[Livro UFSC] Teoria Da Literatura II

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Teoria da Literatura II Florianópolis - 2008 Tereza Virginia de Almeida Período

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Teoria Da Literatura II

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Teoria da Literatura II

Florianópolis - 2008

Tereza Virginia de Almeida2ºPeríodo

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Governo FederalPresidente da República: Luiz Inácio Lula da SilvaMinistro de Educação: Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

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Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretora Unidade de Ensino: Viviane M. HeberleChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenador de Curso: Roberta Pires de OliveiraCoordenador de Tutoria: Zilma Gesser NunesCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

Equipe Coordenação Pedagógica Licenciaturas a Distância

EaD/CED/UFSCNúcleo de Desenvolvimento de MateriaisProdução Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsável: Thiago Rocha OliveiraAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramação: Gabriela Dal Toé Fortuna, Karina SilveiraFiguras: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxTratamento de Imagem: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxRevisão gramatical: Verônica Ribas Cúrcio

Design InstrucionalResponsável: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Verônica Ribas Cúrcio

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Copyright © 2008, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

X999y Virgínia de Almeida, Tereza. Teoria da Literatura II / Tereza Virgínia de Almeida, UFSC, UAB.— Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2008. XXXp. : XXcm ISBN 978-85-61482-11-4 1. xxxxxx. 2. xxxxxx. I. xxxxxx. II. xxxxxx. CDD 410

Elaborado por Rodrigo de Sales, supervisionado pelo Setor Técnico da

Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

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Sumário

Unidade A ..........................................................................................11A Temporalidade e a Experiência1 ............................................13

1. 1 Introdução ..........................................................................................................13

1.2 Narrativa e Experiência Humana .................................................................14

Tempo e Figuras de Duração2 ...................................................................17

2.1 A Narrativa Histórica e a Narrativa Ficcional ...........................................17

2.2 Os Diferentes Tempos na Narrativa ............................................................18

2.3 Figuras de Duração .........................................................................................21

Referências .........................................................................................24

Unidade B ...........................................................................................25Leitor, Autor e Seus lugares na Narrativa3 .............................................27

1.1 Leitor-empírico x Leitor-modelo ................................................................27

1.2 Autor Empírico e Autor-modelo .................................................................29

1.3 Considerações Finais ...............................................................................31

Narrador e Foco Narrativo4 .........................................................................35

2.1 O Narrador ...........................................................................................................35

2.2 O Foco Narrativo ...............................................................................................40

Referências .........................................................................................43

Unidade C ...........................................................................................45Ficção, Linguagem e Personagem5 ...........................................47

1.1 Personagem Como Sintoma Ficcional ......................................................47

1.2 Personagem x Ser Humano ...........................................................................50

1.3 Personagem Plana e Personagem Redonda ....................................58

1.4 Outras Tipologias para a Abordagem da Personagem de Ficção ...62

O Enredo6 ..........................................................................................................65

Referências .........................................................................................67

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Unidade D ..........................................................................................69A Adequação do Conteúdo ao Público-alvo7 ......................................71

A Narrativa no Ensino Fundamental 8 ....................................................75

2.1 A Narrativa como Parte do Cotidiano ........................................................75

2.2 A Recepção Criativa ........................................................................................76

A Narrativa no Ensino Médio 9 ................................................................81

3.1 O Cotidiano ........................................................................................................81

3.2 O Cânone Literário............................................................................................83

Algumas Palavras Sobre Você e a Narrativa10 .....................................89

Referências .........................................................................................91

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Apresentação

A disciplina Teoria da Literatura II tem como objetivo permitir a você o acesso a um conhecimento do gênero narrativo, suas especificidades e elementos constitutivos.

Para tanto, optei por abordar, ao longo desta disciplina, os aspectos teóricos da narrativa a partir de obras que você estará lendo na disciplina Literatura Brasileira II, ministrada pelo Professor Marco Antonio Castelli, acrescidos a contos que estarei designando ao longo do período.

Cada capítulo será trabalhado com referência às obras literárias, de forma que você sempre terá como avaliar a sua própria compreensão dos pressupostos teóricos através de sua capacidade de relacioná-los com os exemplos retirados dos livros que estará lendo.

As obras a que me refiro se dividem em narrativas ficcionais e narrativas his-toriográficas:

1. Narrativas ficcionais:

O cortiço de Aluízio de Azevedo,Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima BarretoDom Casmurro de Machado de AssisMacunaíma de Mário de AndradeIracema de José de AlencarVidas secas de Graciliano Ramos

2. Narrativas historiográficas:

Retrato do Brasil de Paulo PradoRaízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda

A subdivisão acima já remete a uma primeira distinção a ser estabelecida en-tre história e ficção. Esta distinção, aparentemente simples, adquire complexi-dade, na medida em que se percebe que muitas das convenções utilizadas pela ficção também estão presentes no discurso da história, que, por sua vez, pode se utilizar de elementos literários como metáforas e metonímias, o que poderá ser amplamente exemplificado pelas obras de história selecionadas e que se configuram como clássicos do modernismo brasileiro.

Isto significa dizer que quando se fala em narrativa, não se está necessaria-mente falando de conto ou romance, ou seja, de ficção. Neste sentido, será possível perceber que a narrativa ficcional apresenta suas especificidades, mas que apresenta aspectos em comum com a narrativa historiográfica.

Narrar é contar. E a narrativa está presente em nosso cotidiano de diversas formas. Em nossa fala cotidiana, comumente nos utilizamos do discurso nar-rativo para relatar acontecimentos. Quando chego a casa à noite e tenho que informar como foi meu dia no trabalho, lanço mão de uma narrativa. Digo: “Hoje, minha chefe me pediu para escrever um relatório...” ou “Hoje, um aluno deixou o celular ligado e no momento em que eu estava explicando...”

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Também é possível perceber que a narrativa está presente em outras formas de representação, como o cinema e a novela televisiva.

É importante perceber que se a narrativa é uma forma de representação, deve se diferenciar de outras formas de representação. Se o cinema também é um exemplo de narrativa, o mesmo não se pode dizer de uma tela, de uma pintura, por exemplo. E a diferença central estaria nas formas como a narrativa e a pin-tura, enquanto representações, lidam com a temporalidade.

No momento, para que você possa ter uma visão panorâmica do que será tratado ao longo do semestre, é importante examinar com atenção o que está sendo proposto no plano de ensino. A compreensão de cada uma das unidades pressupõe a leitura cuidadosa de textos teóricos. Você deve manter-se em dia com estas leituras e fazê-las na ordem em que forem solicitadas no livro-texto. Só assim poderá acompanhar o conteúdo e saber se está conseguindo estabe-lecer as relações corretamente. É uma forma também de estar apto a cumprir as atividades propostas e a participar dos debates. Portanto, é importante que você se planeje de forma a ter em mãos os textos solicitados nas datas em que forem abordados. Para isso, durante o planejamento de seu semestre, esteja ciente da disponibilidade dos textos e do tempo que levam para chegar em caso de encomenda. Se você tiver que acumular leituras, será difícil acompanhar a disciplina a contento. A solicitação de leituras obedece a um planejamento em que a viabilidade do acompanhamento está prevista. A quantidade de leitura solicitada obedece ao bom senso. Mas, se você acumular, terá um volume so-bre-humano de textos para ler e sua aprendizagem pode ser prejudicada.

Escolhi abordar quase a totalidade da disciplina servindo-me dos pequenos volumes da Série Princípios, da Ática. São obras introdutórias, porém produzi-das por teóricos consagrados e reconhecidos por suas trajetórias intelectuais e pela qualidade e extensão de suas obras.

Você poderá perceber que cada um destes pequenos livros contém uma bib-liografia rica, que você poderá consultar mais tarde com o objetivo de apro-fundar os seus conhecimentos.

Outro ponto muito importante: não acumule dúvidas. Leia o material com atenção, mas toda vez que a leitura não for suficiente para sua compreensão, dirija-se aos tutores e peça explicações.

Adquira também o hábito de fazer resumos dos pontos principais abordados nos textos teóricos. Os livros vêm divididos em capítulos curtos, que podem facilitar os seus resumos e fichamentos. Assim, você terá como estudar e como voltar aos textos com mais facilidade para estabelecer relações.

Como você já está no seu segundo período de curso, já deve ter se familiari-zado com o ambiente virtual de aprendizagem e com as possibilidades que este ambiente apresenta, mas é preciso sublinhar que nada substitui a leitura dos textos, literários e teóricos.

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Na medida em que formos trabalhando os conceitos relacionados à narrativa, vou estar constantemente remetendo você ao E-dicionário de termos literári-os, que apresenta verbetes que podem ser bastante esclarecedores e indicar bibliografia e informações complementares.

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Unidade ATempo e narrativa

FIGURA - ABERTURA DE UNIDADE

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Capítulo 01A Temporalidade e a Experiência

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1 A Temporalidade e a Experiência

Compositor de destinos

Tambor de todos os rítmos

Tempo tempo tempo tempo

Entro num acordo contigo

Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo

E pareceres contínuo

Tempo tempo tempo tempo

És um dos deuses mais lindos

Tempo tempo tempo tempo...

(Oração ao tempo, Caetano Veloso)

1. 1 Introdução

Para abordar esse primeiro capítulo, pedi que você lesse o conto de Sérgio Sant’Anna, O homem sozinho na estação ferroviária e os capítulos iniciais do livro de Benedito Nunes.

Você deve ter percebido que a relação entre o título do conto e a sua introdução leva o leitor, a princípio, a acreditar que o homem na estação ferroviária é uma personagem e talvez até mesmo a personagem principal do conto. Entretanto, após algumas indagações acerca da origem e do des-tino do viajante, sentado na estação ferroviária com uma maleta no colo, o narrador permite que o leitor perceba que o homem do qual fala está retratado em uma pintura: sua narrativa havia sido, até então, a represen-tação discursiva de uma representação pictórica, ou seja, de um quadro.

O que esta revelação deixa perceber é justamente aquilo que se tor-na específico da narrativa, ou seja, aquilo que o narrador acrescenta à representação do quadro. Claro que seria possível falar do imaginário que permite ao narrador fazer algumas afirmativas como: “Carrega to-dos os indícios de uma civilização que a Europa largou nos trópicos,

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Unidade A - Teoria da Literatura

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desamparada. Um homem colonial e conservador, embora o negue até para si mesmo”. Mas o elemento principal é a temporalidade.

A representação narrativa se distingue da representação pictóri-ca em função da dimensão temporal. Enquanto um quadro pode ser apreendido pelo olhar, de forma instantânea, ao representar uma cena estática, a narrativa se desenvolve no tempo, depende da linearidade do discurso para ser apreendida e configura um enredo que terá a tempora-lidade como dimensão necessária. Por isso, o imaginário do narrador se debruça sobre o homem da estação atribuindo-lhe um passado. “O mais terrível, porém, nesse quadro, é o que não vemos nele”. E o “mais terrí-vel” diz respeito ao passado e ao medo do futuro, ou seja, à dimensão do tempo que é inerente a toda narrativa.

Esta introdução do conto que você leu está aí para informar ao lei-tor desavisado que o tema do conto é a própria possibilidade da nar-rativa ficcional de construir mundos. Ou seja, esta introdução chama a atenção para a própria capacidade imaginativa do narrador, para o próprio ato de narrar que será capaz de recriar Mário e Oswald como entidades absolutamente ficcionais.

Tanto na narrativa ficcional quanto na narrativa histórica, o enredo organiza personagens e ações em uma linha temporal. Personagens se transformam ao longo do tempo da narrativa a partir de acontecimen-tos, sejam estes externos ou motivações internas de ordem psicológica. Não importa se o que está sendo contado seja referente ao espaço de um dia ou de um século, a narrativa terá que se desenrolar no tempo. Enquanto os elementos do quadro descrito pelo narrador podem ser apreendidos de imediato, já que apenas alguns segundos são necessários para que se visualize um homem sentado numa estação, o leitor desta pequena narrativa introdutória terá que perpassar mais de uma página para chegar a esta outra forma de representação do mesmo homem nas mesmas circunstâncias.

1.2 Narrativa e Experiência Humana

Em sua obra Tempo e narrativa, Paul Ricoeur afirma que toda obra narrativa exibe um mundo temporal. O tempo torna-se tempo humano

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Capítulo 01A Temporalidade e a Experiência

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na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da expe-riência temporal.

Esta relação entre temporalidade e narrativa faz com que a narrati-va tenha um caráter referencial: toda e qualquer narrativa reproduz, de uma maneira ou de outra, a experiência humana do tempo. Embora a ficção se defina como irreal, se apresenta como uma forma de redescri-ção da realidade, não porque descreva fatos acontecidos na realidade, mas porque toda forma narrativa reproduz a experiência humana do tempo, através da qual o ser humano vivencia o real. A relação com o tempo é recriada através da narrativa.

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Capítulo 02Tempo e Figuras de Duração

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2 Tempo e Figuras de Duração

Mandei uma mensagem a jato às entidades do tempo

já me foi verificado que nem mesmo haverá segundos

que os minutos foram reavaliados

e a cada suspiro serão dez contados.

(Dez contados, Alec Haiat/Céu)

2.1 A Narrativa Histórica e a Narrativa Ficcional

Quando uma criança demonstra curiosidade em saber como termina uma estória, está reproduzindo a mesma sensação que se tem no cotidiano em relação ao futuro. Da mesma forma, todo leitor segue uma narrativa em busca dos acontecimentos que se revelam ao longo do tempo da narrativa.

Isto não equivale a negar, entretanto, as distinções entre narrativa histórica e narrativa ficcional. A distinção básica estaria no fato de que a narrativa histórica é constrangida pelo tempo cronológico e a narrativa ficcional não.

Como exemplos, é possível citar Raízes do Brasil e Retrato do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Prado, enquanto historiadores, são forçados a obedecer à cronologia, já que pretendem buscar represen-tações para a origem da sociedade brasileira e de suas especificidades. Para tanto, ambos retomam o Brasil do período colonial, desde a chega-da do português.

Já o tempo ficcional é guiado apenas pela própria estrutura da nar-rativa em que se insere. A narrativa ficcional pode operar com anacro-nismos, interromper e inverter o tempo cronológico.

Nos capítulos que você leu do livro de Benedito Nunes, além de informações importantes acerca das relações entre tempo e narrativa,

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você encontra algumas importantes distinções e definições que devem ser bem compreendidas e das quais tratarei nos próximos itens.

2.2 Os Diferentes Tempos na Narrativa

2.2.1 Tempo Físico e Tempo Psicológico

Este capítulo diz respeito à distinção entre o tempo que pode ser medido objetivamente, em durações como minutos, dias e anos (tempo físico) e a maneira como o sujeito vivencia o tempo (tempo psicológi-co). Esta distinção, portanto, não acontece apenas na narrativa, mas em nossa própria relação cotidiana com os acontecimentos. Alguém que espera uma notícia ou o nascimento de um filho pode ter a sensação de que o tempo demora a passar, em função de seu estado psicológico dominado pela ansiedade. Alguém que está de férias em uma viagem repleta de alegrias e surpresas pode ter a sensação de que o tempo passa muito rápido. Da mesma forma, as mesmas duas horas de um filme po-dem parecer demorar mais ou menos dependendo do menor ou maior envolvimento do espectador.

No caso da narrativa, o narrador pode criar esta sensação de maior ou menor duração, dependendo da maneira como lida com a subje-tividade dos personagens e da forma como sua própria subjetividade se conecta aos acontecimentos. A morte de uma personagem pode ser contada em uma linha, mas pode também se estender por um ou mais capítulos, dependendo de como o narrador opte por abordá-la. Para que o tempo de um mesmo evento se estenda, o narrador lança mão do ele-mento causal, implícito em toda relação temporal, já que é através das relações de causalidade que os acontecimentos podem se relacionar no tempo. Narrar é justamente preencher com uma explicação o espaço entre um evento e outro.

