Livro - À flor da pele

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HELOISA IKEDA2010

À flor da peleQuando a mente se fecha e o corpo fala

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Copyright © 2010 Heloisa Ikeda

Livro-Reportagem realizado como Projeto Experimental (Voo Solo), exigência parcial para conclusão do curso de Jornalismo na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Orientador: Professor Doutor Sérsi BardariCoordenador: Professor Mestre Roberto Medeiros

IKEDA, Heloisa Alencar. À Flor da pele: quando a mente se fecha e o corpo fala. Projeto Experimental (Voo Solo), Universidade de Mogi das Cru-zes, Mogi das Cruzes, 2010, 93 p.

Gradução - JornalismoÁrea de concentração: Comunicação Social - JornalismoIlustrações: Heloisa Alencar IkedaDiagramação: Heloisa Alencar Ikeda

1. Vitiligo 2. Psicologia 3. Dermatologia 4. Ficção

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Este livro é dedicado à minha bisavó Aline, que veio a falecer em outubro deste ano, enquanto eu realizava o projeto Voo Solo. Ela viveu até os 90 anos de idade no Mato-Grosso e nunca tive a oportunidade de conhecê-la, mas sei que, onde estiver, está torcendo por mim e pelo meu sucesso.

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Apresentação .......................................................................... 11

O que os olhos não veem .................................................... 15

A descoberta .......................................................................... 23

“O que você vai fazer com isso? ......................................... 33

Quem vê cara não vê coração ............................................. 41

O que o mundo diz ............................................................... 63

A cura ...................................................................................... 73

Posfácio ................................................................................... 77

Sumário

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Pare e perceba o que pode estar afetando a sua saúde.

Muitas vezes...O resfriado escorre quando o corpo não chora.

A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições.O estômago arde quando a raiva não consegue sair.

O diabetes invade quando a solidão dói.O corpo engorda quando a insatisfação aperta.

A dor de cabeça deprime quando as dúvidas aumentam.A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável.

As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas.O peito aperta quando o orgulho escraviza.A pressão sobe quando o medo aprisiona.

As neuroses paralisam quando a “criança interna” tiraniza.A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade.

O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar. E as tuas dores caladas? Como elas falam no teu corpo?

Mas cuidado... escolha o que falar, com quem, onde, quando e como!Crianças é que contam tudo, para todos, a qualquer hora, de qualquer forma.

Passar relatório é ingenuidade.Escolha alguém que possa te ajudar a organizar as ideias, harmonizar as

sensações e recuperar a alegria.Todos precisam saudavelmente de um ouvinte interessado.

Mas tudo depende, principalmente, do nosso esforço pessoal para fazer acontecer as mudanças em nossas vidas!

Este alerta foi colocado na porta de um Espaço Terapêutico.Que todos aprendam a fazer mudanças necessárias em suas vidas.

Autor desconhecido

Quando a boca cala... o corpo fala

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Este livro-reportagem contém uma história fictícia, baseada na his-tória da autora do livro, cuja vida se assemelha com a da personagem central, Sarah. A autora escolheu escrever o livro neste formato para que pudesse explorar o assunto de forma leve e informal, ressaltando a todo o momento o lado psicológico e humano da doença de pele vitiligo.

Sarah, seus familiares e amigos são todos personagens fictícios. Porém também existem personagens reais na história. São essas as fontes consulta-das para a elaboração da reportagem. Dentre elas estão médicos dermato-logistas, psicólogos e alguns portadores do vitiligo, que aceitaram participar deste projeto relatando sua experiência com a doença.

Os depoimentos foram coletados pela internet, através da comunidade “Eu tenho Vitiligo”, no Orkut. Todos responderam ao mesmo questionário enviado por e-mail, que continha perguntas como: “Há quanto tempo possui o vitiligo?”, “Como é pra você conviver com o vitiligo?” e “Você já sentiu algum tipo de preconceito quanto a isso?”. Com isso, foi possível observar o assunto de diferentes ângulos, já que havia tipos muito diferentes de pessoas que participaram.

A narrativa apresentada a seguir nada mais é do que uma forma de ilustrar como é a vida de alguém que possui vitiligo. Os capítulos seguem uma sequência linear no tempo, começando pelo trauma vivido pela personagem que deu origem à doença. Depois narram-se o aparecimento das manchas e a

Apresentação

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descoberta da doença, seguido pela busca por tratamentos dermatológicos e psicológicos. Seguido pela busca da personagem por mais informações sobre sua enfermidade, onde descrevem-se os depoimentos de outros portadores e alguns dados levantados através de pesquisas na internet e bibliográficas. Por último vem a conclusão da própria personagem sobre tudo o que viveu.

O principal objetivo do livro A flor da pele: quando a mente se fecha e o corpo fala, é compartilhar experiências, mostrando aspectos e opiniões de pessoas envolvidas com a doença. O que pensam e como vivem os portadores de viti-ligo. Quais são suas dificuldades. Também é fundamental mostrar àqueles que conhecem e convivem, ou até mesmo não estão acostumados a lidar pessoas que têm vitiligo, o que é e como se comporta essa doença.

O texto segue o gênero narrativo. Segundo Edvaldo Pereira Lima, o livro-reportagem de um nível superior de complexidade temática e estilística apresenta características semelhantes ao romance. Ambos visam ao conhe-cimento da realidade humana e devem construir uma fórmula estética que torne ao leitor agradável a leitura. Os capítulos têm uma ligação entre si para que possa haver continuidade na leitura, isso porque se trata de um romance que relata, através da história da personagem central, o vitiligo da perspectiva psicológica. Os depoimentos e entrevistas são amarrados a essa história ao longo da narrativa.

A propósito da leitura desta obra, é importante informar também que apesar de tratar especificamente sobre o vitiligo, este livro não aborda somen-te este assunto. Durante a narrativa, a autora toca em uma série de fatores que estão atrelados ao vitiligo, mas que também podem estar presentes na vida de pessoas saudáveis. Exemplo disso são os diferentes tipos de traumas que po-dem levar ao aparecimento da doença. Certamente, existem outras milhares de pessoas que passaram por situações parecidas, mas que, por não possuírem certa característica genética, não desenvolveram a doença. Entretanto, podem levar consigo ainda alguma marca, seja ela física ou não.

Tal aspecto nos faz pensar que o vitiligo nada mais é do que uma forma de o corpo mostrar que existe algo de errado. Que aquilo que está guardado dentro da gente, e que muitas vezes pensamos que já está adormecido, conti-nua nos causando dano. E já que não nos damos conta disso, não procuramos ajuda e não extravasamos esta angústia. Nosso corpo tenta dar sinais de que precisa de ajuda através dessas inúmeras doenças de fundo emocional.

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Por isso não é pretensão afirmar que muitas pessoas iram se identificar com a história presente nas páginas seguintes. Afinal, nosso corpo reflete tudo aquilo que somos por dentro. Se estamos tristes, se estamos felizes, se estamos irritados ou relaxados, é possível perceber apenas num olhar. Trans-parecemos a todo o instante aquilo sentimos, da mesma forma que estamos vulneráveis a tudo que vem de fora. Até que um dia nos damos conta de que não há divisão. Corpo e mente são uma coisa só. Se um não esta bem o outro não pode estar.

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Sarah sempre foi uma garota tímida e discreta. Poderia passar des-percebida em um lugar cheio de gente ainda que estivesse usando um vestido vermelho com bolinhas amarelas. Ela costumava andar com a cabeça baixa pra todos os lados. Quando criança sempre foi muito apegada ao que era seu, a coisas materiais, mas que para ela tinham significado muito maior. Seu co-bertor, suas bonecas, seus livros, suas canetas e até mesmo seus sapatos. Tudo aquilo fazia parte do que ela era, e, por isso, tinham tanta importância. Mas não só por isso. Todas aquelas coisas, apesar de não se moverem, nem fala-rem, sempre estariam ali com ela. Não a abandonariam. Eles não se importa-vam se ela estava magra ou gorda. Se ela era alta ou baixa. Se ela sabia ou não conversar, se ela sabia expressar o que sentia ou se ela gostava de conversar. Eles eram seus e pronto, faziam companhia a ela e não reclamavam por isso.

Todas as noites, antes de dormir, Sarah unia as mãos e as levava junto à testa. Fechava os olhos e rezava, esperando que seu anjo da guarda levasse todos os seus pedidos até Deus. Entre eles sempre estava alguma coisa sobre conseguir ser mais espontânea mais alegre e menos insegura. Até os seis ou sete anos de idade, ela não fazia ideia do que eram essas coisas, então apenas pedia para que os amiguinhos da escola não rissem mais dela, e que sua mãe não a culpasse por tudo que acontecia de errado.

Quando seu irmão mais novo nasceu, Sarah teve um sério problema de ciúmes. O comportamento da garota era o de quem queria chamar a aten-

O que os olhos não veemCapítulo 1

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ção de todos, mesmo que ela realmente não quisesse isso. Depois de alguns anos, quando Breno se tornou uma criança travessa, Sarah sempre era culpada por tudo que ele fazia de errado. Sem contar que ela estava constantemente ouvindo frases do tipo: “Ê Sarah, presta atenção!” ou “Mas tinha que ser a Sarah”, por causa de seu jeito estabanado, ela vivia deixando tudo cair no chão e quebrando coisas.

Apesar de tornarem sua vida um pouco mais complicada, todos esses fatos não faziam com que Sarah deixasse de ser uma criança normal. Quando estava perto de pessoas que ela gostava e quando brincava de suas brincadei-ras preferidas, ela era muito alegre e agitada. Se não tivesse nada que a fizesse sentir envergonhada ou repreendida, ela não via problema nenhum em soltar a imaginação e inventar um mundo de coisas para se divertir.

Ninguém a sua volta nunca desconfiou que todos esses pequenos ges-tos, todas essas pequenas atitudes em relação a garota, um dia pudessem levá-la a desenvolver uma doença, até então rara. Uma doença que até hoje não se sabe exatamente como surge nas pessoas, mas que se sabe exatamente que consequências pode causar na vida de alguém. Nem Sarah, nem seus pais, nem seus amigos e parentes mais distantes podiam imaginar no que aquilo iria dar.

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Existem certas situações em nossa vida com as quais acabamos nos acostumando. Elas acabam virando rotina. No começo, até nos incomoda-mos com elas. Mas com o tempo, mesmo que ainda não tenham se tornado algo bom, a gente acaba aceitando. Acaba se acostumando. Mas o que a gente talvez não saiba, é que mesmo virando rotina, certas coisas não deixam de nos causar dano. Por mais que estejamos preparados para enfrentar tal situação, ela ainda nos afeta da mesma forma e com a mesma intensidade da primeira vez. E quanto mais achamos que tal situação é normal, mais ficamos vulne-ráveis a ela.

Durante boa parte de sua vida, Sarah acreditou que chorar era o único meio de refúgio para os seus problemas. A única forma que sempre teve de desafogar seus sentimentos, tanto bons como ruins. Ela nunca soube dizer, ao certo, o que fez com que se tornasse uma criança tão tímida e reservada. Mas sabia que isso fazia com que ela não quisesse nunca compartilhar com ninguém o que eu estava pensando ou sentindo. Talvez por medo de rejeição. Talvez por vergonha de ser ridicularizada. Talvez por receio de não ser com-preendida. Mas seja por qual motivo fosse, ela preferia chorar sozinha no seu canto a se expor.

Mesmo depois de alguns anos, quando Sarah já não era mais uma crian-ça indefesa, quando cresceu e passou a entender melhor certos aspectos da vida, ela ainda não encarava isso como um problema. Aquele era simplesmen-te o seu jeito de ver as coisas, o seu jeito de lidar com tudo que lhe acontecia. O que tinha de mal querer ficar sozinha e chorar um pouco? Parecia sempre ser uma coisa de momento, já que, no dia seguinte, ou até mesmo algumas horas depois, já havia se esquecido e tudo voltava ao normal.

Na adolescência, porém, as coisas pareciam até mesmo terem se tor-nado um tanto quanto mais difíceis. Tímida e reservada ela sempre foi, e pa-recia que sempre seria. Mas quando era criança, ao menos conseguia externar as suas vontades e a sua criatividade em certos momentos. Por ser criança, talvez, as pessoas não a julgavam tanto pelo que fazia, pelo que gostava e pelo que falava. Muitas vezes até a achavam engraçadinha. Porém, depois que passou dos 12, 13 anos de idade, Sarah tinha que lidar com um mundo que a encarava de uma forma totalmente diferente. Esse mundo não aceitava muito bem suas ideias. Não entendia os seus gostos. Não aceitava as suas escolhas. Não perdoava seus fracassos. O que antes era só mais uma característica de

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sua personalidade, agora se tornara um problema mais sério. Algo com o qual, muitas vezes, ela não sabia lidar.

Parece que toda essa cobrança queria fazer dela uma pessoa que ela não era. Queria impor a ela regras e padrões a serem seguidos, mas com os quais ela não concordava. Sarah simplesmente não conseguia ser como a maioria de seus amigos. Ela adorava conversar e sair, mas quando precisava falar de si mesma alguma coisa dentro dela a fazia travar. Ela sabia que se, por acaso, dissesse algo diferente ou incomum, corria o risco de zombarem com a cara dela. E isso, pra ela, era o fim. A garota não sabia como lidar bem com isso como a maioria das pessoas. Ficava magoada. E quando ficava, simplesmente guardava toda a mágoa lá no fundo de seu coração. Tempo suficiente para conseguir esquecê-la, ou ao menos deixá-la adormecida.

O problema é que essa situação se repetia quase que diariamente. Sarah estava constantemente reprimindo suas emoções, com medo de se expor aos outros. Chegava até mesmo a não saber como compartilhar momentos de alegria com os demais. Expressar-se através da fala era um desafio para ela. Odiava ser o centro das atenções. Fazia, cada vez mais, o possível para passar despercebida onde quer que fosse. Ela não tinha ideia do que essa atitude estava causando a ela mesma. Não tinha ideia do mal que estava fazendo a si própria. Mas, para ela, era melhor assim. Estava mais segura, fechada e es-condida dentro do seu universo particular, onde todos os seus sentimentos e emoções faziam sentido.

Essa atitude poderia trazer segurança e até conforto a Sarah. Mas trazia também conseqüências não tão agradáveis assim. Primeiro, porque a garota acabava perdendo a oportunidade de conviver com as pessoas a sua volta. Apesar de estar ali fisicamente, na maioria das vezes, ela fazia sua mente viajar a um outro plano, como se estivesse vivendo num mundo de fantasias. Parecia que só ali os seus sonhos eram plausíveis. Ela sabia o quanto era bom sonhar. Mas viver sonhando acordada fechava seus olhos para o mundo real.

Quanto mais ela insistia em se fechar em seu mundo de sonhos, mais queria se afastar do real e viver no imaginário. Com o passar dos anos, isso acabou de tornando um vicio. Sarah cada vez mais evitava ficar perto das pes-soas, e cada vez mais se fechava em seu mundo particular. Ela havia encon-trado ali, o que nunca encontrara em lugar nenhum. Espaço para expressar suas vontades, seus desejos. Formas de ilustrar e moldar os seus sonhos mais

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profundos e surreais. Tudo ali era só dela, ninguém poderia interferir nem estragar o seu mundo perfeito. E ai de alguém que ousasse querer entrar.

Mais alguns anos a frente, Sarah crescia, mas insistia em continuar vi-vendo da mesma forma que escolheu, deixando de experimentar experiências únicas e importantes na vida para se proteger de possíveis desapontamentos.

A garota encontrou também um outro refúgio muito seguro e que pare-cia trazer ao seu mundo um pouco mais de verdade e o tornava muito mais inte-ressante. A internet parecia muito mais do que uma janela de comunicação com o mundo para Sarah. Era um meio através do qual ela podia conhecer pessoas sem ter que encará-las de frente. Um lugar onde as pessoas, pelo menos num primeiro momento, não iriam julgá-la pela aparência nem por seus gostos. Pelo contrário, ela percebeu que através daquela ferramenta, poderia encontrar pes-soas que compartilhavam dos mesmos gostos, dos mesmos medos, das mesmas angustias que ela. A internet ampliou os horizontes afetivos de Sarah, mas, por outro lado, conseguiu afastá-la ainda mais daqueles que estavam a sua volta.

Entretanto, apesar de sempre estar ouvindo criticas sobre sua maneira de se comportar, Sarah não queria dar ouvidos a nada disso. Afinal, o mun-do real nunca quis aceitá-la como ela realmente era. Sempre a repreendeu e sempre a fez sentir vergonha do que era. Então pra que ela iria dar atenção ao que estavam dizendo agora? Ela encontrara em si mesma e em todos os seus ‘amigos virtuais’ o que nunca tivera daqueles que estavam ali ao seu lado o tempo todo. Não se sentia nem um pouco culpada de passar horas na fren-te do computador nem de passar horas sonhando acordada sozinha em seu quarto, enquanto todos se reuniam para jantar em família, ou então enquanto todos os seus colegas de escola saiam pra se divertir.

Apesar de parecer um belo refúgio e de realmente proporcionar bons momentos a Sarah, essa sua nova filosofia de vida estava lhe causando um grande e irreparável dano. Algo que ninguém podia perceber. Obviamente não iriam perceber, porque esse dano não estava visível aos olhos. Pois era um dano na alma. E como é que se cura uma ferida na alma? Se nem ao menos podemos vê-la. Talvez possamos senti-la ou até mesmo percebê-la através de atitudes. Mas dificilmente nos damos conta dela. Não antes de já ter se torna-do algo profundo e grave.

Como será que o corpo da gente reage quando percebe que algo não está bem, mas não consegue combater isso através de nossas defesas naturais?

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Como lutar contra algo que não sabemos como surgiu e muito menos onde vai acabar? Nem Sarah, nem as pessoas ao seu redor tinham a resposta.

O tempo passava e aos poucos Sarah crescia e deixava de ser uma criança. Sem nunca se afastar de seu mundo seguro, onde nada nem ninguém podiam entrar, ela deixava de amadurecer certos aspectos, fazendo com que se tornasse uma jovem séria e rancorosa. Estresse e mau-humor eram uma constante na vida da moça. Qualquer crítica ou qualquer elogio podiam tirá-la do sério, se ditos nos momentos errados. Ela era como uma bomba relógio. Guardava toda a raiva e alegria para si mesma. E por isso, parecia que iria explodir a qualquer momento.

Não importava o quanto os outros dissessem que seu comportamento não era normal, Sarah continuava do mesmo jeito e não fazia nenhum esforço para mudar. Nos momentos mais críticos, quando sua armadura parecia que ia se romper, ela se trancava no quarto e chorava. Às vezes, por horas e horas. Até que tudo passasse. Ou ao mesmo até que ela esquecesse o porquê estava ali e o que a havia deixado tão triste.

A irmã de Sarah, Rafaela, era uma das pessoas que mais conseguia me-xer em suas feridas. Talvez por ser tão próxima e pela pequena diferença de idade entre as duas, ela sabia exatamente o que dizer para balançar o coração de Sarah. Ao contrário do resto do mundo, ela vivia sobre o mesmo teto e sabia de coisas que Sarah preferia que não fossem comentadas. Sobre seus gostos, sobre suas manias, sobre seus segredos, sobre suas intimidades. Desde que eram pequenas, Rafaela sempre usou disso para envergonhar a irmã na frente dos outros.

Uma vez a irmã mais velha de Sarah, a troco de nada, contou as suas amiguinhas da escola que ela ainda dormia de chupeta. Certo dia Sarah soube que a irmã contou a um garoto de sua sala que Sarah gostava dele. A garota não conseguia mais nem olhar na cara do menino, tamanha vergonha que sentia. Sarah queria morrer cada vez que a irmã fazia isso.

Mesmo depois de mais crescidas, Rafaela não perdia uma oportunida-de de comentar em público coisas que podiam constranger Sarah. Falava de alguma artista que ela gostava e que não era considerada tão legal pela maioria das pessoas; de seu jeito de se vestir e a forma engraçada como andava toda desengonçada; de seu jeito de falar com as pessoas e como se portava em público. Como se não bastasse, Sarah sempre foi a ovelha negra da família.

