[Livro UFSC] Literatura Ocidental II

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Literatura Ocidental II Liliana Reales Rogério Confortin Florianópolis, 2009. Período

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Literatura Ocidental II

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  • Literatura Ocidental IILiliana Reales

    Rogrio Confortin

    Florianpolis, 2009.

    3 Perodo

  • Governo Federal

    Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da SilvaMinistro de Educao: Fernando HaddadSecretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

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    Ficha catalogrfica

    Catalogao na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina.

    R288lReales, Liliana

    Literatura ocidental II/ Liliana Reales, Rogrio Confortin. Florianpolis : LLE/CCE/UFSC, 2009.

    110 p.ISBN 978-85-61483-14-2

    1. Literatura ocidental. 2. Sculo XX. I. Confortin, Rogrio.

    II.Ttulo. CDU: 82

  • Sumrio

    Unidade A ......................................................... 9

    1 O literrio e os conceitos de Afeco e Durao ..........111.1 O literrio ................................................................................................111.2 O conceito de afeco .......................................................................121.3 O conceito de durao ......................................................................17

    2 A narrao em primeira pessoa ....................................192. 1. A passagem da narrao em terceira pessoa narrao em primeira pessoa ..........................................................................................19

    Unidade B ........................................................ 23

    3 A dessacralizao da obra de arte .................................253.1 Retomando algumas questes da Unidade anterior .............253.2 As contribuies tericas deWalter Benjamin ..........................283.3 O narrador ..............................................................................................30

    Unidade C ........................................................ 35

    4 A experimentao narrativa .........................................374.1 Em busca de uma nova temporalidade ficcional ....................37

    Unidade D ....................................................... 45

    Introduo ........................................................................47

    5 A experincia figurativa do tempo e do espao ficcionais ..........................................................49

    5.1 Marcel Proust ........................................................................................49

  • 5.2 Marcel Proust crtico ...........................................................................53

    6 Franz Kafka ....................................................................576.1 Kafka e a transformao da literatura ..........................................576.2 A exigncia da obra em Kafka ........................................................616.3 O papel fundamental da imagem do topgrafo na obra de Kafka .........................................................................................65

    7 Um novo caminho contra a iluso realista...................697.1 Virginia Woolf ........................................................................................697.2 Uma inovadora .....................................................................................70

    8 A paixo da escritura .....................................................778.1 Samuel Beckett ....................................................................................778.2 Paixo melanclica .............................................................................80

    9 Um inovador ..................................................................859.1 James Joyce: breve biografia ..........................................................859.2 Uma abordagem sobre o carter parodstico do Ulisses .... 86

    10 Uma crtica teoria e prtica literrias ...................9510.1 Alain Robbe-Grillet ...........................................................................95

    11 Um escritor erudito .....................................................9911.1 Fama mundial ....................................................................................9911.2 Uma biografia intelectual ...........................................................10011.3 Tln, metfora do mundo ...........................................................105

    Referncias ...................................................109

  • ApresentaoCaro aluno,

    A preparao deste livro didtico, Literatura Ocidental II, apresentou-se

    para ns no s como uma tarefa especialmente prazerosa, mas tambm

    como um grande desafio. A produo literria do Ocidente do sculo pas-

    sado deu ao mundo uma extraordinria quantidade de obras de excelen-

    te qualidade. Em termos quantitativos, teria que se ter promovido uma

    pesquisa exaustiva de catalogao das mais importantes publicaes do

    sculo passado. Em termos qualitativos, a dificuldade da escolha ainda

    maior devido s implicaes tericas que a Literatura Ocidental do Sculo

    XX passa a suscitar, especialmente, a narrativa.

    Se a quantidade e a qualidade do material de uma Literatura Ocidental do

    Sculo XX so importantes em um estudo literrio, teramos, como outra

    questo implicada, a dimenso da crtica enquanto construtora e legitima-

    dora de modelos de apreciao dessa literatura. Do mesmo modo, como

    densa a qualidade das obras literrias no ocidente no sculo XX, tambm

    h uma visvel variedade de escolas crticas que se empenharam em des-

    crever e valorizar saberes dessa experincia literria.

    Dada a diversidade e a densidade do objeto de nosso livro didtico, preten-

    demos relacionar em dois tempos a escolha dos autores que aqui sero tra-

    tados, com uma observao geral sobre a qualidade da experincia literria

    enquanto experincia esttica e a potncia crtica de algumas escolas que

    se desenvolveram junto aos ritmos e aos desdobramentos de uma literatu-

    ra que se instituiu como verdadeira experimentao e contraponto a um

    certo modelo de linguagem literria do sculo XIX.

    Nesse sentido, observamos, tambm, que o eixo principal de nossa propos-

    ta ser o de descrever, em linhas gerais, o desenvolvimento de uma certa

    passagem de um modelo de romance mimtico, apoiado numa estrutura

    narrativa em terceira pessoa - que tende a esconder sutilmente o narrador

    atravs da iluso retrica de um narrador onisciente - valorizao de um

    narrador em primeira pessoa que traz consigo uma srie de estratgias nar-

    rativas diferenciadas e que elabora modelos diferenciados de tratamento

  • do foco narrativo, instituindo uma srie de re-elaboraes da experincia

    narrativa do tempo e do espao na Literatura Ocidental II.

    Por outro lado, levando em conta que h disciplinas especficas para tratar

    da lrica e do teatro, decidimos nos concentrar no romance que traz, desde

    o sculo XIX, uma herana de valorizao e na narrativa curta ou o conto,

    muito valorizado tambm durante o sculo XX.

    Para nossa disciplina, com carga horria de 60 horas/aulas, dividimos o ma-

    terial didtico em quatro Unidades. Na Unidade A, propomos uma reflexo

    sobre a questo literria relacionada aos conceitos de afeco e de durao.

    Na Unidade B, estudaremos as contribuies de Walter Benjamin para se

    entender a arte e a literatura do sculo XX. Na Unidade C, estudaremos a

    busca da literatura por uma nova temporalidade ficcional e seu mergulho

    na experimentao narrativa. Na Unidade D, estudaremos alguns dos re-

    presentantes mais importantes da literatura do sculo XX.

    Desejamos a voc um bom estudo!

    Os autores

  • Unidade AA questo literria e a questo crtica

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    CAPTULO 01

    O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

    Neste Capitulo, vamos re etir sobre a questo literria, os modos e as pr-ticas singulares de experincia que ela elabora por meio da linguagem. Tambm, estudaremos o conceito de afeco entendido como operador de sentido da arte e o de durao enquanto conceito de uxo de conscincia do tempo.

    1.1 O literrio

    A literatura se apresenta como verdadeiro tecido de formas e mo-dos de expresso do sentido esttico e cultural de uma sociedade em uma poca. Em outras palavras, a escritura ou a textualidade literrias expressam, no jogo de suas formas e na prtica que fazem da linguagem, as questes econmicas, polticas, los cas e histricas presentes num determinado perodo histrico e em um determinado espao. Alm de operar como um certo canal de explorao crtica dos acontecimentos histricos de um momento ou de uma poca, em nosso caso, o sculo XX, a literatura pode apresentar questes ainda no tematizadas pela cincia ou pela loso a, pois a escritura literria tem caractersticas pr-prias que so os modos e as prticas singulares de experincia que ela elabora por meio da linguagem.

    De um modo ou de outro, a literatura tem relao com os fatos e desenvolvimentos culturais de um perodo, os quais esto intimamente relacionados tanto cincia quanto loso a. Mas podemos a rmar que a literatura se d enquanto tal, ou seja, enquanto fenmeno e expresso artstica, por meio de uma linguagem diferenciada da linguagem por meio da qual a cincia e a loso a se tornam possveis. Isso no signi ca que a literatura no se interseccione a partir de uma estrutura comum de linguagem com a cincia e com a loso a. A linguagem como es-trutura de signi cao constitui e institui modelos de compreenso do mundo. Tanto a cincia quanto a loso a e a arte se desdobram em pos-

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    sveis modelos atravs dos quais o mundo se apresenta de forma mlti-pla e interseccionada. Finalmente, diramos que os modelos mesmos se interpenetram, gerando e transformando-se a si prprios.

    Segundo o lsofo Gilles Deleuze, enquanto a cincia operaria por meio de funes e percepes dos fenmenos, a loso a operaria a par-tir de conceitos e proposies e a arte de modo geral, como a literatura de modo particular, operaria a partir de afeces ou modos expressivos espec cos de ordem esttica.

    1.2 O conceito de afeco

    O conceito de afeco entendido como operador de sentido da arte seria, grosso modo, toda relao sempre mediada e intrnseca, material e subjetiva que se estabeleceria de forma dinmica na produo da obra de arte. Nesse sentido, ao qual remete Deleuze em relao afeco, a obra de arte experimentada a partir de nveis de sensao que se do no prprio trabalho de elaborao do artista e que continuam co-existindo como relaes sensrias dinmicas com uma idia de arte compartilha-da socialmente e corporalmente, vale dizer, que so vivenciadas no jogo de nossa subjetividade e de nossa coletividade.

    Gilles Deleuze

    No entraremos em uma discusso propriamente terica dessas di-ferenas conceituais. Optaremos por apresentar, por meio de links, os autores e tericos que so fundamentais para uma compreenso da variedade e da singularidade das transformaes da linguagem literria no sculo XX. Voc pode acessar o endereo http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/ para obter informaes sobre este importante lsofo francs. Nessa mesma pgina de Internet, h outros links interessantes que possibilitam a leitura de textos e cur-sos de Gilles Deleuze. No se preocupe em entender tudo logo de incio, o conhecimento algo que se faz de forma progressiva e sempre com perseverana e curiosidade. Consulte um bom dicio-nrio e sites com credibilidade para elaborar para voc mesmo um conhecimento sempre mais detalhado e nuanado sobre os con-ceitos tericos.

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    CAPTULO 01

    Ora, essas vivncias subjetivas e coletivas a um s tempo e que di-zem respeito arte moderna e contempornea, incluindo a a literatura, so a prpria experincia corprea da arte. So a experincia afectiva proporcionada aos corpos que vivenciam a arte como espectadores e atores dessa mesma situao artstica, se assim podemos dizer. Os cor-pos, os nossos corpos, afetam e so afetados pelas afeces proporciona-das pela situao artstica da obra de arte.

