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12 Coordenação Leonardo Garcia coleção SINOPSES para concursos LUCIANO L. FIGUEIREDO ROBERTO L. FIGUEIREDO DIREITO CIVIL Direitos Reais 2020 6.ªedição revista, atualizada e ampliada

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12CoordenaçãoLeonardo Garcia

coleção

SINOPSESpara concursos

LUCIANO L. FIGUEIREDO ROBERTO L. FIGUEIREDO

DIREITO CIVIL Direitos Reais

2020

6.ªediçãorevista, atualizada e ampliada

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C a p í t u l o

III

Propriedade

1. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A propriedade é um instituto que extrapola ao próprio direito, sendo inerente ao ser humano. Trata-se de fenômeno que antecedeu ao próprio direito, sendo fático e histórico, como bem nos recorda Arnaldo Rizzardo1.

Nesse sentido, a propriedade tem compreensão e extensão própria em cada período histórico, sendo o seu conceito mais amplo ou restrito nas diversas fases da humanidade. A conceituação proprietária sofre influência direta das mais varia-das organizações políticas e religiosas. Trata-se, pois, na correta lição de Sílvio de Salvo Venosa, de um conceito histórico-determinado2.

Fazendo uma breve incursão histórica, percebe-se que nos tempos primevos, antes da era romana, o objeto da propriedade privada somente abrangia as coi-sas móveis de exclusivo uso pessoal, a exemplo dos utensílios de caça, pesca e vestuário. A propriedade do solo, nesse contexto, era coletiva e transitória. A população era dividida em tribos, isoladas e nômades, vivendo os homens, exclusivamente, da caça, da pesca e da colheita, não sendo um objetivo, pois, a apropriação do solo. Assim, nesse período o homem ainda não estava “preso” ao solo e a propriedade não tinha caráter perpétuo.

Seguindo o curso da história, passou o homem a ligar-se ao solo e as tribos, definitivamente, a fincar a sua moradia em um lugar específico. Surge, inicialmente, a propriedade coletiva do solo para, em um segundo momento, advir a noção de propriedade privada deste. Assim, nesse momento histórico é alargado o conte-údo da propriedade privada, o qual, em vez de apenas abranger os utensílios de uso pessoal, se estende ao solo.

Esta propriedade, porém, geneticamente plural, encontra na Lei das XII Tábuas em Roma a sua unificação. Nasce uma propriedade individual e perpétua, passan-do a ser considerado o domínio da terra como absoluto. Essa noção romana de absolutismo e individualismo da propriedade, em verdade, veio contrastar com o

1. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 171. Lembra Darcy Besso-ne: “O homem se tornou possuidor e proprietário antes que se elaborassem normas coativas e se estruturasse a ordem pública” (RIZZARDO, 2004, p. 179).

2. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito Reais. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 151.

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caráter plural do instituto, o qual o acompanhava desde o seu nascimento até a sociedade romana.

Logo, o período pré-codificação (antes do Código de Napoleão), a exceção da ideia romana, assistiu ao surgimento e à evolução de uma propriedade de conteúdo multifacetário, abrangendo coisas móveis, imóveis, e várias formas de apropriação, como bem enfatiza Laura Beck Varela3. O fato, porém, é que foi a construção romana difundida pelo mundo, começando este percurso pela Europa continental por meio dos glosadores. Recorda Orlando Gomes que a conceitua-ção da propriedade no Direito Romano influenciou, de sobremaneira, o regime feudal e, posteriormente, o regime capitalista. Nessa toada, a noção proprietária individualista e egoística, segundo a qual “cada coisa tem apenas um dono” e “os poderes do proprietário são mais amplos”4 advém, historicamente, de uma construção romana.

No período das trevas (Idade Média) a propriedade perde o seu caráter unitá-rio e exclusivo. As diferentes culturas bárbaras modificam os conceitos jurídicos, o que não foi feito completamente para o melhor. Os conceitos de território e poder cada vez mais se misturam, ligando-se a ideia de propriedade à de soberania.

É a época do feudalismo, com os vassalos (servidores do senhor e não proprie-tários); e os senhores (os seus suseranos e poderosos proprietários). Aqui é que surgem os conceitos de domínio direto e domínio útil, passando a propriedade a ser considerada de forma desmembrada, como ensinam Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny Abreu Chinelatto5. Lembra Orlando Gomes que “o titular do primeiro (domínio útil) concede o direito de utilização econômica do bem e recebe, em troca, serviços ou rendas”6.

