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LOVECRAFT E O SUBLIME 1 João Pedro Bellas (UFF) RESUMO Nos estudos recentes sobre o pensamento e a ficção de H. P. Lovecraft um tema frequente diz respeito à influência que as teses do filósofo irlandês Edmund Burke acerca do sublime teriam exercido sobre o autor de Providence. Mesmo que não tenhamos nenhuma evidência de que Lovecraft tenha lido a obra de Burke, as ideias propostas no ensaio Supernatural Horror in Literature são bastante semelhantes à teoria do sublime formulada pelo filósofo em seu tratado A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful. O objetivo deste trabalho, portanto, é explicitar as semelhanças entre as teses de ambos os autores, bem como mostrar como, além de endossar a teoria burkeana do sublime, Lovecraft a assimila em sua produção ficcional, fazendo dela um guia de composição. 1 Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Filosofia,

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LOVECRAFT E O SUBLIME1

João Pedro Bellas (UFF)

RESUMO

Nos estudos recentes sobre o pensamento e a ficção de H. P. Lovecraft um tema

frequente diz respeito à influência que as teses do filósofo irlandês Edmund Burke

acerca do sublime teriam exercido sobre o autor de Providence. Mesmo que não

tenhamos nenhuma evidência de que Lovecraft tenha lido a obra de Burke, as ideias

propostas no ensaio Supernatural Horror in Literature são bastante semelhantes à teoria

do sublime formulada pelo filósofo em seu tratado A Philosophical Enquiry into the

Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful.

O objetivo deste trabalho, portanto, é explicitar as semelhanças entre as teses de

ambos os autores, bem como mostrar como, além de endossar a teoria burkeana do

sublime, Lovecraft a assimila em sua produção ficcional, fazendo dela um guia de

composição.

                                                                                                                         1 Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Filosofia,

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................1

PARTE I: HORROR CÓSMICO E O SUBLIME

1. O horror cósmico de Lovecraft..................................................................................6

2. Burke e o sublime......................................................................................................11

3. O sublime e o medo cósmico.....................................................................................23

PARTE II: O SUBLIME E AS DIRETRIZES DA FICÇÃO LOVECRAFTIANA

1. O sublime em funcionamento na obra de H. P. Lovecraft........................................26

2. O cenário sublime de Dagon.....................................................................................28

3. O desconhecido em O horror de Dunwich................................................................33

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................41

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1    

INTRODUÇÃO

Nos estudos recentes sobre Howard Phillips Lovecraft a questão do sublime tem

surgido como um tema recorrente. Tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de

vista ficcional, a obra do escritor de Providence tem se mostrado um campo fértil para

discussões acerca dessa categoria estética. Uma teoria, no entanto é privilegiada. A

teoria do sublime de Edmund Burke, exposta na obra Uma investigação filosófica sobre

a origem de nossas ideias do sublime e do belo, tem-se apresentado como a mais

adequada para uma aproximação com o pensamento de Lovecraft, e isso se deve

principalmente ao importante papel desempenhado pelo sentimento de terror no

funcionamento do sublime.2

Ao longo de toda sua obra, seja ficcional ou sua reflexão crítica sobre a

literatura, Lovecraft não oferece nenhum indício que nos permita afirmar que o autor

tenha tido algum contato com a obra de Burke. No entanto, a hipótese de trabalho de um

estudo que propõe uma aproximação entre a produção lovecraftiana e as teses burkeanas

acerca do sublime – que, portanto, é a hipótese de trabalho desta monografia – é a de

que, ao formular sua concepção do chamado “horror cósmico”, Lovecraft apresenta

teses bastante afinadas com a teoria do sublime apresentada por Burke em sua

Investigação.

A formulação lovecraftiana da noção de horror cósmico se dá em um contexto

bastante específico. Lovecraft, a exemplo de outros autores que também refletiram

sobre o gênero de horror, se insere em uma tradição que pensa a criação literária sob

uma perspectiva que privilegia os aspectos de recepção da obra. Ou seja, trata-se de um

método de análise que deixa em segundo plano os aspectos formais da obra, para pensá-

la em função dos efeitos que ela é capaz de suscitar no leitor. Portanto, autores dessa

tradição crítica, como, por exemplo, Stephen King e Edgar Allan Poe – apesar de que

Poe nunca tenha refletido especificamente sobre o horror –, pensam que a obra deve ser

julgada segundo apenas a produção de um determinado efeito, que no caso específico da

ficção de horror é o medo. No entanto, esse tipo de reflexão aponta os objetivos da

criação literária, mas não os justifica esteticamente (cf. FRANÇA, 2010, p. 73). Ao

                                                                                                                         2 A maneira como isso se dá será abordada e esclarecida no segundo item da primeira parte desta monografia.

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contrário dos outros autores dessa tradição, Lovecraft demonstra uma preocupação em

buscar essa justificativa para a narrativa de horror, e o caminho para essa justificativa

passa pela postulação da noção de horror cósmico.

Lovecraft oferece as bases para sua concepção de horror cósmico no ensaio, já

tornado célebre pela tradição dos estudos sobre o horror, O horror sobrenatural em

literatura. O texto, uma das mais extensas reflexões sobre o horror na literatura, é

marcado por um tom combativo. Como ficará claro ao longo da minha exposição,

Lovecraft, ao redigir seu ensaio, tinha completa noção de que o horror é um gênero

literário que nunca gozou de pleno prestígio aos olhos da maioria. O autor, portanto,

estava ciente de que se tratava de um gênero que ainda necessitava de uma justificativa

e de uma “legitimação estética”, por assim dizer.

O escritor de Providence acha um meio para a legitimação da produção do medo

pela literatura ao afirmar que esta é a emoção mais antiga e poderosa da humanidade e

sua manifestação mais antiga e poderosa é o medo do desconhecido. Com isso,

Lovecraft apresenta as bases de seu horror cósmico – que vou procurar esclarecer na

primeira parte deste estudo – e fundamenta a produção do medo pela literatura segundo

uma predisposição biológica inerente ao ser humano.3

As ideias apresentadas em O horror sobrenatural em literatura, no entanto, não

parecem ser totalmente originais. Elas, ao contrário, parecem apresentar diversas

semelhanças com as noções expostas por Edmund Burke em sua Investigação. Meu

objetivo nesta monografia, portanto, é precisamente demonstrar que as teses do filósofo

irlandês constituem as premissas da argumentação lovecraftiana. Desse modo, meu

objetivo principal é apresentar, a partir de uma exposição minuciosa das ideias dos dois

autores, as diversas relações que podem ser estabelecidas entre os pensamentos dos dois

autores, mostrando de que modo se dá a influência – mesmo que implícita – das teses de

Burke sobre a reflexão de Lovecraft. Disso, contudo, surge um objetivo secundário. Se,

como pretendo deixar claro ao longo de minha exposição, há uma relação entre o que é

apresentado por Lovecraft e a teoria do sublime de Burke, então não é absurdo afirmar

que também a produção ficcional do primeiro foi influenciada pelo segundo. Por esse

                                                                                                                         3 Todos os passos da argumentação lovecraftiana serão explicados no primeiro item da primeira parte desta monografia.

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motivo, também pretendo buscar em textos ficcionais de Lovecraft possíveis relações

com o que Burke apresenta em seu tratado.

Tendo em mente os dois objetivos desta monografia – isto é, demonstrar as

relações existentes entre os pensamentos de Burke e Lovecraft para, num segundo

momento, buscar na própria ficção lovecraftiana “vestígios” da teoria do sublime

burkeana –, meu texto está dividido em duas grandes partes, a saber: (I) “Horror

cósmico e o sublime” e (II) “O sublime e as diretrizes da ficção lovecraftiana”.

A primeira parte da monografia é dedicada exclusivamente à influência do

pensamento de Burke sobre a reflexão crítica de Lovecraft acerca do horror. Esta parte

de meu estudo está dividida em três itens: 1) “O horror cósmico de Lovecraft”; 2)

“Burke e o sublime”; e 3) “O sublime e o medo cósmico”.

No item 1, procurarei apresentar minuciosamente a argumentação de Lovecraft

em O horror sobrenatural em literatura. Sendo assim, no primeiro item pretendo

mostrar todo o caminho percorrido por Lovecraft em direção à legitimação da narrativa

sobrenatural de horror. Por isso, pretendo esclarecer o tom combativo do autor no

ensaio, mostrando quais são, em sua visão, os críticos da autenticidade da ficção de

horror e como Lovecraft defende o gênero dos diversos ataques que lhe são desferidos.

A apresentação dessa defesa lovecraftiana do horror na literatura é necessária porque ela

constitui um passo importante da formulação do chamado horror cósmico, cuja

elucidação é o principal foco do item 1.

Já no segundo item, meu objetivo é apresentar detalhadamente a teoria do

sublime formulada por Burke na Investigação. Minha exposição, portanto, passa por

três pontos principais: (i) contextualizar a publicação do tratado de Burke, já que a

mesma se dá em um período de transição do Neoclassicismo para o Romantismo, sendo

a Investigação um dos textos fundamentais dessa transição justamente pela

consideração burkeana acerca das categorias estéticas do belo e do sublime; (ii)

apresentar a maneira peculiar como o filósofo compreende as ideias de prazer e de dor,

uma vez que a distinção apresentada por Burke é um aspecto determinante para sua

doutrina do sublime e do belo, e talvez o que haja de mais original em todo o tratado; e,

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por fim, (iii) explicar a teoria burkeana do sublime propriamente, mostrando o papel

desempenhado pela emoção do terror para tal doutrina.

Tendo cumprido o proposto para os dois primeiros itens, no item 3 pretendo

conjugar as doutrinas lovecraftiana e burkeana, para mostrar as diversas relações que

podem ser traçadas entre o pensamento dos dois autores.

Já a segunda parte do meu estudo é direcionada para a ficção de Lovecraft. Nela

o foco é a compreensão de como o sublime opera na prosa lovecraftiana. Para isso,

selecionei duas obras, a saber, Dagon e O horror de Dunwich, para analisar e identificar

as passagens que corroboram a hipótese de trabalho desta monografia. Essa segunda

parte está dividida também em três itens: 1) “O sublime em funcionamento na obra de

H. P. Lovecraft”; 2) “O cenário sublime de Dagon”; e 3) “O desconhecido em O horror

de Dunwich”.

O primeiro item da segunda parte é o responsável por fazer a ponte entre ela e a

parte I da monografia. Nele procuro esclarecer a transposição que faço da análise dos

ecos das teses de Burke na reflexão crítica de Lovecraft para a análise das manifestações

do sublime na ficção lovecraftiana. Na realidade, trata-se de um dos pontos mais

simples deste estudo, na medida em que visa apenas a esclarecer a conexão entre as

duas grandes partes do texto.

Nos dois itens seguintes proponho uma leitura de obras ficcionais de Lovecraft à

luz da teoria do sublime de Burke. A primeira análise, do conto Dagon, é focada no

cenário em que se passa a narrativa. A partir da leitura de passagens selecionadas,

pretendo mostrar que o cenário criado por Lovecraft conjuga diversas ideias elencadas

por Burke como fontes do sublime.4 Já a leitura de O horror de Dunwich será focada

estritamente na questão do desconhecido (elemento fundamental do horror cósmico) e

da sugestão que, como pretendo esclarecer ao longo do meu estudo, é, segundo Burke,

muito mais eficiente para a produção do sublime do que uma descrição detalhada dos

objetos.

