Livro tm e evoluções históricas

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Subsídios Doutrinais - 02

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Coleção Subsídios Doutrinais

1 - Aparições e Revelações Particulares.2 - A Teologia Moral em meio a Evoluções Históricas.3 - Igreja Particular, Movimentos Eclesiais e Novas Comunidades.4 - Anúncio Querigmático e Evangelização Fundamental.

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A Teologia Moral em meio a

Evoluções Históricas

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

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1ª Edição - 2009

COORDENAÇÃO: Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da FéCOORDENAÇÃO EDITORIAL: Pe. Valdeir dos Santos GoulartPROJETO GRÁFICO E CAPA: Fábio Ney Koch dos Santos DIAGRAMAÇÃO: Henrique Billygran da Silva Santos REVISÃO: Mônica Guimarães Reis

C748a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / A Teologia Moral em meio a Evoluções Históricas. Brasília, Edições CNBB. 2009.

A Teologia Moral em meio a Evoluções Históricas. CNBB. 72 p. : 14 x 21 cm ISBN: 978-85-60263-81-3

1. Teologia Moral 2. Ethos 3. Implantação de Manuais 4.Perenidade e evolução das normas morais.

CDU - 241 : 38

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arqui-vada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita do autor - CNBB.

Edições CNBBwww.edicoescnbb.com.br

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Brasília - DF

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S U M Á R I O

APRESENTAÇÃO ....................................................................................... 7

INTRODUÇÃO ............................................................................................ 9

CAPÍTULO IO ETHOS ENTRE O SER E O VIR-A-SER ......................................... 11

1. Ethos e sintonia com o “humanum” ..................................................... 111.1 O sentido da palavra ......................................................................... 131.2 Desdobramentos do ethos ................................................................ 131.3 O porquê das crises éticas ............................................................... 14

2. Ethos cristão sintonia com o Cristo ..................................................... 162.1. Cristo é a revelação do “humanum” ............................................ 172.2 Através de suas palavras e de sua prática ................................. 182.3 Luzes e sombras de um seguimento ........................................... 20

3. Teologia Moral: a busca da identidade .............................................. 213.1. Moral: parte da Teologia ................................................................ 223.2 Teologia e Sociologia Moral ........................................................... 233.3. Teologia Moral e condicionamentos históricos ...................... 24

CAPÍTULO IIAS EVOLUÇÕES HISTÓRICAS DA TEOLOGIA MORAL ....... 27

1. Evoluções no passado distante ............................................................. 281.1 Santos Padres: criatividade evangélica ....................................... 281.2 A estabilidade pouco criativa dos séculos VI-XI ..................... 291.3 Escolástica: o fervilhar de uma nova era .................................... 301.4 Século XIV e XV: a força do nominalismo ................................. 321.5 Século XVI: a institucionalização da Moral ............................... 331.6 Séculos XVII e XVIII: o fascínio pelo novo ................................ 34

2. Evoluções recentes: a implantação dos Manuais ............................ 352.1 As redescobertas do século XIX .................................................... 362.2 Primeiras tentativas de superação do casuísmo ...................... 372.3 “A Lei de Cristo”, primeira sistermatização renovadora ..... 38

3. O momento atual: três concepções diferentes .................................. 393.1 Forças e fraquezas dos Manuais neoescolásticos .................... 39

a) O contexto das críticas e da crise .............................................. 40b) As fraquezas dos Manuais neoescolásticos .......................... 42c) Valores que permanecem ............................................................ 44

3.2 Renovação: ganhos e limites .......................................................... 44a) Linhas de força da “Moral Renovada” .................................... 45

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b) Os limites da “Moral Renovada” .............................................. 473.3 A procura da fi delidade em meio às estruturas de pecado .................................................. 49

a) Uma realidade evangelicamente “pro-vocadora” .............. 50b) Uma questão de tônicas ......................................................... 51c) Por onde passam as conquistas ................................................. 52

CAPÍTULO IIIPERENIDADE E EVOLUÇÃO DAS NORMAS MORAIS .......... 55

1. Princípios morais e situações concretas ............................................. 561.1 Uma preocupação antiga ................................................................. 561.2 Retomada mais recente ..................................................................... 571.3 Ideal e realidade à luz da Palavra de Deus ................................ 59

2. Normas morais e ethos ............................................................................ 612.1 As normas traduzem algo do ethos ............................................. 612.2 Os vários tipos de normas .............................................................. 632.3 Por que as normas devem evoluir ................................................ 65

3. Grandezas dos planos de Deus e limitações humanas ................. 663.1 A precariedade do conhecimento humano ............................... 663.2 Um Deus que se vela e “re-vela” .................................................. 693.3 Os limites da Teologia ...................................................................... 70

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A P R E S E N T A Ç Ã O

A Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé em sua tarefa de promover a refl exão teológica para iluminar, ade-quadamente, questionamentos e desafi os atuais publica sub-sídios doutrinais. A coleção “Subsídios Doutrinais da CNBB” atende, pois, a uma solicitação dos Bispos como ajuda ao seu magistério doutrinal, favorecimento da inteligência da fé e sua transmissão na ação evangelizadora e pastoral da Igreja.

Por isso, publicamos uma nova edição deste Subsídio Doutrinal n.º 2: “A teologia moral em meio a evoluções históricas” (1ª edição em 1992), mantendo o texto original.

Esta signifi cativa contribuição para a inteligência da fé tem substancial importância no enfrentamento dos desafi os pastorais enfrentados pela Igreja neste momento. Uma maior clarividência fecunda a audácia missionária dos discípulos de Jesus Cristo.

+ Dom Walmor Oliveira de AzevedoPresidente da Comissão Episcopal Pastoral

para a Doutrina da Fé

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I N T R O D U Ç Ã O

Falar de crise da Teologia Moral já se tornou um lugar-comum: há pelo menos 40 anos essa é uma área cheia de in-terrogações não só teóricas, mas sobretudo práticas. Não são questões levantadas somente pelos críticos profi ssionais ou por camadas que gostariam de adaptar a Moral às suas vidas, mas são questões levantadas por cristãos profundamente preocu-pados em ser simultaneamente fi éis ao Evangelho e ao mesmo tempo, vista como Kairós manifestativo da vontade de Deus.

Entre os muitos questionamentos levantam-se alguns de fundo: Mas afi nal, o que permanece e o que muda na Teologia Mo-ral? Em que sentido e por que mudaria a Teologia Moral? As res-postas teóricas e práticas vão de um extremo ao outro: desde o absolutismo até o absoluto relativismo. Daí o desnorteamento pastoral, com implicações em muitos setores.

Para uma abordagem adequada desse problema de fundo, convêm partir de uma análise do ponto de apoio de toda mora-lidade, que é o ethos nas suas várias expressões. É o ser humano na busca da sua identidade, exprimida entre o ser e o vir-a-ser.

Mas só isso não Basta. A ética não foi trabalhada apenas por fi lósofos, que precederam ao Cristo. Foi também desenvolvida por pensadores cristãos. E assim que a ética se abre para a Teolo-gia. Daí a importância de analisar o “ser” e o “vir-a-ser” dentro da própria Teologia Moral. Até que ponto e por que essa evolui e está evoluindo? Em que ponto nos encontramos dessa evolução?

Por fi m, a análise da evolução histórica nos leva a um questionamento sobre as próprias normas morais. Até que ponto são capazes de conjugar tempo e eternidade? Até que ponto são capazes de verbalizar a inesgotável riqueza dos pla-nos de Deus?

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C A P Í T U L O I

O ETHOSENTRE O SER E O VIR-A-SER

Do que vem afi rmado acima emergem três pontos nevrál-gicos referentes à Teologia Moral e sua evolução histórica: o pri-meiro diz respeito ao ethos; o segundo Teologia Moral; o terceiro às Normas Morais. Em cada um deles confi gura-se a mesma questão fundamental: Como articular o que permanece e o que evolui?

Por ser uma realidade subjacente a toda problemática mo-ral, é a compreensão do ethos que cumpre evidenciar em primei-ro lugar. Mas, quem se refere ao ethos está, implicitamente ao menos, referindo-se ao humanum. Contudo, para quem é cristão, o humanum assumiu forma concreta nas palavras e posiciona-mentos de Jesus Cristo. Daí se poder falar, com propriedade, de um ethos cristão. A Teologia Moral, por sua vez, se apresenta como um terceiro momento, enquanto tentativa de conjugar o huma-num defi nitivamente marcado não por um Cristo parado no es-paço e no tempo, mas por um Cristo que caminha com os seus. Ele não apenas foi, mas é e será. Ele é o tempo e a eternidade.

1. Ethos e sintonia com o “humanum”

1.1 O sentido da palavra

Existem dois modos de traduzir a palavra ethos: ethos com eta signifi ca caráter; ethos com épsilon signifi ca costume. Mas uma leitura mais acurada logo aponta para outro senti-do subjacente na mentalidade grega: residência, moradia.1

1 Cf. VIDAL, M., Moral de a� tudes (I), Ed. Santuário, 1974, 482-487; DUSSEL, E., Para uma é� ca da liberta-ção la� no-americana, vol. II, E� cidade e Moralidade, Loyola-Unimep, São Paulo e Piracicaba, 1977, 223.

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Recolhendo estes signifi cados etimológicos básicos se chega a perceber que o ethos aponta para um modo próprio de ser e de viver onde se “abriga” o humano. O ethos é como que o alicerce sobre o qual se estrutura e se sustenta o humano. Não é, porém, algo de imóvel; antes é como uma fonte borbulhante que sustenta o humano e a partir da qual os seres humanos buscam sempre de novo revigorar-se. É algo de tão profundo que radica além das normas morais, e até mesmo da própria diversidade das religiões. Não só toda moral e toda religião se constitui na expressão de um ethos, como até mesmo os ateus podem apresentar dimensões éticas surpreendentemente pro-fundas.2 O ethos não é só isso: o ethos é como que a marca primeira que Deus deixa impressa nos seres humanos, antes de qualquer outra marca cultural ou religiosa.

Disso tudo decorre a importância de tentar traduzi-lo com palavras similares, pois o ethos é inatingível em si mes-mo.3 As primeiras tentativas sistemáticas nesse sentido reme-tem para os gregos, sempre tão ciosos em ver o que se encontra atrás das aparências. Quando eles pronunciavam essa palavra, ethos, estavam como que oferecendo a chave capaz de abrir as portas para a grande tesouro do “humanum”.

Originariamente não situavam, como hoje, o ethos em ní-vel dos simples costumes de um povo. Não eram os costumes que julgavam o ethos, mas o ethos julgava os costumes. É muito

2 Cf. HUBER, E., É� ca no marxismo, É� ca na União Sovié� ca, Brot., 126 (1988), 123-141; VELAS-CO, T., É� ca en el humanismo ateo de Ernest Bloch, RevCuly 1986, 453-490; BOURDIEU, P., Es-quisse d’une théorie de la pra� que, Libr. Droz, Genebra 1972, 135, onde diz: “O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explicita, funciona como um siste-ma de esquemas geradores...” e também p. 77, onde afi rma ainda que; o ethos precede às re-gulamentações posi� vas e exerce uma função “arqueológica” na própria produção da é� ca.Sobre a mesma questão cf. ainda QUELQUEJEU, B., Ethos historiques e homes éthiques, in A.A.V.V. Ini-� a� on a In pra� que de la théologie, ETHIQUE, Cerf, Paris, 1983, 71 s; LECONTE, J-P., Ethos culturel et diff érencia� ons sociales, ibid., 92s.

3 Cf. DEVIGILI, G., Hermenêu� ca do Ethos, REB 34 (1974), 8-9.

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signifi cativa uma frase colocada na boca de Antígone, fi gura central da “tragédia” grega. Repelindo a proibição emitida pelo rei Creon, de enterrar seu irmão, Antígone a recrimina com essas palavras, carregadas de uma ironia eticamente interpela-dora: “Não pensei que tua proibição fosse sufi cientemente for-te para permitir que um mortal transgrida as leis não escritas, inabaláveis, dos deuses. Essas não são datáveis, nem de hoje, nem de ontem, e ninguém sabe quando apareceram...”. Em-bora essa frase seja normalmente citada como argumento em favor da lei natural, estaticamente considerada, ela certamente remete também para a dynamis, a força do ethos.

Por isso, quando emitida, sempre com reverência, essa palavra traduzia muito mais do que um conceito. Acenava para algo de mais profundo e decisivo. Com efeito, o ethos evoca “ninho”, “casa”, “refúgio”, “identidade”, “consciência”, “a eterna e misteriosa morada do Ser”, lá onde os seres huma-nos podem encontrar-se em profundidade com “O SER” e, por isso, consigo mesmos.4

1.2 Desdobramentos do ethos

Só que os mesmos gregos, sendo um povo profundamen-te consciente de que a identidade humana pessoal se concretiza na polis, ou seja, no plano sociopolítico, não visualizavam em primeiro lugar a intimidade pessoal, mas aquilo que constitui o tecido de um povo. Ethos traduzia as evidências primitivas e comuns, a experiência-sabedoria de um povo, resultantes de uma prática histórica, pela qual desvendavam valores indispensá-veis para sua sobrevivência como povo. Era como que uma espécie de fonte inesgotável dos valores e que um povo ia ad-quirindo num processo inacabado de aprendizagem.

4 ID, ibid.

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O que dissemos acima não vale, evidentemente, só para os gregos, nem só para povos “civilizados”. Todo e qualquer povo vivem a experiência do ethos, preservando e adquirindo valores.

Certamente, na prática, torna-se difícil distinguir o que é inato, e o que é adquirido. Enquanto gerador de percepção, apreciação e ação,5 o ethos integra experiências do passado e do presente, dinamismo e constância ao mesmo tempo. Contu-do, não se trata de uma constância física, mas exatamente de uma constância humana,6 o ethos pode ser melhor compreen-dido à medida, que ele vem associado com a “virtude”, ou seja, com o vigor de um povo ou de uma pessoa. “Virtude” vem de “exceis”, que sugere exatamente uma posse constante: Não é um acréscimo, um fato ocasional. É algo de constitutivo. Mas a “virtude”, justamente pela sua constância, aponta ao mesmo tempo para um “ser” e um “vir-a-ser”. Só é virtuoso quem conjuga as duas dimensões ao mesmo tempo.

