaes educacionais, no sentido amplo do termo, quando sai fora dos controles rgidos da comunidade cientfica (coercitivamente paradigmtica). Esse fenmeno, cada vez mais diverso e caracterstico da cultura em que vivemos, me parece importante ser trazido para o nosso campo da educao em fsica. E a que vejo a contribuio de uma viso mais ampla da linguagem e do discurso.

    O movimento que percebo e que quero deixar polemizado, questionado, o de olhar para a linguagem procurando nela a concepo de cincia idealizada que supomos... Isso limita nosso olhar para a linguagem... e no tem trazido a linguagem propriamente dita para a rea tal como se desenvolveu no sculo XX.

    Talvez um movimento diferente fosse tambm importante... o de olhar a linguagem, a comunicao de maneira mais ampla, sem medo de perder a especificidade, apenas a suspendendo por um instante, para, a partir da, e com o dilogo com a epistemologia, tentar responder o que faz do discurso cientfico um discurso com caractersticas especficas apesar de tambm ter que se submeter linguagem.

    Ou seja, pensar o movimento da especificidade do cientfico no bojo de um processo mais amplo, onde no s o cientfico que joga, mas ele que pode produzir no um silenciamento normativo, mas uma tenso, uma diferena constante, social, cultural e, portanto, politicamente produtiva.

    24

    No estaramos abandonando o projeto Iluminista em favor de um relativismo falsamente homogeneizante.

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    Isso tem a ver com linguagem, com epistemologia, com leitura, com o discurso, mas tambm com a retrica, com a comunicao... Mas antes de tudo, tem a ver com o pensar a cincia e a educao em cincia como parte de dinmicas complexas de circulao de sentidos entre os quais esto, e queremos que estejam aqueles produzidos pela racionalidade cientfica.

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