                                                                                                                         4  Tais ideias serão abordadas no item 1 da primeira parte da monografia.

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Portanto, com esta monografia pretendo esclarecer um aspecto bastante

relevante para os estudos sobre a obra de Lovecraft, que é a relação que ela possui com

os estudos sobre o sublime. Dessa forma, se os objetivos forem devidamente cumpridos,

espero elucidar também uma chave de leitura para a obra lovecraftiana, que reúne

muitas características pertencentes ao campo do sublime na filosofia da arte, o que deve

fornecer motivos suficientes para a aceitação da ficção de Lovecraft como legítima

manifestação artística.

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Parte I

HORROR CÓSMICO E O SUBLIME

1. O horror cósmico de Lovecraft

O ensaio O horror sobrenatural em literatura, de Howard Phillips Lovecraft,

apresenta uma das mais extensas análises acerca do gênero do horror na literatura. O

texto começou a ser elaborado em 1924, quando Lovecraft, àquela época ainda no início

de sua carreira ficcional, recebe um pedido de W. Paul Cook – um amigo com quem

mantinha correspondência – para redigir uma história da ficção sobrenatural que seria

publicada em uma revista que Cook pretendia editar. O ensaio foi finalizado três anos

depois e publicado no primeiro e único volume do periódico The Recluse. O texto então

sofreu diversas revisões e sua versão definitiva só foi publicada dois anos após a morte

do autor, em 1939.

A reflexão lovecraftiana, portanto, se desenvolve como uma história do horror

na literatura, e conforme traça essa história o autor formula sua própria estética da

ficção de horror. As bases para essa estética do horror já são apresentadas na célebre

passagem que dá início ao ensaio:

A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte tipo de medo é o medo do desconhecido. Estes fatos poucos psicólogos irão contestar, e sua verdade admitida deve estabelecer para todos os tempos a genuinidade e dignidade da literatura fantástica de horror como forma literária (LOVECRAFT, 1973, p.12).5

Neste trecho, ao afirmar que o medo é a emoção mais intensa e antiga do

homem, Lovecraft já deixa claro que irá fundar sua reflexão sobre bases de ordem

psicológica e fisiológica. No entanto, uma questão se apresenta quando abordamos o

ensaio. Por que motivo Lovecraft, em um texto cujo objetivo é traçar uma história da

narrativa de horror, se vê impelido a apresentar uma estética do gênero? Essas primeiras

linhas do ensaio atestam o fato de que o autor, como aponta Júlio França, estava “ciente

                                                                                                                         5 Neste texto, todas as traduções de O horror sobrenatural em literatura são de minha autoria.

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da necessidade de justificar um gênero que estava – e ainda está – longe de desfrutar de

uma aceitação unânime como legítima forma literária” (FRANÇA, 2010, p. 74). Por

esse motivo, a primeira parte do ensaio é marcada por um tom combativo.

Almejando uma legitimação para a produção do medo pela literatura, Lovecraft

identifica os adversários que visam a depreciar e deslegitimar a literatura do medo

enquanto fenômeno estético. De acordo com o autor, duas são as correntes que se

opõem à ficção de horror: o “materialismo” de um lado e o “idealismo” de outro.

Enquanto os materialistas se pautam nas emoções corriqueiras e nos eventos externos

para desqualificar o aspecto fantástico desse tipo de narrativa, os idealistas desprezam a

motivação estética do horror – isto é, a produção do medo – em favor de um

“didaticismo” literário que “eleve o leitor” (LOVECRAFT, 1973, p.12). Contudo,

Lovecraft afirma que, apesar de nunca ter sido um gênero literário plenamente aceito, o

horror, por estar ligado a uma emoção primitiva e fundamental do ser humano, não

apenas sempre existiu como vinha se aprimorando:

Mas a despeito de toda sua oposição [dos materialistas e idealistas] o conto fantástico6 sobreviveu, se desenvolveu, e alcançou níveis notáveis de perfeição, fundado como é em um profundo e elementar princípio cujo apelo, se não sempre universal, deve ser incisivo e permanente nas mentes de requerida sensibilidade (Ibidem).

Lovecraft, entretanto, reconhece que, muito embora o medo seja uma emoção

primitiva e quase sempre presente na mente humana, a ficção de horror demanda “um

certo grau de imaginação e uma capacidade de distanciamento da vida cotidiana”, fato

este que explica a razão pela qual “o apelo pelo macabro espectral é geralmente restrito”

(Ibidem). Em outras palavras, o sucesso da narrativa de horror na produção dos efeitos

desejados está estritamente ligado à predisposição exigida da parte do leitor. É por esse

motivo, acredita Lovecraft, que as histórias de cunho mais realista sempre irão

prevalecer no gosto da maioria.

Ainda que a eficácia do horror seja dependente da capacidade imaginativa do

leitor, e mesmo reconhecendo que são poucos os que possuem tal capacidade, Lovecraft

é categórico ao afirmar que até mesmo as mentes mais racionais possuem, ainda que em                                                                                                                          6 No original, weird. Vale ressaltar que Lovecraft, ao utilizar o termo, tem em mente um tipo bastante específico de literatura sobrenatural. Dada a especificidade das teses lovecraftianas, o termo “fantástico” não é adequado, pois possui uma grande carga conceitual. (cf. FRANÇA, 2010, p. 79, nota 8).

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menor grau, a predisposição requerida pela ficção de horror. Isso porque – e esta é a

base fundamental da estética lovecraftiana do horror – todos nós temos, segundo o

autor, uma herança biológica e psicológica que pode ser avivada pela narrativa macabra:

Mas a sensibilidade está sempre conosco, e às vezes um curioso rasgo de fantasia invade um canto obscuro da cabeça mais dura; [...] Aqui está envolvido um padrão ou tradição psicológica tão real e tão profundamente enraizado na experiência mental quanto qualquer outro padrão ou tradição da humanidade; [...] uma grande parte de nossa herança biológica mais profunda para perder sua contundência [...] (Ibidem, p. 13. Grifo meu).

Lovecraft sustenta que essa “herança biológica” é o que proporciona o apelo do

horror. O antepassado primitivo do homem tinha em seus instintos e emoções “sua

resposta ao ambiente no qual se encontrava” (Ibidem). Desse modo, todos os fenômenos

cujas causas ele conhecia definiam sentimentos que tinham como base ideias de prazer

ou de dor, enquanto que aos acontecimentos que escapavam à sua compreensão – dentre

eles o próprio universo – eram dadas interpretações maravilhosas, estando sempre

presentes, nesse caso, sentimentos de medo e de terror. Por essa razão, o universo,

sendo desconhecido – e, por isso, imprevisível –, se tornou para nossos antepassados

uma fonte terrível tanto de benção quanto das mais horríveis calamidades.

Outro fator importante de nossa herança é o sonho, que, de acordo com

Lovecraft, forneceu mais um impulso na direção da criação da noção de um mundo

“irreal ou espiritual” (Ibidem). Isso, aliado às condições de vida de nossos ancestrais,

constituiu a base necessária para, como observa Júlio França, “fomentar a sensação de

haver um outro plano, sobrenatural, e teriam tornado o ser humano hereditariamente

suscetível a todo tipo de superstições” (FRANÇA, 2010, p. 76).

Lovecraft admite que durante todo o curso da história a “zona do desconhecido”

(LOVECRAFT, 1973, p. 14) foi restringida, devido, sobretudo, aos avanços da ciência

moderna.7 No entanto o escritor de Providence afirma que ainda há um “reservatório

infinito de mistério” (Ibidem), e mesmo os eventos que a ciência consegue explicar são

                                                                                                                         7 Vale ressaltar que Lovecraft estava a par de todos os avanços científicos de sua época. O autor inclusive se utiliza de diversas descobertas científicas para compor elementos para suas narrativas. Um bom exemplo é a referência ao “nono planeta” em Um sussurro nas trevas, em uma época em que Plutão acabara de ser descoberto pela astronomia. Cf. BRAGA, 2012, p. 10.

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capazes de evocar nossos instintos mais primitivos, pois a mente humana está

fisiologicamente ligada a tais crenças ancestrais.8

Tendo argumentado em favor das bases primitivas do medo, Lovecraft afirma

que, em função desse caráter ancestral, o homem se lembraria de maneira mais vívida

da dor e da ameaça de morte do que do prazer. Essa premissa – burkeana, como

pretendo demonstrar mais adiante – aliada ao fato de que os aspectos positivos do

desconhecido foram, segundo o autor, incorporados pelos rituais religiosos explica o

motivo pelo qual seus aspectos macabros recaíram sobre o folclore popular. Isso

também seria explicado pela tendência humana de associar incerteza ao perigo, o que

torna o desconhecido algo perigoso. Como afirma Júlio França, “incerteza e perigo

seriam os catalisadores das narrativas sobrenaturais populares. O desconhecido

representaria uma fonte constante de possibilidades perigosas e malévolas” (FRANÇA,

2010, p. 78). Para Lovecraft, portanto, o fascínio pela ficção de horror e a efetividade do

gênero se devem a essa predominância na mente humana das ideias de dor e do risco de

morte, o que colabora para a perpetuação da literatura do medo. Como afirma o autor:

Quando a este sentimento de medo e maldade é superadicionado o fascínio de espanto e curiosidade, nasce um corpo composto de emoção intensa e provocação imaginativa cuja vitalidade deve por necessidade durar tanto quanto a própria raça humana (LOVECRAFT, 1973, p.14).

É preciso observar, porém, que Lovecraft privilegia um tipo específico de ficção

de horror, a “literatura de medo cósmico”, que apesar de apresentar similaridades

externas com a literatura do simples medo físico, possui traços psicológicos bem

distintos (Ibidem, p. 15). O sentimento de horror cósmico pode ser definido como

aquele “medo e temor que sentimos quando confrontados por fenômenos além de nossa

compreensão, cujo escopo se estende para além do campo restrito dos assuntos humanos

e se vangloria da significância cósmica” (RALICKAS, 2007, p. 364). O autor entende a

ficção que gira em torno do desconhecido como esteticamente superior – e por isso mais

legítimo – e capaz de suscitar no leitor o medo cósmico em seu sentido puro. Por esse

motivo, o escritor de Providence afirma que “o critério final de autenticidade [da ficção

de horror] não é o desenrolar de um enredo, mas a criação de uma determinada

                                                                                                                         8 Vale dizer que a reflexão lovecraftiana acerca do aspecto primitivo do medo é bastante semelhante à análise de Freud sobre o medo na estética. Para essa questão, cf. FRANÇA, 2010 pp.76-78.

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sensação” (Ibidem, p.16).9 Nesse ponto, Lovecraft deixa explícita a sua posição de que

o foco de uma análise estética deve recair sobre a recepção da obra, como observa Júlio

França:

Os aspectos do processo literário relacionados aos propósitos do autor e aos traços formais da narrativa são colocados em segundo plano, diante do que Lovecraft considera ser o teste definitivo da narrativa de horror cósmico: saber se ela provoca ou não, no leitor, uma sensação profunda de pavor diante do contato com aquilo que é desconhecido (FRANÇA, 2010, p. 8).