    Nesse sentido contemporneo de uma teoria da arte, a prpria obra de arte deixa de ser apenas um objeto artstico a ser interpretado pelo espectador ou leitor, para ser pensada como coexistncia junto ao es-pectador ou leitor, fazendo parte de um complexo de fatores que in ui e in uenciado como situao ou performao artstica. A arte passa a ser percebida e mesmo afetada e no apenas a signi car simbolicamen-te. Ou seja, a partir dessa noo de afeco podemos pensar a arte, no apenas como objeto belo ou estranho ou diferente mas como ver-dadeira possibilidade de expor uma relao complexa de foras afectivas que transitam por todo o processo de coexistncia entre a experincia da arte e a multiplicidade das relaes scio-culturais.

    Um exemplo da operatria dessa noo de afeco pode ser obser-vado na pintura impressionista que passa a desejar captar todo o mo-vimento de transformao da luz durante o passar das horas. A partir dessa relao perceptiva-afectiva, o impressionismo tenta dar conta de uma certa performance de afeco dessa transio luminosa, enquanto interpretao dinmica entre a passagem do tempo e sua possibilidade de gurao como experincia de representao no-realista do real. O fato de se colocar o termo representao entre aspas indica justamen-te que o que se entende por representao pode ser percebido de forma afectiva, ou seja, que no trabalho de cpia de uma paisagem, essa c-pia, no ser e nunca o foi algo que poderia chegar a mimetizar sua origem real. Isso porque, justamente, no nunca uma cpia, mas sim um processo que performa toda uma situao artstica. sempre um complexo de relaes que acontece numa multiplicidade de opes e escolhas. Por exemplo: o movimento da luz sobre os objetos, a mudana da aparncia da paisagem em funo do jogo de sombras que ai se pro-duz, a escolha das cores e sua vacilao como ato na tela, as interrupes de todo tipo exteriores ao trabalho do pintor, etc.

    Para saber mais sobre pin-tura impressionista, acesse a seguinte pgina: http://es.wikipedia.org/wiki/Impre-sionismo. Tambm, acesse a pgina onde voc poder ler sobre ps-impressionismo e sobre importantes pintores considerados por alguns crticos pertencentes a essa tendncia, tais como Vincent Van Gogh e Paul Gauguin: http://es.wikipedia.org/wiki/Postimpresionismo e http://www.monografi as.com/trabajos/impresionismo/impresionismo.shtml

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    O trabalho do pintor passa da preocupao com um tipo de mode-lo representativo para o exerccio de outra forma de experincia plstica do real. As artes plsticas tendem, a partir desse momento, situado a partir da segunda metade do sculo XIX e incio do sculo XX, a um processo dinmico e intrinsecamente vinculado a uma nova atitude per-ceptiva e de concepo do real. Nesse sentido, sujeito pintor e objeto de pintura se confundem e no representam mais plos absolutamente opostos do ponto de vista fsico e los co.

    O momento histrico de emergncia do impressionismo nas artes plsticas se d concomitantemente ao desenvolvimento da fotogra- a como tcnica cada vez mais elaborada de reproduo de ima-gens, tornando possvel toda uma nova experincia de reproduo pictrica do real. As particularidades tcnicas e o efeito realista da fotogra a in uenciam diretamente na transformao dos modelos de representao das artes plsticas. Uma nova revoluo indus-trial surgia instituindo formas inovadoras de leitura do mundo.

    A questo tecnolgica, exempli cada pela reproduo tcnica em srie, (fordismo na indstria automobilstica e fotogra a e cine-ma nas artes) ser um elemento importante de transformao do mundo. Vale lembrar que o contexto histrico do m do sculo XIX e comeo do sculo XX mostra a emergncia de correntes de pensamento econmico e social, como o comunismo e o socialis-mo, baseadas na leitura de Marx e as ideologias nacionalistas de cunho fascista.

    Nesse contexto de transformao radical dos meios de produo h todo um efervecimento das questes ideolgicas que se trans-formam a si prprias ao atravessarem as relaes sociais. Essas tenses sociais e polticas de um novo mundo maquinizado, tan-to produtor de ideologias socialistas quanto nacionalistas que se encrudeleceram como o stalinismo ou nazismo de Hitler, numa Europa que passara pelas duas maiores guerras da histria recente, de 1914 a 1918 e de 1937 a 1945, constituem o panorama histrico complexo e multifacetado do que podemos, a principio, entender por Literatura Ocidental do sculo XX.

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    CAPTULO 01

    Dentre outras correntes estticas, o impressionismo se contraporia a um modelo de pintura realista que se con guraria a partir de certas regras de perspectiva, de enquadramento, de uso das cores e de toda uma herana gurativa. O impressionismo surge como outro modelo de representao pictrica, alicerado por outros elementos perspectivos e gurativos que se elaboraro como alternativa na pintura: a busca de uma relao de representao dinmica da luz, a necessidade de uma liberao do realismo da pintura pr-moderna, in uencia a transfor-mao advinda do surgimento da tcnica fotogr ca no contexto mais amplo de toda a revoluo das tcnicas do comeo do sc. XX.

    Dessa contextualizao geral das transformaes polticas, sociais, tcnicas e estticas ocorridas na passagem do sc. XIX ao sc. XX e que implicam uma transformao profunda nos modos de interpretao gu-rativa da realidade, poderamos dizer que do mesmo modo como existi-ram modelos estticos espec cos nas artes plsticas e que foram radical-mente contestados na virada do sculo a partir das diversas vanguardas artsticas como, por exemplo, o impressionismo, o cubismo, o expres-sionismo, o dadasmo e o surrealismo tambm um certo modelo est-tico do romance do sc. XIX e que se tornou, diramos, hegemnico, ser contestado e superado de forma crescente e contundente durante todo o sc. XX.

    Nesse sentido, em contraponto ao modelo preponderante do ro-mance do sculo XIX, calcado em um narrador em terceira pessoa modelo desenvolvido e levado a um grau de elaborao altssimo por grandes escritores franceses como Victor Hugo, Balzac, Flaubert e ou-tros e que almejava, como entidade narrativa, desaparecer para o lei-tor por trs de uma espcie de iluso retrica criada a partir das min-cias detalhistas de um narrador onisciente, Marcel Proust, no comeo do sculo XX, colocar em prtica outro modelo esttico, baseado em diferentes procedimentos narrativos.

    De fato, Proust no ir estabelecer algo absolutamente indito ao passar a narrar em primeira pessoa a histria de sua obra mestra, La Recherche du temps perdu, traduzida para o portugus como Em busca do tempo perdido. Nesse movimento de passagem da narrativa em ter-ceira pessoa para uma narrativa em primeira pessoa, h muito mais do

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    que um gesto autobiogr co. Em outras palavras, poderamos dizer que com a entrada desse Eu que conta a histria h toda uma construo estratgica da narrativa que envolver uma nova relao com a descri-o do tempo e do espao na histria.

    Para Proust, fora fundamental conseguir contar a histria da bus-ca de uma experincia de suas memrias de vida, ou seja, para o escritor Proust, a busca de um tempo perdido, passado, escoado ou nalmente vivenciado enquanto lembrana exposta pela escritura e pela experin-cia literria seria a busca de um tipo de narrativa que superasse um certo modelo narrativo denominado mimtico.

    Esse modelo, justamente por se caracterizar por uma idia de re-presentao ou de imitao dedigna do real (mimesis um vocbulo latino mimsis que vem do grego , mimeisis e signi ca imitao), ser o padro cannico de descrio narrativa em termos li-terrios no sc. XIX. Vale lembrar que, do mesmo modo como nas artes plsticas h toda uma transformao dos modos de representao da realidade e dos objetos do mundo, o modo mimtico de descrio nar-rativa um modo espec co organizado e determinado historicamente a partir do uso de certas formas e estratgias narrativas consagradas no sc. XIX.

    Esse modelo mimtico, consagrado pelas obras de escritores como Balzac e Flaubert, ser, ento, aos poucos transgredido de modo que a prpria experincia do tempo possa ser tematizada e elaborada em sua relao paradoxal com a memria, a rememorao e o entroncamento dessas relaes com o espao. Trata-se de toda a discusso terica que atravessa a problemtica da literatura como representao espec ca da experincia do homem no mundo na forma do relato ccional ou tes-temunhal. Para um quadro geral histrico de uma evoluo da repre-sentao da realidade na Literatura Ocidental, ver o lsofo Erich Auer-bach. Auerbach escreveu um livro importante, Mimesis: A representao da realidade na literatura ocidental traduzido para o portugus em 1953 e para o espanhol em 1951.

    http://www.panfl etonegro.com/treintaydos/libros.shtml

  • O literrio e os conceitos de Afeco e Durao

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    CAPTULO 01

    1.3 O conceito de durao

    Seria necessrio, agora, remetermo-nos importncia que tiveram as pesquisas de Bergson nas vrias transformaes dos modelos artsti-cos e literrios do comeo do sculo XX. O lsofo francs Henry Berg-son, nascido em Paris em 1859 e morto na mesma cidade ,em 1941, teve sua produo intelectual preponderante no comeo do sculo XX. Berg-son desenvolveu uma re exo los ca sobre a durao (dure) do tem-po enquanto uxo de conscincia em contraposio ao tempo enquanto varivel cient ca. Para ele, o tempo vivido da conscincia outra coisa que o tempo relacionado ao espao em funo de uma compreenso cient ca. O tempo vivido da conscincia, a durao, tem outro sentido que o tempo calculado como funo do espao. O tempo enquanto con-ceito cient co est relacionado a uma medida de deslocamento de um corpo no espao segundo o tempo de seu intervalo. Esse intervalo para Bergson pode ser pensado como tempo cient co ou como durao de um uxo de conscincia. Para a conscincia, o que importa justamente o que escorre entre as bordas da abstrao matemtica que opera a cincia em relao ao tempo.

    Bergson in uenciou muito a construo de outros modelos de des-crio narrativa do tempo da histria, como o que ocorre na obra de Marcel Proust, Em Busca do tempo perdido. Veremos que toda uma rela-o da descrio do tempo em relao ao espao na literatura do sculo XX est relacionada s pesquisas sobre a durao enquanto conceito de uxo de conscincia do tempo. Da complexidade das descries sen-srias de um narrador que conta a histria de sua vida como romance de si mesmo, como em Proust, des gurao e despersonalizao do narrador que se refere a um mundo onde as fronteiras do inteligvel e do sensvel j no so mais to discernveis, como nas narrativas do Nouve-au roman que estudaremos mais tarde, observa-se um denso processo de transformao do discurso narrativo.

