Luís Adolfo P. Walter De Vasconcelos - Institut for Engelsk...

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Nummer 69 November 1979 Luís Adolfo P. Walter De Vasconcelos Três estudos portugueses Romansk Institut K0benhavns Universitet Njalsgade 78-80 2300 Kbh. S Gebyr 5,00 kr.

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Nummer 69 November 1979

Luís Adolfo P. Walter De Vasconcelos

Três estudos portugueses

Romansk Institut K0benhavns Universitet

Njalsgade 78-80 2300 Kbh. S Gebyr 5,00 kr.

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SUMARIO

I. Colocação dos pronomes átonos no português p.

europeu ........................... " ................. . Colocação enclítica ................................ 3

Colocação proclítica ............................... 5

Casos especiais ..........•......................... 8

II. Emprego do infinitivo em português .................... lo

O infinitivo português ............................. lo

Emprego da forma impessoal ......................... 11

Emprego da forma pessoal ........................... 15

Conclusão .......................................... 18

III. Análise estilística de um texto barroco:

"Fazer Cristandade" 20

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COLOCAÇAO DOS PRONOMES ÁTONOS NO PORTUGUÊS EUROPEU

I. Colocação enclitica

- "O piano encontrava-~ na sala de visitas"

- "Opiano de Elvira encontrava-~ na sala de visitas"

- "Na sala de visitas encontrava-~ o piano"

- "Os amigos saudaram-ll9. com alegria"

- "Alguns amigos saudaram-ll9. com alegria" - "Os três amigos saudaram-ll9. com alegria"

1. :Q~f~!2~l:ª2:

Em orações principais ou independentes afirmativas, o pronome átono coloca-se normalmente em posição enclitica relativa­

mente ao verbo, ao qual se une por um hifen. (Ressalvam-se,

evidentemente, os casos contemplados em II.).

2. ~~~IEE!2~:

a) - "Eles chegaram ontem .§. foram-~ embora hoje" b) - "As duas irmãs moravam longe uma da outra, .!!lli§. (porém,

todavia, contudo) reuniam-~ com frequência"

c) - "Tens sono? Pois deita-te cedo" "Lançaste-me o teu olhar Portanto devo-te a vida" (Popular)

2. :Q~f~!2~l:ª2:

Em orações coordenadas mantém-se a posição enclitica com as

seguintes conjunções: a) a copulativa .§., mas somente quando estabelece coordenação

com uma oração principal; b) as adversativas;

c) as conclusivas.

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3. ~~::l!.!E!2ê:

A) Infinitivos:

- "A criança não sabe ler. Posso ensiná-la?"

- "As crianças não sabem ler, mas já estão .§: ensiná-las"

- "Ao encontrarmo-nos, perguntava sempre por ti"

- "Poder conhecê-la, que alegria!" (= "Podê-la conhecer, que alegria!")

B) Gerundivo:

- "Entrou silenciosamente, entregando-me a carta sem uma palavra"

3. 12::f~~~2~2:

O pronome átono pospõe-se normalmente às duas formas do in­

finitivo e ao gerúndio, desde que estes não venham precedidos

de advérbio de negação au de preposição, como frequentemente

sucede. Das preposições, exceptua-se, porém, a preposição .§:,

somente usada com o infinitivo, a qual não provoca a antepo­

sição do pronome (" estão.§: ensiná-Ias'I).

Quando dois infinitivos se combinam, o pronome coloca-se de

preferência depois do último ("poder conhecê-la"), mas também

se admite a segunda construção (vid.ex.).

- "Os filhos têm-vos custado a criar"

- "Passo a passo, dirigiu-se à aldeia. Haviam-lhe prometido

uma boa esmola"

4. 12::f~~~2~2:

Quando o predicado é formado por um tempo composto, o pronome átono coloca-se depois do auxiliar.