Lovecraft, portanto, fundamenta o chamado “horror cósmico” com base em uma

herança biológica do ser humano. No entanto, as principais premissas das teses do autor

– tais como o caráter primitivo do medo e a predominância da ideia de dor na mente –

não são completamente originais em seu pensamento. A reflexão lovecraftiana parece

assemelhar-se à teoria do sublime exposta dois séculos antes por Edmund Burke na obra

Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. No

entanto, ao longo de todo o ensaio, Lovecraft não faz nenhuma menção às teses

burkeanas, o que torna difícil falar em uma influência de Burke sobre o criador de

Cthulhu, já que não sabemos nem sequer se o último leu a obra do primeiro. Portanto,

uma apresentação minuciosa das teses burkeanas se faz necessária para que possamos

afirmar com certeza que elas constituem uma referência teórica importante – ainda que

implícita – para as reflexões de Lovecraft.

                                                                                                                         9 Lovecraft chega a afirmar que muitas vezes apenas fragmentos de uma obra são capazes de criar uma atmosfera propícia à produção do medo cósmico, e que isso pode acontecer independentemente da intenção do autor.  

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2. Burke e o sublime

O primeiro tratado sobre o sublime que chegou até nós é o Peri Hypsous, de Longino.10

Antes um texto de retórica do que propriamente de estética, o Peri Hypsous aborda um

dos estilos da retórica clássica. O estilo sublime no discurso de um orador é o elemento

capaz de despertar no espectador uma sensação ao mesmo tempo de êxtase e de

impotência, possibilitando assim que o público seja arrebatado. O tratado ganhou maior

popularidade depois que Boileau, em 1674, publicou sua tradução francesa da obra, a

primeira para o vernáculo. A importância de Boileau para a história do sublime,

entretanto, não se resume à sua tradução do Peri Hypsous. O pensador publicou junto à

tradução um pequeno prefácio, onde distingue o estilo sublime de um conteúdo sublime,

que já pode ser entendido como a própria categoria estética. Boileau entende que esse

conteúdo se configura como o maravilhoso, responsável por elevar, arrebatar e

transportar [enlève, ravit, transporte] o espectador. O prefácio de Boileau tornou

possível uma análise do sublime fora do âmbito da retórica e influenciou boa parte das

abordagens do tema na primeira metade do século XVIII. Contudo, como observa

Samuel Monk, todas essas abordagens remetem de algum modo ao Peri Hypsous:

Mas embora seu método [o método dos pensadores da primeira metade do século XVIII] seja diferente daquele de Longino, quase todas as suas ideias podem ser traçadas ao Peri Hypsous. O espanto que o sublime desperta, a expansão e elevação da alma quando posta frente a frente com a grandeza de pensamento ou grandeza de cenário, a analogia entre o efeito da vastidão na natureza e do Sublime na arte, foram todas sugeridas por Longino (MONK, 1960, p. 85).11

Como também é apontado por Monk (Ibidem), a principal contribuição desses autores

foi indicar o melhor método de análise e mostrar quais eram as ideias fundamentais do

Peri Hypsous. No entanto, os autores desse período ainda não atentavam para alguns

obstáculos. O maior deles era a confusão e a ambiguidade envolvidas nas discussões

sobre o sublime e o belo. É exatamente nesse contexto, e com o intuito de corrigir essa

                                                                                                                         10 Hoje se sabe que Longino não escreveu de fato o Peri Hypsous. A autoria do tratado, no entanto, ainda é tema de debate entre os especialistas. Para essa discussão, cf. MONK, 1960, p. 10. 11 Neste texto, as traduções da obra The Sublime: a StudyofCriticalTheories in XVIII-CenturyEngland, de Samuel Monk, são de minha autoria.

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ambiguidade12, que Burke publica, em 1757, sua obra Uma investigação filosófica

sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo.

A Investigação é um dos mais importantes tratados do campo da estética produzidos no

século XVIII. Sua importância consiste sobretudo na proposta de Burke de um método

de análise que direciona seu foco para os aspectos de recepção da obra de arte, isto é,

trata-se de uma investigação que confere maior ênfase não a características intrínsecas à

própria obra, mas às emoções que ela suscita no sujeito. Desse modo, o autor rompe

completamente com a tradição do Neoclassicismo, pois seu interesse, como afirma

Monk, é “descobrir como os objetos nos afetam, em vez de discutir, nas bases das ideias

preconcebidas inerentes ao sistema neoclássico, como eles deveriam nos afetar”

(Ibidem, p. 92).

Burke entende que uma análise focada nos efeitos de recepção é a chave para a

superação da ambiguidade que permeava as análises estéticas do período.13 Esse ponto

de vista, por sua vez, ocasiona uma leitura psicológica – e, como veremos mais adiante,

até mesmo fisiológica – do sublime, pois a experiência estética é mais dependente do

sujeito do que de qualidades próprias do objeto contemplado.14

Se, portanto, o ponto principal da estética burkeana é a emoção, sua teoria do sublime

também está fundada nessa premissa. E a emoção que serve de fundamento para o

sublime é o terror.15 Tal asserção, no entanto, está fundada em um aspecto mais

fundamental da teoria de Burke, a saber, “a antítese entre dor e prazer, o primeiro sendo

a fundação do sublime, e o outro o do belo” (Ibidem, p. 91). O autor parece intrigado

com o fato de que, quando se trata de um juízo estético, o prazer pode ser derivado até

mesmo da ideia de dor (Ibidem). E ao trazer a dor para o âmbito da discussão acerca do

sublime, Burke “abre o caminho para a inclusão de ideias e imagens na arte que até                                                                                                                          12 O prefácio à primeira edição da Investigação (1757) chama atenção para essa ambiguidade ao observar que “frequentemente se confundiam as ideias do sublime e do belo e que ambas eram aplicadas indiscriminadamente a coisas muito diferentes e algumas vezes de naturezas inteiramente opostas”. 13 Também no prefácio à primeira edição, Burke ressalta que o único modo de ultrapassar esses raciocínios imprecisos seria “partir de um exame atento do âmago de nossas paixões, de uma pesquisa cuidadosa sobre as propriedades das coisas capazes, segundo nos mostra a experiência, de afetar o corpo e, portanto, de incitar nossas paixões.” 14 Cf. WEISKEL, 1976, p. 86; MONK, 1960, p.86: “Ele [Burke] sustenta [...] que a sublimidade de algum modo depende de qualidades que residem no objeto, mas sua análise abre ampla margem para uma investigação psicológica, e até fisiológica, da origem da experiência estética.” 15 Por “terror” Burke concebe nada mais que o “medo da injúria, da dor, e finalmente da morte” (WEISKEL, 1973, p. 92).

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13    

então eram consideradas como repousando propriamente fora da esfera do prazer

estético” (Ibidem).

Burke sustenta que as ideias capazes de provocar uma forte impressão na mente humana

sempre envolvem sensações de dor ou de prazer e podem ser reduzidas a dois gêneros: o

das ideias que dizem respeito à sociedade e e o das que dizem respeito à

autopreservação. Por isso, antes de apresentar a teoria do sublime do filósofo, é

necessário compreender a maneira como ele concebe as noções de dor e de prazer.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que Burke se posiciona contra a noção –

segundo o próprio autor, comumente aceita na época – de que as sensações de dor e de

prazer são mutuamente dependentes, e de que uma só existe por meio da diminuição da

outra. O filósofo afirma que a mente não se encontra em um estado nem de prazer e nem

de dor, mas em um estado de indiferença, e que há prazeres e dores de natureza

inteiramente positiva:

De minha parte, estou antes inclinado a crer que o efeito mais elementar e natural da dor e do prazer tem um caráter positivo, e que eles não devem necessariamente sua existência a uma dependência mútua (BURKE, 1993, p. 42).16

No entanto, afirmar que há prazeres e dores positivos não significa que Burke recuse a

noção de prazer negativo. Desse modo, o autor prossegue com sua argumentação e

distingue o prazer positivo daquele tipo de prazer oriundo da cessação da dor.

A sensação que surge a partir da diminuição da dor não é, segundo Burke,

suficientemente semelhante ao prazer simples e positivo para que seja considerada de

mesma natureza. Ainda que seus efeitos sejam positivos, ela é bem diversa do prazer

positivo, que é simples e sem qualquer relação com a dor17. Sendo assim, essa sensação,

muito embora seja positiva, é uma espécie de privação, pois sua existência é relativa e

sempre está relacionada à dor:                                                                                                                          16   Neste estudo, utilizarei nas citações a tradução de Enid Abreu Dobráaszky de Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. 17 O mesmo vale para a sensação que resulta da cessação do prazer. A diferença é que nesse caso Burke distingue três graus de afecção: se o prazer simplesmente cessa, a mente retorna ao estado de indiferença; se o prazer é interrompido abruptamente, acarreta uma sensação de decepção; e se o objeto está totalmente perdido, de modo que não pode ser usufruído novamente, gera a paixão denominada pesar. Das três paixões, o pesar é a mais intensa, mas ainda assim não é suficientemente semelhante à dor positiva (cf. BURKE, 1993, p. 46).

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14    

Indiscutivelmente, todo tipo de satisfação ou prazer [...] possui uma natureza positiva, no que diz respeito à mente18 daquele que o sente. A sensação é, sem sombra de dúvida, positiva, mas a causa pode ser, e neste caso certamente o é, uma espécie de privação. Aconselha-nos, pois, o bom senso que se deva distinguir mediante algum outro nome duas coisas de naturezas tão diversas, como um prazer simples e sem nenhuma relação com outro sentimento, daquele cuja existência é sempre relativa e estreitamente vinculada à dor (Ibidem, p. 45. Modificada).

A esse prazer “impuro” – isto é, dependente de uma dor anterior – Burke dá o nome de

deleite [delight] (Ibidem). Prazer, dor e indiferença seriam, portanto, três estados

independentes da mente, sem qualquer relação intrínseca entre si.

Como afirmado acima, Burke reduz as ideias que causam uma forte impressão na mente

a dois gêneros: as que concernem à sociedade, e as que concernem à autopreservação.

A cada um desses gêneros se relaciona um tipo de prazer. A sociedade está relacionada

ao prazer positivo, e a autopreservação ao deleite. Isso porque as ideias de

autopreservação sempre envolvem de alguma forma a dor. Se, por um lado, como

afirma Burke, a ideia de beleza está relacionada a uma característica social positiva

(Ibidem, pp. 50-51), que gera amor e prazer, o sublime está relacionado à

autopreservação e, consequentemente, ao deleite.

Burke explica que tudo que é capaz de suscitar na mente as ideias de dor e de perigo, ou

que opera de modo análogo ao terror, constitui uma fonte do sublime – que, de acordo

com o autor, é a emoção mais intensa que a mente é capaz de sentir. Burke entende que

as ideias ligadas ao instinto humano de autopreservação são predominantes na mente

porque, para que se possa realizar qualquer ação, é necessário estar em condições plenas

de saúde. Por esse motivo, qualquer coisa que ameace nossas vidas afeta a mente de

modo intenso.