    O historiador da literatura, Henri Godard, identi ca na obra mes-tra de Proust, para alm do uso da narrao em primeira pessoa e das complicaes autobiogr cas que da emergem, uma srie de estratgias discursivas que vo criar toda a complexidade do trabalho romanesco

    Henry Bergson

  • Literatura Ocidental II

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    proustiano sobre a questo da memria e da possibilidade de constru-o de outro modelo narrativo. Em seu livro Le roman modes demploi, que poderamos traduzir por O Romance: modos de uso, ou Romance: manual prtico, Henri Godard apresenta a tese de um certo desenvol-vimento esttico do romance no sculo XX na Frana, como uma srie de experimentaes narrativas, tendendo todas crtica e mesmo ao rechao do modelo de representao mimtica do romance do sc XIX, exempli cado, principalmente, por Balzac e Flaubert, dentre outros es-critores cannicos no sc. XIX.

    A idia de modo de uso ou de manual prtico que se pode ler a partir do ttulo do livro de Godard, aponta para o tema do desenvolvi-mento do romance na Frana, no sentido de se pensar o romance como um verdadeiro aparelho de linguagem, como mquina de linguagem ou mquina narrativa. Podemos perceber que essa mquina de linguagem que o romance ou, num sentido mais amplo, o texto narrativo ou o re-lato ccional no sculo XX passa a ter como motivao e interesse funda-mental o questionamento da prpria linguagem enquanto possibilidade de representao do real em toda a sua complexidade, ou seja, do real pensado e experienciado como texto, naturalmente, possvel de ser lido e, conseqentemente, aberto a uma multiplicidade interpretativa.

    O conceito de cnone diz respeito a uma determinada norma de gosto e de importncia de escritores que teriam uma certa pre-ponderncia por suas regras de estilo e pela amplitude de sua qua-lidade esttica. H toda uma discusso muito calorosa sobre este assunto e sobre a validade terica de um conceito desse tipo. a discusso mesma que abre nosso livro didtico nos termos de uma re exo sobre a quantidade e a qualidade da produo literria no sculo XX ocidental. Procuraremos desenvolver uma discusso sobre esse tema, indicando e elaborando durante a apresentao um panorama histrico-crtico que possa sustentar algumas linhas gerais de explicao para a escolha dos autores que sero trabalha-dos nas Unidades dedicadas aos escritores escolhidos e que, possi-velmente, podero ser enquadrados na acepo do termo Cnone no sculo. XX.

  • A narrao em primeira pessoa CAPTULO 02

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    A narrao em primeira pessoa

    Neste captulo estudaremos a passagem da estrutura da iluso retrica e referencial de um narrador em 3 pessoa prtica narrativa em 1 pessoa. Estudaremos que a literatura no sculo XX ,de um modo ou de outro, far-se- escritura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem ccional, porm cada vez mais impulsionada por um desejo autobiogr -co que, em ltima instncia, no revelar jamais um Eu verdadeiro do escritor, mas uma gama enorme de relaes ou de construes subjetivas.

    2. 1. A passagem da narrao em terceira pessoa narrao em primeira pessoa

    Em outras palavras, a literatura no sculo XX marcada pela con- gurao de uma ruptura entre um modo de representao mimtico do real, assentado numa estrutura narrativa em 3 pessoa e na iluso retrica de um sutil desaparecimento referencial desse narrador e o sur-gimento de uma experincia narrativa calcada no uso da 1 pessoa pelo narrador personagem, sendo que este pode, em alguns casos, ser repre-sentado como o escritor ccional do mesmo texto que o narra.

    O sculo XX observar a emergncia de uma complicao e aden-samento da instncia de um narrador-personagem, no sentido que a passagem da estrutura da iluso retrica e referencial de um narrador em 3 pessoa prtica narrativa em 1 pessoa pressupe, em sua con-textualizao e emergncia esttica, nada mais nem nada menos do que toda a caudalosa complexidade das transformaes polticas, tcnicas e culturais que a histria do sculo XX di cilmente poder esgotar.

    A literatura do sc. XX pode ser lida enquanto espao ou territrio de experincia afectiva e cognitiva onde se renem os elementos absolu-tamente interseccionados de uma experincia histrica e esttica da rea-lidade. O pensamento do criador da psicanlise, Sigmund Freud, in uen-ciou fortemente para o advento do tipo de literatura que no sculo XX adquiriria um tom mais intimista e estratgias de uxo de conscincia.

    2

    Para saber mais sobre o pai da psicanlise, acesse as seguintes pginas: http://www.biografi asyvidas.com/monografi a/freud/ e http://es.wikipedia.org/wiki/Sig-mund_Freud

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    a partir do conhecimento de um determinado esquema ou con- gurao das foras afectivas desenvolvidas desde o nascimento que se pode estabelecer um conhecimento entre um certo quadro psquico do indivduo e um nvel de conscincia ou de linguagem capaz de com-preender seu prprio desenvolvimento. Naturalmente, essa produo de conhecimento est tambm atravessada por uma multiplicidade de fatores que poderamos chamar, em grandes linhas, fatores psico-socio-econmicos.

    Existiriam estruturas desse desenvolvimento que estariam mais ou menos fadadas a um certo esquecimento traumtico como forma de de-fesa da prpria signi cao de um determinado evento na constituio da personalidade do indivduo. Toda uma dimenso de conhecimento sobre os modos de operao entre inconscincia e conscincia a partir da con gurao psquica do individuo, passa a fazer parte do conhecimen-to psicolgico. Na verdade, o que Freud desenvolve um conhecimento sobre a possibilidade de desmascarar certos efeitos de foras afectivas no desenvolvimento psquico de certos indivduos. A esse mtodo de investigao e de interpretao das con guraes subjetivas dadas na relao do inconsciente e do consciente se nomeara de psicanlise.

    Freud estabelecera, na passagem do sc. XIX ao sc. XX, as bases para o conhecimento do inconsciente entendido como verdadei-ra dimenso das relaes de afeco no homem. O conhecimento sobre o desenvolvimento psquico humano estaria da em diante atrelado a toda uma pesquisa contnua da funo do desenvolvi-mento da sexualidade junto aos ritmos afetivos que o ser humano desenvolveria desde seu nascimento. Como uma espcie de escri-tura afectiva dimensionada a partir do inconsciente e funciona-lizada na construo de modos de comportamento mais ou me-nos condizentes com certas estruturas afectivas dadas a partir de processos ou fases do desenvolvimento psquico, Freud desenvolve uma verdadeira revoluo no conhecimento a partir de uma lei-tura do inconsciente interpretado enquanto estrutura arquetpica fundamental. (Saiba mais sobre o conceito de arqutipo visitando a pgina http://es.wikipedia.org/wiki/Arquetipo)

  • A narrao em primeira pessoa CAPTULO 02

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    As anotaes que acabamos de fazer sobre Freud procuram ape-nas situar o acontecimento cient co das investigaes freudianas no plano de con gurao da Literatura Ocidental do sculo XX. Diversos sero os herdeiros e crticos da obra de Freud como, por exemplo, para citar apenas dois nomes, Carl Jung e Jacques Lacan, este ltimo sendo aquele que desenvolve a idia de um inconsciente estruturado como lin-guagem.

    Na verdade, a obra de Freud, por sua vasta dimenso e alcance epis-temolgico atravessar como um todo praticamente todas as reas do conhecimento humano. A literatura jamais ser a mesma aps o adven-to da psicanlise, pois de algum modo a escritura literria pode ser pen-sada como verdadeiro trabalho de interpenetrao e desdobramento da linguagem pensada, a partir desse momento, como dimenso de expo-sio e retraimento de foras tanto afectivas quanto perceptivas da reali-dade. A literatura no sculo XX, de um modo ou de outro, se far escri-tura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem ccional, porm cada vez mais impulsionada por um desejo autobiogr co que, em ltima instncia, no revelar jamais um Eu verdadeiro do es-critor, mas uma gama enorme de relaes ou de construes subjetivas que partem da subjetivizao ou ccionalizao desse Eu destinao gurativa, descritiva e narrativa de um Ele. Este ser a instncia de diferena absoluta encarnada como Outro, como o fora de mim, aquele que no sou, ou seja, dimenso de negatividade ou de contraponto com a possibilidade de construo de identidade do sujeito.

    Para saber mais sobre Carl Jung acesse: http://www.psicomundo.org/jung/O site http://es.wikipedia.org/wiki/Jacques_Lacan lhe aju-dar a obter mais informao sobre Jacques Lacan

    A propsito dessa aparente fora identitria, a literatu-ra do sc. XX ir pouco a pouco e de forma sutil, a um s tempo temtica e semanticamente elabora-da, mostrar que ao mesmo tempo em que um Eu fi ctcio atravessado por questes autobiogrfi cas, ele se remete a si mesmo ou aos outros a sua volta a partir da explorao dos meandros muitas vezes ca-ticos de sua subjetividade. Essa subjetividade j no ser a de um sujeito deter-minado por uma analogia biogrfi ca, mas declarar a verdadeira complexidade de um mundo atravessado por questes to densas quanto a prpria dimenso do inconsciente em sua re-lao indissocivel com o que entendemos por cons-cincia. nesse ponto bru-moso, onde se cruzam as questes fi losfi cas, ticas e estticas, que nosso tem-po procura estabelecer os nexos possveis de entendi-mento e onde procuramos observar, tambm, como a literatura ai se apresenta.

  • Unidade BA dessacralizao da obra de arte

    Walter Benjamin

  • A dessacralizao da obra de arte

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    CAPTULO 03

    A dessacralizao da obra de arte

    Neste capitulo, veremos como a arte, no estando mais associada valora-o de um carter nico e sagrado, passa a ser considerada em relao ao seu valor de comrcio, de exposio, de troca e de uso. As transformaes tcnicas e materiais que passam a re-fundar a prpria compreenso do mundo esto tambm relacionadas com uma transformao da signi -cao simblica e sociolgica que a arte traduz como meio singular de interpretao histrica.