- "Visitar-te-ei, logo que tenha tempo"

- "Quando saíres aquela porta, ter-nos-emos visto pela última vez - exclamou melancolicamente o velho"

- "Se os pêssegos não fossem tão caros, comprá-Ios-ia todos"

o futuro do indicativo e o condicional constituem um caso à

parte quanto à colocação dos pronomes átonos. Estes não to-

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mam posição enclítica, mas mesoclítica, fixando-se entre o

infinitivo e a forma contracta do verbo "haver" (dá-se a

chamada mes6clise ou tmesis).

II. Colocação Droclítica

1. ~~!':~E!~ê:

Grupo a):

"Nenhum piano se encontrava na sala de visitas"

- "Todos os amigos Q saudaram com alegria"

- "Quem lhe disse que eu estava aqui?"

- "Isto é uma profissão difícil. O ~ ~ tinha dito meu

pai"

- "Cada gual se governa como pode"

Grupo b):

- "Ambos te ajudaram na vida"

- "S6 tinhas duas moedas, e ambas ~ deste!"

Grupo c):

"Sempre te vejo contente"

- "Os dois amigos ainda se demoraram a conversar"

- "MaIos viu, logo os reconheceu"

"Facilmente, à noite, a criança ..ê.f. deixava adormecer"

- "Em vão lhe pedimos que não partisse"

5

"Era difícil de agarrar - respondeu a criada ainda a rir -

agui me foge, além me aparece!"

- "Decerto ~ contarás o segredo"

- "Os ladrões não :iS2.§. têm poupado a horta"

- "O homem afirmou conhecer-me, mas ~, em tempo algum,

~ encontráramos"

1. ~!':f~~~2ª~:

A anteposição do pronome ao predicado em orações principais

ou da mesma natureza (vid. 1=) verifica-se quando no início

da frase aparecem certas palavras que têm a faculdade de

"atrair" o pronome à posição proclítica. São estas palavras

de diversas categorias gramaticais, e podem, por isso mesmo,

desempenhar diversas funções, inclusivamente de sujeito. Se­

guem-se as principais:

(As palavras com o sinal * somente atraem o pronome em cer­tos casos, em geral para dar ênfase)

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a) Pronomes: - Demonstrativos: outro*, mesmo*

- Interrogativos: quanto, qual, quem, que, o que (isto é, to-

dOs). - Indefinidos: todo, tudo, muito, pouco, alguém*, algum*,

tanto, qualquer; nenhum, nada, ninguém.

- Locuções indefinidas: cada um, cada qual.

b) O numeral "ambos"

c) Advérbios de:

- Tempo: já, sempre, nunca, jamais, logo, tarde, cedo, ainda.

Lugar: ali*, aí*, lá*, cá*, perto*, longe*, além*, aqui*,

acolá*.

- Medo: mal, melhor, pior, assim, depressa, devagar, quase,

de balde, em vão, facilmente, dificilmente.

(Em geral, os outros advérbios em -mente não exercem atracção sobre os pronomes átonos).-----

- Quantidade: pouco, menos, muito, mais, demasiado, tanto,

quanto, assás, bastante.

- Afirmação: decerto ("sim" não atrai).

- Negação: não, nem, nunca, jamais (todos atraem!).

- Dúvida: talvez, acaso, porventura*, qUiça* (desusado).

- Exclução: apenas, só, somente, unicamente.

- Inclusão: até, mesmo, também.

- Interrogação: onde, aonde, etc.; quando; como; por que?

2. §;~~~E~~~:

- "Esforçavam-se por .§!2. ~ livres do cão" (V. Cuesta)

- "Noutros tempos gosta,vas de te levantar cedo"

- "Correu até se cansar"

- "Nunca se deitava sem 2.§. ver a todos em casa"

- "Aproximou-se da janela para Q poder ver melhor"

(= " " " para poder vê-lo " - cL I.3.)

- "Em se lembrando do filho, começava a chorar"

2. !2~f~~~:iª:2:

O caso das preposições só se põe a propósito das formas in­

finitivas do verbo. Assim, todas as preposições e locuções

prepositivas, excepto a preposição ~ (cf. 1.3.), provocam a

anteposição do pronome átono em relação às duas formas do in­

finitivo e ao gerúndio.