A narrativa ficcional tira partido de todos os seus elementos para criar efeitos que possam engajar o leitor. Como exemplo, leia um bri-lhante conto do escritor Victor Giudice. O conto se chama O arquivo e foi originalmente publicado na obra do escritor chamada Necrológio, publicada em 1973.

Você pode encontrá-lo em: http://www.releituras.com/vgiudice_arquivo.asp

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Capítulo 02Tempo e Figuras de Duração

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Você deve ter percebido que a brevidade da narrativa é funcional no conto de Victor Giudice - observe como ela se relaciona intimamente com o seu conteúdo. As frases curtas e a rapidez com que um corte sala-rial se sucede a outro na vida de João reproduzem a frieza da burocracia, frieza esta que é reproduzida pela maneira sintética com que o narrador narra os fatos, de forma objetiva, crua. Desta forma, o leitor é surpreen-dido justamente pela crueza com que a vida de João fracassa a ponto de o funcionário se transformar em um arquivo de metal. Observe como esta transformação opera uma redução que é reproduzida ao longo do conto pela maneira econômica com que os fatos são narrados. Ou seja, a mediocridade da vida de João e a anulação de sua subjetividade por um sistema que explora sua força de trabalho se reproduzem na frieza e brevidade com que os fatos mais cruéis e inusitados, como os cortes salariais, são contados pelo narrador.

2.2.2 Tempo Cronológico e Tempo Histórico

O tempo cronológico está relacionado ao tempo físico, mas não é idêntico a este. Ao mesmo tempo em que pode ser mensurado, se or-ganiza a partir de datas que se tornam referência para outras, para o estabelecimento de relações de anterioridade e posterioridade.

Já o tempo histórico está relacionado com outro tipo de medida: a for-ma como se configuram unidades para a abordagem dos acontecimentos e seus processos de transformação. Assim como na história política, o tempo histórico se dá por unidades como Idade Média e Idade Moderna, na his-tória da literatura, o tempo histórico se configura através da periodização literária: Romantismo, Realismo, Modernismo, Pós-modernismo, etc.

É importante assinalar que como o tempo histórico é cultural e de-corre de um conjunto de valores, pode ser relativizado por novas gerações de historiadores, que podem criar novas unidades para se referir ao passa-do (e ao presente) através da percepção diferenciada dos acontecimentos e de seus efeitos e conexões causais. Por exemplo, o termo barroco surge a partir do séc. XIX. Antes disso, aquilo que se compreende como barroco era compreendido em continuidade com o clássico. Ou seja, a cultura do século XIX permitiu que os historiadores percebessem sutilezas na cultu-ra e nas artes do século XVII que não haviam até então sido percebidas.

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2.2.3 Tempo lingüístico e tempos verbais

Neste capítulo, Benedito Nunes procura elaborar uma distinção entre o tempo do discurso e o tempo verbal utilizado em uma narra-tiva. A narrativa pode se utilizar de verbos no passado, mas apresentar um narrador que se posicione claramente no presente, distanciado dos acontecimentos.

Na verdade, o presente é sempre o eixo temporal a partir do qual os eventos se ordenam. Embora Dom Casmurro de Machado de Assis conte uma história que remonta ao passado ao refazer todo o percurso da paixão do narrador por Capitu, na medida em que se apresenta como uma narrativa em primeira pessoa, a obra acaba sendo sobre o estado presente da personagem principal. Como poderemos ver em um próxi-mo capítulo, o presente do discurso do já maduro Dom Casmurro é o ponto central da narrativa. A maneira como esta organiza os aconteci-mentos do passado através do discurso faz com que a temática do livro seja a própria visão parcial do narrador-personagem sobre os fatos, uma visão que se dá no presente da escrita. Observe este trecho, que abre o capítulo II de Dom Casmurro:

Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.

Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lem-brou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu.

(grifos meus) (ASSIS, Machado de . Dom Casmurro. 5ª edição. São Paulo, FTD, 1999, p.18)

Observe os verbos que coloquei em negrito e perceba como o nar-rador do livro se posiciona no presente da escrita, em sua vida presente, através da descrição da casa em que mora, para, então, remontar ao pas-sado como forma de configurar explicações para o presente. Este movi-mento entre o presente e o passado da escrita que se dá neste pequeno trecho é o mesmo movimento que se reproduz ao longo de toda a nar-

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Capítulo 02Tempo e Figuras de Duração

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rativa. O passado é sempre retomado e recontado para que o narrador estabeleça relações de causalidade que justifiquem, diante do leitor, seus atos e crenças no presente.

2.2.4 Tempo da história e tempo do discurso

No segundo capítulo, Benedito Nunes trata da dualidade que existe na narrativa entre história e discurso. A história diz respeito à realidade narrada, aos personagens e acontecimentos. A mesma história pode ser contada por uma narrativa literária e por um filme, por exemplo. Já o discurso refere-se ao modo de narrar. Esta distinção vai operar outra distinção: entre o tempo da história e o tempo do discurso. O primeiro se refere ao tempo sobre o qual se narra e o segundo ao próprio tempo da narrativa. O fato de uma narrativa tratar de um menor ou maior es-paço de tempo nada tem a ver com o tempo da narrativa em si. Três sé-culos podem ser contados por uma rápida sucessão de acontecimentos que torna a narrativa rápida. Macunaíma, por exemplo, é uma narrativa rápida. São muitos acontecimentos e transformações narrados, mas o narrador dá conta de toda a vida de Macunaíma em um pequeno livro. Por sua vez, um dia pode durar muitas e muitas páginas em uma narra-tiva lenta, repleta de digressões do narrador.

Tal como demonstra Benedito Nunes, ao analisar uma citação do conto de Machado de Assis A causa secreta, o tempo do discurso nem sempre obedece à ordem dos acontecimentos. O tempo da narrativa é medido em função das relações entre o tempo do narrar e o tempo narra-do. No caso do conto A causa secreta, existe uma relação significativa en-tre a desobediência à ordem cronológica e a dramaticidade da narrativa.

É procedimento comum os narradores iniciarem seus romances com a apresentação de personagens em um tempo mais próximo do presente para só depois remontarem ao passado, em busca do estabele-cimento de causalidades.

2.3 Figuras de Duração

Benedito Nunes apresenta algumas figuras de duração que você pode identificar ao longo da leitura das obras de Literatura Brasileira. São elas:

É o que se chama de anacronia, uma vez que a estratégia se dá como desobediência ao tempo cronológico.

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sumárioa) : quando a narrativa abrevia os acontecimentos em um

tempo menor do que o da suposta duração na história.

alongamentob) : quando a narrativa, ao contrário do que ocorre

no sumário, prolonga o tempo de duração do discurso, de forma

que a narrativa dura mais que o tempo da história.

pausac) : quando o tempo da história se interrompe para dar lugar

à descrição.

elipsed) : quando se dá a omissão de um acontecimento que pode

ou não vir a ser revelado no decorrer da narrativa.

Tal como afirma Benedito Nunes, estas figuras de duração corres-pondem a figuras retóricas de crucial importância no que diz respeito aos processos de estruturação da narrativa, já que são figuras relaciona-das aos efeitos estéticos advindos das diferenças de andamento. Estes efeitos, por sua vez, serão de extrema importância na relação que o lei-tor estabelece com o discurso narrativo.

A partir da leitura dos romances designados na disciplina Litera-tura Brasileira II, você pode encontrar exemplos das figuras de duração acima descritas.

Como exemplo de elipse, posso citar os acontecimentos que envol-vem o caráter do relacionamento entre Capitu e Escobar. O narrador em primeira pessoa tem apenas uma visão parcial dos fatos e o leitor não pode acessar nenhuma informação que comprove as suspeitas do narrador em torno da traição da esposa e do amigo.

Ao longo de toda a narrativa de Dom Casmurro, há exemplos de outra figura de duração, a pausa, já que o narrador, em diversos mo-mentos, interrompe a história para se ater a reflexões. O capítulo LXIV, Uma idéia e um escrúpulo, é um exemplo. Constantemente, ao longo do romance, o narrador comenta capítulos anteriores, tornando explícito o caráter textual da narrativa.

O primeiro capítulo de Macunaíma de Mário de Andrade é um bom exemplo de sumário. Em um único capítulo, o herói nasce e cresce.

Personagens de Dom Casmurro

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Capítulo 02Tempo e Figuras de Duração

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A narrativa se torna ágil principalmente porque se dá constantemente a intervenção do elemento mágico:

A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou chora-mingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, e botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo.

(ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo, Itatiaia, 1981, p.10)

Observe como a linguagem do narrador sintetiza as informações tornando-se ágil como a conexão dos acontecimentos.

Como você pode ver pela consulta ao verbete, o termo anisocro-nia se refere a estas mesmas figuras de duração abordadas por Benedito Nunes.

Ao longo de sua leitura dos romances, fique atento ao apareci-mento destas figuras e vá anotando exemplos. Este exercício será muito importante para o estabelecimento de relações e para a fi-xação das categorias estudadas.

A próxima unidade de nosso programa prevê a abordagem de duas instâncias do discurso narrativo: o autor e leitor. A compre-ensão desta distinção é crucial para que se percebam as nuances do discurso ficcional e para que se torne possível uma atividade de análise literária.

Para abordar o tema, escolhi pedir que leia os dois primeiros ca-pítulos do livro de Umberto Eco intitulado Seis passeios pelos bos-ques da ficção.

Ao longo destes capítulos, Umberto Eco estará conceituando alguns elementos relacionados à narrativa: autor empírico e autor-modelo, lei-tor empírico e leitor-modelo.

Autor e leitor são termos familiares a você. Mas Umberto Eco ela-bora a definição destas instâncias para dar conta da complexidade ine-rente ao universo ficcional.

Para mais informações sobre o assunto, peço que leia o verbete anisocronia do E-dicionário de termos literários. http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/anisocronia.htm

Vale, ainda, ressaltar que Umberto Eco, além de teórico, é autor de roman-ces consagrados como O Nome da rosa e O pêndulo de Foucault. Ambos se configuram como leituras de grande interesse.

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Unidade A - Teoria da Literatura

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Creio que os dois primeiros capítulos do livro sejam suficientes para a compreensão destas definições, mas sugiro que adquiram o livro e que o leia por inteiro, pois se trata de uma obra muito interessante para aqueles que desejam compreender as nuances e especificidades do discurso ficcional.

Referências

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1997.

GIUDICE, Victor. Necrológio. Rio de Janeiro: Editora do Pasquim, 1973.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 2003

PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. v. I. São Paulo: Papirus, 1994.

SANT’ANNA, Sérgio. A Senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Leia mais!

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, v. I. São Paulo: Papirus, 1994.

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Unidade BOs lugares textuais

FIGURA - ABERTURA DE UNIDADE

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Capítulo 01Leitor, Autor e Seus Lugares na Narrativa

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1 Leitor, Autor e Seus lugares na Narrativa

Como uma encadernação vistosa feita para iletrados a mulher se enfeita

mas ela é um livro místico e somente a alguns

a que tal graça se consente é dado lê-la

(Elegia, Péricles Cavalcanti e John Donne,

tradução de Augusto de Campos)

1.1 Leitor-empírico x Leitor-modelo

Umberto Eco se refere à narrativa ficcional como a um bosque. Com esta imagem, Eco pretende apontar para o fato de que para ler ficção, é preciso percorrer caminhos e se encontrar em um percurso que às vezes mostra certas artimanhas.

O primeiro ponto a se reconhecer no pensamento de Eco diz respeito ao fato de que ao adentrar o universo ficcional, o leitor está participando de um jogo. Todo jogo tem regras definidas. Quando uma criança ouve o “era uma vez” de um conto de fadas e aceita como possível a fruição de uma narrativa em que os bichos falam e os príncipes são encantados, está aceitando as regras daquela forma de ficção: os fatos narrados não devem ser testados segundo as leis físicas do mundo cotidiano.

O mesmo ocorre quando você lê Macunaíma e aceita que o he-rói possa mudar de cor, transportar toda a casa da família para o lado do rio, aprender a língua portuguesa culta de um capítulo para outro e escrever às Icamiabas, entre outras peripécias. Nada disto é, entretan-to, uma opção do leitor. A narrativa indica ao leitor como ele deve se comportar. Logo nas primeiras páginas de Macunaíma, descobrimos, através do narrador, que se trata de uma narrativa que pertence ao ma-ravilhoso, mesmo que não conheçamos o conceito.

Ao tratar do tempo na narrativa, citei o trecho em que o herói Ma-cunaíma se transforma “num átimo” em um príncipe lindo. Trata-se de

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uma intervenção mágica que faz com que o leitor imediatamente com-preenda que, naquela obra, deve tomar como possíveis estas formas de intervenção, às quais estarão submetidas os personagens e a partir dos quais se estabelecem transformações. Estas transformações se tornam, então, verossímeis dentro da narrativa porque esta estabeleceu suas re-gras próprias e as indicou ao leitor.

Por outro lado, livros como Triste fim de Policarpo Quaresma e O cortiço apresentam narradores que nos levam a um comportamento dis-tinto enquanto leitores. Nestes casos, as narrativas em terceira pessoa funcionam dentro das convenções realistas.

O autor do discurso historiográfico também se utiliza de convenções realistas, já que pressupõe um leitor-modelo que, ao contrário do leitor de Macunaíma, possa tomar as afirmações e informações fornecidas pela narrativa como verdadeiras. Além da utilização do narrador neutro como forma de escamotear a subjetividade do ponto de vista, também utilizado pela ficção, o narrador historiográfico faz referências a documentos histó-ricos, data, locais e personagens passíveis de comprovação.

Cada narrativa pressupõe um leitor-modelo e este não coincide com a pessoa que está lendo. O leitor com biografia, data de nascimento e in-dividualidade é o leitor que existe no mundo real e a quem Umberto Eco denomina leitor empírico. Já leitor-modelo é uma instância ficcional, um lugar ideal de leitura a ser inferido e ocupado pelo leitor empírico.

Vou tentar esclarecer melhor. Primeiro, através de um exemplo dado pelo próprio Eco. É possível chorar diante de uma comédia caso esteja-mos em um dia ruim. Mas o leitor-modelo de uma comédia deve rir. O autor dá voz a um narrador que se expressa de tal maneira que o leitor deva perceber o seu discurso como um discurso humorístico e responder a este com o riso. O mesmo acontece com a ironia. Quando um autor se expressa de forma irônica, pressupõe uma leitura ideal em que se é capaz de compreender que o que está sendo escrito não deve ser lido de forma literal. Este leitor, capaz de decodificar a ironia, é capaz de estabelecer re-lações, de perceber conflitos entre o que está sendo escrito e as crenças do narrador, em outras palavras, deve ser um leitor perspicaz. Caso o autor não previsse um leitor assim, não criaria um narrador que escrevesse de forma irônica, pois a ironia pressupõe certa complexidade de ordem in-

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Capítulo 01Leitor, Autor e Seus Lugares na Narrativa

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telectual. Da mesma forma, o autor pressupõe um leitor que compreenda que aquilo que é escrito pelo narrador não necessariamente coincide com suas crenças. Mas isto é um capítulo para mais adiante.

O importante no momento é compreender que, enquanto leitor-empírico, posso não perceber ironia e ler um texto de forma literal (às vezes, em função do desconhecimento de algum elemento necessário para a percepção da ironia), posso estar de mau-humor e não conseguir rir diante de um texto humorístico. Estarei, em todos estes caso, sendo um mau leitor, mas há um lugar ideal pressuposto. Este lugar é apenas ideal. Talvez nunca seja de fato preenchido por ninguém. Entretanto, é a crença nesta idealidade que faz da crítica literária um campo fértil e de estudos complexos. O crítico literário é um leitor sofisticado que procura inferir o leitor-modelo dos textos.

Enquanto leitor-empírico, você é uma pessoa, mas é capaz de perce-ber que Macunaíma e Iracema são narrativas que solicitam de você com-portamentos diferenciados e, portanto, requerem diferentes leitores-mo-delo. Diferentes formas de reação são ativadas pelos distintos romances.

Neste sentido, Umberto Eco estabelece uma distinção entre leitor-modelo de primeiro nível e leitor-modelo de segundo nível.

