livro de mitos de povos indígenas do Xingu...Ele é capaz de fazer água e também peixes. Assim é...

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Memórias de tempos antigos livro de mitos de povos indígenas do Xingu Apoio INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação

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Memórias de tempos antigos

livro de mitos de povos indígenas do Xingu

Apoio

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

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CGEEI – Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena

Coordenador Kleber Gesteira e Matos UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

Reitora Ana Lúcia Almeida Gazzola FALE – Faculdade de Letras

Diretora Eliana Amarante de Mendonça Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterras:

escrita, leitura, traduções Coordenadora Maria Inês de Almeida

A Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) foi fundada em 1995 para defender o patrimônio territorial, ambiental e cultural dos povos indígenas do Parque Indígena do Xingu (PIX). Possui sede no Posto Indígena Diauarum e escritório na cidade de Canarana – MT. É composta por um Conselho Político que inclui lideranças das 14 etnias do PIX.A Atix atua na fiscalização dos limites do Parque, participa na gestão dos sistemas de saúde e educação, no desenvolvimento de atividades para geração de renda e na promoção e resgate cultural.Conselho:Makupá Kaiabi (presidente), Alupá Trumai (vice-presidente), Kamikia Trumai (secretário), Ianukulá Kaiabi Suiá (secretário executivo), Winti Suyá (diretor executivo), Karin Juruna (diretor de cultura), Tymair‰ Kaiabi (diretor de projetos)

sedeRua Três Passos, 93 – Centro78640-000 Canarana – MT – Brasiltel: 0 xx 66 [email protected]@primeisp.com.br

O Instituto Socioambiental (ISA) é uma associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundada em 22 de abril de 1994, por pessoas com formação e experiência marcante na luta por direitos sociais e ambientais. Tem como objetivo defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambien-te, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que promovam a sustentabilidade socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biológica do país.

Para saber mais sobre o ISA consulte www.socioambiental.org

Conselho Diretor: Neide Esterci (presidente), Sérgio Mauro [Sema] Santos Filho (vice-presidente), Adriana Ramos, Beto Ricardo, Carlos Frederico Marés

Secretário executivo: Beto Ricardo

Secretário executivo adjunto: Enrique Svirsky

Apoio institucional:ICCO – Organização Intereclesiástica para Cooperação ao Desenvolvimento NCA – Ajuda da Igreja da Noruega

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Apresentação

O mito vem do começo, vem da origem dos acontecimentos. Os mitos trazem a história de como tudo aconteceu no mundo, muito antes de existir a escrita e que permanece na cultura

de cada povo. O mito explica a origem do ser humano, do planeta, dos recursos naturais, da música, das festas, dos alimentos e das coisas que existem e fazem parte da cultura.

Mostra tudo que aconteceu há muito tempo atrás.É a história de antigamente que revive hoje em dia e existe para fortalecer a cultura de uma

sociedade, para transmitir as experiências dos nossos antepassados. São histórias sagradas.Os mitos são guardados na memória das pessoas, passados de pais para filhos e hoje em dia

são também escritos. O mito também é ciência, através dele conhecemos a vida dos antepassados, a geografia, palavras antigas, músicas, o modo de viver de cada cultura.

Os mitos são importantes para organizar as relações sociais, a ética e a conduta dos seres humanos em suas comunidades.

desenho de Wary Kamaiurá

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Existem mitos engraçados e outros que deixam a gente triste. Às vezes nos mitos também ocorrem transformações, quando são contados por diferentes pessoas, isso acontece sempre

com as histórias que são contadas e recontadas. Cada narrador também coloca um tipo de beleza diferente, a sua criatividade, na sua forma de contar.

Se não existissem os velhos para nos contar os mitos, as histórias de nossos povos se perderiam no tempo.

Nas aulas da prof. Carmen Junqueira vimos que existiu um pesquisador que disse que o sonho de uma pessoa era o seu mito particular e que o mito era o sonho da sociedade. Portanto, para

ele, o mito é um sonho público e o sonho é um mito particular.

Takap Pi’yu Trumai Kaiabi, Jemy Kaiabi, Iokore Ikpeng, Kaomi Kaiabi, Korotowï Ikpeng, Jowosipep Kaiabi, Tarupi Kaiabi

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Índice

Mitos de origemA origem da água (Aweti) ............................................................................................ 11

Como surgiu o dia e a noite (Waurá) .......................................................................... 33

Origem do dia para o povo Kuikuro .......................................................................... 43

Os gêmeos Sol e Lua e a origem da festa Kuaryp (Aweti) ....................................... 45

Janaryt e Tumej (Aweti) .............................................................................................. 49

A lagoa Makawaja (Aweti) ........................................................................................... 50

Origem da lagoa ‘Ypawu (Kamaiurá) .......................................................................... 52

A origem do dia para o povo Kamaiurá .................................................................... 54

Origem dos porcos (Kamaiurá) ................................................................................... 57

Origem das araras (Kalapalo) ...................................................................................... 61

O rapaz que virou sucuri (Kalapalo) ........................................................................... 62

O homem, o Raposo e sua esposa (Kuikuro) ............................................................ 63

Awara’i, o homem raposa (Trumai) ............................................................................ 66

A origem do pequi (Nahukuá)...................................................................................... 68

O rapaz que pisou no sapo (Waurá) ........................................................................... 70

Origem do fogo e da arraia (Nahukuá) ....................................................................... 73

As estrelas Pomtanom, criadoras do Ratkat, o martim-pescador (Ikpeng) ........... 75

As meninas Pomtanom e Mïrïtko, a muriçoca (Ikpeng) ............................................ 79

Atparumpakno, origem das músicas de ninar (Ikpeng) ........................................... 80

Origem do tamanduá (Ikpeng) .................................................................................... 82

A origem dos pajés (Kaiabi) ........................................................................................ 83

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Um grande pajé (Kaiabi) .............................................................................................. 84

Origem do fumo para o povo Kaiabi ......................................................................... 86

Origem da ariranha (Kaiabi) ....................................................................................... 88

Origem do carapanã (Kaiabi) ..................................................................................... 90

A origem da menstruação para o povo Kaiabi ......................................................... 92

Lua, o rapaz que foi para o céu (Kaiabi) ................................................................... 93

O homem que foi transformado em veado (Kaiabi) ................................................. 95

Ana†txïbï Itxïtxïbï (Yudjá) ........................................................................................... 96

A canoa dada pelo espírito (Yudjá) ........................................................................... 97

Origem da pimenta (Yudjá) ......................................................................................... 99

A origem do povo K†sêdjê ....................................................................................... 100

Origem dos alimentos (K†sêdjê) .............................................................................. 102

Teptiritxi (K†sêdjê) ..................................................................................................... 103

Origem do nome (K†sêdjê) ....................................................................................... 105

Origem do dia e da noite para o povo K†sêdjê ...................................................... 106

A origem do fogo (Panará) ........................................................................................ 108

Histórias de guerraOs dois meninos Ajanga remiara ‘yret (Kaiabi) .......................................................111

Petxitxi Porên (K†sêdjê) .......................................................................................... 118

O primeiro contato do povo Enumania com o branco (Aweti) ............................. 126

A muriçoca terrível (Yudjá) ........................................................................................ 130

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Histórias de namoroNgotára kôt meni txejkô kãm mby – um namoro proibido (K†sêdjê) ................... 133

As moças que foram com os homens lagartas (Kaiabi) ........................................ 141

Kama (Kamaiurá) ........................................................................................................ 143

Karakarajt, o espírito do peixe (Kamaiurá) .............................................................. 145

O rapaz que morreu de repente (Mehinaku)............................................................. 148

O marido mentiroso (Nahukuá) ................................................................................. 149

Kuima’e pajé (Kaiabi) ................................................................................................ 151

Outras históriasEpawa, as abelhas xupé (Yudjá) ............................................................................... 155

História do povo Jagamü (Nahukuá) ........................................................................ 158

História de Kunhãmaru, a mulher enterrada (Kamaiurá) ........................................ 160

História do sapo Arutsam (Kamaiurá) ...................................................................... 164

História do pequi (Kamaiurá) .................................................................................... 171

História de Kanasü (Kuikuro) .................................................................................... 174

Amigo com amigo (Kalapalo) .................................................................................... 175

Os sapos e os caçadores (Yudjá) ............................................................................. 177

O homem que teve medo do bicho (K†sêdjê) ........................................................ 178

História do bacurau (Yawalapiti) ............................................................................... 180

A onça e o sapo (Trumai) ........................................................................................... 182

Kãikuãrim – uma história antiga (K†sêdjê) ............................................................. 183

A coruja e a onça (Kaiabi) ......................................................................................... 185

História do homem que escapou do KupÞkasák (K†sêdjê) .................................. 186

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Mitos de origem

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A origem da água

História narrada por Akatua Aweti e escrita por Makaulaka Aweti Mehinaku

No princípio não havia água para todos. Entretanto, Wamutsini e sua esposa, que foram os primeiros a existir no mundo, tinham sua água particular, que não davam e nem mostravam para ninguém. Wamutsini tinha um riozinho e enganava seu pessoal, que acreditava não existir água nem peixes. Ele fez um riozinho bem pequeno com peixinhos chamado kwãzy, um tipo de cascudinho. Mas ele tinha a água escondida em algum lugar, no galho de uma árvore enorme com muitos peixes.

Wamutsini havia feito seis filhas e um filho. Ele cortou sete troncos e transformou em gente. Uma das filhas se chamava Tanumakalu e o rapaz Warakuni. Tanumakalu tinha se casado com um rapaz do povo da onça e tiveram dois filhos gêmeos. Quando estava chegando o dia do nascimento dos filhos, ela morreu. Sua própria sogra, chamada Uperiru, matou-a por causa de um peido. Ela era uma velha que peidava muito. Quando Tanumakalu estava varrendo a casa a sogra fiava algodão na porta, de repente a sogra peidou, bem na hora que um pedacinho de algodão pulou e grudou na boca de Tanumakalu. Para tirá-lo da boca ela teve que cuspir, como se estivesse cuspindo por causa do cheiro do peido da sogra. A sogra achou ruim e matou-a.

Depois da morte da filha, Wamutsini foi salvar os gêmeos retirando-os de dentro da terra. E assim os gêmeos sobreviveram no mundo e cresceram. Apesar de serem crianças, começaram a ser poderosos, pois eram netos do senhor Wamutsini. Os nomes deles eram Kami (Sol), que era o mais velho e Keri (Lua), o mais novo. Kami e Keri são os nomes do Sol e Lua na língua Yawalapiti, na língua Aweti dizemos Kwat e Taty.

Quando ficaram adultos, jovens poderosos, pensaram e se perguntaram porque não havia água, mesmo porque viviam tomando banho no riozinho, matando os peixinhos chamados kwãzy (cascudinho) para comer. Chegou uma hora em que os irmãos perguntaram para seu avô Wamutsini:

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– Ô vovô!– Oi.– Quem é o dono da água?– Quem será? É o avô de vocês, Janaryt, a única

pessoa que tem água – disse Wamutsini.– É mesmo, vovô, ele é o dono da água?– Sim, ele é o dono da água. Janaryt é o nome

dele. Tem duas casas (ne´ototapat), nelas tem muito peixe. Dentro das casas ficam as panelas cheias de peixes (ytapyete). A panelinha makula’jyt e a panela tawytu’jyt estão cheias de peixes. Ele é capaz de fazer água e também peixes. Assim é o avô de vocês, Janaryt.