Outra importante influência ao direito de propriedade foi dada pelo Direito Canônico, por meio da sua ideologia segundo a qual “[...] o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade privada é garantia de liberdade individual”, como bem recorda Sílvio de Salvo Venosa7.

Santo Agostino e São Tomás de Aquino foram fervorosos defensores do ideal de ser a propriedade privada decorrente da natureza humana, devendo o homem fazer seu justo uso. Importantes encíclicas papais derivaram desta concepção filo-

3. LUDWIG, Marcos de Campos; VARELA, Laura Beck. In: Martins-Costa, Judith (org.). Da PropriedadeÀs Propriedades: Função Social e reconstrução de um Direito. A Reconstrução do Direito Privado:reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais do direito privado.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 732-733.

4. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008.p. 115.

5. CHINELATTO, Silmara Juny de Abreu; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Propriedade ePosse: Uma Releitura dos Ancestrais Institutos. Em Homenagem ao Prof. José Carlos MoreiraAlves in Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC. São Paulo: Padma. Ano 4, Vol. 14, Abril – Junhode 2003. p. 84.

6. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.115.

7. Op. Cit., p. 153.

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sófica, sendo tal visão da igreja católica um importante embrião para o advento da função social da propriedade, como se demonstrará adiante, em tópico específico.

Com a Revolução Francesa e o consequente Código de Napoleão, fora recep-cionada a noção romana, excepcional, sobre a propriedade, sendo firmada uma concepção extremamente individualista e unitária do instituto (absoluta), como comprova a redação do art. 544 do mencionado Código, para a qual a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos.

É aqui, nesse período, que se firma o famoso modelo antropológico napole-ônico-pandectista de propriedade, cujo centro eram dois conceitos: unidade e individualismo proprietários. A propriedade, que por sua natureza é plural desde o seu surgimento, se torna única e absoluta, por força da codificação, sendo o seu conteúdo restrito às coisas corpóreas e imóveis.

O Código de Napoleão, em que pese não ter sido eterno como pretendia o seu obstinado inventor, influenciou sobremaneira o movimento codificatório oito-centista, sendo que grande parte do mundo ocidental passou a ter, como opção legislativa, um conceito individualista e unitário de propriedade. Não foi diferente com o revogado Código Civil nacional de 1916, o qual traduzia no seu art. 524 a direta influência napoleônica, afirmando que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

O direito nacional atual, seguramente, se deixou influenciar por este paradig-ma histórico. Assim, o caput do art. 1.228 do CC/02 bem ilustra tal perspectiva, de modo a reconhecer ao titular do direito de propriedade uma série de atributos, tais como usar, gozar, fruir, alienar e reivindicar a coisa em face de quem injusta-mente a detenha.

Fato é que mesmo com esta influência feudal coproprietária, o regime capi-talista tende a caminhar com uma ideia unitária de propriedade, exacerbando o ideário material e individualista, com a máxima de que “o direito do proprietário é elevado à condição de direito natural em pé de igualdade com as liberdades fundamentais”8. Um belo exemplo disso é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa – 1789), cujo art. 17 afirmava ser a propriedade um direito sagrado e inviolável.

Entrementes, durante a vigência do antigo Código Civil brasileiro de 1916, as re-lações sociais passaram a ser inovadas, tanto no Brasil como no mundo. Expandiu--se o conceito de propriedade, o qual passou a abranger novos objetos, indo além das coisas corpóreas e imóveis. No mesmo passo da história cresceu o solidarismo social, em detrimento do individualismo de outrora, sendo correntes ideias como a diminuição das desigualdades sociais e a dignidade da pessoa humana (Consti-tuição Federal de 1988).

8. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 115.

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A propriedade passa a ser enxergada de forma plural, sendo o “começo do fim” de um modelo romano-francês absoluto.

Frisa Eduardo Takemi Kataoka9 que os vários tipos de propriedade que foram surgindo ficaram submetidos a diversas Leis esparsas, cada uma regulando um tipo proprietário, em uma clara descodificação mediante o surgimento de micros-sistemas.

Nesse cenário de transformações sociais e leis esparsas posteriores para re-gularem as mudanças é que nasce a fragmentação do direito proprietário, o qual passa a ter, novamente, um caráter plural e social, em detrimento do unitário e absoluto anterior. Tal fato aconteceu no Brasil e no direito comparado, a exemplo da Itália, como ensina Pietro Perlingieri10.