    3.1 Retomando algumas questes da Unidade anterior

    Tentaremos, agora, resumir o que delineamos at aqui como eixo crtico para se pensar o complexo e amplo tema de nossa disciplina: Literatura Ocidental do sculo XX. No se poderia deixar de observar a complexidade quantitativa e qualitativa de um corpus que compreen-de um sculo absolutamente conturbado por sua variedade de fatos e a emergncia de toda uma indstria de reproduo tcnica que transforma e multiplica vertiginosamente a obra de arte e a prpria produo liter-ria. Lembremos o papel da fotogra a e do cinema como fundamentais em relao s in uncias tcnicas e estticas que tero sobre a literatura. Lembremos, tambm, a complexidade do contexto histrico e poltico da passagem do sc. XIX ao sc. XX, marcado por rduas lutas sociais e a formao das ideologias social nacionalistas que, junto ao aconte-cimento traumtico das duas grandes guerras, na primeira metade do sculo XX, puseram a nu uma srie de outras problemticas histricas e culturais profundas que sero tematizadas a partir de con guraes estticas variadas nas obras literrias que trataremos mais adiante.

    Veri cada a amplitude do corpus literrio do sculo XX, determi-namos, ento, como eixo organizador de anlise da Literatura Ocidental desse sculo, a passagem de uma estrutura narrativa mimtica baseada

    3

    A noo de corpus se refere ao material documental e bi-bliogrfi co relacionado a um determinado tema de pesqui-sa e que corresponde sempre a uma escolha metodolgica que exige a delimitao de uma hiptese de trabalho cujo desenvolvimento tenta responder a determinadas questes.

  • Literatura Ocidental II

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    no uso da 3 pessoa pelo narrador, s estruturas e modos de descrio narrativa em 1 pessoa. Esse fenmeno estabelece uma experincia de explorao subjetiva do narrador que poderamos compreender como a entrada em uma dimenso subjetivante e uma valorizao da cena autobiogr ca da literatura do sc. XX.

    Em ltima anlise, essa dimenso autobiogr ca da literatura ser tambm a abertura da narrativa a um desenvolvimento maior de suas prprias possibilidades formais e temticas de contextualizao crti-ca, esttica e histrica do sculo XX. O desdobramento da investigao subjetiva elaborada pelo narrador em 1 pessoa no signi ca de forma alguma e preciso que isso que claro a eliminao do uso dis-cursivo de um narrador em 3 pessoa no desenvolvimento da literatura, mas sim o deslocamento do foco narrativo a uma instncia de subjetivi-zao que passa a elaborar de outro modo a complexidade das questes que atravessam de forma indita a literatura no sc. XX.

    Observado esse quadro de desenvolvimento esttico-formal da li-teratura, con gura-se na modernidade.

    Para saber mais sobre o con-ceito de Modernidade, voc pode consultar as seguintes pginas: http://www.merca-

    ba.org/DicPC/M/modernidad.htm e http://es.wikipedia.org/

    wiki/Modernidad

    O conceito de modernidade chave para a compreenso da Li-teratura Ocidental do sc. XX. Em linhas muito gerais, podera-mos marcar alguns traos descritivos do que se poderia chamar modernidade: A) Momento histrico mais ou menos delimitado entre a revoluo francesa e a primeira metade do sculo XX. B) Essa circunscrio histrica e cronolgica deve servir apenas para delimitar um espao de anlise que se relaciona, em ltima instn-cia, historia do conhecimento ocidental situado entre o advento do iluminismo e a continuidade da revoluo industrial de ns do sculo XIX, tambm chamada pelos historiadores segunda e ter-ceira revolues industriais. C) Em termos los cos, a moder-nidade se caracteriza como um amplo movimento de idias que elabora uma crtica dos modos de pensamento moderno e anti-go e que tem como eixo de anlise um entendimento da natureza poltico-social do homem fundado na razo como controladora da sociedade em toda sua extenso. Nesse sentido, a razo antes de

  • A dessacralizao da obra de arte

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    CAPTULO 03

    tudo, passa a ser imposta como norma fundamental da socieda-de. D) A modernidade carrega um sentido particular de crise dos parmetros tericos e histricos, pois em seu sentido mais geral o perodo no qual se desenvolve um pensamento que ao mesmo tempo em que situa a razo como guia do homem em direo aos ideais do iluminismo, estampados nos lemas da revoluo france-sa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, enfrenta-se com os pro-blemas inerentes ao desenvolvimento histrico e social do prprio mundo ocidental, quando a razo e a tcnica no puderam superar inteiramente os desa os de uma sociedade mais justa, ou quando a cincia e as tcnicas que surgem a partir do trabalho da razo como baluarte de uma emancipao social se tornam elas mesmas, a cincia e a tcnica, formas de dominao e de explorao do ho-mem. Vale lembrar a crtica marxista-socialista da opresso das classes trabalhadoras, do colonialismo e do imperialismo sobre os pases alheios hegemonia capitalista europia. E) No que concer-ne teoria literria propriamente dita, a questo da modernidade est vinculada, em seu espectro conceitual, produo e ao desen-volvimento da literatura do sculo XX como experimentao de modos e de estratgias narrativas e estticas que dem conta da du-pla relao complexa de construo da subjetividade desse homem moderno e suas relaes intrnsecas exterioridade do mundo social e poltico do qual ele faz parte. Esse movimento apresenta os meios e os temas que a prpria modernidade no deixa de conti-nuar a elaborar como sua singular fora histrica e los ca, uma postura literria de ccionalizao do Eu que operar um verda-deiro cruzamento entre as preocupaes estticas e los cas que engendram enquanto crise de paradigmas a cena do pensamento contemporneo.

  • Literatura Ocidental II

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    3.2 As contribuies tericas deWalter Benjamin

    No poderamos deixar de comentar em alguns pargrafos a im-portncia do ensaio. A obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica de Walter Benjamim. De fato, esse ensaio tem uma importncia muito grande por trazer uma re exo acurada sobre as relaes sociolgicas e simblicas que atravessam, na modernidade, o sentido da obra de arte na passagem do sculo XIX ao sculo XX. Vimos anteriormente como a fotogra a e o cinema representaram uma transformao importante nas formas de representao das artes plsticas e como, j antes, o mo-vimento impressionista passara a representar o real a partir de outros modos de interpretao da luz e do movimento.

    Benjamim, em seu ensaio, observa que com o advento de novas tecnologias e o surgimento de uma cultura baseada na reproduo tc-nica de produtos e bens de consumo, ocorrer uma transformao no conceito de obra de arte. A idia central do ensaio uma crtica a uma determinada evoluo e derrocada do conceito de aura na obra de arte. Com efeito, para Benjamim, a obra de arte operaria uma signi cao profunda relacionada com a idia do sagrado e do divino desde a pr-histria. Uma certa aura pairaria sobre a obra de arte, implicando nes-ta uma relao espec ca de poder vinculada s classes dominantes e aos modos como certas funes simblicas so operadas na relao do artista com a obra e com o meio poltico e econmico que envolve a produo artstica. O carter nico da obra de arte remeteria a um certo ideal de poder das classes que poderiam ter acesso ou proximidade s obras que em sua caracterizao profunda continuavam a emitir uma espcie de aura sagrada. Com o advento dos meios de reproduo de massa como na indstria maquinizada e a produo de imagens em s-rie como ocorre com a tcnica fotogr ca, esse carter de unicidade da obra se torna relativo.

    Essas relaes de reproduo tcnica a partir do m do sculo XIX tero papel fundamental na queda de uma idia sagrada da obra de arte que Benjamim desenvolve junto obra de Charles Baudelaire, notadamente em relao ao poema La perte daureole (A perda da aura)

    Para saber sobre Walter Benjamin, acesse: http://www.epdlp.com/escritor.

    php?id=1461 e http://www.infoamerica.org/teoria/benja-

    min1.htm

    Para saber sobre este impor-tante poeta e crtico francs, acesse: http://www.baudelai-

    re.galeon.com/

  • A dessacralizao da obra de arte

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    CAPTULO 03publicado originalmente em Spleen de Paris, em 1862, no qual o poe-ta francs descreve as transformaes do meio urbano na cidade como ressonncias incontornveis de transformaes no prprio trabalho de interpretao potica elaborado pelo artista.

    Em resumo, para Benjamim, uma certa idia de arte enquanto por-tadora de uma aura simblica transformada em sua signi cao his-trica a partir do momento em que a arte no estando mais associada valorao de um carter nico e sagrado, passa a ser considerada em relao ao seu valor de comrcio, de exposio, de troca e de uso. As transformaes tcnicas e materiais que passam a re-fundar a prpria compreenso do mundo esto tambm relacionadas com uma transfor-mao da signi cao simblica e sociolgica que a arte traduz como meio singular de interpretao histrica.

    Em ltima anlise, poderemos, ento, pensar o tema da Literatura Ocidental no sculo XX a partir da leitura desse fundamental ensaio de Walter Benjamin, A obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica.

    Diramos, para nalizar, que o ensaio de Benjamin pode ser lido como uma re exo tributria de uma analtica dos meios de produo tcnicos e econmicos associada a uma profunda compreenso sociol-gica da arte enquanto atividade material e simblica a um s tempo e que informa por sua experincia representativa e performativa da realidade, a possibilidade de uma compreenso dinmica do desenvolvimento his-trico do ocidente, contextualizando um verdadeiro impasse poltico e cultural, representado pelo advento das duas grandes guerras mundiais e que marcam, de forma peremptria, todo o sculo XX. O ensaio de Benjamin trata, essencialmente, a discusso crtica do que poderamos chamar anlise histrico-sociolgica do advento da cultura de massas.

    Finalmente, do contexto do surgimento das massas populares proletrias e da constituio das multides, ou seja, do contexto de emergncia de uma dimenso do anonimato e do controle estatstico da populao pelo estado, que emerge como advento de uma nova etapa de industrializao e da constituio de ideologias de mercado voltadas para a produo e o controle do consumo (qualquer consumo, inclusive o consumo esttico) pelas multides, de que trata, em ltima anlise, o ensaio de Benjamin.

    Voc poder ler a ntegra deste ensaio de Benjamin em espanhol na pgina eletrni-ca que segue e que tambm contm, em formato eletr-nico, alm de outros textos do fi lsofo, outros importan-tes textos de vrios outros fi lsofos e crticos reconhe-cidos historicamente neste tema fascinante da arte e de suas relaes com a hist-ria, a sociedade, a fi losofi a e a cultura no sculo XX: http://tijuana-artes.blogspot.com/2005/03/el-arte-en-la-era-de-la-reproduccion.html

    Charles Baudelaire

  • Literatura Ocidental II

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    Podemos perceber, nesse sentido, a partir da re exo benjaminia-na, o grau de importncia que se estabelece entre uma compreenso sociolgica do contexto poltico e econmico, na primeira metade do sculo XX e o tema do estudo da literatura nesse incio de sculo. A constituio de modos diferentes de composio narrativa que se desen-volve de forma diversi cada na literatura desse perodo se relaciona no apenas com uma vontade de inovao estilstica ou esttica por parte dos autores e artistas, mas, sobretudo, impe-se, gradativamente, como verdadeira necessidade crtica perante um mundo que emerge pleno de contradies de ordem poltica e econmica.