O leitor-modelo de primeiro nível é aquele lugar de leitura referen-

te à capacidade do leitor de acompanhar o desenrolar da narrativa,

está mais relacionado à capacidade da narrativa de entreter, prender

a atenção, manter curiosidade, criar suspense. Já o leitor-modelo

de segundo nível é este, mais próximo do crítico literário.

1.2 Autor Empírico e Autor-modelo

A estas alturas, você deve já ter estabelecido alguma analogia que permita concluir o que são o autor-empírico e o autor-modelo. Na ver-dade, a simetria entre autor e leitor empíricos é perfeita. Assim como o leitor empírico, o autor empírico é a pessoa, o homem ou mulher que, por algum motivo, escolheram a função social de escritor. É a esta

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pessoa que se dedicam os biógrafos, mas, em geral, salvo raríssimas ex-ceções, o autor-empírico pouco interessa à crítica literária.

Já o autor-modelo se confunde, de certa forma, com este lugar que se denomina estilo e que acaba atendendo pelo nome de pessoa. Quando os críticos literários falam da literatura de Machado ou de Aluízio de Azevedo, da prosa de Lima Barreto, estão se referindo a uma forma de escrever, à voz que dá instruções ao leitor-modelo.

Basta que você compare Macunaíma e Iracema para perceber que estas narrativas pedem de você que se comporte de forma diferente enquanto lei-tor-modelo porque, enquanto autores-modelo, elas também são totalmente distintas. Macunaíma se organiza com rapidez, apresenta peripécias, é uma narrativa risível. Iracema é poética, repleta de imagens, se apóia na beleza da linguagem utilizada. Estes estilos distintos são vozes distintas que, por sua vez, delineiam diferentes estilos de leitura. O estilo de uma narrativa corresponde ao que Umberto Eco chama de autor-modelo.

Mais uma vez, o exemplo da ironia é bastante apropriado. O esti-lo irônico delineia o leitor de ironia. Sem um discurso que se organize através de indicações de que deva significar o oposto ou além do que diz, ou seja, de que não deva ser lido de forma literal, não é possível a existência de um leitor que infira ironia. Caso isto ocorra, estaremos diante de um mau leitor, pois aquele que vê ironia onde ela não existe apenas terá se equivocado, já que é o autor-modelo, no caso o estilo do discurso, que configura os marcadores de ironia.

Na disciplina Teoria da Literatura I, você leu o ensaio de Roland Barthes intitulado “A morte do autor”. Neste ensaio, se torna clara a idéia de que o autor é uma invenção moderna e que não se pode atri-buir à intencionalidade do autor o correto significado da obra literária. Interpretar um texto não é, ao contrário do que diz o senso comum, descobrir o que o autor quis dizer, já que o autor não controla todos os significados do texto que escreve.

Você deve lembrar também que o ensaio de Barthes esclarece que questiona a centralidade do autor, ao lembrar que nas sociedades etno-gráficas, um mediador ou um recitador, não o autor, são aqueles que veiculam a narrativa.

Caso você deseje se apro-fundar no estudo da ironia,

consulte a obra de Linda Hutcheon intitulada Teoria

e política da ironia. Belo Horizonte, UFMG, 2000.

Sugiro que você faça uma revisão do material im-

presso da última unidade da disciplina Teoria da Lite-ratura I e releia o ensaio de Roland Barthes, pois agora

você já tem mais condi-ções de aprofundar os

conteúdos anteriormente abordados.

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Capítulo 01Leitor, Autor e Seus Lugares na Narrativa

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Barthes assinala o fato de que o autor adquire centralidade na so-ciedade moderna justamente pela ênfase que esta dá ao indivíduo e à pessoa. Em sociedades em que o saber é concebido como patrimônio coletivo, as narrativas são transmitidas de geração a geração pelos me-diadores, sem que se dê importância a suas origens.

1.3 Considerações Finais

É importante perceber o quanto as definições de autor-modelo e leitor-modelo como instâncias da narrativa, estratégias ficcionais, ad-vêm de uma reação generalizada da crítica literária à antiga tendência de acreditar que ler uma obra correspondia a descobrir e revelar as in-tenções do autor, como se a entidade empírica fosse detentora da verda-de acerca do significado do texto.

Antes da invenção da imprensa, a literatura era veiculada através de narrativas orais e do canto dos trovadores, ou seja, através do próprio corpo e da co-presença física da audiência. Após a invenção da impren-sa, que se deu no século XV, o corpo do autor foi recalcado e em seu lugar surgiu uma idéia abstrata de sujeito e de subjetividade.

Ao longo do século XX, a literatura buscou se desenvolver como ciên-cia, de forma a possibilitar a abordagem do texto como entidade autôno-ma, independente do autor e de sua intencionalidade ao escrever a obra.

Ao criar categorias internas ao texto que incluem tanto a autoria quanto a recepção, Umberto Eco traz as intenções da obra para dentro de sua própria estrutura.

Por outro lado, ao longo dos anos, o papel do leitor foi sendo cada vez mais valorizado e há correntes como a estética da recepção que cen-tralizam no leitor a sua atenção.

O verbete relativo ao “autor” apresenta como ponto central justamen-te a maneira como a figura do autor se enfraquece ao longo do século XX, com o desenvolvimento de tendências críticas centradas no texto. Como você pode perceber, o verbete cita o ensaio de Roland Barthes. Não se trata, entretanto, de mera coincidência. O ensaio com o qual você entrou em contato na primeira fase do curso é um clássico dos estudos literários,

Gostaria que você voltasse no E-dicionário de termos literários e lesse os diver-sos verbetes disponíveis referentes a autor, leitor e “estética da recepção”.

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Unidade B - Teoria da Literatura

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assim como as reflexões de Foucault também citadas no verbete.

Em sua obra intitulada O que é um autor, o filósofo francês Michel

Foucault defende a idéia de que a autoria é uma função que se atri-

bui a certas formas textuais como os textos literários, mas não a todo

e qualquer tipo de texto. Isto corresponde a dizer que, embora haja

alguém que assine um texto e a quem se atribua a identidade por

sua originalidade, por mais criativos que sejam os textos, só existem

porque houve a recepção, a leitura de textos anteriores, sendo im-

possível rastrear a verdadeira origem de textos e idéias. Daí o fato de

se compreender a autoria como uma convenção.

Claro está que a autoria é também algo típico da cultura moderna que, como vimos, valoriza o indivíduo e a individualidade e, por conse-guinte, a originalidade e o talento individual.

Caso você tenha interesse em aprofundar sua compreensão das relações entre a modernidade enquanto cultura e a estética moderna, compreendida como aquela que se manifesta do Pré-Romantismo, sugiro que você procure a obra Os filhos do barro do poeta e crítico mexicano Octavio Paz, publicada pela Editora Nova Fronteira, em 1984. Trata-se de um livro esgotado, mas que pode ser encontrado em bibliotecas e sebos.

Os verbetes referentes às diversas denominações dadas à figura do leitor podem ser assim resumidos:

leitor cooperante:a) aquele que lê de acordo com os critérios da comunidade interpretativa a que pertence. Neste sentido, o ato de leitura não é visto como um ato individual, e sim como um ato coletivo, na medida em que as leituras podem ser comparti-lhadas por um ou mais indivíduos que formam o que se chama de comunidade interpretativa. Por exemplo, é possível que se realize uma leitura psicanalítica de um texto quando esta está

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Capítulo 01Leitor, Autor e Seus Lugares na Narrativa

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disponível para determinada comunidade interpretativa, o que torna possível o estabelecimento de um consenso ou, ao menos de aceitabilidade em torno desta leitura.

leitor implicadob) : também chamado de implícito ou narratário. Trata-se do leitor fictício previsto pelo texto e que acaba funcio-nando como um dos personagens. Por exemplo, Macunaíma é uma obra que pressupõe um leitor capaz de neutralizar seus valores morais e éticos em torno do bem e do mal e se tornar cúmplice do herói. O herói, apesar de suas estripulias, inspira simpatia. Ao simpatizar com Macunaíma, estamos assumindo esta máscara prevista pela organização da narrativa.

leitor realc) : diz respeito ao leitor individual que lança mão de seus valores no ato de leitura.

leitor informadod) : é aquele que apresenta não apenas competên-cia lingüística, mas também competência literária para compac-tuar com aquilo que é exigido pelo discurso literário. Por exem-plo, um indivíduo pode ser capaz de ler em língua portuguesa e deter conhecimento gramatical, mas não ser capaz de compre-ender figuras de linguagem utilizadas pelo texto literário.

No verbete relativo ao “leitor”, a autora mapeia as diversas teorias que, ao longo do século XX, permitiram a maior centralidade do lei-tor na abordagem do texto literário. Destas, destaquei a Estética da re-cepção, que parte do pressuposto de que o leitor não é apenas aquele que identifica um sentido pré-existente, mas é soberano ao escolher a interpretação adequada. Isto faz com que os textos adquiram sentidos diferentes de acordo com os contextos históricos e culturais em que são recebidos. É importante, entretanto, perceber que não se trata aqui de defender a idéia da pertinência de qualquer leitura individual, e sim da possibilidade da diversidade de sentidos para um mesmo texto a partir de sua inscrição em diferentes comunidades interpretativas.

Para o próximo capítulo, gostaria que você lesse o texto de Walter Benjamin intitulado O narrador, que se encontra no livro Magia e técnica, arte e política, bem como os dois primeiros capítulos do livro de Ligia Chiappini intitulado O foco narrativo.

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Capítulo 02Narrador e Foco Narrativo

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2 Narrador e Foco Narrativo

Alguém falou que ouviu de alguém

que ouviu de alguém que disse

ter ouvido alguma coisa sobre mim

uma história mal contada,

mal falada, mal ouvida

uma história bem ruim

(Resto do Mundo. Paulinho Moska)

2.1 O Narrador

Apesar de ter o subtítulo de Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, escritor russo do século XIX, não é por conta deste escritor que este artigo de Walter Benjamin nos interessa, mas sim em função do fato de apresentar algumas considerações importantes acerca das origens da narrativa.

Benjamin chama atenção para a relação entre narrativa e experi-ência naquele que se compreende como o narrador tradicional, aquele que narra através da oralidade. É esta relação com a experiência que Benjamin detecta no narrador arcaico e que será mais e mais neutrali-zada no romance.

Ao longo de seu artigo, Benjamin estabelece uma gradação que vai da narrativa oral, passa pelo romance e chega à era da informação. En-quanto teórico marxista, ligado à Escola de Frankfurt, Benjamin rela-ciona esta transformação na forma de abordagem dos fatos ao processo de consolidação da burguesia e do capitalismo, ao qual se relaciona a invenção da imprensa. O predomínio da informação corresponderia justamente a uma sociedade em que a experiência é neutralizada e a vi-vência dos fatos é coletivizada através dos meios de comunicação: “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos po-bres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos nos chegam

Na disciplina Teoria da Literatura I você estudou o gênero épico. A poesia épica é a origem da nar-rativa e está relacionada à oralidade: uma narrati-va com métrica e ritmo, memorizada e cantada por poetas, de geração em geração.

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acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da in-formação” (BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política. Rio, brasiliense, 1987, p. 203).

Tal como afirma Benjamin, o primeiro grande romance é Dom Quixote de Miguel de Cervantes. O romance representa a passagem de-finitiva da narrativa para a escrita. Isto não quer dizer, entretanto, que as marcas de oralidade não possam estar presentes no romance e esta permanência é justamente o que é valorizado por Benjamin.

Na literatura brasileira, um grande exemplo da sobrevivência de traços da oralidade no romance é a obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, romance em primeira pessoa em que Riobaldo conta sua história dirigindo-se a um interlocutor fictício.

Para Benjamin, a invenção da imprensa irá representar uma rela-ção de afastamento entre o narrador e o leitor: “A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (Idem, ibidem, p. 201). Benjamin vê o narrador oral como o portador de experiências vividas que são incorporadas à experiência do ouvinte. A narrativa oral pertence à coletividade. Já o narrador do ro-mance representa o indivíduo isolado e distanciado daquilo que narra. No limite, a informação escamoteia mais e mais as marcas do narrador para ir em busca da apresentação do fato em si.

Não será difícil perceber que, apesar de estarmos inscritos em uma cultura que valoriza as informações advindas do texto impresso, como livros, revistas e jornais, o narrador oral sobrevive nos dias atuais. Pais e mães continuam contando histórias a seus filhos, narrativas memori-zadas e transmitidas de geração a geração. Nas culturas tradicionais, os mais velhos costumam ser os detentores de informações sobre o passa-do transmitidas às novas gerações através da oralidade.

No volume I da coleção História da vida privada no Brasil, você pode encontrar um capítulo intitulado O que se fala e o que se lê de Luiz Carlos Villalta. A temática é a escassez de livros no Brasil Colo-nial e todo o controle que era mantido em torno da cultura livresca,

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Capítulo 02Narrador e Foco Narrativo

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acessível apenas a alguns indivíduos pertencentes à elite, como o cle-ro e os advogados. Era comum, então, tanto a memorização de obras por alguns indivíduos que eram capazes de contar romances e obras que tinham de cor, quanto a reunião das famílias e de associações em torno da leitura oral, devido à escassez de livros destinados à leitura individual.

Tal como afirma Ligia, Platão estabelece uma distinção significati-va entre imitar e narrar, na medida em que sua preocupação se direcio-na à idéia de real e de verdade. Para Platão, a poesia é uma imitação em segundo grau, porque se dá dentro de um mundo que já é um simulacro, uma imitação do Mundo das Idéias.

Aristóteles, por sua vez, também reconhece a poesia como imitação, mas não vê nisto algo negativo. Para ele, a imitação é um atributo huma-no que coloca o homem em posição superior em relação a outros seres.

Ligia Chiappini escolhe abordar brevemente um filósofo que siste-matizou os pensamentos de Platão e Aristóteles: Hegel. Em sua obra Es-tética, Hegel aborda os gêneros épico, lírico e dramático a partir de suas relações com a objetividade. O épico seria objetivo, o lírico subjetivo e o dramático seria objetivo-subjetivo. Esta distinção é crucial para que Hegel introduza sua concepção do romance que tem origem no épico, mas que se alimenta dos três gêneros: lírico, épico e dramático. Neste sentido, o gênero dramático e o gênero épico se entrelaçam na comple-xidade inerente ao foco narrativo e o gênero lírico estará cada vez mais presente no romance através da poeticidade da narrativa.

Em seguida, Chiappini lança mão do pensamento de Wolfgang Kayser e de sua distinção entre o gênero épico e o romance. Esta distin-ção já está presente no artigo de Benjamin. A passagem do épico ao ro-mance pressupõe um processo de individuação. Para isso, Kayser chama a atenção para o fato de que o herói do poema épico representa valores coletivos, seu narrador compartilha dos valores de seu público. No caso do romance, o narrador, os personagens e o leitor sofrem um crescente processo de particularização.

A partir daí, Chiappini vai abordar, além de alguns teóricos, o es-critor Henry James e suas visões acerca do foco narrativo.

Você leu poemas épicos no primeiro período do curso, assim como as refle-xões de Aristóteles sobre o tema. Está, portanto, apto a compreender esta breve introdução feita por Ligia Chiappini acerca dos pensamentos de Aristóte-les e Platão.

Como você viu no semes-tre anterior, a imitação em Aristóteles tem o nome de mimese.

Para enriquecer seus conhecimentos acerca do narrador, peço que, mais uma vez, consulte o E-dicionário de termos literários: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/N/narrador.htm

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Dentro deste panorama, vou selecionar um conceito que pare-ce digno de nota. Trata-se do autor implícito, apresentado por Wayne C. Booth. Este conceito já foi citado no E-dicionário de termos literários e se opõe às idéias de Percy Lubbock, pois sugere que a narrativa não deve ir em busca apenas de verossimilhança, mas dos efeitos que se quer alcançar. Estes efeitos são decididos pelo autor implícito, que se mascara através do narrador, mas que é, na verdade, a instância que define como se estrutura o uni-verso ficcional. O autor implícito é a projeção na materialidade da linguagem do próprio autor real. Em função disto, creio ser possível estabelecer uma analogia entre autor-implícito de Booth e o autor-modelo de Umberto Eco.