No entanto, Burke observa que quando essas ideias constituem uma ameaça direta elas

não proporcionam nenhum deleite, mas são apenas terríveis. Sendo assim, para que a

                                                                                                                         18 No original, mind. Optei pela tradução por “mente” em vez de manter a tradução por “espírito” por dois motivos: em primeiro lugar, por se tratar de um correspondente direto para o termo em inglês, e em segundo lugar, devido à grande carga conceitual que o termo “espírito” carrega ao longo da história da filosofia. Além disso, pode-se somar o fato de que o termo spirit era um termo usado nas discussões filosóficas no período em que Burke publicou sua Investigação. Por isso, se o próprio autor optou por mind em vez de spirit, não se trata apenas de uma decisão arbitrária de um termo pelo outro, mas sim que Burke de fato queria utilizar o termo “mente”.

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15    

mente possa usufruir de qualquer prazer advindo das ideias derivadas do terror, é

necessária certa distância:

Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo modo atenuadas, podem ser – e são – deliciosas19, como nossa experiência diária nos mostra (BURKE, 1993, p. 48).

Portanto, as sensações dolorosas proporcionam, quando suas causas não nos são

apresentadas diretamente, um intenso deleite, que, como apontado anteriormente, não se

confunde com o prazer positivo, puro e simples, pois suas causas sempre envolvem um

sentimento de dor ou de perigo.

Porém, afirmar que as sensações que derivam do terror, e que envolvem dor ou perigo,

provocam um intenso deleite e constituem uma fonte do sublime não esclarece de que

modo é possível ter uma experiência “aterrorizante” sem estar exposto de maneira direta

às suas causas, para que, assim, se possa obter algum deleite. Burke explica que isso se

dá devido às paixões relacionadas à necessidade humana da vida em sociedade. O

filósofo aponta três paixões principais: a simpatia20, a imitação e a ambição, sendo a

simpatia a mais fundamental dessas paixões, pois é através dela que se passa ao domínio

das outras. Essa paixão permite que se obtenha prazer dos diversos tipos de arte, até

mesmo dos que envolvem ideias terríveis como a dor ou a morte:

Pois a simpatia deve ser considerada uma espécie de substituição, mediante a qual colocamo-nos no lugar de outrem e somos afetados, sob muitos aspectos, da mesma maneira que eles; de modo que essa paixão pode ou partilhar da natureza daquelas relacionadas à autopreservação e, derivando-se da dor, ser uma fonte do sublime, ou pode aliar-se às ideias de prazer [...] É principalmente por esse princípio que a poesia, a pintura e as outras artes relacionadas a sentimentos comunicam suas paixões de um coração a outro e muitas vezes são capazes de enxertar um deleite no desgosto, na infelicidade e na própria morte (Ibidem, pp. 52-53).

Sendo assim, Burke entende que a atração pelo terrível é um comportamento instintivo

do ser humano. O filósofo, a partir de alguns exemplos, mostra que nossa simpatia é

                                                                                                                         19Delightful, no original. 20 Vale ressaltar que, apesar da minha opção por manter a tradução por “simpatia”, o que Burke tem em mente quando utiliza a palavra sympathy não é a sensação agradável que uma pessoa desperta na outra, mas sim algo próximo à “compaixão”.

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16    

mais atraída pela desgraça do que pelo sucesso dos outros. Este fato, aliado à concepção

de que as sensações de dor e de perigo são predominantes na mente, faz com que o

deleite seja mais intenso do que o prazer simples e puro.

A antítese entre dor e prazer, base da formulação do sistema de Burke, atesta a

importância do terror para a sua teoria do sublime.21 Essa antítese também permite

explicar o fato que, como dito acima, intrigava Burke, a saber, a possibilidade de derivar

prazer da ideia de dor. Portanto, formulando suas teses com base nessa premissa, o autor

encontrou os meios adequados para dar conta de objetos artísticos que antes

repousavam fora do âmbito do prazer estético.

Tendo então estabelecido a sua teoria estética na primeira parte da Investigação, Burke,

na segunda parte da obra, se ocupa exclusivamente das ideias capazes de provocar o

sentimento do sublime, todas, segundo o autor, derivadas de alguma forma do terror,

confirmando que este é o princípio fundamental desta categoria estética.22

Em primeiro lugar, antes de passar à consideração das ideias responsáveis por

proporcionar um sentimento do sublime, Burke se ocupa de seus efeitos na mente

humana. O autor esclarece que o sublime afeta a mente em quatro graus: três inferiores,

a saber, admiração, reverência e respeito; e o efeito mais forte, o assombro.23 Quando

em um estado de assombro, a mente tem todos os seus movimentos suspensos por um

grau elevado de horror. Burke explica que, quando está nesse estado, “a mente sente-se

tão plena de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, consequentemente,

raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção” (Ibidem, p.65. Modificada).

Esta é precisamente a origem do sentimento do sublime, que antecipa qualquer

possibilidade de raciocínio e “nos arrebata com uma força irresistível” (Ibidem).

Tendo esclarecido o modo como o sublime afeta a mente, Burke passa então a analisar

as ideias que são capazes de suscitar o sentimento de horror, constituindo, assim, uma                                                                                                                          21 Vale esclarecer que o sublime “não é o próprio sentimento de terror; ele é uma resposta ao terror” (WEISKEL, 1973, p. 87). O terror é um dos principais agentes no efeito que acompanha o sublime, pois este efeito consiste em um arrebatamento que acaba por acarretar uma sensação de impotência, e o medo é justamente a emoção que torna o homem incapaz de agir e de raciocinar. 22 O primeiro argumento de Burke para atestar a “afinidade” entre as ideias de terror e do sublime é de ordem linguística. Na segunda seção da segunda parte, o filósofo mostra como, em diversas línguas, as mesmas palavras são usadas para designar tanto admiração quanto assombro e terror (cf. BURKE, 1993, p. 66). 23Astonishment, no original.

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17    

fonte do sublime. Ideias como o poder, a infinitude e a vastidão (todas, segundo Burke,

derivadas do terror) provocam na mente a paixão do assombro, proporcionando,

portanto, um intenso deleite. Entretanto, não me ocuparei em fazer uma exposição

exaustiva de todas as ideias consideradas por Burke. Irei destacar apenas as ideias que

possuem uma relação com os textos que serão analisados na segunda parte deste

trabalho. Desse modo, irei me concentrar nas ideias de obscuridade, de poder, de

privação, de vastidão, de infinitude e de sucessão e uniformidade, sendo estas duas

últimas relacionadas à infinitude.

Primeiramente, gostaria de destacar a ideia de obscuridade – até mesmo por sua

semelhança com a noção lovecraftiana de desconhecido, abordada na seção anterior. A

obscuridade não apenas é capaz de tomar a mente de maneira vívida, como também

parece ser condição de todas as ideias terríveis:

Para tornar algo extremamente terrível, a obscuridade parece ser, em geral, necessária. Quando temos conhecimento de toda a extensão de um perigo, quando conseguimos que nossos olhos a ele se acostumem, boa parte da apreensão desaparece. Qualquer pessoa poderá perceber isso, se refletir o quão intensamente a noite contribui para o nosso temor em todos os casos de perigo e o quanto as crenças em fantasmas e duendes, dos quais ninguém pode formar ideias precisas, afetam os espíritos que dão crédito aos contos populares sobre tais espécies de seres (Ibidem, pp. 66-67).

Portanto, a ideia de obscuridade se refere não apenas à ausência de luz, mas também aos

objetos dos quais não podemos formar ideias claras, ou mesmo àqueles que são

completamente ininteligíveis. Por esse motivo, Burke julga que a obscuridade é uma

condição indispensável para o medo e o terror, pois o sublime exige um grau de

incerteza – e esta é uma premissa também do horror cósmico lovecraftiano –, de modo

que o mesmo possa causar uma forte impressão na mente.24 Fica clara, pois, a razão que

leva Burke a julgar que a incerteza contribui muito mais para os efeitos das artes

representativas do que uma descrição detalhada do objeto:

Desde o início, somos preparados com a máxima solenidade para a visão, somos primeiramente aterrorizados, antes mesmo que saibamos a causa obscura de nossa emoção; mas, quando essa causa grandiosa se mostra, o que é ela? Não é, envolta nas sombras de sua própria

                                                                                                                         24Monk observa que o repúdio pela claridade é muito importante devido ao fato de que, para Burke, o sublime é o domínio mais elevado da arte, pois a remove do patamar inferior que lhe era conferido pelo Neoclassicismo, um patamar de subordinação à ordem da natureza (cf. MONK, 1960, p. 94).

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18    

escuridão incompreensível, mais apavorante, mais impressionante, mais terrível do que a descrição mais vívida, do que a pintura mais exata poderiam talvez representar? (Ibidem, p. 70).

Burke inclusive afirma que quando a pintura tenta representar de maneira clara aquelas

ideias magníficas e obscuras apresentadas por poetas como Milton quase sempre seu

produto beira o ridículo (Ibidem, p. 71). Na sequência de sua exposição, Burke passa a

considerar a ideia de poder.25

Assim como qualquer ideia que constitui uma fonte do sublime, também o poder é

derivado, segundo Burke, do terror. O autor, na verdade, considera que, além de sugerir

a ideia de perigo, qualquer objeto sublime parece ser alguma modificação do poder

(Ibidem). No entanto, como observa Thomas Weiskel, o poder “nada mais é que a

sugestão indireta do perigo” (WEISKEL, 1973, p. 92. Grifo do autor). Burke toma

como pressuposto o fato de que a dor é sempre infligida por um poder maior, pois

“nunca nos submetemos voluntariamente a ela” (BURKE, 1993, p. 72). É justamente

por esse motivo que o autor acredita que o poder também deriva do terror, pois o

sublime surge a partir da ideia terrível que acompanha o poder, isto é, a possibilidade

que aquela força maior tem de nos causar dor.

Na sequência de sua argumentação, Burke considera as ideias de privação (na seção VI

da segunda parte da Investigação) e de vastidão (na seção VII). Burke julga as

privações – ideias como o silêncio, as trevas e a solidão – sublimes porque todas são

terríveis.26 No caso da vastidão, o efeito surge da grandiosidade de dimensões, que é

uma “fonte poderosa do sublime” (Ibidem, p. 77). A vastidão possui três modos de

afetar da mente, a saber, a extensão por comprimento, altura ou profundidade. Desses

três modos, a profundidade é a fonte mais poderosa do sublime e o comprimento é a que

possui o menor efeito na mente.27 Burke acrescenta ainda que, do mesmo modo que a

                                                                                                                         25 Vale observar que a ideia de poder não possui exatamente uma relação direta com os textos que serão objetos de análise na segunda parte deste estudo. No entanto, quando consideramos as narrativas de horror, sobretudo quando temos claramente uma monstruosidade envolvida, a ideia de poder se faz presente. Por esse motivo, julgo importante fazer uma breve exposição da consideração burkeana acerca do poder. 26 Burke não se estende muito sobre a ideia de privação. Após afirmar que tais ideias são sublimes porque são terríveis, o autor faz uma referência à Eneida para ilustrar seu ponto de vista. Cf. BURKE, 1993, pp. 76-77. 27 Burke confessa que não tem muita certeza quanto ao grau de afetação dos diversos graus de vastidão. Ele observa que “um plano perpendicular tem um poder maior de produzir o sublime do que um inclinado, e os efeitos de uma superfície irregular e acidentada parecem mais fortes do que quando ela é uniforme e polida” (BURKE, 1993, p. 78). Essas ocorrências constituiriam alguns parênteses que

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19    

grandeza de dimensões é sublime, também o é o caso de uma pequenez extrema. Isso

porque, afirma o autor, “a divisão pode ser infinita, como a adição, dado que não se

consegue mais atingir a ideia de uma unidade perfeita, tanto quanto a de um todo

completo ao qual nada pode ser acrescentado” (Ibidem, p.78). Sendo assim, também a

pequenez extrema é capaz de nos deixar atônitos, de tal modo que impossibilita a

distinção de seu efeito daquele da própria vastidão. Em seguida, o autor passa a tratar da

infinitude, uma ideia que afeta a mente de um modo semelhante à vastidão.28

A infinitude constitui uma fonte do sublime dada a impossibilidade de estabelecer os

limites do objeto. Essa impossibilidade provoca na mente aquele “horror deleitoso”

(Ibidem), efeito essencial concomitante ao sublime. No entanto, Burke observa que há

poucos objetos verdadeiramente infinitos, mas qualquer objeto que, dado o seu

tamanho, não permita à mente a identificação de seus limites opera de modo análogo ao

infinito autêntico. Esse “infinito artificial” (Ibidem, p. 79) é constituído por dois

aspectos: a sucessão e a uniformidade.