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3. ~~::!!!E!2~:

a) - "Quando eles chegaram.§. .§.!: sentaram à mesa, já nós tínha­

mos almoçado" (cf. I.2.a)

b) - "Não nos amávamos, ~ QQ.§. compreendíamos"

c) - "Ou me pagas o livro ~ ill.§. compras outro"

("Pagas-me o livro ou compras-me outro"!) d) - "A amizade não era grande, não obstante se reunirem com

frequência"

3. ~!:::f~!?:1:zª2:

A parte o caso a) da copulativa .§.. que não atrai o pronome,

mas permite a influência da oração a que está coordenada, exer­

cem essa atracção as seguintes conjunções coordenativas: b) Todas as outras copulativas;

c) as dijuntivas; d) certas locuções consideradas por alguns gramáticos como

adversativas.

- "Comovido, o orador declarou que lhe custava deixar uma

terra tão simpática"

- "O hotel ~ ~ destinou a agência, era mui to agradável"

- "Ireis onde vos conduzir a estrela, disse o anjo"

- "Fiz tudo como ( consoante) ill.§. recomendaste"

"Já não vereis a festa, pois (porque) .Y.Q..ê. ides embora

amanhã" - "Ainda que (embora) te pareça estranho, não gosto do Verão"

4. ~!:::f~!?:~zª2:

Todas as partículas ou locuções que introduzem orações subor­

dinadas, chamam os pronomes átonos à posição proclítica.

N.B. - Nas orações subordinadas negativas, o pronome tanto pode colocar-se antes como depois do advérbio não.

Ex.: "As crianças brincam na rua, embora os pais lho

não consintam" I ... embora os pais não lho con­sintam".

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III. Casos especiais

Além das regras apontadas em II., há outros factores, de ordem eu­

f6nica, rítmica, estilística, e até psico16gica, que podem provo­

car a anteposição dos átonos ou, ao contrário, pospô-los ao verbo.

E difícil sistematizar esses factores - se não impossível -, mas

os principais parece-me serem dois: 1. Motivos estilísticos, que conduzem à alteração da ordem

normal de certos membros da frase, antepondo-os ao predicado. No

entanto, s6 a deslocação de determinadas categorias de complemen­

tos se reflecte na posição do pronome. Com efeito, grande número

de complementos adverbiais, com os quais correntemente em portugués

se começa o período, não interferem com a posição enclítica. Por­

tanto, não produzem a ênfase desejada. Relembro o ex. de 1.1.:

"Na sala de visitas encontrava-.§2. o piano"

E, pois, necessária uma inversão mais forte ou menos habitual,

o hipérbaton ou pr6ximo disso. Alguns exemplos de Cândido de Fi­

gueiredo levam-me a concluir que se trata - porventura entre outros

- do objecto directo e de complementos adverbiais regidos pela pre­

posição ,2;:

- "Um soneto ~ pediste" - "Trinta libras me custou"

- "Ao templo me dirigi"

Posteriormente, verifiquei que o mesmo se passa com o ob,jecto

indirecto (regido também pela preposição ,2;) :

"Ao pai .2. ofereceram no seu aniversário"

2. A circunstância de se fazer ou não fazer pausa entre uma certa

palavra e o predicado. A esté respeito, nota Cândido de Figueiredo: "A intenção de quem escreve, e a respectiva entoação de quem fala

'bu lê, podem de facto influir na disposição dos pronomes de uma

"frase ou período". (Vid. bibliogr.). E dá os seguintes exemplos:

A) 1. "Provou-se que dois e dois são quatro, e dagui .§2. conclui

que o sr. Tibdrcio deve ir para a escola."

2. "Esta sua nova carta deixa-me às aranhas (= desorientado):

da primeira, concluía-se uma coisa; e dagui ... conclui-se

o contrário."