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Todos insistiam em compará-la com a irmã “perfeita”. Mal sabiam que a úl-tima pessoa com quem Sarah queria parecer no mundo era com a sua irmã. Apesar de tudo, ela gostava da irmã e sabia que podia contar com sua ajuda quando precisasse. Porém sua personalidade e o caráter sempre foram algo que Sarah repugnava.

O mundo parecia custar a entender que as características que faltavam a Sarah, não eram exatamente as que ela queria ter. Por exemplo, ela sempre foi um desastre em qualquer coisa que envolvesse interação com outras pes-soas. Falar nunca foi muito a sua praia. Era um custo para ela iniciar uma con-versa com alguém desconhecido. Apresentar trabalhos para classe a faziam tremer e gaguejar a todo instante. Ao contrário de outras habilidades, essa era uma que não podia passar despercebida. Afinal, para quase tudo na vida precisamos lidar com pessoas. Falar, nos expressar. E é por isso que pessoas quietas demais e tímidas demais chamam tanta atenção. E, com certeza, o que menos Sarah queria era chamar atenção pra ela mesma.

Cada vez mais o mundo parecia não querer compreender Sarah. E Sa-rah, cada vez mais, parecia não querer compreender o mundo. Ele lhe causava medo, e ela não tinha coragem suficiente para enfrentá-lo. Nas poucas vezes em que tentara se arriscar, saía tão machucada, que não lhe restavam forças para levantar e seguir em frente. Isso só fazia com que ela se recolhesse e se fechasse ainda mais dentro de seu mundo particular. Dentro de si mesma. Privando-se do mal que poderia afetá-la, mas, ao mesmo tempo, privando-se de muitas experiências boas que poderiam fazê-la crescer.

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Mesmo que passasse dias tentando se lembrar, Sarah nunca pôde dizer ao certo quando foi que percebeu uma mancha branca, que crescia gra-dativamente, em seu ombro direito. Provavelmente, porque no começo, ela não incomodava nenhum pouco. Não que hoje incomode, afinal ela nunca foi de se preocupar muito com aparência, nem mesmo com a saúde. Então, aquela pequena e discreta mancha branca não parecia ser nada demais.

Se ninguém nunca tivesse visto, certamente Sarah não teria comentado sobre a mancha com ninguém. Mas assim como outras coisas que ela preferia guardar só para si, sua família acabou percebendo. Em um dia de mais calor, quando Sarah quis usar uma roupa mais fresca e colocou uma blusa regata, sua mãe, Tereza, percebeu a mancha em seu ombro. A mãe de Sarah sempre reparava na aparência física da filha, e normalmente se preocupava com isso bem mais do que a própria garota. Isso a irritava profundamente. Apesar do comentário, Sarah insistiu em dizer que não era nada e tentou convencer a mãe de que não precisava se preocupar.

Isso, porém, durou muito pouco tempo. Pois a mancha parecia aumen-tar de tamanho a cada dia. E mesmo para uma pessoa tão despreocupada com aparência e saúde como Sarah, não parecia ser uma coisa normal.

Sarah não fazia ideia de que doença era aquela. Muito menos o que po-dia tê-la causado. Como qualquer coisa que a gente consegue perceber através dos sentidos, a garota relacionava aquilo com algo físico. Até porque não era a

A descobertaCapítulo 2

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primeira vez que ela tinha problemas na pele. Ela teve uma alergia muito forte por boa parte de sua infância, e fez diversos tratamentos para tentar controlar aquilo. Mas só depois de muito tempo conseguiu algum resultado. Até que a tal alergia nunca mais apareceu.

Nos dias seguintes Sarah ouviu constantemente sua mãe dizendo que ela precisava ir ao médico, porque aquela mancha que crescia a cada dia não era normal. Na maioria das vezes, a garota fingia não ouvir ou então dava um jeito de desviar o assunto para que sua mãe esquecesse um pouco dela. Mas aquilo já estava se tornando insuportável, então Sarah decidiu enfim, ceder às investidas da mãe e aceitar ir ao dermatologista. Afinal, ela também já estava ficando no mínimo curiosa para saber do que se tratava aquilo

Porém, a garota ficou na dúvida por mais um bom tempo. Adiar com-promissos era algo que Sarah havia herdado de família. Sua mãe era expert no assunto. A consulta com o dermatologista foi marcada apenas mais algumas semanas depois. Quando a mancha branca de Sarah já havia atingido um ta-manho considerável e visível.

Tereza não arriscava quando o assunto era saúde, então pesquisou na internet por algum lugar especializado, para levar a filha. Encontrou a Clínica Rebucci de Dermatologia que fica localizada no centro de São Paulo. Ligou e agendou uma consulta para a semana seguinte. A essa altura Sarah já estava re-zando para que aquilo não fosse nada demais e que o médico não lhe passasse muitos remédios. Ela tinha pavor de tratamentos médicos. Sempre foi uma criança muito frágil e vivia com a bronquite e rinite atacadas. Mas, na verdade, o que mais lhe preocupava era ter que aguentar a sua mãe depois lhe cobrando quanto a melhora e ao uso dos remédios caros que comprou.

Tentou esquecer disso e, de fato, esqueceu. No dia em que sua mãe chegou em casa muito antes da hora do almoço Sarah estranhou. Mas apenas alguns segundos depois se lembrou da bendita consulta que haviam marcado para ela. Fez aquela cara de total desânimo quando a mãe entrou na sala e ela ainda estava de pijamas na frente da tevê vendo desenhos animados. Era janeiro e as aulas de Sarah no colégio ainda não haviam recomeçado. Sarah já preparava os ouvidos antes que a mãe começasse a dizer:

– Posso saber porque ainda está de pijama mocinha? Tenho que te levar ao médico pra você ver essa sua mancha ai...

Sarah ensaiou um sorriso forçado enquanto se levantava do sofá e co-

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locava os chinelos ao mesmo tempo. Sua mãe estava com toda a razão de brigar com ela, mas não custava nada ter ligado para lembrá-la, ou então tê-la acordado pela manhã quando saiu para trabalhar.

– Eu me esqueci completamente que tinha médico hoje, foi mal... Vou lá me trocar rapidão, espera ai... - disse Sarah ao sair apressada da sala ainda terminando de calçar os chinelos que custavam a entrar nos pés com meias.

Ela subiu as escadas correndo, como sempre fazia, mesmo quando não estava com pressa alguma. Foi em direção a seu quarto. Pegou qualquer rou-pa, vestiu rápido e penteou os cabelos. Deu uma rápida passada no banheiro para se olhar no espelho. Nisso sua mãe já gritava lá de baixo, impaciente:

– Anda Sarah, vamos nos atrasar pra consulta! E você ainda vai cair dessa escada correndo desse jeito filha!

Os comentários da mãe sempre entravam por um ouvido de Sarah e saiam pelo outro. Mas, como sempre, tudo que a mãe dizia acabava aconte-cendo. Certo dia, Sarah tropeçou ao subir a escada correndo e cortou o joelho tendo que levar três pontos.

Sarah abaixou o olhar e ajeitou o cabelo, que mesmo depois de pen-teado ainda estava meio fora do lugar. Tereza apenas se levantou do sofá e caminhou até a porta da frente. Sarah a seguiu até o carro e entrou no banco do carona. Mesmo já tendo seus 12 anos de idade, ela ainda achava um barato poder andar no banco da frente do carro. Se divertia só de olhar a rua dali, mas toda sua alegria passou quando a mãe parou o carro e ela se lembrou para onde estavam indo. Desceu calmamente e continuou seguindo a mãe até a entrada da clínica. Esperou que ela falasse com a recepcionista e depois foram à sala de espera.

O consultório era bem iluminado e todo decorado. Havia inúmeras revistas numa mesinha ao centro. Nenhuma delas despertou o interesse de Sarah. Antes mesmo que pudesse pensar em pegar alguma para ler, o médico chamou por seu nome: A garota e a mãe se levantaram do sofá da sala de espera e foram até a sala do médico. O doutor Paulo Luzio, como ela ouvira a mãe dizer diversas vezes a atendente quando chegaram, cumprimentou as duas gentilmente e pediu para que sentássemos. Sarah, como sempre, ficou quieta enquanto a mãe explicava para o médico qual era o problema.

Após ela falar, o médico apenas pediu para que Sarah fosse até a maca e lhe mostrasse a mancha. Ele olhou cuidadosamente e até usou uma luzinha

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para examinar melhor. Nem meio minuto depois, ele guardou a lanterninha e olhou de Sarah para sua mãe ao dizer:

– Ela tem vitiligo.“Viti... o que?” disse Sarah em pensamento. Nunca tinha ouvido falar

nada sobre aquilo. Pelo nome, parecia ser algo grave, e pela cara que a sua mãe fazia, ela achava o mesmo. O médico, porém, ao perceber a expressão das duas, deu um leve sorriso e explicou um pouco melhor.

– Não é nada grave, pode ficar tranquila.O que ele disse, porém, não tirou a interrogação que se formara no

rosto de Sarah. Ela continuava a não saber do que se tratava. Ela queria enten-der melhor o que estava se passando consigo mesma, então resolveu engolir a timidez e perguntar:

– Mas o que é viti... essa doença ai? Como foi que eu peguei isso?– Vitiligo - disse o médico, enquanto dava uma leve risada - é uma do-

ença que dá manchas brancas na pele. Existem vários tipos de vitiligo. Não é uma doença contagiosa e nem transmitida por vírus ou bactéria. A principal causa, para todos os tipos é o estresse. Geralmente, o vitiligo não é uma do-ença agressiva. A maior parte das pessoas tem poucas manchas pelo corpo, mesmo anos após descobrir a doença. O estresse funciona como um desen-cadeador, pois a pessoa tem que ter uma genética que permita ela desenvolver a doença. E o estresse vai fazer o gene funcionar.

Ele falava de forma clara e compreensível, mas, mesmo assim, aquilo ainda não estava fazendo muito sentido para Sarah. “A principal causa é o es-tresse?” Ela repetiu a frase em sua mente em forma de pergunta. Olhou para os próprios pés, concentrada, pensativa. O médio pediu para que ela descesse da maca e que se sentasse novamente ao lado da mãe. Certamente ele perce-beu que tanto a garota como sua mãe ainda estavam cheias de dúvidas.

– Vou explicar melhor para que vocês possam entender - pontuou dou-tor Paulo ao retomar o seu lugar atrás da mesa.

Ele pegou uma caneta e um papel em branco e começou a desenhar. Sarah prestou atenção os rabiscos do médico, tentando entender que desenho sairia dali. Ele a fez lembrar de suas aulas de Ciências. Pois os professores sempre desenhavam as coisas para ficar mais fácil de entender. Mais tarde, Sarah desco-briu que o médico que a consultara também era professor. Ela não tirou os olhos da folha até que ele terminasse o desenho, depois voltou a olhar para ele.

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– Essas são as três camadas da pele - explicava o médico - Na parte de baixo da epiderme existe uma célula chamada melanócito, que são as células responsáveis pela formação do pigmento da pele, a melanina. Em momentos de estresse, os nervos liberam substancias que são capazes de matar os me-lanócitos. E a pigmentação da pele não pode mais ser produzida. A morte dessas células é um processo muito demorado, mas não temos como evitar que isso recomece em novos períodos de estresse, por isso alguns tipos de vitiligo não tem cura.

Sarah fez uma expressão de choque enquanto um pensamento invadia a sua cabeça. “Legal, ele ficou explicando tudo isso só pra dizer no final que a doença não tem cura?”. Justamente agora que Sarah já estava cogitando a pos-sibilidade de aceitar começar um tratamento para se ver livre daquela mancha e de todas as complicações que ela trazia, como a mãe enchendo sua cabeça o tempo todo. Antes que Sarah pensasse em dizer qualquer coisa, Tereza se adiantou perguntando:

– Não tem cura, mas é possível tratar, não é doutor?– Claro que sim - disse ele, para o alivio da mãe de Sarah - Existem

vários tipos de tratamentos possíveis para o vitiligo. Há casos em que con-seguimos repigmentar quase que 100% das áreas afetadas. No caso da Sa-rah, o vitiligo dela é do tipo segmental. As manchas aparecem muito cedo e espalham-se rapidamente pela área afetada, porém a atividade geralmente cessa após determinado período. Por isso, esse tipo de vitiligo é mais fácil de ser tratado. Ao contrário do não segmental que se espalha progressivamente pelo corpo durante toda a vida do paciente, podendo cobrir a pele da pessoa quase que totalmente.

Os olhos de Sarah se arregalaram ao ouvir a ultima explicação do médi-co. Ela agora estava na dúvida se ele estava realmente querendo acalmá-la ou assustá-la. Uma manchinha branca na pele não a incomodava, mas aquilo no corpo todo não era uma idéia muito agradável. De fato isso seria uma coisa que incomodaria qualquer um. A garota tentou acreditar então que seu tipo de vitiligo não pudesse, de repente, virar o outro tipo, sempre com medo de fazer certas perguntas que pudesse obter uma resposta indesejada.

– E quais tipos de tratamento existem? - perguntou Tereza, já que a filha continuava calada, mas concentrada na conversa.

– Muitos. Existem tratamentos clínicos com cremes, pomadas, com-

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primidos de diversos tipos. Há também o banho terapêutico, laser e cirurgia. Porém, mais importante do que o tratamento em si, é a indicação correta desse tratamento.

O médico dirigia-se diretamente a Sarah, o que indicava que, para ele, o mais importante era que ela entendesse o que estava se passando. E, mais do que isso, cabia a ela decidir começar algum tratamento e levar isso a sério, ou não. Porém, não era bem assim que as coisas funcionavam para Sarah. Ela normalmente não podia impor suas vontades dentro de casa. Então provavel-mente, se a mãe quisesse, ela iria fazer o tratamento, querendo ou não.

Ela então deu um sorriso forçado enquanto virava para encarar a mãe, que parecia estar mais aliviada. Porém, Sarah sabia que ela ainda estava muito preocupada. Ficaram em silêncio por um momento. Como se tivessem uma decisão muito difícil pela frente. Antes que o médico voltasse a falar de trata-mentos, a mãe de Sarah fez uma pergunta que ela nunca iria pensar em fazer, mas que realmente era importante. As mães sempre sabem o que dizer nas horas certas, afinal:

– Mas ela precisa tomar algum cuidado especial com a doença?– No dia-a-dia, nenhum especifico. Nenhum alimento ajuda ou piora

o vitiligo. Geralmente o que a pessoa tem que fazer no dia-a-dia é tomar um pouquinho de Sol, que ajuda a pigmentar. Geralmente as pessoas fogem do Sol, mas isso está errado.

– Certo! - disse Tereza pensativa, enquanto olhava atentamente para o desenho que o médico fizera. - Então o que podemos ir fazendo, enquanto não tem o diagnóstico completo dela?

Sarah ouvia a mãe falar como se entendesse muito do assunto. Mas sa-bia o que ela queria dizer. Queria saber logo se havia algum remédio que ela já poderia ir tomando. Como se isso fosse tirar um peso das suas costas. Dando a sensação de “dever cumprido”. Ao menos a filha estaria tomando alguma coisa para melhorar. O médico, muito esperto, entendeu a pergunta da mesma forma que Sarah, então foi direto ao assunto.

– Bom primeiramente, irei receitar um remédio básico, que é recomen-dado para todos os tipos de vitiligo e que ajuda na repigmentação - explicou ele calmamente - E também vou indicar um creme para usar na área das man-chas. Você deve passá-lo diariamente e expor a pele ao sol mais forte do dia, de quinze a vinte minutos.

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Mesmo com todas as más expectativas de Sarah quanto àquela consul-ta, ela não podia esperar uma resposta pior do médico. O tratamento que ele indicara era tudo o que ela não queria nem precisava naquele momento, nem em nenhum outro momento. Ela conhecia a si mesma o suficiente para saber o quão difícil seria levar a sério um tratamento daquele. Não tinha disciplina muito menos responsabilidade para tal. Mas que escolha ela tinha? Sabia que a mãe iria sair do consultório direto e passar na farmácia mais próxima para comprar tudo e, quiçá, até mais umas outras coisas, como protetores solar e o que mais ela achasse que devesse.

Sarah ainda tinha um monte de dúvidas em sua cabeça. Mesmo com toda aquela explicação sobre como surge o vitiligo, ela ainda não conseguia entender como uma coisa tinha a ver com a outra. Estresse e pele. Emoções e pigmentos. Sistema nervoso e melanócitos. E o que causara as manchas nela, afinal? Não conseguia se lembrar de nenhum momento específico que poderia estar relacionado a isso. Entretanto, a menina não ousara abrir a boca para pronunciar nenhuma de suas inúmeras perguntas. Preferiu, como sem-pre, guardar aquilo para si mesma.

– Está bem doutor, ela irá usar o remédio direitinho, eu garanto! - disse a mulher ao dar um olhar de canto de olho a Sarah, que ela conhecia muito bem e que significava “Não é mesmo?”. A garota apenas revirou os olhos, mesmo sabendo que isso irritaria a mãe.

– Assim espero. - respondeu o doutor sorridente - Podem marcar o retorno com a recepcionista para daqui a um mês, mais ou menos. É o tempo necessário para podermos ver algum resultado!

A mãe de Sarah apertou a mão do médico ao se despedir. A garota ape-nas deu o leve sorriso forçado de sempre, ainda se perguntando por que o médi-co estava tão feliz. Depois de saírem da clínica com a data do retorno marcada, para a infelicidade de Sarah, as duas entraram novamente no carro e rumaram para casa. A menina já estava rezando para que a mãe tivesse que voltar ao tra-balho e não fosse passar o resto do dia em casa. Queria evitar possíveis conver-sas sobre o assunto que ela não queria mais ouvir falar: o seu vitiligo.

Todavia, Sarah não escapou de umas perguntinhas da mãe ainda no caminho de casa. Tereza, como sempre, estava querendo saber mais da vida da filha do que ela normalmente gostaria de compartilhar. Mesmo sabendo desse empecilho, ela não desistia de tentar arrancar algo da garota.

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– Então, você ouviu o que o médico disse. Tem que usar o remédio direitinho se quiser ter algum resultado!

“O que? Ele não disse nada disso. Você disse! E ele apenas concor-dou...” pensava Sarah ao ouvir o que a mãe dissera. Para tentar encurtar ao máximo possível aquela conversa, que mais seria um monólogo, ela murmu-rou apenas um “uhum”. Em vão, porém, a mãe continuava a falar desenfrea-damente, esperando suas respostas.

– E você prestou atenção quando ele disse que a causa do vitiligo é o estresse? Não entendi muito bem aquele desenho que ele fez, mas acho difícil que, no seu caso, a causa seja essa. Você não se estressa com nada. Nunca responde as provocações, nem nada. Não tem nada com que se preocupar na vida. Tem tudo na mão. Como pode ter uma doença devido ao estresse?

“Talvez esse seja o meu problema, mãe!” bradava a garota quase aos gritos. Porém, apenas em sua mente, deixando as palavras entaladas na gar-ganta. Respirou fundo engolindo toda a raiva e desceu do carro, deixando a mãe sem resposta. Correu na frente, para entrar em casa e subir logo para seu quarto. Tentou não bater a porta para não deixar explicita sua revolta. Deitou na cama e enfiou a cara no travesseiro. Tentou segurar ao máximo, mas não aguentou. As lágrimas começaram a cair de seus olhos ao mesmo tempo em que o aperto no peito aumentava.

Por que o mundo não a deixava em paz, afinal? Ela não via problema nenhum em não querer falar com ninguém, e nem dividir as suas emoções. Por que seu corpo não podia lidar com isso? Por que insistia em expô-la daquela forma? Ninguém precisava saber que ela tinha um problema. Mas agora, com o vitiligo, não seria possível esconder. Estava ali, exposto, marcado em sua pele. Para quem quisesse ver. Alheio a todo e qualquer julgamento, que não faziam falta a Sarah, mas com os quais ela iria ter que conviver a partir dali.