– Onde ele mora, vovô?– Ah, ele mora para lá – e indicou o seu dedo para

o sul.– É mesmo, vovô? Nós vamos visitá-lo.– Então está bom, podem ir visitá-lo, podem ir.– Nós vamos sim, visitar e ver nosso avô Janaryt, o

mais famoso fazedor de água.O avô deles, Wamutsini, aconselhou-os como

deveriam agir:– Lá, você deve fingir que seu irmão Keri é sua

esposa.Logo depois partiram para este lugar. Chegaram ao

final da trilha (japope apyrype) e ali ficaram parados para Kami poder disfarçar o seu irmão como esposa. Colocou

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uluri nele, passou urucum na testa, colocou o cabelo comprido como mulher e fez a cesta para seu irmão. Assim que tudo ficou pronto disseram:

– Vamos!Continuaram a caminhada como se fossem um

casal. E assim foram andando para entrar na aldeia. Quando estavam chegando, o pessoal os viu. Logo Kami (Sol) falou para uma pessoa da aldeia, que era o Janarywatu:

– Somos nós, vovô. Onde está o vovô Janaryt? – perguntou Kami para Janarywatu.

– Ele está lá, vive naquela casa.A casa de Janaryt era enorme. Ele avisou para seu

irmão:– Janaryt, o neto de nosso chefe (Kajezekwa) está

aqui.– Para cá meus netos, venham aqui – disse

Janaryt.Os dois foram atravessando a aldeia em direção a

casa dele.– É você, neto?– Sim, sou eu. Vim aqui para visitar você, vovô.– É mesmo, pode vir aqui me visitar, eu estou aqui,

coitado, sozinho e sem filhos.A esposa dele, que era o irmão disfarçado,

descarregou a cesta.– Podem se deitar na rede, meus netos.

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E assim foi conversando e contando coisas. Enfim Janaryt falou:– Vocês chegaram num momento em que eu estou sem ter o que comer, depois eu tentarei

procurar comida em algum lugar para vocês.À tarde ele falou para sua esposa:– Aripi, faça beiju para mim, eu vou tentar caçar alguma coisa para os nossos netos. Ela fez beiju e ele arrumou a rede de pesca. Quando tudo estava pronto, avisou Kami

que ia pescar. Só que para ninguém saber em que lugar iria, foi pelo caminho por onde eles chegaram. Ele estava escondendo a água desses dois. Quando anoiteceu voltou pelo mesmo caminho e entrou nas duas casas onde estavam as águas com os peixes nas panelas. Lá ele arrumou uma coisa para matar os peixes (opy’´at).

Os dois irmãos começaram a prestar atenção em tudo que ele fazia nesta casa, matando e comendo peixe à noite. Eles ficavam sem dormir, só para saber o que acontecia ali.

Quando já estava amanhecendo, Janaryt saiu da casa e voltou pelo caminho que tinha ido. Lá ele ficou fazendo hora e quando eram sete horas, chegou da pescaria pelo caminho que tinha ido pescar. Fez isso só para o Sol e o Lua não saberem em qual rio ele tinha ido pescar. Estava enganando os dois irmãos. Os espertos irmãos não duvidaram de nada.

Janaryt entrou na casa com bastante peixe.A esposa dele pegou murupep para colocar os peixes, tinha peixe-cachorro, matrinchã e

piau. Kami falou:– Você chegou, vovô?– Sim, neto, é que eu fui pescar para vocês – disse Janaryt, escondendo o lugar

do peixe.Janaryt achava que eles haviam dormido à noite e que não tinham visto nada. Falou para

sua esposa:– Acenda o fogo para eu poder assar o peixe para nossos netos, que eles devem estar

morrendo de fome.

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Ela acendeu o fogo, o marido abriu dois peixes, a piranha de cabeça vermelha (pakanjãgyt), o peixe-cachorrinha (zozowit) e mais outros dois peixes. Primeiramente assou o pakanjãgyt e o zozowit, depois os outros dois tipos de peixe.

Assim que ficaram prontos, assados, Janaryt perguntou para a mulher se o beiju já estava pronto. A mulher disse que sim. O beiju com que iriam comer o peixe não era bom (tsyryry loleput). Ele pegou os dois peixes que havia assado primeiro, pakanjãgyt e zozowit:

– Ô neto, aqui estão os peixes, podem comer – disse Janaryt.

Ele olhou para o peixe e disse:– Esse peixe que você trouxe não é peixe vovô.

Isso aí é kanuwãryt (alimento proibido). O nosso vovô Wamutsini nos contou que você iria nos oferecer primeiro o peixe que não comemos.

Quando disse isso, Janaryt pegou aqueles peixes de volta e disse rindo:– Ô, menino esperto, isso aqui é mesmo kanuwaryt, um peixe que não comemos. Alguém

que não acredita nisso, poderá comê-los e perderá os cabelos em poucos anos – avisando, para os netos, o que esses tipos de peixes causam no ser humano.

Depois disso ele foi pegar os peixes verdadeiros.– Vocês podem comer, meus netos – disse ele, oferecendo o verdadeiro peixe que havia

assado por último.O neto olhou para ele e disse:– Esse é o verdadeiro peixe, vovô.– Sim, esse é o peixe verdadeiro. Kami falou para Janaryt que o avô Wamutsini já tinha contado para eles tudo o que ele iria

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oferecer primeiro.– Ele é meu irmão mais velho, por isso ele sabe

de tudo isso. Comam bem o peixe, não quebrem suas espinhas.

Eles comeram o peixe quebrando as espinhas, mesmo tendo sido avisados, só para provocar e descobrir os segredos de Janaryt. Quando terminaram de comer, Kami disse:

– Aqui estão as espinhas de peixe, vovô.– Ah, vocês quebraram as espinhas!Pegou as espinhas e logo foi pegar o barbante

para enfiar nos buraquinhos dos esqueletos que haviam sido quebrados pelos dois. Assim que ficou tudo pronto ele disse:

– Vamos tomar banho, neto?– Vamos.Janaryt pegou os peixes que tinha aberto para assar e os ossos. Foram andando no caminho até a beira do rio. Ele ficou levantando as mãos com água na

beira e depois pegou o esqueleto do peixe e ficou limpando. Primeiramente pegou o esqueleto da piranha de cabeça vermelha e jogou no rio. Logo o esqueleto se transformou em peixe vivo nadando na água. Um deles falou:

– Olhe só nosso avô, veja só como ele é!Pegou o esqueleto do peixe-cachorro e os esqueletos dos peixes verdadeiros que

comeram. Nesse lugar eles viram onde sempre o avô jogava as espinhas dos peixes que comia no seu dia-a-dia. Eles ficaram tomando banho e Janaryt disse:

– Viram como eu vivo e como eu sou? Vou vivendo de peixes que tenho aqui e os peixes vivendo comigo.

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– Sim, vovô, estamos vendo. Nosso avô Wamutsini nos contou sobre você. Ele nos contou que você, nosso avô, sabe fazer peixe.

– É, ele também tem peixe e água. Wamutsini, avô de vocês, é dono da água. Eu não sei porque esse avô de vocês não mostra e nem conta sobre os peixes para vocês, ele é mais velho do que eu. Eu que sou mais novo sei de tudo isso – disse Janaryt contando para os dois irmãos tudo o que Wamutsini vivia escondendo deles.

– É, acho que seu irmão tem água e peixe. Não sabíamos disso, acho que ele está escondendo da gente – disse Kami sobre seu avô Wamutsini.

– Claro, o avô de vocês está escondendo o peixe, sim. Que ruim, ele nunca dá peixe e água para ninguém (tekaratytu kitã e´ijamu† wepira’yrete me´ã, we´yete me´ã). Não sei porque ele fez o riozinho onde toma o banho. Não sei o que será do rio dele para tomar banho! Quanta coisa ele faz. Para enganar vocês ele fez os peixinhos kwãzy naquele riozinho. Por que ele está enganando vocês com os kwãzy? Por que não mostra o peixe verdadeiro para nossos netos comerem? – disse Janaryt, contando tudo o que o avô deles fazia.

O avô Wamutsini estava ouvindo, de longe, tudo o que diziam dele.– Pode ser que seu irmão esteja escondendo os peixes da gente sim, vovô – disse Kami.Acabaram de tomar banho e voltaram para casa. Janaryt perguntou para sua esposa se

já tinha moqueado os peixes. Ela respondeu que sim. E o resto ainda não estava tratado. Ele fez um jirau dentro de casa e deixou os peixes em cima, pedindo para que a esposa moqueasse os peixes. Quando assaram, ele pegou os peixes e pediu que os netos comessem. Enquanto comiam Janaryt disse:

– Vejam como eu vivo e estou vivendo sempre assim, sobrevivendo de peixes.– Sim vovô, estamos vendo, achamos você muito legal, gostamos muito de você –

responderam os netos. Dentro da casa só haviam panelinhas guardadas, dentro delas os peixes faziam muitos

barulhinhos. Eles dormiram mais uma noite. Assim que amanheceu foram tomar banho. Quando

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retornaram a casa, um deles disse:– Ô avô! Já vamos embora.– É mesmo, vocês já vão embora?– Nós vamos embora, mas vamos voltar. Se nós ficarmos com fome, voltaremos – disse ele

despedindo-se de Janaryt.– Podem vir, meus netos. Quando vocês estiverem com fome podem vir e assim vocês vão

levando os peixes – disse Janaryt para os netos.– Sim vovô, viremos sempre para comer peixe junto com vocês.– Podem vir meus netos, mas eu sei que o avô de vocês tem peixe lá, como eu disse para

vocês.– Pois é, eu não sei o que está havendo com seu irmão, não sei se está escondendo esse

segredo de nós dois – disse Kami sobre seu avô Wamutsini.– Sim, ele está escondendo de vocês.Enquanto conversavam foram desamarrando suas

redes para sair. Janaryt perguntou onde estavam os cestos deles para guardar os peixes, colocou os peixes dentro e disse:

– Aqui estão os peixes, vocês podem levar para comer.

– Nós já vamos.Despediram-se e foram andando no meio da

aldeia. Despediram-se mais uma vez do outro avô, Janarywatu:

– Já vão indo netos?– Já estamos indo, vovô.– É mesmo. Está bom então, podem ir embora.

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– Nós voltaremos para visitar nosso avô Janaryt. Quando quisermos peixes estaremos visitando novamente vocês – disse Kami.

– Podem vir, estamos aqui, coitados de nós, sem filhos. Não temos filhos – disse Janarywatu.