    3.3 O narrador

    Ao lado de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica, podemos situar um outro importante ensaio de Benjamin: O narrador. De fato, esse ensaio escrito no mesmo ano (1936) que o ensaio sobre a obra de arte, uma re exo que tem como mrito estabelecer nexos profundos entre a atividade narrativa e as transformaes polticas, tc-nicas e sociais que passam a descrever o mundo no sculo XX. Esses nexos so fundamentais para podermos pensar os modos de construo de estratgias narrativas cada vez mais focadas numa fragmentao do sujeito enquanto entidade de papel, que elabora seu prprio papel c-cional como narrador, a meio caminho entre a ccionalidade que o real empreende ao ser recortado em sua complexidade e a realidade da co enquanto processo de experimentao esttica.

    Para Benjamin, h uma relao muito estreita entre a atividade de narrar enquanto fato imemorial e uma perda da experincia dessa mesma atividade no seio da sociedade moderna. Na verdade, Benjamin coloca essa perda de experincia como perda da capacidade de troca ou intercmbio de experincias. Essa perda da capacidade de troca de experincia resultado de um desenvolvimento da tcnica e da estru-tura econmica capitalista bem como, num sentido mais particular, re-sultado do verdadeiro trauma (individual e coletivo) que a experincia de guerra mundial, apoiada por tcnicas militares avassaladoras (uso do avio, de novos explosivos, de bombas qumicas, etc), deixara como

    A leitura de O narrador fun-damental para a compreen-

    so das sutilezas e dos desen-volvimentos de uma refl exo

    sobre o papel da estrutura da narrao e de suas funes na histria da literatura do sculo XX. Voc encontrar

    o ensaio na seguinte pgina: http://tijuana-artes.blogspot.

    com/2005/03/el-narrador.html

  • A dessacralizao da obra de arte

    31

    CAPTULO 03

    herana. Por outro lado, a antiga tica dos combates militares passa a ser substituda por uma estratgica e ttica de guerra que transforma a prpria lgica do combate que existia at ento.

    O homem que retornava da guerra, em lugar de ter muitas experi-ncias para contar, retornava emudecido e traumatizado. A radicaliza-o das transformaes que os avanos e o desenvolvimento da tcnica que se mostram de forma traumtica j na 1 guerra mundial trou-xeram, transformar a atividade narrativa que se conhecia at ento. A experincia da narrativa oral, ou seja, da capacidade de narrar que se desenvolvia a partir do dizer e da fala entre os indivduos de uma comunidade e da conseqente transmisso de conhecimentos, conse-lhos e experincias entre eles passa por uma profunda transformao e desvalorizao. Pois, como a rma Benjamin:

    En todos los casos, el que narra es un hombre que tiene consejos para el

    que escucha. Y aunque hoy el saber dar consejo nos suene pasado de

    moda, eso se debe a la circunstancia de una menguante comunicabili-

    dad de la experiencia. Consecuentemente, estamos desasistidos de con-

    sejo tanto en lo que nos concierne a nosotros mismos como a los dems.

    El consejo no es tanto la respuesta a una cuestin como una propuesta

    referida a la continuacin de una historia en curso. Para procurrnoslo,

    sera ante todo necesario ser capaces de narrarla. (Sin contar con que el

    ser humano slo se abre a un consejo en la medida en que es capaz de

    articular su situacin en palabras.) (Benjamin; 1936)

    Essa mudana que passa a ser percebida na experincia de narrar no se remete de forma nenhuma a uma decadncia da atividade nar-rativa e no se limita a ser pensada como fenmeno moderno, ela faz parte de toda uma srie de transformaes materiais profundas que po-dem ser situadas historicamente e que tem nessa mesma historicidade sua capacidade de ser pensada como complexo de relaes tanto mate-riais e tcnicas como simblicas e ideolgicas. Essas transformaes em ltima instncia iro deslocar a experincia da narrao oral para outras formas de narrar, seja a partir de suas mudana em nvel simblico seja a partir das novas tecnologias materiais de reproduo que advm dos novos processos produtivos baseados na reprodutibilidade tcnica lembremos do desenvolvimento da fotogra a e do cinema como verda-deiros baluartes da nova industrializao.

  • Literatura Ocidental II

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    Essa mudana no estatuto da narrao no comeo do sculo XX no implica uma destituio total das formas tradicionais de narrao, mas sim numa mudana de suas formas, de seus modos e de suas estra-tgias narrativas. o caso do surgimento do romance, que Benjamin coloca como exemplo.

    De fato, o romance depende, em certa medida, do desenvolvimento de uma imprensa baseada na reprodutibilidade e de exigncias mate-riais, ou de suporte, muito diferentes daquelas que sustentam a existn-cia do gnero pico e que se apresenta, como vimos, atrelado s formas de intercmbio do patrimnio de uma experincia de oralidade na for-ma do conselho.

    Na verdade, o romance moderno representa a passagem de uma forma de narrao baseada na experincia de intercmbio das prticas narrativas coletivas, experincia narrativa baseada na segregao do indivduo. O narrador do romance narra experincias em sua origem baseadas em sua compreenso j apartada do sentido de narrao fun-dada na oralidade e na prtica de uma experincia compartilhada como oralidade.

    A anlise de Benjamin em O narrador a respeito das transforma-es da experincia narrativa , sem dvida, uma das melhores re exes sobre um tema que abarca, para alm dos temas relacionados literatu-ra do sc. XX, a amplitude de uma teoria geral da comunicao. Nesse sentido, o que devemos reter a partir dessa importante re exo se refere ao relacionado ao paradigma de uma passagem de uma estrutura nar-rativa calcada em um narrador em 3 pessoa, estabelecida no romance mimtico do sc. XIX, aos desenvolvimentos diversi cados por todo o sc. XX de outras estruturas narrativas baseadas numa introspeco e numa transformao muitas vezes radical do modelo mimtico.

    Nesse sentido, ressaltaremos aqui, em relao ao ensaio de Benja-min, sua aguda percepo sobre a mudana da forma de articulao de uma narrativa pica, baseada na oralidade e uma narrativa que migra na modernidade, chegando, j no sculo XX, explorao de uma di-menso psicolgica e explicativa sobre os fatos ou os ncleos de sentido da narrativa. Desse modo, aquilo que marca a contundncia de uma

  • A dessacralizao da obra de arte

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    CAPTULO 03

    narrativa baseada numa experincia de oralidade sua estrutura bsi-ca subtrada de toda especulao explicativa e ou psicologizante. Como a rma Benjamin:

    Nada puede encomendar las historias a la memoria con mayor insisten-

    cia, que la continente concisin que las sustrae del anlisis psicolgico.

    Y cuanto ms natural sea esa renuncia a matizaciones psicolgicas por

    parte del narrador, tanto mayor la expectativa de aqulla de encontrar

    un lugar en la memoria del oyente, y con mayor gusto, tarde o tempra-

    no, ste la volver, a su vez, a narrar. (Benjamin: 1936, VIII, Cf hiperlink)

    O narrador que emerge na literatura do sculo XX a gura que corresponde ao contraponto mais expressivo do narrador oral. Para Benjamin, uma das garantias da transmissibilidade das histrias narra-das estaria fundamentada na subtrao de desdobramentos psicolgi-cos, o que, contrariamente, elevado mxima potncia pelo narrador em 1 pessoa.

    Esses fatos evocados na re exo de Benjamin serviro para situar o contexto no qual se insere nossa re exo sobre a Literatura Ocidental no sculo XX. Veremos como cada vez mais haver uma preocupao, por parte dos escritores do sculo XX, de aceder a outras formas e mo-dos de se remeter ao tema da experincia narrativa e que em muitos casos, ao invs de ocorrer a narrao de acontecimentos ao modo de uma narrativa tradicional, essa nova fase literria e ccional (muitas ve-zes autobiogr ca ou que toma como referncia operaes textuais da autobiogra a), passa a construir universos literrios onde ocorre uma experincia de fragmentao e despersonalizao do sujeito encarnado na gura mvel e paradoxal do narrador presente na literatura desse sculo.

  • Unidade CEm busca de uma nova temporalidade ficcional

  • A experimentao narrativa

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    CAPTULO 04

    A experimentao narrativa

    Neste captulo, observaremos que o monlogo interior seria a marca da prpria emergncia de uma estratgia de valorizao da experincia tem-poral subjetiva. Essa conduo verticalizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experincia singular, opera em contraponto horizontalidade da experincia de su-cesso temporal da histria narrada, a qual levada a cabo pelo romance mimtico durante o sculo XIX.

    4.1 Em busca de uma nova temporalidade fi ccional

    Devemos ter em mente, quanto ao estatuto da narrativa do sculo XX e especi camente, quanto s transformaes na estrutura narrativa do romance nesse sculo, que a passagem de uma narrao da 3 pessoa para a 1 pessoa carrega consigo, como lei geral da narrativa romanesca, a questo do tempo e do espao como categorias fundamentais.

    Poderamos dizer que a temporalidade de uma narrativa passa ne-cessariamente pela conjugao das dimenses de Tempo e de Espao mo-dalizadas por estratgias narrativas que comporo a histria narrada.

    Pode-se observar, em alguns casos, que a histria narrada vale dizer, o assunto contado numa sucesso de acontecimentos no interior do romance sofre, pouco a pouco, um processo de perda de sua fora ao ser diluda pela prpria experincia narrativa, concentrada muitas vezes numa experincia de subjetivao do narrador e levada a cabo por uma preocupao em narrar em 1 pessoa. A histria a ser contada, en-to, passa a ser relativizada por outras preocupaes que passam a ocu-par um papel privilegiado entre os narradores do sculo XX tais como a temtica e a forma daquilo que ser narrado. Desse modo, tambm uma nova temporalidade necessariamente se propaga como condio da experincia narrativa.

    4

  • Literatura Ocidental II

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    Muitos crticos concordam em a rmar que o monlogo interior, que surge de forma elaborada em obras como as de James Joyce e de Virginia Woolf, dentre outros, a marca da prpria emergncia de uma estratgia de valorizao da experincia temporal subjetiva. Essa conduo verti-calizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experincia singular, opera em contraponto horizontalidade da experincia de sucesso temporal da histria narrada, a qual levada a cabo pelo romance mimtico durante o sculo XIX.