Destarte, a pluralidade proprietária foi além daquela que historicamente já existiu no globo terrestre. A evolução social e tecnológica vivida pela humanidade levou a apropriação e determinação de valores econômicos a novos bens, não mais se restringindo como objeto proprietário a terra e outros bens corpóreos. Passou a propriedade, nesse novo cenário, a abranger também as coisas incorpó-reas, sendo incluído no conceito de apropriação tudo aquilo que possuía um valor econômico, ou ainda que pudesse ser aferido economicamente.

Infere-se a importância da ideologia capitalista na ampliação do conteúdo da propriedade, ao passo que, com o escopo de aumentar o lucro e a produção, pas-sou a valorar aquilo que tivesse, ao menos, estimação econômica, incluindo tais coisas dentre os objetos proprietários.

Dessa maneira, na atualidade, a propriedade não mais tem o caráter uno de outrora, sendo multifacetária, plural. A sua caracterização irá depender do bem que esteja sob a sua égide e o sujeito que a possua. Esse fenômeno é explicitado pela própria Constituição Nacional, lembra Paulo Lôbo11, no momento em que se fala em propriedade rural, propriedade urbana, direito autoral, direito industrial, e, generi-camente, propriedade, contemplando, pois, a diversidade inerente ao instituto e à queda do conceito restritivo, oitocentista, de influência romana napoleônica.

Como este assunto foi cobrado em concurso?(Ano: 2016 – Banca: CESPE – Órgão: TJ/DFT – Prova: Juiz de Direito Subs-tituto).Foi considerada incorreta a seguinte assertiva: “A propriedade, con-forme disposição legal, incide exclusivamente sobre bens corpóreos.”

9. KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do Individualismo e Propriedade. In TEPEDINO, Gustavo. Pro-blemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 463.

10. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil Constitucional. Introdução ao Direito Civil Constitucional.2ª ed. São Paulo: Renovar, 2002. p. 218-219.

11. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 33,jul. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com..br/doutrina/texto.asp?id=507>. Acesso em: 03 maio2004. p. 1.

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99Cap. III • Propriedade

Fato é que mesmo após a ampliação do objeto da propriedade, bem como a maior percepção do seu caráter individual, o curso da história percebeu o que chama a doutrina de uma funcionalização proprietária. A propriedade, portanto, passou a ser significada sob a ótica de valo-res sociais, advindo a chamada função social da propriedade.

2. TEORIAS EXPLICATIVAS DO SURGIMENTO DA PROPRIEDADE

Aqui cabe ser feita uma quebra na abordagem da evolução histórica para en-fatizar a questão das teorias que tentam explicar o surgimento da propriedade, tendo em vista a relação do aparecimento destas teorias e a evolução do instituto.

Há várias teorias que tentam explicar a origem da propriedade. Dentre as mais importantes citam-se: a teoria da ocupação; a teoria da lei; a teoria do trabalho e a teoria da natureza humana.

Segundo a teoria da ocupação, a propriedade surgiria mediante a ocupação pelo ser humano da coisa sem dono (res nullius). Sendo assim, inexistindo sobre a coisa o domínio de outrem, tornou-se proprietário aquele que se apossou, ocupou a coisa, pela primeira vez. Continuando o curso da história e devido ao caráter perpétuo da propriedade, a apropriação foi se mantendo até a atualidade, por meio de sucessivas transmissões.

A grande crítica à teoria da ocupação reside no fato de o direito de proprie-dade não se restringir, tão somente, à vontade unilateral do ocupante, sendo que terceiros têm de respeitar o direito de proprietário (caráter erga omnes). Além disso, perde força a teoria acaso leve-se em conta a grande possibilidade de sua utilização afrontar a boa-fé.

Consoante a teoria da lei – também chamada de positivista e defendida por Hobbes, Bossuet, Montesquieu, Mirabeau e Bethan12 – a propriedade consiste em uma concessão do direito. Existe pelo simples fato da lei tê-la criado e garantir o seu exercício. Essa teoria cai por terra com a constatação de que a propriedade antecede ao direito, sendo que já existia até mesmo antes da tutela jurídica, con-forme visto no tópico anterior.