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Sarah nunca foi muito fã de médicos e hospitais. Talvez esse fosse até um trauma de infância, já que devido a sua saúde debilitada passou um tempo considerável dentro desses lugares. Mas esse não era o único motivo pelo qual ela não se animava com nenhum dos inúmeros tratamentos que ten-tou fazer para combater o vitiligo. Ela nunca foi responsável nem disciplinada o bastante para levar a sério um tratamento médico tão longo como aqueles que os médicos lhe passavam. Mas, com a insistência dos médicos e de sua mãe, acabou fazendo, ou pode-se dizer que ao menos tentou.

Das primeiras vezes, lhe receitaram comprimidos e um creme. Tudo feito em farmácias de manipulação. Sarah achava o máximo quando ia bus-car os remédios e eles vinham com o seu nome escrito na embalagem. Mais tarde, ela teve que trocar os comprimidos por um tipo de xarope, devido a sua dificuldade de engolir as cápsulas. O mais chato era que, além de passar o tal do creme, Sarah tinha que se expor ao Sol por 15 minutos. E não podia ser qualquer Sol, tinha que ser o mais forte, das 11h da manhã às 2h da tarde. Dá pra contar nos dedos as vezes que ela fez esse procedimento da maneira correta.

Depois de quatro meses, Sarah interrompeu este tratamento, porque era muito demorado e cansativo e não estava surtindo muito efeito. O médico havia dito que a mancha estava começando a repigmentar, mas Sarah não conseguiu ver nada de diferente nela. Algum tempo depois, sua mãe a levou

“O que você vai fazer com isso?”

Capítulo 3

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de novo ao dermatologista. Muito contrariada, Sarah até tentou dizer à mãe que a mancha não a incomodava tanto assim e que não ia adiantar começar outro tratamento, já que o anterior não tinha dado resultado. Porém, de nada adiantou, Tereza praticamente arrastou a filha até o consultório de outro mé-dico, dizendo que a garota não sabia o que era melhor para ela.

O outro dermatologista receitou a Sarah um tratamento, muito pareci-do com o que ela já havia feito. Em uma das consultas posteriores, ele chegou até a aplicar nitrogênio líquido sobre a sua mancha, processo que causou certa dor e desconforto a Sarah. Mas ela preferia algo assim, que realmente fizesse alguma diferença significativa, do que um tratamento indolor e demorado. Experiências anteriores faziam a garota achar que quanto mais um procedi-mento médico doía, mais ele era eficaz. Ela aguentou a dor sem reclamar. Me-ses depois, porém, Sarah parou de tomar os remédios devidamente e deixou mais um tratamento de lado.

Durante o primeiro tratamento que realizou, o médico chegou a en-caminhar Sarah para uma consulta com uma psicóloga, mesmo acreditando que ela não se encaixassa nos perfis de quem necessita de acompanhamento psicológico para o vitiligo. A mãe de Sarah, então, a levou para um hospital que atendia pelo seu convênio médico. Na hora da consulta, a doutora pediu que a garota entrasse sozinha. Sarah não sabia se achava isso bom ou não, mas se levantou da cadeira e seguiu a moça até seu consultório. Sentou na cadeira e ficou quieta.

Sarah não se lembra muito bem o que exatamente a psicóloga disse a ela durante a consulta. Só se lembra que ela disse algo como: “O vitiligo é como uma forma de seu corpo expressar que tem alguma coisa ai dentro que não está bem. Precisamos descobrir o que é que te causa essa dor, pois não é à toa que você está chorando, algum motivo tem que ter!”.

Pois é, ela chorou. Não sabia o porquê, mas algo que a psicóloga disse mexeu com alguma coisa dentro dela. Sarah não conseguia mais responder direito à doutora, apenas chorava mais e mais. Tentou respirar fundo e dizer numa voz razoável: “Mas eu não sei o que é ‘isso’”. A psicóloga, mostrando toda sua experiência e domínio do que estava fazendo respondeu na lata: “Se você soubesse o que é, não teria porque nós estarmos aqui”.

Ao final da consulta, a psicóloga disse palavras de conforto e abraçou a garota, que pediu pra que ela esperasse seu rosto deixar de ficar vermelho

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e inchado para poder sair dali. Quando saiu, a mãe de Sarah tentou saber o que tinha ocorrido na consulta, mas Sarah não disse absolutamente nada. A garota se despediu da mãe e as duas foram embora por caminhos diferentes. Agradeceu imensamente por sua mãe ter que voltar ao trabalho e ela poder ir pra casa sozinha.

Infelizmente, essa foi a primeira e última consulta psicológica de Sarah. Nem sua mãe, nem os dermatologistas mencionaram a hipótese novamente. Ela também não tinha a menor coragem para dizer para mãe que queria voltar e iniciar uma terapia, até porque como iria convencê-la de que levaria isso a sério, quando em todos os tratamentos anteriores, ela tinha falhado? Então o assunto morreu. Tratamentos estéticos, dermatológicos, psicológicos viraram passado. A mancha de Sarah não aumentou nem diminuiu de tamanho, assim como os seus problemas, tudo continuou na mesma por mais alguns anos.

[...] Alguns anos depois

Sarah foi crescendo e se tornando uma jovem de um gênio extrema-mente difícil. A convivência com ela era algo complicado, até mesmo para seus amigos e familiares. Mas, mesmo assim, ela conseguia levar uma vida quase normal. O vitiligo não era nada mais do que uma mancha no ombro, e agora na raiz do cabelo. E ele nada interferia na sua relação com as pesso-as, nem na relação consigo mesma. Se ela tinha problemas de convivência e autoestima era por outros motivos. Motivos dos quais ela nunca sabia muito bem o que eram.

Por isso, vez ou outra, ela lembrava daquela sua única consulta com uma psicóloga, quando pela primeira vez tinha tido oportunidade de falar sobre seus tormentos, mesmo que não tivesse falado de nada. Quando, pela primeira vez, ela teve alguém que estendeu a mão a ela e disse que a ajudaria a encontrar o que a estava fazendo tão mal. Por diversas vezes, Sarah pensou como teria sido se tivesse ido mais vezes àquele consultório, se tivesse pedido a sua mãe para começar uma terapia e ter levado isso adiante.

Certo dia, quando pensava no assunto, Sarah se lembrou de um velho e grande amigo da família que era psicólogo. O seu nome era Flávio Amorim, ela se lembrava bem dele por seu jeito engraçado e descontraído de conversar. Sempre a fazia rir. Um dia, ele havia comentado que uma pessoa não pode

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se consultar com um psicólogo com quem tenha algum vínculo afetivo. En-tretanto, ele nunca disse a ela que não poderia conversar com um psicólogo que já conhecesse, para falar sobre alguma doença de fundo emocional e tirar algumas dúvidas.

Ela, então, resolveu não pensar mais de uma vez, para não acabar de-sistindo. Pegou a agenda de telefones da mãe e procurou o telefone do psicó-logo. Depois de várias ensaiadas, digitou o número e ligou para ele. Disse que precisava de uma ajuda com uma coisa e marcou de ir ao seu consultório na tarde do dia seguinte. Desligou o telefone sem acreditar no que tinha acabado de fazer.

No dia seguinte, levantou cedo, mesmo tendo marcado a visita para o período da tarde. Estava ansiosa. Poucas horas depois do almoço pegou suas chaves e saiu de casa, andando, rumo ao consultório do Dr. Flávio. Chegando lá, procurou o número da sala indicada e bateu na porta. Segundos depois o psicólogo abriu a porta e a cumprimentou de maneira alegre.

– Olá Sarah, como vai?– Bem, e você? - respondeu a garota timidamente.– Bem, graças a Deus! Então, a que devo a honra de sua ilustre visita?– É... então... - Sarah pensou na melhor maneira de dizer o que queria

- Eu estava com algumas dúvidas sobre a minha doença, o vitiligo, e queria ver se você podia me esclarecer umas coisas, é que eu estou pensando em começar a fazer terapia - mentiu.

– Entendo, mas o que exatamente você quer saber?– Como é que acontece a ‘terapia’? O que é feito?– Bom, as seções terapêuticas são semanais e têm duração de cinquenta

minutos. Não são absolutamente diferentes de nenhuma outra seção terapêu-tica. A única coisa é que se trabalha um pouco mais a imagem. Tem pessoas que precisam trabalhar a voz, outras a impostação, outras a postura, o equilí-brio, a assertividade. No caso do vitiligo, nós trabalhamos, primeiro de tudo, a aceitação do próprio corpo. Ela tem que aceitar viver assim.

– E essas doenças de fundo emocional são comuns?– Como toda doença somática, Sarah, o vitiligo pode ser originário de

situações estressantes. No quesito emocional, hoje nós temos vários dados que comprovam que boa parte das doenças podem ter também origem emo-cional, inclusive o câncer e a psoríase, que também é uma doença cutânea.

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Não fora uma ideia tão má, afinal, vir conversar com o psicólogo. Sarah sentia que foi a melhor coisa que poderia ter feito. Que bom que não deixara a timidez vencer e que tomou coragem para ligar para o doutor e vir até seu consultório. Emendou logo outra pergunta para continuar o assunto:

– Como as pessoas reagem quando descobrem? – Quando começa a aparecer a doença, a primeira coisa que a pessoa

tenta fazer é esconder, usando roupa, maquiagem. Chega uma hora que isso passa a ser impossível, tendo em vista o local que ela desenvolveu a mancha. E, a partir deste momento, é que a pessoa já deveria procurar ajuda psicoló-gica, o que não acontece. A ajuda psicológica vai vir lá na frente quando ela esgota todas as possibilidades de cura. Já foi ao dermatologista, ela já foi ao cirurgião plástico, já foi em tudo quanto é lugar. E ai ela vê que realmente terá que aprender a conviver com a pele daquele jeito.

– Existe muito preconceito com quem tem a doença?– As pessoas que convivem com os portadores de vitiligo não têm ne-

nhum problema, como os profissionais de saúde por exemplo. Agora, os lei-gos, o senso comum, pode ser muito cruel. Como também é cruel com quem tem qualquer outro tipo de patologia, principalmente as que são cutâneas, por causa da suposta contaminação.

– Mas porque isso? Falta informação às pessoas?– Os casos não tão raros, Sarah, que se você for pensar, não dá pra in-

formar. O Ministério da Saúde informa a população sobre as patologias mais graves. Como o vitiligo é uma doença menos comum e mais amena, acaba ficando de fora. Mas todo mundo, sem exceção, deveria ter informação para não cometer nenhum deslize, nenhuma indelicadeza, com alguém que já está com a sua parte psicológica, com a sua autoestima afetada, como é o caso do vitiligo.

– Incomoda mais esteticamente né? Porque na saúde, a pessoa não tem nada.

– Nada! – ele repetiu a última palavra dita por Sarah - O duro é você explicar para a pessoa que aquilo é só externo. É uma despigmentação e nada mais do que isso. Então é muito difícil a pessoa se acostumar com os olha-res.

– É... se todos que tem vitiligo pudessem enxergar isso, seria mais fácil de aceitarem.

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– Tudo o que é externo é mais difícil de aceitar. Mas existem vários trabalhos para a pessoa realmente aceitar o próprio corpo, mudar de compor-tamento. A pergunta chave que fazemos é: “O que você vai fazer com isso?”. Você pode aceitar, ou não aceitar. Isso não vai mudar o quadro, não vai diminuir o tamanho do problema, só vai acarretar outros problemas. Você pode, por de-pressão profunda, quando a pessoa fica encapsulada, não quer mais sair, chegar até ao luto. Essa mancha, que não dá nem pra medir em termos de milímetros na espessura da sua pele, não dá para manchar o resto do seu futuro.

Sarah sorriu, o moço falava bonito, e com propriedade. Sem dúvida, era um excelente profissional, mas, com certeza, não apenas isso. Era uma pessoa muito boa e sensata. Não tinha o que contestar, afinal, ele estava com toda a razão. Para não esgotar o assunto, a garota pensou em mais alguma pergunta para fazer, algo que tivesse curiosidade. Afinal, não era todo dia que ela tinha um psicólogo à disposição para tirar suas dúvidas.

– Desculpa minha ignorância, mas o que é estresse?– Estresse nada mais é do que uma função adaptativa de um organismo

a uma mudança de rotina. Toda vez que um corpo é sujeito a uma mudança de comportamento, ele sofre um estresse. Existem vários níveis, Sarah, em que nós podemos avaliar isso. Um estresse pequeno, muitas vezes, pode ser uma bomba na minha cabeça e na sua não.

– É verdade... - refletia a garota.– A grande sacada é preparar as pessoas para a diversidade do ser hu-

mano. Parte-se do princípio de que as pessoas são todas iguais, mas não são! Você não tem que achar que todo é mundo igual. Você tem que perceber as diferenças, e, dentro daquilo que você vê, tentar se adequar, equalizar a vida a partir daí.

–Tem pessoa que não tem conhecimento e também não quer ter, né? Não pergunta.

– Não, mesmo! Trata isso como uma coisa horrorosa e extremamente contaminante e infectante e não quer mais saber. Nem na cara olha. Mas a nossa sociedade põe isso na sua cabeça. Precisa de alguém que fique debaixo dos holofotes, para que a outra pessoa fique na sombra. As pessoas precisam de um Judas. Uma coisa é comentar um fato, agora falar mal é dar uma opi-nião de alguma coisa que não se conhece. E a sociedade é especialista nisso, esta cheia de médico, engenheiro, advogado, dentista e por ai vai.

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Dessa vez Sarah soltou um riso alto e prolongado. Ao mesmo tempo em que se divertia com o bom humor e descontração do psicólogo, ela co-meçava a enxergar sua doença de uma forma diferente. Era interessante olhar sob aquela perspectiva. Uma sensação de alívio tomara conta de seu corpo e mente durante a conversa. Mesmo sabendo que poderia estar enchendo a paciência do doutor Flávio, ela resolveu fazer mais uma pergunta:

– A psicologia é importante em todos os tipos de doença então, né?– Sim, a psicologia vai dar, com certeza, o suporte necessário que o

médico não vai conseguir dar. O médico vai entrar com o suporte medica-mentoso, ou seja, o remédio físico, você pega o comprimido na mão, põe na boca e toma. Até para esse ato de pegar o remédio e por na boca tem que haver uma aceitação do que está acontecendo. Se não fosse o preconceito da própria sociedade e ainda um pouco da resistência da classe médica, a gente poderia ter, com certeza, bastante sucesso num trabalho multidisciplinar entre as profissões.

– Espero que um dia isso aconteça mesmo! - afirmou Sarah, totalmen-te convencida com as ideias do doutor.

A garota se despediu do psicólogo e amigo, não sem antes pedir mil desculpas pelo incômodo e pelo tempo tomado. Ele, gentilmente, disse que tinha sido um prazer conversar com ela e que Sarah podia procurá-lo quando precisasse. Apesar de ter adorado o papo, ela não esperava precisar voltar àquele nem a nenhum outro consultório psicológico. Sentia que estava final-mente encontrando o caminho para entender a si mesma.

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Como se Sarah já não tivesse problemas suficientes quanto a sua autoestima e quanto a dificuldade de lidar com as pessoas, o vitiligo agora se tornara um problema a mais com que se preocupar. Era difícil esconder as manchas, ainda mais em épocas de calor. E, na verdade, a garota nunca quis escondê-las. Não via necessidade disso. Afinal o médico já lhe dissera que o Sol era bom para ajudar nos tratamentos. Porém, mesmo que isso não a in-comodasse, havia outras coisas que a incomodavam. Os olhares e perguntas pareciam vir de todas as direções.

Certa vez, Sarah estava em um almoço de família na casa se sua avó. Muitos tios e primos por todo lado, como acontecia todos os domingos. Mais uma reunião familiar comum e agradável. Pelo menos até Sarah resolver brin-car com algumas priminhas mais novas que queriam pentear seus cabelos, ou melhor, despentear. Nisso, uma delas reparou em sua mancha esbranquiçada na pele. Como toda criança, ela era muito curiosa e, obviamente, quis saber o que era aquilo. Então perguntou sem rodeios.

– O que é isso?– Uma mancha - respondeu Sarah, pedindo para que ela se contentasse

com apenas isso, mas já se preparando pra próxima.– Como foi que fez isso? - insistia ela, querendo saber mais - Você se

queimou?– Não, Gabi! - Sarah não conseguiu segurar o riso com a suposição da

Quem vê cara não vê coraçãoCapítulo 4

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pequena garota - Essa parte da minha pele não tem cor mesmo, é uma doença que chama vitiligo.

– Ah! - murmurou Gabriela, que apesar da explicação, não tinha enten-dido muita coisa. Porém decidiu parar com as perguntas antes que sua cabeça desse um nó, tentando entender.

Sarah se deparou com essa mesma situação inúmeras vezes e até mes-mo com as mesmas pessoas. Crianças são difíceis de conter. Sempre falam e perguntam tudo que der na telha. Mas ao menos elas eram verdadeiras e sinceras, então Sarah não ligava tanto de ter que ficar falando de sua doença e explicando quantas vezes fossem necessárias.

Não podia se esquecer também, das vezes em que fora abordada por estranhos na rua, que queriam compartilhar informações sobre o vitiligo. Aconteceu pelo menos umas três vezes. Era curioso o quanto a mancha des-pertava o interesse, até mesmo de quem não tinha a doença. Numa tarde comum, quando Sarah saiu da escola e foi para o ponto de ônibus esperar a condução que a levaria para casa, uma senhora, que devia ter por volta de uns sessenta anos, parou perto da garota e começou a falar com ela.

– Desculpe a indelicadeza, mas essa sua mancha é vitiligo, não é? – É sim - respondeu Sarah, pensando no que aquela senhora poderia

estar querendo.– Ah, eu sabia, meu filho também tem isso. E você faz algum trata-

mento?– No momento, não, mas já fiz alguns, sim.– Você já ouviu falar em um remédio que dizem que é bom para o

vitiligo, eu não lembro o nome agora, mas é tipo um chá que você faz com a casca de uma árvore e toma?

Sarah enrugou a testa e se concentrou no que a mulher dizia. Estaria ela batendo bem das ideias? De qualquer forma, era interessante ver alguém com tamanho interesse em sua doença. Mas aquilo era porque seu filho a possuía, e ela, com certeza, se preocupava com ele o suficiente para ir atrás de alguma cura de qualquer forma. Coitada, mal sabia ela que Sarah não tinha muito mais conhecimento do assunto que ela.

– Nunca ouvi falar, não – respondeu a garota curta e direta, como sempre.

A senhora disse mais algumas coisas e depois seguiu seu caminho. Sa-

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rah chegou a se sentir um pouco mal, por estar tão acomodada quanto a sua doença. Será que ela deveria estar atrás de outras alternativas de tratamento, como a mulher que acabara de falar com ela? Era o que o resto das pessoas esperava dela, sem dúvidas. Mas será que era o que ela realmente queria fazer? Afinal, já não levara a sério os últimos tratamentos indicados pelos dermato-logistas com os quais se consultou.

Nesse momento, outro episódio parecido com os anteriores veio à mente de Sarah. Certa vez, quando foi a um mercadinho próximo de sua antiga casa comprar pão para tomar café da tarde, um moço jovem de pele morena veio abordá-la para falar sobre sua mancha. Ela já estava descendo a rampa do local e indo em direção à rua, quando o rapaz na bicicleta parou perto dela e começou a conversa.

– Oi, desculpe te incomodar com isso, mas o que você tem ai no om-bro é vitiligo?

“Porque será que todo mundo pedia desculpas antes de fazer alguma pergunta sobre o vitiligo? Por acaso é pecado sentir curiosidade sobre algo e perguntar?”, se perguntava Sarah em pensamento. Ela achava estranho como até mesmo quem não tinha vitiligo parecia se sentir incomodado em falar no assunto. Porém, como ela mesma também tinha a mesma postura, procurava não julgar ninguém por isso. Respondeu calmamente ao rapaz.

– Sim é vitiligo.– Eu também tenho vitiligo. Descobri há pouco tempo o que era - dizia

o jovem, que aparentava estar superafim de conversar e trocar experiências sobre o assunto.

Certamente, ele esperava que Sarah tivesse a mesma vontade, porém, a garota ainda tinha sérios problemas em conversar com desconhecidos. Por mais que quisesse, não conseguia levar muito adiante o papo. Mais algumas palavras, e o moço desistiu. Porém, seu último comentário ficou gravado na mente de Sarah até hoje. Um misto de ingenuidade e ignorância por parte dele.