1.3 O porquê das crises éticas

Outra não é a identidade profunda do ethos: ele não se concretiza no abstrato, mas justamente no plano histórico. E esse plano histórico aponta continuamente tanto para a pes-soa, quanto para a sociedade, tanto para o que já foi, quanto para o que vai sendo, tanto para a tradição, quanto para a cul-tura. E à medida que se evoca a cultura, não se pode perder de vista que ela remete para vários componentes, entre os quais o religioso, o simbólico, o organizativo-social.7 O ethos vem sempre expresso por esses múltiplos componentes, que vão se fecundando mútua e dialeticamente.

5 Cf. BRUNERO, M. A., É� ca e evangelização das culturas, in Temas La� no-americanos de É� ca, coord. Márcio F. dos Anjos, Alfonsianum, Ed. Santuário, SP, 1988, 321-322; BOURDIEU, P., op. cit., 178-179.

6 Cf. ALVAREZ L. J. S., Filosofi a a distância. É� ca La� no-americana, USTA, Bogotá, 1986, 30; DEVIGILI, G., op. cit., 18.

7 Cf. VIDAL, M., op. cit., 170-172.

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O mais curioso, porém, é que as formulações éticas de um povo não se dão quando tudo está solidamente estabelecido. Elas se dão nos momentos tensos de crises, quando se chocam três tendências básicas: uma de conservação, outra de supe-ração e outra de inovação mais profunda. O empenho pelas formulações éticas também não ocorre nos períodos de gran-de vigor ético. Os períodos de grande vigor ético dispensam formulações mais precisas, já que o ethos alimenta quase que diretamente a vida concreta, sem contestação. Ao contrário, nos períodos de decadência é que se impõe a necessidade do nomos, ou seja, a multiplicação de leis. A multiplicidade das leis não atesta o vigor de um povo ou de uma instituição. Pelo contrário, por mais paradoxal que isso possa parecer, a multiplicidade das leis testemunha a fraqueza das instituições e dos povos. É uma tentativa desesperada de acordar o senso ético debilitado.

As crises éticas remetem ainda para períodos de plu-ralismo cultural, quando várias culturas, por circunstâncias históricas, se veem confrontadas. Pois todo grupo cultural apresenta também seu padrão ético próprio. Seria possível estabelecer uma unidade ética num período de pluralismo cultural? Seria desejável?8 O fato é que quanto mais primitiva uma sociedade, tanto mais rígida tende a ser na transmissão do seu paradigma ético, e quanto mais desenvolvida tende a ser, tanto mais maleável.

De qualquer forma, tanto nos períodos de estabilidade, quanto nos períodos conturbados de transição, o desafi o fun-damental que se coloca em nível de pessoa e de povo é sempre o de viver em consonância profunda com o seu ethos. E aqui nos encontramos mais diante de uma busca contínua do que diante de um ponto de chegada. A mentalidade hodierna por

8 Cf. SIEBENEICHLER, F. B., Sobre a possibilidade de uma é� ca universal, Refl exão, 1982, 77-89.

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um lado facilita essa busca, a medida que tem consciência da provisoriedade de suas próprias conquistas; por outro lado, porém, difi culta a busca, a medida que espera resultados ime-diatos. Daí a tentação de fi xar-se em respostas prontas e acaba-das, em vez de retomar continuamente o caminho...9

As respostas prontas e acabadas em termos éticos são, de alguma forma, a morte do ethos, pois esse não pode ser aprisio-nado por nenhuma formulação ética; nem pode ser comparado com as águas mortas de uma cisterna, mas exatamente com a água viva que jorra sempre de novo de uma fonte inesgotável: a fonte do “humanum” que através do Cristo se faz acesso para o divino.

2. Ethos cristão sintonia com o Cristo

Com razão se afi rma que o Novo Testamento se esconde no Antigo, e que o Antigo Testamento se revela no Novo. Algo de semelhante se poderia dizer da relação entre o ethos e Cris-to, entre ética ethos cristão. O segundo encontra-se implícito no primeiro e o primeiro se explicita no segundo.

Com efeito, desde que o Cristo assumiu a condição huma-na, já não se pode falar em termos de oposição entre o simples ethos e o ethos cristão. São enfoques diferentes, mas que apontam para a mesma direção e iluminam a mesma realidade. Para que isso se torne patente, cumpre tematizar antes de tudo o Cristo como revelação do divino no humanum. E o Cristo se dá a co-nhecer tanto por suas palavras, quanto por sua prática. Assim mesmo, porém, tanto o conhecimento, quanto o seguimento se dão por meio de mediações, o que signifi ca um caminho per-passado de luzes e sombras, certezas e incertezas.

9 Cf. DEVIGILI, op. cit., 15.

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2.1. Cristo é a revelação do “humanum”

As buscas por conhecer o humanum remetem para os pri-meiros esforços no sentido de uma sistematização da ética. O ponto de partida dos mestres da ética era, com razão, certa suspeita criativa: os seres nunca revelam de imediato sua iden-tidade profunda. Pelo contrário, eles se ocultam por trás de aparências, normalmente enganadoras.

Essa suspeita se faz mais aguda quando se está dian-te de um ser humano. A persona se esconde por trás de uma máscara que deve ser rasgada. É que os seres humanos mais representam do que se dão a conhecer em profundidade. Isso forçosamente, por malícia, mas porque nem sequer conhecem devidamente a si mesmos. Daí o velho princípio fi losófi co: “conhece-te a ti mesmo”, como tentativa de sugerir a miste-riosa profundidade do humanum. Todas as fi losofi as e todas as ciências do humano tem como base essa pressuposição. Quan-to mais profundamente mergulharmos no humanum, tanto mais perceberemos que “sabemos que nada sabemos”. Só um olhar superfi cial pode oferecer a ilusão de um conhecimento total do humanum.

O mistério do humanum aponta justamente para algo que é mais profundo do que aquilo que pode ser apreendido: suas dimensões divinas. O ser humano traz consigo algo que é maior do que ele mesmo.

É nessa altura que se apresenta o Cristo, imagem perfeita do Pai e plenamente humano, como o caminho pelo qual os seres humanos podem entender algo de mais defi nitivo sobre Deus e sobre si próprios. Pois “o mistério do homem só se tor-na claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”.10

10 Gaudium et Spes, n. 22.

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Por ele “o homem conquista uma dignidade altíssima e Deus irrompe na história do homem”.11

Em Cristo o humano e o divino se conjugam de modo in-separável. Tanto assim que já não há oposição entre o humano e o divino. Um não exclui o outro, mas o pressupõe. O divino se abre para o humano e o humano só encontra a sua identidade profunda a medida que se abre plenamente para o divino. Essa abertura total do divino para o humano e do humano para o divino se dá somente no Cristo. E justamente por essa razão que cabe a afi rmativa do Cristo como revelação plena do humano. E é também por isso que cumpre aprofundar o ethos revelado em Cristo para se conhecer melhor o ethos revelado no humano.

2.2 Através de suas palavras e de sua prática

Tudo o que Jesus falou e fez tem um sentido revelador, tanto da divindade, quanto da humanidade. E certo que, a primeira vista, Cristo nada fala do ethos; e seguramente não o tematiza sistematicamente. E, no entanto, é nele que o ethos humano atinge sua plenitude.

Seu conhecimento do humanum não se dá primordial-mente pelas mediações. Seu olhar rasga as máscaras e vai além das mediações. Seu segredo é ver as coisas e as pessoas com os olhos do Pai.

Destarte, suas palavras nunca traduzem só meia verdade, mas a Verdade plena; seus posicionamentos nunca são indeci-sos, mas absolutamente coerentes com a tarefa primordial de implantar o Reino de Deus. É por isso que ele jamais se engana no seu juízo sobre as pessoas, ate mesmo quando vislumbra san-tos atrás dos que são ofi cialmente declarados pecadores e peca-dores atrás dos que são ofi cialmente considerados “justos”.

11 Doc. Puebla, Vozes, Petrópolis, n. 188.

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Ele também jamais se engana nos seus diagnósticos sobre as situações: ele vê a realidade naquilo que a constitui mais profundamente. Daí sua prática ser surpreendente para os que não o reconhecem como enviado do Pai. Seus planos não apon-tam só para a realização das pessoas.12 São planos grandiosos, que partem dos corações, mas perpassam todas as estruturas humanas: religiosas, político-sociais, econômicas... O Reino traz consigo uma reviravolta total que deve manifestar-se em todas as dimensões do humano, invadidas pela força divina.13 Por isso, com razão, se afi rma que “Ele entrou na história hu-mana”, e não somente se fez homem. O Reino que ele implanta não se concretiza nem só em nível pessoal, nem só em nível de um povo: envolve a humanidade toda.

Uma tal compreensão do ethos humano só poderia cho-car-se com os projetos mesquinhos e interesseiros dos grupos religiosos e políticos sectários. Os planos do Pai levam Jesus a se distanciar soberanamente dos grupos de força e se cercar dos fracos; soberanamente se distancia das várias estratégias visando a concretização dos projetos históricos: sua estratégia, do Amor, une o céu e a terra, une o divino e o humano, abraça todos os setes humanos. Ethos cristão vai emergindo da expe-riência acumulada pelos cristãos ao longo da história, na qual eles se espelham, sempre de novo, em Jesus Cristo: como ele se posicionou diante das várias situações? E assim que se estabele-cem as linhas mestras do ethos cristão. Este imprime convicções e gera atitudes que nem sempre se coadunam com o ethos vigente nas várias culturas. O cristão tem um modo de compreender e de agir que atravessa os vários ethos, mas sem perder sua especi-fi cidade: o próprio Cristo é a norma máxima dos cristãos.

12 Cf. AUBERT, J. M., Abrégé de la Morale Catholique, Desclée, 1987, 42s.

13 Cf. SANDERS, J. T., Jesus, Ethics and the Present Situa� on, in The Use os Scripture in Moral Theology, ed. by Charles E. CURRAN and RICHARD, A. McCORMICK, Paulist Press, New York/Ramsey, 1984, 56; BOFF, L, Jesus Cristo Libertador, 9.a ed., Vozes, Petrópolis, 1983, 68.

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2.3 Luzes e sombras de um seguimento14

Teoricamente o problema ético já não existiria: tudo fi ca claro com a luz do Cristo. Acontece, porém, que aqui nos depara-mos com a condição real dos seres humanos. A identifi cação com o Cristo não ocorre automaticamente. Ela resulta de um processo exigente de assimilação progressiva do modo de ver e de agir do Cristo. Vários São os desafi os para que isso aconteça.

O primeiro consiste justamente em desvendar o Cristo que encama o ethos humano em plenitude. As várias correntes cristológicas do passado e do presente dão provas deste desa-fi o, já presente nos próprios Evangelhos. Esses não se contra-põem, mas revestem o personagem central de traços diferentes e complementares. Aqui emerge a pedagogia divina, de que “quem busca encontra”, mas só encontra quem busca. Desde Abraão, o “pai de todos os crentes”, fi ca evidenciado que só chega a terra prometida quem ousa sair da sua segurança e corre os riscos de uma caminhada. Mão é por acaso que o Cristo sempre se revela no caminho, para aqueles que andam com ele, e que frequentemente ele usa o imperativo “levanta-te e anda”. Ele mesmo se autodefi ne como sendo o caminho.15

Um segundo desafi o, já implícito no primeiro, consiste exatamente no fato de existirem, historicamente, muitas pro-postas de outros caminhos, que ao menos à primeira vista não se coadunam com o caminho do Cristo. A pluralidade de éticas, veiculadas pelas várias culturas, e mesmo pelas várias religiões, atesta exatamente isso. E partindo do dado teológico inquestionável de que “as sementes do Verbo” se encontram espalhadas na humanidade toda, em todas as culturas, em to-

14 Cf. ROCHA, M., O seguimento de Jesus Cristo, REB 42 (1982), 12-28; BATRES, G. M., O conteúdo da é� ca evangélica, in Práxis cristã (I), Ed. Paulinas 1983, 147s.

15 Cf. PESINI, L., Solidariedade com os enfermos, ICAPS, Ed. Santuário, 1988, 29s.

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das as religiões, em todas as éticas, fi ca evidenciado que a tare-fa dos seguidores de Cristo é mais árdua do que pode parecer a primeira vista. Esses não podem trabalhar na pressuposição das dicotomias simplifi cadoras, mas ao mesmo tempo sim-plistas, das alternativas excludentes. As dicotomias facilmente levam a um sectarismo, que certamente não se coaduna com o modo de ser do Cristo. Eles deverão se defrontar, continua-mente, com um trabalho de triagem, para não correrem o risco de arrancar o trigo, pensando tratar-se de joio.

E aqui emerge um terceiro desafi o, que é o das mediações.16 O conhecimento humano é sempre mediatizado; da mesma for-ma, sua prática a sempre historicamente condicionada. Mas as coisas e as pessoas com os olhos de Deus não a somente dom, mas também fruto de um longo aprendizado. Como também posicionar-se de modo cristão diante dos fatos históricos requer agudez de percepção e de análise. Certamente o Evangelho ofe-rece uma inspiração de fundo, e essa é decisiva. Mas o Evan-gelho não oferece soluções prontas. Daí as luzes e sombras, as certezas e incertezas que marcam a busca do ethos cristão.

3. Teologia Moral: a busca da identidade

Muitas das difi culdades encontradas pela Moral podem ser superadas na exata medida em que essa volte a se entender como sempre deveria se ter entendido: como parte da Teolo-gia. Com essa afi rmação se ressaltam ao mesmo tempo duas coordenadas importantes: a Teologia não se confunde com uma mera sociologia, mas por outro lado ela sempre vem ela-borada num contexto determinada de Igreja e numa sociedade determinada. Daí a força dos condicionamentos históricos.

16 Cf. BOFF, CL., Teologia e prá� ca. Teologia do polí� co e suas mediações, Vozes, Petrópolis 1977, 238s.

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3.1. Moral: parte da Teologia

A Teologia pode ser defi nida como sendo um discurso orgânico da fé. Ela não se confunde com a própria fé, que a transcende. Mas ela expressa a fé vivida. Isso é tão verdadeiro que pode existir uma pluralidade de Teologias, mas dentro de uma mesma fé. A Teologia não pretende ser mais do que isso: um serviço à fé.