Outra importante teoria para justificar o surgimento da propriedade individual é a de John Locke, denominada teoria da especificação ou do trabalho. Segundo ele, partindo de uma visão impregnada pelo catolicismo, a propriedade individual, cuja origem remonta ao tempo de Adão, é de todos. Entrementes, é por meio do trabalho humano, o qual é de exclusividade de seu titular, que poderá surgir a apropriação. Assim é que, por meio da colheita, surgiria a propriedade dos frutos e por meio do cultivo da terra que surgiria a propriedade imobiliária. É essa a lição transmitida por Izabel Vaz13:

12. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 180.13. VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 26 e 27.

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A teoria de John Locke para justificar a propriedade individual baseia-se na origem divina do legado concedido a Adão e sua prosperidade. Como se entende ser aquela propriedade comum aos homens, procura explicar as causas da apropriação privada dos bens (fruto, caça) e da terra pela utilização da razão, também dada por Deus. A terra e todas as criaturas inferiores são comuns a todos, diz Locke; mas cada homem tem uma pro-priedade em sua própria pessoa, à qual ninguém, senão ele, tem direito. “O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele”. Tudo que o homem, por meio do seu trabalho, retira do estado em que a natureza o deixou, torna-se sua propriedade, pelo acréscimo de algo que lhe pertence. Ao aplicar o homem o trabalho, que é a sua propriedade exclusiva, em colher um fruto, abater uma caça ou cul-tivar um pedaço de terra, adquire sobre estas coisas um direito privado, excludente de qualquer outro, ao menos enquanto houver bens em comum e suficientes para terceiros.

Urge enfatizar que, segundo Locke, é quando o homem, por meio de seu tra-balho, passa a produzir mais do que poderia consumir, que nascem as diversas valorizações das propriedades e a noção de novos direitos sobre elas, rompen-do-se o equilíbrio e surgindo as desigualdades na distribuição dos bens. Devido a esta ideia de Locke, sua teoria foi utilizada como fonte de inspiração do regime comunista, pois, segundo os comunistas, a produção vem da força do trabalho. Logo, o operariado teria direito à exploração econômica do produto final do seu labor14.

A teoria da natureza humana aduz ser o fundamento da propriedade, des-culpem pela tautologia, a própria natureza humana15, ou seja: a propriedade é inerente ao ser humano, sendo pressuposto de existência e liberdade deste. Jus-tamente por isso é que a propriedade antecede, até mesmo, o direito positivo e o Estado, figurando como verdadeiro direito natural, inato. Segundo Arnaldo Rizzardo16: “É, seguramente, uma forma coerente de encontrar o fundamento da propriedade”, fato com que o autor deste trabalho concorda plenamente.

3. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A Constituição Federal da Alemanha de 1949, em seu art. 14, alínea 2, afirma que “A propriedade obriga. O uso da propriedade deve concorrer também para o bem da coletividade”. Sem dúvida esta perspectiva demonstra um absoluto abandono à concepção romanista da propriedade, bem como um freio à visão individualista dela.

Tal concepção chegou ao Brasil e hoje encontra assentamento nos incisos XXII e XXIII do art. 5º da CF/88, seguida pela disciplina do § 1º do art. 1.228 do CC/02. Logo, hodiernamente, não há mais a menor dúvida: a propriedade não é mais produto absoluto de um individualismo egoístico. Ao contrário disso, deve

14. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 181.15. Utilizou-se o autor neste trecho de pleonasmo enfático.16. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 182.

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101Cap. III • Propriedade

se harmonizar com as exigências socioambientais. Em síntese: tendo em vista as exigências atuais do bem comum e os interesses extraproprietários, há uma função social a ser respeitada17.

Nesse sentido vem caminhando a doutrina, como posto pelo Enunciado 507 da V Jornada em Direito Civil, segundo o qual “Na aplicação do princípio da função social da propriedade imobiliária rural, deve ser observada a cláusula aberta do § 1º do art. 1.228 do Código Civil, que, em consonância com o disposto no art. 5º, inciso XXIII, da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcionalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do trabalho”.

De fato, é garantido o direito de propriedade. Significa isso dizer que a pro-priedade tem natureza de garantia, traduzindo um direito, fundamental. Ademais disso, esta propriedade atenderá a sua função social, sendo nítida a possibilidade de intervenção estatal para restringir a autonomia privada em situações nas quais o proprietário não a respeite. Tal se dá, por exemplo, por meio de normatizaçõesde planos diretores, em grandes centros urbanos, os quais traduzem normas re-cheadas de regras que visam potencializar a função social dos imóveis e evitar ointuito meramente especulativo.