    O monlogo interior, ou seja, os momentos da narrativa que sur-gem com a elaborao, no sculo XX, de estratgias de narrao em primeira pessoa, pode ser pensado como espao prprio ao desenvolvi-mento do tempo em sua multiplicidade no linear.

    A experincia temporal que temos em nossa vida cotidiana marca-da por uma certa abstrao em relao a uma linha do tempo. Podemos nos lembrar de experincias que vivemos ontem ao mesmo tempo em que projetamos e esperamos as experincias para amanh. Esse posicio-namento, hoje, numa presena mais ou menos estvel e nunca absoluta o que, entretanto, faz-me conceber a possibilidade da lembrana das ex-perincias passadas e a esperana da continuidade dessas experincias no amanh. Podemos nos esforar para retraar cronologicamente as experi-ncias que tivemos no passado, mas sabemos que de algum modo h uma srie de intercalaes ou intruses de outras experincias entre as aes que rememoramos a partir de um presente que no deixa de se mover. Inclusive, todas as esperanas que temos no futuro e que so projetadas a partir de nossos desejos momentneos atravessam essa experincia de re-memorao. Essa posio nunca esttica do presente o que caracteriza-ria a complexidade da experincia temporal em nossa vida cotidiana. No entanto, a experincia de temporalidade ccional oferecida pela literatura deve ser entendida como uma estruturao estratgica de construo de linguagem diferente de nossa experincia cotidiana, pelo fato de que sua elaborao se d fora do encadeamento temporal que nos atravessa em tempo real. Mas, de algum modo, a relativizao do tempo enquanto e-cha abstrata permanece atravessando a construo ccional.

    Poderamos a rmar, junto a Henri Godard, que de um modo geral a experincia narrativa do sculo XX procura encontrar uma certa ex-

  • A experimentao narrativa

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    CAPTULO 04

    perincia do presente. Essa experincia do presente se refere ao que di-zamos acima sobre a abstrao e o sentido de temporalidade em nossa vida cotidiana. Aquele espao onde nos posicionamos sempre mais ou menos em relao lembrana ou ao desejo e aos projetos futuros, na verdade entre essas duas direes que de algum modo so irredutveis a esse mesmo presente que escoa entre os instantes.

    Henri Godard a rmar, antes de descrever a evoluo das estrat-gias de temporalidade do romance, que a questo bsica da temporalida-de linear do romance mimtico no sculo XIX foi a de se criar um tempo outro que aquele que ns vivemos (GODARD: 2006, p. 248), mas o qual estava relacionado necessidade da narrativa de se submeter ela mesma prpria lei do tempo que a sucesso (GODARD: 2006, p. 248).

    Ora, a construo de outro tempo ccional pressupe a renncia ao tempo prprio de vivncia cotidiana, este tempo que tambm se ba-seia numa abstrao mais ou menos e ciente sobre sua sucesso, visto que somos atravessados por lembranas e esperanas oriundas de uma temporalidade complexa que pomos a prova cotidianamente, seja em relao ao passado ou ao futuro.

    O romance mimtico do sculo XIX forjara uma concepo de temporalidade que se estabelecera com a fora de uma evidncia. Cou-be s experincias narrativas modernistas e contemporneas o papel de experimentao e de aguda crtica a esse modelo bem sucedido de temporalidade, baseado na construo de uma iluso retrica de um narrador onisciente que acabara por se camu ar em seu prprio modelo perspectivo e em suas estratgias descritivas baseadas numa temporali-dade linear e sucessiva.

    O efeito de temporalidade que experimentamos numa obra como Em busca do tempo perdido de Proust pode ser pensado como o de-sencadeamento de novas experincias ccionais postas em prtica pelo romance no sculo XX.

    Proust dar um passo fundamental para uma nova experincia de temporalidade da narrativa ocidental ao iniciar seu grande romance a partir da construo de sries temporais que iriam ser relacionadas

  • Literatura Ocidental II

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    umas s outras durante a prpria experincia de narrativa que ele colo-cava em prtica. Assim, essas sries, que so, por exemplo, as experin-cias de sono, a descrio do espao do quarto e os momentos em que o narrador desperta e rememora cenas e experincias passadas se repetem durante o romance, criando uma rede de relaes retrospectivas que servem para a elaborao de uma outra temporalidade diferente da su-cesso lgica e linear dos romances mimticos do sculo XIX.

    Na obra de Proust, h uma relao lgica, mas no necessariamente linear entre as sries e que pode ser conectada em diferentes momentos da longa narrativa. A experincia do tempo na obra de Proust pode ser pensada como uma verdadeira rede de conexes entre imagens ou sries de signi cantes, que se reportam umas s outras a partir de seus ele-mentos dispersos pelo romance. Os quartos por onde passa o narrador proustiano, sero os espaos onde uma temporalidade no linear pode entrar em jogo e onde a experincia do sono e do despertar exercem uma relao direta na construo de outra estratgia de sucesso tem-poral da histria.

    Depois de Proust haver muitas outras experincias de construo ccional de temporalidades que se preocuparo de uma forma ou de outra em superar os modelos de temporalidade mimtica estabelecidos durante o sculo XIX. Na Frana, mesmo a inovadora narrativa prous-tiana ser alvo de crticas, notadamente e a principio, dos surrealistas, como Andr Breton, Michel Leiris, Antonin Artaud, Paul Eluard, Jo-seph Delteil, Louis Aragon, Philippe Soupault, dentre outros que radi-calizariam a experincia literria de narrao atravs da construo de narradores que cada vez mais transgrediriam os modos de constitui-o do tempo da histria bem como relativizariam sua prpria posio identitria como sujeito.

    Assistiremos cada vez mais depois dos marcos de surgimento da narrativa de Proust, bem como das consagradas obras em lngua inglesa de James Joyce e de Virginia Woolf ao surgimento de experimenta-es narrativas que levaro a uma radicalizao da experincia do tem-po e do espao que faro do narrador um paradoxal protagonista da experincia narrativa, justamente por tornar-se uma presena cada vez mais forte em sua posio discursiva, porm, fragmentado e cindido.

    Voc poder saber mais sobre esses autores na seguinte pgina: .

  • A experimentao narrativa

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    CAPTULO 04

    O monlogo interior, como brevemente exposto e que James Joyce e Virginia Woolf desenvolvem magistralmente, no incio do sculo XX, tornar-se- a partir do desdobramento esttico que possibilitam as vanguardas artsticas (dadasmo, surrealismo, etc.) uma estratgia fundamental de contestao do romance mimtico do sculo XIX. Isso porque no monlogo interior que se cruza uma srie de questes de ordem los ca e esttica.

    A respeito da constituio de uma nova temporalidade ccional na literatura do sculo XX ressaltando a quantidade, a pluralidade e a singularidade de suas experincias literrias poderamos dizer que na construo de uma temporalidade constituda como descrio intersubjetiva de estados de percepo hbridos, sugestivos, delirantes, hipnticos, angustiosos ou onricos que uma experincia limite de exis-tncia (esttica ou existencial) pode ter lugar num sculo marcado pelas duas grandes guerras mundiais. Essa experincia limite seria fruto da prpria realidade material, tcnica e poltica que o tipo de conhecimento acumulado nos ltimos 150 anos pde fazer emergir como verdadeiro abismo de contradies e paradoxos, os quais o sculo XX narra como experincia histrica e literria. Trata-se no apenas de uma experincia de importantes avanos tcnicos e cient cos e de grandes descobertas, mas tambm, da traumtica vivncia de suas guerras e genocdios.

    A representao de um narrador sensvel s conturbaes exis-tenciais, s angustias, s inseguranas e desestabilizao emocional decorrentes desse momento histrico e que advm, tambm, de uma longa transformao histrica, material e ideolgica da literatura pode ser percebida como emergncia j no m do sculo XIX. No nal desse sculo, j podemos observar diversas estratgias discursivas que se con-trapem gura estvel de um narrador em 3 pessoa, exempli cado aqui na forma paradigmtica de uma literatura mimtica. A literatura de escritores como Balzac e Flaubert, entre outros, exemplo dessa mu-dana. Podemos entrever na literatura do sculo XX o desdobramento de uma conscincia histrica e esttica que passa a aceder, atravs da experincia literria de um narrador em 1 pessoa, a modos narrativos que exploram o carter anacrnico da experincia de durao do tem-po (uma verticalizao de uma experincia subjetiva do tempo). Tal

  • Literatura Ocidental II

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    experincia relativiza a estabilidade concebida por teses que defendem um desenvolvimento linear e regular da histria nos moldes de uma narrao mimtica que procurou, durante todo o seu perodo de rei-nado, pelo menos durante todo o sculo XIX, a rmar a iluso retrica de uma histria e de uma vida dos personagens descolada da vida e da temporalidade ftica.

    Foi do que falamos at agora, em relao s diversas estratgias nar-rativas inauguradas no comeo do sculo XX e que deslocam o discurso do narrador a uma construo da histria e dos personagens que pe em cheque a iluso retrica mimtica operada pelo paradigma narrati-vo do sculo XIX. Mais importante que a percepo concreta do uso da primeira pessoa pelo narrador da Literatura Ocidental do sculo XX, ser a compreenso da representao do narrador como centro da re- exo da prpria atividade literria e das relaes que essa experincia espec ca tece com a re exo existencial e los ca.

    Veremos que em Samuel Beckett, por exemplo, que produz desde a dcada de 1930 uma literatura sobre a qual muitos crticos concordam em destacar a sua densidade experimental, psicolgica e los ca como literatura limite em sua experincia esttica, haver o uso da 3 pessoa pelo narrador. Em Bande e Sarabande e Murph, textos iniciais de sua obra, o narrador penetra de tal modo irnico e com tal intensidade de erudio los ca em questes existenciais que, ao invs dessa narrati-va estabelecer uma iluso mimtica da histria e dos personagens, ela desperta uma grande descon ana no leitor a respeito da histria e dos personagens que a se apresentam e que praticamente so manipulados como meras marionetes pelo narrador.