A multiplicidade dos aspectos que caracterizam a vivência da fé é que está na origem dos vários setores nos quais se divide a Teologia: cristologia, eclesiologia, exegese, moral, e assim por diante. A ante teológica consiste exatamente em aprofundar um setor, mas sem perder de vista as grandes coordenadas do todo da Teologia. Uma boa abordagem moral pressupõe uma boa cristologia, uma boa eclesiologia, uma boa Exegese.17

E aqui localiza-se uma das constantes verifi cadas na his-tória da Moral: À Moral responde adequadamente aos desafi os históricos à medida que vem articulada ao todo da Teologia, que, por pressuposição deve beber na sua fonte primeira, o próprio Deus revelado em Jesus Cristo. A Moral deixa de ser satisfatória na exata medida em que se afasta do grande tronco da Teologia. E sempre que se afasta do tronco, ela perde sua identidade e entra em crise. E quanto mais entra em crise, mais tende a enrij ecer seu discurso, e em decorrência disso a perder sua credibilidade.

A credibilidade da Moral, portanto, vai depender basica-mente da conjugação de dois elementos inseparáveis: ser porta-dora da Boa-notícia, que, pressupostamente, é garantida por uma boa Teologia, e uma resposta adequada aos desafi os históricos.

17 Cf. QUERELLO, E., La teologia morale in relazione ad altre par� della Teologia. in La Vocazione dell’uomo. L’Amore cris� ano, Bologna 1977, 8-11; LESSING, E., Die Einheit der Theologie als Problem Urteilsbil-dung, in Ev. Th. 35 (1975) 351-365.

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Se não for Boa-notícia, no sentido evangélico do termo, de animação na busca de uma sempre maior sintonia com o ethos encarnado em Jesus Cristo, a Moral deixa de ter um infl uxo pas-toral e passa a ser uma ciência estéril. Se não oferecer resposta adequada aos desafi os históricos, entra em curto-circuito, repre-sentado por problemas de menor importância, intrasistêmicos, e portanto deixará de produzir frutos, caridade, para a vida do mundo”, como pressupõe a Optatam Totius18.

3.2 Teologia e Sociologia Moral

Normalmente a Moral vem associada aos “bons costu-mes”. Esse é, de fato, um dos sentidos passíveis radicados na palavra “ethos”. Sucede, porém que, sobretudo quando consi-derados em nível de sociedade, “os bons costumes” nem sem-pre traduzem um ethos cristão, ou são com eles compatíveis. Muitas vezes são costumes que adquirem o qualifi cativo de “bons” por serem assumidos como norma comum de compor-tamento. Basta pensar em certos costumes tidos como normais e até bons no campo econômico, político e mormente sob o ângulo da justiça: bolsa de valores, aplicações fi nanceiras, con-chavos políticos, relações patrão-operário, direito irrestrito da propriedade particular.

Aqui cumpre ressaltar uma diferença básica entre a So-ciologia e a Teologia Moral. A primeira é descritiva de uma moral vigente. E mais do que isso, é um dos mecanismos de manutenção de um “status quo”. A sociologia moral no máxi-mo chega a exercer uma função funcionalista, mostrando as disfunções de um período em relação ao outro. Mas ela nunca chega a fazer uma proposta nova. A Teologia Moral, contudo, não pode ser uma ciência destinada a legitimar o que já existe.

18 Optatam. To� us, n. 16.

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A Teologia Moral tem diante de si sempre um ideal a ser per-seguido, e que, sabidamente, tende a ser absorvido pelo coti-diano da vida. O distanciamento do ser humano em relação ao seu ethos não é somente uma possibilidade, mas uma realida-de, tanto em nível pessoal, quanto comunitário-social.

A Teologia Moral, justamente por ser TEOLOGIA, tem sempre diante de si a ambiguidade da condição humana ao mesmo tempo marcada pela graça e pelo pecado. A sintonia com o ethos, mormente quando entendido como ethos cristão, será sempre fruto de uma vigilância para fugir da acomodação. Por isso mesmo, pode-se afi rmar, sem receio, que a Teologia Moral traz consigo um componente que lhe é inerente: o do questiona-mento, enquanto confronto contínuo entre os costumes vigentes e o ideal ético encarnado em Jesus Cristo. Uma moral que não questiona não chega a ser nem ética, nem teológica. Ela perde sua identidade profunda e com isso sua razão de ser. A busca da identidade é um processo sempre inacabado. Responder aos apelos de Deus em Jesus Cristo coloca os seres humanos sempre na condição de aprendizes, e nunca de mestres consumados.

3.3. Teologia Moral e condicionamentos históricos

A genialidade dos pensadores gregos já percebera um traço fundamental do que, posteriormente, iria ser denomi-nado de historicidade: todos os seres, sobretudo os humanos, permanecem a medida que evoluem, e evoluem a medida que permanecem. Há algo que permanece naquilo que evolui e há algo que evolui naquilo que permanece. Esse não é um jogo de palavras, mas uma das leis mais fundamentais da vida.

É com a mesma pressuposição que hoje se fala de condicio-namentos históricos.19 Esses não têm a ver com o determinismo,

19 Cf. MOSER, A., O pecado ainda existe? Paulinas, 1976, 15s.

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seja ele biológico ou histórico. Também nada tem a ver com o relativismo, segundo o qual nada existe de permanente e de-fi nitivo. Pelo contrário, quando se fala de condicionamentos se subentende exatamente a liberdade humana, que se concretiza num espaço e num tempo determinados. Viver num tempo e num espaço é a condição humana.

Os condicionamentos históricos podem ser de dois tipos: uns são estruturais, remetendo para o que denominamos de patri-mônio genético; outros são mais situacionais, remetendo para as condições religiosas, sociopolíticas, culturais, econômicas etc.

À luz da fé tanto os condicionamentos estruturais, quanto os situacionais, nada mais são do que a possibilidade concreta que Deus oferece aos seres humanos para se conhecerem e se constru-írem de acordo com sua identidade mais profunda, conjugando o divino e o humano. Isso nada apresenta de estranho quando estão presentes as condições históricas nas quais se efetuam a Re-velação como um todo e mais particularmente a Encarnação do Filho de Deus: elas se concretizam num contexto histórico.

Disso decorre, a fortiori, que entender a Teologia, e parti-cularmente a Teologia Moral, como historicamente condicio-nadas, em nada as diminui, pelo contrário as enaltece. Repre-sentam o esforço de seres humanos concretos que, cônscios de suas limitações, buscam conhecer e realizar os desígnios divinos na história humana. Ter consciência de que agora só podemos ver “por um espelho e obscuramente” através dos inúmeros sinais que Deus emite, não a só uma questão de re-alismo: é um ato de fé. Não presta bons serviços à causa de Deus quem pretende sacralizar o que não passa de uma me-diação humana, por mais importante que essa seja.

Para encontrar sua identidade e ser um serviço aos de-sígnios de Deus, a Teologia Moral nunca pode perder de vista

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sua condição de portadora de um tesouro, mas conduzido por mãos frágeis e por um invólucro que não pode ser confundida com o tesouro. Seres humanos que se arrogam atributos divi-nos nada mais fazem do que cair na mesma tentação descrita nas primeiras páginas do Gênesis: a voz que sussurra “sereis como deuses” seguramente não provém de Deus.

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C A P Í T U L O I I

AS EVOLUÇÕES HISTÓRICAS DA TEOLOGIA MORAL

Pelos pressupostos colocados acima, a evolução da Teo-logia Moral é uma questão de identidade e fi delidade. Para ser um serviço à causa de Deus, ela também deve ser um serviço a causa da humanidade. Cabe a ela a tarefa de ajudar a ler os sinais de Deus na história e a concretizar aqui os seus planos. Conjugando o humano e o divino, o tempo e a eternidade, ela só pode estar sempre a caminho.

O empenho em cumprir essa tarefa é que está por trás das evoluções que ocorreram e que ocorrem no campo da Teologia Moral. Aqui não vem ao caso fazer um histórico minucioso. A função da presente abordagem histórica é possibilitar uma compreensão melhor daquilo que esta mais perto de nós, e so-bretudo do presente. Assim, resumiremos muitos séculos em algumas páginas, distinguindo entre o passado mais distante e a passado mais recente.

O presente vem marcado por três grandes tônicas que não se excluem, mas que manifestam exatamente a força dos condicionamentos históricos na elaboração da Teologia Moral: uma que responde as necessidades de uma sociedade fechada; outra que tenta responder aos desafi os de uma sociedade aber-ta; e outra ainda que tenta interpretar as exigências éticas num mundo subdesenvolvido.

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1. Evoluções no passado distante20

Quem sente as incertezas e choques de concepções diferentes do tempo presente facilmente imagina um passado bem mais sereno. Acontece que essas impressões nem sempre apresentam um embasamento nos fatos. A história da Teologia Moral sempre foi mais ou menos conturbada, ora por tensões internas, ora externas. É verdade que existem períodos relati-vamente longos de estabilidade, mas, como veremos, esses são muitas vezes também os períodos de menor vitalidade.

1.1 Santos Padres: criatividade evangélica

Qualquer história da Moral deverá ancorar-se na con-cepção dos Santos Padres. São eles que se encontram mais próximos das fontes bíblicas e do nascedouro do ethos cristão. Eles se defrontaram com dois grandes desafi os: por um lado, desentranhar a concepção ética de Jesus Cristo à luz dos textos bíblicos; por outro, desentranhar os valores éticos presentes no mundo pagão.21

O primeiro desafi o foi devidamente respondido através do enquadramento bíblico e cristológico da Teologia Moral. Essa não vem elaborada isoladamente.

A rigor não existem manuais de Moral pelo contrário, é nos longos comentários bíblicos, onde se ressaltam as palavras e os gestos de Jesus, que encontramos a concepção moral dos Padres.

O desvelamento da “nova criatura” se dá, certamente, no confronto com o “homem velho”. Mas aqui já transparece que

20 Cf. ANGELINI, G., VALSECCHI, A., Disegno storico della Teologia Morale, EDB, Bologna 1972.

21 Cf. FIQUEIREDO, D. F., Curso de Teologia Patrís� ca (I), Vozes, Petrópolis, 1983, 119s., DELHAYE, PH., La morale des Pères, Seminarium 3(1971), 623-637.

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o inegável espírito apologético, que marcou mais acentuada-mente alguns Padres e algumas etapas do período patrístico, em nada compromete a tônica de “abertura” aos valores do mundo pagão, e aos sinais de Deus no tempo. Pelo contrá-rio, partiam do pressuposto de que as “sementes do Verbo” encontram-se espalhadas em toda parte. Pois “... Deus não faz distinção de pessoas, mas lhe é agradável quem, em qualquer nação o temer e praticar a justiça” (At 10,34-35). E ninguém pode negar que “... Deus mostrou que nenhum homem deve ser considerado profano ou impuro” (At 10,28). Aqui encon-tram-se as linhas mestras pelas quais os Padres conseguiram superar o segundo desafi o, da abertura para o mundo.

A confi ança na atuação do Espírito Santo vem completar o quadro da concepção da moral patrística: essa é fi el, justa-mente porque aberta ao Espírito, que sopra onde quer. Para os Padres a identidade do ethos cristão não passa pela rigidez farisaica, e sim pela tensão dialética de um processo de sín-tese nem sempre fácil, mas sempre fecundo. É esse processo criativamente fi el que vai enriquecendo o ethos cristão de sem-pre novos aspectos e conduzindo-o a uma sempre renovada profundidade. A vitalidade da Moral remete para a abertura à atuação constante daquele que renova a face da terra.

1.2 A estabilidade pouco criativa dos séculos VI-XI22

Um período de decadência da Teologia Moral não se expli-ca por si mesmo. Ele remete para muitos fatores que se reforçam mutuamente. No caso do período em questão confi gura-se todo um quadro social de decadência do Império Carolíngio, herdeiro do Império Romano. É todo um longo processo de assimilação

22 Cf. LE BRAS, G., “Péniten� els”, Dic. Th. Cath, t. 12, 1160-1179; VALSECCHI, A., I libri Penitenziali e la Morale cris� ana. Alcuni studi recen� , La Scuola Can. 94 (1966), 260*-268*.

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dos povos nórdicos, portadores de outra cultura, e mesmo de ou-tras concepções religiosas e éticas. O analfabetismo era uma tôni-ca geral. O próprio clero apresentava-se como pouco preparado. A cultura clássica praticamente se refugiara nos mosteiros.

Dentro desse contexto se compreendem as difi culdades pastorais enfrentadas pela Igreja, bem como as difi culdades para o desenvolvimento de uma verdadeira elaboração teo-lógica. E na esteira desse quadro de decadência, compreen-de-se igualmente que a Moral tenha sido reduzida a alguns princípios norteadores, de caráter mais penitencial, e pouco desenvolvidos teologicamente. São os conhecidos Penitenciais. Queriam oferecer linhas básicas para socorrer os confessores. Apesar de se reduzirem praticamente a pequenos catálogos de pecados, tiveram um infl uxo na história da civilização euro-peia: conseguiram humanizar um pouco os costumes de um período bastante “bárbaro”.

Sem dúvida, nos encontramos diante de um longo perí-odo de estabilidade, mas que pagou o seu preço: pouca criati-vidade, através de fórmulas estilizadas de perguntas e respos-tas. Também o contexto nem exigia, nem podia oferecer muito mais do que isso.

1.3 Escolástica: o fervilhar de uma nova era

A Escolástica,23 enquanto expressão de um dos períodos teológicos mais vigorosos, nasceu no contexto de mudanças profundas em todos os campos.

Em primeiro lugar, já desde o século XI, faz-se notar a irrupção do “evangelismo”, retorno ao Evangelho em seu frescor, “sine glossa”, tão bem expresso no século XIII por São

23 Cf. ORDUNA, R. R., Práxis Cristã, op. cit., 67s; CHENU, M D., La Théologle au XIII siècle, Vrin, Paris, 1957; HAMELIN, A., Pour l’histoire de la Theologie Morale. L’École franciscaine dès ses débuts à l’occamisme, Louvain-Montréal, 1961.

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Francisco de Assis. Na sua esteira, aos poucos vão brotando as Ordens Mendicantes, com sua opção pela pobreza, símbolo iluminador para a opção pelo Cristo e sua causa.

Mas também as profundas transformações operadas no quadro socioeconômico e cultural, chamado de “Renascimen-to”, não são alheias ao que vai se passar no campo teológico. Essas são como que o húmus onde se implanta uma refl exão teológica de primeira grandeza.