Foram andando no caminho até o final da trilha onde se prepararam. Ali Kami pediu ajuda para seu irmão descer a cesta que carregava em sua cabeça. Então Keri, que estava enfeitado com enfeite de mulher para enganar seu avô Janaryt, tirou os enfeites que usou para parecer mulher. Janaryt pensou que eles fossem um casal, mas era só para enganá-lo. Tirou o uluri de seu irmão e logo o uluri se transformou numa árvore que se chama tuwai´yp. Depois tirou o cinto dele que se transformou em cobra. O urucum da testa dele se transformou em periquito de testa vermelha (ywiryt) e mais uma vez ele se transformou em tukupei angan. Eles fizeram um cesto que era tatitumajãku. Assim que ficou pronto deixaram o cesto majãku nesse lugar. Só levaram o cesto tatitumajãku. Eles carregaram este cesto nas costas e voaram para chegar no caminho da aldeia. Lá eles pousaram e foram andando. Chegaram na aldeia com bastante peixe. O avô deles Wamutsini disse:

– Já chegaram, meus netos?– Já chegamos.– Vocês viram o avô de vocês?– Vimos.– Ele é fazedor de peixe, esse avô de vocês. Já viram?– Já vimos.Contaram tudo o que aconteceu com eles naquele lugar. Contaram sobre aquele peixe

que foi oferecido primeiro para eles e também que Janaryt falou muito sobre Wamutsini, que ele tinha água. Wamutsini respondeu que ele estava mentindo. Mas Kami continuou dizendo tudo que Janaryt havia falado sobre ele, que tinha peixe e água, que era dono da água e que era seu irmão mais velho.

– Vovô, ele perguntou também porque você não dava peixe nem água para nós – disse

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Kami.– Ele falou que você estava escondendo peixe da gente – completou o outro.Wamutsini achou engraçado dizer que ele estava mentindo e riu. – Vovô, nós vamos brigar com nosso avô Janaryt para todos terem peixes, para nossos

bisnetos poderem comer peixe. Só ele está comendo peixe, se considerando proprietário dos peixes.

– É mesmo, briguem com o avô de vocês – disse Wamutsini.

– Nós vamos quebrar a água dele!– Podem ir. Mas eu vou aconselhar como deverão agir. Vão até o final do caminho deles

(japope apyrype). Ali vocês vão exercitar seu pessoal e calcular quantas pessoas caberão nessa aldeia em forma de círculo. Vocês já viram qual é o tamanho desta aldeia. Vocês devem usar munutsi (uma máscara grande de formato redondo e uma saia caída). Vai ser assim: um munutsi fica ali e outro munutsi fica lá. Isso para ele não descobrir onde vocês estarão. Mesmo assim ele descobrirá e saberá que são vocês. Levem junto com vocês o avô Ut´watu. Acontece que Janaryt irá flechar vocês com mitexewurawywo. É isso que vai acontecer, ele vai matar vocês. Outra coisa: vocês dois usarão somente o coquinho de tucum, não usem qualquer coisa. Acontece que os peixes vão engolir vocês durante a atração da água. Desça o rio para o lado sul e seu irmão desce o rio para o lado leste. Então vocês trarão as águas para cá, até a nossa aldeia. Assim que chegarem aqui, vocês farão a água voltar para fazer correnteza. Você fará a água correr para lá e seu irmão fará a água correr para cá.

E mais uma vez ele disse:– Usem coquinho, não usem outra coisa! Só usem coquinho de tucum. Podem partir.Assim Wamutsini finalizou suas palavras. Os netos partiram para a aventura. Chegaram no

final da trilha da aldeia de Janaryt (japope apyrype). Lá eles juntaram as estrelas para serem suas ajudantes. Juntaram as estrelas conforme o tamanho da aldeia. Fizeram várias máscaras munutsi e karytu. Fizeram uma máscara enorme de peixe (pira´yt emunutsi). Quando terminaram de vestir as máscaras começaram a gritar. A pessoa que estava na frente gritou primeiro:

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– Kaaaaá kaaaaá – gritaram as pessoas.O avô Janarywatu ouviu e disse para seu irmão Janaryt:– Janaryt, lá vem os netos de nosso chefe (kajezekwat emijãmuj‰) para quebrar as

panelas de água. Lá vem nossos netos para quebrar as panelas de nossas águas!– Ká Kaaá – foram gritando as pessoas com a máscara munutsi.– Ká Kaaaá – foram gritando outras pessoas nas máscaras kwalowyt.E foram entrando na aldeia. Janaryt disse furiosamente para si mesmo:– O que será que meus netos farão comigo? Então por isso que eles vieram me visitar?

Então podem vir, podem vir que eu vou matar vocês, vou matar vocês, sim!Eles formaram um círculo em volta da aldeia, gritando. Todos eles ficaram iguais com as

máscaras munutsi, outras pessoas ficaram com máscaras diferentes: munutsi, pira´yt emunutsi, nipitap, karytu, aturuwa, kuwã´hã´ãlu e outra que se chama tuwau´ywytu. Essa máscara, tuwau´ywytu, irá quebrar as caixas d´água, ela que irá flechar as caixas dos peixes devoradores. As outras máscaras só serão usadas como tapetes para quebrar as outras caixas.

Eles foram se aproximando da beirada da aldeia em forma de círculo. Janaryt estava em frente de sua casa com sua esposa vendo essa gente. Ela disse:

– Esses são os netos de nosso chefe (kajezekwat emijãmuj‰ ujame)?– Não, não são eles ainda.Ela sabia que os irmãos estariam escondidos em alguma dessas máscaras. Por isso toda

vez que essas máscaras munutsi passavam na sua frente ela perguntava se eram eles. Quando a fila se formou em círculo, ela perguntou de novo:

– Esses são os netos de nossos chefes (kajezekwat emijãmuj‰ ujame)?– Sim, são eles mesmos – respondeu o marido.– Então pode flechá-los.Ele esticou o arco, flechou Kwat e depois flechou seu irmão Taty. E assim ele ia flechando

as pessoas com flecha de ponta de cera (tutui´agytu) que incha a pele e mata (mitezewurat rywo).

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Todos correram para quebrar as panelas d´água que estavam nas duas casas (ototap wywo). Entraram nas casas e quebraram várias panelas: as caixas de peixes e outras também.

– Do meio, do meio, do meio – disse Janaryt para as pessoas que estavam quebrando as caixas d´água.

É que entre essas panelas havia uma enorme que tinha um bicho que explode e mata gente, por isso que ele falava “do meio, do meio”.

– É mentira dele, é mentira dele, é mentira dele – diziam os irmãos para seu pessoal que estava na briga.

Quando Janaryt dizia “do meio, do meio”, o avô Wamutsini estava ouvindo de longe. Aí ele repetiu a mesma coisa que seus netos diziam:

– É mentira dele, é mentira dele, é mentira dele, não acreditem nele!Janaryt falou isso só para eles quebrarem a panela do meio e serem engolidos por sua

explosão, era isso que ele estava querendo. Continuaram quebrando muitas panelas d´água. Restaram apenas as caixas dos bichos devoradores. Aí disseram:

– Esse aqui vai flechar essas caixas – disseram para os poderosos tuwau´ywytu – Agora sim, podem flechar as caixas do meio!

E assim flecharam essas caixas onde estavam os bichos devoradores:

– Pruuuuuk! – os bichos fizeram barulho.Mesmo assim flecharam todas as caixas dos bichos

devoradores. A caixa maior, onde estava o bicho que explode, ninguém flechou.

– Do meio, do meio, do meio – dizia Janaryt.Mas eles não mexeram nela porque os bichos que

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moravam naquela caixa devorariam todos eles com sua explosão. Só sobrou essa caixa. Enquanto isso as casas da comunidade foram inundando. A casa dele e a de seu irmão

(nato´o janarywatu) não inundaram. As casas do meio (ne´ototap) inundaram todas e a parte que não molhou foi a de cima (ok pepuwãjyt´wazatsu otepÞju). A água foi subindo mais, fazendo barulho:

– Pruk, pruk!!– Então por isso que meus netos vieram me visitar naquele dia, para fazer isso comigo, me

sacanear? – disse para si mesmo Janaryt vendo todo esse tumulto.Finalmente todos se juntaram para conversar com Janaryt, retirando suas máscaras. Kwat

disse:– Vovô, quero saber se você vai aceitar as nossas máscaras.– Você deve aceitar.– Eu não, não posso.– Aceite sim, se não vamos matar você.– Eu não, não posso, não vou aceitar de jeito nenhum.Ficaram insistindo para que ele ficasse com as máscaras. Pegaram Janaryt para matar,

então ele disse:– Está bem, ficarei com elas.Kwat disse:– É claro! Olhe, assim que esses peixes que você fez matarem os netos, você oferecerá

seus espíritos para eles (wemunutsi motowapat). Então o espírito que fizer mal a alguém, poderá ser dono dele (tsã nemitwãt). E assim será a regra deste peixe, oferecerá seu espírito para alguém. Será também seu dono e dará suas máscaras para alguém – disse Kwat explicando com detalhe para Janaryt qual será a regra destas máscaras.

Pediram para Ut´watu chupar a marca das flechas da pele que inchava. Ele ficou chupando com a ponta de sua flecha todas essas marcas que inchavam a pele das pessoas (mite zew

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urap). Todos eles voltaram ao normal. Assim que Ut’watu terminou de chupar todas as marcas de ponta de flecha, Kwat disse para as estrelas:

– Vocês podem retornar para o lugar de vocês. Nós já vamos partir.As estrelas foram embora para seus lugares no céu. Depois disso Kwat tirou um coquinho

de tucum e uma abóbora (tezu´apitek).– Você usa esse coquinho, eu uso esse outro também – disse Taty para Kwat.– Não, você usa essa abóbora – disse ele para seu irmão Taty.

Eles entraram dentro do coquinho e da abóbora.– Agora você me joga – disse Kwat para seu irmão.Eles pegaram uma vara de tazy´yzat e puxaram a ponta de cima dela para baixo. Kwat

sentou na ponta e o irmão jogou no alto para cair no meio do rio. Taty soltou essa vara e Kwat pulou alto até cair no meio do rio. Ele já estava dentro do coquinho, ficou rodando no meio do rio – “Pooooó”. Um peixe o engoliu. Ele ficou lá na boca do peixe e escapou por debaixo da língua.