Chiappini apresenta, ainda, a tipologia de Jean Poullon: a visão por trás, a visão com e a visão de fora:

visão por trása) : trata-se do narrador onisciente, que domina to-dos os elementos sobre a vida dos personagens e seu destino.

visão comb) : o narrador que só tem conhecimento do que a pró-pria personagem sabe sobre si.

visão por forac) : o narrador só descreve sem demonstrar nenhum conhecimento para além do que pode ser visto exteriormente.

Portanto, este é um desafio para você: refletir sobre a adequação des-tas diferentes tipologias aos romances que está lendo”.

Chiappini apresenta as relações que Maurice-Jean Lefebve estabelece entre narrador, diegese e discurso. Cabe ressaltar, em primeiro plano, que os termos diegese e discurso correspondem aos dos mesmos conceitos que utilizamos em capítulo anterior sob os nomes de história e discurso. O primeiro se refere aos acontecimentos e o segundo à forma de narrá-los.

Como é possível perceber, o foco de Lefebve reside na maior ou me-nor ênfase que cada narrativa dá à história e ao discurso. No romance clássico, caracterizado por um narrador com visão “por trás”, há o equilí-brio entre história e discurso, entre diegese e narrativa. Na “visão com”, há

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Capítulo 02Narrador e Foco Narrativo

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a predominância do discurso sobre a narrativa, ou seja, a forma de narrar se torna mais importante do que o que é narrado. Observo aqui que esta forma de romance acaba por encontrar fronteiras com o gênero lírico. Na “visão por fora”, há o predomínio da história sobre o discurso. Neste tipo de romance, a narrativa quase não se deixa ver enquanto materialidade.

No que se refere aos romances estudados em Literatura Brasileira II, creio ser possível caracterizá-los da seguinte maneira, a partir desta tipologia:

Visão por trásVisão comVisão por fora

Além das definições já estudadas, em que o mais importante a fri-sar é a distinção definitiva existente entre narrador e autor, sendo o pri-meiro uma instância ficcional mesmo que não faça parte da trama en-quanto personagem, o E-dicionário apresenta ainda três outras formas de classificação do narrador, apresentadas por Gerard Genette na obra Discurso da narrativa:

narrador autodiegéticoa) : é aquele que narra suas próprias expe-riências, ou seja, é o mesmo que narrador-personagem. É o caso do narrador do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

narrador heterodiegéticob) : é aquele que não faz parte da tra-ma. É o caso dos narradores de Iracema, Triste fim de Policarpo Quaresma e O cortiço.

narrador homodiegéticoc) : é aquele que é personagem da tra-ma, mas não o personagem principal.

Para a próxima etapa, gostaria que você lesse o segundo capítulo do livro de Ligia Chiappini, intitulado O foco narrativo, ou seja, o capítulo A tipologia de Norman Friedman, e o artigo de Silviano Santiago intitu-lado Retórica da verossimilhança, que se encontra no livro Uma literatu-ra nos trópicos. Este último é um estudo do romance Dom Casmurro de Machado de Assis que demonstra de forma brilhante a importância do foco narrativo para a compreensão de um texto literário.

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2.2 O Foco Narrativo

No segundo capítulo de seu livro, Ligia Chiappini apresenta a tipo-logia a partir da qual Norman Friedman conceitua as diversas formas de narrador:

narrador onisciente intrusoa)

narrador onisciente neutrob)

“eu” como testemunhac)

narrador-protagonistad)

onisciência seletiva múltiplae)

onisciência seletivaf)

Vamos abordar primeiro os tópicos a, b, e e f, referentes à noção de onisciência e às formas de narrador que lhe são correspondentes.

A distinção entre o narrador onisciente intruso e o narrador onis-ciente neutro é que o primeiro tece comentários sobre as personagens, os costumes, a moral, etc. e o segundo se limita a apresentar os fatos, evitando qualquer tipo de intromissão. A subjetividade do narrador onisciente neutro é escamoteada ao máximo para que obtenha o efeito de objetividade.

No caso da onisciência seletiva múltipla o narrador é onisciente ape-nas em relação a algumas personagens da trama. Esta estratégia permite, por exemplo, manter em segredo aspectos relativos a outras personagens cujas atitudes podem ser cruciais para o desenvolvimento da trama.

Já a onisciência seletiva diz respeito a um narrador que é oniscien-te apenas em relação a uma única personagem. Neste caso, o narrador sabe mais que a personagem sobre si mesma e seu destino, mas apenas e tão somente em relação a esta, mantendo-se cego em relação ao restante das personagens.

O “eu” como testemunha é um narrador em primeira pessoa, mas que não participa da trama. A utilização da primeira pessoa neste caso tem, em geral, o objetivo de dar verossimilhança à narrativa, já que o nar-rador se comporta como se tivesse sido testemunha daquilo que conta.

A onisciência diz respeito a uma posição do sujeito que se coloca acima dos

acontecimentos. O narra-dor onisciente é um nar-rador em terceira pessoa que sabe mais acerca da

trama do que as persona-gens nela envolvidas.

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Capítulo 02Narrador e Foco Narrativo

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O narrador-protagonista é aquele que narra a partir de um centro fixo limitado a suas percepções e sentimentos. O mundo que se apresen-ta ao leitor é um mundo parcial que se dá como a representação deste único ponto de vista.

O artigo de Silviano Santiago, Retórica da verossimilhança, trata justamente da função do narrador-personagem em Dom Casmurro de Machado de Assis. O objetivo do crítico é demonstrar o equívoco de se considerar a obra de Machado como um simples derivado dos roman-ces do século XIX relacionados ao adultério feminino, como Madame Bovary de Flaubert e O Primo Basílio de Eça de Queiroz.

Silviano Santiago demonstra o quanto é ingênua qualquer crítica que se atenha no tema do adultério e o quanto erram aqueles que procuram no livro de Machado uma verdade acerca da infidelidade de Capitu.

A partir de uma forte linha argumentativa que tentarei acompanhar, Silviano demonstra que Dom Casmurro é um livro sobre o ciúme. O motivo desta crença reside no fato de que sendo o narrador a personagem central do livro e estando todos as outras personagens silenciadas, principalmente Capitu, os fatos apresentados são aqueles selecionados e apresentados por um único ponto de vista e este não é o do marido traído, mas o do marido que se sente como tal, independente da verdade ou não da traição.

A questão do ponto de vista ou do foco narrativo se une ao que aprendemos com Umberto Eco acerca do leitor-modelo, já que a crítica de Silviano Santiago permite que se perceba que Machado de Assis arqui-tetou sua narrativa de tal maneira que passa ser inegável que há um leitor ideal capaz de perceber que, enquanto advogado, Dom Casmurro é alguém que domina a arte da retórica. Daí o título do artigo: Retórica da verossi-milhança. O discurso de Dom Casmurro não é falso ou verdadeiro, mas extremamente verossímil, já que o sexagenário sabe se utilizar das palavras de forma a convencer o seu interlocutor. O ponto de vista em primeira pessoa é, assim, uma artimanha utilizada pelo autor-modelo de forma a tornar a abordagem do casamento e do tema da fidelidade um tanto mais complexa do que em romance anterior, Ressurreição, narrativa em terceira pessoa em que o narrador onisciente desvenda os fatos para o leitor. Em Dom Casmurro, a primeira pessoa traz à narrativa ambigüidade.

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Santiago demonstra que o narrador de Dom Casmurro se comporta como quem defende uma tese. Ele sabe o que comprovar para justificar seu comportamento diante da esposa e do filho. Entretanto, o autor deixa pistas ao fazer com que, em alguns momentos, se perceba que há no livro o predomínio da imaginação sobre a memória. Neste sentido, as ques-tões relativas ao tempo, abordadas em capítulo anterior, são de extrema valia. Perceba-se que o narrador, embora tenha vivido no passado que narra, fala em um suposto presente, diante do qual este passado já está distante. Para que este tempo já ido pudesse ser resgatado, o narrador teria, no mínimo, que ter uma grande memória. Mas Machado permite que se perceba que não é o caso, ao fazer com que o narrador demonstre dúvida acerca da autoria de citações das quais se utiliza, o que, para um homem letrado como Dom Casmurro, não é de todo perdoável.

Silviano Santiago vai ainda mais além quando aponta para o fato de que, além de ser uma narrativa sobre o ciúme, Dom Casmurro se confi-gura como uma crítica a uma sociedade que valoriza a retórica pratica-da amplamente por bacharéis e jesuítas. E a retórica é uma arte que se pauta no provável, no verossímil e não no verdadeiro, o que faz com que a questão da personagem de Machado seja ética, já que precisa conven-cer o leitor da culpa de Capitu para inocentar a si mesmo.

É possível perceber, portanto, que este artigo de Silviano Santiago demonstra o quanto o conhecimento dos elementos da narrativa e de suas funções é capaz de promover uma leitura especializada, bem como possibilitar a atividade da análise, atividade esta que exige a ultrapassa-gem de um nível superficial de leitura e o conhecimento dos procedi-mentos efetivamente utilizados para a configuração de uma narrativa.

O verbete focalização cita, ainda, o termo perspectiva como apropria-do para designar a relação que o sujeito da narrativa mantém com o objeto que narra. O termo é utilizado nas artes plásticas para designar a técnica de pintura que permitiu, no século XV, que os quadros apresentassem uma ilusão de profundidade, ou seja, trata-se de uma técnica que possibilita re-produzir em uma superfície bidimensional a realidade tridimensional.

A perspectiva é um fenômeno, portanto, relacionado à percepção humana. Daí a utilização do termo na narrativa para designar a posição do narrador que é tecnicamente construída e delineia a maneira como

Consulte no E-dicionário de termos literários o verbe-te intitulado focalização,

termo utilizado por Gerard Genette para designar o

mesmo que foco narrativo ou ponto de vista: http://

www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/F/focalizacao.htm

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Capítulo 02Narrador e Foco Narrativo

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os objetos aparecem para o leitor. Assim como na pintura, a perspec-tiva define a maneira como se torna possível visualizar os objetos de um quadro. Somente a perspectiva permite que um objeto pareça, por exemplo, estar à frente de outro, em uma superfície plana.

Cabe ressaltar, ainda, que a perspectiva é um fenômeno da Idade Moderna e está relacionada com o próprio humanismo e com a neces-sidade de fazer os objetos da realidade se relacionarem através do ele-mento humano. Antes, na Idade Média, não havia esta necessidade e os quadros podiam apresentar figuras independentes na tela, porque estas figuras estavam todas submetidas à existência divina.

Para a próxima unidade, peço que leia o capítulo Literatura e per-sonagem, do livro A personagem de ficção, de Antonio Candido e outros autores, e o terceiro capítulo do livro de Beth Brait, A personagem.

Referências

ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1998.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: FTD, 1999.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 13 ed. São Paulo: Ática, 1994.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CHIAPPINI, Ligia. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2006.

ECO. Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1994.

FOCAULT, Michel. O que é um autor?. Lisboa: Vega, 1992.

SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo, Perspectiva, 1978. p. 29-48.

VILLALTA, Luis Carlos. O que se fala e o que se lê. In: SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada, V. I. São Paulo: Companhia das Letras1999, p. 331-386.

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Unidade B - Teoria da Literatura

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Leia mais!

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

ROSA, Guimarães. Grande Sertão veredas. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 2005.

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Unidade CA personagem e o enredo

FIGURA - ABERTURA DE UNIDADE

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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1 Ficção, Linguagem e Personagem

Nos filmes que eu tento ver

Nos livros que eu tento ler

Você sempre é

O personagem principal

Que tem o beijo no final

(Personagem, Carmem Silva)

1.1 Personagem Como Sintoma Ficcional

Creio que o ponto crucial do primeiro capítulo do livro A persona-gem de ficção seja o de chamar a atenção para o fato de que a persona-gem e seu surgimento em uma narrativa possibilitam o imediato reco-nhecimento de seu caráter ficcional. O capítulo argumenta em torno do fato de que, a partir do tratamento dado pelo narrador à personagem, é possível perceber a elaboração imaginária do discurso narrativo.

É claro que isto é algo de que você já tinha conhecimento, embora talvez nunca tenha refletido sobre o assunto. Na maioria das vezes, você não costuma se enganar e sabe quando um livro é ou não de narrativas de origem imaginária e quando está diante de tramas e personagens ficcio-nais, embora não saiba dizer exatamente o que levou você a esta certeza.

Talvez você possa lembrar até que, algumas vezes, se confundiu e tomou como um texto de história, por exemplo, uma obra de ficção. Claro que você pode, de fato, ter se equivocado. Mas isto pode ocorrer porque alguns autores se utilizam de convenções realistas: inscrevem narradores em terceira pessoa, ambientam suas personagens em eventos retirados da historiografia oficial e as mesclam com personagens históricas.

Na ficção histórica, por exemplo, é comum a recriação ficcional de eventos e fatos históricos, como ocorre com o romance Esaú e Jacó de Machado de Assis, em que a oposição entre República e Monarquia é recriada através da narrativa em torno de dois irmãos, Pedro e Paulo.

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Unidade C - Teoria da Literatura

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O importante é que, daqui em diante, você deve estar mais e mais consciente da narrativa ficcional enquanto conjunto de estratégias textuais. Você poderá utilizar seus conhecimentos para escolher os melhores textos literários para os seus alunos, assim como a ma-neira de abordá-los de forma adequada.

Em outras palavras, enquanto nas disciplinas de Literatura Brasilei-ra, você estará entrando em contato com obras do cânone literário brasileiro, nas disciplinas de Teoria Literária, você estará entrando em contato com os elementos que configuram os textos literários e com as diversas correntes críticas.

Como disse acima, em muitos momentos, você estará aprenden-do a perceber e a abordar de forma mais objetiva o que já intuía. É o caso da origem imaginária de um texto.

O que se está querendo afirmar? Que existem certos verbos, por exemplo, que só podem ser atribuídos a personagens de ficção, como aqueles referentes a processos psíquicos como “refletir”, “pensar”, “re-cear”, “duvidar”, “imaginar”, “desejar”. A presença de uma afirmativa do tipo: “João refletiu por alguns segundos em silêncio: valeria a pena arris-car-se a perder tudo que havia conquistado em tantos anos?” se define como um sintoma da ficção, na medida em que estados psíquicos não podem ser percebidos e descritos por observadores externos, a não ser no plano do imaginário.

Logo no primeiro capítulo de Vidas secas, ao apresentar a triste re-alidade vivenciada pelas personagens, o narrador expõe ao leitor uma seqüência de pensamentos de Fabiano que testemunha a dimensão da crueldade da realidade vivida:

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era cul-pado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde (...)

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, co-çou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afir-mou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estôma-go, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.

(RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 103. ed. Rio de Janeiro: Re-

cord, 2007, p.10-11)

Observe como o trecho citado tem como centro uma seqüência significativa de acontecimentos que não poderiam ser descritos por um observador externo, já que giram em torno de sentimentos, idéias, sensações e pensamentos internos a Fabiano. O trecho se torna, assim, na narrativa, um dos sintomas de ficção porque, ao expor pensamentos, explicita sua origem imaginária. É importante também perceber como a relação entre o narrador e a personagem é crucial para delinear a ficção. No caso, o narrador é capaz de adentrar os pensamentos de Fabiano e, com isto, permitir que o leitor também tenha acesso a eles. No caso de um narrador em primeira pessoa, a visão se torna parcial e somente os pensamentos internos do próprio narrador poderão ser acessados pelo leitor, e somente aqueles que o narrador inscrever em sua narrativa.

Outro sintoma de ficção está na relação com o passado. Embora uma narrativa ficcional possa se utilizar do pretérito, este perde seu ca-ráter de pretérito porque o leitor passa a presenciar o passado junto com o narrador. Ou seja, o narrador presentifica o passado, pois narra como se fosse testemunha ocular de um tempo que não é o presente.