A sucessão é fundamental para o infinito artificial, pois as partes do objeto em questão

devem seguir em uma determinada direção e por um longo tempo para que possam,

estimulando os sentidos, provocar na mente uma ideia de continuidade que ultrapassa

seus limites efetivos. Por esse motivo, a uniformidade é igualmente requerida, pois se

houver mudança nas formas das partes, a mente, sendo exposta a cada alteração, é capaz

de identificar onde cada parte começa e termina.

No restante da parte II da Investigação, Burke continua analisando diversas ideias que

também constituem uma fonte do sublime. Tais ideias, pelas razões já expostas

anteriormente, não serão abordadas neste trabalho. Mais à frente, na parte IV, Burke

passa a buscar a causa eficiente do sentimento do sublime. Esta parte do tratado é

importante para nosso estudo porque nela, apesar de retomar algumas noções

apresentadas na primeira parte, o autor procura explicar como é possível que a dor seja

causa do deleite, e como uma sensação ligada a ideias de dor e terror pode ser benéfica

para a mente.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     deveriam ser acrescentados em sua análise sobre a vastidão. Por esse motivo, para não desviar do foco de sua investigação, Burke decide não abordar as ocorrências específicas da vastidão. 28 Burke chegar a afirmar que a infinitude poderia pertencer ao domínio da vastidão (cf. Burke, 1993, p. 78).

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20    

A tentativa de Burke de explicar a causa eficiente do sublime, como observa Monk, é de

ordem psicológica e fisiológica (MONK, 1960, p. 96). O filósofo procura “observar a

fisiologia da beleza e da sublimidade [...] e trazer todo o organismo para a experiência

estética” (Ibidem), salientando sua preocupação em restringir suas análises aos efeitos

suscitados no sujeito.

Burke, num primeiro momento, se utiliza da associação para explicar os efeitos

provocados pelos objetos (é por associação, por exemplo, que tomamos um precipício

como algo mais assustador que uma planície). Contudo, o autor se recusa a explicar

todos os efeitos por meio da associação, pela simples razão de que, se há objetos cujos

efeitos são produto da associação, é necessário então haver objetos que originalmente

produziram tais efeitos. Como explica Burke:

Porém, assim como é preciso reconhecer que muitas coisas nos afetam de uma determinada maneira, não devido a quaisquer poderes naturais que possuam para aquela finalidade, mas devido à associação, seria absurdo, por outro lado, atribuir somente a ela todos os efeitos que as coisas nos causam, e, uma vez que algumas destas devem ter sido original e naturalmente agradáveis ou desagradáveis, fato do qual as outras derivam seus poderes associativos, creio que seria inútil procurar na associação a causa de nossas paixões até que consigamos descobri-la nas propriedades naturais das coisas (BURKE, 1993, pp.136-137).

Nas partes I e II da Investigação, Burke estabeleceu o terror como principal fonte do

sublime, sendo o primeiro indispensável para a produção do último. Desse modo, o

primeiro passo do filósofo na tentativa de identificar a causa eficiente do sublime é

explicar como operam a dor e o medo, para assim mostrar como é possível a produção

do deleite (e consequentemente do sublime) a partir de sensações que, à primeira vista,

são inteiramente opostas.

Em primeiro lugar, Burke considera pertinente analisar a dor e o medo em conjunto

devido ao fato de que, segundo o autor, ambos operam do mesmo modo, isto é, ambos

“consistem em uma tensão anormal dos nervos” (Ibidem, p.137). O filósofo observa

apenas uma distinção na maneira como operam a sensação e a emoção (cf. MONK,

1960, p, 97). Enquanto a dor afeta a mente através do corpo, o medo e o terror afetam o

corpo através da mente. Nas palavras de Burke:

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21    

A única diferença entre a dor e o terror consiste em que as coisas que causam a primeira agem sobre a mente pela intervenção do corpo, ao passo que as que produzem o segundo geralmente afetam os órgãos do corpo pela ação da mente, que o adverte do perigo; contudo, ambos assemelham-se, quer direta, quer indiretamente, por produzirem uma tensão, contração ou excitação violenta dos nervos [...] (BURKE, 1993, p. 138. Modificada).

Ao definir a dor e o terror como uma “tensão anormal dos nervos”, e pelas vias da

associação, Burke pode explicar por que objetos que não são essencialmente terríveis

podem constituir uma fonte do sublime. Tomemos como exemplo o caso da infinitude,

abordado anteriormente. Nesse caso, o objeto não evoca uma ideia de perigo, mas ainda

assim causa uma contração dos nervos ópticos em função do fato de que os olhos não

conseguem estabelecer seus limites, agindo assim de um modo análogo ao terror, e por

isso constituindo uma fonte do sublime. No entanto, ainda há uma questão importante a

ser respondida. Como o deleite – que, como vimos, não deve ser confundido com o

prazer puro – pode ser produzido a partir de uma emoção como o terror? Para resolver

essa questão, Burke lança mão de uma analogia fisiológica. O filósofo argumenta que o

terror é benéfico para os “órgãos delicados” (Ibidem, p. 141) do mesmo modo que o

exercício físico é benéfico para o corpo. O autor entende que, uma vez que se trata de

contração muscular, o exercício físico é bastante semelhante à dor e ao terror, possuindo

apenas uma diferença de grau. Portanto, o terror opera como uma espécie de “exercício”

dos órgãos delicados:

[...] se a dor e o terror estão moderados a ponto de não serem realmente nocivos, se a dor não é levada a uma intensidade muito grande e se o terror não está relacionado à destruição iminente da pessoa, dado que essas emoções livram as partes, quer as mais delicadas, quer as grosseiras, de um obstáculo perigoso e perturbador, elas têm a faculdade de produzir deleite; não prazer, mas uma espécie de horror deleitoso, de calma mesclada de terror, o qual, visto que pertence à autopreservação, é uma das paixões mais intensas que existem. Seu objeto é o sublime. Chamo de assombro seu grau mais elevado [...] (Ibidem).

Desse modo, Burke pôde concluir que o sublime, como observa Monk, “age

diretamente no sistema nervoso através de impressões sensíveis” (MONK, 1960, p. 97).

Assim, o autor rompe com a tradição que por um lado considerava o sublime como

pertencente ao âmbito do juízo, no caso do Neoclassicismo, e por outro o colocava no

domínio do sentimento, como o faziam alguns predecessores imediatos de Burke

(Ibidem, p. 98).

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22    

Tendo em vista as principais características do horror cósmico lovecraftiano, e tendo

apresentado sistematicamente a teoria burkeana do sublime, é possível agora analisar a

relação entre ambas, para assim explicitar a influência de Burke sobre o pensamento de

Lovecraft.

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23    

3. O sublime e o medo cósmico

Apesar de não fazer nenhuma referência explícita ao pensamento de Burke, Lovecraft,

ao longo de sua reflexão crítica acerca do horror, parece endossar as teses apresentadas

pelo filósofo irlandês. Até mesmo o método de análise utilizado pelo autor de

Providence é semelhante ao método de Burke. Ambos se inserem em uma tradição

estética que julga que o modo adequado de consideração da obra de arte é uma análise

que privilegie seus efeitos de recepção em detrimento de seus aspectos puramente

formais. Além disso, há outras premissas burkeanas fundamentais para o

estabelecimento do pensamento de Lovecraft, como, por exemplo, o papel

desempenhado pelas sensações de dor e de prazer no processo de recepção da obra

literária e a potência e o caráter primitivo do medo. As relações que podem ser

estabelecidas entre o pensamento de ambos os autores são tantas que, quando tratamos

da concepção lovecraftiana de horror cósmico, podemos falar de um “horror sublime”

(cf. FRANÇA, 2010, p. 87).

Um aspecto de bastante relevância para nossa análise e que merece ser explorado é a

semelhança entre as concepções de desconhecido e de obscuridade, de Lovecraft e

Burke respectivamente. Como apresentado na seção anterior, Burke considera a ideia de

obscuridade um componente essencial para tornar terrível qualquer objeto, sendo,

portanto, um elemento vital para a produção do sublime. Ora, Lovecraft não apenas

assume a posição burkeana (isto, insisto, não se dá de maneira explícita), como vai

além. Isso porque o escritor de Providence não pensa apenas que a obscuridade é uma

condição da produção do medo, mas sim que a própria obscuridade – entendida como

um correspondente da noção de desconhecido – é algo a ser temido. Esse é o principal

pressuposto da asserção lovecraftiana de que o tipo mais intenso de medo é o medo do

desconhecido, fundamentando, também, a predileção do autor por um determinado tipo

de ficção, a literatura de horror cósmico, em detrimento da “literatura de mero medo

físico e do terrível mundano” (LOVECRAFT, 1973, p. 15).

Partindo do pressuposto de que a obscuridade é uma condição indispensável para a

produção do sublime, Burke afirma também que, no caso das artes representativas, a

sugestão é mais eficaz do que a descrição detalhada dos objetos (BURKE, 1993, p. 70-

71). Lovecraft, mais uma vez, não apenas concorda com a tese burkeana, como a

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24    

assimila e faz dela a “diretriz essencial” de sua própria produção ficcional (FRANÇA,

2010, p. 88).29 Do ponto de vista do autor, a coisa mais importante na criação da

narrativa de horror é a atmosfera, um cenário apropriado para a criação de um intenso

sentimento de pavor:

O verdadeiro conto fantástico possui algo mais que um assassinato secreto, ossos ensanguentados, ou uma forma coberta por lençóis arrastando correntes conforme a regra. Uma certa atmosfera de inexplicável e empolgante pavor de forças externas e desconhecidas deve estar presente; e deve haver um indício, expresso com a seriedade e dignidade condizentes com o tema, daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os assaltos do caos e dos demônios de espaços insondados (LOVECRAFT, 1973, p. 15).

Sendo assim, o mais importante em uma narrativa de horror cósmico é a apresentação

de coisas que não se pode ver distintamente e das quais não se pode formar uma ideia

clara. Desse modo, a imaginação – tanto da personagem que confronta o objeto como

do leitor da obra – pode especular acerca da natureza daquele objeto que confronta e

trabalhar na tentativa de dar conta de tal objeto. Fica claro, portanto, por que a

obscuridade desempenha um papel importante na construção da genuína narrativa de

horror cósmico.