– Que bom que o peixe devorou você Kwat, bem feito – disse Janaryt para Kwat.Janaryt cantou:– Nukeri nukeri kami nau akama pai (Kwat já está morto)!Quando estava cantando, Kwat saiu da água em cima de uma casa inundada (ne´ototap

apo).– Vovô! – disse Kwat.– Oi – respondeu ele.– O que você estava falando de mim?– Nada.– Eu ouvi o que você estava falando de mim. Eu não vou morrer, eu nunca vou morrer –

disse Kwat para Janaryt, em cima da casa (ne´ototap apo) inundada.Logo depois pulou na água e foi descendo o rio que agora é chamado de Steinen. Taty

disse:

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– Agora vocês me joguem no rio!Eles o jogaram e foi rodando – “Pooooó”. O peixe o

engoliu.– Bem feito que o peixe te comeu! – disse Janaryt

para Taty, e ficou cantando de novo:– Nukeri nukeri keri nau akama pai (Keri, ou Taty, já

está morto)!Quando estava cantando, Keri saiu da água em

cima de outra casa inundada e disse:– Vovô!– Oi.– O que você estava dizendo de mim?– Nada.– Ouvi o que estava falando de mim. Eu não vou morrer, eu nunca vou morrer, vovô.Logo depois se meteu dentro d’água e foi embora. Mas ele estava dentro da abóbora

(tezu´apitek) que não iria aguentar o ataque dos peixes. Depois de toda essa luta, começou o percurso da água para a aldeia deles. Kami começou

a descer o rio limpo que mais tarde foi chamado de Steinen. Keri desceu o rio que é hoje o Kuluene. Durante o percurso os peixes tentavam devorar Keri. Keri ainda escapava destes peixes, a abóbora estava até aquele momento aguentando o ataque dos peixes. Bem no meio do caminho, em um lugar chamado Araruwytyp, a abóbora dele não aguentou mais e se quebrou – “Pooooó”... E ele foi devorado pelo Tak‰tawatu, um peixe enorme.

Logo que o peixe o engoliu, o avô Wamutsini ouviu o barulho lá da aldeia e disse para si mesmo, muito nervoso e com muita tristeza:

– Ai, Kami deixou o seu irmão ser engolido! Já tinha falado para eles só usarem coquinho. Ficou bravo com Kami por ter feito isso com seu irmão. Enquanto isso o rio foi descendo

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sozinho. Wamutsini tinha feito uma cigarra que ficou berrando na aldeia, para que o rio que Keri estava levando andasse naquela direção.

Às 13:00 horas a água que Kami conduzia chegou na aldeia. As pessoas foram ver esse rio chegando. Foi quando Wamutsini disse para Kami:

– Por sua culpa devoraram seu irmão. Eu falei para vocês usarem só coquinho de tucum, eu falei para vocês. Devoraram seu irmão, jamais vamos vê-lo ou encontrá-lo de novo, nunca mais, por sua culpa.

– É mesmo vovô, agora eu entendi.Eles chamaram a ave Korokoro. Transformaram Korokoro em gente e pediram que ela

cavasse um enorme buraco na aldeia, para a água entrar e parar. Primeiro cercaram a água, fazendo a correnteza voltar por trás. Enquanto isso cavaram um buraco enorme e muito fundo. Um buraco ali, outro ali e mais um buraco ali. Assim que os buracos ficaram todos prontos deixaram a água entrar neles. Foram enchendo um por um até encherem todos. Kami começou a pescar. Ele pescava os peixes e logo abria a barriga deles para ver se encontrava seu irmão. Depois de abrí-los mandava-os de volta e assim foi pescando e pegando muitos peixes. Mas não encontrava nada. O peixe que comeu seu irmão não estava lá. Anoiteceu.

Pela manhã tentou novamente procurar seu irmão. Às 12h00, Wamutsini sentiu tristeza e falou para si mesmo:

– Ah, não vou encontrar mais o meu neto! Nunca mais verei meu neto!Keri já tinha apodrecido na barriga desse peixe que o devorou. Esse peixe já devia ter feito

cocô. Às 13:00 horas o peixe Cará (Kazãpep) apareceu na frente de Wamutsini, boiando na beira do rio. Logo que ele viu Kazãpep, chamou seu neto Kami e disse:

– Ô neto, vem flechar esse Cará, fleche nossa isca.Kami foi se aproximando e esticou o arco. Na hora que ele ia flechar, o peixe Cará virou

gente e disse:– O que é que há, neto? Você tem que matar aquele que devorou seu irmão. Ele está lá

no fundo na casa dos homens (ototap), na barriga do peixe Tak‰tawatu, foi ele que devorou teu

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irmão. Ele está lá deitado. Faça o fumo, neto, para eu poder levar para ele.Neste momento Wamutsini e Kami ficaram sabendo toda a realidade sobre Keri: quem o

comeu e onde estava. Quando o fumo (pe) ficou pronto, enfiou em sua ponta um pequeno anzol invisível, com a linha invisível do lado que fumamos. Kami disse:

– Pode levar, vovô.Ele se meteu dentro d’água e sumiu. Quando chegou na casa dos homens ele disse:– Ô pajés, venham aqui para a gente fumar.Todo mundo se levantou para fumar, a única pessoa que não se levantou foi Tak‰tawatu.

O Cará olhou para ele e disse:– Ô pajé, venha aqui para a gente fumar.– Ah! É que eu estou com a barriga muito cheia, estou cansado!– Então venha aqui para a gente fumar.Kazãpep, o Cará, levantou e disse:– Fique aqui do meu lado.Ele sentou do lado dele. E começou a dar fumo

para cada pajé. Um pouco de fumo ainda estava com ele quando levantou para dar para Tak‰tawatu. Ele ficou fumando, fumando.

– Vou esperar um pouquinho mais, um pouquinho mais – dizia o Cará consigo mesmo.

Esperou um pouco mais e quando o cigarro estava quase no meio, do jeito que queria, puxou a linha invisível por cima. Puxou, puxou, para que Kami soubesse o sinal, para puxar lá de cima. Kami puxou com força e acabou entrando certo na boca de Tak‰tawatu. A linha e o anzol

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que eram invisíveis se transformaram em linha grossa com anzol.– Ai, o que você fez comigo? – disse Tak‰tawatu

Logo o Cará saiu correndo da casa, foi para fora da água e disse para Kami:– Pegou muito bem, neto, o anzol entrou muito certo na boca dele!Ficaram puxando, puxando, devagarinho Tak‰tawatu se mexeu lá no fundo. O Cará disse:– Pode puxar, neto.Ficaram puxando, puxando, nada. Então devagarinho foi levantando. O Cará disse de novo:– Ele ainda está rodando dentro da casa, despedindo-se da casa dele.Continuaram puxando, puxando juntos, mas o peixe Tak‰tawatu resistia. – Ele ainda está se despedindo, andando dentro de casa – disse o Cará.Continuaram puxando, puxando com força.– Ele vai sair, ele vai sair! Já saiu de dentro de casa. Está correndo! Mais uma vez vai

correr para dentro de casa! Vai fazer a última despedida de sua casa! O Cará ouvia tudo o que acontecia lá no fundo:– Agora que vai sair, puxem com mais força!Puxaram juntos, puxaram mais e logo o peixe Tak‰tawatu apareceu boiando.– Lá vem ele, neto!Continuaram puxando juntos, até a beira do rio e com mais força, arrastando o peixe para o

chão. Logo Kazãpep, o Cará, se escondeu de Tak‰tawatu.Abriram a barriga dele até o ânus. Tiraram a tripa, encontraram os ossos de Keri e os

guardaram.– Está pronto vovô – disse Kami para Wamutsini.– Espere! – disse Wamutsini.Puxaram o peixe Tak‰tawatu e o jogaram na água. Ficou lá, boiando na água de barriga

aberta. Kami disse para esse peixe:

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– Vovô, você só pode se mostrar para alguém que perderá a alma.Ele ficou boiando na água de barriga aberta no leito do rio. Logo depois carregaram os

ossos de Keri para a aldeia. Deixaram os ossos no meio da casa. Quebraram as folhas de tejãng´yp e deixaram os ossos em cima delas. Depois Kami fez a forma de gente no chão, com todas as partes do corpo, braços e dedos. Em cima dela Kami deixou as folhas desse tejãng´yp. Pegou os ossos de seu irmão e foi montando em forma de gente em cima dessas folhas. Kami começou a rezar para os ossos de seu irmão, para que se transformasse em gente. Mas nada. Kami disse para seu avô Wamutsini:

– O que podemos fazer com seu neto?– Vá na casa de Nute´yp, dono do fumo, busque o fumo – respondeu ele.Quando ele chegou lá, Nute´yp disse:– Você está aí?– Sim, estou aqui, ezowa itutu.

– O que você quer?– Pedir um pouco do seu fumo.Nute´yp foi tirando o fumo que tinha e disse:– Toma.Kami levou o fumo para seu avô, que o enrolou com a folha pe´op. Quando ficou pronto,

Wamutsini e Kami recomeçaram a rezar os ossos. Ficaram rezando, rezando e nada. Wamutsini disse:

– De onde seu avô tirou e pegou esse fumo para você?– Da esteira (peu’pauti).

– O verdadeiro fumo dele está em cima da porta (otenypy apo).– É mesmo? Eu vou lá buscar então.– Então pode ir e pode também matar os filhos dele.Kami voltou para a casa de Nute´yp e perguntou para seus filhos:

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– Onde estão os pais de vocês, meninos?– Eles foram para a roça. Ele matou todos os filhos de Nute´yp e subiu no jirau para se esconder (mi´ak´ytaete). Um

pouco depois os pais dos meninos chegaram da roça. Nute´yp entrou na casa, viu seus filhos mortos e disse:

– Ah! Você matou os seus tios? O avô de vocês já havia dito para vocês usarem somente o coco de tucum, por que você deu a abóbora para seu irmão usar? Foi isso que o avô de vocês tinha falado! E por isso você matou seus tios? Fique irritado com você mesmo, neto, não adianta matar seus tios! Não pode matá-los! Eu não sou como vocês, correndo para lá e para cá procurando as rezas, eu vou recuperar os seus tios – disse ele muito irritado por Kami ter matado seus filhos.

Ele achou que Kami não estava ali escondido, mas ele ainda estava ali. Ele matou os filhos de Nute’yp de propósito, só para ouvir a reza dele e pegar o fumo que usará para rezar pelos seus filhos e recuperá-los.

Ele e sua esposa pegaram seus filhos e juntaram seus corpos ali mesmo, estavam chorando por causa da morte de seus filhos. Nute´yp levantou-se para pegar o fumo com a folha. Ele desamarrou a esteira de fumo que estava em cima da porta e ficou fazendo cigarros. A esteira ficou aberta. Ficou rezando por um filho, rezando, rezando. Depois a esposa dele rezou pelo filho também. Depois ele rezou de novo e daqui a pouco o filho dele levantou.

– Há! Há! Há! Eu estava dormindo pai!– Dormindo nada, seu sobrinho matou vocês.E depois foi rezando pelo outro filho e a mesma coisa aconteceu.– Há! Há! Há! Eu estava dormindo pai!– Dormindo nada, seu sobrinho matou vocês.Neste momento Kami desceu do jirau e foi direto pegar o fumo que Nute´yp usou.– Eu vim buscar isso aqui, vovô.

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Pegou tudo que ele tinha e saiu da casa correndo com o fumo. Nute´yp disse:

– Me dê um pouco do fumo, neto!– Você já tem, vovô, você tem aí.– Por que seu avô, que é mais velho do que nós,

não tem fumo? Ele não cuida disso?Wamutsini ouviu de longe o que ele estava

dizendo e riu. Kami levou o fumo para o avô.– Já está aqui, vovô.– Você ouviu a reza dele?– Eu ouvi a reza dele.– Então está bom, pode começar a rezar o que

ouviu.Fizeram o cigarro e começaram a rezar como Nute’yp. Kami disse para o Cupim

(Kurup†´†):– Vovô, ajude a transformar seu neto em gente novamente!Kurup†´† pegou a terra e jogou em cima dos ossos para transformar Keri em gente. Então

os dois começaram a rezar, rezaram várias vezes. Deixaram os pombos voarem por cima do corpo de Keri, fazendo barulho para que ele pudesse se mexer e voltar ao normal. O Kurup†´† já estava lá junto com os ossos produzindo a carne debaixo da terra. Eles não desistiram de rezar e assim os pombos voaram várias vezes por cima do corpo para que Keri voltasse ao normal e para que ele pudesse se mexer. Até que, enfim, ele se mexeu e tirou suas cobertas de folhas.