Observe, a título de exemplo, o início do segundo capítulo de Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto:

Havia bem dez dias que o Major Quaresma não saía de casa. Na sua meiga e sossegada casa de São Cristóvão, enchia os dias da forma mais útil e agradável às necessidades do seu espírito e do seu temperamento. De manhã, depois da toillette e do café, sentava-se no divã da sala principal e lia todos os jornais. Lia

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Unidade C - Teoria da Literatura

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diversos, porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma notícia curiosa, a sugestão de uma idéia útil à sua cara Pátria. Os seus hábitos burocráticos faziam-no almoçar cedo, e, embora estivesse de férias, para os não perder, continuava a tomar a pri-meira refeição de garfo às nove e meia da manhã

Acabado o almoço, dava umas voltas pela chácara, chácara em que predominavam as fruteiras nacionais, recebendo a pitanga e o cambuí os mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela pomologia, como se fosse bem cerejas e figos.

(BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 13. ed. São Paulo: Ática, 1984, p. 30)

É importante ressaltar que o narrador faz o leitor acompanhar em pormenores os hábitos do Major Quaresma, através da apresentação de detalhes que aproximam a narrativa do tempo passado. Esta aproxima-ção, por sua vez, explicita o caráter ficcional da narrativa porque se atém a detalhes, como a contagem de dez dias sem sair de casa, difíceis de se-rem apreendidos pela memória. Estes detalhes tornam evidente o cará-ter imaginário da configuração do passado, assim como a exposição da consciência da personagem através de afirmações como “Lia diversos, porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma notícia curiosa (...)”. Estes detalhes tornam o leitor não somente próximo do passado, mas próximo da própria personagem, a quem poderá acompanhar de forma minuciosa, passando a viver sua própria experiência.

Observe também como determinados detalhes, dos hábitos regula-res ao cultivo das “fruteiras nacionais” na chácara do Major Quaresma, são de extrema valia para a configuração de um quadro coerente acerca da personagem. Neste sentido, é importante observar que, na narrativa ficcional, como forma de arte, todos os elementos se tornam funcionais. Assim, aquilo que figuraria numa narrativa histórica como mero suple-mento ou detalhe, adquire na ficção a função de configurar a coerência do cenário e das personagens.

1.2 Personagem x Ser Humano

Em relação à personagem de ficção, o capítulo apresenta uma com-paração desta com os seres humanos reais e afirma que as personagens

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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são mais ricas porque são elaboradas com concentração, seleção e den-sidade. Além disto, na narrativa ficcional, as personagens são dadas à observação e se tornam transparentes de uma forma impossível aos seres humanos, como é o caso de Fabiano e do Major Quaresma, nos trechos acima citados. Na medida em que há um número limitado de orações em uma narrativa, as personagens apresentam um perfil muito mais definido e coerente do que as pessoais reais.

Na ficção, o ser humano tornado personagem não se separa dos significantes utilizados para descrevê-lo e que são elaborados, antes de tudo, em nome do prazer estético. Selecionei alguns trechos dos roman-ces que você está lendo para que possamos examinar cuidadosamente esta relação estreita existente entre linguagem e personagem, ou melhor, compreender por que a personagem de ficção é um ser de linguagem.

“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais a) negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de pal-meira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado”. (ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1998)

“Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava b) pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou al-guma coisa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da coisa que fixava.

Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela pon-ta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sem-pre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão a época”. (BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 13. ed. Ática: 1984, p. 20)

“Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado c) da fluminense pálida, magrinha, com pequeninas manchas ro-xas nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, faces leve-

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mente pintalgadas de sardas. Respirava o tom úmido das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos castanho-claros, mãos quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cútis do rosto, pés pequenos, quadril estreito, mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos”. (AZEVEDO, Aluízio de. O cortiço. Chile, O Globo/Klick Editora, 1997, p. 25)

Gostaria que você observasse como as opções descritivas dos dife-rentes narradores modelam as personagens de forma tal que estas não podem ser dissociadas da linguagem e do estilo com o qual são abor-dadas. Iracema não existe sem as analogias com a natureza e é através delas que o narrador guia o leitor para configurar a imagem da heroína romântica que se constitui através do estabelecimento de um contínuo entre sua beleza e o cenário natural em que nasce, vive e morre.

Já o Major Quaresma, homem de hábitos regulares, é descrito por um narrador contido, objetivo, através de orações que se detêm em de-talhes externos que formam uma imagem visual da personagem. Neste trecho, ao contrário do trecho de Iracema, quase não há analogias. En-tretanto, ao se ater ao hábito de Quaresma de olhar para baixo a maior parte do tempo e de demonstrar intensidade nas poucas vezes em que fixa o olhar em alguém, o narrador oferece uma pista que permite entre-ver a personalidade da personagem, personalidade esta que será refor-çada por suas ações ao longo do romance.

Por sua vez, a menina Zulmira de O cortiço é indissociável da lin-guagem objetiva de estilo naturalista e que se deixa entrever, por exem-plo, na utilização da frase: “manchas roxas nas mucosas do nariz”, pre-sente na citação acima.

Compare Iracema e Zulmira. Você acredita que é possível separar as representações narrativas romântica e naturalista das personagens?

Na narrativa ficcional, assim como em toda obra de arte, a forma é indissociável de seu conteúdo e o mesmo é verdadeiro para a persona-gem ficcional, que não pode ser separada do discurso que a apresenta.

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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Basta que se pense na relação do narrador com a personagem. O seu nível de onisciência, seu ponto de vista vão definir o maior ou me-nor grau de transparência da personagem. Exemplo disto é a própria personagem Capitu do romance Dom Casmurro de Machado de Assis. A personagem é modelada diante do leitor através do ponto de vista do narrador em primeira pessoa. Nada se sabe de Capitu, ou mesmo de Escobar, que não seja definido pela representação discursiva do próprio Dom Casmurro.

Independente da narrativa, entretanto, na medida em que se ofe-rece a uma apreciação de ordem estética, a personagem de ficção apre-senta a complexidade humana de forma condensada, possibilitando ao próprio homem tornar-se observador de sua condição. Neste processo, a experiência ficcional possibilita simultaneamente a vivência e a con-templação. Vivência, na medida em que a percepção estética se define como forma de experiência, e contemplação, na medida em que o leitor se torna observador de algo distinto de si.

Ao tornar-se outro através do imaginário, o ser humano pode experi-mentar papéis diferenciados. Exemplo disto é a relação já citada do leitor com a personagem Macunaíma, relação esta que pressupõe a suspensão de valores morais para que o herói possa ser, em toda sua complexidade, percebido como síntese da própria indefinição do caráter do brasileiro.

E como se dá a suspensão destes valores? Primeiro, através da op-ção pelo maravilhoso, ou seja, por uma narrativa que configura, desde sempre, um mundo que não é regido pelas leis físicas do mundo em que vive o leitor.

Ao ambientar a personagem em um mundo regido pela interven-ção constante do elemento mágico, o narrador, desde já, afasta o leitor de suas crenças e valores, ou melhor, possibilita que o leitor suspenda pelo tempo de leitura as suas crenças e valores para se permitir visitar, através do imaginário, um mundo outro.

Outro ponto importante é a forma de narrar através da qual a per-sonagem Macunaíma é apresentada como inocente. Embora descreva atos de Macunaíma que poderiam ser considerados perversos ou erra-dos, o narrador não atribui intencionalidade ou finalidade a estes atos.

Observe que utilizo a pala-vra imaginário não apenas em relação àquele que escreve, mas também em relação àquele que lê.

Para se aprofundar neste tema, consulte a obra Introdução à literatura fantástica de Tzvetan Todorov.

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Com isto, o elemento lúdico prevalece ao longo da narrativa, unido ao elemento mágico, para criar no leitor a empatia com a personagem.

Quando se lê uma obra de ficção, se adentra um mundo outro em que o leitor também se vê forçado a se reinventar. Isto permite entender por que é possível simpatizar com assassinos e vilões, mesmo que estes sejam os sujeitos de ações condenáveis na vida cotidiana. A relação que o leitor estabelece com as personagens de ficção não é a mesma que estabelece com os seres humanos. Na ficção, em menor ou maior grau, dependendo do estilo da narrativa, o leitor é levado a se afastar de sua realidade.

Procure se lembrar de algum caso específico em que isto ocorreu com você ao ler um livro, ver um filme ou assistir a uma novela televi-siva. Alguma vez você já se flagrou torcendo pelo bandido? Ou expres-sando, em relação ao mundo ficcional, valores completamente diversos daqueles que apresenta na vida cotidiana?

Na verdade, o imaginário possibilita a reelaboração dos elementos com os quais lidamos na vida cotidiana. A narrativa ficcional apresenta uma série de estratégias para expor a própria complexidade da vida e estas estratégias se dão no nível da própria linguagem, que se configura como o elemento do qual se constitui a personagem de ficção.

Isto significa dizer que a personagem de ficção não é a representação do ser humano através da linguagem, pois isto corresponderia a afirmar que a narrativa teria um ponto de referência externo. Como procurei demonstrar através dos trechos retirados dos romances, as personagens de ficção adquirem existência no interior da própria linguagem, da qual são indissociáveis.

Sugiro que você volte aos exemplos e os examine com atenção. Caso ainda não tenha lido todos os romances citados, procure anotar es-tes elementos, assim como os referentes a outros tópicos tratados neste livro-texto (pontos de vista, tempos, enredo, etc.), para tê-los em mente no momento na leitura. Isto certamente vai enriquecer suas leituras e a compreensão mais aprofundada das obras.

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Em seu livro A personagem, Beth Brait mostra como o reconheci-mento e a compreensão da personagem como um ser de linguagem foi uma conquista de séculos e dependeu do próprio desenvolvimento dos estudos literários. Logo no início de seu livro, antes mesmo de come-çar a tratar dos posicionamentos da crítica, a teórica mostra, através do exemplo da fotografia, a distinção entre pessoa e personagem. Brait su-gere que, mesmo em uma fotografia 3x4, que tem o objetivo de retratar a pessoa de forma que esta possa ser reconhecida, há uma mediação que afasta a imagem da foto da complexidade da pessoa humana: a pose, o ângulo, a escolha do penteado determinam a personagem. O exemplo extremo da configuração de personagens através de fotografias está nas fotos artísticas capazes de criar auras em torno dos fotografados.

Para poder explicar melhor a diferença entre personagem e pessoa, Braith cita Iracema, o romance de Alencar, pois o escritor teve como base para sua narrativa um argumento histórico: a fundação do Ceará. Alencar tem, portanto, como referência, o testemunho de cronistas em torno das relações entre o indígena e o português. Entretanto, o com-promisso de Alencar é a configuração de uma criatura “possível”, ou seja, uma criatura verossímil, dentro das convenções românticas que modelam a linguagem do romancista.

Neste sentido, é importante lembrar que a relação com os docu-mentos históricos é totalmente outra no caso de obras da historiografia como Retrato do Brasil e Raízes do Brasil. Estas narrativas têm compro-misso com referências externas a si mesmas. Isto não quer dizer, entre-tanto, que os fatos da história não sejam modelados pela linguagem. O historiador precisa alcançar um efeito de real para que sua narrativa possa ser tomada como verdadeira. Para tanto, ele se utiliza de conven-ções realistas. Ou seja, dentro da obra historiográfica, os seres humanos também vão se tornar personagens, como no caso do “semeador” e do “ladrilhador” da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Observe, neste caso, como as personagens são escolhidas para configurar uma oposi-ção crucial para a própria estruturação da obra, que opta por tratar as funções no singular para transformá-las em modelos, em personagens. Mas isto não nega a existência no mundo e naquele tempo histórico de pessoas que exercessem aquelas atividades.

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No primeiro semestre, você estudou em Teoria da literatura I o conceito de mimese de Aristóteles. Está apto, portanto, a compreender a noção que Beth Brait afirma ter vigorado até meados do século XVIII e que foi reforçada pela idéia de Horácio, de que as personagens são reproduções dos seres vivos e modelos a serem imitados. Isto porque a ficção era vista em termos pedagógicos, daí a ênfase nos aspectos mo-rais, veiculados, entre outros elementos, pelas personagens.

Em meados do século XVIII, a personagem de ficção deixa de ser compreendida como réplica do ser humano para ser tomada como projeção da psicologia do criador. A personagem continua, portanto, a estar relacionada ao humano, mas não como reprodução de modelos existentes no mundo exterior, mas como produto da psicologia do ar-tista. Esta compreensão coincide com transformações inerentes à pró-pria literatura, que com o Romantismo, estará cada vez mais apegada à noção de obra de arte como produto do talento individual e expressão das paixões humanas.

O reconhecimento do ser de ficção como um ser de linguagem só vai se dar, de fato, com os formalistas russos. Isto se deve à própria filiação do formalismo à Lingüística, que vai possibilitar que se com-preenda a obra como um sistema de signos. Daí surge a demanda por uma compreensão dos elementos que compõem o texto, o que leva os formalistas aos conceitos de fábula e trama. A primeira seria composta pelo conjunto de eventos da obra e a segunda pela maneira como os eventos são interligados.

Como você pode perceber, Beth Brait está correta ao afirmar que o formalismo russo é um divisor de águas nos estudos críticos. Com seu desenvolvimento, chega-se a noções importantíssimas, como a de Phili-ppe Hamon, em que a personagem é vista como um signo dentro de um sistema de signos, o que não ocorreria somente nos textos literários. Em outras palavras, em um texto de história ou em uma notícia de jornal, as pessoas passam a ser signos, uma vez que são modeladas pelo sistema de signos em que são inscritas.

Peço que leia o verbete do E-dicionário de termos

literários referente ao “formalismo russo”: http://

www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/F/formalismo_

russo.htm

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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Você também já deve ter percebido que, embora os elementos da narrativa sejam apresentados neste livro em capítulos distintos, na verdade, eles não podem funcionar sem estarem interligados. As-sim como não é possível dissociar autor, leitor e narrador, também não é possível separar a personagem do narrador e por aí vai. Daí a idéia de que se trata de um sistema de signos. Ou seja, os elemen-tos são interdependentes. Não é possível transformar um destes elementos sem afetar todo o resto. A narrativa deve, portanto, ser compreendida como uma estrutura. Tal como você leu no verbete sobre o formalismo, o estruturalismo será o nome de uma corrente crítica que se dá como desdobramento do próprio formalismo rus-so, com o contato entre Jakobson e o antropólogo Lévi-Strauss.

É importante observar que, no momento, você não precisa se in-quietar com a terminologia referente às correntes críticas: forma-lismo russo, estruturalismo, new criticism, estilística, estética da recepção, etc. O que é de extrema importância é que você perceba que estas foram correntes críticas que surgiram ao longo do século para atender à demanda por metodologia para a abordagem do texto literário (sendo que o estruturalismo diz respeito também a outras áreas das ciências humanas, como a Psicanálise e a Antropo-logia). Entretanto, você deve saber que terá uma disciplina especí-fica para abordar as diferentes correntes críticas, momento no qual você já terá tido contato com seus nomes e estará apto a compre-ender com mais profundidade as contribuições oferecidas aos es-tudos literários por cada uma das correntes críticas, o contexto de seus surgimentos e a pertinência ou não de seus pressupostos no contexto contemporâneo. Nada impede, entretanto, que você tenha uma noção panorâmica de cada uma delas através do E-dicionário de termos literários ou mesmo consultando outras obras e artigos a respeito. Caso seja de seu interesse, peça sugestões de leitura. Uma sugestão que, é claro, serve para todos os conteúdos da área de lite-ratura é: professores e tutores sempre estarão disponíveis para re-comendar obras que possam ser de seu interesse individual.

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Unidade C - Teoria da Literatura

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No último capítulo do livro de Beth Brait, você pode encontrar de-poimentos de vários escritores acerca da criação de suas personagens. As respostas acerca das origens das personagens podem, à primeira vis-ta, parecer contradizer a idéia defendida até agora de que a personagem é um ser de linguagem, já que os escritores falam da memória e da ob-servação de pessoas para criar os seres fictícios.