    Devemos entender que se bem destacamos o tratamento privile-giado que recebeu o uso da 1a pessoa no discurso do narrador no per-odo literrio em estudo, no devemos pensar que o uso da 3a pessoa foi totalmente esquecido. O destaque dado passagem da 3a pessoa para a 1a pessoa se entende como um dos paradigmas que nos permite or-ganizar as informaes com ns didticos. O paradigma da passagem de estratgias narrativas mimticas do sculo XIX a uma experincia de temporalidade e de subjetivizao da experincia vivida do narrador no sculo XX, deve ser observado, fundamentalmente, porque se trata de

  • A experimentao narrativa

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    CAPTULO 04

    um narrador que permite a representao da instabilidade, da descon- ana, da perplexidade e das atribulaes existenciais do homem desse sculo con itos que esse narrador passa a performar.

    Utiliza-se o termo performar no sentido de um narrador que expe suas crises, atribulaes e con itos dentro de uma perspectiva de ex-plorao existencial, de indagao e busca pelo sentido no somente de sua vida singular, mas tambm do ser. Nesse procedimento, tal prtica narrativa convoca um leitor quase cmplice, participante, junto com ele, de sua crise existencial. De fato, o narrador que passamos a constatar se caracteriza por um tipo de crise que poderamos a rmar sendo de ordem ontolgica e fenomenolgica.

    Vimos que o desenvolvimento do romance durante o sculo XX est marcado por intensas experimentaes formais e temticas na construo dos relatos e que, de um modo ou de outro, essas cons-trues se debatiam vigorosamente contra um modelo de represen-tao que valorizava uma certa tomada de perspectiva e de posio por parte do narrador, que tendia a se esconder atrs da prpria iluso de representatividade, fruto dessa prpria estratgia.

    Essas estratgias mimticas se constituam nas formas de des-crio do espao e do tempo e que tendiam a naturalizar a maneira de representao do ambiente romanesco baseada na constituio do espao e do tempo prprios para serem experimentados e usufrudos pelos personagens. Pois bem, veremos que esse narrador onipotente, quase divino criador do espao e do tempo da histria, passa a partici-par mais ativamente e introspectivamente da histria, questionando o mundo em que vive e, muitas vezes, o prprio procedimento ccional que o torna possvel. O questionamento dos procedimentos do relato dentro do relato uma das caractersticas de certas experincias narra-tivas do sculo XX.

    Essa entrada na cena literria por parte desse narrador ferido e traumatizado pelas intensas transformaes do sculo XX, faz-se como performao de estados psquicos e de crises existenciais construdas

    Leia sobre Ontologia em: http://es.wikipedia.org/wiki/Ontologia e Acesse http://es.wikipedia.org/wiki/Fenomenolog%C3%Ada para saber sobre Fenomenologia

  • Literatura Ocidental II

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    por meio de estratgias narrativas que expem tais estados como di-logos cruzados, transgresso da ordem temporal, ambigidade e at contradio naquilo que se narra, etc.

    De uma intensa produo de iluso de representao da realidade no sculo XIX, baseada na descrio realista, passamos a uma verda-deira construo performtica de experincias subjetivas e de um agudo questionamento existencial. Mesmo que em muitas narrativas observe-mos a representao de um narrador em 3a pessoa, poderemos observar, tambm, que este tipo de narrador, por momentos, cede a voz narrativa a personagens que a assumiro, expondo sua subjetividade, certo caos emocional, narrando fatos de modo ambguo, desrespeitando a ordem temporal, etc. Mas com o surgimento desse narrador contemporneo que de forma contundente se institui uma voz hbrida e indiscernvel, lugar opaco e ambguo entre o autor e sua performance literria. Da que a morte do autor que ser proferida por crticos da importncia de Roland Barthes e Michel Foucault passar a ser tema dos mais controver-sos por sua ousadia e pertinncia. O autor passa a ser uma entidade que se funde na ccionalidade desses personagens narradores contempor-neos, atravessados pelas incertezas de um mundo que chega a plurais plats crticos e onde a cincia, a loso a e a crtica de um modo geral devem se defrontar com as marcas que o desenvolvimento tcnico e as crises polticas e ideolgicas ajudaram a construir.

    As transformaes de ordem material, tcnica e ideolgica do sculo XX sero decisivas para a construo de uma literatura questionadora, crtica e voltada para os paradoxos que constituem a complexidade obje-tiva e subjetiva do homem contemporneo, o que para muitos crticos, e no sem controvrsia, marcaria a passagem para outro perodo histrico, caracterizado por uma certa falncia de toda certeza ideolgica ou de toda possibilidade de constituio de sistemas fortes e coesos de pensamen-to. Esse momento marca na comunidade acadmica uma srie de debates tericos muito intensos e calorosos e batizado de ps-modernidade.

    Entre aspas obrigatoriamen-te, pois se trata de apenas

    mais um modelo de constru-o representativa do real

    pela linguagem

  • Unidade DAlguns representantes da literatura ocidental do sculo XX

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    Introduo

    O quadro geral de uma passagem de um tipo de narrador mimtico ao narrador de algum modo autobiogr co que passa a relativizar e a fragmen-tar a prpria estrutura narrativa dada no romance, deve apenas constituir uma perspectiva geral de um quadro de desenvolvimento literrio mltiplo e plural que se caracteriza justamente por sua diversi cada qualidade esttica.

    Os autores que sero estudados individualmente, na seqncia, nesta disciplina introdutria Literatura Ocidental II, representaro apenas uma parte de uma vasta experincia literria a partir do quadro de uma escolha cannica, ou seja, resultado de uma valorao esttica e representativa modulada a partir do impacto e de uma certa impor-tncia dada pela fortuna crtica a seus trabalhos.

    De um quadro que comporta um corpus literrio enorme e que ultrapassaria de longe o espao destinado a nossa disciplina, impe-se a necessidade da escolha de determinados autores e obras que possam representar a Literatura Ocidental do sc. XX. Nesse sentido, neces-srio percebermos que uma histria complexa atravessa tanto os mo-dos quanto a expressividade das formas estticas e retricas de que a literatura se serve ao mesmo tempo em que se desenvolve simblica e materialmente. No outra a mensagem dos dois brilhantes ensaios j estudados de Walter Benjamin: A obra de arte na era da reprodutibili-dade tcnica e O narrador. claro que a sutileza de argumentao e a densidade das observaes do crtico alemo evocam a singular com-plexidade que o estudo da literatura impe, justamente no sentido desta literatura elaborar como verdadeira mquina de linguagem o que, de algum modo, representa a prpria possibilidade material e simblica de uma expresso da cultura no sentido mais amplo do termo.

    Da que para um estudo aprofundado da Literatura Ocidental do sc. XX seja necessrio estar atento a outras disciplinas como a histria, a loso a e o estudo das artes em geral. A literatura est em dilogo constante com todos os ramos do conhecimento e est justamente nisso sua riqueza e fonte inesgotvel de interesse.

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    Procurar-se- dar uma introduo ao estudo de cada um dos auto-res selecionados a seguir, abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais, documentos, te-orias e escolas crticas diferentes, para aceder a compreenses cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importncia, a qua-lidade esttica ou mesmo o impacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mundo da cultura. Alm do mais, no poderemos nos esquecer, como foi dito acima, que esses autores exempli cam uma pos-sibilidade de escolha que neste momento procura criar um certo qua-dro representativo possvel da vasta experincia literria do sc. XX. H muitos outros autores to importantes quanto os que convidamos vocs a conhecer em linhas gerais e que devem ser lidos com tanto interesse quanto os que lhes propomos a seguir.

    Desejamos a todos uma tima leitura e relembramos que uma lei-tura crtica se faz junto com a produo de chamentos de leitura, o que possibilita tanto o exerccio da escrita compreensiva, ou seja, da cons-truo de uma retrica ou de um estilo pessoal de escritura, quanto um registro de trabalho que possibilite o recurso do retorno a idias e hip-teses de trabalho sobre os textos que se deseje analisar criticamente.

    En m, o movimento crtico se estabelece justamente no cruzamen-to das leituras tericas e no desenvolvimento de habilidades compreen-sivas que s podem ter xito quando associadas ao conhecimento cada vez mais elaborado de uma experincia de leitura do corpus literrio, este, to vasto quanto o prprio conhecimento humano acumulado no percurso da histria.

  • A experincia fi gurativa do tempo e do espao fi ccionais

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    CAPTULO 05

    A experincia fi gurativa do tempo e do espao fi ccionais

    Neste capitulo, voc estudar uma introduo biogra a e produo li-terria de Marcel Proust um dos escritores mais representativos da Litera-tura Ocidental do sculo XX. Procurar-se- dar uma introduo ao estudo de sua obra, abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais, documentos, teorias e escolas crticas diferentes, para aceder a compreenses cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importncia, a qualidade esttica ou mesmo o impacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mun-do da cultura.

    5.1 Marcel Proust

    Valentin Louis Georges Eugne Marcel Proust, mais conhecido como Marcel Proust, foi um dos escritores que tendo vivenciado a pas-sagem do sculo XIX para o sculo XX com a prosperidade e o gla-mour da belle poque, a nostalgia do n de sicle e a exploso e renovao cultural das vanguardas europias, mais tarde, in uenciou fortemente a literatura do sc. XX. Marcel Proust nasceu em Paris, em 10 de Julho de 1871 e faleceu em 18 de novembro de 1922, na mesma cidade. Sua obra principal, la recherche du temps perdu, traduzida para o portugus como Em busca do tempo perdido, composta de sete romances, con-siderada por muitos crticos como uma das obras mais importantes da Literatura Ocidental de todos os tempos.

    Muitos bigrafos narram que Marcel Proust sofreu de asma desde a infncia e que aos nove anos de idade teve uma forte crise respiratria que deixaria marcas profundas em toda a sua vida. Isto porque, com a chegada da primavera e com o ciclo biolgico natural de polinizao das plantas, Proust passaria a viver com o fantasma das crises asmticas provocadas por reaes alrgicas ao plen. Muitas biogra as tambm se referem ao sofrimento e depresso que se seguiu morte de sua me, em 1905, aps

    5

    Marcel Proust

    Para voc poder entender melhor o contexto histrico e cultural que deu as condi-es de possibilidade para que a literatura do sculo XX tivesse as caractersticas que teve, de grande importn-cia dedicar algum tempo pesquisa dos trs momentos culturais que mencionamos como marcos histricos que no podem se desconhecer: a belle poque, o fi n de sicle e o surgimento das vanguardas na Europa.

  • Literatura Ocidental II

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    a qual Proust praticamente se isolou da vida social, no nmero 102 do Boulevard Haussmann, em Paris e iniciou a escrita de sua obra cume, que seria publicada entre 1913 e 1927, Em busca do tempo perdido.