– Mas é engraçado, eu achei que só gente mais escura que tivesse vitili-go. Não sabia que pessoas branquinhas, que nem você, tinham também.

Sarah sorriu sem saber se poderia considerar aquilo um elogio, ou uma ofensa. Apenas achou interessante o ponto de vista do rapaz. Se despediu e continuou seu caminho. A cabeça matutando um monte de perguntas e ideias

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que insistiam em atormentá-la. Principalmente quando tocava no assunto. A sua doença não comprometia sua saúde física, mas estava constantemente mexendo com suas emoções e sentimentos.

Como será que as outras pessoas que possuem vitiligo lidam com a do-ença? Será que todas têm o mesmo problema? Definitivamente, não! Se tinha uma coisa que Sarah sabia e acreditava, era que todas as pessoas são diferentes e têm visões diferentes sobre as coisas. Portanto, nenhuma delas via o vitiligo da mesma forma que ela. De certo que tiveram problemas completamente di-ferentes dos seus para desenvolverem a doença. Assim como convivem com outras pessoas que reagiram completamente diferente dos seus parentes e amigos. Mesmo tendo tamanha certeza em relação a isso, Sarah ainda sentia curiosidade por descobrir e entender como é que as outras pessoas que têm vitiligo convivem com a doença.

Foi então que Sarah teve uma brilhante ideia. Um dos seus hobbies favoritos era fazer amigos pela internet. Ela sabia como ninguém encontrar pessoas interessantes e que tinham a ver com ela. Resolveu usar isso para en-contrar outras pessoas que tinham vitiligo e que estivessem interessadas em compartilhar a sua experiência com ela.

Sem pensar duas vezes, a garota entrou no site de relacionamentos mais famoso e frequentado do país, o Orkut. Foi no campo de pesquisa e digitou “vitiligo”. Apareceram na tela do computador várias comunidades sobre a doença. Sarah olhou a que tinha mais membros e entrou nela. Deu uma olhada nos tópicos que tinham no fórum de discussão. A maioria deles eram de pessoas que perguntavam sobre tratamentos e remédios para o vi-tiligo, se eram confiáveis ou não, se funcionavam ou não. Não havia nada do tipo “Como vocês lidam com o vitiligo?” ou “Conte aqui sua experiência com a doença”.

Sarah, então, decidiu criar um tópico com o título “Trocando experi-ências”. No texto do tópico, ela escreveu: “Gostaria de conhecer pessoas que tenham diferentes experiências e pontos de vista em relação ao vitiligo. Quem quiser conversar, me adiciona no messenger, ou manda um e-mail!”. No dia, ninguém respondeu ao seu tópico. Porém, no dia seguinte, ela tinha três no-vos e-mails em sua caixa de entrada, e algumas pessoas solicitando aceitação no messenger. Para suas expectativas, até que a resposta tinha sido rápida.

A primeira a responder ao tópico na comunidade foi a Roseli Luna,

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que tem 31 anos e trabalha como autônoma. Sarah a adicionou no messenger, e, no mesmo dia, elas tiveram uma longa conversa sobre o vitiligo. Roseli contou a ela que possui vitiligo há mais ou menos 10 anos e que já conhecia a doença antes disso, pois sua mãe e seus irmãos também a possuíam. Mal havia começado a interagir com outras pessoas com vitiligo e já havia descoberto um caso que fugia ao fato de que a doença não era hereditária.

– No meu caso, a doença ocorreu após um acidente com meu irmão, no qual tive que socorrê-lo - contou Roseli

– E logo no começo você já procurou tratamento? Quantos já fez? - perguntava Sarah curiosa

– No começo, procurei um dermatologista em São Paulo, na esperança de ser outro diagnóstico, pois a mancha era apenas em cima de meu dedo. Infelizmente ele constatou vitiligo. Aí fui informada sobre um médico em Apucarana, que tratava da vizinha de meu irmão. Fui sozinha até lá. Tratei com 8mop, fenilanina e oxsoralem, mais acido fólico e vitamina C. Foi exce-lente, mas tinha que ir até lá de 3 em 3 meses,e eu não tinha condições. Tentei procurar aqui em São Paulo outros médicos. Iniciei outro tratamento do qual, graças a Deus, tive ótimos resultados, mas como o tratamento é longo e o vitiligo é uma caixinha de surpresas, começou a não fazer efeito em novas manchas. Aí juntou a isso meu nervosismo, ansiedade, depressão, autoestima baixa, preconceito e etc...

“Voltei ao médico sempre que pudia e ele ia tentando me tratar com a medicação, mas infelizmente não obtive mais o resultado esperado. Até por-que, nas mãos é muito difícil, me desanimei muito e larguei esse tratamento. O médico também já estava sem esperança por ser muito tempo de tratamento. Já tomei chá de marianinha, hibisco e nada. Ultimamente as minhas manchas aumentaram muito rápido. Eu gostaria de saber porque algumas pomadas como elidel e protopic, funcionam apenas no rosto, com muita eficácia, mas não no corpo todo. Não seria interessante pesquisarem e estudarem pra mu-dar a formula, e assim funcionem também no corpo?”

A mulher escrevia rapidamente e Sarah ia lendo conforme as men-sagem iam aparecendo na janela de conversação. Totalmente concentrada e interessada na história dela, mandava apenas alguns “Ahan”, “Sim” e “En-tendi”, de vez em quando. Roseli também contou à garota sobre sua relação com a doença.

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– Para mim, conviver com o vitiligo, é péssimo. Cada vez que me olho, espero que não tenha aparecido nenhuma mancha nova. Torço para acharem a cura logo, pois não quero passar o preconceito que meus familiares passa-ram. Graças a Deus em mim, não é tão nítido e também não está pelo corpo todo. Mas ainda assim o vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, já senti muito preconceito, até porque trabalho com o público em eventos nos quais a aparência conta muito.

– Eu acho que entendo como se sente - comentou Sarah - Mas você ainda está procurando tratamento ou já aprendeu a conviver com isso e se aceita dessa forma?

– Não estou fazendo nenhum tratamento porque estou procurando um especialista em São Paulo, mas ainda não achei. Estou na dúvida em usar o viticromim, fazer fototerapia ou gastar tudo em laser. Não aprendi a conviver com ele e nem quero. Não nasci assim, por que tenho que me conformar?

Essa última resposta de Roseli foi um tanto quanto chocante para Sa-rah. Afinal, desde o início, ela sempre ouviu dizer que apesar de muitos tra-tamentos, o vitiligo não tem cura. Sendo assim, parecia a ela essencial que as pessoas aprendessem a conviver com a doença. Entretanto, acabara de se deparar com uma pessoa que pensava exatamente o contrário. O mais interes-sante é que nenhuma das duas estava errada, apenas tinham opiniões diferen-tes sobre o assunto. Pontos de vistas diferentes sobre a mesma doença.

O segundo a responder ao tópico de Sarah foi Marcelo Freitas, um co-merciante de 39 anos, morador de São Paulo também. Ele deixou seu endereço e Sarah o adicionou no Messenger. Começou a conversa fazendo aquelas per-guntas básicas de quando se está conhecendo alguém pela internet: “Quantos anos?”, “Onde mora?”, “O que faz da vida?”. Depois entrou no assunto do vitiligo, perguntando há quanto tempo ele tinha a doença e coisas do tipo.

– Tenho vitiligo há 11 anos, descobri a doença quando uma amiga mi-nha disse que uma mancha branca em minha mão era vitiligo.

– Você já fez algum tratamento? - Sarah digitou pausadamente as pala-vras antes de apertar “enter” e mandar a pergunta.

– Sim, método cubano, fototerapia, laser, chá de Mamacadela, mas o que deu mais resultado foi o Protopic. Continuarei buscando a cura sempre, pois essa doença não é minha. Hoje busco em Deus o conforto e, com isso, as manchas estão sumindo.

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– E como é para você lidar com essa doença?– Antes era difícil, mas hoje é tranquilo. Quando me incomodo, olho

para trás e vejo que existem pessoas com problemas mais graves. Já senti preconceito, pois algumas pessoas, por falta de conhecimento, acham que vitiligo “pega”.

“O mais legal disso tudo é que minha filha sempre gostou das manchas. Quando ela tinha uns 4 anos ficava imaginando figuras nas minhas manchas como nas nuvens. Ela sempre dizia que sou colorido e os pais das amigas só tem uma cor. Vejo com grande otimismo a descoberta da cura para o vitiligo e outras doenças de fundo emocional. O número de pessoas com doenças cau-sadas por estresse tem aumentado cada vez mais e isso vai fazer com que os olhos dos laboratórios e cientistas se voltem para esse lado. O segredo esta na fé em Deus, tenho vivido isso, logo estarei 100% curado. Hoje, minha mente esta curada, só falta a pele e isso é só uma questão de tempo!”

Sarah chegou a se emocionar com o que Marcelo disse ao final da conversa. Realmente, ele estava certo quanto a isso. Mas em certo ponto ela discordava. Pois, na verdade, não importa onde esteja o seu ponto de apoio. Seja em Deus, seja em sua família, seja em seus amigos ou até em você mes-mo. É muito importante sempre ter algo em que acreditar, algo que dê forçar para seguir em frente. Já que o vitiligo é uma doença de fundo emocional, também devemos nos preocupar em curar as feridas de dentro, se não as de fora não irão sarar.

A terceira pessoa com quem Sarah conversou foi Mariana de Matos Rosa. Ela tem 17 anos e mora na cidade de São Paulo. De todos com quem Sarah trocou experiências, Mariana era a mais nova, e a que mais parecia com ela também. Mariana mandou um e-mail contando algumas coisas sobre sua vida e sobre como descobriu o vitiligo.

– Possuo vitiligo há 15 anos. Com 2 anos eu estava na praia e fiquei um pouco bronzeada, como eu sou branquinha, ao ficar bronzeada o contraste foi maior. Meus pais perceberam que, em torno dos meus olhos, havia um esbranquiçado e como eles possuíam conhecimento da doença, pois são mé-dicos, de cara perceberam que era vitiligo e ficaram preocupados e tristes.

“Eu nunca perco as esperanças, meu corpo pode ficar lotado de man-chas que eu continuo na batalha. Eu sempre deixo de fazer e comprar coisas que gosto, pois vou duas vezes por semana para Campinas, gasto com mo-

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torista, gasolina, pedágio e o laser. É muito dinheiro, porém, se é por uma boa causa, eu deixo de comprar o que for, roupas, sapatos etc. A esperança e persistência é essencial.”

Sarah ficou surpresa ao se deparar com a história da garota. Ela teve vitiligo quase que durante toda a vida, e mesmo assim não desiste de tentar encontrar a cura. Realmente, é preciso muita força de vontade para conseguir fazer isso. Logo que terminou de ler o e-mail de Mariana, Sarah respondeu mandando mais algumas perguntas, curiosa para saber mais. No dia seguinte já recebeu a resposta.

– Sim, já fui em muitos médicos diferentes. Alguns pessimistas, outros otimistas. Cada um sempre com a sua opinião sobre o tratamento adequado. Fiz vários tratamentos, como o uso de pomadas seguido de radiação solar, câmara UVA com oxoralem, produtos naturais como Mamacadela e vários tipos de lasers. Hoje, com muitas contraindicações, faço o Xtrac laser, e está surtindo efeito. Com certeza o vitiligo tem causas emocionais, não só acredito como tenho certeza! É só eu passar um período de nervoso que lá vem as manchinhas novas surgindo!

“Uma vez apareceu uma mancha no joelho. Passados uns 2 meses, eu cai e ralei todo o joelho. Após a cicatrização, minha mancha sumiu, eu poderia ralar todos meus vitiligos, quem sabe eles não somem.”

“Para mim é horrível conviver com o vitiligo! Eu acordo de mau humor só de pensar que terei que passar aquele monte de maquiagem para esconder as manchas. O vitiligo interfere na minha relação com as pessoas, sempre muitas perguntas e até mesmo gozações, mas procuro mesmo ficar perto de pessoas que sabem o que eu tenho no rosto e gostam de mim mesmo assim. Claro que já sofri preconceito, falaram muito que eu sou “pura maquiagem”, me perguntam sempre porque tem uma manchinha ali, outra aqui, com aquela cara de desprezo, sabe?”

“Sei muito bem”, respondeu Sarah em pensamento, enquanto lia a ultima frase do e-mail. Por terem aproximadamente a mesma idade, Sarah se identificou muito com a história de Mariana. Em muitos aspectos, elas tinham visões muito parecidas. Principalmente quanto à reação dos outros em relação as manchas. Sarah continuou mandando e-mails à garota durante um longo tempo, e elas chegaram a conversar sobre outros diversos assuntos e se tornaram amigas.

Uma moça loira chamada Thais foi a quarta pessoa a responder ao tó-

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pico. Sarah mandou um recado no perfil dela e assim começaram a conversar. Thais tem 31 anos, é pedagoga e mora em São Caetano do Sul. Ela contou a Sarah que há 21 anos atrás sofreu uma queda de bicicleta, arranhando o pé, e que a cicatriz virou o vitiligo. Seria possível aquilo? Um machucado virar o vitiligo? Sarah porém não perguntou nada sobre isso, quis saber se ela já tinha tratado do vitiligo, e obteve uma longa resposta:

– Procurei o médico desde a primeira manchinha. Já fiz diversos trata-mentos e o que mais surtiu efeito foi com o laser. Foi um tratamento que fiz há 8 anos, e sumiram todas as manchas do meu rosto. Já nas pernas não tive sucesso e a própria dermatologista achou melhor parar o tratamento, pois não conseguia ter resultados satisfatório. E também porque as manchas estão estabilizadas há 8 anos. Desde essa época, não pareceu mais nenhuma. Nesse intervalo fiz um tratamento na faculdade de medicina do ABC com fenilalani-na, 8mop, junto a um polivitamínico. Com esse tratamentos apareceram algu-mas pigmentações. Fiquei sem usar nenhuma medicação por quase 2 anos.

“Em novembro do ano passado comecei a fazer acupuntura para o vitiligo, junto com terapia. Ainda não tive nenhum resultado de pigmentação, mas a médica confirmou que o vitiligo esta estabilizado, pois, quando não está estabilizado, a acupuntura faz a aparecer mais manchas. Eu fui pessoalmente à faculdade de medicina de Santa Cruz, aqui em São Paulo, onde tratam o vitiligo com acupuntura, e conversei com pacientes que estão tendo bons re-sultados. No meu caso, acupuntura e terapia psicológica estão ajudando muito no meu emocional, elas trabalham a aceitação da doença.”

– E como é para você conviver com o vitiligo? - perguntou Sarah curiosa

– Para mim, é muito difícil conviver com o vitiligo, não gosto mesmo. Mas ele não interfere nos meus relacionamentos com as pessoas. Não tenho manchas no rosto, apenas nas pernas, e nunca deixo as manchas à mostra. As pessoas quase não sabem que tenho a não ser se eu falar sobre o vitiligo.

– E nunca sofreu nenhum preconceito quanto a isso? – Nunca. Acho que pelo fato de, mesmo quando criança, minha mãe

não deixava as manchas à mostra. Sempre disfarçamos. Como eu tinha algu-mas na cabeça próximo ao cabelo, usei sempre os cabelos soltos, que cobriam as manchas, usava franja por ter mais na testa, mas bem grudadinho ao coro cabeludo. E quando estavam aparecendo manchas novas na sobrancelha e

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abaixo do rosto foi quando descobri o tratamento a laser e fui logo fazer. Assim, desapareceram todas as manchas do rosto.

– Você sabe exatamente o que causou o vitiligo em você?– Uma quase separação dos meus pais, e o medo de perder um irmão,

que na época era bebê e ia fazer uma cirurgia delicada. Acredito que seja esse o motivo.

– E depois que você descobriu o vitiligo, o que mudou na sua vida? – Depois do vitiligo, passei por varias experiências. Eu acredito que,

para livrar o filho de algum sofrimento, os pais são capazes de fazer qualquer loucura. E com meus pais não foi diferente, eles corriam atrás de tudo que as pessoas os ensinavam. Desde levar aos melhores médicos, a curandeiro, pai de santo, muitos remédios caseiros e simpatias.

“O que mais me marcou foi comer o fígado de um cágado cru. Eu cuidei do cágado por um tempo e um belo dia, meu avô matou o cágado, tirou o fígado e eu comi. Eu tinha uns 11 anos. Na época, minha vontade de ter a cura era tão grande que comi o fígado do cágado de uma só vez. Não tive a tão esperada cura, mas acho que não fui a única a ter essa experiência. Outro dia, li em uma das comunidades de vitiligo no Orkut um depoimento sobre a simpatia do cágado.

“Sempre sonhei e busquei a cura para o vitiligo. Me trato até hoje e ainda não aprendi a conviver com ele. Estou trabalhando isso com a psicóloga e já posso dizer que tive um progresso. Hoje já vou até a porta de casa de saia e com as manchas aparecendo. Já recebo visitas com as manchas à vista, coisa que quase nunca fazia. Até em casa ficava de calça todo o tempo, deixava ape-nas meus pais e irmão verem as manchas. Quando ia chegando alguém logo eu corria para vestir uma calça. Isto esta sendo muito bom pra mim, apesar de não gostar nem um pouco de estar com o vitiligo.”

Sarah pensava e refletia sobre o quanto devia ser difícil ter que ficar escondendo as manchas o tempo todo. Cada vez mais a garota se convencia de que aceitar a doença era o primeiro e mais importante passo para viver uma vida normal com vitiligo. Outra pessoa com quem conversou e que também tinha vitiligo nas pernas foi Volney Silva. Ele a adicionou no Messenger e depois de alguns dias eles conversaram.

– E ai beleza? Sou da comunidade Vitiligo lembra? - foi o que Sarah leu ao clicar na janelinha que piscava em seu monitor.

– Oi, lembro, sim! Tudo bem?

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– Tudo ótimo! Me diz uma coisa, você tem vitiligo ou só se interessa pelo assunto?

– Tenho vitiligo, sim, há alguns anos já.– É uma barra às vezes, né? Mas, infelizmente, temos que conviver

com isso da melhor forma.– Tem razão é preciso aprender a lidar com a doença pois ela pode te

acompanhar pelo resto da vida - comentou Sarah superinteressada na con-versa.

– Eu tenho um blog, onde eu postei alguns textos falando sobre como me sinto, alguns tratamentos que fá fiz e etc. Veja lá http://convivendocomvi-tiligo.blogspot.com.

– Nossa que bacana! Vou dar uma olhada lá, sim, valeu! - mandou a mensagem antes de clicar no link que o rapaz havia mandado. Porém, antes de ver o blog, continuou a conversa.

– Não há de quê! - respondeu ele amigavelmente - E quanto ao vitiligo, eu penso o seguinte, não temos um ícone de beleza. As imagens relacionadas ao vitiligo são feias, quero melhorar esta imagem pra quando um jovem des-cobrir que tem vitiligo, veja que existe vida, beleza e diversão, mesmo com vitiligo.

– Estou totalmente de acordo com você! Acho que dá pra viver muito bem tendo vitiligo - respondeu Sarah, pouco antes de o moço se despedir e sair do messenger. Foi então que ela entrou no blog e encontrou alguns textos bem interessantes que falavam da relação de Volney com o vitiligo. A última postagem era assim:

“Meu nome é Volney, sou do interior de São Paulo, tenho 29 anos, sol-teiro, formado, cursando MBA em Marketing e Vendas. Tenho uma porrada de defeitos e uma porrada de qualidades. É claro, não sou diferente da maioria das pessoas que sonham, buscam e lutam pela sua felicidade. Convivo com o vitili-go desde os 14 anos e confesso esta convivência atualmente está mais tranquila. Mas já foi muito complicada, eu não aceitava de forma alguma, ainda mais eu sendo extremamente vaidoso, porém humano, sujeito às inconstâncias da vida. Sonho e luto para um dia ter o prazer de me ver curado do vitiligo, porém, sei que há uma força maior por traz de todas as coisas. Sei que o vitiligo me trouxe muita dor, mas também me ensinou muitas coisas.Se sou o que sou hoje é devi-do às experiências de minha vida, e o vitiligo é uma delas.”