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B) 1. "Foge à discussão, e com ~ Ii§. mostra pusilânime." 2. "Quis alardear coragem, e deu às de Vila-Diogo (= fugiu);

mas, com isto ... , mostrou-Ii§. cobarde."

C) 1. "Ficaram apavorados e instintivamente Ii§. esconderam."

2. "Ficaram apavorados e, instintivamente, esconderam-Ii§.."

9

Estamos, portanto, num domínio gramatical em que, à semelhan­ça do emprego das duas formas do infinitivo, as excepções são qua­

se tantas como as regras.

Bibliografia

DUNN (Joseph), A Grammar of Portuguese Language, la o ed., London

1930. FIGUEIREDO (Cândido de), O problema da Colocação de Pronomes,

Livraria Clássica, Lisboa. VAZQUEZ CUESTA (Pilar) e LUZ (Maria A. Mendes da), Gramática Por­

tuguesa, 3°. ed. Editorial Gredos, Madrid 1971.

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lo

EMPREGO DO INFINITIVO EM PORTUGUÊS

- FORMA IMPESSOAL E FORMA PESSOAL -

O. Infinitivo português

Diz-se habitualmente que a língua portuguesa tem dois infinitivos:

o infinitivo impessoal e o infinitivo pessoal. E uma maneira có­

moda de express~o - adoptada aliás por grandes gramáticos -, mas

n~o rigorosa. O infinitivo é só um, evidentemente, só que apresenta

em português duas formas: a forma impessoal e a forma pessoal. Quer

dizer, a cada forma n~o correspondem fun9ões diferentes. E tanto

assim que, em grandíssimo número de casos, quem fala ou escreve tem

a faculdade de optar por uma ou outra. O emprego da forma pode ser,

muitas vezes, uma questão subjectiva, e n~o a sujei9ão a qualquer

imperativo gramatical.

Se esta liberdade de escolha fosse permanente, ent~o n~o ha­

veria problemas. Ora, acontece que o uso ou tradi9ão da língua esta­

beleceu situa9ões em que, tendo embora o infinitivo sujeito pró­

prio, é ~~~~~~!~~~~ a forma impessoal (e mesmo aqui surgem excep-

9ões). Teoricamente, não há casos obrigatórios para o emprego da

forma pessoal, mas na prática, sobretudo no português moderno, o

infinitivo flexionado é quase inevitável em certas circunstâncias.

Daí a vantagem de codificar algumas regras, sem esquecer, porém,

que neste domínio quase todas as regras são falíveis. Convém, a

prooósito, transcrever aqui a justa advertência de Celso Cunha:

"O emprego das formas flexionada e não flexionada do INFINI­

TIVO é uma das questões mais controvertidas da sintaxe portuguê­

sa. Numerosas têm sido as regras propostas pelos gramáticos pa­

ra orientar com precis~o o uso selectivo das duas formas. QuaSe

tôôas, porém, submetidas a um exame mais acurado, revelaram-se

insuficientes ou irreais. Em verdade, os escritores das diversas

fases da língua portuguêsa nunca se pautaram, no caso, por ex­

clusivas razões de lógica gramatical, mas se viram, no ato da

escolha, influenciados por ponderáveis motivos de ordem estilís­

tica, tais como o ritmo da frase, a ênfase do enunciado, a cla­

reza da expressão.

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Por tudo isso, parece-nos mais acertado falar não de regras,

mas de tendências que se observam no emprêgo de uma e de outra

forma do INFINITIVO."

Sem deixar de aproveitar um pouco de todos os autores citados

na bibliografia, baseio-me essencialmente em Said Ali, dando-lhe,

porém, uma arrumação diferente. Preferi também, na maior parte das

definições, manterou adaptar a linguagem deste prestigioso gramá­

tico, servindo-me outrossim de grande número dos seus exemplos.

Sob o ponto de vista didáctico, pareceu-me vantajoso começar

pelo emprego da forma impessoal, já que aí se encontram os tais

casos obrigat6rios,ou quase ...