Entretanto, é importante ressaltar que estes depoimentos interes-sam apenas como curiosidade em torno da criação literária. A memória e a observação são mediadores entre o escritor e as pessoas. Este é um ponto. Outro ponto é que, baseadas ou não em pessoas, as personagens só se definem como tal a partir de sua inscrição na narrativa ficcional através da linguagem. O que comprova isto é o fato de que a existência de um modelo no mundo exterior não é critério para a qualidade de uma narrativa e nem mesmo para sua eficácia.

Por exemplo, um escritor pode se basear em uma pessoa que co-nheça muito bem para criar uma personagem, mas, se for um mal escri-tor, o ser de ficção pode parecer falso, inverossímil. O contrário também é verdadeiro: o escritor pode criar a personagem a partir de sua imagi-nação e esta pode ganhar vida e força. O que define a eficácia de uma personagem não é o mundo exterior à narrativa, mas sua coerência em relação aos elementos internos da obra.

Basta que se pense na força de uma personagem como Macunaí-ma, que, apesar de se movimentar num mundo mágico que denuncia o caráter imaginário de sua existência, é tão coerente enquanto síntese de representação do brasileiro, através de sua relação com todos os ele-mentos do livro, que parece ganhar vida própria, vida esta que se faz, na verdade, através da força da linguagem.

1.3 Personagem Plana e Personagem Redonda

Como bem demonstra Beth Brait, ao longo de seu livro, as diversas correntes críticas vão não apenas propiciar a compreensão da perso-nagem como um ser de linguagem, mas possibilitar a configuração de tipologias diferenciadas para sua abordagem.

Gostaria que você fechasse este capítulo lendo o verbe-te referente à “personagem”

no E-dicionário de termos literários. http://www.fcsh.

unl.pt/edtl/verbetes/P/per-sonagem.htm

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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Em 1927, E. M. Foster publica a obra Aspects of the novel (Aspectos do romance), em que apresenta a distinção entre personagens planas e personagens redondas, assim definidas:

personagens planasa) : são aquelas que giram em torno de uma única idéia ou qualidade. Podem ainda ser subdivididas em tipo e caricatura. Caracteriza-se como tipo a personagem que mantém sua particularidade única sem atingir a deformação. Quando há deformação ou distorção e exagero, com objetivo satírico, passa-se a falar em caricatura, e não mais em tipo.

personagens redondasb) : são personagens complexas que apre-sentam qualidades diversificadas.

A partir da oposição acima, vamos refletir um pouco sobre o ro-mance Dom Casmurro de Machado de Assis. Não é difícil identificar, creio, o narrador como uma personagem redonda, que se caracteriza por expor sua complexidade através do sentimento de ciúme que nutre por Capitu. Mas e Capitu e Escobar? E o menino, filho de Capitu? Você acha que o narrador se fixou em alguma qualidade específica que pos-sa caracterizar alguma destas personagens, como tipo ou caricatura, ou você acredita que, mesmo sendo um narrador em primeira pessoa, Dom Casmurro permite que se atribua complexidade a estas personagens?

E nos demais romances que está lendo? Quais personagens você caracterizaria como redondas? Quais você compreende como persona-gens planas? Será que as personagens de O Cortiço de Aluízio de Azeve-do podem ser definidas como tipos?

A canção de Noel Rosa e Vadico, de 1936, Tarzan, interpretada por Djavan, em versão mais recente, oferece a você um claro exemplo de caricatura. O que pode levá-lo a perguntar: mas não se trata de uma disciplina sobre narrativas? Esta se configura em uma ótima oportuni-dade para esclarecer que, assim como existe a narrativa cinematográfica, também as canções podem veicular narrativas. É possível até mesmo afirmar que as canções se dividem entre aquelas que se filiam ao gênero lírico e aquelas que se filiam ao gênero épico. As primeiras centram sua mensagem na expressão das sensações do sujeito poético, no caso, o sujeito da canção, e tendem a apresentar recursos comumente utilizados

Escute e acompanhe a música no AVEA

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Unidade C - Teoria da Literatura

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na poesia. As segundas contam pequenas histórias e estão centradas em ações e personagens, como é o caso da maioria dos sambas-enredo, por exemplo. Assim acontece com a letra do samba de Noel Rosa e Vadico que transcrevo abaixo:

Tarzan (o filho do alfaiate)Noel Rosa e Vadico

Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte, nem conheço futebol... O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de sol A minha força bruta reside Em um clássico cabide, já cansado de sofrer Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura, mas que pesa e faz doer Eu poso pros fotógrafos, e distribuo autógrafos A todas as pequenas lá da praia de manhã Um argentino disse, me vendo em Copacabana: ‘No hay fuerza sobre-humana que detenga este Tarzan’ De lutas não entendo abacate Pois o meu grande alfaiate não faz roupa pra brigar Sou incapaz de machucar uma formiga Não há homem que consiga nos meus músculos pegar Cheguei até a ser contratado Pra subir em um tablado, pra vencer um campeão Mas a empresa, pra evitar assassinato Rasgou logo o meu contrato quando me viu sem roupão Eu poso pros fotógrafos, e distribuo autógrafos A todas as pequenas lá da praia de manhã Um argentino disse, me vendo em Copacabana: ‘No hay fuerza sobre-humana que detenga este Tarzan’ Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte, nem conheço futebol... O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de sol A minha força bruta reside

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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Em um clássico cabide, já cansado de sofrer Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura, mas que pesa e faz doer

Como é possível perceber, trata-se de um discurso em primeira pes-soa em que o sujeito da canção se revela como uma personagem que se define por uma característica central: se utilizar da vestimenta, um ter-no com armadura, para simular ser um homem musculoso. Ao ouvir a canção, se delineia claramente a imagem desta figura risível através da qual os compositores satirizam os padrões estéticos relacionados ao cor-po atlético que começam a circular nas primeiras décadas do século XX, principalmente com a propagação do cinema e de seus artistas. A per-sonagem se torna, assim, um ótimo exemplo de caricatura, já que todas as ações descritas giram em torno da ênfase exagerada na simulação de porte físico de acordo com os ideais estéticos vigentes. O caráter circular da canção comprova a ênfase no aspecto caricatural, ou seja, a canção começa e termina com a estrofe cujos últimos versos revelam a artimanha utilizada pela personagem para simular força física: “A minha força bruta reside em um clássico cabide já cansado de sofrer/ Minha armadura é de casimira dura que me dá musculatura e me pesa e faz doer”.

É claro que você já deve ter relacionado a palavra caricatura, utili-zada aqui para remeter a um tipo de personagem plana, a um tipo de de-senho também denominado caricatura. A relação é bastante pertinente, pois o que o caricaturista faz é justamente acentuar o traço que pretende criticar: uma parte do corpo ou um gesto.

Compreender a personagem caricata como aquela que se delineia através da ênfase exagerada em um único traço é fundamental para que se compreenda a personagem que lhe é diametralmente oposta, ou seja, a personagem redonda, que vai figurar na maioria dos romances: Ira-cema, Macunaíma, Dom Casmurro são personagens que parecem ade-quadas à definição de Beth Brait: “são dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano”. (BRAIT, Beth. Op.cit, p. 41)

O fato de se diferenciar a personagem redonda por sua complexi-dade não corresponde, entretanto, a afirmar sua superioridade em re-lação à personagem plana, seja esta um tipo ou caricatura. Na verdade,

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o estilo da obra é que vai modelar a melhor forma de personagem. A sátira parece se valer muito bem dos tipos e caricaturas, assim como as narrativas psicológicas funcionam melhor ao expor a complexidade das personagens redondas.

Estas afirmações apenas confirmam o que já foi dito acima: que a personagem não é pessoa, mas um ser de linguagem.

1.4 Outras Tipologias para a Abordagem da Personagem de Ficção

O livro de Brait torna bastante claro o fato de que as metodologias de abordagem do texto literário tendem a acompanhar as transforma-ções ocorridas nos próprios textos ficcionais. Neste sentido, Brait obser-va como as correntes críticas tendem a se sofisticar em suas tentativas de abarcar as nuances e especificidades do texto literário à proporção em que surgem novos desafios, como as narrativas de Marcel Proust, Virginia Woolf, James Joyce. Basta que observemos que, no Brasil, obras como as de Clarice Lispector e Guimarães Rosa apresentam um nível tal de complexidade que pouco podem ser abordadas sem o acesso à lin-guagem específica e ao conhecimento disponibilizado pelas diferentes correntes críticas.

Não é muito diferente com Machado de Assis e Mário de Andrade, por exemplo. Obras como Dom Casmurro e Macunaíma requereram a compreensão dos dispositivos utilizados para que se tornassem as refe-rências que são. Assim como já demonstrei, através da leitura de Silvia-no Santiago, como é difícil perceber a sutileza da obra de Machado sem compreender a função exercida pelo ponto de vista, também é impossível perceber a riqueza de uma personagem como Macunaíma sem captar a relação de interdependência entre personagem, linguagem e enredo.

Desta forma, independente das tipologias utilizadas para a análise do romance, é importante compreender o quanto as formas de classifi-cação das personagens demonstram que estas estão ligadas não a ele-mentos do mundo exterior, mas a outros elementos da narrativa. É o caso da obra de Bournef e Ouellet, em que a tipologia vai se concentrar nas relações entre as personagens e entre estas e os lugares e objetos,

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Capítulo 01Ficção, Linguagem e Personagem

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com a seguinte classificação da personagem ficcional: elemento decora-tivo, agente da ação, porta-voz do autor, ser fictício com forma própria de existir, sentir e perceber os outros e o mundo.

No que diz respeito ao agente da ação, Brait apresenta, ainda, uma outra tipologia, desenvolvida por E. Souriau e W. Propp, através da qual o agente da ação pode ser subdividido em seis categorias: condutor da ação, oponente, objeto desejado, destinatário, adjuvante, árbitro ou juiz.

O que as tipologias acima demonstram? Justamente a relação de in-terdependência entre os elementos da narrativa. Uma personagem não pode ser considerada como elemento decorativo sem que haja outro que seja compreendido como o agente central ou mesmo algum outro ele-mento que apresente mais centralidade do que as personagens. Da mesma forma, não é possível haver oponente sem haver o condutor da ação.

Não encontramos, é certo, funcionalidade em procurar no mundo exterior pessoas que possam assemelhar-se à personagem Macunaíma, ser fictício que vive em um mundo também fictício regido por leis pró-prias. Mas, veja como é funcional, dentro do romance de Mário de An-drade, a relação entre estes três elementos:

Macunaíma muiraquitã Venceslau Pietro Pietra (gigante Piaimã)

Nos dois extremos, vê-se uma relação de oposição,e no centro, um dos objetos de disputa, que é o talismã de Macunaíma. A relação entre as personagens e entre as personagens e o objeto está intimamente ligada com as ações que terão lugar na trama. Ou seja, não se pode pensar nas ações em torno destas personagens sem pensar no jogo de oposições exis-tente entre elas. Ainda dentro deste conflito, surge a figura de Maanape como adjuvante, que vem em auxílio de Macunaíma e o salva de Piaimã.

Em função desta relação estreita existente entre ação e personagem, Greimas substitui a palavra personagem pela palavra ator, ou seja, aquele que pode ocupar funções diferenciadas em relação à ação. Por exemplo, Macunaíma alterna com Piaimã as posições de condutor e opositor, de-pendendo da ação em que estão envolvidos.

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É fundamental que se perceba que estilo, narrador, personagem, enredo, enfim, os elementos que constituem a narrativa, são estudados em separado apenas por questões didáticas. Macunaíma não seria Ma-cunaíma se não se movimentasse em um mundo em que a intervenção mágica é constantemente o elemento transformador. O naturalismo de Aluízio de Azevedo não poderia se expressar da maneira crua como se dá em O cortiço se as personagens não fossem abordadas como repre-sentantes do grupo a que pertencem.

O último capítulo que vamos abordar vai apenas confirmar esta relação de interdependência entre os elementos da narrativa. Peço, por-tanto, que, como preparatório, leia o livro de Samira Nahid de Mesquita denominado O enredo.

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Capítulo 02O Enredo

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2 O Enredo

Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta

Pro desfecho da festa

Por favor...

(Gota d’agua, Chico Buarque)

A partir da leitura do livro de Samira Nahid de Mesquita, você deve ter percebido que, através da palavra enredo, vem à tona uma dicotomia a que já me referi anteriormente: a história e o discurso. A primeira se refere àquilo que se narra e a segunda à forma como se narra. Esta últi-ma também atenderia pelo nome de enredo, definido pela autora como “a própria estruturação da narrativa de ficção em prosa”. (MESQUITA. Op. cit, p. 21)

O enredo, portanto, não diz respeito somente ao que é narrado mas à forma como os fatos se sucedem, indo de um estado inicial até o desfecho.

Desta forma, dentro do enredo, se articulam personagens na ação que se traduz como “o percurso seguido pelas personagens através das sucessi-vas situações” (MESQUITA. Op. cit, p. 23). Observe que a autora demonstra que, em Iracema, a narrativa se inicia no segundo capítulo. Não é o caso de Macunaíma, que narra o nascimento do herói logo nas primeiras linhas.

Assim, a autora enumera as fases do enredo de uma narrativa tra-dicional:

apresentaçãoa)

complicaçãob)

desenvolvimentoc)

clímaxd)

desenlacee)

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Estas fases correspondem a um encadeamento de conseqüências que vão se dando como transformações ocorridas em relação ao uma situação inicial. E é a forma de narrar, o enredo, que define o ritmo com que estas transformações se dão. Se há flashbacks ou interrupções para descrições, o processo de transformações ocorrerá de forma mais lenta. É o que acontece em Dom Casmurro e em outras obras de Machado de Assis, por exemplo. Ou seja, o enredo também se relaciona com o tem-po e com as figuras de duração, anteriormente estudadas. Trata-se de elementos de crucial importância para o enredo, assim como o ponto de vista, que articula o tempo e o espaço, e as personagens, que enca-minham as transformações de formas diferenciadas e se ocupam das posições de protagonista ou antagonista.

Na verdade, o enredo é o entrelaçamento de todos os elementos anteriormente estudados. O enredo é a forma efetivamente adquirida pela narrativa.

Ao abordar a prosa modernista, a autora cita Macunaíma para de-monstrar como a linguagem e a relação com o espaço e o tempo vão ser fundamentais para configurar o caráter experimental da obra que se faz como crítica veemente da cultura brasileira. Ou seja, não é o tema ou assun-to da obra que se dá como crítica somente. A crítica se materializa através da experimentação no nível da linguagem, da incorporação pela prosa de elementos do discurso poético, enfim, da inovação na ordem do discurso.

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Capítulo 02O Enredo

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Referências

BRAITH, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.

CANDIDO, Antonio et alli. A personagem de ficção. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 4. ed.. São Paulo: Ática, 2006.

Leia mais!

CAMPOS, Haroldo de. Morfologia de Macunaíma. São Paulo: Perspec-tiva, 2008.

Haroldo de Campos publicou, na década de 70, este excelente trabalho, em que reflete sobre as categorias de Vladimir Propp em Morfologia do conto através da análise Macunaíma de Mário de Andrade. Esgotada durante al-guns anos, a obra foi reeditada em 2008.

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Unidade DPrática como componente curricular

FIGURA - ABERTURA DE UNIDADE

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Capítulo 01Capítulo 01A Adequação do Conteúdo ao Público-alvo

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A Adequação do Conteúdo ao Público-alvo

É sempre bom lembrar

Que um copo vazio

Está cheio de ar

Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho

Que o vinho busca ocupar o lugar da dor

Que a dor ocupa a metade da verdade

A verdadeira natureza interior

(Copo vazio, Gilberto Gil)

O currículo do Curso de Letras da UFSC inclui, para algumas dis-ciplinas, um certo número de horas dedicado ao que se denomina Práti-ca como Componente Curricular, o PCC. Claro está que estas horas são dedicadas a reflexões voltadas à adequação do conteúdo das disciplinas à prática pedagógica nos ensinos fundamental e médio. Ou seja, o objetivo do PCC é possibilitar que o aluno possa, durante o curso, pensar aquilo que aprende ao longo das disciplinas em sua adequação às atividades que exerce ou que virá a exercer no futuro como profissional de ensino. Com isto, o aluno poderá, desde sempre, refletir sobre a aplicabilidade presente e futura de seus conhecimentos, aplicabilidade esta que pode, a princípio, parecer uma possibilidade remota, devido à complexidade das questões abordadas no curso, mas que vai aos poucos se mostrando como algo não somente desejável, mas totalmente possível.