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Sarah gostou muito da forma como ele encarava a doença. Pois mesmo se importando muito com a aparência, ele não deixava de se aceitar como era, nem de ter forças para buscar a cura. Enquanto algumas pessoas achavam que o vitiligo não pertencia a elas, Volney, pelo contrário, acreditava que aquilo fazia parte de sua vida e de sua história. Outro texto encontrado no blog que chamou a atenção de Sarah foi o intitulado “Indescritível”. Nele, Volney conta como é a sensação de estar quase totalmente curado do vitiligo. Como começou o tratamento estético e que, apesar de dolorido e demorado, valeu muito a pena tê-lo feito. O texto se encerra com um depoimento muito sin-cero e comovente do rapaz:

“Com isso, eu consegui resgatar muitas coisas da minha vida, mas prin-cipalmente a mim mesmo. Hoje, eu me sinto pleno novamente, é como se eu voltasse atrás e resgatasse os sonhos daquele adolescente de 14 anos de idade.”

Sarah também conheceu pessoas de fora do estado, como, por exem-plo, a funcionária pública de 44 anos, Vanda Rosane Nicola, que mora em Imbé, no Rio Grande do Sul. A mulher contou que possui vitiligo desde os 10 anos de idade e que ele surgiu após um acidente de carro que sofreu junto com a mãe, quando teve muito medo de perdê-la.

– Que tratamentos você já fez para o vitiligo? - a garota repetia a mes-ma pergunta que fizera aos outros.

– Fui várias vezes ao médico na adolescência, mas a partir dos 20 anos parei de procurar tratamentos, pois sabia que não adiantava. Já usei laser, po-madas, chás e muito remédio. Somente a Melagenina, aquele remédio cubano, surtiu um efeito significativo, mas estava me deformando e dando pelos pelo corpo todo, então parei. Hoje não faço mais nada.

– E você consegue conviver bem com a doença?– Agora é normal, mas já tive dias que briguei muito com meu Deus.

Já sofri preconceito dentro até da minha própria família. Mas aprender a con-viver com vitiligo é muito fácil é só focar a mente em outras coisas, ter metas. Tenho dois filhos, sou casada há 22 anos, tive muitos amores. Devemos ser felizes com o que temos, preservar as amizades, a família e o caráter. “O resto é somente o resto” - escreveu ela entre aspas no messenger.

– É não podemos deixar de viver a nossa vida só por causa de uma mancha na pele.

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– Claro! Quando era jovem fui até Riviera, na divisa com Paraguai, pas-sar férias. Em um clube à noite tinha jogo de luzes, e meus vitiligos ficaram muito à mostra. O cara que dançava comigo perguntou o que era eu respondi “Lepra”. Ele se afastou e contou para os seguranças e eu tive de sair do clube. Estávamos em uma turma. Saímos todos e foi uma noite muito divertida. Até hoje, quase 20 anos depois, encontro amigas e rimos muito sobre isso!

– Ah, deve ter sido muito engraçado mesmo! - comentou Sarah, pouco antes de se despedir da moça e encerrar a conversa.

Alguns dias depois, Sarah encontrou mais pessoas respondendo ao seu tópico na comunidade do vitiligo no Orkut. Adicionou cada um deles no messenger para conversar. Quem veio falar com ela primeiro foi Fernanda Lima da Conceição. Ela tem 28 anos e mora no bairro de Diadema, São Paulo. Antes de falar de si mesma, Fernanda se adiantou perguntando a Sarah sobre ela e o seu vitiligo. Sarah respondeu calmamente, sem se incomodar com o interesse da mulher. Pela internet, ao contrário de pessoalmente, ela não se importava de responder perguntas e contar sobre suas coisas.

Depois do interrogatório, foi a vez de Sarah começar a perguntar. Quis logo saber como e quando ela tinha descoberto que tinha vitiligo.

– A primeira lembrança de ter o vitiligo eu tinha 4 anos - respondeu Fernanda pelo messenger - Não me lembro bem como descobri. As manchas estavam sempre lá e, por muitos anos, porém elas eram pequenas e não cres-ciam. Descobri de fato que se tratava de vitiligo aos 20 anos, quando fui a primeira consulta no dermatologista, pois as manchas aumentaram.

– Já fez tratamento?– Sim. Eu me recordo de quando tinha 8 anos. A pediatra com a qual

me consultei viu as manchas e receitou levedura de cerveja. Fiz uso do Pro-topic. Ele fez com que algumas das manchas sumissem e outras pararam de crescer. Parei o tratamento por motivo da gravidez e amamentação, mas te-nho consulta agendada e irei retomar o tratamento.

– E você convive bem com a doença? Já sentiu preconceito?– Eu sempre uso roupas que não o mostram. Mas, o fato de saber que

ele está lá nas minhas pernas me deixa triste. E já senti preconceito, sim, de pessoas mal informadas e estúpidas, que acham que basta passar uma poma-dinha que ele vai embora, ou que perguntam se é contagioso, ou piadas do tipo: “Ah, é aquela doença do Michael Jackson?”.

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– Sempre tem uns engraçadinhos, né? - comentou Sarah, para tentar confortar a moça. – Mas sabe dizer o que desencadeou o aparecimento do vitiligo em você?

– Falta de estrutura familiar, abandono e indiferença por parte dos meus pais desde quando ainda era bebê. Em certos momentos, as manchas ficam mais discretas. Agora em momentos de muitos problemas que se esten-dem por um longo período e que me causam estresse, as manchas se mostram mais brancas e evidentes e a pele fica mais ressecada na área. Lamento a falta de interesse, divulgação e tratamento mais acessível pelo SUS. Uma vez, acon-teceu uma situação engraçada: meu filho Murilo, de 5 anos, quando tinha 3 anos, pegou uma toalha para “limpar” as manchas nas minhas pernas.

A moça falava sem parar, as mensagens apareciam uma atrás da outra na tela, Sarah mal tinha tempo para comentar alguma coisa. Fernanda parecia estar realmente muito interessada em compartilhar suas experiências, e, ao contrário de Sarah, não continha a língua, ou melhor, os dedos, na hora de dizer o que estava pensando.

Quanto mais Sarah conversava com outros portadores de vitiligo, mais ela queria continuar compartilhando experiências e conhecendo mais sobre sua doença. Quando Adriana da Silva Diel a adicionou no messenger, dizendo que era da comunidade do vitiligo, Sarah a aceitou na hora e já logo iniciou a conver-sa. Nem dois minutos se passaram e o assunto já se desviou naturalmente para a doença que tinham em comum. Adriana, que tem 28 anos e mora em Santa Ca-tarina, é empresária, professora universitária e economista. Não se importou em responder as perguntas da curiosa Sarah e contou um pouco de sua história.

– Em novembro de 2008, estava me preparando para ir a um show de Victor e Léo. Fui fazer a maquiagem e percebi que, na minha testa e no canto do olho esquerdo, havia duas pequenas manchas brancas, menores que um grão de arroz. Dali em diante. comecei a perceber a evolução das manchas que foram se espalhando por toda minha testa e lado esquerdo do rosto. Há seis meses elas estão estabilizadas.

– Já tentou algum tratamento?– Sim, já fui em quatro dermatologistas, um patologista e um acupun-

turista. Já fiz tratamentos com cetoconazol, com viticromim, com Elidel, com Protopic, acupuntura. Mas nenhum deles teve resultado significativo. Hoje, não faço mais nada, apenas esqueço que tenho a doença.

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– Então você aprendeu a conviver bem com isso?– Hoje, após quase 2 anos, posso dizer que convivo bem. Obvio que

não queria ter, mas se desenvolvi a doença, agora tenho que aprender a lidar com ela, e não deixar de viver, de ser feliz por causa dela. Sou muito mais que manchas brancas. No começo, achava que todos me olhavam por causa disso, mas hoje consigo encarar numa boa, pelo menos as manchas estão estagnadas e nenhuma nova tem surgido. Acredito que o preconceito está muito mais em nós que nos outros.

– Nisso tenho que concordar com você! Às vezes acabamos criando paranóias e achamos que todos a nossa volta estão olhando pras manchas, achando esquisito, quando na verdade nem estão olhando pra isso, ou então estão apenas curiosos - comentou Sarah - E você tem idéia do que pode ter causado o vitiligo em você?

– No meu caso, o que causou o vitiligo foram duas perdas na família, bem próximas. Dois avós tiveram câncer, e, logo depois desse choque, surgi-ram as manchas. Mas com o vitiligo aprendi a dar mais valor às coisas e à vida, tem tanta doença pior que vitiligo. Aprendi a não ser tão egoísta em relação à doença, poderia ter algo que me limitasse a viver, mas realmente o vitiligo nunca te impossibilita de realizar nada, basta que você assuma, acredite e pense. Me considero curada, as manchas surgiram por algum motivo, tive que repensar muitas coisas, aprendi a dar mais importância e valorizar mais minha vida. Percebi que cada ser humano tem, de alguma forma, problemas, uns maiores outros menores. Existem doenças que realmente limitam as pessoas de viver, de ser feliz. No meu caso, não, apenas tenho manchas na face que, se quiser, cubro-as com maquiagem. Acredito que a cura vem do nosso interior. Os que, como eu, estão desacreditados nos tratamentos oferecidos, deviam parar de gastar e não obter resultados, e começar a cuidar mais do corpo e da mente, porque, talvez assim, tenham mais sucesso.

– É, seria bom se todos pensassem assim como você! - afirmou Sarah, após ler o que Adriana havia dito, pois realmente concordava com seu ponto de vista.

A próxima pessoa com quem Sarah conversou foi Susi Carine Almeida Nobre Góes. Ela é da Bahia, tem 33 anos, e é Assistente Social. Susi contou à garota que possui vitiligo há uns 17 anos, e que já tentou vários tipos de tratamentos.

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– Usei viticromin um tempo. Depois não consegui achar mais o remé-dio. Já tomei vários chás de cajá, que ajudaram a repigmentar. Agora estou usando uma pomada que vi nas comunidades, mas não estou vendo muitos resultados. Passei a mentalizar a filosofia japonesa, Seicho-no-ie, que me en-sinaram e, por incrível, que pareça minhas manchas sumiram quase todas. Porém, depois das minhas outras duas gravidezes, minha imunidade baixa voltou e reapareceram várias manchas.

– Hoje, como você convive com o vitiligo?– Não gosto muito, porque eu não era assim, minha pele era muito

bonita e saudável. Eu era bem diferente, não só a pele, mas meus cabelos, meu corpo, dentes. Então eu me transformei, fiquei diferente. Moro em uma cidade pequena e todo mundo me conhece. As pessoas que não moram mais aqui quando me veem, às vezes, nem me reconhecem. Isso para mim é cons-trangedor, tem gente indiscreta que fala: “A Susi era tão bonita”. Eu estava acostumada a todo mundo me elogiar desde pequena. Mas eu não deixo isso me abater sabe? Eu tento levar sem problemas, mas é difícil.

– Entendo completamente, mesmo que a gente se aceite e tente convi-ver bem com a doença, ainda é difícil lidar com a reação das pessoas a nossa volta - disse Sarah, ao se lembrar do quanto não gostava de ser criticada - Já sofreu preconceito por conta do vitiligo?

– Não, na verdade nunca soube de nada. Ninguém nunca me falou nada, nem percebi. A gente mesmo é que pode sentir um pouco excluída às vezes. Meus filhos até me ajudam a passar a pomada. Fico um pouco cons-trangida com meu marido, mas ele não fala nada, eu é que sinto um pouco de vergonha. Só é mais difícil com crianças, de 2 a 4 anos de idade, que quando eu brinco ou tento me aproximar, elas não gostam, acho que têm medo. Fico péssima por isso, pois adoro crianças, mas não demonstro, porque sei que elas não têm maldade.

– Você acha que o vitiligo tem mesmo causas emocionais?– Sim, porque de todos os médicos em que já fui, nenhum falou real-

mente o que causa o vitiligo. Mas também não sei dizer que tipo de emoção exatamente é essa, porque muita gente passa por momentos de estresse e não desenvolve vitiligo. Por exemplo, minha mãe é super nervosa e não tem vitili-go. Mas ela descarrega o nervoso dela e eu não. Sou igual ao meu pai, eu fico quieta, não sei soltar a raiva, eu guardo.

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O queixo de Sarah caiu ao ler a última frase de Susi. Era a primeira, das pessoas com quem conversou, que se assemelhava a ela quanto ao que po-deria ter causado o vitiligo. Calar as emoções. Guardar a raiva. Ela até soltou um suspiro de alívio. Não era a única, afinal. Todos os outros, em sua grande maioria, sofreram traumas muito fortes, como perda de parentes e acidentes graves. Mesmo ainda achando seus problemas pequenos diante disso, Sarah se sentia um pouco melhor por saber que não era a única com vitiligo por esse motivos.

Após encerrar mais essa conversa, agradecendo imensamente a atenção de Susi, Sarah viu uma nova janela de solicitação em seu messenger. Aceitou o pedido, ao reconhecer, pelo nome, outra moça da comunidade do Orkut. Luciana da Rosa Castanho, uma dona de casa de 28 anos, que mora São José dos Campos. Compartilhando experiências, e Sarah já estava ficando craque nisso, descobriu que Luciana possui vitiligo desde os 7 anos de idade, quando observou uma pequena mancha na perna direita e os pais a levaram à farmácia achando que era uma alergia ou micose.

– O farmacêutico falou que era vitiligo, mas que deveríamos consultar um dermatologista. O dermatologista, então, confirmou a suspeita do farma-cêutico: era vitiligo.

– Que tratamentos você já fez? - Sarah já não perguntava mais “se” a pessoa tinha feito tratamento, pois certamente sempre obteria uma resposta positiva.

– Fui ao dermatologista apenas uma vez. Ele indicou Viticromim, po-mada e comprimidos. Usei por mais ou menos 5 anos e surtiu efeito. Depois, meus pais descobriram um tratamento que não tinha nem registro no Minis-tério da Saúde. Eu usei até os 16 anos. Tomava o remédio mais um complexo vitamínico e também fazia uma dieta alimentar. Não comia enlatados, embu-tidos, nem carne vermelha nem comida gordurosa ou frita.

– Nossa, que barra! Esse tratamento deve ter sido difícil - Sarah co-mentou já imaginando como seria fazer aquele tratamento. Nunca que iria conseguir ficar sem comer tudo aquilo. Ela já não era muito fã de comidas saudáveis. - Como você lida com o vitiligo?

– Meu maior problema sempre foi ter que parar pra explicar o que era, principalmente quando eu era criança, já que a doença não era tão conhecida. Mas nunca tive vergonha e nem fui discriminada. Nunca tive problemas nem

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com relacionamentos, nem com trabalho ou estudo. Acho que tudo gira mais em torno da segurança e capacidade da pessoa em relação a si mesma do que em torno da doença, que não interfere em nada além da aparência.

– Você tem ideia do que pode ter te causado o vitiligo?– Acredito que existam formas diferentes da manifestação do vitiligo -

Luciana continuava a enfatizar suas opiniões a cada resposta - No meu caso, pode até ser que o início tenha sido desencadeado por algum trauma emo-cional. Eu não me lembro de nada nesse sentido na época. Mas percebo que nunca tive alterações nas manchas nas situações mais estressantes da minha vida como morte de parentes. Não acredito que as razões para o surgimento do vitiligo em todas as pessoas sejam de fundo emocional. Em algumas pes-soas, é esse o caso, em outras, não.

“As minhas manchas de vitiligo estacionaram aos 16 anos, quando parei o tratamento que era um tanto penoso, devido à dieta que eu precisava fazer. Em quase 13 anos sem tratamento algum, não apareceram novas manchas e nem as antigas aumentaram. Penso muitas vezes em iniciar novamente algum tratamento, mas penso, ao mesmo tempo, que seria um pouco desgastante. Hoje, o único temor que tenho é que a doença se manifeste em minhas filhas. Eu soube lidar muito bem com a doença desde a infância e ela não afetou minha vida, mas não sei como minhas filhas lidariam com isso, até porque não se sabe o tanto de manchas que cada pessoa pode ter.”

Sarah também conheceu a dona de casa Kátia Andréa de Morais Nas-cimento, de 38 anos, que mora na Praia Grande. Portadora do vitiligo há 26 anos, ela contou que descobriu a doença por acaso, quando a mãe foi prender seu cabelo e viu uma mancha em seu pescoço.

– Eu tinha também manchas nos joelhos, mas minha mãe achava que era marca de algum machucado. - ressaltou Kátia ao contar sua história - Desde que descobri as manchas, imediatamente procurei tratamento. O primeiro foi com umas pomadinhas que não me lembro mais os nomes. Sem resultados, procurei um tratamento que, segundo o charlatão do médico, vinha de Cuba, aquele “me-lagenina”, e em seguida tomava banho de luz. Gastei uma nota preta e nada de resultados. O que me deu alguma esperança foi um tratamento que fiz com tri-soralem, com cápsulas e em seguida sol moderado. Esse foi o único tratamento que deu certo para mim na época. Usei por cerca de uns 10 anos. Mas parava um pouco, pois o remédio é muito forte, pode trazer diversos efeitos colaterais.

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“Agora iniciei um tratamento com corticóides. Esse, sem dúvida, foi o que me deu mais resultados até hoje. Chama-se predsin comprimidos, e clob-x gel, mas como são muito potentes só pode ser usado durante 4 semanas, dar um descanso e depois retomar. Mas faço o uso por conta pois apareceu nas minhas mãos. São pequenas, mas muitas manchas.E comecei a tomar também Viticromin, faz 5 dias.”

Sarah ainda se espantava cada vez que as pessoas listavam os inúmeros tratamentos que já haviam feito. Era de se admirar a tamanha força de von-tade dessas pessoas que passavam tanto tempo em um mesmo tratamento, e iam atrás de tudo o que fosse preciso para, enfim, se verem livres do vitiligo. Exatamente por não ter tais características, é que Sarah ficava tão impressio-nada.

– Depois de tanto tempo, como é que você convive com o vitiligo hoje?

– Olha, fico bem tranquila, desde que não apareça no meu rosto e nem nas minhas mãos. Não que eu goste das manchas, mas, no resto do corpo, tento manter a calma. Por enquanto, não me escondo do mundo, não. As pessoas ainda olham muito, principalmente quando estou na praia. Quando eu tinha uns 14 anos, um vizinho me perguntou se o que eu tinha era AIDS. Nossa, isso acabou comigo. Mas hoje não sinto mais nenhum preconceito, por não ter muitas manchas.

– Você sabe dizer o que lhe causou o vitiligo?– Um tio meu, muito querido, faleceu, na época. Acho que foi isso.

Eu também tive uma infância muito conturbada, acredito que isso também mexeu muito com meu emocional. Meus pais brigavam demais, se separavam e voltavam de uma hora para outra, se agrediam entre eles. Eu e meus irmãos apanhávamos muito. Nossa, era horrível.

“Ás vezes fico desencanada e não uso nada para o vitiligo, mas às vezes trato durante uns dois anos. Nunca vou aprender a conviver com o vitiligo. Não nasci com ele, não aceito. Às vezes, desistimos do tratamento, pois são muito demorados. Mas temos que ter paciência e determinação se quisermos ver os resultados.”

– Tem toda razão! - concordou Sarah, mesmo não sendo possuidora de tais qualidades.

Em um fim de tarde, Sarah decidiu passar mais um vez em seu tópico

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na comunidade “Eu tenho Vitiligo”, que já estava às moscas há um tempinho. Havia uma nova resposta, mais uma mulher. Ela se chamava Daniele Lima Rieger, arquiteta, 30 anos, de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Sarah pegou o endereço do messenger e a adicionou. Alguns minutos depois já estavam conversando.

– Tenho vitiligo há 20 anos. Quando tinha 9 anos começaram aparecer algumas manchinhas. Mas isso só acontecia após ter batido ou levado algum tipo de pancada nas pernas. Como era criança,vivia fazendo arte e, quando me machucava, eu já dizia: “vai sair outra mancha branca”

– Que interessante! - comentou Sarah, pois ainda não tinha ouvido fa-lar da relação das manchas de vitiligo com machucados – O vitiligo interfere na sua vida ou convive bem com ele?