Tendo por base outra premissa burkeana, Lovecraft foi capaz de conferir legitimidade à

narrativa de horror. O autor, assim como Burke, entende que a dor e o risco de morte

são sensações mais vívidas e potentes do que o prazer. Isto, aliado à concepção,

endossada por ambos os autores, de que o medo é uma emoção primitiva do ser

humano, faz com que Lovecraft acredite que as histórias de horror despertam na

humanidade um “fascínio de espanto e curiosidade” (LOVECRAFT, 1973, p. 14),

provocando assim uma emoção intensa. E este fato, por sua vez, explica por que a

ficção de horror, mesmo enfrentando uma forte oposição (lembremos que o autor

identifica, no início do ensaio, como críticos da legitimidade da literatura do medo os

materialistas e os idealistas), não apenas sobreviveu como também “se desenvolveu e

alcançou níveis notáveis de perfeição” (Ibidem, p. 12).

                                                                                                                         29 A maneira como isso se dá será explorada na segunda parte deste estudo, onde me proponho a analisar dois contos de Lovecraft com vistas a esclarecer de que modo as teses de Burke se apresentam em sua narrativa.

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25    

Um último ponto que gostaria de ressaltar é a “inspiração burkeana” por trás da própria

concepção de horror cósmico. Retomando a definição de Vivian Ralickas, o medo

cósmico é aquilo que sentimos “quando confrontados por fenômenos além de nossa

compreensão, cujo domínio se estende para além do campo restrito dos assuntos

humanos e se vangloria da significância cósmica” (RALICKAS, 2007, p. 364). O horror

cósmico representa a visão pessimista de Lovecraft em relação à própria humanidade. O

universo é apresentado como algo grandioso, que não foi feito para o homem e sobre o

qual este não tem nenhum controle. A concepção lovecraftiana de horror cósmico é,

portanto, construída a partir da ideia da vastidão do universo, que por sua vez, em

função da insignificância do ser humano frente a ele, constitui uma fonte incessante de

horrores e perigos. Além da noção de desconhecido – que, como demonstrado, é

bastante semelhante à noção burkeana de obscuridade –, também entram em cena aqui

as ideias de vastidão e infinitude.

Como vimos na seção anterior, Burke sustenta que a grandiosidade de dimensões

constitui uma fonte do sublime porque esgota qualquer possibilidade da mente humana

de estabelecer os limites do objeto contemplado. Isso porque, sem conseguir identificar

os limites do objeto, a mente é tomada por um imenso terror, ao mesmo tempo em que

se encontra em um estado de fascínio. E é exatamente esta a posição do homem do

ponto de vista do horror cósmico. Frente à grandeza do universo, o homem permanece

fascinado, ao passo que também se encontra aterrorizado pelo alto grau de incerteza e

perigo envolvido na relação entre ambos.

Portanto, apesar de não haver referência explícita, por parte de Lovecraft, à teoria do

sublime de Burke, sua estética da narrativa de horror parece ser fundamentalmente

dependente das teses do filósofo irlandês. A Investigação de Burke abre o caminho e

fornece todas as ferramentas conceituais necessárias para que Lovecraft possa, dois

séculos mais tarde, justificar a literatura de horror como obra de arte legítima.

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26    

Parte II

O SUBLIME E AS DIRETRIZES DA FICÇÃO LOVECRAFTIANA

1. O sublime em funcionamento na obra de H. P. Lovecraft

Ao longo da primeira parte deste estudo procurei explicitar as diversas semelhanças

entre a teoria do sublime apresentada por Edmund Burke em sua Investigação e a

concepção de horror cósmico de H. P. Lovecraft. Para tanto, apresentei

sistematicamente tanto a reflexão crítica sobre o horror do escritor de Providence –

apresentada no ensaio O horror sobrenatural em literatura – como as teses

apresentadas por Burke em seu tratado.

Como apresentado no decorrer dos três itens da primeira parte, do ponto de vista

teórico, as teses de Burke oferecem todas as premissas necessárias para que Lovecraft

justifique esteticamente a produção do medo pela literatura. Todos os pilares que

sustentam a argumentação lovecraftiana são de orientação burkeana. Teses apresentadas

pelo autor – como - a herança biológica que explica a potência do medo e as

considerações acerca das sensações de prazer e de dor – já haviam sido todas sugeridas

pelo filósofo de Dublin. Além disso, as bases do horror cósmico, defendido por

Lovecraft como o tipo mais elevado de narrativa de horror, também remetem à teoria do

sublime de Burke. Isso porque se trata de uma espécie de narrativa que privilegia a

sugestão em vez de uma descrição detalhada dos objetos e que gira em torno do

desconhecido, que, como demonstrado anteriormente, é uma concepção bastante

próxima à noção burkeana de obscuridade.

Portanto, se há tantas relações e semelhanças que podemos traçar entre a reflexão crítica

lovecraftiana e as teses de Burke, não é de se espantar que também na obra ficcional de

Lovecraft possamos encontrar diversas relações com o pensamento do filósofo irlandês.

Desse modo, nos dois itens subsequentes apresentarei duas narrativas lovecraftianas

com vistas a demonstrar que a teoria do sublime tal qual é apresentada por Burke não

apenas influenciou o pensamento crítico de Lovecraft como também constitui as

diretrizes essenciais de sua ficção.

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27    

Os dois contos escolhidos para as análises posteriores foram O horror de Dunwich e

Dagon. A escolha dos dois contos, entretanto, não é de modo algum arbitrária. Em

primeiro lugar, a opção por Dunwich se deve ao fato de que nesse texto o aspecto do

desconhecido desempenha papel fundamental na narrativa, oferecendo um ótimo

paralelo com a concepção burkeana de obscuridade. Em segundo lugar, a opção por

Dagon é justificada por se tratar de um conto que reúne algumas das diversas fontes do

sublime – aquelas, além da obscuridade, que foram abordadas no segundo item da

primeira parte deste estudo – expostas por Burke na segunda parte de sua Investigação.

Por uma questão cronológica, optei por abordar primeiramente Dagon e, por último, O

horror de Dunwich, uma vez que o primeiro foi escrito em 1917 e o segundo em 1928.

Após essa ressalva, podemos agora passar às análises dos contos.

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28    

2. O cenário sublime de Dagon

Dagon é uma das primeiras histórias escritas por Lovecraft em sua idade adulta. O

conto, originalmente escrito em 1917, foi publicado pela primeira vez em novembro de

1919, no décimo primeiro volume do periódico The Vagrant, editado por W. Paul Cook

– o mesmo correspondente de Lovecraft que anos mais tarde encomendaria a redação do

ensaio O horror sobrenatural em literatura.

O conto é escrito na forma de um bilhete suicida de um homem atormentado e viciado

em morfina. Ao longo da narrativa, o narrador – que nunca é nomeado – apresenta os

eventos que o levaram ao estado de “pressão mental considerável” (LOVECRAFT,

2012, p. 21) em que se encontra.30

No relato do narrador, podemos observar a manifestação de algumas ideias que, de

acordo com Burke, são sublimes. Na realidade, como irei mostrar em seguida, todo o

cenário apresenta características “sublimes”. O local em que o narrador se encontra é

caracterizado por uma vastidão de cenário e por um silêncio absoluto (que é uma das

formas de privação, que constitui uma fonte do sublime). E já no fim do conto, com a

irrupção da criatura, temos uma descrição da mesma em termos capazes de evocar o

sentimento do sublime. Sendo assim, podemos passar à narrativa propriamente dita.

O conto começa com o narrador atormentado afirmando que está prestes a cometer

suicídio. A narrativa que se segue é o seu relato dos eventos que o levaram a sua

condição tortuosa.

O homem era integrante da tripulação de um navio mercante, e o seu relato começa com

um incidente no oceano Pacífico: a captura de sua embarcação por um navio de guerra

alemão logo no início da Primeira Guerra Mundial. Alguns dias após a captura, o

protagonista consegue fugir em um bote com provisões e permanece à deriva até que,

                                                                                                                         30  As narrativas lovecraftiana, em geral, apresentam um narrador à beira da loucura em decorrência de fenômenos inexplicáveis com os quais teve que lidar, e o Dagon não é uma exceção. Esse na verdade, é um dos três efeitos que o horror cósmico de Lovecraft provoca. Nas histórias do autor, os eventos narrados sempre ocasionam a morte das personagens, a loucura das mesmas, sempre representada por visões e barulhos atormentadores (sendo quase sempre esse o caso do narrador lovecraftiano) ou ainda a sua transformação em uma criatura que já não mais é humana.

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29    

após um sono31 ininterrupto uma mudança ocorre. E aqui temos a primeira manifestação

do sublime burkeano na narrativa de Lovecraft, quando o narrador descreve o terreno no

qual se encontra:

Quando por fim acordei, vi-me parcialmente sugado pelo lodo de um infernal pântano negro, que se estendia à minha volta em ondulações monótonas até onde a vista alcançava, e onde o meu barco estava ancorado a alguma distância (Ibidem, p. 22. Grifo meu).

Ao descrever um pântano que se estendia “até onde a vista alcançava”, o narrador evoca

a ideia de vastidão, que como previamente apresentado neste estudo, é uma dentre as

diversas ideias elencadas por Burke que constituem uma fonte do sublime. O filósofo

entendia que a grandiosidade de dimensões é capaz de provocar na mente humana uma

forte sensação de terror (BURKE, 1993, p. 77). Tal posição é corroborada pelo relato do

narrador que, após a “prodigiosa e súbita” (LOVECRAFT, 2012, p. 22) transformação do

cenário – das águas do Pacífico para o pântano infernal –, se vê em um intenso estado

de terror. E esse estado, por sua vez, é constantemente intensificado pelas condições do

local. Em outras palavras, duas são as fontes do terror do protagonista: por um lado

temos as condições do lugar que lhe afetam diretamente – ele está “parcialmente

sugado” pelo lodo do pântano, em um lugar que “fedia a restos pútridos de peixes em

decomposição” (Ibidem) –, e por outro temos as propriedades do local, que são bem

afinadas às ideias elencadas por Burke na segunda parte de sua Investigação. Isso fica

claro a seguir, onde são inseridas ainda outras ideias sublimes:

O lugar fedia a restos pútridos de peixes em decomposição e de outras coisas indescritíveis que eu via erguerem-se do lodo asqueroso que recobria a infindável planície. Talvez eu não devesse tentar pôr em meras palavras o horror indescritível que o silêncio absoluto e a imensidão estéril podem encerrar. Não se ouvia nada, não se via nada afora a vastíssima extensão de lodo negro; mas era a perfeição do silêncio e a constância do cenário o que me oprimia com um terror nauseante (Ibidem. Grifo meu).

Na construção do cenário no qual se encontra o narrador, Lovecraft lança mão de várias

ideias propostas por Burke. Note-se que o que provoca na personagem um “terror

nauseante” é a “perfeição do silêncio e a constância do cenário”. Como apresentado

                                                                                                                         31  Na verdade, o fato do narrador estar dormindo quando a mudança de cenário ocorre é uma estratégia visando os efeitos que o conto pode vir a causar. Como estava dormindo, o narrador não tem como explicar o que ocasionou a súbita mudança, o que acaba colaborando para o intenso efeito que o cenário irá provocar no protagonista.