Para tanto, é necessário que, enquanto aluno de Letras, você esteja atento e consciente de sua formação enquanto professor, ou seja, enquan-to profissional a quem será confiada a tarefa de auxiliar outros indivíduos na construção do conhecimento. O primeiro aspecto que se deve ter em mente diz respeito à identidade destes indivíduos, já que, com uma gradu-ação em Letras, você poderá atuar nos ensinos fundamental e médio, da quinta série do primeiro grau à terceira do segundo grau. Isto já significa compreender que o leque de opções é amplo, assim como serão diversifi-cadas as possíveis atitudes que você possa vir a ter em uma sala de aula, de

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acordo com os alunos com os quais tenha que lidar. Você pode trabalhar com crianças, adolescentes e até mesmo adultos, no caso do ensino suple-tivo. Este é um primeiro ponto que deve nortear as suas decisões em tor-no de sua prática pedagógica. O segundo ponto diz respeito ao contexto cultural em que vivem seus alunos, que envolve desde diferenças entre a realidade urbana e rural até o nível sócio-econômico dos alunos.

Antes de planejar uma disciplina, você deve ter em mente estas per-guntas, assim como o desejo de conhecer mais e mais os seus alunos ao longo do ano letivo. Ou seja, primeiro você planeja a disciplina a partir de pressupostos que envolvem a faixa etária, a série e o nível sócio-cul-tural dos alunos. Isto vai permitir que você estabeleça parâmetros para sua atuação e mapeie expectativas em relação ao rendimento dos alunos. Mas, por outro lado, você deve adaptar estes parâmetros e expectativas ao conhecimento que for adquirindo ao longo do semestre em relação aos alunos, pois cada grupo vai demonstrar características distintas, assim como cada indivíduo também deve ser considerado enquanto ser único, que responde de forma diferenciada à construção de conhecimento. Neste aspecto, entram em cena outros fatores que só podem ser conhecidos com o tempo, fatores relacionados a traços de personalidade e temperamento individuais. Isto não significa que o professor não possa partir de alguns pressupostos e expectativas e se sentir seguro em relação a seu planeja-mento. Muito ao contrário: quanto mais seguro estiver o professor em relação a suas crenças, mais apto estará a fazer adaptações quando neces-sárias e a rever suas posições. Para tanto, é fundamental que sempre esteja claro para as turmas que você é a instância de avaliação e, portanto, aquele que estabelece as regras para o melhor funcionamento das aulas, mesmo que estas regras possam ser revistas e reavaliadas.

Claro está que todos os aspectos abordados acerca do grupo a que pertencem os alunos importam na medida em que podem fornecer pa-râmetros acerca dos conhecimentos prévios, ou seja, dos elementos que podem vir a constituir o repertório dos alunos. Este repertório é fun-damental para que você possa fazer com que os novos conhecimentos interajam com conhecimentos prévios. O que se quer dizer com isto? Antes de tudo, que em maior ou menor grau, todos, até mesmo crianças, têm algum conhecimento ou alguma forma de relacionar conteúdos es-

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Capítulo 01A Adequação do Conteúdo ao Público-alvo

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colares com suas vivências cotidianas. Esta relação é fundamental para a manutenção do interesse. Crianças e adolescentes costumam se pergun-tar acerca da função da escola e dos conteúdos que aprendem.

A princípio, é preciso levar em consideração que, da infância à ida-de adulta, o indivíduo desenvolve a capacidade de abstração. Os conteú-dos que você assimila nesta disciplina acerca da narrativa serão utiliza-dos de diferentes formas no ensino fundamental e médio, e não apenas em função da faixa etária, mas também porque:

no ensino fundamental, o estudo da literatura está a serviço a) dos estudos da linguagem e dos desenvolvimentos da capaci-dade de leitura, interpretação e produção de textos;

no ensino médio, a literatura torna-se uma disciplina específi-b) ca, o que possibilita a abordagem de obras mais complexas.

Nos próximos capítulos, vou me concentrar em comentar e exem-plificar as diferentes maneiras pelas quais você pode lançar mão de seus conhecimentos acerca do estudo da narrativa em suas atividades como professor nos ensinos fundamental e médio.

Embora esta seja a distinção básica que pode aqui ser abordada, como já visto, há outras questões que podem e devem ser levadas em consideração, como o nível sócio-econômico dos alunos e o contexto cultural. Entretanto, para respeitar estas diferenças, você precisa apenas utilizar o bom senso. A partir da percepção acerca do cotidiano dos alu-nos de uma escola pública ou particular, você vai poder saber se eles pos-suem internet, se têm livros em casa, se conhecem outras cidades e esta-dos, se assistem televisão, se têm acesso a formas diversificadas de artes, como cinema, música, artes plásticas, teatro, etc. Estas informações ser-vem para que você contextualize as novas informações em relação a seus cotidianos. Por exemplo, a canção, a novela televisiva, a notícia veiculada pela Internet, o Big Brother, a fofoca, a cartomante, tudo pode ser utili-zado para contextualizar uma conversa sobre a narrativa. Assim como Machado de Assis e Mário de Andrade, o rapper, a cartomante e o fofo-queiro também são contadores de estórias, não tão sofisticadas do ponto de vista da elaboração da linguagem, é claro, mas estórias. Na verdade, trata-se de versões contemporâneas de narradores orais. Estes exemplos

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vão servir para levar à percepção de que os conteúdos estão próximos dos alunos. Você também pode suprir como professor muito da carência de informação advinda da origem familiar. Os conteúdos podem ser ilus-trados com filmes, obras de arte, canções, etc., principalmente quando você souber que não podem ter acesso às informações por outras vias. Ou seja, o que pode ser apenas uma sugestão para que se pegue um filme numa locadora ou se assista a um vídeo no youtube em uma sala de aula de uma escola particular de classe média pode se transformar em uma atividade de sala de aula, em uma classe de escola pública.

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Capítulo 02A Narrativa no Ensino Fundamental

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2 A Narrativa no Ensino Fundamental

Era uma casa

Muito engraçada

Não tinha teto

Não tinha nada

Ninguém podia entrar nela, não

Porque na casa não tinha chão

Ninguém podia dormir na rede

Porque na casa não tinha parede

Ninguém podia fazer pipi

Porque penico não tinha ali

Mas era feita com muito esmero

Na rua dos Bobos

Número zero

(A casa, Vinicius de Moraes)

2.1 A Narrativa como Parte do Cotidiano

Quando se pensa nas séries (entre quinta e oitava) nas quais um licenciado em Letras pode atuar, é importante perceber que esta fase do ensino fundamental corresponde, em geral, à passagem da infância à adolescência. Assim, é preciso considerar a enorme diferença compor-tamental entre os alunos da quinta e sexta e os da sétima e oitava.

Apesar das transformações, entretanto, você estará trabalhando com Língua Portuguesa e a narrativa aparecerá como uma forma de texto entre outros, não somente como narrativa ficcional.

Creio ser possível afirmar que a aplicabilidade do conteúdo de Teo-ria da Literatura II será demonstrada através de sua contribuição na for-mação de novos leitores. Ou seja, espera-se que, a partir dos estudos de Teoria da Literatura, desde a primeira fase, você se torne um leitor mais sofisticado e, como tal, possa ser mais exigente na escolha dos livros a serem designados como leituras obrigatórias para seus alunos.

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É importante salientar que este é o período em que se inicia ou solidifica o hábito da leitura, já que alguns leitores se formam logo na infância. A qualidade e a riqueza das obras e dos textos com os quais se tem contato nesta fase são de extrema importância para a configuração ou manutenção do hábito da leitura.

Como professor, você não é somente aquele que escolhe as nar-rativas, mas a pessoa que vai mediar a relação entre o aluno e o texto, através das atividades que designar.

Para a abordagem da narrativa, é importante partir da vivência dos próprios alunos, através da inclusão como objeto de reflexão de exem-plos retirados das próprias narrativas que lhes são familiares: histórias em quadrinhos, séries televisivas, novelas, canções. É plenamente pos-sível trabalhar com conceitos como ficção e personagem através des-tes exemplos. Os próprios alunos podem indicar os caminhos a serem seguidos, na medida em que forem consultados acerca de suas prefe-rências. Uma novela televisiva, por exemplo, é extremamente funcional para que se aborde a distinção entre pessoa e personagem e entre ver-dade e verossimilhança. Procure sempre estabelecer o contato com a turma no primeiro mês de aula através da descoberta dos elementos que os próprios alunos podem fornecer para o seu assunto: hábitos, cultura familiar, acesso às mídias etc. Tanto as narrativas com as quais o aluno lida em seu cotidiano quanto a memória de estórias infantis podem ser-vir como introdução para a leitura de narrativas ficcionais.

2.2 A Recepção Criativa

No ensino fundamental, como já dito, a literatura faz parte do con-tato com a interpretação e produção textual enquanto um dos aspectos do estudo da Língua Portuguesa. Entretanto, é importante que o profes-sor tenha internalizado, através dos estudos da Teoria da Literatura, a especificidade do discurso literário e sua relação com a estética. A lite-ratura se configura através de um uso específico da língua, assim como a ficção. Em todas as culturas, é uma forma de reelaboração da realidade, através do imaginário.

Todos que convivem com crianças ou que relembram a própria in-fância sabem que o imaginário faz parte do cotidiano infantil e se ex-

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Capítulo 02A Narrativa no Ensino Fundamental

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pressa através de brincadeiras em que a ficção prevalece. Crianças se transformam com facilidade em reis, princesas, índios em seus jogos, assim como são capazes de imaginar o interior das casas bem como os quintais e calçadas como reinos e terras encantadas.

Da mesma forma, as imagens literárias, as metáforas e analogias, não são aprendidas na linguagem adulta. Ao contrário, elas fazem parte da linguagem desde a fase de sua aquisição. O que se aprende com o tempo e com a escolaridade é a utilizar uma linguagem objetiva, concei-tual, livre de imagens. Mas a criança não tem nenhuma dificuldade em compreender quando alguém é definido como uma flor, uma estrela ou com um pedacinho de algodão.

No momento da formação de um leitor, é extremamente importan-te manter a conexão entre a literatura e o espírito lúdico que faz parte do universo infantil desde sempre. E, para isto, é preciso que a criança possa interagir com aquilo que lê, com as histórias que ouve na escola, na TV e no cotidiano, através da sua própria criatividade.

Neste sentido, no ensino fundamental, a criança não deve ser ex-posta a conceitos em relação à literatura, mas ela pode se tornar um leitor sofisticado se você puder mediar, através dos conceitos que in-corporou, a relação das crianças com os livros, de forma que ela possa aprender a perceber as sutilezas e artimanhas do mundo ficcional.

Para dar um exemplo bem claro: você aprendeu, ao longo desta disciplina, que o ponto de vista da narrativa é fundamental para o de-senvolvimento do enredo e para o desenho das personagens. A criança pode ser levada a compreender a importância do narrador se for levada a contar a mesma história de diferentes perspectivas. Este é um exercício de produção textual que pode ser feito em relação a um livro, um conto, mas também em relação a uma narrativa oral.

Você pode, por exemplo, contar uma história:

“Era uma vez um passarinho que morava em uma árvore que era sua única amiga e que adorava ouvir seu canto desafinado. Mas quando o inverno chegou, o passarinho se viu forçado a migrar para o sul e ficou meses longe de sua amiga. Depois de um tempo o passarinho voltou para perto de sua amiga e a encontrou no mesmo lugar”.

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Trata-se de um enredo simples que pode ser contado a crianças bem pequenas. O exercício é este. Você pode pedir que seus alunos de quinta a oitava produzam narrativas para serem contadas para crianças menores, mas de duas maneiras diferentes: do ponto de vista do passa-rinho e do ponto de vista da árvore. É claro que o passarinho vai ter o que narrar sobre a viagem e sobre a terra para onde migrou e a árvore só poderá falar do cenário onde ficou e de suas saudades do canto, mas nada saberá sobre a viagem do passarinho. Você vai poder perceber tam-bém que cada criança vai criar outros fatos a partir deste núcleo simples que você forneceu. Feito este exercício, você pode ir além: pode pedir que elas unam as duas histórias em uma única história contada por um “sabe-tudo”. Basta, para tanto, que você esclareça que aquele que conta pode entrar nos pensamentos das pessoas, das árvores e dos bichos.

Desta forma, você estará estimulando a relação dos alunos com a literatura através da própria produção textual. Assim como este exer-cício pode ser feito em relação a uma narrativa simples, também pode ser feito em relação a um filme. Você pode criar uma situação em que haja uma ação e duas personagens envolvidas em um conflito. Tal como o conflito entre Macunaíma e o Gigante Piaimã. O exercício será pedir que eles criem uma situação e uma terceira personagem ficcional que será o condutor da solução para o conflito.

Claro está que estes exercícios também desafiam a criatividade do professor. Por isto, suas atividades no ambiente virtual estarão direcionadas a criar possíveis exercícios deste tipo, a partir dos conteúdos aprendidos nesta disciplina.

Os estilos das narrativas, bem como suas diferentes leituras, tópi-cos tratados quando falamos do autor-modelo e do leitor-modelo, vão emergir naturalmente, na medida em que se percebe a diversidade de estilos de escrita que surgem na sala de aula com os exercícios.

É importante ressaltar, entretanto, que a produção textual é uma forma de trabalhar a narrativa, mas que deve acontecer em paralelo à leitura de narrativas ficcionais. Minha sugestão é que você não se limite

Nome provisório que se pode dar ao que chamamos

de narrador onisciente.

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a trabalhar com os alunos apenas com livros compreendidos como li-teratura infanto-juvenil. Como já visto, muitos recursos literários estão mais próximos da criança do que se pode pensar. Isto não quer dizer que não haja excelentes narrativas infanto-juvenis, tais como Lalande de Flavio Carneiro. Contudo, se olhar com cuidado, você vai encontrar narrativas de escritores considerados “difíceis” perfeitamente apropria-das ao trabalho com crianças e adolescentes.

Clarice Lispector, por exemplo, é conhecida pela sofisticação e complexidade de suas narrativas. Porém, Felicidade clandestina e Laços de família são dois livros de contos de Clarice que se adequam bem a jovens leitores.

Gostaria, por último, de fazer uma observação em relação ao con-tato com a narrativa no ensino fundamental. Como já disse, algumas crianças se tornam leitores muito cedo. Outras, no entanto, só têm con-tato com a leitura na adolescência e na idade adulta. Caso você perceba que seus alunos ou uma parte deles jamais leram uma narrativa longa, tente priorizar livros de contos. Este método permite que o aluno tenha contato com uma maior diversidade de estilos de narrativas e que tenha a oportunidade de descobrir o seu gosto pessoal, saber quais estilos mais o estimulam. A obrigatoriedade da leitura de um livro longuíssimo que, porventura, não venha a ser do agrado da criança pode afastá-la dos livros. Claro que você pode argumentar: “mas eu só darei bons livros!”. Saiba que gosto e valor são duas coisas distintas. Posso reconhecer o valor de uma obra na história da literatura, mas não ter afinidades com o estilo do escritor. Como a criança e o adolescente ainda não têm dis-cernimento para estabelecer esta distinção, vão considerar como boas aquelas narrativas que lhes derem prazer, sem maiores relativizações. Nem todos os alunos vão sentir prazer com a narrativa de Clarice Lis-pector. Daí ser de fundamental importância possibilitar o contato com narrativas diversas, desde que você nelas reconheça valor literário.