É esse contexto todo que possibilita a compreensão do surgimento dos gênios das artes, da política, e naturalmente também da Teologia. Santo Alberto Magno, São Boaventura, Duns Scotus, São Tomas de Aquino, e tantos outros gênios teo-lógicos já não se refugiam em mosteiros: comandam o campus universitário com suas “disputationes” apaixonadas e apaixo-nantes, onde todos os grandes temas teológicos e científi cos são revolvidos em profundidade.

O confronto das diversas correntes e escolas teológicas se revelou como altamente produtivo e iluminador para todos os tempos. É que as inevitáveis suspeitas levantadas de uns contra os outros obedeciam a uma norma ética fundamental: o respeito pelo adversário e a busca de solução para os impas-ses, guiada essa busca pelo princípio da subsidiariedade. Ven-cia as disputas teológicas quem apresentava argumentos mais sólidos. A nobreza cavaleiresca não se verifi cava apenas nos torneios que envolviam as armas de guerra, mas também nos torneios teológicos. Vencedores e vencidos tinham consciência de estar contribuindo para um espetáculo enriquecedor.

Esse não foi, nem poderia ser, um período de isolamento das diversas disciplinas teológicas: elas formavam um todo or-ganicamente dialético, tentando iluminar os problemas do seu tempo. Por isso mesmo, é inútil procurar nesse período “Ma-nuais de Moral”. O ethos cristão percorria todos os tratados

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e a Teologia Moral se alimentava de uma mesma seiva vital, constituída pelo retorno às fontes, mormente ao Evangelho.

O símbolo mais acabado deste tipo de Teologia Moral encontra-se, certamente, em São Tomás de Aquino. Dividiu sua Summa Theologica em três partes. Na primeira aborda Deus Criador, princípio e fi m de todas as coisas; na segunda tematiza o ser humano, como imagem deste Deus; na terceira aponta o Cristo como o caminho da nossa volta para o Criador. Articula de modo genial querigma e compromisso ético, natureza e gra-ça, dogmática e moral, lei natural e ação do Espírito Santo.

Embora tecnicamente a Teologia Moral esteja concentrada na segunda parte, ela só pode ser devidamente entendida a luz da primeira e da terceira. Infelizmente, como é sabido, os discípu-los acabaram traindo o mestre, isolando a parte moral do restante da sua concepção teológica unitária. Esse foi um erro histórico e que prejudicou muito a Teologia Moral dos séculos posteriores.

1.4 Século XIV e XV: a força do nominalismo

Períodos de fervilhamento criativo costumam ceder lugar a períodos de decadência estagnadora e vice-versa, Períodos altos e baixos vão se alternando, não de maneira cíclica e repe-titiva, mas onde altos e baixos sempre deixam suas marcas. Foi assim que a Alta Escolástica cedeu lugar à Baixa Escolástica: os grandes mestres criadores cederam lugar aos pequenos discí-pulos repetidores. Essas foram as marcas dos séculos XIV e XV.

É neste contexto que se entende a força do nominalismo. Contrapondo-se aos defensores dos “universais”, o nomina-lismo24 vai acentuar o “singular”; opondo-se a uma visão de totalidade, vai privilegiar os atos; rejeitando as motivações in-

24 Cf. VEREECKE, L, L’obliga� on morale selon Guillaume d’Ockham, Vie Spir. Suppl., 45 (1958), 123-143; VIGNEAU, P. Nominalisme au XIV siècle, Montreal-Paris, 1948: ORDUNA, op. cit., 79s.

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ternas, vai cair no legalismo arbitrário, do qual não escapam nem os Mandamentos, considerados sem consistência interna são entendidos como imposições de Deus. Por isso mesmo, bastaria se contentar com o mínimo, para não contrariar as disposições divinas. Há pouco lugar para grandes arroubos de generosidade espiritual. E exatamente no nominalismo que se encontra uma das raízes da Moral casuística, naquilo que ela apresenta de mais frágil e negativo.

1.5 Século XVI: a institucionalização da Moral

O contexto sociopolítico é o das descobertas das novas terras. O contexto religioso é o do surgimento do protestan-tismo e do Concílio de Trento. Um período agitado, portanto, que gerou a busca de estabilidade.25

No campo da Teologia Moral manifestava-se o vácuo pro-vocado por dois tipos de obras: as volumosas e pouco acessí-veis “Summas”, mais para o estudo universitário, e as “normas práticas”, muito reduzidas para responderem as necessidades do momento. Daí o surgimento de uma obra intermediária: as “Institutiones Morales”.

Com esta obra do jesuíta Azor (1600), a Teologia Moral passa a ser disciplina autônoma, com o que isto representa de positivo e de negativo. A positividade consiste em oferecer numa só obra aquilo que era mais necessário para os confes-sores; a negatividade consiste justamente em prosseguir na trilha de pensar a Moral só em função dos confessores. São também perceptíveis os traços antiprotestantes: a razão, a lei, os atos ganham a primazia; a Sagrada Escritura, a consciência individual, a pessoa no seu todo, vão para as sombras.

25 Cf. VEREECKE, L, Le Concile de Trente et l’enseignement de la Theologie Morale, Divinitas, 5 (1961), 361-374.

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O mesmo século XVI vai conhecer um surto de grandes moralistas, muitos deles dominicanos, ligados ao tomismo, na Universidade de Salamanca: Francisco Vitória, Melchior de Cana, Domingo Soto, Bartolomeu de Medina, Domingos Bañez.

1.6 Séculos XVII e XVIII: o fascínio pelo novo

Nos séculos XVI e XVII surgem um novo período de in-quietações teológicas, novamente acompanhando uma trans-formação no quadro sociopolítico e econômico resultante das “descobertas”, efetuadas no século anterior. O Novo Mundo se constituía em muito mais do que na descoberta de novas terras c novas povos: signifi cava a abertura de novas fronteiras em todos os sentidos. Foi no impulso da busca de um Novo Mun-do, que na trilha de outros povos, sobretudo espanhóis e por-tugueses, lançaram-se ao mar do desconhecido. Foi o fascínio do novo que deu aos conquistadores o elã para enfrentarem todo tipo de difi culdades.

Entretanto, aqui se confi gura algo de paradoxal em rela-ção ao que ocorreu na Alta Escolástica: embora não se possam negar alguns avanços no campo teológico, esses foram pouco signifi cativos em relação ao que ocorreu na Alta Escolástica. Lá, como vimos, o vigor primeiro se fundava na redescoberta da seiva evangélica; aqui essa seiva não encontrou terreno tão propício: a cruz foi, por vezes, coberta pela sombra da espada; a força do Evangelho foi, por vezes, confundida com a força do Poder e das Instituições; a evangelização não signifi ca forçosa-mente adesão pessoal e comunitária ao Evangelho.

Não se pode negar a existência de alguns grandes moralistas,26 sobretudo nos inícios do século XVII: Luís Moli-na, Gabriel Vasquez, Tomas Sanchez, Francisco Suárez. Eles

26 Cf. ANGELINI, G. - VALSECKI, A., Disegno storico..., op. cit., 115s.

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certamente foram sensíveis aos novos tempos e ao eterno do Evan-gelho. Contudo, o que marcou mais profundamente esses dois séculos foi a presença de escolas que balançavam de um extremo ao outro: probabilismo, laxismo, rigorismo, equiprobabilismo... Apesar de numerosas e ativas, se mostram incapazes de iluminar evangelicamente os novos desafi os surgidos com o Novo Mundo. Os novos povos, mormente em se tratando dos indígenas, não encontram espaço para suas culturas, tradições éticas e religiosas. As “Sementes do Verbo” nem sempre são percebidas; a síntese criativa é substituída pela subjugação do mais forte.

Em suma, perdeu-se a oportunidade histórica de uma renovação mais profunda e verdadeira. O que restou foi, em grande parte, a lembrança de um período de grande agitação casuística, mas de poucos avanços reais no campo da Teologia em geral, e da Teologia Moral em particular. Isso vem mostrar que a renovação teológica nem sempre coincide com a desco-berta do novo, mas exatamente com a síntese de um “ser” e “vir-a-ser” que se fecundam mutuamente.

A partir de meados do século XVIII, porém, o fascínio pelo novo vai ser contrabalançado pela fi gura de Santo Afonso Maria de Liguori. Partindo de sua experiência de pastor ze-loso, lança os fundamentos para uma Teologia Moral equili-brada, toda ela fundada numa compreensão teocristocêntrica. O resultado vai ser uma concepção moral onde se conjugam harmoniosamente lei e liberdade, ideal e realidade.

2. Evoluções recentes: a implantação dos Manuais

Consideramos como passado mais recente o século XIX e a primeira metade do século XX. Em termos de sociedade, desde 1830, tem início o processo de industrialização. Em termos teológicos,

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não houve grandes mudanças, mas, certamente, consolidou-se um caminho que, de uma forma ou de outras dominou o pano-rama católico até meados deste século. Aqui já podemos falar, com propriedade, de Manuais neoescolásticos, resultantes de uma combinação de fatores: o infl uxo de Santo Afonso; o surgimento do neotomismo; a renovação bíblico-patrística.

2.1 As redescobertas do século XIX27

Em vida Santo Afonso não teve muita aceitação. Pelo contrário, sofrem oposições violentas, que o obrigaram a ini-ciar uma revisão em sua obra. Contudo, com sua beatifi cação em 1813, seus escritos passaram a ganhar sempre mais espaço. Manuais que trazem a marca de sua inspiração dominavam os Institutos de Teologia: Gury, Ballerini, Lehmkuhl. Apesar de pequenas oscilações, a linha mestra era sempre a mesma, de uma Moral com alguns traços teocristocéntricos, com sen-sibilidade pastoral e que, evitando os extremes, transmitia segurança.

A retomada do tomismo remete para dois fatores: a en-cíclica Aeterni Patris, de 1857, e as resistências, sobretudo na Alemanha, ao crescente infl uxo da Escola de Tübingen. Com-binando equilíbrio positivo e método especulativo, fi delidade a lei objetiva e valorização da liberdade, casuísmo e busca de perfeição, Linsemann consagra o neotomismo e marca a se-gunda metade do século passado.

Esse período se caracteriza ainda por um interesse cres-cente pelos estudos bíblicos e patrísticos. É nessa trilha que a Escola de Tübingen vai projetar-se com dois moralistas de peso: Sailer e Hirscher. O primeiro busca articular a vida cristã em torno da fé e da caridade, ressaltando mais o aspecto místico

27 Cf. CAPONE, D, La morale dei moralis� , Seminarium; 23 (1971). 649-652.

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do que jurídico. O segundo acentua a pregação moral de Jesus, centrada sobre o Reino. O título de seu manual diz tudo: Moral cristã como doutrina da realização do Reino de Deus na humani-dade. São o Reino e a pessoa humana que começam a emergir como as grandes coordenadas da Teologia Moral.

2.2 Primeiras tentativas de superação do casuísmo

Na virada do século a industrialização já é uma realida-de cheia de contradições, que se faz notar em quase todo o contexto europeu. As contradições e os graves problemas so-ciais são muito bem tematizados na Rerum Novarum, de 1891. Curiosamente, esses problemas encontram muitos refl exos nos Manuais. O que vai se refl etir, ao menos indiretamente, são as preocupações inerentes ao “Modernismo”, bem como as primeiras incursões das ciências humanas. Mais diretamen-te vão encontrar refl exos nos Manuais as críticas provindas de correntes protestantes: primeiras contestações mais signifi ca-tivas da rigidez dos princípios morais; da autoridade como princípio formal da Moral católica; da falta de sensibilidade para os acontecimentos históricos; de uma exegese muito lite-ral. É neste contexto que se entende o surgimento da “Moral de situação”, da qual nos ocuparemos mais adiante.

Em consequência de toda essa contestação, os Manuais tentam uma casuística um pouco mais aberta.28 Buscam, so-bretudo, um princípio unitário para a Moral. Assim, alguns apontam para as virtudes. É o caso de Tanquerey, de Prüm-mer, de Verrneersch, de Merkebach. Tillman, que, por sua vez, vê como princípio estruturante o seguimento de Cristo; Stel-zenberger privilegia o Reino de Deus; Gilmann e Carpentier destacam a caridade; para Meersch tudo deve ser centrado

28 Cf. ANGELINI, G. - VALSECKI, A., op. cit., 163s; DELAHAYE, PH., La théologie d’hier er d’aujoord’hui, RSR 10 (1953), 112-130.

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no Corpo Místico. Outros, sensíveis aos problemas abraçados pela Ação Católica, se fazem predecessores de uma das linhas mestras do Vaticano II: começam a dar destaque às realidades terrestres. É o caso de Thils.29

Tudo isso carrega consigo os primeiros elementos de uma autocrítica, que, embora provocada por fatores externos, como que prepara o terreno para uma revisão mais profunda dos Manuais. Mas a concretização deste anseio bastante generali-zado só vai ocorrer com a histórica obra de Bernhard Haring, A Lei de Cristo, de 1954.

2.3 “A Lei de Cristo”, primeira sistematização renovadora

Em suas numerosas obras posteriores, o próprio Häring vai, progressivamente, se superando a si mesmo.30 Hoje, a distância de 35 anos, já não podemos considerar – a Lei de Cristo – como um manual adequado para o ensino da Teologia Moral. Entretanto, foi exatamente esta obra que marcou um passe decisivo no caminho de uma renovação mais profunda. Ademais, as grandes linhas de inspiração guardam traços de uma obra que, ao mesmo tempo, soube resgatar criativamente o passado, e abrir caminhos para o futuro.

A Lei de Cristo, em três grandes volumes vem concebida como chamada de Deus e resposta humana. Num primeiro volu-me é apresentada uma síntese geral da imitação de Cristo. O segundo volume se apresenta como um diálogo de amor com Deus e com o próximo. O terceiro quer mostrar como podem se concretizar os planos de Deus em todas as esferas da vida. A partir desta obra começa-se a perceber o surgimento de uma

29 Cf. THILS, G., Theologie des réalizes terrestres, Desciée, Paris 1946.

30 Cf. HARING, Livres e fi éis em Cristo, vol. I Teologia Moral Geral, vol. II A Verdade vos liberiará, Ed. Pauli-nas, São Paulo, 1979 e 1982.

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tônica realmente diferente, que vai infl uenciar os desdobra-mentos futuros: a Moral adquire uma fi sionomia nitidamente mais evangélica, e, por isso mesmo, mais risonha.