Keri levantou, já como gente. Ficou em pé e disse:– Há! Há! Há! Eu estava dormindo, Kami!– Dormindo nada, por culpa de seu irmão você foi devorado pelo bicho devorador – disse

Wamutsini.31

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– É mesmo? Não lembro de nada!– Claro que não, o bicho (Kat) engoliu você, foi culpa de seu irmão.Enquanto o ouvia, Keri foi relaxando e esticando seu corpo.– É mesmo, vovô? Quer dizer que eu fui engolido pelo Kat?– Sim, por culpa do seu irmão.– Foi para fazer isso comigo que você falou para a gente quebrar as águas de nosso avô?

Então foi por isso que você falou para a gente brigar com o nosso avô? Quebrar a água dele? Você me falou isso!

Kami não respondeu nada, ficou calado. Keri disse para seu irmão:– Tudo bem Kami, então deixe que seremos a história de alguém, seremos uma história

contada para os filhos. Eles contarão essa história para os filhos deles e assim nós vamos ser eternos.

É assim que acaba a história dos dois gêmeos, Kami (Sol) e Keri (Lua), e do avô Wamutsini, depois de toda essa aventura. Tudo isso aconteceu num lugar chamado Myrenã, que

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Como surgiu o dia e a noite

História narrada por Itsautaku Waurá, traduzida, escrita e ilustrada por Arapawa Waurá

Kuwamutõ (Deus), Yapojeneju (a mulher do mato) e o homem Onça são deuses. A mulher do mato criou-se num buraco de cupim. Esses três foram as primeiras pessoas que apareceram no mundo. O Sol e o Lua são os filhos do homem Onça, a mãe deles foi criada por Kuwamutõ com troncos de madeira.

Vou contar a história do mundo, como era antes do Sol e do Lua nascerem.Kuwamutõ (Deus) foi tirar embira para fazer armadilha para pegar peixe num lugar

chamado Yaponatowo. Ele estava tirando embira e andou um pouco mais longe, até que encontrou a aldeia das onças. As onças estavam percebendo o cheiro dele. O chefe das onças pediu para o seu povo matá-lo.

– Vamos matá-lo! – O chefe da aldeia disse para as pessoas de seu povo. Eles foram atrás de Kuwamutõ e o cercaram. Kuwamutõ disse para o chefe das onças:– Você não pode me matar, sobrinho. Eu tenho uma filha para se casar com você.O Onça respondeu:– Está bem.Assim o Onça voltou para casa. As onças

também voltaram para a aldeia. Kuwamutõ foi direto falar com sua filha, a mulher do mato. Foi ela que o pai ofereceu para o Onça. Ele contou para sua filha.

– Olá, minha filha, quase eu morri. O Onça queria me matar, por isso eu ofereci você para se casar com ele.

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– Eu não, eu não quero casar com o homem Onça, a mulher do mato disse para seu pai.Nesse tempo ainda não existia o dia, só havia escuridão. Os vagalumes iluminavam as

casas das pessoas, este era o nosso fogo antes de aparecer o dia. Kuwamutõ respondeu para a filha:

– Está bem, vou fazer algumas filhas para o Onça.Kuwamutõ foi então fazer as mulheres. Ele cortou dois troncos de Kwarup, oito pedaços de

pau brancos, dois pedaços de pau yusemisu, cortou dez pedaços de pau. Esses pedaços de pau eram compridos, a ponta deles parecia um pescoço de gente.

Kuwamutõ transformou esses paus até eles ficarem prontos. Ele fez cabeça, braços e pernas, colocou taquarinha para ser a vagina e assim transformou os troncos em mulheres. Depois ele matou um pássaro (aquele que fica sempre em cima do aguapé) chamado kamonapuwa. Para experimentar essa mulher criada o pássaro transou com ela. A primeira vez que eles fizeram sexo ele a furou. Esse pássaro transou com a mulher até gozar e sair esperma. O pássaro não conseguiu mais andar normalmente, ele ficou mais fraco. Kuwamutõ rezou o pássaro para ele ficar desse jeito e disse-lhe:

– Pode ficar sempre assim mesmo, você não vai mais conseguir andar normalmente.

Cinco paus foram transformados em mulheres para o Onça. Quando elas ficaram igual gente, logo foram para a aldeia do Onça.

No caminho para a aldeia das onças elas encontraram um pássaro chamado wele.

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Ele namorou uma das mulheres e quando a furou, ela morreu na hora. As colegas a deixaram lá mesmo. Elas continuaram caminhando e encontraram outra pessoa que se chamava Kapukuwa. Era um homem com um pênis muito grande, igual a uma cobra. Kapukuwa transou com uma das mulheres e na hora que a furou ela também morreu. As três colegas a deixaram lá mesmo, como tinha acontecido com a outra.

Sobraram três moças, que foram andando até encontrar o Tatu. O Tatu estava sem o pênis, tinha deixado em casa. Ele voltou para casa em busca do pênis, mas as mulheres não o esperaram. Quando ele voltou, ficou sem graça porque queria transar com elas. As moças continuaram a andar até encontrar um buritizeiro. Uma das mulheres pediu para as irmãs tirarem buriti para fazer um cinto.

– Vá lá, minha irmã, tirar fibra de buriti para nós fazermos cinto (é por isso que até hoje nós chamamos aquele lugar de Cinto, lá onde aconteceu essa história).

– Vá você.– Não, vá você.Elas ficaram discutindo, até que uma delas respondeu:– Eu vou lá.Ela subiu no buritizeiro até onde fica o talo do buriti. Enquanto estava descendo, já no

meio do tronco, uma das mulheres jogou mutucas para picarem a moça. Então ela não aguentou segurar-se lá em cima, soltou as mãos e caiu em cima do talo de buriti, que estava apontando para cima e cutucou bem a sua vagina. Ela morreu na hora. É por isso que os frutos do buriti ficam avermelhados na ponta, é o sangue da mulher.

As duas moças que sobraram a deixaram lá e foram andando até chegar no porto do Onça. As pessoas dessa aldeia foram tomar banho.

Primeiro veio banhar uma mulher que era parente da ema, Kuta-kuta. Ela era muito feia. Ela disse:

– Ôba, eu estou bem bonita. Por que os homens não gostam de mim se eu tenho corpo bonito, rosto bonito, perna grossa e estou pintada?

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Ela saiu da água e subiu para a casa. As duas moças ficaram lá olhando e logo jogaram um mutuca nela. As mutucas picaram a mulher feia:

– Ai, ai, ai, ai!Ela soltou a cabaça, que caiu e

quebrou. Ela foi buscar outra cabaça, voltou ao rio, pegou água, mas a cabaça quebrou novamente. Ela voltou para buscar outra cabaça. Quando entrou na casa, uma mulher começou a brigar com ela:

– Vamos matá-la, arranhá-la, bater nela. Ela está acabando com nossas cabaças.

– Vamos bater nela, responderam as outras.As pessoas correram atrás dela e a seguraram. Ela começou a gritar:– Ai, ai, ai, ai! Vocês não podem fazer isso. Parem com isso que eu vou contar uma coisa

que aconteceu comigo.As pessoas a soltaram e ela disse assim:– Lá no porto tem duas mulheres, e elas são muito bonitas.As pessoas se pintaram, se enfeitaram e foram convidar as duas moças para irem até

a aldeia. Naquele tempo ainda não tínhamos o dia, só existia a escuridão. O homem Onça foi buscá-las na beira do rio e disse:

– Venham para cá, minhas noivas, foi para mim que seu pai ofereceu vocês, por isso que eu vim buscá-las.

Uma das moças disse para sua colega:– Vamos lá com ele, companheira. Ele mesmo disse isso, vamos lá com ele.

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– Não, ele não é parecido com o Onça.– Mas ele mesmo disse isso.– Não é ele.– Vamos lá.– Ele não é parecido com o Onça, ele tem dentes grandes.O Onça voltou para casa. Depois dele, todos os animais vieram, mas elas não mudaram de

idéia. Até que veio o Lobo. Ele foi até a beira buscar as mulheres e ficou lá de pé:– Venham para cá, minhas companheiras.Uma delas disse para a colega:– É ele mesmo.– Não é ele.– Vamos lá, colega.– Está bem, vamos lá.Elas se levantaram, pegaram na mão dele e foram até a aldeia. Quando o pessoal da

aldeia viu o Lobo com as moças, começou a gritar para ele. Uma moça disse para sua colega:– Olhem, elas foram para a casa do Lobo.Quando elas chegaram na casa, logo o Lobo pegou umas frutas chamadas yalatapa para

as mulheres socarem com massa de mandioca. O Lobo sempre socava isso para comer e beber. As moças socaram a massa e quando terminaram, o Lobo foi avisar o pessoal para pescarem para as mulheres da aldeia:

– Oh, rapaziada, amanhã nós vamos pescar para as mulheres. Os homens não responderam para o Lobo, porque não gostavam dele. Para ele nós

somos peixes. Depois do Lobo, o Onça foi ao centro da aldeia dizer para seu pessoal:– Amanhã nós vamos pescar para as mulheres.As pessoas responderam:– Vamos pescar amanhã.

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Os homens foram na pescaria. Quando todos foram embora é que o Onça foi atrás. Ele foi jogando flechas até encontrar seu pessoal no mato. No meio da caminhada ele sentia dor nos olhos. Ao encontrar as pessoas, o Onça disse:

– Pessoal, eu estou sentindo alguma coisa nos meus olhos.As pessoas responderam:– Você não pode ir com a gente, nós mesmos vamos matar peixe para você. Volte para a

aldeia e fique em paz.O Lobo estava preocupado com as moças porque o Onça podia roubá-las. Ele falou:– Vamos lá, pajé, venha pescar com a gente.O pessoal do Onça disse para ele:– Pode voltar para a aldeia.O Onça voltou para a aldeia. Ele foi jogando flechas para frente até chegar perto da aldeia.