I. Emprego da forma impessoal

1. ~~~~12!!:2~:

- "Se ~ é criar-se,jcantar é~" (Emílio Moura).

- "E bom ter uma casa, dormir, sonhar." (Cecília Meireles).

1. !2~f~!}~2ª2:

O infinitivo conserva a forma impessoal quando não se refere

a nenhum sujeito. (Celso Cunha)

2. ~~~~12!!:2~:

Grupo a): - "Os culpados deviam pagar a multa"

Grupo b):

- "Podíamos respirar uma viração mais pura"

"As crinaças não queriam obedecer"

"As crianças estão entretidas a brincar no jardim"

- "Avistaram então os camponeses, que vinham a cantar

alegremente"

- "Tiveram, nesse dia, de contentar-se com frutos sil­

vestres"

"Este humilde pastor veio a ser o grande rei David"

Grupo c): - "As reflexões de Frei Lourenço começavam a secar

(aborrecer) sofrivelmente"

- "Continuaram a ficar enraizados no solo português"

- "Os senhores costumavam residir nas terras a eles

sujeitas"

"Acabamos de examinar a sua figura e vestuário"

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"Em chegando a Primavera, precisais urgentemente de

reparar esse telhado"

- "Havia um livro que fazia o que nunca souberam fa­

zer os comentários de cada um deles" (Herculano)

- "Debalde os almogaures tentavam suster a corrida"

- "Ousavam ofender esses desgra9ados"

2. !2~f~:2~~ª~:

O infinitivo toma a forma impessoal "nas combina9ões em que

lhe cabe exprimir a n09ão predicativa principal, competindo

ao verbo precedente denotar, além das n09ões de pessoa, núme­

ro, tempo e modo, certas modalidades" (Said Ali). Essas mo­

dalidades expressam-se através de:

a) verbos modais (dever, poder, guerer);

b) a chamada conjuga9ão perifrástica, formada tradicional­

mente com os auxiliares estar, ter e haver; andar, ir, vir,

ligados ao infinitivo com preposi9ão;

c) verbos que indicam início da aC9ão (come9ar a, p6r-se a),

dura9ão ou continuidade (continuar a), repeti9ão (costu­

mar, tornar a), termina9ão (acabar de, deixar de, cessar

de), necessidade (precisar de), faculdade ou capacidade

(saber), esfor90 ou tentativa (tentar, ~, buscar, pre­

tender, atrevar-se a).

(Os verbos da alínea c) que se ligam por preposi9ão ao in­

finitivo, pouco se distinguem, quanto a mim, dos auxilia­

res tradicionalmente consagrados para a forma9ão da peri­

frástica. Talvez por esse motivo, Said Ali não fez a divi­

são que eu estabele90 aqui, mas também é certo que não dá

um lugar à parte aos verbos modais. Acredito que seja mais

científico, mas parp efeitos didácticos pareceu-me melhor

agrupá-los nas três categorias).

2. ~~~~:e!!ª~:

"Há uma excep9ão possível à regra relativa ao infinitivo de­

pendente de poder, dever, querer, come9ar, costumar, deixar

de e respectivos sinónimos. E quando ele vem tão afastado do

verbo subsidiário que ficaria obscuro o sentido se o agente

não fôsse novamente lembrado pela flexão do infinitivo". (Said

Ali) .

Exemplos: "Mas a selva come9a a rarear, e os ginetes .§; :f;;~~-

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~~é~~g~~l1J com mais violência" (Herculano) - "Parece que não podiam tirar nada deles, nem eles é~:;;-g~~l1J mais" (Lo­bo) - "Deviam-no trazer todos vocês nas palmas, dar mil

graças aos céus, e acabarem de crer" (Castilho). ========

3. ~!:S~~12t~~:

Grupo a): - "Isto dizendo, l1Jg~@g os diligentes ministros amos­~ as armaduras" (Camões).