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30    

anteriormente, Burke argumenta que, principalmente no caso da vastidão e da infinitude

de cenário, a sucessão e a uniformidade são condições indispensáveis para que o

sublime possa ser produzido (BURKE, 1993, pp. 79-80). Além de se encontrar numa

posição de privação em função do perfeito silêncio, o protagonista se vê envolto por um

cenário de uma imensidão tão constante que ele não consegue identificar as fronteiras e

limites do local. Desse modo, é impressa em sua imaginação uma ideia da continuidade

do local para além dos seus limites, o que proporciona a criação de uma situação

adequada para a produção do sublime.

Na tentativa de compreender o próprio local, o narrador teoriza que toda a situação deve

ser “obra de uma erupção vulcânica sem precedentes” que arremessou à superfície uma

parte do solo marinho, expondo assim “regiões que por incontáveis milhões de anos

haviam repousado em silêncio nas insondáveis profundezas oceânicas” (LOVECRAFT,

2012, p. 22). A própria explicação encontrada pelo protagonista é sublime. Dada a

extensão da terra em que se encontra, o narrador acredita que apenas uma gigantesca

erupção vulcânica pode tê-la trazido à tona. É interessante ressaltar a imagem escolhida

por Lovecraft. Trata-se de uma erupção vulcânica, que pode simbolizar grandes

catástrofes. Isso é digno de nota pois Burke, na Investigação sustenta que as pessoas são

mais atraídas por cenas catastróficas, e que o deleite que se obtém de tais cenas é muito

intenso (cf. BURKE, 1993, pp. 53-54).

Na sequência do relato, temos a tentativa do narrador em achar o mar e um possível

resgate. Após esperar três dias para que o terreno secasse e oferecesse condições

adequadas para a caminhada, o protagonista sai em sua busca pelo “vasto deserto”

tendo como guia um promontório que “se erguia mais alto do que qualquer outra

elevação” (LOVECRAFT, 2012, p. 23. Grifo meu). Ao alcançar o promontório após

alguns dias, o narrador empreende uma escalada da elevação, e neste ponto temos uma

descrição de como a vastidão do promontório, somada a um grande cânion, intensifica a

sensação de terror da personagem:

Disse eu que a monotonia constante da paisagem inspirava-me um horror vago; mas acredito que meu horror tenha sido ainda maior quando ganhei o cume do promontório e olhei para o outro lado, em direção a um enorme fosso ou cânion, cujos negros recessos a lua ainda não subira o bastante para iluminar. Senti-me nos limites do mundo, olhando para o caos insondável de uma noite eterna. Meu

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terror era atravessado por reminiscências do Paraíso Perdido e da terrível escalada de Satã pelos domínios da escuridão primordial. (Ibidem. Grifo meu).

É interessante notar também a referência ao Paraíso Perdido. O poema de Milton é

citado diversas vezes por Burke ao longo da Investigação, como um exemplo de como

uma obra pode provocar um efeito sublime. Ao comparar a escalada do protagonista

com a escalada de Satã, Lovecraft evoca uma cena bastante significativa,

potencializando o efeito que se espera que a descrição deva causar.

O narrador conta que, após perceber que a descida do declive não era tão íngreme, ele

foi tomado por “impulso” inexplicável (Ibidem, p.24) para descer até o cânion. Já lá

embaixo, ele se depara com um grande monólito que “conhecera o trabalho e talvez a

adoração de criaturas vivas e pensantes” (Ibidem). O narrador observa as estranhas

formas das inscrições do monólito – algumas delas representavam as “coisas

indescritíveis” que o narrador menciona no início de seu relato –, e conta que apesar do

terror que sente, ele se sente maravilhado e entusiasmado como os cientistas após uma

nova descoberta. A reação do protagonista marca bem o efeito do sublime. Como foi

apresentado anteriormente, Burke, no início da segunda parte da Investigação

argumenta que o sentimento envolvido no sublime é um misto de terror e

maravilhamento, oferecendo até um argumento linguístico para corroborar sua tese.

(BURKE, 1993, p. 66).

Enquanto o narrador permanece observando o monólito, uma criatura emerge da água.

Sua descrição constitui uma das principais ocorrências do sublime no conto, pois além

da descrição da criatura temos também o efeito que ela causa no narrador:

Vasto como um Polifemo, horrendo, aquilo dardejava como um pavoroso monstro saído de algum pesadelo em direção ao monólito, ao redor do qual agitava os braços escamosos ao mesmo tempo que inclinava a cabeça hedionda e emitia sons compassados. Acho que naquele instante que perdi a razão (LOVECRAFT, 2012, p. 25. Grifo meu).

De um lado temos a criatura, vasta, horrenda, capaz de suscitar um poderoso efeito na

mente do protagonista, do outro temos o protagonista, e a descrição do efeito causado

pela contemplação da criatura. Se lembrarmos da doutrina burkeana, o terror é um

componente essencial para o sublime justamente por despojar a mente de sua “faculdade

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de agir e raciocinar” (BURKE, 1993, p. 65). Ora, é precisamente este o efeito causado

no protagonista pela criatura. Portanto, na descrição temos o sublime se manifestando

plenamente.

Após o surgimento da criatura o narrador foge e a próxima coisa da qual se lembra é de

acordar em um hospital após ser resgatado no oceano. O fim do conto narra o destino do

protagonista, que, após ouvir um barulho na porta, “como de um enorme corpo

escorregadio batendo contra a madeira” (LOVECRAFT, 2012, p. 27), se apressa em

direção à janela.

Portanto, o Dagon é um ótimo objeto de análise sob a perspectiva do sublime por

conjugar diversas características provocadoras de seu efeito na mente humana. Nele

tivemos a oportunidade de analisar tanto a manifestação da categoria estética do sublime

no cenário criado por Lovecraft, bem como os efeitos que essa categoria é capaz de

provocar.

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33    

3. O desconhecido em O horror de Dunwich

Escrito em 1928 e publicado no volume de abril de 1929 da revista Weird Tales, O

horror de Dunwich é um dos últimos escritos de Lovecraft, e é uma das histórias

centrais da mitologia criada pelo autor.32

Ao contrário da maioria das histórias de Lovecraft, que apresenta uma narrativa em

primeira pessoa, geralmente contada por um narrador que se encontra em um estado

atormentado de espírito, O horror de Dunwich é narrado em terceira pessoa. O conto

narra, em um primeiro momento, os passos de Wilbur Whateley, um menino “de tez

escura e com feições de bode” (LOVECRAFT, 2012b, p. 26) cujo crescimento se dá de

maneira bastante precoce. Em um segundo momento, a partir do capítulo VII, o foco é

direcionado para o horror que dá nome à narrativa. Vale ressaltar que, desde o início do

texto, o narrador instiga o leitor, mencionando um horror que acometeu o vilarejo de

Dunwich após os episódios ocorridos na primeira parte, centrada em Wilbur Whateley.

Para conferir clareza à minha análise, é importante fazer uma apresentação geral da

narrativa. No entanto, observo que ela será direcionada para uma leitura da obra à luz da

noção burkeana de sublime, e desse modo, irei me concentrar nos aspectos do

desconhecido trabalhados por Lovecraft no conto.

Lovecraft dá início à narrativa com uma descrição detalhada do vilarejo de Dunwich,

dando-nos ricas informações sobre o local, e enfatizando seu aspecto decadente. À essa

descrição do cenário, Lovecraft acrescenta uma descrição peculiar da população de

Dunwich, com vistas a suscitar no leitor um sentimento de repulsa em relação aos

habitantes do vilarejo, pintando-os como “figuras retorcidas e solitárias vislumbradas de

vez em quando em soleiras decrépitas nas pradarias inclinadas e salpicadas de rochas”

(Ibidem, p. 22). Essa descrição do cenário e dos habitantes prepara as condições

necessárias para a criação de um ambiente adequado à produção de efeito almejado pela

narrativa de Dunwich. Nesse cenário, nasce Wilbur Whateley, personagem de que o

texto se ocupará até o sexto capítulo do conto.

                                                                                                                         32 Isso porque esta narrativa apresenta de maneira efetiva Yog-Sothoth – uma criatura central na mitologia lovecraftiana, mas que em outras histórias é apenas mencionado –, e porque nela o famoso Necronomicon desempenha um papel fundamental em seu enredo.

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34    

Wilbur, uma criança “de tez escura e feições de bode”, é filho de Lavinia Whateley,

uma mulher albina, com aparência levemente deformada, que vive com o pai idoso,

jamais nomeado ao longo da narrativa – o avô de Wilbur é apenas referido como Velho

Whateley –, e associado a diversas histórias de bruxaria. O nascimento de Wilbur é

cercado por eventos estranhos – tais como rumores nas colinas e o comportamento fora

do comum dos cães do vilarejo –, e o seu crescimento precoce desperta reações adversas

dos habitantes de Dunwich, que passam a evitar o menino e a residência dos Whateley.

No entanto, talvez o que seja mais interessante ressaltar nesse estágio inicial da

narrativa é a figura do pai de Wilbur. Trata-se de uma estratégia narrativa que provoca

tanto nos habitantes do povoado como no leitor um sentimento de incerteza, o que

colabora para a produção do efeito final almejado pela obra. Tal sentimento é

potencializado por uma fala do pai de Lavinia:

Poco33 me importa o que as pessoas dize – se o minino da Lavinny fosse paricido co’o pai, ele seria bem diferente do que vocês imagino. Não ache que as única pessoa que existe são as pessoa daqui! A Lavinny leu e viu cousas que a maioria de vocês só conhece de ovi fala. [...] Escute bem o que eu vô dizê – um dia vocês ainda vão ovi o filho da Lavinny gritá o nome do pai no alto da Sentinel Hill! (sic. Ibidem, pp. 27-28)

A estratégia de Lovecraft consiste em deixar sempre em aberto tanto a origem como as

características do pai de Wilbur, aludindo a um lugar diferente do conhecido pelas

pessoas do vilarejo – “Não ache que as única pessoa que existe são as pessoa daqui!” –

e deixando claro que caso se assemelhasse ao pai, Wilbur seria diferente de qualquer

coisa por eles conhecida.

Ao longo dos capítulos seguintes, uma série de acontecimentos bizarros acontece, como

clarões avistados no alto da Sentinel Hill e barulhos esquisitos oriundos da residência

dos Whateley, e dois fatos despertam a curiosidade do povoado. Um deles é a constante

compra, por parte do Velho Whateley, de diversas cabeças de gado sem que seu rebanho

aumente e as várias reformas feitas em sua residência. Mais uma vez, Lovecraft cria

uma atmosfera de incerteza, que provoca hesitação tanto da parte dos habitantes de

Dunwich como da parte do leitor. Wilbur e seu avô parecem trabalhar em alguma coisa

                                                                                                                         33  Como dito no início da sessão, Lovecraft pinta os habitantes de Dunwich de uma forma bem pejorativa. São pessoas ignorantes, quase sem contato com o mundo exterior. Desse modo, a fala dos habitantes do povoado é sempre descrita nessa forma rústica.