– Nunca interferiu em nenhum tipo de relacionamento, inclusive nos amorosos. Sempre agi com naturalidade e, quando alguém me perguntava, sempre respondia com segurança, com a intenção de mostrar para todos que não era um fim do mundo. Como o vitiligo estacionou quando eu era ainda criança, eu aceitei as manchinhas que ficaram. Graças a Deus, nunca sofri pre-conceito! Só o grande inconveniente de ficar explicando para as pessoas que desconhecem a doença que ela não é contagiosa, o resto tiro de letra!

– Isso é ótimo! - Sarah mostrou-se interessada ao saber – Você acredita que o vitiligo tem mesmo causas emocionais?

– Acredito, sim! Mas ainda tenho minhas dúvidas, porque já passei por duas fortes depressões por razão financeira e amorosa e nada alterou o vitili-go. Entretanto, um simples estresse com o trabalho já fez surgirem algumas manchas novas. Além disso, faço tratamento contra a ansiedade, sou uma pessoa muito nervosa e sobrecarregada mas, com os antiansiolíticos, consigo controlar bem o meu nervosismo e me tranquilizar.

“Quando criança era sozinha, e sempre quis um irmãozinho ou irmã-zinha. Aos 9 anos, a minha irmã nasceu. Foi quando começaram a aparecer as manchas, mas não acredito que tive um choque ou que foi por ciúmes, porque sempre desejei uma irmã e não me senti excluída.

“Um dia, uma espírita chegou até a mim e disse que a causa do vitiligo era a de que alguém da minha família tinha sido morto queimado. Fui pergun-tar para minha avó, se tínhamos parentes que morreram queimados e, sabe o que ela disse? Que tenho, sim. Um priminho meu morreu queimado! Caiu em

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um tacho de geléia. Antigamente, faziam doce em imensas panelas. Como ele era muito levado, subiu em um banco para ver o doce, e acabou caindo. Ele também tinha 9 anos, fiquei pasma!”

– Meu Deeeeeeeeus! - Sarah digitou a palavra no teclado com vários “es”, para expressar seu choque. Era realmente uma história e tanto!

Era fascinante para Sarah perceber a enorme diversidade de opiniões e pontos de vista que poderia haver sobre um mesmo assunto. Mesmo já sa-bendo disso antes, era diferente do que ver muitas delas ali materializadas em sua frente. E cada vez que conversava com algum novo amigo, portador de vitiligo, descobria novas maneiras de encarar a doença. Algumas boas, outras nem tanto. Mas todas elas faziam Sarah refletir e repensar sobre suas próprias atitudes. A garota ia ampliando cada vez mais seus horizontes. Abrindo cada vez mais o seu olhar e sua mente para algo que possuía uma infinidade de formas e manifestações.

O vitiligo é um só, mas em cada pessoa ele se comporta de uma ma-neira. E cada pessoa se comporta de uma maneira em relação a ele. Algumas o aceitam, outras o rejeitam. Algumas buscam diversos tratamentos, outras se conformam com sua condição. Algumas sentem preconceito, outras criam o preconceito em suas próprias mentes. Dependendo de qual for a reação e a atitude, a vida será mais fácil ou mais difícil.

Conviver com o vitiligo não é uma escolha, é um fato. Quem tem não pode simplesmente não querer mais ter aquilo. É algo que se leva, muitas vezes, pela vida inteira. Ainda que muitos tenham dito que não, Sarah acreditava que aquilo fazia parte dela. Mesmo que ela pudesse se tratar e chegar algum dia a curar completamente suas manchas. Isso não vai apagar a época de sua vida em que viveu com o vitiligo. Portanto, ele ainda irá fazer parte do que ela é, sempre!

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Mesmo depois de já ter ido inúmeras vezes ao dermatologista, ter conversado com um psicólogo e ter conhecido diversas pessoas e comparti-lhado com elas experiências com o vitiligo, Sarah ainda tinha muita curiosi-dade sobre a sua doença. Ela estava constantemente buscando informações onde quer que fosse possível para tentar entender o que estava acontecendo com ela. E, para isso, nada mais fácil do que utilizar o meio no qual Sarah tinha mais familiaridade para pesquisar e descobrir coisas, a internet.

Certo dia, quando já estava cansada de ver suas várias redes e am-bientes online, Sarah decidiu entrar em um desses sites de busca. Digitou “vitiligo” e depois clicou em pesquisar. Em menos de um segundo, mais de um milhão de resultados aparecem na tela do computador. Ela leu o título de cada um deles à procura de algum site interessante e confiável. O primeiro que chamou sua atenção foi o site “Comunidade Vitiligo”. Sarah clicou no link e começou a navegar.

O slogan do site era “Vencendo o Vitiligo” e Sarah logo percebeu que isso não tinha a ver com encontrar a cura e, sim, com conseguir ter uma vida normal possuindo a doença. A página continha também diversas histórias de pessoas que tiveram sucesso com tratamentos médicos e psicológicos. Sarah também des-cobriu que havia parceiros como médicos, clínicas, farmácias e psicólogos que contribuíam com o site. Além de haver muitas informações sobre o vitiligo, como dicas de tratamentos, fórum de discussão e artigos.

O que o mundo dizCapítulo 5

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Sarah também encontrou o site da Clínica Vitiligo do Rio de Janeiro. Bisbilhotando nele, descobriu que o médico que a atendeu, anos atrás, quan-do descobriu o vitiligo, trabalhava lá também. Entrou em outro dos sites relacionados, “Dermatologia.net”, e encontrou informações detalhadas sobre o vitiligo. Até mesmo uma afirmação que comprovava algumas das histórias que seus novos amigos haviam contado: “Uma característica da doença é que ferimentos na pele podem dar origem a novas lesões.”

Sarah leu a continuação do texto que explicava a doença com atenção: “Apesar do vitiligo não causar nenhum prejuízo à saúde física, as alterações estéticas muitas vezes causam distúrbios psicológicos que podem prejudicar o convívio social. O grau de comprometimento emocional pode acabar inter-ferindo negativamente na evolução da doença. Quando necessário, o acom-panhamento psicológico dos pacientes em tratamento pode ser fundamental para um bom resultado.”

Mesmo que a garota já soubesse de tais informações, era diferente vê-las ali escritas com tanta propriedade e termos técnicos.

Continuou lendo: “O vitiligo se apresenta de forma e intensidade va-riada em cada paciente, portanto, o tratamento indicado pelo dermatologista deve ser individualizado, de acordo com cada caso. Medicamentos que exer-cem ótimos resultados em alguns pacientes podem não ter efeito algum em outros. Muitas vezes, os resultados parecem estar mais relacionados ao pa-ciente tratado do que ao tratamento em si.”

Aquela constatação presente no site parecia um tanto quanto óbvia para Sarah, afinal o aspecto emocional estava sempre ligado ao vitiligo. Então era de se esperar que cada tratamento se comportaria de forma diferente em cada paciente.

Outro site que chamou atenção de Sarah foi um que se intitulava “Anais Brasileiros de Dermatologia”. Antes mesmo de clicar no link para entrar no site, ela leu, abaixo do título, o começo do texto que falava sobre a doença. “O vitiligo é doença de pele de causa desconhecida que acomete cerca de 1% da população [...]”. A garota pensava nesse número enquanto tentava calcular mentalmente para saber quantas pessoas isso representava. Se Sarah não esta-va muito ruim de contas, 1% da população mundial era aproximadamente 60 milhões de pessoas. Um número considerável para alguém que desconhecia a doença há poucos anos atrás.

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O restante do texto encontrado no site tinha uma linguagem técnica demais para a compreensão de Sarah. Ela até tentou ler algumas coisas, viu que havia várias versões para a causa do vitiligo, mas não entendeu muita coisa.

Navegando um pouco mais pela página, a garota descobriu alguns grá-ficos interessantes. Um deles mostrava a distribuição etária de 100 pacientes com vitiligo, acompanhados ao longo de 10 anos. Claramente a grande maio-ria dos portadores de vitiligo tinha de 30 a 39 anos e de 20 a 29 anos. As duas subdivisões juntas davam mais de 50% das pessoas. As menores parcelas cor-respondiam as pessoas de 60 a 79 anos. A faixa etária onde Sarah se encaixava, de 10 a 19 anos, representava apenas 8% dentro da pesquisa realizada. Ser um caso ainda mais raro, entretanto, não fazia com que Sarah se sentisse pior. Ao contrário, fazia com que ela se sentisse única e especial. Nem ela mesma sabia ao certo o porquê disso, mas era o que sentia.

O outro gráfico sobre vitiligo que Sarah encontrou era ainda mais inte-ressante que o primeiro. Segundo sua descrição os números representavam a “Dispersão de queixas relacionadas ao vitiligo”, com a pesquisa feita com os mesmo 100 pacientes e no mesmo período de tempo da anterior. Disparado na frente com 71% estava o “medo”. Sarah sentiu falta de uma explicação mais detalhada quanto a essas queixas. Afinal apenas “medo” não era muito esclarecedor. O medo é algo muito relativo. “Medo de quê?” pensava a garota ao encarar o gráfico com a testa franzida.

Mais abaixo, com cerca de 50% cada um, estavam a “vergonha”, a “insegurança”, a “tristeza”, a “inibição” e o “desgosto”. Coisas das quais Sa-rah sempre sofreu, com ou sem vitiligo. O interessante era que a doença não agravara estes aspectos. Ela continuou a analisar o gráfico que ia diminuindo gradativamente. “Impaciência”, “irritação”, “infelicidade”, e “imagem negati-va perante os outros” chegavam quase â metade das pessoas consultadas. Até ai, tudo normal, Sarah sabia que, ao menos uma vez na vida já tinha sentido todas aquelas “sensações”. Mesmo que não estivessem diretamente relacio-nadas ao seu vitiligo.

No final do gráfico, apareciam: “raiva”, “amargura”, “falta de autocon-fiança” e “nojo de si mesmo”. Sarah arregalou os olhos quando leu a última queixa. Mesmo que ela representasse apenas 18% dos portadores pesquisados, a garota não pode deixar de se surpreender. “Por que alguém teria nojo de si

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mesmo por possuir manchas que nada mais são do que falta de pigmentação na pele?”. A pergunta soou de forma indignada na cabeça de Sarah. E neste momento ela não pode deixar de se lembrar de sua conversa com o psicólogo Flávio. Afinal, se nem ao menos a própria pessoa se aceita daquela forma, como é que o resto do mundo irá aceitá-la? Ela fechou a janela do computa-dor onde estava o último site e permaneceu por mais alguns segundos parada, apenas olhando para tela e refletindo sobre a questão.

Um barulho característico e uma janela piscando chamaram sua aten-ção, fazendo-a voltar a prestar atenção na máquina a sua frente. Era uma de suas amigas da escola, mandando uma mensagem, via messenger. Sarah respondeu rapidamente e depois disse que estava fazendo uma coisa impor-tante e não podia conversar no momento. Alterou o status para “ocupado” e fechou o programa, deixando-o visível apenas em um pequeno ícone no canto direito e inferior da tela. Fechou todas as outras coisas que não tinham a ver com a sua “pesquisa” e voltou a abrir a página onde havia começado sua busca.

Desceu até o final da página, passou para a próxima para ver os resul-tados seguintes e desceu lentamente a barra de rolagem com o mouse. Infeliz-mente, daí em diante, a maioria dos sites que apareceram eram internacionais, com conteúdo apenas em inglês. Na época, ela não dominava o idioma. Nem se arriscou a tentar entender o que estava escrito. Apenas clicou em alguns e deu uma breve olhada. Ao menos aprendera que a palavra “vitiligo” em inglês tem a mesma grafia que em português.

Sarah voltou a subir até o topo dá página e, olhando pelas opções de busca, encontrou a específica em “notícias”. Clicou no link e, no mesmo ins-tante, novos resultados, totalmente diferentes daqueles que havia encontrado antes, apareceram. Já acostumada a realizar buscas pela internet, a garota logo reparou que as notícias apareciam em ordem cronológica, das mais recentes para as mais antigas.

A primeira notícia relacionada tinha o título: “Vitiligo, que atinge Luiza Brunet, tem tratamento”. Sarah soltou um longo e debochado suspiro ao abrir a página onde se encontrava a notícia. O site era o Terra e a sessão era a de Saúde. “Deveria estar na sessão de entretenimento ou então de famosos”, pensou a garota, mais irônica do que nunca. Ela achava a coisa mais fútil do mundo essas matérias que falavam sobre a vida de celebridades. Mas, mesmo

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assim, continuou a ler, afinal, só assim mesmo para os meios de comunicação falarem algo sobre o vitiligo, quando ele atinge uma pessoa famosa.

Como Sarah já podia imaginar, o título da matéria era apenas uma es-tratégia para atrair a atenção dos internautas. O texto, na verdade, falava bre-vemente da atriz citada no título e de sua aparição na revista Claudia, onde ela assumia ter a doença e aparecia nas fotos sem maquiagem nem correção no photoshop para esconder as manchas. O resto do texto continha informações básicas sobre a doença e falava de alguns outros casos famosos como o do Michael Jackson.

O segundo resultado da pesquisa por noticias sobre vitiligo chamou mais a atenção de Sarah, já pelo título: “Ensaio em preto e branco”. A maté-ria estava no site do jornal Cruzeiro do Sul e a garota leu em um parágrafo, abaixo do título da matéria, que ela também havia sido publicada na versão impressa, na página 2. A princípio, o texto falava de uma forma bem pessoal, sobre política. Sarah chegou a verificar o título novamente para ver se estava lendo a matéria certa, e, de fato estava. Continuou a leitura, e foi encontrar, lá pelo terceiro parágrafo, algo sobre vitiligo. O autor do texto contava o caso que havia ouvido de um amigo dermatologista. Ela começou a ler a história que parecia ser mais uma história comum sobre uma menina que descobre o vitiligo e os pais a levam para procurar tratamento. Entretanto, um trecho da história chamou mais a atenção de Sarah:

“Acompanhada do pai, também afro-descendente, a menina voltou. O médico quis saber sobre o tratamento. – ‘Não tem jeito, doutor! Ela sempre esquece de tomar o remédio; se eu insisto, acaba tomando, mas é uma luta para que se exponha ao sol. A briga é diária. Desse jeito, as manchas não vão sair...’. Perspicaz, Adhemar matou a charada. Perguntou à paciente o motivo de tanta resistência à terapêutica; não obtendo resposta, tentou ajudá-la: - ‘Você não se trata porque quer ficar branca, não é?’ – ‘Sim, eu quero ficar branca’. O pai ficou furibundo. Em casa, talvez, tenha aplicado o corretivo.”

O queixo de Sarah caiu mais uma vez. “Como assim ela queria ficar branca? Por que?”. De certo, a menina da história devia sofrer muito precon-ceito ou então ter muito preconceito consigo mesma por ser negra. “Por que então, alguém não diz pra ela que o vitiligo dificilmente irá se espalhar por 100% de seu corpo?”. As perguntas surgiam em sua mente, sem resposta, deixando a garota inquieta.

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Decidiu, então, ir para a próxima página e ver que outra história ab-surda ainda iria encontrar por ali. O site era o G1, e a manchete era: “Polícia investiga queimaduras em paciente com vitiligo após remédio”. A matéria tra-tava de um caso de erro médico, no qual a portadora de vitiligo havia obtido queimaduras na pele por usar um remédio com dosagem muito alta, receitado por uma médica. A mulher e seu marido levaram o caso à polícia. À principio Sarah não entendeu o por quê do envolvimento da polícia no caso. Porém, depois de ler a matéria toda, ela compreendeu que o caso era sério e que, se não punissem a médica que cometeu o erro, outras pessoas poderiam vir a sofrer os mesmos danos que a moça da matéria.

O simples fato de uma mulher ter vitiligo e procurar tratamento não era nada incomum a ponto de render uma matéria a um site grande site de notícias. Mas, incluindo um erro médico e colocando a polícia no meio, renderia até a capa de um jornal renomado. Sarah não tinha conhecimento suficiente para chegar a tal conclusão, mas ela sabia que a maioria das pessoas apenas se interessaria em ler aquela notícia, pois ela tinha a palavra “polícia” logo no título. Afinal, como a garota já tinha ouvido muito dizer, o povo gosta mesmo é de uma desgraça.

Em seguida, novamente, Sarah percebeu que apareciam diversas pági-nas internacionais com conteúdo em inglês. Para continuar a pesquisa, então, ela decidiu ir procurar diretamente nos sites de grandes veículos de comuni-cação de que tinha conhecimento. Começou acessando o site da maior e mais conhecida revista jornalística do país, a Veja Online. Todos os resultados eram da mesma autora e da mesma coluna que se chamava “Espelho Meu – Der-matologista trata dos assuntos de beleza e saúde”

O artigo tinha o título “Vitiligo” e vinha seguido de uma foto de Mi-chael Jackson. Inicialmente, o texto falava de uma entrevista que o astro pop deu à apresentadora americana Oprah Winfrey, na qual ela perguntava sobre a mudança da cor de sua pele e ele contava sobre a doença. Mais abaixo, estava o vídeo da entrevista mencionada pela autora do texto. Sarah clicou no botão de “play” e esperou o vídeo carregar. Quando estava na metade, ela já come-çou a assistir. Tinha legendas em português, então ela conseguiu entender perfeitamente o que diziam.

Ao final do vídeo, uma lágrima caía dos olhos de Sarah e rolava lenta-mente por sua face. A forma como o astro falara sobre a doença e como se sentia em relação a ela tocou profundamente o coração de Sarah. A garota já

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havia visto em vários lugares especulações de que Michael pudesse ter vitiligo, mas nunca tinha visto o astro falando daquilo. Ela definitivamente o admirava muito por suas músicas e performances de dança, ele era inegavelmente um grande artista. Mas agora ela passara a admirá-lo também como pessoa.

A apresentadora Oprah perguntou a ele sobre a mudança na cor de sua pele e se ele estava fazendo algo para deixar de ser negro. Ele então respon-deu: “eu tenho uma doença de pele que destrói a pigmentação da pele. Não posso fazer nada, entende? Mas as pessoas criam histórias de que não quero ser quem eu sou. Isso me magoa”. Entretanto, o que realmente mexeu com os sentimentos de Sarah foi o que ele disse depois: “Estamos tentando con-trolar e usar maquiagem para igualar a pele, porque isso deixa marcas na pele. Mas sabe o que é engraçado? Porque isso é tão importante? Sabe, isso não é importante pra mim. Sou um grande fã de arte, adoro Michelangelo. Se eu pudesse falar com ele ou ler sobre ele, gostaria de saber o que o inspirou para se tornar o que é. Não com quem ele saiu ou passou a noite ou porque quis tomar sol por muito tempo. O que há de errado? Aquilo importa pra mim.”

Sarah imaginou que naquela época pouco se conhecia sobre o vitiligo, por isso era tão estranho para o mundo, aceitar que um negro tenha virado branco. Michael Jackson já havia passado por sérios traumas na infância e depois que ficou famoso ainda tinha que aguentar as criticas e especulações sobre sua doença. A forma como o astro encarava aquilo se assemelhava muito à da garota. “Porque isso é tão importante?”, repetia a pergunta em sua mente, que já havia feito diversas vezes a si mesma. “Porque todos se incomodam tanto com a aparência dos outros, ainda mais no caso de viti-ligo, quando o que está realmente com problemas é a nossa parte interna e não externa?” Sarah, assim como Michael, porém, não tinha a resposta para tais perguntas.

Enxugou as lágrimas e tentou voltar a se concentrar em sua pesqui-sa. O restante do texto falava apenas mais detalhadamente sobre o vitiligo e listava alguns tipos de tratamentos. Sarah já estava cansada de ler sobre tudo aquilo então decidiu passar para a próxima página. No mesmo site, havia mais um artigo da mesma autora falando também sobre o rei do pop. Se intitulava “Michael Jackson e o vitiligo”. Nesse texto, falava-se sobre uma apresentação histórica do cantor de quando ele usou pela primeira vez a luva branca que se transformou em uma de suas marcas registradas.