- "Entretanto @~~~g andar os homens nesta vida seme­lhantes aos brutos" (Arrais).

- "Um brado súbito .Q.§, ~~~ parar" (Herculano). Grupo b): - "Apenas :;;-~gg~l1J flutuar ( ..• ) os estandartes" (Her­

culano).

3. º~f~g~zª~:

"Não ~)J:;;-~ falar as pedras, bradar as inscrições, levantar-se as estátuas dos túmulos" (Garrett).

Nas combinações de mandar, deixar ou fazer + !Df., pode en­contrar-se na frase "um termo que exerça a dupla função de objecto do verbo regente e sujeito do inf. regido". Nesse ca­so, o inf., "indiferente ao número e pessoa do seu sujeito, continuará a usar-se com a forma impessoal" (S. Ali). A mesma regra se aplica às combinações de ~ ou ouvir + inf., normalmente "quando os dous verbos, regente e regido vêm pró­ximos um do outro." (S. Ali).

3. ~!:S!::~12zª~:

Se o sujeito do inf. é indeterminado, este toma a forma pes­soal (3a . pessoa pl.); esta regra prevalece mesmo quando o inf. é dependente dos verbos ~ e ouvir.

Exemplo: "Foi então que ~ gg~~~~l1J na porta" (Lins do Rego).

- "Discursos fáceis de escrever" - "Homens difíceis de contentar" - "Estão para morrer" - "Coisas muito para lastimar" - "Os castigos de Deus são para temer" - "As obras estavam por fazer"

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"Conserva-se impessoal o infinitivo usado com sentido passivo

e forma activa, e bem assim o infinitivo preposicionado que

supre o supino e formas gerundivas latinas" (S. Ali).

"A presença de um complemento e a necessidade de pór em evi­

dência um sujeito novo podem contudo determinar o emprego da

forma pessoal na construção é para + inf." (Id.). Exemplo: "Advertiu os filhos de que o livro era para o lerem,

e não para o guardarem na gaveta."

- "Apontar! Fogo!"

- "Para quaisquer informações telefonar para o , " numero ... - "E Deus responde - Marchar!" (Castro Alves).

Emprega-se a forma impessoal quando o infinitivo tem valor de

imperativo, "em ordens rápidas ou dirigidas a um público in­

definido e vago" (Celso Cunha - Vázquez Cuesta).

6. ~~~~E~~~:

- "Encontrei-as em casa a chorar" (= chorando)

- "Passavam o tempo a estudar" (= estudando)

E preferida a forma impessoal quando o infinitivo vem prece­

dido da preposição ~, em .construção eguivalente ao gerundivo (adaptação de Vázquez Cuesta).

- "Acostumados a ganhar, não sabiam perder"

- "Impedidos de ir ao cinema, voltaram para casa"

Também se usa com mais frequência a forma impessoal "quando o

sujeito não está expresso em nenhuma oração anterior ao infi­

nitivo, mas vem indicado de alguma maneira" (id.).

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"Enfim, chegámos! Mas ninguém nos veio esperar ... Que ~?" - "Perplexos, não sabem onde ficar"

8. 12~f~!:!~2ª~:

Emprega-se a forma impessoal, quando o infinitivo tem valor

interrogativo-deliberativo em orações tanto independentes co­

mo subordinadas.

II. Emprego da forma pessoal

"O infini ti vo em português tem a particularidade de poder referir a

acção a um sujeito determinado e expressar esse facto por meio das

terminações -~ (2a • do sing.), -!!!2.§., -des, -~ (para as 3 pessoas do pl.), faltando à la. e 3a . do sing. desinências que as distin­

gam do infinitivo impessoal." (S. Ali). Por outras palavras, o in­

finitivo português tem a possibilidade de realçar o seu sujeito.

Assim, quando o infinitivo se refere a um sujeito, expresso

ou elíptico, pode, em grande número de casos, tomar a forma pesso­

al, quer esse sujeito seja o ~do outro verbo com o qual o infi­

nitivo está relacionado, quer diferente.