Chegou perto da casa das moças porque ele queria roubá-las. Ele jogou uma flecha perto das moças para elas entregarem para ele:

– Venham para cá, por favor, tragam minha flecha, minhas queridas.Uma das moças disse para a colega:– Vamos lá, irmã, entregar a flecha para ele.Elas se levantaram, pegaram a flecha e foram com o Onça até sua casa. Ele arranjou

massa de polvilho para elas fazerem mingau e beiju para o pessoal dele comer na pescaria. Quando elas terminaram de preparar a comida as pessoas do povo do Onça foram nos matar, lá onde vivíamos nesse tempo. O Onça matou as pessoas que foram pescar. O pessoal dele matou muitas crianças e jovens para comer. Quando os pescadores chegaram em casa, o marido delas assou um braço de criança e ofereceu para as mulheres comerem. Elas não gostaram de ver essa criança morta, sentiram saudade e tristeza. Começaram a chorar e ficaram muito tristes por causa das mortes. Elas pegaram a mão da criança morta e desenharam essa mão, desenharam bem bonito. É por isso que a nossa mão está toda desenhada. Elas disseram para o

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marido:– Nós queremos comer peixe assado, essa carne nós não podemos comer. Essa carne é

nosso corpo, é da nossa família.Assim o Onça foi pescar para as mulheres. É por isso que até hoje as onças comem peixe.

As mulheres adoraram comer peixe. Elas ficaram muito tempo vivendo com o Onça, foi assim que ele engravidou uma das

mulheres. Duas crianças cresceram na barriga da mãe. Quando estava quase chegando no tempo das crianças nascerem, a sogra foi varrer a casa delas. Ela se chamava Periru. Essa mulher era peidadora, peidava o tempo todo. As noras ficavam sempre na porta da casa, fiando algodão para fazer rede. Na hora que o algodão não ficou bem fiado, a nora grávida tirou o algodão da boca e começou a cuspir. A sogra chegou perto dela e esfaqueou seu pescoço, achando que ela estava cuspindo com nojo do seu peido. A mulher morreu com as crianças na barriga. Logo nessa hora, o Onça mandou uma formiga ver as crianças na barriga da mãe. É aquela formiga vermelha. Ela entrou pela vagina e viu duas crianças gêmeas. A formiga voltou pelo ânus, mas o Onça não aceitou, ele mandou a formiga voltar pelo mesmo caminho. A formiga disse para o Onça:

– Pode pegar suas crianças.O Onça cortou a barriga da

esposa e tirou duas crianças. Primeiro tirou o Sol, depois tirou o Lua. Ele enterrou a mãe delas.

Quando essas crianças cresceram, já estavam com quatro anos de idade, é que apareceu o dia e a noite.

Então apareceu o dia e a noite.

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No dia seguinte eles foram comer amendoim lá no jardim da avó deles. Eles ficaram só um pouco no jardim e lá escutaram um pássaro cantando para eles:

– Kuy-kuy juto, kuy kuy juto! (os meninos sem mãe estão comendo o meu amendoim).Esse pássaro estava avisando os dois que eles não tinham mãe. Ele falou isso muitas

vezes e as duas crianças ficaram escutando. O Sol perguntou para o Lua:– Como o pássaro disse?O Lua contou para o Sol:– Os meninos sem mãe estão comendo o meu amendoim.O Sol perguntou:– Será que nós somos os que não têm mais mãe?– Não sei, Sol.Eles se levantaram e voltaram para casa. Sentaram-se num canto na porta da casa e

ficaram muito tristes, chorando por causa da mãe. A irmã da mãe é quem cuidava deles. Depois de algum tempo ela perguntou:

– Por que vocês estão chorando?O Sol respondeu para a irmã de sua mãe:– Nós não temos mais mãe, você não é nossa mãe, ela morreu há muito tempo atrás. Nós

estamos tristes por causa da nossa mãe.– É verdade, há muito tempo atrás a mãe de vocês morreu. Ela está enterrada no meio da

aldeia.Eles foram até o túmulo da mãe e ficaram chorando em cima dela, falando com ela, até que

ela falou com eles.– Mamãe!– Oi.– Mamãe!

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– Oi. – Mamãe!– Oi.Eles ficaram conversando com a mãe, até que a cabeça dela apareceu no chão. A avó

disse para eles:– Não façam isso, ela desapareceu há muito tempo para dar lugar para a sua criação no

futuro.Se a avó não tivesse dito isso, as pessoas viveriam mesmo depois de morrer.Passou muito tempo, eles cresceram e o Sol pensou em fazer coisas para nós, em

transformar as pessoas em gente verdadeira como nós, brancos e índios. O Sol e o Lua fizeram três tipos de flechas para transformar em gente. O Sol fez milhares de flechas e rezou-as, assim elas se transformaram em pessoas. Os índios do Alto Xingu são flecha de taquarinha, os brancos e americanos são flecha de pau branco. Os índios do Baixo Xingu e os Kaiapó são todos de origem das flechas de taquarinha preta, por isso eles são bravos. O Sol fez arma de fogo e ofereceu para os índios, mas eles não sabiam usá-la e não quiseram pegar essas armas. Logo ele ofereceu para os brancos, que sabiam usá-las. Se nossos antepassados soubessem usar as armas, nós mesmos ficaríamos como os brancos.

O Sol pensou de novo em fazer o dia, para as pessoas do mundo sobreviverem em paz. Primeiro ele amarrou um Urubu. De repente ele e o Lua rolaram a cabeça do Urubu numa pedra, mas não apareceu o dia. Depois ele amarrou um pássaro que se chama Ujujaya. Ele fez da mesma forma que fez com o Urubu, nem assim apareceu o dia. Então ele amarrou uma ararinha chamada Kaokao. Apareceu um pouquinho o alvorecer. Nesse momento, as pessoas que estavam acostumadas a viver na escuridão se transformaram em bichos, em espíritos. Foi então que o espírito dono do jatobá se transformou no homem do mato e na mulher do mato. Eles não aguentaram viver na claridade do dia, como vivemos hoje.

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Finalmente o Sol amarrou um Urubu-rei e o dia apareceu, como é até hoje em dia.Quando o Sol terminou de raspar a cabeça do Urubu-rei e apareceu o dia, começou a

nascer a claridade, mas ainda estava muito quente. O céu tem três camadas, por isso nós não morremos na quentura. Se o céu fosse só um, nós não iríamos aguentar o calor.

Nesse tempo o Sol nascia no norte e morria no sul. Do norte ao sul demorava muito tempo, um dia demorava quatro anos. De manhã, das sete às nove horas acontecia o tempo da seca e da chuva, entre dez e doze horas outro tempo de seca e chuva. Entre treze e quinze horas mais um tempo de seca e chuva, entre dezesseis e dezoito horas outro tempo de seca e chuva. Nesse tempo as pessoas ficavam com fome e sede, não conseguiam alimentação, não buscavam mandioca, não trabalhavam por causa da quentura. Quando anoitecia, a noite durava o mesmo tempo do dia. Os dois rapazes não gostaram do mundo desse jeito.

O Lua trabalhava à noite, o Sol trabalhava de dia. Eles não gostaram de viver dessa maneira e pensaram de novo:

– Vamos mudar de lugar, o Sol pode nascer desse lado, e apontaram para o leste. Eles viraram e assim o Sol começou a nascer no leste e se pôr no oeste. Eles gostaram

desse jeito que existe até os tempos atuais. Assim o Sol ficou nesse lugar mesmo. O Lua ficou de noite e Sol ficou de dia. Era isso que eles estavam querendo, até agora existe o dia e a noite e nós estamos vivendo em paz.

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Origem do dia para o povo Kuikuro

História contada por Haitsehü Kuikuro, escrita e ilustrada por Arautará Kamaiurá

Antes não existia o dia nem o sol, só existia a noite. Os dois irmãos gêmeos, Tai‰gi e seu irmão Aulukumã viviam na escuridão. Insatisfeitos com a escuridão, Aulukumã pensou em fazer uma visita à aldeia do Urubu-rei (Uguhu kuegü).

Na aldeia de Uguhu kuegü, Aulukumã conheceu uma linda menina, filha do Urubu-rei e resolveu casar-se com ela. Aulukumã ficou três dias na aldeia da esposa. Depois desse período ele falou para seu sogro que iria voltar para sua aldeia com a esposa. O Urubu-rei deixou sua filha ir com o marido. Então o casal voltou para a aldeia de Aulukumã.

Aulukumã viu o dia na aldeia do Urubu-rei, enquanto em seu mundo tudo era escuro. Passaram-se três noites e o dia não amanhecia. A esposa de Aulukumã perguntou para o marido:

– Por que o dia não está amanhecendo?– No mundo em que vivemos não existe o dia, respondeu Aulukumã.A esposa resolveu pendurar a esteira que ela havia trazido de sua aldeia na porta da casa.

Durante dez dias ela saiu na porta da casa para ver o dia chegar, até que ele veio clareando o horizonte azul. Ela chamou seu marido:

– Venha ver o dia chegar, o sol já está chegando para clarear o nosso mundo!

Vendo o dia chegar, Aulukumã ficou muito feliz e disse:

– O dia tem que ficar sempre assim, para a humanidade procurar comida na claridade do dia.

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Tai‰gi aproximou-se do irmão e disse:– Por que você se casou com essa mulher se ela não é sua prima? Você se casou com sua

tia, isso está errado.Tai‰gi estava com ciúme do irmão porque ele tinha se casado com uma menina bonita, a

filha do Urubu-rei. Ele tinha uma esposa feia e resolveu enganar o irmão. Enganou-o casando-se com a cunhada. Eles trocaram de esposas.

Assim foi a origem do dia para o povo Kuikuro.

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Os gêmeos Sol e Lua e a origem da festa Kuaryp

História narrada por Akatua Aweti, escrita e ilustrada por Waranaku Aweti

Quando Sol e Lua ainda eram crianças foram para a aldeia do pai deles. Lá eles cresceram e ficaram adolescentes.

– Oh! Meninos, vocês podem ir para a aldeia de Wamutsini, avô de vocês – assim falou o pai dos meninos Kwaza.*

Na aldeia do avô, um lugar chamado Morená, eles se tornaram homens poderosos e falaram para o avô:

– Vovô, nós vamos fazer uma festa em homenagem à nossa mãe.

– Está bem, podem fazer a cerimônia da sua mãe junto com seu pai.

Eles voltaram para a aldeia do pai. O nome do pai dos Kwaza é Itsumaryt, o homem onça. Eles permaneceram muito tempo com seu pai. Um dia o povo do seu pai ouviu a opinião dos dois irmãos a respeito da realização de uma cerimônia para homenagear a morte de sua mãe. Os irmãos disseram ao povo do pai:

– Foi por isso que nós viemos nessa aldeia, para realizar essa festa.

* Kwaza é o termo usado para designar os dois irmãos gêmeos, Sol e Lua.