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“De acordo com informações divulgadas na imprensa americana, a ideia original da luva era esconder a pele manchada pelo vitiligo – doença que Michael repetidamente afirmou ter, mas que muitos não acreditaram. Depois da morte, Arnold Klein, seu dermatologista, confirmou publicamente que Michael tinha vitiligo. E agora, com a divulgação de trechos de sua autópsia, não resta dúvida: Michael tinha vitiligo. Ele deve ter se esforçado muito para não mostrar suas lesões ao público.” A cada linha que Sarah lia do artigo, mais se impressionava com o quão ignorantes e cruéis as pessoas podiam ser. A grande mídia não parecia estar interessada em apurar realmente se o astro tinha ou não a doença. Afinal a história de que ele havia modificado a própria pele para deixar de ser negro era muito mais interessante e com certeza con-seguiria muito mais leitores.

Sarah nem se deu ao trabalho de terminar de ler o artigo, pois ele ter-minava da mesma forma que o anterior. Ela resolveu acessar outro site, dessa vez de um dos maiores jornais do país, o Estadão. Quando pesquisou por vitiligo, as primeiras três notícias que apareceram eram também sobre o rei do pop. Sarah achou melhor então pular para a seguinte. “País proíbe aparelhos usados para bronzear” era o título da matéria. Ela falava que a Agência Nacio-nal de Vigilância Sanitária proibiu no dia anterior, em todo o Brasil, a venda e o uso de equipamentos para bronzeamento artificial, três meses depois de a Agência Internacional de Pesquisas em Câncer alertar que raios ultravioleta das câmaras podem causar câncer.

O vitiligo era mencionado apenas mais adiante na matéria quando fala-vam sobre algumas exceções no uso desses aparelhos, no caso de tratamentos estéticos como do vitiligo, psoríase e micose, com câmaras Puva. Sarah achou muito interessante a frase que iniciava um dos parágrafos seguintes: “Segundo a Anvisa, não há evidências de benefícios que compensem os riscos do uso estético das câmaras”. Sarah chegou a rir em voz alta com a brilhante cons-tatação da agência. Para a garota não existia nada, muito menos em relação a estética, que compensasse se expor ao risco de desenvolver um câncer! “Que absurdo!” pensava ela ao reler a afirmação.

Ainda no site do jornal Estadão, outra notícia que chamou a atenção de Sarah foi a “Pesquisa identifica gene ligado ao vitiligo.” Como bem estava informado no título, tratava-se de uma descoberta feita por pesquisadores da PUC do Paraná. Encontraram uma possível alteração em um gene ligado as

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células de pigmento da pele e que isso poderia predispor a pessoa ao vitiligo. Lendo a matéria toda, a garota apenas conseguiu verificar que nada daquilo era 100% comprovado.

Ao ler o último parágrafo da matéria, Sarah não pode deixar de sentir um certo desinteresse por parte dos pesquisadores nessa área: “A forma e os motivos que levam a esse defeito no gene são temas para estudos comple-mentares, que os pesquisadores acreditam que possam ser feitos por outras universidades ou até por laboratórios interessados em produzir medicamen-tos”. Soou meio que: “Já fizemos nossa parte! Agora os interessados no as-sunto que se virem!” Ria-se Sarah ao pensar em ver isso escrito na matéria.

Sarah partiu, então, para outro site. O de um jornal tão conhecido e conceituado como o anterior. Em sua versão online, a Folha de S. Paulo tinha matérias parecidas com as encontradas até agora. A garota então pas-sou direto por todas as notícias que eram sobre assuntos que já tinha lido, e sobre Michael Jackson. Encontrou uma interessante: “Transplante de pele é alternativa para pessoas com vitiligo”. Sarah leu na matéria que através de um estudo realizado por médicos americanos, era possível “curar” o vitiligo com processo cirúrgico. A garota já conhecia a técnica, pois seu médico havia lhe contado um pouco sobre ela.

O texto explicava detalhadamente como era feito esse transplante e em que tipo de vitiligo ele era recomendado. Havia até mesmo uma ilustração no final explicando passo a passo o processo. Sarah passou alguns minutos olhando o “desenho” para conseguir entendê-lo.

Os olhos de Sarah já estavam cansados de tanto olhar a tela brilhante do computador. Até mesmo para ela, que costumava passar bastante tempo online, aquilo era desgastante. Fechou todas as janelas que tinha aberto, des-ligou o messenger, e levantou-se da cadeira do computador. Foi em direção a sua cama e se jogou lá, apoiando a cabeça no travesseiro. Fechou os olhos para descansar a vista, mas permaneceu acordada. Pensando e refletindo so-bre tudo o que acabara de ler.

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A tarde estava fresca e agradável. Pela janela do quarto, entrava uma brisa leve que balançava a cortina de forma harmoniosa. Sarah estava sentada à escrivaninha passando o tempo com uma das coisas que mais gos-tava de fazer; escrever. Sua agenda estava aberta na data do presente dia, ela era colorida e cheia de desenhos nas bordas das páginas. Seu dia havia sido monótono e entediante, não havia nada que ela poderia escrever ali que fosse importante ser registrado. Isso acontecia frequentemente, pois na maior parte do tempo, seus dias eram sempre iguais. Para não deixar aquelas páginas em branco, ela escolhia algum assunto para escrever, ou então inventava alguma história, ou simplesmente ia escrevendo o que vinha em sua cabeça.

A brisa que vinha lá de fora acabou virando um vento mais forte e Sarah sentiu os pelos do braço arrepiarem de frio. Ela se levantou e foi até o armário pegar uma blusa. Abriu a porta do armário, pegou a primeira blusa que viu na frente e a vestiu. Enquanto colocava as mão entre a nuca e cabelo para tirá-los de dentro da blusa, ela encarou a própria imagem refletida no es-pelho que ficava na porta do armário, do lado de dentro. Chegou mais perto e colocou a blusa de lado um pouco, para visualizar a sua mancha no ombro.

Sarah passou longos minutos na frente do espelho, examinando as manchas de vitiligo que tinha na pele. A do ombro, que ela vira crescer e depois de um tempo se estagnar. E a da raiz do cabelo, que só percebera que tinha por causa dos fios brancos de cabelo que nasciam daquela parte de sua

A curaCapítulo 6

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cabeça. De tudo o que Sarah tinha visto sobre a doença nos últimos anos, só tinha uma coisa que ela ainda não entendia. Se a mancha estava ali em sua pele, resultante de suas frustrações emocionais, porque ela ainda sentia todo o peso de seus sentimentos guardados em suas costas? Porque aquilo tudo não fora substituído pelo vitiligo? Seria uma ótima troca, na concepção de Sarah.

Mais alguns minutos apenas foram necessários para que ela chegasse a uma conclusão. Quando sua mente se fechou guardando suas raivas, tristezas e alegrias, seu corpo encontrou uma forma de gritar. De tentar mostrar ao mundo que aquilo estava fazendo mal a ele. Porém, se o mundo a sua volta não vê e nem entende o sentido daquela mancha, de nada adianta. Tudo con-tinuará guardado ali onde sempre esteve.

O vitiligo servia então como um simples alerta, uma mensagem que vinha do fundo de seu ser, para ela mesma. E não importava o quanto ela tentasse se esquecer de seus problemas, o quanto tentasse ignorar os apelos de seu coração. Aquela marca em sua pele sempre estaria ali, lembrando-a que alguma coisa estava errada. Sarah queria encontrar uma saída, uma cura. Não para suas manchas, ela até gostava delas. Mas para seu interior, sua mente, sua alma, seu coração. Algo onde ela pudesse despejar tudo que tinha dentro dela. Algo com que ela pudesse se expressar de forma sincera. E principal-mente algo que pudesse aceitar e compreender os seus motivos, sem julgá-la e criticá-la antes de conhecê-la.

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O vento entrou forte de novo pela janela e a garota cobriu o peito to-talmente com a blusa, fechando o zíper até quase o final. O vento fez com que as folhas da agenda de Sarah fossem virando, uma a uma. Ela olhou aquilo como se olhasse para uma tela de tevê onde estava passando um filme muito interessante. As folhas viravam voltando ao início da agenda, era como se vol-tassem no tempo. A medida que isso acontecia, uma ideia invadia sua mente. Ao contrário da agenda, Sarah não podia voltar no tempo, muito menos apa-gar tudo que já fora escrito em sua história. Entretanto, assim como a agenda, Sarah ainda tinha muito tempo pela frente, muitas páginas em branco para continuar a escrever. Cabia somente a ela, e a mais ninguém, então, continuar escrevendo tudo igual com o mesmo lápis velho, ou então comprar um novo e começar a escrever diferente, começar a mudar sua história.

Sarah sempre foi uma das melhores alunas da classe, em todos os anos da escola. Uma de suas matérias preferidas era o português. A partir da quinta série, quando começou a ter aulas de redação e literatura, ela passou a gostar ainda mais da matéria. Sempre tirava notas altas e ganhava elogios dos profes-sores. Até a conclusão do ensino médio, foi assim.

A garota sempre conseguiu se expressar muito bem através da escrita, através de seus textos. Sempre adorou ler livros longos e de histórias fictícias. Sempre se comunicou melhor com as pessoas pela internet do que pessoal-mente. Então, a ficha finalmente caiu, e Sarah se deu conta do que deveria ser muito obvio há tanto tempo. “Como eu não percebi isso antes?” se pergunta-va ela, ao juntar todos os pontos e encontrar, finalmente, a sua cura.

Foi até sua escrivaninha e começou a abrir as gavetas à procura de folhas de papel em branco. Encontrou um pacote aberto com um bloco que deveria ter no mínimo umas cem folhas de sulfite. Fechou sua agenda e a deixou de lado. Colocou o bloco de papel em cima da escrivaninha e procu-rou por um lápis novo em seu estojo. Encarou a folha em branco por alguns instantes e depois começou a escrever uma história que começava mais ou menos assim:

“Sarah sempre foi uma garota tímida e discreta...”

FIM

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Contexto médico e históricoO vitiligo é uma doença de fundo emocional caracterizada pelo surgimen-

to de manchas brancas na pele. Segundo o livro Psicossomática: uma visão simbólica do vitiligo, de Marisa Campio Müller, a doença ocorre quando as células que dão pig-mento à pele (melanócitos) são destruídas e a melanina não pode ser mais produ-zida. Ainda no livro de Müller afirma-se que a incidência da doença na população mundial é de 1%, afetando todas as raças e ambos os sexos. “As manchas da pele, causadas pela despigmentação, geralmente são branco-leitosas, de contorno nítido e irregular. De início mostram-se pequenas, aumentando gradualmente” (MÜLLER, 2005, p. 39) afirma a autora. Segundo informações publicadas no site Dermatologia.net, o vitiligo costuma atingir principalmente a face, extremi-dades dos membros, genitais, cotovelos e joelhos, mas pode chegar a acometer quase toda a pele. Quando atinge áreas pilosas, os pelos ficam brancos.

Existem dois tipos de vitiligo: o segmental e o não segmental. No pri-meiro, as manchas aparecem muito cedo e espalham-se rapidamente pela área afetada, mas a atividade geralmente cessa após determinado período. Já o não segmental espalha-se progressivamente pelo corpo durante a vida do paciente e é comumente associado a um grave prognóstico, podendo cobrir a pele da pessoa quase que totalmente, segundo o livro de Marisa Müller.

O doutor Paulo Luzio, neurocirurgião e dermatologista da Clínica de Vitiligo, explicou, detalhadamente, como surge o vitiligo, em entrevista con-cedida a autora do livro:

A realidade por trás da ficçãoPosfácio

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“A pele é dividida em três camadas. Epiderme, derme e hipoderme. Na epiderme, existe, na parte de baixo, uma célula chamada melanócito, que são as células responsáveis pela formação do pigmento da pele, a melanina. Na derme, ficam os nervos que dão sensibilidade à pele. Em momentos de estresse, os nervos liberam substâncias que são capazes de matar os melanó-citos. Quando essas células morrem, elas vão expor o seu conteúdo interno, proteínas que geralmente estão escondidas dentro da célula. Sempre que célu-las morrem, alguém tem que limpar, e quem faz esse papel no corpo humano são os glóbulos brancos.

Para o sistema imunológico, tudo que se apresenta a ele antes do nas-cimento será considerado como normal, e aquilo nunca será atacado. Tudo que se apresenta a ele depois do nascimento será considerado como anormal, e será atacado. E na situação da morte dos melanócitos, ele acabou de ser apresentado a uma proteína nova, que ele não conhecia. Ele passa, então, a identificar os melanócitos como células anormais. E vai atacá-las espontane-amente.

Essa morte celular causada pelos glóbulos brancos é muito lenta. Ele demora semanas, meses, anos, às vezes, décadas, até conseguir matar todas as células. Por isso, o vitiligo responde bem a tratamento. Por outro lado não há como evitar que o clico recomece em novos períodos de estresse”.

Várias hipóteses foram atribuídas acerca do vitiligo, já que até hoje ele é uma doença de causa desconhecida. Müller apresenta três hipóteses men-cionadas por autores consultados pela médica na execução de sua tese. São elas: hipótese auto-imune; hipótese neurogênica; hipótese autodestrutiva. “O vitiligo é uma doença crônica. A evolução é completamente imprevisível” (MÜLLER, 2005, p. 44), relata a autora. Müller também afirma que muitos pacientes atribuem o início do vitiligo a trauma físico, doença, estresse emo-cional por perda de pessoas próximas ou acidentes.

Ao contrário do que muitas pessoas pensam o vitiligo não é uma do-ença incurável. Existem muitos tipos de tratamentos, porém no livro citado, segundo Azulay e Azulay (apud MÜLLER, 2005, p. 44) a escolha do método depende do grau da doença e das características físicas e psicológicas do pa-ciente. Podem ser recomendadas desde aplicação de loções nas manchas e exposição ao sol até a opção da total despigmentação em casos mais graves e avançados. Há também o tratamento cosmético (camuflagem), que apenas

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disfarça as manchas na pele, mas que é essencial a autoestima de algumas pes-soas. O uso de filtro solares também é apontando como um tipo de tratamen-to, pois as áreas afetadas pelo vitiligo são totalmente desprovidas de proteção, já que não possuem melanina (pigmentação).

“É preciso considerar vários aspectos ao tratar um paciente com vi-tiligo como por exemplo: tipo de vitiligo, fase evolutiva e como ele vêm se comportando” é o que afirmou o doutor Paulo Luzio. Esses aspectos são divididos em 5 fases: piorando rapidamente, piorando lentamente, parado a menos de um ano, parado há mais de um ano e repigmentando espontanea-mente. É importante também observar a capacidade de cada mancha melho-rar ou não com o remédio. Se o tratamento for cirúrgico, deve-se considerar a localização de cada mancha, tamanho de cada mancha, e a área total do corpo acometida.

Se a pessoa com vitiligo estiver em tratamento para pigmentar, é bom não usar protetor solar na área da mancha, apenas no resto do corpo. Na área do vitiligo é bom deixar pegar um pouco de sol. Especialmente o sol forte da hora do almoço, entre 10 da manhã e 2 da tarde. Não pode fazer depilação a laser, não pode fazer tatuagem, não pode colocar piercing. Para fazer cirurgia plástica, tem que estar com o vitiligo parado há pelo menos um ano.

[...] O vitiligo é, pois, uma doença sem uma etiologia definida, com prognóstico

reservado e que acarreta uma série de transtornos emocionais nos pacientes. O

próprio surgimento do vitiligo está associado a situações de estresse emocio-

nal. Contudo, ao tratar pacientes com vitiligo, é necessário que o médico seja

capaz de reconhecer que o doente não é somente a sua pele, mas um todo, e,

como referem Azulay e Azulay (1997), um ser humano que adoece, compro-

metido pelo seu psiquismo. No entanto, poucos estudos têm sido realizados

vinculando o vitiligo aos fatores psicológicos (MÜLLER, 2005, p. 46).

No trecho citado, a autora reforça o fato de que o aspecto psicológico da doença não deve ser ignorado. Muito pelo contrário, ele deve até mesmo ser levado em consideração na busca da causa da enfermidade e nos tratamen-to da mesma. Ainda sobre a psique do vitiligo observamos outra passagem que relata os transtornos sofridos por quem tem de conviver com a doença:

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[...] Ficou bem evidenciado, nos estudos pesquisados, o desconforto, a vergo-

nha, a discriminação, a baixa estima e o sentimento de inferioridade a que são

submetidos os pacientes com vitiligo. A dificuldade nos relacionamentos in-

terpessoais, principalmente com estranhos, e, numa relação íntima, a limitação

no uso de roupas, a necessidade de usar “creme-camuflagem”, o impedimento

de muitas atividades de lazer. Esses aspectos os leva a se sentirem diferentes

e excluírem-se. Esperava-se que pudesse ter havido algum trabalho de aten-

dimento psicológico, como retorno, a esses pacientes sujeitos das pesquisas.

(MÜLLER, 2005, p. 47)

As observações da autora Marisa Müller evidenciam a carência de estu-dos relacionados ao vitiligo que ressaltem o seu lado psicológico, emocional e social, assim como as características apresentadas em seu livro sobre as ori-gens e consequências da doença. Podemos concluir que a psique não é apenas uma coadjuvante e sim peça principal na saúde do corpo humano. Afinal, se ela pode dar origem a tal doença manifesta na pele, pressupõe-se que ela tam-bém é de igual valia para o tratamento e cura da mesma.

Usando como base ainda o livro de Marisa Müller, afirma-se que o vitiligo é uma doença da antiguidade.

[...] Os dados mais antigos que se supõe serem referentes ao vitiligo foram

encontrados em escritas egípcias. Nair (1978) relata que o Ebers Papyrus, um

clássico médico de cerca 1500 a.C., mencionava dois tipos de doenças de pele.

Uma delas refere-se a uma falta de pigmentação e parece ser vitiligo. (MÜL-

LER, 2005, p. 35)

Além dessa passagem, a autora cita diversos outros autores que relatam a suposta aparição de casos de vitiligo na história. Alguns na Índia, outros na Arábia e até mesmo registrados em passagens bíblicas. Marisa explica que, num passado antigo, o vitiligo foi frequentemente confundido com a lepra. Isso porque a palavra hebraica zara at que significava manchas brancas, foi traduzida como lepra, quando a Bíblia foi passada do hebraico para o grego e depois para o inglês.

Há certa controvérsia quanto à origem da palavra vitiligo. Segundo Habif, ela é derivada do grego vitelus, que significa bezerro. As manchas bran-

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cas de vitiligo assemelham-se com os sinais brancos dos bezerros. Já Leider e Rosenblum (1988) apontam a origem como derivada da palavra latina vitulum, que significa mancha ou falta. O termo vitiligo se tornou usual como nomen-clatura científica até os dias de hoje, tendo sido usada pela primeira vez por Aulo Corneliu Celso, em sua obra De Medicina (apud MÜLLER, 2005, p. 38).

Segundo livro de Marilda Emmanuel Novaes Lipp, Mecanismos Neurop-sicofisiológicos do stress: teoria e aplicações clínicas, estresse emocional ou físico pode desencadear ou agravar o vitiligo. Entretanto, o mais comum é a doença pro-mover alterações emocionais no paciente. “No vitiligo o controle do estresse é considerado como parte fundamental, sendo indicada, em muitos casos, psicoterapia de apoio” afirma a autora (LIPP, 2003, p. 113).

Porque falar sobre o vitiligo?A primeira e mais significativa das razões é a motivação pessoal, sem

a qual não haveria nem se quer a mais remota intenção de tratar sobre este assunto. A autora do livro é portadora do vitiligo há mais de 10 anos.

Outro fator importante para a escolha desse tema é a sua repercussão. Não só pelo fato de ser uma doença de grande incidência no mundo, chegan-do a atingir 1% da população mundial, segundo registra o livro de Müller, mas também por ser um assunto polêmico que chama a atenção por causar pre-conceitos e discriminação. A pele é o maior órgão do corpo humano e tam-bém é o que fica mais exposto, tanto a possíveis doenças e infecções como também ao olhar e julgamento das pessoas ao redor.