3. O momento atual: três concepções diferentes

As últimas quatro décadas se constituíram num período extremamente agitado para a Teologia Moral. É o que se pode caracterizar como período de transição tensa, pelo convívio si-multâneo de três concepções bem diferentes, se bem que não forçosamente excludentes, de Teologia Moral. Por um lado, há setores da Igreja, no seu sentido amplo, que ainda se orientam pelos Manuais neoescolásticos. Há outros setores que adotam a Moral denominada de “Renovada”. E já há mais de vinte anos, vem ganhando destaque uma concepção que busca interpretar teologicamente a dramática situação do Terceiro Mundo. As-sim, o momento atual caracteriza muito bem as difi culdades de articular devidamente o “esse” e o “fi eri”.

3.1 Forças e fraquezas dos Manuais neoescolásticos

Como as próprias palavras sugerem, os Manuais neoes-colásticas pretendiam ser livros de fácil manuseio, destinados sobretudo aos confessores. Trazem muitas marcas do passado e, ao mesmo tempo, traduzem alguns, refl exos do contexto em que foram sendo elaboradas.

Apesar de remeterem para os inícios do século passado, os Manuais neoescolásticas marcaram profundamente tam-bém a primeira metade do século XX. E, de alguma forma, sua concepção de Moral continua até hoje. Eles se constituíram na cartilha comum, que formou gerações e gerações de sacerdotes e fi éis católicos. Justamente por isso fazem pressupor um gran-de vigor interno. Contudo, a partir dos anos 50, essa concepção

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começa a sofrer críticas crescentes e entra em crise. Para uma avaliação mais adequada dos Manuais neoescolásticos, convém acenar para o contexto, apontar os aspectos criticados; assinalar os valores que permanecem.

a) O contexto das críticas e da crise

O contexto socioeconômico da Revolução Industrial, que no período de pós-guerra, vai se impondo com força ainda maior. Sabidamente, a Revolução Industrial não se restringiu a descobertas técnicas científi cas. Ela provocou o fenômeno da urbanização acelerada, e propiciou a progressiva passagem de uma sociedade fechada para uma sociedade aberta.31

Por trás das expressões “sociedade fechada” e “sociedade aberta” não vai nenhum juízo de valor. Trata-se de uma consta-tação de ordem sociológica. A sociedade fechada é pré-técnica e predominantemente rural. O isolamento, decorrente da falta de comunicações de maior porte, garante a homogeneidade, as tradições religiosas e morais. Um clima sacral paira sobre todas as coisas. A autoridade vem frequentemente associada à experiência dos mais velhos. Como consequência de tudo isso, é uma sociedade bastante estável e até rígida em todos os seus aspectos: religiosos, morais, econômicos, políticos, so-ciais, culturais. As eventuais mudanças se dão de modo quase imperceptível e a longo prazo.

Já a sociedade aberta se caracteriza justamente pelos elementos contrários: é urbana, heterogênea, profundamen-te infl uenciada pela técnica, pelas comunicações múltiplas, por um clima dessacralizado; É sujeita a mudanças rápidas e

31 Cf. LOREZON, A., É� ca e comunidade: a ideologia do individualismo, Síntese, 1989, 35-48; AZPITARTE,L E, La moral en un mundo técnico, Proyec., 1988, 171-184; WALGRAVE, H., Moral e progresso, Concilium 5 (1065), 18-29.

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profundas em todos os sentidos. Por isso mesmo, a sociedade aberta privilegia tudo o que é novo e maleável. As tradições, de qualquer tipo, são vistas com desconfi ança. O imperativo básico parece ser o da mudança.

Avaliar eticamente uma sociedade fechada e uma so-ciedade aberta torna-se extremamente difícil, porque ambas apresentam condições contraditórias em termos de valores. É certa que uma sociedade fechada parece mais consistente, por privilegiar o “esse”. Em compensação, ao contrário da so-ciedade aberta, é pouco sensível ao “fi eri”, e, por conseguinte, aos sinais dos tempos.

Ademais, uma volta atrás não só seria impensável, como também teologicamente pouco sustentável. Cabe a Teologia responder criativamente aos desafi os do seu tempo, no difí-cil, mas enriquecedor processo de conjugar o “esse” e o “fi eri”, discernindo entre valores e contravalores de qualquer mo-mento histórico. É assim que a Teologia pode reconhecer as “Sementes do Verbo” presentes nas mais diversas situações e contribuir para que o novo manifeste a presença ativa daquele que renova todas as coisas.

Ora, é exatamente a partir de todo esse quadro que se po-dem entender melhor as críticas que passaram a ser feitas aos Manuais neoescolásticos. As tentativas, vistas anteriormente, de encontrar um princípio unifi cador mais bíblico e dinâmico para a Moral, foram relativamente tímidas: não conseguiram imprimir um novo espírito. Mas, de qualquer forma, dentro dos pressupostos de uma sociedade predominantemente fe-chada, as fraquezas não eram tão nítidas. Elas vão transparecer melhor à luz desse novo contexto, que acabamos de descrever há pouco.

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b) As fraquezas dos Manuais neoescolásticos

Numerosos artigos, a partir dos anos 50, foram detec-tando sempre, mais aspectos que caracterizam as fraquezas desses Manuais, e da mentalidade correspondente.32 Vamos apenas destacar os aspectos que nos parecem mais signifi ca-tivos. Afi nal, trata-se de evidenciar um certo espírito, mais do que enumerar todas as fraquezas. E é preciso não esquecer que nos encontramos diante de muitos autores diferentes, embora todos apresentando basicamente os mesmos pressupostos.

Entre os pontos nevrálgicos podemos apontar: a falta de vinculação mais estreita com a Sagrada Escritura, a Grande Tradição e a Teologia sistemática; o excessivo legalismo; a exa-cerbação da casuística; um pessimismo de cunho dualista.

O retrospecto histórico feito anteriormente nos assegura que houve buscas no sentido de resgatar a Sagrada Escritura, a Grande Tradição, sobretudo patrística e Escolástica. Entre-tanto, com raras exceções, essas tentativas não conseguiram impregnar o todo da Teologia Moral. Em termos escriturísti-cos, uma honrosa exceção vem representada por Kelly.33 Ade-mais, já desde as Instituições Morais, de 1600, o distanciamento da Teologia sistemática se fez notável como tônica. A Teologia Moral é considerada como disciplina autônoma, que basta a si mesma.

Nenhuma instituição pode sobreviver sem lei. A ano-mia a sinônimo de desagregação. Por isso, com razão, os Ma-nuais dão destaque aos vários tipos de leis: divina, natural, eclesiástica, civil.

32 Cf. LEERS, B., Novos Rumos da Moral, Lutador, Belo Horizonte, 1970. um livro Interessante para se ter presentes as caracterís� cas, tanto da Moral dos Manuais, quanta da Renovação.

33 Cf. KELLY, G., Contemporary Moral Theology, The Mercier Press, 1955.

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Contudo, o legalismo, já condenado por Cristo e por São Paulo, foi ganhando sempre maior força nos Manuais. Muitos fatores contribuíram para isso. Pensamos que entre eles deva ser destacada a decadência dos costumes, particularmente fa-miliares. O apego a lei é uma tentativa desesperada de salva-guardar o “esse” num período de transição mais acentuada. Ademais, a partir de 1917, com a promulgação do Código de Direito Canônico, muitos tratados transformaram-se mais em tratados de Direito do que tratados de Teologia Moral. Um exemplo característico é encontrado em Jone, que escolheu para seu manual um título muito sugestivo: A Teologia Moral à luz do Direito Canônico.34 — A casuística é, de per si, uma necessidade. É uma espécie de jurisprudência destinada a situar melhor os problemas, tanto à luz de estudos e compreensões anteriores, quanto à luz da particularidade pessoal e de cada caso.

Entretanto, a casuística é também uma arte. Não pode transformar-se em receituário, com solução prévia de todos os problemas. Os problemas pessoais só podem ser devidamen-te compreendidos quando colocados dentro da história dessa pessoa, situada no espaço e no tempo.

Os Manuais neoescolásticos, infl uenciados pelos Peni-tenciais, pelo nominalismo, por toda a Baixa Escolástica, e pela incapacidade de enfrentar os novos problemas com outras coordenadas, acabaram por acentuar tanto a casuística, que se confundem com ela. Manuais neoescolásticos ou casuística se tornaram quase sinônimos.

Outra crítica feita comumente aos Manuais aponta para seu pessimismo de cunho dualista. Por trás desse pessimismo, traduzido por uma atmosfera de pecaminosidade, esconde-se o

34 JANE, G., Katholische Moraltheologie unter besonderer Berücksich� gung des Codex luris Canonici, Pader-bon, 1937.

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dualismo, tanto de caráter cosmológico quanto, sobretudo, an-tropológico. A divisão muito acentuada entre terra e céu, tempo e eternidade, material e espiritual, profano e sagrado, teve como consequência carregar as cores do pecado e esmaecer as cores da graça. Por isso, não causa estranheza que a perspectiva desses Manuais seja excessivamente a do Sacramento da Penitência.

c) Valores que permanecem

Poderíamos dizer que a crítica aos Manuais teve dois mo-mentos: num primeiro ela é amarga e total. Praticamente nada seria aproveitável. Entretanto, num segundo momento, se per-cebe que nem tudo é negativo. Os Manuais são fi lhos do seu tempo. Tentaram responder aos desafi os de uma época com categorias de sua época. Ademais, as novidades em termos de ciências humanas e do social, ao menos num primeiro tempo, surgiram como uma contestação de praticamente tudo aquilo que se pensava anteriormente. É compreensível uma reação de defesa. O que faltou aos Manuais foi a capacidade de integrar o “fi eri” no “esse”.

Além disso, a rigor, as fraquezas vêm da exacerbação de certas preocupações, em si válidas. Assim a Lei, os atos como prováveis indicadores de uma atitude de fundo (agere sequitur esse), a distinção de planos, a atenção dada às pessoas em suas particularidades, a força do pecado, não podem ser esqueci-dos. Tudo depende de como são conjugados.

3.2 Renovação: ganhos e limites

A “Moral Renovada” compreende todo o esforço feito, sobretudo a partir dos anos 50, para responder mais adequa-damente aos desafi os de uma “sociedade aberta”. O contexto é o mesmo acima assinalado. Não se pode entender a “Mo-ral Renovada” sem seu confronto com a Moral dos Manuais.

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Depois de concentrar-se no estudo das fraquezas da concepção vis-ta acima, ela vai, pouco a pouco, estabelecendo suas linhas de força.

A literatura teológica referente à “Moral Renovada” é quase incontrolável.35 As propostas de renovação são inúme-ras. Vamos, de novo, destacar apenas algumas, que nos pa-recem mais signifi cativas para traduzir essa nova compreen-são: volta às fontes; produzir frutos para a vida do mundo; atenção aos sinais dos tempos; as bem-aventuranças; abertura ecumênica. Feito isso, deveremos assinalar também os limites desta concepção de Moral.

a) Linhas de força da “Moral Renovada”

Embora as tentativas de renovação mais profunda já te-nham sido iniciadas antes do Concílio Vaticano II, esse se cons-titui tanto num reconhecimento da necessidade de renovação, quanto num ponto de referência obrigatório. Não é que tenha oferecido um texto, como sucedeu com a Liturgia, a Eclesio-logia e a Exegese. Mas tanto os textos, quanto o contexto do Concílio ofereceram pontos de referência e inspiração.36

Particularmente importante foi o número 16 da Optatam Totius, que insiste sobre o caráter científi co, o cristocentrismo e o produzir frutos para a vida do mundo.

A volta às fontes é uma tônica geral. Isso determina uma revalorização de toda a Sagrada Escritura e da Patrística como eixos da renovação. Em termos bíblicos começam a sobressair as categorias da Aliança e do Reino. Em torno deles vão sur-gindo outros aspectos: um pacto de Amor e não tantos man-damentos retirados do seu contexto; o seguimento de Cristo; a

35 Cf. VIDAL, M., Moral de a� tudes, I, op. cit., 47-75.

36 Cf. DELAHAYE, PH., A contribuição do Va� cano II para a Moral, Concilium 75 (1972), 611-618; FUCHS, J., Orientamen� conciliar per una morale cris� ana, Seminarian 23 (1971), 485-512; HARING, B., Orienta-ciones actuates de la Teologia Moral a la luz del Va� cano II, Pentecostes 11 (1966), 189-196.

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chamada e resposta, com o consequente acento menos impe-rativo e mais dialogal. É sob este ângulo que transparece mais claramente a importância da obra de Bernhard Haring.

Produzir frutos para a vida do mundo implica numa reava-liação dos objetivos centrais da Moral. Essa não visa apenas o auto aperfeiçoamento. Ela deve se inscrever dentro de um contexto de uma Igreja que, por sua vez, tem uma missão no mundo. Nem a Igreja, nem a Moral vivem para si mesmas: elas existem para levar a Vida ao mundo. Não se trata de colecio-nar méritos pessoais, mas de abraçar, com entusiasmo, a causa de Cristo em toda sua amplitude. Evidentemente que por trás dessas tônicas está toda a Teologia da Gaudium et Spes, com seu forte acento no valor das realidades terrestres. Os cristãos se salvam empenhando-se na salvação do mundo.

Os sinais dos tempos estão conexos com o item anterior. Só realiza seu compromisso com o mundo quem está atento às manifestações de Deus no tempo presente. A revelação ofi cial termina com o último dos Apóstolos, mas nosso Deus é um Deus que acompanha a trajetória da humanidade, sinalizando sempre de novo o caminho.

Por trás desta tônica encontra-se o princípio da historici-dade. Como viemos acentuando desde o início, esse nada tem a ver com o historicismo. Para o historicismo não existe nada de permanente. Para quem assume a princípio da historicidade existe um “fi eri”, mas também um “esse”, que se interpenetram de modo indissociável. À luz do princípio da historicidade, lido teologicamente, espaço e tempo são carregados de signifi cado.

A categoria da historicidade é uma espécie de aprofun-damento enriquecido do que os Manuais denominavam de epiqueia: a maleabilidade fi el que brota da conjugação do “esse” e do “fi eri”, do ideal e dos condicionamentos históricos.

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O ressalto dado às bem-aventuranças encontra-se em ple-na sintonia com as linhas vistas acima. Por tudo o que foi dito, a Moral dos Manuais acabava incutindo um clima carregado de negatividade. As bem-aventuranças, como expressão aca-bada dos ideais do Reino, imprimem uma tônica carregada de otimismo e de esperança. Já não sobressaem a temor, mas o Amor; não a ameaça, mas o convite; não o pecado, mas a gra-ça; não o medo, mas o entusiasmo.