Como este tema foi cobrado em concurso público?Ano: 2018 Banca: VUNESP Órgão: TJ-MT Prova: VUNESP - 2018 - TJ-MT - Juiz SubstitutoFoi ajuizada uma ação reivindicatória de uma extensa área urbana, de 20000 m², ocupada há 6 (seis) anos, de boa-fé, por 50 (cinquenta) famílias, que a usam para moradia. Deverá a ação

Gabarito: ser improcedente, tendo em vista que o juiz deverá decla-rar que o proprietário perdeu o imóvel, em razão da desapropriação judicial por interesse social, fixando a indenização devida, valendo a sentença como título para o registro no cartório de registro de imóveis.

Ano: 2018 Banca: FCC Órgão: PGE-AP Prova: FCC - 2018 - PGE-AP - Procu-rador do EstadoPode ser identificada como reivindicatória a ação do

Gabarito: “proprietário não possuidor contra o possuidor não proprie-tário que injustamente possua ou detenha a coisa”.

A propriedade está funcionalizada em um interesse metaindividual, exógeno e social. O direito de propriedade não se justifica apenas para proteger, exclusi-vamente, o seu titular, mas também para realizar interesses de toda a sociedade. Em decorrência disso, o proprietário hoje sofrerá limitação jurídica de faculdades proprietárias, dantes absolutas.

17. O art. 147 da CF/46 já previa que o uso da propriedade haveria de se condicionar aobem-estar social.

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Discute-se, porém, se esta propriedade tem a função social como seu conteúdo (teoria interna) ou como um mero limite proprietário (teoria externa)18.

A teoria interna teve como um dos seus grande baluartes Léon Duguit, para quem a função social estaria inserida no próprio direito de propriedade, inte-grando o seu conteúdo. Desta maneira, enxergava Duguit a propriedade como um direito-função, suprimindo a noção de direito subjetivo e enxergando a ausência de direito acaso não houvesse função social. Trata-se de teoria com grande pres-tígio no Brasil e na Espanha.

Já a tese externa, a qual teve como importante referencial Josserand, aduz ser a função social um dos limites ao exercício do direito de propriedade, não a enxer-gando como seu conteúdo. Dessa maneira, para os defensores da teoria externa, há propriedade ainda que não haja função social, sendo esta apenas um limite no exercício daquela. Defende esta ideia Jorge Miranda e Virgílio Afonso da Silva.

Assim, não mais deve ser vista a propriedade como um objeto de um mero direito subjetivo, devendo ser significada como um verdadeiro instituto jurídico.

A função social passa a integrar o conteúdo da propriedade, afinal de contas “Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abu-tendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade, orientando--se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interes-ses e às necessidades comuns”. É a lição de Carlos Alberto Dabus Maluf19.

Na mesma esteira, o § 2º do art. 1.228 do CC proíbe o proprietário de praticar atos que não lhe tragam utilidade ou comodidade, bem como o ato emulativo, de forma que o abuso do direito é expressamente objeto de vedação normativa também nos direitos reais. Nesse sentido, o Enunciado 49, da I Jornada em Direito Civil, ao sugerir que o preceito normativo em destaque seja interpretado em har-monia com a função social e com o disposto no art. 187 do Código Civil; leia-se: à luz da boa-fé objetiva.

De forma ousada e inusitada, o CC prevê a desapropriação judicial por neces-sidade ou utilidade pública, bem como a desapropriação por interesse social e o ato de requisição em situações de perigo público iminente (§ 3º do art. 1.228).Trata-se de aspecto intrigante, pois o tema é visivelmente de direito público, pre-visto no art. 5º, incisos XXIV e XXV, da CF.

Talvez a grande ilustração hoje desta função social da propriedade esteja na denominada desapropriação judicial privada, decorrente da posse-trabalho, pre-vista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do CC, fruto da notável inteligência do jurista Miguel Reale e sem precedentes no direito comparado.

18. No particular valeu-se o este capítulo dos ensinamentos de Otávio Luiz Rodrigues Júnior em seutexto Propriedade e Constitucionalização do Direito Civil, veiculado na Revista dos Tribunais (SãoPaulo), São Paulo, v. 849, p. 435-444, 2006.

19. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade. 3ª Edição. São Paulo: RT, 2011,p. 73.

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103Cap. III • Propriedade

Como o STF já decidiu a matéria?O Plenário do STF entendeu que as exigências contidas nos arts. 124, VIII, 128, e 131, § 2º, não limitam o direito de propriedade, tampouco constituem-se coação política para arrecadar o que é devido, mas de dados inerentes às sucessivas renovações dos certificados de registro do automóvel junto ao órgão competente, para a liberação do trânsito de veículos, de modo que a Administração Pública está autorizada a exigir o comprovante da quitação de tributos, encargos e multas para, somente assim, expedir certificado de registro de veículo e autorizar o licenciamento do automóvel (ADI 2998/DF, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 10.04.2019).

A teor do § 4º do art. 1.228 do CC “o proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse relevante”. Para tanto, o juiz fixará “justa indenização devida ao proprietário” (§ 5º do mesmo diploma). Pago o preço da justa indenização, valerá a sentença como título para o registro de imóvel em benefício dos possuidores.

O Enunciado 496, da V Jornada em Direito Civil, reconhece a possibilidade de ajuizamento de petição inicial visando à desapropriação privada fundada na pos-se-trabalho, mediante, pois, ação autônoma, retirando a dúvida eventualmente havida na doutrina sobre o cabimento da medida apenas como matéria de defesa.

É dizer: a desapropriação judicial privada pode ocorrer tanto como matéria vestibular, como matéria defensiva. Outrossim, a doutrina reconhece a nítida cons-titucionalidade da desapropriação judicial privada (Enunciado 82 da I Jornada do CJF), por concretizar relevantes valores da República.

Atenção!Há uma importante discussão sobre a aplicação do instituto da desa-propriação judicial privada aos bens públicos. Inicialmente a doutrinaadvertiu que o ajuizamento desta medida não se destina aos bens pú-blicos, pois eles jamais poderiam ser objeto de uma expropriação porinteresse particular. Foi o entendimento adotado no Enunciado 83 da IJornada do CJF. Entretanto, na IV Jornada em Direito Civil foi elaboradoo Enunciado 304, o qual, em síntese, admite a desapropriação judicialprivada para os bens públicos dominicais, limitando a incidência dodescabimento aos bens públicos de uso comum do povo e aos de usoespecial, de modo a manter parcialmente o Enunciado 83.

Flávio Tartuce conclui que terrenos de marinha, terras devolutas, estra-das de ferro, ilhas formadas em rios navegáveis, sítios arqueológicos, jazidas de minerais e o mar territorial poderiam, à luz dos enunciados referidos, sofrer debate acerca da desapropriação judicial privada. Contudo, lembra o ilustre doutrinador que a tese da usucapião dos bens dominicais é minoritária e, portanto, não deveria ser acolhida. (TARTUCE, Flávio. Direitos das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 127).

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A justa indenização referida no § 5º do art. 1.228 do CC, fixada pelo Juiz da Cau-sa, deverá ser paga pelos possuidores ocupantes da área. Este posicionamento está no Enunciado 84 da I Jornada de Direito Civil. Mas como os ocupantes de tais áreas costumam ser pessoas de parcos recursos, foi lavrado o Enunciado 308, da IV Jornada em Direito Civil, sustentando que esta justa indenização deverá ser “su-portada pela Administração Pública no contexto das políticas públicas de reforma urbana ou agrária, em se tratando de possuidores de baixa renda e desde que tenha havido intervenção daquela nos termos da lei processual”.

A doutrina entende ainda que os juros compensatórios previstos no Decreto--lei nº 3.365/41 não se aplicam à desapropriação judicial privada, pois esta nãose confunde com as desapropriações regidas pelo direito público e submetidas àdisciplina própria (Enunciado 240 da III Jornada em Direito Civil).

Lembra-se de que enquanto não se pagar o valor da justa indenização, a sen-tença em ação reivindicatória não terá eficácia jurídica e, portanto, a transferência do imóvel não ocorrerá (Enunciado 241 da III Jornada em Direito Civil).