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No dia seguinte o tronco do Kuaryp foi cortado pelo povo do homem onça. Cinco dias depois eles foram pescar e demoraram dez dias para retornar à aldeia. No dia seguinte as pessoas decidiram convidar o outro povo. Os jywy (cascudinhos) foram escolhidos para convidar seu próprio povo, que é peixe. Eles foram indicados por compreenderem a língua dos peixes. Eles saíram para convidar o povo da aldeia Yku’a, a aldeia dos peixes, conforme tinham sido orientados pelo Sol e pelo Lua (Kwaza). Chegando lá eles gritaram, iniciando assim o grito das pessoas que vão sempre fazer convite aos outros povos:

– Kaaako kaaako! – gritaram eles. O povo peixe escutou esse grito e todo o pessoal da aldeia respondeu:– Uhu! Lá vem as pessoas que chegaram para nos convidar.Eles foram recebidos, sentando-se em um banco no pátio, eram três Moretá, ou

convidadores. Os peixes perguntaram qual era a mensagem deles. Tati’i watu cumprimentou um deles, depois Myzyka watu cumprimentou outro e por último Nipiaw watu cumprimentou o que ainda não tinha sido cumprimentado. Essas pessoas que fizeram os cumprimentos são chefes. Eles conversaram e na despedida os três Moretá disseram:

– Vocês podem ir depois atrás da gente.– Está bem, mas como é que nós vamos?– Amanhã vocês deverão sair.– Quem é o dono dessa festa?– É uma festa realizada pelos Kwaza (Sol e Lua). Eles irão homenagear o falecimento de

sua mãe.Em seguida eles saíram e retornaram para sua aldeia. Lá no meio do caminho eles

acamparam. Quando amanheceu eles seguiram caminhando e chegaram bem no final da tarde gritando:

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– Kaaako kaaako!O pessoal da aldeia respondeu:– Uhu! Os Moretá estão voltando.Um dos Moretá foi falar no centro da aldeia, o pessoal segurou a sua mão, levando-o para

a casa dos homens. Ele sentou-se e contou:– O povo da aldeia Yku’a está vindo.Depois de alguns dias o povo peixe chegou na foz do rio. Esses convidados foram

caminhando até encontrar Katsini, que era uma pessoa antiga que estava pescando com flecha.– Ali está Katsini pescando – disseram os peixes.No momento em que Katsini ia flechar o peixe, eles jogaram água nele, fazendo-o cair na

água.– Katsini! – disse o povo peixe – venha conosco participar da festa Kuaryp para você nos

ajudar nas lutas.– Está bem, eu vou com vocês.Eles levaram Katsini junto com eles e dormiram cinco dias no caminho, até que chegaram

na aldeia. À tarde o pessoal da aldeia escutou os convidados peixes gritando. Quando escureceu os Moretá chegaram no acampamento levando mingau e beiju com peixe para eles comerem. Ao amanhecer, os peixes convidados começaram a se preparar para a festa, todos se pintaram. Quando o sol apareceu os Moretá foram buscar os convidados no acampamento:

– Morekwaza (caciques), vamos comigo para dentro da aldeia.Os peixes responderam:– Uhu! Vamos lá.Ao entrar na aldeia eles se agruparam. Os primeiros lutadores da aldeia da onça foram

Airaminá, o homem anta. Ao lado dele estava Ajanamari, que é gente. Os lutadores eram todos onças. Os lutadores dos peixes foram os filhos de Nauri, o filho dele era baixinho. Nauri lutou com Airaminá e o derrubou, depois seu irmão foi lutar com Ajanamari e também o derrubou.

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Para dar continuidade, lutaram coletivamente até terminar o huka-huka. No final os Kwaza foram cumprimentar os caciques peixes, levando-lhes mingau e peixe moqueado. Os Kwaza cumprimentaram os peixes.

Os donos da luta huka-huka são os Kwaza, eles foram os que deram início ao Kuaryp, fazendo uma homenagem à sua mãe depois de sua morte. Por isso até hoje nós realizamos essa

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Janaryt e Tumej

Awajatu Aweti

Desde o começo do mundo existem os donos dos rios, Janaryt e Tumej. Essas pessoas que assumiram a responsabilidade de cuidar dos rios no mundo, para que eles fossem reconhecidos como os donos da águas doces e dos mares. Os dois se dividiram para tomar conta das águas. Tumej responsabilizou-se por algumas lagoas sagradas, como a lagoa Makawaja e a lagoa Alahatua, que nosso povo Aweti chama de Ywarawyry. Essas lagoas existem aqui no Parque Indígena do Xingu. Janaryt responsabilizou-se pelos rios principais e pelos mares. Janaryt é dono dos rios Kuluene, Kurizevo, Batovi, Ronuro, Steinen, Arraia e Suiá-Missu. O plano de Janaryt e Tumej era distribuir essas águas no mundo para seus netos, que somos nós.

Primeiramente as águas foram descobertas pelos netos de Wamutsini, o Sol e o Lua. A intenção do Sol e do Lua era trazer a água no mundo para sustentar a vida dos seus netos. Na época em que eles existiram ainda não havia água aqui na Terra. O Sol e o Lua resolveram destruir a grande caixa d’água do seu avô Janaryt no Brasil, eles sabiam que nós iríamos habitar esse mundo. Se eles não pensassem nisso, a água não existiria. Foi a preocupação deles por nós que fez a água existir em todos os países do mundo.

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A lagoa Makawaja

História narrada por Akatua Aweti e escrita por Awajatu Aweti

Existe uma lagoa que nós chamamos Makawaja. Esta lagoa é sagrada. A lagoa foi descoberta pelo povo Kamaiurá, há muito tempo atrás quando eles foram pescar.

Eles viram que a lagoa Makawaja estava cheia de peixes. Quando eles estavam pescando viram galos numa praia flutuante, no meio da lagoa. Esses galos não são galos comuns, são galos sobrenaturais que vivem dentro da água.

Os pescadores voltaram para a aldeia e contaram para todos o que tinham visto durante a pescaria. Todos queriam conhecer esta lagoa e resolveram voltar lá. Quando todos chegaram à lagoa viram os galos sobrenaturais e ficaram admirados com sua beleza, os galos eram bonitos com penas de várias cores. Alguns ficaram com vontade de pegar os galos e começaram a discutir como fariam isso. Mas, por enquanto, resolveram voltar para a aldeia.

Depois de muita discussão, ouviram a opinião do pai de um menino. Esse menino foi escolhido para pegar os galos. Para preparar o menino o pai foi buscar ervas no mato. O menino ficou cinco meses em reclusão, crescendo e se fortificando com as ervas. As ervas serviram especialmente para tirar o peso do menino durante a reclusão, para que o menino não afundasse no pântano da ilha flutuante. Para testar o seu peso, todo dia o menino pisava numa casa mole de cupim, até que um dia a casa de cupim não quebrou sob os pés do menino.

Antes de irem pegar os galos, eles fizeram mais um teste. O pai do menino o levou para pegar um veado. De fato, o menino conseguiu correr muito mais rápido do que o veado e conseguiu pegar o veado pela perna. A família ficou contente com ele.

Então chegou o momento de conseguirem os galos encantados. O menino e quatro colegas do pai saíram de madrugada, para chegarem à lagoa antes dos galos saírem da água. Chegaram na beira antes da alvorada e se esconderam no mato. Só o menino foi para a ilha flutuante

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levando consigo grãos de milho e palha. Ele espalhou o milho na praia como isca para os galos, depois construiu um esconderijo para ele com a palha.

Depois de algum tempo os galos começaram a sair da água, mas o menino continuou quieto observando e esperando mais um pouco. Saiu um galo de cada vez, eram galos de tipos e cores diferentes. Um dos homens que estava escondido indicou para o menino quais os galos que ele deveria pegar. Ele tinha escolhido um casal: a galinha era toda branca e o marido era cheio de pontinhos pretos.

O menino correu e pegou primeiro o macho. Os galos encantados começaram a voar, irritados, mas mesmo assim ele conseguiu capturar a galinha. Nesse momento, muitos bichos encantados começaram a sair da água. O menino tentou fugir correndo para um lado, mas logo surgiu na sua frente um outro bicho d’água. Correu para o outro lado, mas aconteceu novamente, diante dele emergiu mais um bicho encantado. Eram uma onça, um porco, uma cobra, o fogo d’água e muitos outros seres. Todos os seres sobrenaturais foram perseguindo o ladrão de seus galos.

Finalmente o menino conseguiu escapar por uma brecha entre os bichos. Os bichos estavam atrás dele, mas ainda bem que ele conseguia correr muito rápido. Ele fugiu com toda velocidade direto para sua aldeia, os bichos sempre o perseguindo. Seus colegas fizeram um desvio longe do caminho, para evitar que encontrassem os bichos. O menino correu, correu, sem parar. Só quando ele estava quase chegando na aldeia os bichos d’água finalmente desistiram e voltaram para a lagoa Makawaja.

No outro dia foi realizada uma reunião na aldeia. O menino e seus colegas apresentaram os galos para a comunidade e explicaram como eles conseguiram pegar os bichos encantados. Os antepassados Kamaiurá, apesar de saberem que eram galos encantados, resolveram criá-los.

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Origem da lagoa ‘Ypawu

História narrada por Takumã Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Essa lagoa antigamente era uma aldeia, na época não tinha lagoa. No local da lagoa Ypawu existia a aldeia Mawaiaka. Lá morava Mawaiaka, sua esposa, seus filhos e sua família. No lugar chamado Morená havia um homem chamado Apytyia, ele que começou a tomar a raiz kumanaum, que usamos como erva medicinal no período da reclusão. A mãe de Apytyia viu uma pomba e falou para seu filho:

– Filho, a pomba está tomando a sua raiz.O rapaz foi espantar a pomba e ela saiu voando.– Pô, pô, pô, pô, pô, pô... Foi bem alto voando com a cabeça para cima.

Ela veio trazendo o caldo da raiz na barriga. Veio trazendo até em cima da aldeia Mawaiaka. Ela abaixou a cabeça em cima da aldeia e derramou o caldo da barriga, derramou esse caldo com todos os tipos de peixe. A aldeia virou uma lagoa.

Alagou toda a aldeia e as piranhas e os bichos d’água comeram todas as pessoas. A pomba mesmo que criou os bichos d’água para comerem a família de Mawaiaka. Quando Mawaiaka veio da roça, ele não viu mais nada de sua casa e de sua família. Ele viu que a aldeia estava alagada pela água. Ele tentou

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encontrar o filho, foi para lá e para cá procurando. Ele fez ilha uma aqui, fez outra ilha em outro lugar, procurando o filho e nada, desistiu. O bicho d’água comeu toda sua família, acabou com eles.

Essa lagoa não era lagoa, foi feita de água da raiz chamada kumana‰. Mawaiaka permaneceu ali, ele colocou nome em cada lugar. Essa lagoa era grande, diminuiu para ele poder procurar o filho. Mas ele não encontrou o filho e ficou triste. Essa lagoa surgiu da água da pomba, é água da raiz.

Foi assim a origem da lagoa ‘Ypawu, que era a aldeia do Mawaiaka. Por isso nós

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A origem do dia para o povo Kamaiurá

Matariwa Kamaiurá

Há muito tempo atrás o dia não existia para os povos indígenas. Os índios viviam na escuridão, sem luz e sem fogo. Eles sofreram muito por falta do dia e de alimentação. Os povos indígenas tinham dificuldade de enxergar longe.

Enquanto isso, o predador se aproveitava da escuridão para atacar os índios que viviam no escuro. Esses predadores eram as onças, por isso os índios sofreram muito. Eles ficavam mudando de lugar, fugindo das onças, mas elas continuavam atacando. Quando elas atacavam, todos se espalhavam correndo para lá e para cá e assim os índios foram diminuindo.