Não se pense, contudo, que a Moral inspirada nas bem-aventuranças seja menos exigente. Até pelo contrário: ela não pede o mínimo, mas o máximo. Pois os pressupostos encon-tram-se na parábola dos talentos (a quem muito é dado, muito é exigido), bem como nas exigências inerentes ao Amor. Quem ama não dá presentes, mas se doa totalmente.

Também a dimensão mais ecumênica é decorrência do espírito que imbuiu o Vaticano II. A Igreja é a luz dos povos, mas que refl ete a Luz do Cristo, que ilumina todo ser humano que vem a esse mundo. Destarte, em consonância com o pos-tulado patrístico de que as sementes do Verbo se espalham por toda parte, cabe à Teologia saber encontrá-las. Particularmente os que partilham da mesma fé em Jesus Cristo, e que buscam seu seguimento com empenho têm muito a dizer em termos de prática cristã.

b) Os limites da “Moral Renovada”

Num primeiro tempo, a “Moral Renovada” se contrapõe à Moral dos Manuais. Uma não pode ser entendida sem refe-rência à outra. Da mesma forma, algo de parecido, embora não de modo tão acentuado, se passa com a “Moral Renovada” e a “Moral de cunho latino-americano”. É à luz desta última que vão aparecer os limites daquilo que parecia um avanço defi nitivo.

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Embora ainda devamos apresentar a “Moral de cunho latino-americano”, convém assinalar desde logo os limites da “Moral Renovada”. Pensamos poder reduzir tudo num só item: não interpreta devidamente a problemática do mundo dos empobrecidos. Em outros termos, é uma Moral pensada mais a partir de, e para um contexto de Primeiro Mundo.37

Os ganhos acima assinalados são reais. Um novo sopro reanimou não só a Teologia Moral, como a vida cristã. Entre-tanto, a “Moral Renovada” é por demais devedora ao seu lugar social. Ela remete diretamente para a modernidade, com tudo o que isso signifi ca em termos de ganhos e perdas.38 Se é verdade que a Moral dos Manuais acentua demasiadamente o “esse”, a “Moral Renovada”, por vezes, acentua demasiadamente o “fi eri”. Se a primeira privilegia o momento do objeto, a segunda privilegia o momento do sujeito, e de um determinado sujeito histórico, exatamente aquele benefi ciado pela modernidade.

Esse privilégio vai transparecer tanto na escolha dos te-mas, quanto no prisma pelo qual são abordados. Temas privi-legiados são antes de tudo os temas de fronteira, como os da biogenética, da corrida armamentista, do prolongamento da vida. Em seguida, são privilegiados ainda temas que trazem o sabor da modernidade, naquilo que essa apresenta com traços de liberalismo: relações pré-matrimoniais; matrimônio experi-mental; divórcio; aborto.

Mais problemático ainda é o prisma sob o qual esses proble-mas, que não são exclusivos do Primeiro Mundo, vão ser aborda-dos. Embora não se possa absolutizar, não se pode também deixar

37 Cf. MOSER, A. - LEERS, B., Teologia Moral: impasses e alterna� vas, Vozes, Petrópolis, 1987, 62s.

38 Cf. AZEVEDO, M., Modernidade e cris� anismo: o desafi o inculturação, Loyola, São Paulo, 1981; OLI-VEIRA, M., A crise da racionalidade moderna: uma crise de esperança, Síntese, nova fase 45 (1989), 13-34.

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de reconhecer que os tratados de “Moral Renovada”, por vezes, traduzem uma compreensão pouco compatível com o Evange-lho. Tendo absorvido muito bem as ciências humanas, particular-mente a psicologia do profundo, esses tratados ressaltam tanto os condicionamentos pessoais, que fi ca difícil perceber que compor-tamentos seriam, de fato, inconciliáveis com o Evangelho.

Mas, todas essas reservas fi cam mais patentes quando o esquema renovado é confrontado com as preocupações e pers-pectivas próprias do Terceiro Mundo. Embora haja teólogos de Primeiro Mundo muito sensíveis até à problemática dos empobrecidos39 a “Moral Renovada”, quando considerada globalmente, não parece interpretar devidamente os gritos que brotam dos porões da humanidade. Tanto as prioridades, quanto as chaves de leitura são outras. Afi nal, a maior parte da humanidade pouco participa dos benesses da modernidade; apenas de muitos de seus malefícios.

3.3 A procura da fi delidade em meio às estruturas de pecado

Os ganhos da Moral Renovada são inquestionáveis. Como também são inquestionáveis suas lacunas, quando se tem pre-sente a realidade brutal do Terceiro e Quarto Mundos. Isso explica por que, a partir dos anos 60, sobretudo no contexto da América Latina, vão surgindo esforços teológicos que buscam responder a questões mais específi cas dessa realidade.

Esses esforços têm suas raízes implantadas num processo eclesial, onde emergem as CEBs e se fi ncam marcos históricos como os das Conferências de Medellín e Puebla. Essas repre-sentam o empenho da Igreja aqui situada por tirar consequên-cias práticas do Concílio Vaticano II.

39 Cf. REJON, M. F., Teologia Moral a par� r dos pobres. A Moral na refl exão teológica da América La� na, Ed. Santuário, Alfonsianum, 1988.

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Para melhor delinear essas tentativas teológicas, con-vém, antes de mais nada, ter presentes alguns traços dessa realidade teologicamente provocadora. Dessa forma podemos compreender melhor certas tônicas que caracterizam a verten-te teológica Latino-americana. Finalmente, tendo presente um processo de quase 30 anos, já podemos assinalar alguns mar-cos por onde passam as conquistas.

a) Uma realidade evangelicamente “pro-vocadora”

Sabidamente, no despertar de algumas vocações de maior vulto encontram-se fatos ou situações provocadoras. Nessa li-nha se colocam as vocações de Moisés, de vários profetas e de grandes santos.

Muitas vezes a “pró-vocação”, paradoxalmente, brota de uma situação de pecado. E parece ser justamente uma tal situ-ação que se encontra no despertar de uma nova consciência, pela qual os cristãos percebem uma contradição dolorosa: paí-ses, desde o início, profundamente marcados pelo cristianismo estão entre os que apresentam as mais gritantes situações de injustiça. E, como bem observa o Documento de Puebla, isso não é algo de casual ou passageiro: é estrutural e remete para uma situação de pecado.40

Não vem ao caso descrever de novo aquilo que já foi muitas vezes descrito, e que todos têm muito presente: fome, miséria, analfabetismo, condições desumanas de vida etc. O que impor-ta é perceber que, não sendo fruto do acaso e se caracterizando como situação de pecado, essa realidade impõe um imperativo ético aos cristãos: é preciso superar a situação, ajudando a remo-ver as causas. É certo que a tarefa da Teologia não consiste em mudar uma situação. Ela se coloca em outro nível. E, contudo,

40 Cf. Doc. de Puebla, n. 28-30.

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pelo impacto que apresenta tanto em nível das pessoas, quanto da sociedade, não pode pretender ser neutra, ou colabora para a superação ou para a perpetuação desse estado de coisas. Cabe à Teologia ajudar a discernir os imperativos evangélicos que bro-tam de um determinado contexto, bem como os caminhos que podem levar a uma libertação no sentido pleno da palavra.

É a partir dessa consciência que, pouco a pouco, vão surgindo algumas linhas mestras da Teologia da Libertação.41 Apesar dos reparos críticos que sofreu, convém recordar aqui a carta do Papa João Paulo II aos Bispos do Brasil em 9 de abril de 1986. Nesta ele traça o roteiro dentro da qual a Teologia da Libertação pode e deve encontrar acolhida: “... Estamos con-vencidos, nós e os Senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa...” Isso desde que esteja em conexão estreita com a Grande Tradição e o Magistério da Igreja.

b) Uma questão de tônicas

Como ocorreu com a Moral Renovada, assim também ocorre com a Teologia Moral no contexto latino-americano. Ela apresenta uma primeira fase mais crítica seja em relação à Teologia dos Manuais, seja em relação à Teologia Renovada. Mas apresenta igualmente uma fase mais construtiva, na qual traça linhas de força de seu repensamento.

Hoje, a Teologia Moral de cunho latino-americano, encon-tra-se a caminho de uma síntese, pela qual integra vários elemen-tos valiosos dos demais enfoques teológicos. Por isso parece-nos tratar-se realmente de uma questão de tônicas, onde a novidade não se traduz pela negação das conquistas anteriores, mas por um aprofundamento e um alargamento de perspectivas.

41 Cf. REJON, M. F., Moral a par� r dos pobres, op. cit, 195s; MOSER. A. — LEERS, B., Teologia Moral, op. cit., 72s.

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Ademais, é preciso ter muito claro que, ao contrário do que se passa nos campos bíblico, histórico e sistemático, a Moral de cunho latino-americano não se encontra totalmen-te elaborada. São antes percepções e acenos para que direção se deverá andar.42 Mas, assim mesmo, podem-se notar alguns acentos que ela apresenta em comum com os demais campos da Teologia: a iluminação bíblica; a opção evangélica pelos po-bres; o confronto fé-realidade; a relação circular entre teoria e práxis; o social como chave de leitura para melhor entender os problemas, inclusive de caráter pessoal; a presença inegável da confl itividade que perpassa as relações humanas; os empo-brecidos como novo sujeito social.43

Contudo, ao mesmo tempo, as buscas no campo Moral privilegiam algumas coordenadas, presentes na Moral Reno-vada, mas agora mais explicitadas e enriquecidas: uma Moral inspirada na Aliança como proposta ao mesmo tempo religio-sa e político-social; uma Moral do seguimento de Cristo diante de certas urgências características do nosso contexto.

Esse enfoque moral busca também integrar todos os gran-des referenciais, além dos já aludidos, estão evidentemente a consciência, o Magistério, os sinais dos tempos, o humanum, os condicionamentos estruturais e situacionais. Ao mesmo tempo que coloca esses referenciais sob uma nova perspectiva, procura conjugá-los todos ao mesmo tempo.

c) Por onde passam as conquistas

Talvez seja ainda cedo para se falar em conquistas defi -nitivas, pois o processo é ainda relativamente recente e inaca-bado. Contudo, nessa altura já se pode perceber com alguma clareza por onde passam as conquistas, ao menos provisórias.

42 ID., ibid; MOSER, A. — LEERS, B., Teologia Moral..., op. cit., 83s.

43 C. LIBANIO, J. B., As grandes rupturas socioestruturais e eclesiais, Vozes/CRB, Petrópolis, 1980, 73.

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— Elas passam, antes de tudo, por uma dupla preocupa-ção: a atenção aos apelos que brotam de uma realidade nova e diferen-te, e, ao mesmo tempo, a valorização do patrimônio adquirido, seja ao longo dos séculos, seja em tempos mais recentes. A atenção aos apelos que brotam da realidade leva a Teologia Moral a não transpor pura e simplesmente o que vem elaborando em outros contextos. A preocupação em manter o patrimônio ad-quirido a obriga a um discernimento contínuo entre o novo e o antigo, entre o que é universal e o que é particular, entre o que remete para o “esse” e que remete para o “fi eri”.

É certo que na elaboração dos vários tratados esse equilí-brio pode nem sempre estar presente. Mas, em que pesem os exageros possíveis, esses não podem se constituir em razão vá-lida para suspender as buscas. Se as buscas comportam natu-ralmente certos riscos, também a demasiada insistência sobre “aquilo que sempre se disse” pode nem sempre ser o caminho mais evangélico.

A fi delidade, como já foi assinalado acima, deve ser cria-tiva, e não meramente repetitiva. Seguindo o Cristo, o Evange-lho é inovador e audacioso. Por isso mesmo, é difícil imaginar uma verdadeira Teologia que não seja audaciosa. É isso que ve-rifi camos ao longo da história: os momentos fortes da Teologia Moral, particularmente a da Patrística e da Alta Escolástica, se caracterizaram pela coragem de abrir novos caminhos na fi de-lidade ao Evangelho. E, ao contrário, os momentos mais fracos da Teologia Moral foram justamente os que não manifestaram audácia, ou então não souberam conjugá-la com a busca da fi delidade ao patrimônio cristão.

Uma segunda coordenada, por onde passam as conquis-tas, decorre da primeira: a indispensável humildade do mister teo-lógico. A boa Teologia sempre teve consciência dos seus limites.

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Ela é um discurso a partir da fé, mas não se confunde com a própria fé. A boa Teologia sempre considerou seu discurso como um balbuciar a partir de, e sobre algo que a ultrapassa. Essa consciência ministerial se torna tanto mais necessária, quanto fi cam patentes a gravidade e a complexidade dos problemas que a Teologia deve abordar num contexto como o nosso. Ler à luz da fé uma realidade profundamente ambivalente e con-fl itiva, em meio a mudanças rápidas e profundas, não é tarefa fácil. Só a humildade abre o caminho da Sabedoria, que pode ser um sinônimo de Teologia.

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PERENIDADE E EVOLUÇÃO DAS NORMAS MORAIS

A Teologia Moral é uma ciência normativa. Ela não preten-de apenas emitir pareceres, mais ou menos abalizados, mas ofe-rece linhas de conduta, que buscam seu último fundamento no Evangelho. Com isso, tudo parece muito tranquilo e fácil: a Mo-ral apresenta seus princípios, e todos estão sujeitos a eles. Acon-tece que o acesso aos valores evangélicos nem sempre é direto. Ademais, vai uma distância entre normas e situações concretas. Daqui surge uma interrogação primeira sobre princípios morais e situações concretas: preocupação antiga, sempre retomada, e que deverá ser confrontada com a Palavra de Deus.

Teoricamente também, as normas morais deveriam tra-duzir fi elmente o ethos. Sem dúvida, traduzem algo do ethos; mas a pergunta é se elas são capazes de traduzir o ethos em sua profundidade total. Ainda mais, que nem todas as nor-mas apresentam o mesmo peso teológico. Pretender identifi -cá-las todas entre si seria, talvez, absolutizar o que é relativo. É por isso mesmo que as normas devem ser continuamente repensadas.

Finalmente, a questão das normas nos coloca em con-fronto com os Planos divinos. Esses, certamente são absolutos. Mas, como o conhecimento humano é sempre precário, e Deus é um Deus absconditus, que se vela e revela, impõe-se uma to-mada de consciência dos limites da própria Teologia. Mesmo que trate a partir de e sobre coisas divinas, ela é uma ciência humana, com tudo o que isso signifi ca.

