Livro traz ensaios escritos pela poetisa nos anos 70

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Livro traz ensaios escritos pela poetisa nos anos 70 1 Fábio de Souza Andrade Não há como evitar o gosto de documento que se desprende dos escritos de circunstância de Ana Cristina Cesar reunidos por Armando Freitas Filho. À poesia que brincava com os limites entre o confessional e o ficcional, ao diário íntimo e à literatura, somam-se agora os registros, datados e não menos pessoais, da trajetória crítica da poeta carioca, enfeixados em Escritos no Rio. Estão lá os poucos ensaios sisudos, exemplares de crítica universitária iniciante, ora tentativas de estudante atenta, ora de scholar precoce que muitíssimo jovem abandonou a academia. Também aparecem entrevistas e resenha que marcam seu lado militante, publicações antes dispersas pela imprensa nanica dos anos setenta, reflexos do tempo em que os livrinhos de poesia eram o passaporte certo à porta dos bares, teatros e cinemas do circuito alternativo. Os temas recorrentes denunciam a presença forte do espírito do tempo, a urgência em responder certas questões pairando no ar. Neste registro, incluem-se a busca pela especificidade da literatura feminina (que hoje redundou na proliferação de especialistas e reserva de mercado nas universidades americanas), e as maneiras de driblar o modo convencional de atingir os leitores. O tratamento que Ana Cristina dispensa a estas questões é sintomático. Procurava evitar a ingenuidade da militância fundamentalista, dogmática e cega às contradições. A consciência do risco nem sempre o evita completamente. Tomemos 1 Publicado em O Estado de São Paulo, em 13 de novembro de 1993, p. 84.

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Livro traz ensaios escritos pela poetisa nos anos 70[footnoteRef:1] [1: Publicado em O Estado de So Paulo, em 13 de novembro de 1993, p. 84.]

Fbio de Souza Andrade

No h como evitar o gosto de documento que se desprende dos escritos de circunstncia de Ana Cristina Cesar reunidos por Armando Freitas Filho. poesia que brincava com os limites entre o confessional e o ficcional, ao dirio ntimo e literatura, somam-se agora os registros, datados e no menos pessoais, da trajetria crtica da poeta carioca, enfeixados em Escritos no Rio.Esto l os poucos ensaios sisudos, exemplares de crtica universitria iniciante, ora tentativas de estudante atenta, ora de scholar precoce que muitssimo jovem abandonou a academia. Tambm aparecem entrevistas e resenha que marcam seu lado militante, publicaes antes dispersas pela imprensa nanica dos anos setenta, reflexos do tempo em que os livrinhos de poesia eram o passaporte certo porta dos bares, teatros e cinemas do circuito alternativo. Os temas recorrentes denunciam a presena forte do esprito do tempo, a urgncia em responder certas questes pairando no ar. Neste registro, incluem-se a busca pela especificidade da literatura feminina (que hoje redundou na proliferao de especialistas e reserva de mercado nas universidades americanas), e as maneiras de driblar o modo convencional de atingir os leitores.O tratamento que Ana Cristina dispensa a estas questes sintomtico. Procurava evitar a ingenuidade da militncia fundamentalista, dogmtica e cega s contradies. A conscincia do risco nem sempre o evita completamente. Tomemos a literatura das chamadas minorias, por exemplo. Ao mesmo tempo que recusa o populismo engajado que se pretende voz do povo, Ana Cristina responde a paga tributo ao movimento feminista. Refina sociologicamente o conceito de literatura de mulheres (como Virginia Woolf em A room of one own), insistindo em que mulheres se inserem no circuito literrio dirigindo-se a um crculo ntimo, escrevendo dirios e cartas origem que explora em sua poesia.Se houver uma perspectiva feminina, nos diz Ana Cristina, ela deve definir-se no texto, pelo estilo. Em benefcio dessa possibilidade, sustenta a recusa legtima da noo restritiva e depurada, nobilizante, do texto feminino que engessa Ceclia Meireles, por exemplo, na imagem da poeta de blusas rendadas e sorriso recatado, assptico.Para a gerao de Ana Cristina, essa etereidade, abstrao da vida, o pecado maior de qualquer expresso literria, feminina ou no. A forma deve ser flexvel o bastante para dar vazo experincia, ao tempo presente. O perigo a construo esttica desaparecer sob o peso da imediaticidade da violncia. A insistncia com que Ana Cristina reafirma o elemento construtivo em sua poesia nas entrevistas, e no apenas nelas, deve ser lida como sintoma da dificuldade em delimitar o que mscara, o que confisso na literatura da poca. O jorro expressivo afoga a forma, a vontade de construo denuncia sua ausncia.Tentativas de auto-anlise mascaradas sob formas diversas, os Escritos no Rio sofrem daquilo que, a propsito de Clarice Lispector, batizaram de viso do mope extrema nitidez no que diz respeito ao crculo prximo, ntimo do movimento, sua mecnica interna, e, ao mesmo tempo, incapacidade de enxergar alm do retrato de gerao.Filtradas pela de Ana Cristina, ouvimos vozes distantes e estreantes (Carlos Sssekind, Angela Melim, Marilena Felinto), formando um painel coral de uma literatura que, apresar de nfase no sujeito e na expresso individual, nos chega como um movimento que se dissolveu na expresso coletiva indiferenciada de um momento (o poemo coletivo, segundo Cacaso).Ana Cristina no pode colher louros, nem enfrentas o nus do ingresso da virada profissionalizante da poesia marginal. Mesmo assim, desde sua morte repentina (suicidou-se em 1983), seguindo de perto o lanamento de A Teus Ps pela Brasiliense, o interesse que desperta s fez crescer. Teve sua produo reunida e publicada (Inditos e Dispersos, Brasiliense, 1985), sua poesia virou vdeo e tem suscitado discusses universitrias (como o recente O desejo na poesia de Ana Cristina Cesar, de Regina H. da Cunha Lima, Ed. Anna Blume). No ter sido em vo se servir ao aprendizado dos limites objetivos de um tempo em que a poesia brasileira arranhou bastante seu brilho.