Em conformidade com o art. 127 da CF, devemos recordar ser atribuição do Ministério Público a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais, competin-do-lhe intervir, na forma do art. 178 do CPC/15, nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte. Nessa toada, o Enunciado 309, da IV Jornada em Direito Civil, reconhece doutrinariamente odever-poder do Ministério Público em atuar nas hipóteses de desapropriaçãoque envolvam relevante interesse público, determinado pela natureza dos bensjurídicos envolvidos. Aliás, “na desapropriação judicial (art. 1.228, § 4º) poderá ojuiz determinar a intervenção dos órgãos públicos competentes para o licencia-mento ambiental e urbanístico” (Enunciado 307 da IV Jornada em Direito Civil).Particularmente concordamos com a linha enunciada, afinal de contas a própriaideia da função social autoriza a participação no processo de órgãos públicoscompetentes à solução do conflito jurídico.

Novo Código de Processo Civil (CPC/15)O art. 178 do CPC/15 tem a seguinte redação: “O Ministério Público seráintimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da or-dem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federale nos processos que envolvam: interesse público ou social; interessede incapaz; litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Pa-rágrafo único. Advirta-se que interesse público justificador da atuaçãoministerial é apenas o primário. Nessa senda, não compete ao Parquetsubstituir a advocacia pública (CF/88 arts. 127 e 132), muito menos rea-lizar representação ou consultoria a entidades públicas (inciso IX, art.129 da CF/88).

Page 12: Livro Sinopses p Conc v12-Figueiredo-Figueiredo-Dir …...Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 115. 98 Direito Civil • Direitos Reais – Vol. 12 • Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo

105Cap. III • Propriedade

Atenção!A doutrina admite a utilização do § 4º do art. 1.228 do CC tanto para asações reivindicatórias, quanto para as ações possessórias, interpretandoextensivamente o significado da expressão “imóvel reivindicado” contidona norma. Trata-se de importante raciocínio, apto a demonstrar a auto-nomia da tutela da posse (Enunciado 320 da IV Jornada em Direito Civil).

Uma questão interessante se apresenta: imagine que o Juiz da Causa deter-mine o pagamento da justa indenização a que se refere o § 5º do art. 1.228 do CC e, a partir deste instante, a parte credora se mantenha inerte, de modo que passe a fluir o prazo legal sem a necessária cobrança. A hipótese é de prescrição a autorizar, uma vez consumada, a ordem judicial de registro da propriedade em benefício dos possuidores. Nessa linha que caminha o Enunciado 311, da IV Jornada em Direito Civil, ao verberar que “caso não seja pago o preço fixado para a desapropriação judicial, e ultrapassado o prazo prescricional para se exigir o crédito correspondente, estará autorizada a expedição de mandado para registro da propriedade em favor dos possuidores”.

Como este tema foi cobrado em concursos públicos?(FCC – Defensor Público – BA/2016) A posse-trabalho

Gabarito: “pode gerar ao proprietário a privação da coisa reivindicada, se for exercida em extensa área por prazo ininterrupto de cinco anos, mas o proprietário tem direito à fixação de justa indenização”.

O STJ proferiu interessante julgado em se de reintegração de posse ao deter-minar a conversão da mesma em ação indenizatória, de ofício, tendo em vista a ocorrência de desapropriação indireta20. Entendeu o STJ que a ação possessó-ria pode ser convertida em indenizatória (desapropriação indireta) – ainda que ausente pedido explícito nesse sentido – a fim de assegurar tutela alternativa equivalente ao particular, quando a invasão coletiva consolidada inviabilizar o cumprimento do mandado reintegratório pelo município21.

20. REsp 1.442.440-AC, Rel. Min. Gurgel de Faria, por unanimidade, julgado em 07/12/2017, DJe15/02/2018.

21. Na origem, trata-se de ação de reintegração de posse em que a parte autora, a despeito de terconseguido ordem judicial, encontra-se privada de suas terras há mais de 2 (duas) décadas,sem que tenha sido adotada qualquer medida concreta para obstar a constante invasão doseu imóvel, seja por ausência de força policial para o cumprimento do mandado reintegrató-rio, seja em decorrência dos inúmeros incidentes processuais ocorridos nos autos ou em faceda constante ocupação coletiva ocorrida na área, por milhares de famílias de baixa renda.Nesse contexto, discute-se, entre outros temas, a possibilidade de conversão da ação reivindi-catória em indenizatória (por desapropriação indireta), de ofício pelo Juiz. Sobre a temática,vale ressaltar que as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa fundadas em títulojudicial ensejam a aplicação de tutela específica, na forma do art. 461, § 1º, do CPC/1973, sen-do totalmente cabível a conversão em perdas e danos para a obtenção de resultado prático