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1. Princípios morais e situações concretas

Com muita razão os Manuais de Moral tinham como equivalentes as expressões “Moral Fundamental” e “Princí-pios de Moral” (De Principiis). Isso revela a força dos “princí-pios” dentro da Moral. E mesmo que nas evoluções mais re-centes, para evitar certas ambiguidades, essa terminologia seja evitada, isso não signifi ca que os princípios morais não sejam pressupostos. A questão central dos “princípios” consiste nis-so: como conciliar princípios considerados como seguros, com uma realidade por vezes confusa, e sempre cambiante. Eis uma antiga questão, retomada inclusive mais recentemente, e que remete para uma prática já presente na Sagrada Escritura.

1.1 Uma preocupação antiga

Apesar de serem muitas vezes criticados por sua rigidez, mesmo os Manuais mais antigos tinham presente a questão de como conciliar ideal e realidade. Nesse sentido, foi desenvolvi-da toda uma verdadeira arte, denominada de epiqueia44 O fato de ela vir muitas vezes traduzida por moderação, bem mostra sua consciência de que os princípios pressupõem a misericórdia: “Justitia dulcore misericordiae temperata”, diria São Cipriano.

Mas a epiqueia vai além da “moderação” aplicada pelo Juiz, seja civil, seja eclesiástico. Ela pressupõe que o próprio su-jeito possa interpretar de maneira mais benigna a lei, quando lhe parece que uma norma positiva não contemple seu caso particular, ou que o esteja obrigando além de suas forças.

Entretanto, o princípio da epiqueia vai ainda mais longe: na tri-lha de São Tomás, desde há muito ela não abrange apenas o campo jurídico, mas se projeta no campo moral. Aqui ela se confunde, até

44 Cf. HAMEL, E., “Epicheia”, in Diz Enc. di Teologia Morale, 357-364.

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certo ponto, com o discernimento do espírito, tão presente na vida dos santos. Nesse sentido a epiqueia pode mesmo ser considerada como uma virtude, uma sabedoria, no sentido teológico do termo.

Muito aprofundada na Escolástica, presente nos Manuais Neoescolásticos, a epiqueia sempre se constituiu na manifesta-ção da virtude da prudência, que por um lado evita a rigorismo exagerado, e por outro, o laxismo. Ela traduz aquela intuição profunda de que justamente para salvar um ideal, é preciso não perder de vista as situações concretas.

Em termos de Brasil há algo que lembra a epiqueia: é o “jeitinho brasileiro”, traduzido em termos de Moral. É certo que por trás do “jeitinho” se esconde, por vezes, uma acomo-dação, nem sempre conciliável com o Evangelho. Mas também é verdade que, no fundo, encontramos aqui uma expressão do bom senso, de quem não vê como, concretamente e numa situa-ção determinada, abraçar o ideal em sua plenitude.45

1.2 Retomada mais recente

Uma das questões que mais agitaram a Teologia Moral anterior ao Concílio Vaticano II foi a da Moral de situação. Isso é tão verdadeiro que, ainda hoje, essa expressão é vista com re-servas em certos ambientes. E existem razões para isso, já que esse movimento dos anos 40 constituiu-se, por parte de alguns teólogos, sobretudo de tendência protestante, numa ameaça para a validade das normas morais.46

Foi nessa pressuposição que, em 1952, numa radiomen-sagem, o então Papa Pio XII alertava contra “os perigos de uma nova Moral, que ameaça o ensino tradicional da Igreja”.

45 LEERS, B., Jeito brasileiro e norma absoluta, Vozes, Petrópolis, 1982.

46 C. DUFRE, Situa� on Ethics and objec� ve morality, Theological Studies 28 (1967), 245-257; FUCHS, J., Morale Theologique et Morale de situa� on, NRTH 76 (1954), 789-318.

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Em 1956, o então “Santo Ofício” publicou um documento que se intitulava “Sobre a Ética de situação”.47 Segundo esses do-cumentos, a Ética de situação negava a existência de princípios morais de caráter absoluto; exaltava demasiadamente a cons-ciência individual como critério de moralidade; exagerava na importância dos apelos que Deus dirige a cada um, em cada momento e em cada circunstância histórica. Ainda, segundo esses pronunciamentos, as decorrências seriam a justifi cação do divórcio, do aborto, da masturbação...

Apesar dos exageros aqui e ali verifi cados, com certeza esse movimento teve seu mérito: o de levantar uma questão tão antiga, quanto profunda, dos condicionamentos históricos, tanto em nível das pessoas, quanto em nível da própria formu-lação das normas morais. Uma Moral de situação certamente leva ao relativismo; mas uma Moral em situação poderia ser entendida como uma primeira tomada de consciência do que hoje se denomina de lugar social.

É tendo em vista isso que, numa fase posterior, se passou a falar de uma compreensão deontológica e uma compreensão teleológica das normas morais.48 As primeiras indicam aquilo que é nitidamente constitutivo do humano. As outras tradu-zem mais uma direção a ser buscada. No fundo se trataria sempre de buscar o melhor possível, mas com realismo.

Ademais, hoje, à distância, se pode perceber melhor que nem sempre a preocupação era de “derrubada”, embora isso possa ter, ocasionalmente, existido. Para vários teólogos, a preocupação era dupla: por um lado resgatar a maleabilidade fi el em situações muito difíceis (período terminal da segunda grande guerra), e por outro,

47 Cf. REB, 1952, 431 e 565; 1956, 467s; SNOEK, J., Em torno da É� ca de situação, REB 1957, 341-350.

48 Cf. SNOEK, J., Nota sobre alguns princípios de Moral, REB 1973, 649-655.

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mostrar que até as normas e princípios podem ser minimalistas. Na base de uma das parábolas mais ilustrativas para a Moral, a dos talentos (a quem muito dado muito é exigido), existia a preocupação de fugir do minimalismo, tão em voga. É nesse contexto que se toma maior consciência do infl uxo que vários fatores podem ter sobre o agir humano, seja ele considerado na sua individualidade, seja em sentido comunitário-social. Aqui se preparou o campo para o que, posteriormente, veio denominar-se de historicidade. Essa, como já vimos, tanto ressalta o “esse”, quanto o “fi eri”, tanto ressalta os princípios, quanto as situações e condicionamentos.

1.3 Ideal e realidade à luz da Palavra de Deus

A conciliação entre ideal e realidade é um dos desafi os perenes da Teologia Moral. Por isso mesmo, depois de haver-mos acenado para a história antiga e mais recente, convém agora buscar, uma vez mais, a luz da Palavra de Deus.

Sabidamente a Palavra de Deus, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento, sempre aponta para o alto. Ela busca des-velar o ethos humano em toda a sua profundidade, e com isso aponta continuamente para Deus e seus planos grandiosos.

Contudo, ver a Palavra de Deus apenas sob o ângulo do ideal, seria considerar meia-verdade. Com efeito, ao lado do ide-al sempre se faz presente o senso do real. Isso, a tal ponto, que se pode considerar a Sagrada Escritura como a verdadeira fonte da epiqueia Existem episódios isolados para comprovar isso. As-sim, no Antigo Testamento, Davi, no episódio em que ele e seus companheiros se alimentam com os pães da proposição (1Rs 21,27) a Matatias, que convoca seus soldados a enfrentarem os inimigos mesmo em dia de sábado, são exemplos claros dessa compreensão mais profunda do sentido da Lei.49 O mesmo se

49 Cf. GALLI, A., La legge morale, SacrDo, 1985,397-428.

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pode avançar na direção do Cristo, sobretudo quando declara que “o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).

Contudo, bem mais importante do que colecionar episó-dios ocasionais, é saber haurir o Espírito que sustenta a Pala-vra de Deus no seu todo. Bem diz São Paulo que a letra mata, mas é o espírito que vivifi ca.

Nesse sentido, existe uma leitura estreita das Dez Palavras e que lhe rouba todo o sabor, e, consequentemente, seu sabor éti-co. Essa consiste em isolar as Dez Palavras do seu contexto global da Aliança. Mas existe também outra leitura mais apropriada que consiste exatamente em entender as Dez Palavras como ex-pressão da Aliança,50 proposta amorosa de Deus para transfor-mar Israel em Povo de Deus, destinado a ser sinal de uma nova humanidade. E a Aliança que projeta um futuro grandioso para o Povo de Deus, mas que ao mesmo tempo o abraça em toda a sua fraqueza manifestada durante toda sua história.

Da mesma forma, existe um modo de transformar o Cris-to numa espécie de rabino e juiz implacável diante da menor fraqueza humana. Entretanto, não parece ser esse o Cristo dos Evangelhos, quando vistos no seu todo. Pelo contrário, ele ali se apresenta como aquele que continuamente desautoriza a rigidez rabínica, para abrir outra perspectiva de vida. Ao mesmo tempo que aponta um ideal humanamente inatingível – sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito – mostra conhecer de que barro os seres humanos são feitos. Daí a misericórdia que transparece em cada passo do Evangelho, sobretudo para com os fracos e pecadores. Revestido de uma pedagogia divina, Cristo traduz a Sabedoria do Pai: sabe que só há um modo de

50 Cf. BEAUCAMP, E. Les Brands thèmes de l’Alliance, Ed. Du Cerf, Paris 1988, 218s.

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levar os seres humanos a chegarem mais próximos do ideal: é abrir-lhes o fascinante horizonte do Reino, à luz do qual todo peso se torna leve e impossível aos olhos humanos se trans-forma em possibilidade real aos olhos de Deus. É com essa pedagogia que ele é capaz de transformar grandes pecadores em grandes santos, e homens temerosos em destemidos anun-ciadores das maravilhas que só Deus pode operar.

2. Normas morais e ethos

Ethos e normas são duas palavras, a primeira vista, quase idênticas. As normas morais seriam a tradução fi el do ethos. E no entanto, essa identifi cação pode revelar-se muito simplis-ta. Se é certo que as normas traduzem algo do ethos, não é tão certo que possam confundir-se com ele.

Ademais, existem vários tipos de normas. Pretender colocá-las todas num mesmo nível pode parecer zelo, mas na realidade, também aqui a padronização se revela empobre-cedora: em vez de revigorar as normas, a padronização mais certamente irá esvaziá-las do seu vigor ético nativo.

Por mais surpreendente que isso possa parecer, as duas afi rmações feitas acima, abrem caminho para algumas per-guntas de vital importância: será que as normas morais, para prestarem um serviço ao ethos não deveriam encarnar também o “fi eri” e não somente o “esse”? Que tipos de normas perma-necem e que tipos de normas evoluem e devem evoluir?

2.1 As normas traduzem algo do ethos

Uma compreensão simplifi cada da Teologia dos Manuais confunde as normas morais com o próprio ethos. E ainda mais, tal compreensão apresenta uma contraposição entre norma e consciência.

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As normas seriam objetiva e a consciência subjetiva.51 Essas simpli-fi cações nos obrigam a retomarmos o assunto.

Sem dúvida, as normas morais se constituem num empe-nho por desvelar o ethos cristão. Elas não são estabelecidas ar-bitrariamente. Normalmente traduzem uma experiência cristã vivida no seio da Igreja. Por isso mesmo as normas morais devem ser assumidas com seriedade. Mas a própria seriedade nos obriga a ter presente que as normas morais remetem para um determinado contexto, para um determinado sujeito. Daí o não se poder sustentar teologicamente, sem mais, que as nor-mas são objetivas. Elas sempre passam através de um sujeito.

Com as normas ocorre algo de parecido com a que acon-tece numa tradução de uma língua para outra. Existe sempre um código-fonte e um código destino. Só é bom tradutor quem domina simultaneamente os dois códigos. Em se tratando de normas é preciso ter claro que elas remetem para a profundi-dade do humano. E, se aqui está sua força, aqui também se es-conde sua fraqueza. Nenhum ser humano domina totalmente os dois códigos subjacentes às normas morais. Melhor dito, em se tratando de normas morais, só Jesus Cristo é o Mestre, uma vez que só ele a capaz de mergulhar na profundidade do ethos e só ele encarna com perfeição os dois códigos pressupostos: o divino e o humano. Os demais intérpretes podem ser mais, ou então menos fi éis, na exata medida em que se identifi cam mais ou então menos profundamente com o Cristo.

É por tudo isso que devemos concluir que as normas mo-rais traduzem algo de ethos, mas não podem ser confundidas com ele: o ethos é uma fonte, as normas são tentativas humanas de captar as águas sempre borbulhantes dessa fonte que se re-nova sem cessar.

51 Cf. VIDAL, M., Caminhos para a É� ca cristã, Ed. Santuário, 1989, 61s.

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2.2 Os vários tipos de normas

Sob a denominação genérica de “normas” se escondem realidades muito diferentes.52 Não existe um único tipo de nor-ma, mas vários tipos diferentes, com pesos diferentes. Há nor-mas que são evangélicas; há normas estritamente morais; há normas eclesiásticas; normas canônicas; normas civis; normas pastorais; normas disciplinares. Todas elas são importantes, mas nem todas têm a mesma importância.

As normas evangélicas remetem diretamente ao Evange-lho. Algumas são absolutamente transparentes. Encontram-se acima de qualquer discussão. Acontece, porém, que nem todas as normas evangélicas são tão transparentes que dispensam uma hermenêutica. É pacífi co que os próprios Evangelhos já passaram por um processo hermenêutico, efetuado pelos pró-prios apóstolos e evangelistas. A polêmica que conduziu ao Concílio de Jerusalém bem mostra isso. Ademais, nada há de surpreendente nessa hermenêutica original, nem nas posterio-res, efetuadas pelos Santos Padres e pelo Magistério da Igreja. Isso corresponde perfeitamente à pedagogia divina, confi rma-da pelo Cristo. Ele preferiu não escrever o Seu Livro. Deixou que outros o fi zessem. A grandeza dos seus seguidores consis-te exatamente em buscar a Verdade entre luzes e sombras.

As normas estritamente morais, por sua vez, pressuposta-mente são vinculantes, por remeterem mais diretamente ao ethos, e no caso, ao ethos cristão. Contudo, aqui o processo her-menêutico é ainda maior. As normas não podem ser confun-didas, sem mais, com os valores. Esses é que são, normativos, particularmente em se tratando de valores evangélicos. Mes-mo as normas morais vêm revestidas de uma roupagem lin-guística, incapaz de surpreender o ethos na sua originalidade

52 Cf. AZPITARTE, E. L, Fundamentação da é� ca cristã, in Práxis Cristã op. cit., 127s. e 307s.

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última. Em outros termos, a formulação das normas morais é mediatizada por categorias humanas.