Para o próximo capítulo, peço que leia a obra de Cândida Vilares Gancho intitulada Como analisar narrativas.

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Capítulo 03A Narrativa no Ensino Médio

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3 A Narrativa no Ensino Médio

Aquele amor

nem me fale

(Adolescência, Oswald de Andrade)

3.1 O Cotidiano

Da mesma maneira que você deve considerar o cotidiano dos alu-nos de ensino fundamental na tarefa de familiarizá-los com a narrativa, também no ensino médio este cuidado deve ser tomado. Principalmen-te no que diz respeito à escolha das obras a serem estudadas e na ma-neira de abordar as obras canônicas. A adolescência é uma fase em que as emoções se encontram à flor da pele e em que o indivíduo tende a superdimensionar seus sentimentos. É importante que o aluno possa reconhecer nas narrativas elementos que fazem parte de seu universo.

Isto pode ocorrer através da abordagem de livros com personagens jovens ou temáticas que falem aos adolescentes, ou através da mediação do professor, que pode levar o aluno a perceber afinidades entre o seu contexto e os contextos das obras literárias, mesmo que estes se refiram a tempos e sociedades bastante distintos. As próprias diferenças devem ser um estímulo à reflexão acerca do próprio contexto dos alunos.

Por exemplo, a linguagem de Machado de Assis pode, a princípio, fazer com que o aluno se sinta afastado do que é tratado na obra. Entre-tanto, a mediação do professor pode fazer perceber que a narrativa está centrada na exploração de um sentimento humano complexo e bastante presente ao longo dos tempos: o ciúme. Para levar o aluno a esta percep-ção, o professor pode selecionar trechos, estabelecer comparações com narrativas ou fatos contemporâneos, promover o debate. Pode também, é claro, estimular a interação com os textos através da produção textual. Só que, no nível médio, espera-se que o aluno seja capaz de escrever re-senhas e pequenos artigos críticos. A escrita criativa pode ser um meio

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para estimular a leitura, mas o objetivo final é que o aluno produza re-flexões acerca da literatura, na posição de alguém que já conhece sua especificidade. Ou seja, no ensino médio, a literatura não é mais um dos meios para o estudo da língua, mas se configura como o objeto mesmo de estudo e o currículo se organiza a partir do conhecimento da história da literatura e da periodização literária, tal como apresentada pela his-toriografia, que divide as obras e autores em estilos de época.

Outro cuidado que se deve ter é com a quantidade de informações disponíveis no espaço virtual. Se, por um lado, estas informações são bem-vindas, nem sempre estão a serviço do conhecimento. Isto porque informação e conhecimento são duas coisas distintas. Para que o alu-no possa passar da informação ao conhecimento, ele deve ser capaz de refletir sobre a informação de forma crítica, estabelecer relações, e não apenas memorizar. A Internet disponibiliza inúmeros artigos sobre lite-ratura e o aluno pode eventualmente apresentar um trabalho “baixado” ou mesmo apresentar como sendo de sua autoria o conteúdo de um trabalho já existente na Internet. É preciso que o professor esteja atento e informe os alunos a respeito da ilegalidade deste procedimento e da importância de produzir reflexões de sua própria autoria.

Alguns cuidados podem ser tomados neste sentido:

Procure estar ciente das informações existentes na Internet a) acerca dos livros com os quais trabalha.

Seja original ao solicitar reflexões sobre as obras, propondo b) questões que estejam relacionadas com debates surgidos den-tro da própria sala de aula e com o contexto dos alunos.

Procure sempre pedir que os alunos façam comparações e es-c) tabeleçam relações entre textos de forma a manter a originali-dade das questões que você propõe. O aluno NÃO deve poder encontrar as suas propostas disponíveis no espaço virtual.

Informe aos alunos acerca dos procedimentos corretos ao se d) utilizar de idéias alheias, ou seja, trabalhe em sala de aula o uso de aspas, citações e a maneira correta de fazer paráfrases e de mencionar o autor das idéias.

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Estes procedimentos têm como objetivo justamente levar o aluno à construção de conhecimento, o que não poderá ocorrer pelo simples acúmulo de informações e nem pela memorização de reflexões alheias. Para tanto, é preciso que o aluno se sinta um protagonista em relação ao conhecimento, e não um mero receptor passivo. É importante que o aluno seja estimulado a participar e a interagir com as aulas e com os seus conteúdos. Para isto, o professor deve criar um bom ambiente em sala de aula, regras que permitam que as intervenções em sala e o debate entre os alunos aconteçam sem tumulto. É necessário também que o professor estimule o respeito entre os alunos e mostre o quanto a diversidade de opiniões é salutar, de forma que ninguém se sinta intimi-dado ou desmotivado a dar sua opinião. Mais importante ainda é que o professor valorize as contribuições dos alunos, procurando sempre jus-tificar os pontos de vista, antes de criticá-los. Isto corresponde a come-çar o comentário sobre a intervenção do aluno a partir do enfoque no que este pode apresentar de positivo e pertinente para só então, e com delicadeza, apontar suas limitações. Uma intervenção pode não estar correta, mas nem por isto deve ser considerada ilegítima.

3.2 O Cânone Literário

A palavra cânone é de origem grega (kanón) e era inicialmente uti-lizada para designar um instrumento de medida. Mais tarde, passou a ser incorporada pelo discurso religioso para se referir à lista de livros que deveriam ser lidos. Daí se origina sua aplicação à literatura. Quando se fala em cânone literário, pensa-se em uma lista de livros considerados clássicos e que devem ser preservados de geração a geração. Isto não quer dizer, entretanto, que o cânone deva ser visto como fixo e imutável. Ao contrário, por estar a serviço da história, de uma concepção moderna do tempo e não mais a serviço da religião como o cânone religioso, o cânone literário é dinâmico. Pressupõe-se que, a cada nova geração, novas obras do passado serão valorizadas. Daí a importância de o cânone estar sempre sendo testado em novos leitores, que são efetivamente aqueles que confir-mam a viabilidade de sua permanência na lista de grandes obras, princi-palmente porque, na medida em que se transformam as metodologias de abordagem do texto literário, mudam também os padrões de gosto e os critérios de valor segundo os quais as obras são abordadas.

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Na disciplina Teoria da Literatura I você já entrou em contato com esta discussão sobre o cânone não somente porque o livro-texto ins-creve este tema logo em seu início, mas também porque a disciplina foi elaborada de forma a possibilitar que o aluno de Letras-- Português pudesse entrar em contato com obras canônicas da literatura universal. Por isto você leu poemas épicos, tragédias gregas, Shakespeare, Borges, Kafka, para citar apenas alguns.

Nas disciplinas de Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa não é diferente: você estará lendo os clássicos destas literaturas e entrando em contato com aquelas obras consideradas pela história e pela crítica como mais valiosas: Machado, Alencar, Clarice, Guimarães, Drummond são alguns nomes que não podem escapar de um bom currículo de Letras.

No ensino médio, a preocupação também é com o conhecimento do cânone. O primeiro desafio existente no ensino da Literatura no nível médio diz respeito a um currículo que tende a valorizar a aproximação da Literatura através do estudo de períodos literários e estilos de época. Esta forma de historiografia tende a reunir certo número de obras em um mesmo período, dentro do qual valorizam-se mais as semelhanças do que as diferenças entre as obras, tendo em vista o pertencimento a um certo estilo de época. A periodização literária tende, ainda, a enfatizar o contexto de produção de obras e a não inscrever o contexto de recepção. Ou seja, as obras produzidas em certo período são reunidas em função de características comuns e recebem o nome de escolas literárias que se sucedem em ordem cronológica como, por exemplo, Romantismo, Realismo, Modernismo. Mas quem as reúne? Os historiadores. Como já visto, o Barroco, por exemplo, só teve este nome no século XIX. A pe-riodização existe justamente para possibilitar a compreensão das épocas a partir do estabelecimento de relações entre as obras. E a periodização está a serviço da história, que, por sua vez, pressupõe a compreensão do tempo como portador de mudança.

Saber os autores de livros e conhecer as características principais das escolas literárias é uma forma de lidar e aprender sobre a cultura de diver-sos contextos históricos, mas não garante a leitura aprofundada e a capa-cidade analítica dos textos literários. Para isto, você precisará abordar os livros através de análise e oferecer subsídios aos alunos para que, ao longo

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do ensino médio, eles possam aperfeiçoar suas estratégias analíticas. A propósito, você deve ter conhecido alunos que nas aulas de literatura se limitavam a memorizar as características dos estilos. Ou seja, a aula de literatura, neste caso, não cumpre o papel de formar um leitor. Daí a im-portância de haver a preocupação com a promoção de atividades em que o aluno possa efetivamente demonstrar a leitura do livro e sua capacidade não só de compreendê-lo, como de analisá-lo e interpretá-lo.

Como professor de ensino médio você tem, portanto, um duplo desafio. Por um lado, está mediando a relação do aluno com a literatura e auxiliando na formação de um leitor. Por outro, está preparando o aluno para o vestibular - exame que pode levar à universidade, almejada pela maioria -, que se pauta em uma avaliação com perguntas objetivas acerca das obras. Você deve ter mente este duplo objetivo de seu traba-lho. Ou seja, é importante reforçar as informações sobre os períodos literários, sobre os contextos históricos de produção das obras, mas é importante também oferecer subsídios para que o aluno possa analisar as obras e criticá-las.

O livro Como analisar narrativas traz um panorama dos elementos da narrativa de que tratei ao longo desta disciplina. Por isto, seu objetivo não é propriamente de abordar seu conteúdo, que, em sua maioria já foi tratado nos capítulos anteriores. Trata-se de uma sugestão de leitura para os alunos do ensino médio, que nele podem encontrar um excelen-te guia para a análise de narrativas.

Quando um aluno resume um romance ou um conto a partir dos elementos principais do enredo, está fazendo uma síntese, que pode ca-ber em pouquíssimas linhas. Para chegar a uma análise, o aluno deverá apresentar uma abordagem dos elementos que constituem a narrativa, a partir do seguinte roteiro:

Gênero narrativo: romance, conto, novela ou crônica.1)

Partes do enredo: exposição, complicação, clímax e desfecho. 2)

Personagens: protagonista, antagonista, personagem secundá-3) ria, personagem plana, personagem redonda.

Caracterização das personagens: características físicas, psico-4) lógicas, morais, sociais.

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Tempo: época, duração, tempo psicológico e tempo cronoló-5) gico.

Ambiente6)

Tipos de narrador7)

Tema, assunto e mensagem8)

Discursos: direto, indireto9)

O roteiro acima, na verdade, serve também para que você elabore questões relativas às narrativas. No ensino médio, o aluno pode produ-zir um trabalho sobre uma narrativa abordando todos os itens acima. Você pode também selecionar alguns elementos e elaborar questões es-pecíficas que possam guiar o aluno para a interpretação e a abordagem crítica das obras. Por exemplo:

No romance Dom Casmurro de Machado de Assis, o narrador a) é o próprio personagem que dá título à obra, configurando-se, portanto, como personagem em primeira pessoa. Qual a fun-ção que o ponto de vista da narrativa exerce na obra?

Para a composição de seu romance Iracema, José de Alencar b) tem como base as relações entre brancos e índias que acontece-ram nas terras brasileiras desde os primeiros tempos da colo-nização. Entretanto, a personagem feminina de Alencar é fruto de um processo de idealização, de romantização da figura do índio. Apresente as principais características da personagem que confirmem esta afirmação. Aborde as distinções entre per-sonagem e ser humano.

O romance Macunaíma é ambientado na terra brasileira. Ocor-c) re, no entanto, que Macunaíma inverte o percurso do coloniza-dor, pois este foi do litoral para o interior do país e Macunaíma vai do interior para o litoral. Quais as funções exercidas pelo ambiente e pelo espaço para fazer do romance uma crítica à realidade brasileira? Dê exemplos.

Vidas Secas de Graciliano Ramos é uma narrativa sobre a crua d) realidade da seca nordestina. Este é o tema da obra. De que

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forma a configuração das personagens contribui para a drama-ticidade na apresentação do tema? Dê exemplos.

Quais os tipos de discursos utilizados no romance Triste fim de e) Policarpo Quaresma de Lima Barreto? Que funções exercem estes discursos em sua relação com o enredo?

Estes são apenas alguns exemplos de como se pode utilizar o estudo dos elementos da narrativa no ensino médio. Você certamente será capaz de criar muitos outros. Para tanto, é importante que daqui por diante, você anote as informações relativas às obras que lê. O ideal é que fizesse um roteiro com o resumo dos elementos principais para cada uma das obras que está lendo em Literatura Brasileira. Você poderá perceber que, de acordo com a obra, um elemento se torna mais significativo que outro. É por isto que é possível escrever um ensaio ou artigo sobre um único ele-mento, tal como faz Silviano Santiago em relação à figura do narrador.

No momento de maturidade enquanto crítico, se é capaz de perce-ber elementos novos nos textos e produzir reflexões originais. Mas, an-tes disto, é preciso que se internalizem os conceitos que possam permitir reconhecer os elementos de uma narrativa, tendo em vista não apenas aumentar seu campo de visão enquanto leitor, mas também suas possi-bilidades de estratégias enquanto professor.

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Capítulo 04Algumas Palavras Sobre Você e a Narrativa

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4 Algumas Palavras Sobre Você e a Narrativa

Tropeçavas nos astros desastrada

Quase não tínhamos livros em casa

E a cidade não tinha livraria

Mas os livros que em nossa vida entraram

São como a radiação de um corpo negro

Apontando pra a expansão do Universo

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso

(E, sem dúvida, sobretudo o verso)

É o que pode lançar mundos no mundo

(Livros, Caetano Veloso)

Assim como falei sobre o papel do cotidiano e das distinções entre informação e conhecimento em relação aos alunos do ensino fun-damental e médio, também tenho em mente estas questões em rela-ção a você como aluno. Por isto, gostaria de terminar este livro-texto com algumas palavras em torno de seu percurso por este livro.

Desde o início do livro, para facilitar o processo, determinei que estaria comentando os elementos da narrativa através da referência às obras estudadas em Literatura Brasileira II. De fato, na medida do pos-sível, fui retirando exemplos, assinalando aspectos, propondo percursos em relação àquelas narrativas. Suas anotações em torno das obras são de importância fundamental para que você possa voltar às narrativas em vários momentos, não somente ao longo da disciplina, mas também quando precisar elaborar um trabalho para Literatura Brasileira, ou ain-da, em sua atuação futura como professor. Faça fichamentos, tenha re-sumos das obras e anotações sobre os elementos que mais se destacam em cada uma delas. Caso você perceba algum aspecto que não foi trata-

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do ao longo deste livro, mas que chama sua atenção nas narrativas que está lendo, dê sugestões.

Se surgir alguma dúvida em relação ao diálogo entre as duas disci-plinas, não deixe de questionar os professores e tutores a respeito.

Tão somente por questões didáticas, optei por abordar estes ro-mances. Entretanto, a teoria da narrativa diz respeito a toda e qualquer narrativa e você deve ter estes elementos em mente em relação aos ro-mances, contos, canções, narrativas orais, crônicas, material de internet, novelas televisivas, etc. Enfim, de agora em diante, você deve perceber aspectos nas narrativas literárias e nas narrativas do cotidiano que até então não tinha subsídios para perceber. Sempre que se der conta de algo que se relacione com o conteúdo deste livro, anote e, assim que possível, compartilhe.

No próximo período, em Teoria da Literatura III, você trabalhará com a poesia. Veja como começou o curso em um certo nível, leu os clássicos no período passado, agora acaba de estudar um novo conte-údo sobre narrativa e se encaminha para se aprofundar nos estudos do gênero lírico. Assim, você se transforma aos poucos e constrói seu co-nhecimento, indo de um estado inicial até o desfecho, com sua forma-tura. Você também é uma personagem e este processo faz parte de sua narrativa. Bom enredo!

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Referências

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Áti-ca, 2006.

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