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35    

no andar de cima da casa, e isso associado ao fato de o rebanho jamais aumentar nos faz

especular, nunca com muita certeza, acerca da natureza do trabalho dos Whateley. Isso

cria um cenário de obscuridade que se mantém por alguns capítulos, e que colabora para

a criação de um efeito sublime, sempre potencializado por uma ideia obscura e pouco

clara do objeto em questão (cf. BURKE, 1993, p. 70). Esse cenário de incerteza pode

ser observado em passagens como a que se segue:

Os poucos visitantes [da residência] em geral encontravam Lavinia sozinha no térreo, enquanto estranhos gritos e passadas soavam no segundo andar pregado com tábuas. Ela negava-se a revelar o que o pai e o garoto faziam lá em cima, mas certa vez empalideceu e demonstrou um medo fora do comum quando um vendedor de peixe itinerante tentou abrir a porta trancada que dava para os degraus em uma brincadeira (LOVECRAFT, 2012b, p. 33).

Na sequência da narrativa, Lovecraft descreve a reação do povoado ao episódio, que

pode ser interpretada como a reação que se espera do leitor. Os habitantes começam a

cogitar que o constante desaparecimento do gado pode ter relação com o que se passa

no andar superior da casa, bem como tudo o que se passa na residência pode estar

relacionado às diversas histórias de bruxaria associadas ao Velho Whateley.

Os acontecimentos que são descritos na sequência da narrativa continuam marcados por

episódios também obscuros, dentre eles a morte do avô de Wilbur e o desaparecimento

de Lavinia – a narrativa parece sugerir que houve um matricídio, hipótese esta, no

entanto, nunca confirmada diretamente no conto.

Em seu leito de morte, ao falar com Wilbur, o Velho Whateley dá indícios do que

iremos ver irromper do andar superior da casa:

Mais espaço, Willy, mais espaço em breve. Você ‘stá cresceno – mas aquilo cresce depressa. Logo vai ‘star pronto pra servi você. Abra o caminho para Yog-Sothoth com o longo cântico que ‘stá na página 751 da edição completa, e depois toque fogo na prisão co’um fósforo. Nenhum fogo da terra pode queimá aquilo (sic. Ibidem, p. 36).

Temos então indícios de que o que é mantido no andar superior é alguma espécie de

criatura, que provavelmente irá desempenhar um papel importante na narrativa. No

entanto o que salta aos olhos nesse ponto é o volume aludido pelo Velho Whateley.

Trata-se do temível Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, uma das principais

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criações lovecraftianas, central na mitologia do autor. Na tentativa de conseguir a

“edição completa”, Wilbur mantém correspondência com bibliotecas de diversas

universidades, até que se dirige à universidade do Miskatonic, onde tenta conseguir uma

cópia com o bibliotecário, Dr. Henry Armitage. Associando a natureza do livro com as

histórias horrendas sobre Dunwich, Armitage, tomado de um intenso pavor, impede o

empréstimo ou a cópia do livro, orientando que os bibliotecários de outras universidades

procedam do mesmo modo, frustrando os planos de Wilbur.

No sexto capítulo do conto, temos o desfecho da primeira parte da narrativa, centrada

em Wilbur, que na tentativa de roubar o volume do Necronomicon da biblioteca da

universidade do Miskatonic acaba morto pelo cão de guarda do campus. A partir de

então a narrativa passa a ser focada no horror que irrompe em Dunwich e na tentativa de

Armitage de decifrar os planos de Wilbur.

O horror descrito por Lovecraft é uma criatura de proporções gigantescas, invisível aos

olhos humanos. Tudo o que temos na narrativa são apenas descrições dos rastros de

destruição deixados pela criatura, o que potencializa a experiência de leitura. Como

Burke defende na Investigação, quando não podemos ter uma noção mais completa do

perigo, o efeito provocado é bem mais intenso do que uma descrição detalhada poderia

suscitar (cf. BURKE, 1993, pp. 66-67). Sendo assim, o fato de não podermos formar

uma ideia clara do horror que se abate sobre Dunwich potencializa nossa experiência de

leitura, e preenche todas as condições necessárias à produção do sentimento do sublime.

A primeira descrição dos rastros do horror nos é dada por um garoto chamado Luther

Brown, em seu assustado relato a uma senhora chamada Corey:

A estrada no fim do vale! Siora Corey – alguma cousa andô por lá! O lugar ‘stá co’um chero de trovão, e tudo quanto é arbusto e arvorezinha foro arrancado como se uma casa tivesse passado por cima. E isso nem é pior. Tem u’as pegada no chão. Siora Corey – são u’as pegada enorme [...] mas parece que a cousa tinha bem mais do que quatro pata! (sic. LOVECRAFT, 2012b, p. 50)

Em seguida, temos um relato que liga os eventos estranhos à residência dos Whateley.

Após falar com o garoto assustado, a sra. Corey passa a ligar para outros vizinhos, até

que fala com Sally Sawyer, criada de uma casa próxima à residência dos Whateley.

Sally diz que

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[...] a casa de Velho Whateley ‘stá toda arrebentada, co’as tábua jogada ao redor como se alguém tivesse estorado dinamite lá dentro; só resto o assoalho, que ‘stá todo coberto por uma espécie de piche co’um chero horrívio que fica pinganodas borda pro chão onde as tábua das parede foro explodida. E parece que tem umas marca terrívio no pátio, tamém – umas enorme dumas marca redonda, maior doque um barril, cheia da mesma cousa pegajosa que ‘stá dentro da casa explodida (sic. Ibidem, p. 51).

Temos, portanto, uma primeira resposta. O horror parece estar relacionado à coisa na

qual trabalhavam Wilbur e seu avô. No entanto, ainda é bem obscura a natureza dessa

coisa, e é muito incerto ainda do que se trata exatamente o horror que se abate sobre

Dunwich.

Na sequência da narrativa vemos os habitantes de Dunwich tentando proteger suas

residências. E então temos os eventos estranhos que se passam durante a noite. Os cães

passam a agir de maneira estranha e pode-se ouvir um barulho vindo de fora. Já no dia

seguinte, temos mais uma vez os rastros da criatura:

No dia seguinte todo o campo estava em pânico; [...] Dois rastros titânicos de destruição iam do vale até a propriedade dos Frye; pegadas monstruosas cobriam a terra nua, e uma lateral do galpão vermelho havia desabado por completo (Ibidem, p. 54).

Mais uma vez a narrativa só nos oferece os rastros de destruição da criatura, deixando

suas características e sua natureza à nossa especulação. Essa estratégia narrativa, além

de potencializar o efeito provocado no leitor faz com que o mesmo, ainda que de forma

hesitante, busque junto com as personagens uma explicação para os eventos, o que

instiga a continuação da leitura.

No capítulo seguinte – o oitavo do conto –, temos a tentativa de Armitage de traduzir

um diário deixado por Wilbur, na busca por respostas para o horror enfrentado pelos

habitantes de Dunwich e por meios de interromper o progresso da criatura pelo vilarejo.

No nono capítulo a narrativa retorna o foco para o horror propriamente dito. Armitage

chega a Dunwich acompanhado de Rice e Morgan, também professores do Miskatonic.

Após tomarem conhecimento de que um grupo de policiais havia desaparecido no vale

próximo a residência dos Frye, que havia desaparecido na tragédia narrada no sétimo

capítulo, os três professores ouvem relatos apavorados de alguns habitantes da cidade. É

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interessante ressaltar que dessa vez o relato parte de um contato mais direto com a

criatura, e não com seus rastros de destruição. No entanto, ainda se trata de um relato

lacunar, sobre algo invisível aos olhos humanos, o que apenas nos sugere algumas

características do ser grotesco, potencializando mais uma vez o efeito que se intenciona

provocar no leitor (cf. BURKE, 1993, p. 70):

Uma meia hora atrás o telefone do Zeb Whateley tocô e era a siora Corey, esposa do George, que mora perto da bifurcação. Ela disse que o Luther ‘stava trazeno o gado pra longe da tempestade depos daquele grande relâmpago quano viu as árvore tudo se entortano na cabicera do vale [...] e sentiu o meso chero horrívio que sentiu quano encontrô aquelas marca na manhã de segunda. E ela contô que ele disse que tamém oviu um zunido mais alto do que as árvore e os arbusto pódio fazê, e de repente as árvore ao longo da estrada começaro a se curvá pro lado e ele oviu u’as pancada e um chapinha terrívio no barro. Mas preste atenção, o Luther não viu nada, só as árvore e os arbusto se entortano (sic. LOVECRAFT, 2012b, pp. 66-67. Grifo meu).

A exemplo dos relatos encontrados no capítulo VII, esse relato marca o grau de

incerteza com o qual lida o espectador dos movimentos da criatura. Não é possível

formar uma ideia clara do ser, apenas recebemos informações das árvores que se

entortam com seus movimentos, do cheiro e de barulho que sua presença provoca. Vale

ressaltar que ao fim da citação Lovecraft, por meio do interlocutor do relato, procura

deixar bem claro esse aspecto obscuro da criatura, exigindo a atenção tanto dos ouvintes

do relato como do leitor para o fato que nada foi visto pelo garoto, apenas o movimento

das árvores e dos arbustos.

Na sequência do capítulo, o narrador nos oferece mais alguns relatos dos habitantes

apavorados, e todos se assemelham ao relato citado acima. Por fim, temos o movimento

de Armitage para convencer os habitantes de que devem seguir a criatura e impedir o

seu progresso, afirmando que tem em seu poder um feitiço que pode ser capaz de contê-

la. E no décimo e último capítulo da narrativa temos o confronto com o ser grotesco e a

revelação do mistério que envolve sua natureza.

Procurei, ao longo de minha análise, mostrar como Lovecraft, para compor sua

narrativa, faz uso de alguns procedimentos que podem ser traçados de volta à

Investigação de Burke. Os aspectos do desconhecido e da obscuridade perpassam todo o

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conto, desde o mistério envolvido nos experimento de Wilbur e seu avô até a irrupção

da criatura que é causadora do horror de Dunwich.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu objetivo ao longo deste estudo foi apresentar uma questão recorrente nos estudos

recentes acerca da obra de Lovecraft, uma leitura da obra do autor à luz da teoria do

sublime de Edmund Burke. Meu principal objetivo foi mostrar que as teses do autor de

Providence são bastante semelhantes às teorias formuladas pelo filósofo irlandês dois

séculos antes, e que a influência do último sobre o primeiro pode ser notada até em suas

obras de ficção.

Uma dificuldade com a qual é preciso lidar num estudo dessa natureza é o fato de que

não há nenhum indício histórico de que Lovecraft tenha tido acesso à obra de Burke, de

modo que podemos falar apenas de uma influência indireta. Desse modo, procurei fazer

uma exposição detalhada tanto da reflexão crítica de Lovecraft como das teses de Burke

sobre o sublime, para poder assim estabelecer as diversas relações possíveis entre o

pensamento de ambos os autores.

Tendo demonstrado que de fato há diversos pontos de contato entre a teoria dos autores,

foi possível passar ao segundo estágio do meu estudo. Essa parte da monografia

consistiu em mostrar na ficção lovecraftiana como o autor faz uso de procedimentos que

seriam claramente endossados por Burke para a criação do efeito desejado, mostrando

porque podemos considerar o horror cósmico de Lovecraft um “horror sublime”.

As discussões sobre o sublime têm constituído um campo bastante fértil nos estudos

sobre a literatura de Lovecraft. Com esta monografia espero ter esclarecido os principais

pontos que permitem uma aproximação do autor de Providence com Burke, mostrando

que de fato há uma influência, ainda que indireta, do pensamento do filósofo sobre o

pensamento e a criação literária de Lovecraft.

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