As normas eclesiásticas podem remeter diretamente para o Evangelho ou diretamente para as normas estritamente mo-rais. Mas, com a própria palavra eclesiástica sugere, isso nem sempre acontece. O Magistério da Igreja, tanto no seu sentido amplo quanto estrito, pode apresentar outras normas, ou que explicitem aspectos evangélicos e morais, ou que são conside-radas necessárias para a vida em Igreja.

Na mesma linha teríamos as normas canônicas. Podem apresentar maior ou menor densidade normativa, à medida que estiverem mais, ou então menos, vinculadas à Moral e ao Evangelho. O fato de dispormos de um novo Direito Canônico é, por si só, signifi cativo: pressupostamente o antigo foi “supera-do” pelas novas necessidades da Igreja.

Existem ainda normas civis que, por vezes, podem ou estar distanciadas ou até em contradição com o Evangelho e as normas estritamente morais. Mas, também podem traduzir valores, que correspondem ao ethos de um povo, e, portanto, são moralmente vinculantes.

Finalmente, existem normas disciplinares. A rigor, essas normas não querem criar novas obrigações. Como a Palavra sugere, querem “disciplinar” a vida cristã para favorecer a identidade profunda com o Evangelho.

As considerações feitas acima não pretendem esvaziar as normas. Muito pelo contrário, querem preservá-las. É exata-mente quando não se têm presentes essas distinções que se cor-re o risco de esvaziá-las. Melhor preserva a autoridade quem sabe resguardá-la para aquilo que realmente é importante.

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2.3 Por que as normas devem evoluir

Esse último item já se encontra implícito nos anteriores. Agora é só uma questão de explicitar o que está pressuposto.

Uma das falhas da Moral dos Manuais, falha compreen-sível no seu contexto histórico, consistia, justamente em “sa-cralizar” as normas e a própria Moral. Daí seu desgaste pre-visível num contexto mais crítico. Algumas normas poderiam hoje parecer desatualizadas, e até insignifi cantes, mesmo para pessoas profundamente respeitosas e comprometidas com a Igreja. Basta Iembrar o rigor de certas normas litúrgicas secun-dárias, mas às quais se atribuía um peso exagerado. O mesmo se poderia dizer do rigor com o qual se urgia o jejum eucarís-tico, e tantos outros aspectos da vida cristã.

As mudanças das condições históricas e eclesiais, certa-mente não abalam nem as normas evangélicas, nem as normas estritamente morais. No máximo elas podem fazer emergir as-pectos novos ou imprimir uma tonalidade diferente. Contudo, essas mesmas mudanças vão ter um impacto previsível sobre as demais normas.

O fato acima assinalado de que o ethos; mormente cristão reveste-se de uma tal profundidade que nenhuma palavra huma-na a capaz de expressá-lo de uma vez por todas, nos fazem pres-supor que a formulação das normas, mesmo morais, é passível de uma evolução. E, certamente, as demais normas, eclesiásticas, canônicas, civis e disciplinares, não só podem, como devem evo-luir. Evidentemente que a força dessas mudanças não deverá ser ditada nem pelo modismo, nem pelo comodismo, mas pela bus-ca de uma fi delidade sempre maior ao ethos. Pretender revestir de perenidade e de caráter absoluto o que remete a um contexto histórico e, portanto, relativo (se relaciona com) é uma pretensão que não responde grandeza dos planos divinos.

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3. Grandezas dos planos de Deus e limitações humanas

Toda a Sagrada Escritura traduz os múltiplos modos pelos quais Deus se revela. Sua revelação máxima se dá, evidentemen-te em Jesus Cristo. O livro da Sabedoria denomina de estultos os que não, chegam a conhecer Deus. Tudo isso é verdadeiro. Mas a mesma Sagrada Escritura tematiza igualmente a difi culdade real que os seres humanos encontram em conhecer Deus e seus planos. Por isso, usa também frequentemente a palavra “inson-dável”, querendo dizer com isso que o mesmo Deus que se reve-la é também um Deus que não se deixa prender totalmente pelo conhecimento humano.

Com isso já temos enunciados os elementos básicos do que deverá fechar essas refl exões sobre a Teologia Moral em meio às evoluções históricas: o conhecimento humano, por maior que seja, é sempre precário; Deus é um Deus que se vela e se revela. Por isso a Teologia também apresenta limites. E é na consciência desses limites que ela pode exercer adequada-mente sua tarefa insubstituível.

3.1 A precariedade do conhecimento humano

Nunca, como em nossos dias, a humanidade conse-guiu acumular tanto saber e atingir tanta profundidade no seu conhecimento. Os avanços científi cos podem ser verifi -cados em todas as áreas: genética, biologia, psicologia, eco-nomia, sociologia, politologia. Sob as expressões “ciências humanas” e “ciências do social” esconde-se um mundo de saberes nunca antes imaginado.53 Ademais, a construção de aparelhos adequados amplia ainda mais a área do saber.

53 Cf. MOSER, A., Ciências do Social e Teologia Moral, in Ar� culação da Teologia Moral na América La� na, coord. Márcio F. dos Alfonisianum, Ed. Santuário 1988, 37s.

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Assim, uma pessoa munida de um computador tem acesso a um mundo de dados que sem isso lhe escapariam. Com o computador uma pessoa inteligente se torna milhares de vezes mais inteligente. Ela “sabe” mesmo aquilo que nor-malmente não saberia. Tudo isso acarreta inúmeras certezas impensáveis em outros tempos.

Mas as ciências não só se multiplicaram e aprofundaram seus conhecimentos: acopladas a tecnologia, elas transformam o saber em poder. O domínio sempre mais acentuado sobre o micro e os macrocosmos é sempre precedido e acompanha-do pelo conhecimento científi co. Ciência e tecnologia andam sempre juntas devassando e transformando toda a realidade. Juntas parecem trazer para o hoje o que foi sugerido no ontem: “Vós sereis como deuses”.

É exatamente por este ângulo que se entendem as re-servas muitas vezes feitas ao uso das ciências humanas e do social. São conhecidas tomadas de posição, por parte do Ma-gistério, alertando para o necessário discernimento no uso delas por parte da Teologia.54 O uso adequado impõe um verdadeiro corte epistemológico, para não se transpor, pura e simplesmente, teses de caráter científi co para o campo da Teologia. Não se deve pedir das ciências mais do que elas podem oferecer.55

Ademais, existem ciências que, quando acopladas à tecno-logia começam a fazer experiências inaceitáveis para quem se coloca numa perspectiva de fé. É o caso da biogenética, naquilo que diz respeito à reprodução humana em laboratório. Admitir

54 Cf. Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, Vozes, Petrópolis, 1984, 10; Instrução sobre a liberdade cristã e a libertação, Vozes, Petrópolis, 1986, n. 36; PAPA JOAO PAULO II, Discurso aos homens de ciência e aos estudantes, SEDOC, março 1981, 781s.

55 Cf LADRIERE, J. Courants d’an� science, causes et signifi ca� ons, in Science et an� science, Col. Rechrerch-es et Débais, Centurion, Paris 1981, 31.

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isso seria negar um postulado teológico básico, que é a vincula-ção indissociável do amor matrimonial e a procriação.56

Mas há um outro aspecto a ser considerado. Apesar de todas as conquistas, ou talvez justamente por causa delas, se produz aqui uma dupla atitude: uma de arrogância e outra de humildade. Normalmente, quem tem acesso apenas superfi -cial aos dados das ciências, vai absolutizar rapidamente suas conclusões, mesmo provisórias. É o fascínio do saber, que se transforma em poder. É a ditadura das ciências, que transfor-madas em ideologia, ultrapassam seus limites, para impor comportamentos.

Ao contrário, o verdadeiro cientista, que mergulha a fun-do, se dá conta de que quanto mais sabe, mais lhe resta para descobrir. Não só o cientista verdadeiro tende a se restringir sempre mais à sua especialidade, como mesmo dentro dela percebe seus limites; tem muito presente que existem mais perguntas do que respostas e que cada resposta levanta novas perguntas.

A dinâmica do saber realmente científi co é guiada pelo princípio da cientifi cidade, segundo o qual os dados das ciên-cias são válidos enquanto não se chegar a outra conclusão. Em outros termos: a verdadeira ciência nunca se fecha sobre si própria, mas ela está sempre aberta a novas buscas e a novas conclusões.57 Por isso mesmo, o verdadeiramente sábio nunca está longe do infi nito e do próprio Deus. Ele sabe que nada sabe, diante do muito que lhe resta a saber. Sabe que o saber humano apresenta limites que, por mais deslocados que sejam, nunca chegarão ao fi m, pois o fi m seria o começo de uma nova

56 Cf. Humanae Vitae, n. 12; Sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação. Vozes, Petrópolis 1987, sobretudo n. 5.

57 Cf. MOSER, A., Teologia Moral e ciências humanas. Amigos e novos REB, 985, 232s.

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aventura: um mergulho naquilo que transcende o humano e que se projeta no divino.

3.2 Um Deus que se vela e “re-vela”

Signifi cativamente o Deus de Israel, que sempre de novo manifesta sua presença atuante, é um Deus que esconde seu nome. Dar um nome, de alguma forma traduz um domínio. E Deus não se deixa dominar pelos seres humanos. Ele é aquele que é. O ser humano dá nome aos animais e às plantas; Deus dá nome aos seres humanos; mas esses nunca deverão dar nome a Deus. E que seu nome é sua natureza profunda e essa é desvelada aos poucos.

Signifi cativamente, ainda, não são poucos os episó-dios nos quais se afi rma que “ninguém jamais viu o rosto de Deus”. E até se diz que quem visse o rosto de Deus morreria. O episódio do “véu” de Moisés é apenas um dos mais mar-cantes, mas não o único.

O próprio Cristo, imagem perfeita do Pai, manifesta Seu rosto através de lampejos que se alternam com momentos de uma certa obscuridade. O “segredo messiânico”, traduzido pelo imperativo “não digam nada a ninguém”, revela a mes-ma pedagogia divina: Deus prefere manifestar-se aos poucos, muito mais pela “brisa leve” da tarde do que entre raios e trovões.

Mesmo ressuscitado, Cristo aparece e desaparece que-rendo com isso deixar claro que o conhecimento que nos é ofe-recido é sempre mediatizado e se apoia sobre a fé, mesmo os que o enxergam com os olhos não tem percepção automática da sua divindade. Parece que a grandeza de Deus corresponde ao esconder-se e esconder seus planos; enquanto à grandeza do ser humano corresponde o empenho em buscar Deus e buscar

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o entendimento de seus planos, através de um esforço contí-nuo, guiado pela fé.

O conhecimento de Deus, mesmo depois de Jesus Cristo, é mediatizado. Uma das mediações privilegiadas para o co-nhecimento de Deus encontra-se na prática cristã, seja ela re-vestida da dimensão estritamente sacramental, seja revestida da dimensão cotidiana. Para os seguidores de Cristo, toda re-alidade humana apresenta vestígios de Deus e esses vestígios são tanto mais nítidos quanto mais captados por seguidores capazes de se identifi car com a prática do Mestre.

Só por esses acenos já se percebe que a Revelação de Deus e de seus planos não costuma cair de modo inapelável sobre os seres humanos, de tal forma que esses não possam não ver e não conhecer. Por parte de Deus, a possibilidade de vê-lo e conhecê-lo está sempre presente, mas depende das condições criadas pelos seres humanos. Deus é como uma grande central de energia, sempre disponível. Mas para que a luz brilhe e os aparelhos funcionem, se pressupõem bons condutores, boas tomadas e boas chaves. Se essas não existirem, não poderá ha-ver luz e calor. É por isso que para os grandes místicos Deus e seus planos são uma evidência, mas não para o comum dos mortais, carregados que são de resistências dos mais diversos tipos. É que os místicos intuem o que os outros no máximo deduzem.

3.3 Os limites da Teologia

A Teologia é uma espécie de síntese entre mística e razão. Tanto assim que, nos seus primórdios, a Teologia era consi-derada mais uma “sabedoria” haurida do Evangelho do que uma ciência, no sentido técnico do termo. Melhor, era conside-rada uma ciência sagrada, à qual só tinha acesso os iniciados.

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A Escolástica é que vai abrir um maior espaço para a razão, vendo na racionalidade humana algo da razão divina. Hoje, na vertente latino-americana, se conjuga ainda mais um elemento evangélico: sabedoria de vida que, iluminada pela razão deve conduzir a uma prática transformadora da realidade, visando a concreção histórica dos planos divinos.

O fi lão bíblico, do Deus Absconditus faz-se sempre pre-sente nos momentos altos da Teologia. Ao mesmo tempo que essa afi rma a possibilidade de um conhecimento real de Deus, ela acentua a transcendência do mesmo, também na linha do conhecimento. Ao contrário, os momentos baixos da Teologia se caracterizam por uma prepotência teológica. Certamente a Teologia é uma ciência, no sentido próprio do termo; contudo, não faz parte das ciências chamadas exatas, e sim das ciên-cias denominadas humanas. Em outros termos, as certezas as quais a Teologia pode chegar não procedem propriamente da capacidade humana, mas da sintonia com o Evangelho.58

O que é valido para o todo da Teologia o é, a fortiori para a Teologia Moral. O conhecimento da vontade de Deus vem afi rmado com maior ou menor segurança na exata medida em que estamos diante de uma Teologia mais ou então menos profunda. Nenhum gênio da Teologia deixou de perceber as difi culdades concretas de discernir a vontade de Deus, e muito mais de transformá-la em prática.

Essas reservas não apontam para o agnosticismo, que nega qualquer conhecimento mais signifi cativo de Deus. Elas apontam antes para o Mistério de um Deus que vai se revelan-do aos poucos e que jamais se deixa aprisionar pelo conheci-mento humano. Ele sempre é maior do que tudo aquilo que se

58 Cf. GUTIERREZ G., Teologia e ciências sociais, REB 1984, 744-795.

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pode afi rmar dele. Ele é como o sol que ilumina nossos passos: jamais pode ser atingido diretamente; mas ele “não está lon-ge de nenhum de nós. É nele que vivemos, nos movemos e existimos...”.

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