    J foi mencionada, anteriormente, a importncia que a obra de Proust teve para a literatura do sculo XX. A obra proustiana, ao de-senvolver uma narrativa no apoiada de modo preponderante na trama, privilegiou um trabalho de investigao sobre a experincia gurativa do tempo e do espao ccionais.

    Muitos crticos concordam em a rmar que a primeira frase do c-lebre texto de Em busca do tempo perdido: Por muito tempo, eu fui me deitar cedo (...), ao remeter a histria primeira pessoa, mais que contar a histria de vida de um narrador que se lembra de suas experi-ncias, inaugura, na verdade, a possibilidade de uma nova forma de es-critura narrativa desvinculada de um modelo narrativo que chamamos de mimtico. Sem a preocupao com o desenvolvimento conclusivo da intriga, no h um nal nessa histria que no seja a abertura mesma de uma nova relao do leitor com essa verdadeira aventura do esprito ao relatar ccionalmente as diversas faces da experincia dos sentidos, da memria e da re exo esttica por meio da literatura.

    A experincia do tempo afetivo determinante no sentido de que para Proust o tempo ser descrito a partir de determinados lapsos se assim podemos dizer, momentos nos quais um certo evento, muitas vezes banal, inaugura uma linha de construo temporal que surge ou emerge da relao singularssima da imaginao, da re exo e da experincia de escritura como elaborao formal e expressiva da me-mria como co literria. Assim que se apresenta a famosa cena da Madeleine, na qual uma experincia degustativa de um pedao de bolo molhado numa colher de ch se alia atmosfera que envol-ve esse momento, dispositivando uma longa srie de acontecimentos narrados e que extrapolam completamente sua suposta origem, rela-cionando esteticamente um momento banal de vivncia construo de toda uma srie de outras experincias que, no m das contas, sero redobradas e disseminadas sobre a experincia singular primeira, qual no retorna mais.

    Voc pode ler algumas pginas em verso digital do livro do professor Ra-fael Gmez Prez sobre a belle poque no seguinte endereo: . Sobre o fi n de sicle e as vanguardas europias, voc pode ler alguns dados importantes nas seguintes pginas: e .

  • A experincia fi gurativa do tempo e do espao fi ccionais

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    CAPTULO 05

    Fonte sem origem determinada, verdadeiro uxo do tempo que se revelara na distncia de uma memria construda sobre a certeza daquela presena tnue de felicidade, o prazer indescritvel da experincia tem-poral produzida pela Madeleine molhada no ch, produziria uma srie de outras experincias temporais que, nalmente, jamais alcanariam sua cintilante e dispersiva origem, mas a relanariam adiante numa constan-te fuga, numa estranha capacidade de descrever essa mesma impossibili-dade, ou seja, a impossibilidade de retornar a mesma sensao, mas que produzir paradoxalmente outras tantas experincias temporais s quais somente o movimento prprio escritura literria poderia aceder.

    H nesse movimento da literatura o paradoxo que a arte e a crtica no cessaro de pr em evidncia durante todo o sculo XX. Qual seja, o momento no qual se instaura o movimento prprio de coexistncia da busca e da criao de uma experincia limite de temporalidade, ou como diz o prprio Proust, ao descrever pontualmente o teor los co de sua obra: Um pouco de tempo em estado puro.

    A busca dessa experincia vivida jamais ser atingida, como o me-taforiza o prprio Proust e, ao contrrio, dever coexistir no mesmo movimento que instaura e cria a experincia pela via dupla da escritura, vale dizer, representao e performao a um s tempo do tecido mvel do vivido. A experincia desse tempo em estado puro ser nalmente o que gerar sua prpria impossibilidade conclusiva ou puramente repre-sentativa. Ali onde o narrador proustiano, mais do que simplesmente representar essa oblqua temporalidade, experimentou no prprio redo-bramento do tempo, como que saltar sobre sua prpria sombra.

    Propomos-lhe a leitura de um belo trecho do primeiro romance da srie Em busca do tempo perdido: Du ct de chez Swann. Esse ro-mance foi traduzido ao portugus como A caminho de Swann e ao espanhol como Por el camino de Swann. A seguir, transcrevemos o trecho que gostaramos que voc lesse prestando especial ateno ao desencadeamento da memria e do profundo prazer provocado pelo sabor da Madeleine molhada no ch:

    Haca ya muchos aos que no exista para m de Combray ms que el

    escenario y el drama del momento de acostarme, cuando un da de in-

    Reproduo da capa de Du ct de chez Swann

    Voc poder encontrar Por el camino de Swann na seguinte pgina: . O trecho que reproduzimos corresponde s pginas 38 e 39 desse site, cuja leitura integral recomendamos. Voc pode ter acesso a todos os ro-mances que compem En busca del tiempo perdido em espanhol na seguin-te pgina: . Mas, se preferir, voc pode ter acesso totalida-de da obra de Proust em francs a partir do link: .

  • Literatura Ocidental II

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    vierno, al volver a casa, mi madre, viendo que yo tena fro, me propuso

    que tomara, en contra de mi costumbre, una taza de t. Primero dije que

    no; pero luego, sin saber por qu, volv de mi acuerdo. Mand mi madre

    por uno de esos bollos, cortos y abultados, que llaman magdalenas, que

    parece que tienen por molde una valva de concha de peregrino. Y muy

    pronto, abrumado por el triste da que haba pasado y por la perspectiva

    de otro tan melanclico por venir, me llev a los labios unas cucharadas

    de t en el que haba echado un trozo de magdalena. Pero en el mismo

    instante en que aquel trago, con las miga del bollo, toc mi paladar,

    me estremec, fi ja mi atencin en algo extraordinario que ocurra en mi

    interior. Un placer delicioso me invadi, me aisl, sin nocin de lo que

    lo causaba. Y l me convirti las vicisitudes de la vida en indiferentes,

    sus desastres en inofensivos y su brevedad en ilusoria, todo del mismo

    modo que opera el amor, llenndose de una esencia preciosa; pero, me-

    jor dicho, esa esencia no es que estuviera en m, es que era yo mismo.

    Dej de sentirme mediocre, contingente y mortal. De dnde podra

    venirme aquella alegra tan fuerte? Me daba cuenta de que iba unida al

    sabor del t y del bollo, pero le exceda en, mucho, y no deba de ser de

    la misma naturaleza. De dnde vena y qu signifi caba? Cmo llegar

    a aprehenderlo? Bebo un segundo trago, que no me dice ms que el

    primero; luego un tercero, que ya me dice un poco menos. Ya es hora

    de pararse, parece que la virtud del brebaje va aminorndose. Ya se ve

    claro que la verdad que yo busco no est en l, sino en m. El brebaje

    la despert, pero no sabe cul es y lo nico que puede hacer es repetir

    indefi nidamente, pero cada vez con menos intensidad, ese testimonio

    que no s interpretar y que quiero volver a pedirle dentro de un instante

    y encontrar intacto a mi disposicin para llegar a una aclaracin decisiva.

    Dejo la taza y me vuelvo hacia mi alma. Ella es la que tiene que dar con la

    verdad. Pero cmo? Grave incertidumbre sta, cuando el alma se siente

    superada por s misma, cuando ella, la que busca, es juntamente el pas

    oscuro por donde ha de buscar, sin que le sirva para nada su bagaje.

    Buscar? No slo buscar, crear. Se encuentra ante una cosa que todava

    no existe y a la que ella sola puede dar realidad, y entrarla en el campo

    de su visin. Y otra vez me pregunto: Cul puede ser ese desconocido

    estado que no trae consigo ninguna prueba lgica, sino la evidencia

    de su felicidad, y de su realidad junto a la que se desvanecen todas las

    restantes realidades? Intento hacerlo aparecer de nuevo. Vuelvo con el

    pensamiento al instante en que tom la primera cucharada de t. Y me

    encuentro con el mismo estado, sin ninguna claridad nueva. Pido a mi

    alma un esfuerzo ms; que me traiga otra vez la sensacin fugitiva. Y

    para que nada la estorbe en ese arranque con que va a probar captarla,

  • A experincia fi gurativa do tempo e do espao fi ccionais

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    CAPTULO 05

    aparta de m todo obstculo, toda idea extraa, y protejo mis odos y

    mi atencin contra los ruidos de la habitacin vecina. Pero como siento

    que se me cansa el alma sin lograr nada, ahora la fuerzo, por el contrario,

    a esa distraccin que antes le negaba, a pensar en otra cosa, a reponerse

    antes de la tentativa suprema. Y luego, por segunda vez, hago el vaco

    frente a ella, vuelvo a ponerla cara a cara con el sabor reciente del primer

    trago de t, y siento estremecerse en m algo que se agita, que quiere

    elevarse; algo que acaba de perder ancla a una gran profundidad, no s

    qu, pero que va ascendiendo lentamente; percibo la resistencia y oigo

    el rumor de las distancias que va atravesando.

    Indudablemente, lo que as palpita dentro de mi ser ser la imagen y el

    recuerdo visual que, enlazado al sabor aquel, intenta seguirlo hasta lle-

    gar a m. Pero lucha muy lejos, y muy confusamente; apenas si distingo

    el refl ejo neutro en que se confunde el inaprensible torbellino de los

    colores que se agitan; pero no puedo discernir la forma, y pedirle, como

    a nico intrprete posible, que me traduzca el testimonio de su contem-

    porneo, de su inseparable compaero el sabor, y que me ensee de

    qu circunstancia particular y de qu poca del pasado se trata.

    5.2 Marcel Proust crtico

    Marcel Proust tambm escreveu sobre arte e esttica em geral. o que provam, por exemplo, suas tradues do esteta ingls John Ruskin nas quais aparecem, alm do trabalho de traduo, alguns apontamen-tos e textos crticos que o autor da La Recherche escreveu como posi-cionamento crtico em relao a Ruskin e a questes pertinentes a sua poca. o caso do prefcio que escreveu sobre a traduo que fez de Ssame et les lys, do citado John Ruskin. Sur la lecture ou Sobre a leitura um ensaio literrio sobre esttica, particularmente sobre a questo da leitura e os devaneios prazerosos que da provm, onde Proust, antes de apenas prefaciar ou remeter-se a seu mestre, tem voz prpria e assu-me singularmente suas convices estticas.

    De fato, desde 1908, quando Proust comea a se desinteressar do projeto de traduo das obras de Ruskin e escreve ento Contre Sainte-Beuve (Contra Sainte-Beuve, em traduo livre), podemos perceber uma preocupao com a crtica em sua obra. Nesse livro, Prous