O vitiligo não é uma doença contagiosa, como a AIDS por exemplo. Porém não é possível saber, apenas através da visão, se uma pessoa tem AIDS ou não. Portanto, os portadores dessa doença não se sentem inibidos de andar na rua e interagir com as pessoas em um primeiro contato. Já o vitiligo, se não for disfarçado com maquiagem, pode ser facilmente notado na pele das pessoas que têm a doença. Principalmente se ela for do tipo não segmental, que progride por quase todo o corpo, ficando bem aparente. Tal aspecto di-ferenciado pode causar repulsa e má interpretação por parte das pessoas ao redor, que, por falta de informação, passam a evitar o contato com a pessoa que tem vitiligo.

A falta de informação sobre o assunto talvez não seja o ponto principal

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dessa questão. A maioria das pessoas têm acesso a internet e a bibliotecas onde podem encontrar diversos registros sobre doenças de pele e sobre transtornos psicológicos. O que faz falta, não só nesse, mas em outros temas semelhantes, é a discussão aberta e honesta. Uma pessoa com vitiligo dificilmente busca-rá um lugar onde relatar sua experiência com a doença, pois possivelmente sinta vergonha de possuí-la. Porém, existem grupos na internet como a Co-munidade Vitiligo, que pretendem mostrar uma saída a essas pessoas. Neste site é possível encontrar informações sobre a doença, tratamentos, fóruns de discussão e também registros de depoimentos de pessoas que conseguiram vencer a doença e superar o trauma.

Quanto à relevância jornalística do tema escolhido, existem dois aspec-tos a serem considerados: os valores da notícia e os elementos de interesse da noticia. Quanto aos valores, tanto a proximidade, a importância quanto a oportunidade podem ser levadas em consideração no tema abordado, pois a pesquisa está focada dentro do estado de São Paulo. A saúde física e mental da população é um fato constantemente abordado em publicações jornalísticas e de impor-tância inquestionável, uma vez que é ao redor dela que giram todas as outras funções do ser humano. O projeto em si é a oportunidade de se estudar e se aprofundar num tema que exige um tempo e espaço maior, recebendo o destaque merecido.

Dentre os elementos de interesse da notícia, destacamos o de fato incomum, pois mesmo sendo uma doença que afeta uma parcela considerável da po-pulação, o assunto não é comumente abordado pela grande mídia. Não há grandes descobertas nem grandes escândalos, isso porque o vitiligo é uma doença que se manifesta somente na pele e não coloca em risco a vida da pessoa, desde que ela não exponha as áreas afetadas ao Sol. A expectativa, também é um elemento de interesse presente no tema, já que o vitiligo ainda é uma doença de causa desconhecida. Se pensarmos que o público alvo da publicação é, em grande parte, os próprios portadores da doença, então a expectativa também é relacionada ao fato de que a evolução da doença é totalmente imprevisível, como foi citado mais acima. Por mais que se façam tratamentos e que vejam algum resultado, os pacientes com vitiligo sempre estão em busca de novas informações que os ajude a entender as causas, a evolução e as possíveis consequências da doença. Tal fato também explica o elemento de interesse classificado como acontecimentos que afetam um grupo.

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Uma das receitas infalíveis para um trabalho ser bem feito é unir o útil ao agradável. Ou seja, fazer algo que precisamos com algo que temos que fazer por obrigação. Com o Projeto Experimental Voo Solo, desenvolvido durante o ano de 2010, isso não foi diferente. O significado pessoal que o tema tem para a autora, junto com a sua importância jornalística e social, são os elementos chaves para a execução deste trabalho.

Sendo assim, a obra contará também com a subjetividade empregada tanto na captação como no relato dos fatos e depoimentos recolhidos. Porém esse aspecto não interferiu na transmissão integra e verdadeira das informações, muito menos na interpretação e possibilidade de reflexão do leitor sobre obra.

Porque escrever um livro-reportagem?Livro-Reportagem Texto foi o segmento escolhido para o desenvolvi-

mento do tema do presente trabalho. Edvaldo Pereira Lima, em seu livro Pá-ginas Ampliadas, define o livro reportagem como um veículo de comunicação jornalística que desempenha papel específico, de prestar informação ampliada sobre fatos, situações e idéias de relevância social, abarcando uma variedade temática expressiva. O autor também afirma que: “O livro-reportagem pre-enche vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rádio, pelos noticiários da televisão, até mesmo pela internet”(LIMA, 2009, p. 1 e 4). Isso porque, hoje, o jornalismo contemporâneo é preso a regras de execução e produção das grandes mídias que muitas vezes o impedem de abordar em sua totalidade determinados assuntos que talvez merecessem mais atenção.

Em seu livro, Edvaldo subdivide o livro-reportagem em diferentes grupos. Dentre eles, o que mais se encaixa no perfil desta publicação é o livro-reportagem-retrato. Seu propósito é focalizar um setor da sociedade e pro-curando traçar um retrato do tema em questão, visa elucidar, sobretudo seus mecanismos de funcionamento, seus problemas, sua complexidade. Também é possível encaixar este livro na classificação de livro-reportagem-atualidade. Ele busca selecionar os temas atuais dotados de maior perenidade no tempo, mas cujos desdobramentos finais ainda não são conhecidos. Permite assim que o leitor possa resgatar as origens do que ocorre, seu contorno do presente e as tendências possíveis de seu desfecho no futuro.

O fato de tratar o vitiligo pelo âmbito da psicologia permite o desen-volvimento de diversas reflexões e até mesmo criticas, tanto por parte da au-

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tora do livro-reportagem, como também por parte dos diversos depoimentos e fontes que tiveram voz através dele.

O primeiro e talvez mais importante aspecto do livro-reportagem, que faz com que ele seja adequado para o desenvolvimento do tema já está implí-cito na própria definição do que é livro-reportagem, citada acima. Pois, segun-do Edvaldo Pereira Lima, “ele estende a função informativa e orientativa do jornalismo cotidiano, ampliando, para o leitor, a compreensão da realidade”. Isso porque o livro maximiza os recursos operativos do jornalismo, podendo oferecer uma cobertura muito mais profunda sobre determinado fato, o que é um dos principais objetivos deste livro.

O jornalismo literário é uma alternativa aos que não querem ficar pre-sos a espetacularização cada vez mais presente na mídia de massa, segundo o jornalista e professor Felipe Pena, em seu livro Jornalismo Literário. “Revista de fofocas, tablóides e até a chamada grande mídia estão entorpecidas pela busca da audiência e dos patrocinadores. Um puxa o outro, em um ciclo vicioso, inesgotável”(PENA, 2006, p. 13) afirma o autor do livro. Pena vai além e afir-ma que esse gênero não serve somente para que o jornalista exercite sua veia literária, mas sim para potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da reali-dade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead e principalmente garantir perenidade e profundidade aos relatos. “No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira” (PENA, 2006, p. 13), provoca Felipe Pena com seu caracte-rístico humor ácido. Porém, algumas linhas abaixo o autor diminui sua crítica ao dizer que o jornalismo literário não ignora o que aprendeu no jornalismo diário, nem joga suas técnicas narrativas no lixo. Apenas as desenvolve de maneira que acaba constituindo novas estratégias profissionais.

Sendo assim, o texto feito para o livro-reportagem, mesmo diferenciando-se do texto do jornalismo cotidiano, ainda usa algumas de suas técnicas e recursos, como por exemplo, a técnica da pirâmide invertida e a captação de informações através de entrevistas a fontes especializadas. Da mesma forma, o texto do jor-nalismo literário também deve se valer dos recursos e artifícios da literatura em sua execução. Com textos mais longos e trabalhados, a narrativa dentro do livro reportagem é uma das ferramentas mais importantes, e por isso deve ser pensada juntamente com a formatação do roteiro e do conteúdo que será publicado.

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No livro O texto da reportagem impressa de Oswaldo Coimbra diz-se que:

[...] A estrutura do texto da reportagem narrativa não se apóia num raciocínio

expresso. Sua característica fundamental é a de conter os fatos organizados

dentro de uma relação de anterioridade ou posterioridade, mostrando mudan-

ças progressivas de estado(COIMBRA, 1993, p. 44).

Assim como citado acima, também aprendemos durante as aulas de Gestão em Jornalismo Impresso com o professor Sérsi Bardari, que toda nar-rativa implica operações discursivas, que contêm enunciados de estado e ação; que sempre há uma ou mais transformações dentro do episódio narrado. Es-sas transformações são divididas em quatro fases da narrativa: manipulação, competência, performance e sansão. É através desses conceitos que o texto jornalístico literário deve ser construído, de modo que o fato relatado tenha um começo, meio e fim, mesmo que eles não venham apresentados nesta ordem.

Na mesma linha de pensamento, colocamos também outra característica literária que não pode ser desconsiderada pelo jornalismo que pretende narrar um tema em profundidade. A natureza da literatura, segundo Marcelo Bulhões, em seu livro Jornalismo e literatura em convergência, é de dotar a linguagem verbal de uma dimensão em que ela não é meio, mas fim. “Na literatura, a linguagem não é mera figurante, mas centro das atenções”(BULHÕES, 2007, p. 12). Ou seja, o importante não é só o que se narra, e sim como se narra. Que recursos linguís-ticos e discursivos são usados para enfatizar e caracterizar determinada obra. O autor também dá a sua definição sobre a natureza do jornalismo, que seria a de tomar a existência como algo observável, comprovável, palpável a ser transmi-tido como produto digno de credibilidade(BULHÕES, 2007, p. 11). Prestando um testemunho do “real” fixando-o e ao mesmo tempo buscando compreendê-lo. Vemos no seguinte trecho, como Bulhões relaciona as duas expressões:

[...] Vistas tais diferenças fundamentais entre jornalismo e literatura, é de supor

que as duas expressões percorressem caminhos separados e até opostos, uma

se posicionando na contramão da outra. Um simples olhar retrospectivo, no

entanto, dá testemunho de momentos de uma recíproca atração irresistível,

pois as manifestações de convivência e conexão não foram isoladas ou discre-

tas. (BULHÕES, 2007, p. 27)

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Mais à frente na publicação, Marcelo Bulhões cita como principais pontos de convergência entre literatura e jornalismo a narratividade e a tem-poralidade.

A pauta jornalística desenvolvida na produção de um livro-reportagem é quase que um roteiro de programação. Detalhando todos os passos, locais, horários, custos e orientações necessárias ao repórter, que segundo o livro A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística de Nilson Lage, é aque-le que está onde o leitor, ouvinte ou espectador não pode estar. Porém, assim como no jornalismo cotidiano, a pauta deve seguir a sua função primária, que segundo o livro citado, é a listagem dos fatos a serem cobertos e dos assuntos a serem abordados em reportagens, além de eventuais indicações logísticas e técnicas. A pauta é essencial para a execução do trabalho de um repórter. Assim como afirma Lage “o trabalho da reportagem não é apenas o de seguir um roteiro de apuração e apresentar um texto correto. Como qualquer proje-to de pesquisa, envolve imaginação, insight...” (LAGE, 2009, p. 35).

Um dos grandes diferenciais do livro-reportagem é a possibilidade de rea-lizar uma obra de jornalismo especializado. A segmentação de conteúdos da mí-dia nos dias de hoje é cada vez maior, e necessita cada dia de mais profissionais, não apenas qualificados profissionalmente, mas que tenham experiência em de-terminadas áreas especificas de editoração. Na produção de um livro reportagem é possível desenvolver essa especialização de forma bastante ampla. O livro de Nilson Lage comenta a reportagem especializada no trecho a seguir:

[...] A informação jornalística é o espaço privilegiado da reportagem especia-

lizada. Uma peculiaridade dela é destinar-se a públicos mais ou menos hete-

rogêneos. A máxima heterogeneidade obtém-se na audiência presumível de

uma emissora de televisão em circuito aberto (audiência de massa) a mínima

heterogeneidade possível em jornalismo encontra-se entre os leitores de ma-

gazines os sítios de internet destinados a aficionados de uma atividade prática

ou conhecimento. É claro que, quanto mais específico o público, mais se pode

particularizar a linguagem. (LAGE, 2009, p. 113)

Outra tarefa que será bem desempenhada pelo veículo escolhido é a de transformação de conhecimento cientifico tecnológico em informação jorna-lística. Pois existem diversos termos médicos e até mesmo psicológicos que

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tiveram de ser explicados para que o leitor tenha uma compreensão geral do que é relatado. Nilson Lage lista em seu livro alguns dos objetivos específicos que se têm ao tratar de ciência e tecnologia numa reportagem especializada. Dentre eles o de fornecer insumos e modelos de pensamento para reflexão mais atualizada sobre grandes temas como a vida, o universo e o futuro. “A re-portagem de ciência e tecnologia cumpre algumas funções básicas: informati-va; educativa; social; cultural; econômica; político-ideológica.” (LAGE, 2009, p. 122), lista o jornalista. E ele completa afirmando que o texto jornalístico não é nem pretende ser exato, a exatidão é objetivo da pesquisa científica.

Além de todos os motivos e conceitos citados acima para a escolha deste segmento, o mais relevante talvez seja o simples fato de que o público específico a que este projeto será destinado busca a informação mais concreta e perene possível. Tanto os portadores de Vitiligo, quanto médicos, psicólo-gos ou qualquer outra pessoa que se interesse pelo tema, irá querer guardar e ter a oportunidade de também refletir sobre o tema. E um livro proporciona essa ligação melhor do que qualquer outro meio.

Estrutura gráficaA fim de estruturar o presente livro de acordo com a linguagem e

abordagem adotadas pela autora, foram escolhidos especificamente alguns elementos que o compõe.

O formato da publicação é de 16 centímetros de largura por 23 de altura. A medida foi escolhida, pois é comumente encontrada em livros de romance e ficção. Mesmo sendo um livro do gênero reportagem, a linguagem é totalmente literária. Desse modo, o tamanho do livro imprime ainda mais leveza e descontração ao assunto.

O papel escolhido para a impressão do produto foi o Pólen Soft, papel offset com tonalidade diferenciada e textura acetinada, que reflete menos a luz e confere ao material uma apresentação mais sofisticada.

A fonte escolhida para o corpo do texto foi a Garamond, pois é serifada, o que transmite seriedade e credibilidade, além de ser melhor visualizada no tamanho pequeno. Já nos títulos das sessões e capítulos do livro foi utilizada a fonte Credit Valley.

A capa foi pensada e desenvolvida em cima do desenho criado pela própria autora do livro. A fonte utilizada no nome do livro é a Tempus Sans

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ITC. Na quarta capa há uma pequena sinopse da obra, apresentando pontos importantes da história.

As ilustrações presentes nos capítulos foram produzidas pela própria autora. Foram criadas com a pura e simples intenção de proporcionar aspecto mais intimo e descontraído a narrativa. Fazendo com o leitor se envolva ainda mais com a história do livro.

Bibliografia

Bibliografia relacionada ao tema:ANAIS BRASILEIROS DE DERMATOLOGIA. Vitiligo e Emoções. Disponível em: <http://www.anaisdedermatologia.org.br/public/figuras.aspx?figura=1&id=100941> e <http://www.anaisdedermatologia.org.br/public/figuras.aspx?figura=2&id=100941>. Acesso em: 11 de abr. 2010.

CLÍNICA DE VITILIGO. Tratamento Clínico, Cirúrgico e a Laser do Vitiligo. Disponível em: <http://www.clinicadevitiligo.com.br/>. Acesso em: 15 de abr. 2010.

COMUNIDADE VITILIGO. Com você na luta contra o Vitiligo. Dispo-nível em: <http://www.vitiligo.com.br/>. Acesso em: 10 de abr. 2010.

DERMATOLOGIA.NET. Vitiligo. Disponível em: <http://www.dermato-logia.net/novo/base/doencas/vitiligo.shtml>. Acesso em: 22 de abr. 2010.

MÜLLER, Marisa Campio. Psicossomática: uma visão simbólica do viti-ligo. 1 ed. São Paulo: Vetor, 2005.

LIPP, Marilda Emmanuel Novaes. Mecanismos Neuropsicofisiológicos do stress: teoria e aplicações clínicas. 1 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

Bibliografia relacionada à atividade jornalística:BULHÕES, Marcelo Magalhães. Jornalismo e Literatura em convergên-cia. 1 ed. São Paulo: Ática, 2007.

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Page 88: Livro - À flor da pele

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COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa: um curso sobre sua estrutura. 1 ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.

LAGE, Nilson. A reportagem: Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 4 ed. Barueri, SP: Manole, 2009.

PENA, Felipe. Jornalismo Literário. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2006.

Sites Noticiosos:ESTADÃO.COM. Versão Impressa. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091112/not_imp465095,0.php> e <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20091103/not_imp460222,0.php> Acesso em 25 de setembro de 2010.

FOLHA ONLINE. Equilíbrio e Saúde. Disponível em: <http://www1.fo-lha.uol.com.br/folha/equilibrio/noticias/ult263u722836.shtml> Acesso em 25 de setembro de 2010.

G1. Polícia investiga queimaduras em paciente com vitiligo após remé-dio. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2010/09/policia-investiga-queimaduras-em-paciente-com-vitiligo-apos-remedio.html> Acesso em 25 de setembro de 2010.

TERRA SAÚDE. Vitiligo que atinge Luiza Brunet tem tratamento. Dis-ponível em: <http://saude.terra.com.br/interna/0,,OI4667264-EI1497,00-Vitiligo+que+atinge+Luiza+Brunet+tem+tratamento.html> Acesso em 25 de setembro de 2010.

VEJA. Espelho Meu, por Luiza Mandel. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/estetica-saude/arquivo/vitiligo/> e <http://veja.abril.com.br/blog/estetica-saude/doencas/michael-jackson-e-o-vitiligo/> Aces-so em 25 de setembro de 2010.

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Não poderia deixar de registrar nas páginas deste livro os meus mais sinceros agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para o desenvolvimento do Projeto Experimental Voo Solo. Primeiramente, quero ressaltar que, apesar de se chamar Voo Solo, sozinha eu não teria conseguido fazer nem um terço do que fiz neste projeto.

Minhas amigas e companheiras de grupo desde o início do curso, Ju-liana Barbosa e Samira Hidalgo, me deram muito mais do que uma mãozinha. Elas sempre me apóiam em tudo que decido fazer, até mesmo as coisas mais arriscadas e doidas. Quando eu não acreditava que fosse capaz, foram elas que me deram força pra seguir em frente. Assim como eu também dei força a elas em seus projetos e em tantas outras coisas.

Agradeço imensamente ao meu querido professor e amigo Sérsi Bar-dari, que orientou da melhor forma possível este trabalho. Deixo também o meu muito obrigada ao coordenador do Projeto Voo Solo, Professor Roberto Medeiros, e ao Professor Elizeu Silva, que me ajudou muito com a parte grá-fica do livro. E também a todos os outros professores que tive durantes os 4 anos de curso. Todos foram de fundamental importância, prestando ajuda nos momentos em que precisei.

Por último, agradeço a minha família e a Deus por me fazerem chegar até aqui e encerrar mais essa etapa em minha vida.

Agradecimentos

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Heloisa Alencar Ikeda tem 21 anos de idade, nasceu na cidade de Mogi das Cruzes, São Paulo, onde mora até hoje, e formou-se em Jorna-lismo, pela Universidade de Mogi das Cruzes.

Desde a adolescência descobriu que uma de suas grandes paixões era

escrever. Sua facilidade em lidar com a linguagem escrita foi um dos fatores mais importantes para que ela escolhesse que curso faria na faculdade.

Hoje, seu mais importante projeto pessoal e profissional é o presente livro-reportagem. Produto no qual pode ter liberdade suficiente para desen-volver várias de suas habilidades, como escrever, desenhar e diagramar, sem deixar de usar sua criatividade em nenhum momento.

Assim como em todos os projetos que desenvolveu anteriormente, Heloisa sempre teve como principal meta a realização pessoal. Nunca iniciou nenhum trabalho almejando ser melhor que os outros nem visando alcançar prêmios. O importante sempre foi estar feliz e satisfeita com o que faz. Ter a certeza de que foi um trabalho bem feito, que deu o melhor de si naquilo. Não por humildade em excesso nem por egocentrismo, mas por acreditar que nós somos sempre os melhores juízes dos nossos próprios erros e acertos.

Email: [email protected]: heloisaikeda.blogspot.com

Twitter: twitter.com/heloikeda

Perfil

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