Jay e Kwat (Lua e Sol) foram procurar o dia para os índios, solucionando o problema. Eles viram os índios sofrendo nas garras dos inimigos. Os dois saíram para fazer uma anta de mentira, que ficou igualzinho a uma anta de verdade. Depois colocaram mandioca dentro da anta para ficar fedorenta. Finalmente eles pegaram cera para fazer a Mosca. A Mosca era enorme, parecida com pombo. Ela era a mensageira.

Jay e Kwat mandaram a mensageira até o céu para avisar o Urubu-rei para ele vir à Terra comer anta e eles se esconderam embaixo da unha da anta morta. A mensageira voou para o céu levando a mensagem para o Urubu-rei. Quando ela chegou na aldeia do Urubu-rei, ele perguntou:

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– Qual é a novidade que o senhor está trazendo aqui para nós, senhor mensageiro?

O mensageiro respondeu, mas o Urubu-rei não compreendeu a palavra dele. A mosca só falava pelo nariz. O Urubu-rei chamou seu tradutor, o Xexéu, mas ele também não entendeu a palavra da Mosca. Ele perguntou duas vezes e mesmo assim não entendeu. Mais uma vez o Urubu-rei chamou outro tradutor, o Xexéu preto, que traduziu a mensagem. O Xexéu preto perguntou:

– O que o senhor mensageiro quer?Ele respondeu: – Eu vim avisar o Urubu-rei que a comida está estragando lá embaixo.O Xexéu preto traduziu para o Urubu-rei, que ficou muito feliz quando ouviu essa novidade.

O Urubu-rei desceu com o seu pessoal para comer a anta morta. Como ele era esperto, ao pousar num galho de árvore percebeu que aquela não era uma anta verdadeira. O Urubu-rei não acreditou e chamou o seu pajé Bem-te-vi para analisar se a anta estava realmente morta. O Bem-te-vi fumou seu cigarro e disse:

– Senhor Urubu-rei, a anta está morta mesmo. Você pode descer em cima dela.

O Urubu-rei desceu em cima da perna dela. Jay e Kwat o surpreenderam, tentando agarrá-lo. O Urubu-rei quis voar, mas não conseguiu. Jay e Kwat já tinham agarrado sua perna e falaram:

– Nós não vamos matar você, vovô. Eles começaram a conversar com o Urubu-rei sobre o sofrimento

dos índios na escuridão. Os irmãos pediram para ele arrumar o dia e o Urubu-rei concordou. Ele mandou seu amigo buscar o dia, trazendo um

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cocar falso. Só veio aumentando a escuridão. O Urubu-rei disse para seu amigo:– Traga o dia verdadeiro para nossos netos.Mas ele não trouxe o dia verdadeiro. Jay e Kwat reclamaram para o Urubu-rei:– Meu amigo, por favor, traga logo o dia para nós. Os nossos netos estão sofrendo muito,

precisando da claridade do dia.Mais uma vez o Urubu-rei mandou outro amigo buscar o cocar certo, trazendo o dia

verdadeiro para os índios. Finalmente o dia veio aparecendo. Jay, Kwat e o Urubu-rei ficaram olhando para o céu e para o horizonte aonde o sol veio nascendo. Eles agradeceram ao Urubu-rei pela ajuda, mandando-o de volta para o céu. Jay e Kwat ficaram felizes. Os índios, que até então viviam no escuro, também ficaram felizes quando viram o sol nascendo. Eles começaram a andar longe e conseguiram e n x e r g a r o s i n i m i g o s , c o m e ç a r a m a pescar, roçar e fazer suas casas.

Assim surgiu o dia para os povos indígenas.

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Page 57: livro de mitos de povos indígenas do Xingu...Ele é capaz de fazer água e também peixes. Assim é o avô de vocês, Janaryt. – Onde ele mora, vovô? – Ah, ele mora para lá

Origem dos porcos

História narrada por Koka Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Os porcos começaram a existir assim:Uma senhora foi ver a roça do filho. Ela viu que o porco tinha comido a mandioca e voltou

para casa. Quando a senhora voltou, disse para o filho:– Filho, o porco está comendo a sua roça.– É mesmo, mãe? Amanhã eu vou lá ver, eu vou matá-lo.No outro dia de manhã ele foi. Ele viu a mandioca toda branca mordida pelo porco. Ele viu

o caminho do porco e foi seguindo o rastro até encontrá-lo no mato. Chegou num lugar cheio de cipó timbó. Entrou no meio do cipó timbó, que era a casa dos porcos. Um dos porcos disse:

– O que foi moço?– Por...– Ele está falando porco!Os porcos levantaram todos para mordê-lo.– Você falou por...– Não, não, eu não falei!– Você falou sim!– Não, eu vou contar a verdade, eu vim

caçar pássaros!– Você falou por...– Não, não, eu não falei isso não, vocês

estão mentindo!

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No meio dos porcos tinha uma moça bonita, filha de um dos porcos, que falou:– Eu quero casar com você!O homem casou com ela. Eles estavam trabalhando. Ele viu os porcos, todos com dentes

grandes. Ele estava só olhando para eles, pensando:– Eles são assim tão esquisitos!Tinha uma mulher, mãe de menino novo, que ficava só deitada, porque era preguiçosa.

Assim que a perereba ficou pronta para beber ela foi a primeira a levantar. Então um dos porcos disse:

– Você não vai trabalhar? Quando a perereba está pronta você é a primeira a levantar para tomar.

– Eu estou com criança pequena, por isso que eu não vou com vocês para a roça. O homem, dono da roça, ficou só olhando e pensando consigo mesmo:– É assim que vocês estão fazendo com a minha roça...No outro dia os porcos foram buscar mandioca na roça do rapaz.– Vamos para a roça.- Então eu também vou, disse o rapaz.Só ficou aquela mulher preguiçosa. Eles foram, o rapaz foi na frente, abriu a cerca,

entraram na roça e começaram a tirar muitas mandiocas:– Puxa, é assim que eles estão comendo a minha roça, agora que eu estou vendo como

eles fazem!Até o período da tarde o rapaz não tinha aparecido na casa dele, os porcos tinham roubado

o rapaz para viver com eles. A mãe do rapaz ficou desesperada e disse:– Para onde meu filho foi? Será que a onça comeu meu filho?Ela foi à roça para ver se encontrava o filho. Nada. Voltou... Enquanto isso, as porcas trabalharam a mandioca o dia todo e fizeram perereba. A mãe do

menino, que era preguiçosa, foi a primeira a levantar para tomar.

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– Viu! Você não vai pegar mandioca conosco, mas é a primeira a querer tomar!– É que eu estou com criança pequena!– Pra tomar perereba você levanta logo! Você é muito preguiçosa!O homem dono da roça falou:– Amanhã eu vou ver a minha mãe, estou com saudades dela.A esposa dele falou:– Mas você volta, não é?– Eu vou voltar.No outro dia, bem de manhã, o rapaz foi embora para a casa da mãe. Quando ele chegou,

a mãe ficou assustada.– Ah ah! Meu filho está chegando! Onde você esteve, meu filho?O rapaz contou a história:– Aquela hora que eu saí para ver a minha roça, eu fui na casa dos porcos, agora eu vi

como é o jeito dos porcos viverem. Eles me casaram lá, mãe!– Por que você não trouxe sua mulher, filho?– Eu não posso trazer, mãe!Ele saiu da casa e foi para o centro da aldeia avisar o pessoal:– Olha pessoal, quero que vocês vão amanhã na minha roça matar os porcos. Amanhã

eu vou levá-los para a roça. Vocês podem esperar no caminho, porque a roça é cercada. Eu vou abrir a cerca para os porcos entrarem, então eu vou gritar para avisar vocês.

Avisou o pessoal dele para todos matarem os porcos. – Eu vou voltar agora para a casa dos porcos, disse o rapaz.Quando ele chegou na casa dos porcos, disse:– Viu? Não falei que ia voltar? Estou voltando novamente. Amanhã nós vamos pegar

mandioca na roça. Amanhã tem que ir todo mundo.

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Todas as mulheres ficaram contentes.– Está bem, amanhã vamos todas buscar mandioca!No outro dia de manhã o rapaz falou:– Vamos mulherada, pegar mandioca na roça! Tem que ir todo mundo, para vocês pegarem

bastante.Aquela mulher preguiçosa não foi. Se todos os porcos tivessem ido, não existiria porco

hoje. Aquela que ficou com o filho foi quem continuou criando os porcos.As porcas e os porcos chegaram na roça e começaram a arrancar mandioca: Trok... Trok...

Trok! O rapaz entrou por último e fechou a cerca para os porcos não saírem mais de volta.– Kaõõõõ! Venham logo!O pessoal correu para a roça. Os porcos também correram, mas não conseguiram sair

mais da cerca. Os homens mataram todos os porcos dentro da roça.– Adeus porcos! Isso aconteceu porque vocês ficavam roubando a minha roça!Depois que mataram todos, cada pessoa pegou carne e levou para casa para poder comer.

Quando o rapaz chegou em casa, disse para a mãe:– Uma porca não veio, mãe, ficou lá, não vieram todos, se tivessem vindo todos, não

teríamos mais porcos.Por isso hoje em dia ainda tem muitos porcos comendo mandioca.

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Origem das araras

Tahugaki Kalapalo

No princípio do mundo um velho chamado Kuatüngü, avô dos rapazes Aulukumã e Tai‰gi, arranhou com uma arranhadeira todas as partes do corpo do seu neto Aulukumã. Quando o sangue do neto saiu, Kuatüngü colocou numa cuia velha e rezou.

Depois de rezar, Kuatüngü tampou e guardou a cuia bem direitinho. Passaram-se cinco dias e o sangue se transformou numa filhotinha de arara bem vermelha. Kuatüngü ouviu o grito da ararinha e foi ver como estava o sangue do neto, chegou perto e viu uma ararinha linda. Pegou-a na mão e levou-a para o seu neto criar. Assim a arara começou a existir para o povo Kalapalo.

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O rapaz que virou sucuri

Ugise Kalapalo

Antigamente havia um rapaz que namorava uma mulher casada. O marido dela foi pescar e pegou muitos peixes. Ele encontrou uma cobra e matou-a, cortou um pedaço da cobra e colocou dentro da barriga do peixe, para dar para a mulher comer com seu namorado. Ele voltou para a aldeia trazendo os peixes para sua mulher e escondeu o peixe que estava com carne de cobra. Sua esposa dividiu os peixes que ele trouxe para a mãe, para o irmão da mãe e para o tio. Depois de comerem, o marido comentou com a mulher:

– Tem peixe aqui, pode moquear para você comer amanhã. Então ele deu para ela o peixe recheado com cobra.

– Está bem.No dia seguinte, lá pelas cinco horas da madrugada, a mulher saiu para a roça e levou o

peixe que estava com o pedaço de cobra. O namorado foi atrás dela para se encontrarem. Na roça ela disse para o namorado:

– Você quer comer?– Eu quero.Quando terminou de comer, o rapaz virou uma cobra sucuri e foi para o rio. Hoje em dia é o

espírito da sucuri que ajuda os lutadores a ganharem as lutas.

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