Exemplos: - "Dize o segredo tantas vezes até ficares aliviado desse pe­

so." - "Ao chegarem os viajantes, ninguém lhes apareceu."

- "Antes de entrarem, eles já nos tinham visto à janela." - "Dali vira surgirem, dilatarem-se, avançarem as tempesta-

des de fogo." (Aires de Gouveia).

1. ~~~I!!E~~~:

- "E preferível ~ ambos pelo mesmo livro" - "Daí resultou ~ castigados o Ant6nio e o José"

1. 12~f~!:!~2ª~:

Quando o sujeito do infinitivo vem expresso, torna-se difícil

evitar a construção pessoal. Ressalvam-se os casos expostos

em I. e especialmente em 1.3. Mas mesmo na circunstância par­

ticualr de I.3b, o sujeito se impõe frequentemente. Exemplos:

- "Os pastores viram os nosssos cavaleiros ~~g~ggg~~~ o Sá-lia." (Herculano).

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"Nada mais delicioso para o coração do que ouvir estes dois

irmãos ~g~g~~ID dela." (Catilho).

2. ~~~I,!lE!2~:

- "Se não fosse conhecermos o homem, acreditaríamos na hist6-

ria" - "Poucas probabilidades havia de ganharem a questão"

2. º~f~::!~zª2: Ao contrário de 1., a forma pessoal serve aqui para revelar

o sujeito oculto, evitando a ambiguidade. (Caso mencionado por

V. Cuesta).

- "l!: triste morrerem tantas crianças"

- "l!: forçoso partires para Lisboa"

- "Pode acontecer quererdes sair hoje"

3. º~f~::!~zª2: Emprega-se a forma pessoal quando o infinitivo é o sujeito

do verbo finito da oração anterior. (Tavares e V. Cuesta).

- "Vim depressa para não me apanharem"

- "Calou-se por não o acreditarem"

4. º~g::!~zª2:

Quando o sujeito do inf. não se quer ou não se pode nomear,

usa-se a forma pessoal na 3a . pessoa pI. (Tavares e V. Cuesta). (Cf. 1.3. Excepção).

- "Terem morrido tantos homens de valor e ele continuar neste

mundo!"

- "E ousares tu, ladrão, caluniar tal santo!" (Castilho)

- "Morreres?! Oh não!" (Herculano)

- "Assassinares uma fraca mulher, ~~~~~~~::?:~!::!~ a ti pr6prio e renegares da vida eterna!" (Herculano)

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5. !2~!!~!s:~S2:

Neste caso, a construção pessoal dá relevo ao sujeito não por

razões de clareza, "mas por ênfase, o que é muito frequente em

expressões de assombro e em frases irónicas" (V. Cuesta).

N.B. - No último exemplo, achou o escritor desnecessário "a­

crescentar novamente a flexão ao repetir o verbo em assassi­

nar-te a ti próprio" (Said Ali).

- "Ao aproximarem-se, os dois exércitos de nuvens prolonga­ram-se" (Herculano).

"A forma pessoal é regularmente usada na combinação de ~ inf., servindo de equivalente Q uma oração temporal explíci­

ta iniciada pela conjunção quando" (S. Ali). CCL 7.c).

7. !2~f!~!s:ªS2:

"Nas orações reduzidas em que se usa o infinitivo regido de

qualquer das preposições ( ... ), emprega-se ora a forma impes­soal, ora o infinitivo flexionado" (3. Ali).

Modernamente,prefere-se a forma pessoal, sobretudo quando o

sujeito do infinitivo é diferente do verbo na forma finita.

Este infinitivo regido de preposição ou locução prepositiva indica várias circunstâncias:

a) Causa:

- "Perdemos o comboio por nos termos levantado tarde" b) Fim:

- "Corri, para não me alcançarem"

c) Tempo: - "Ao entrarem, reconheci os dois viajantes"

- "Abrimos-lhes a porta, depois de os termos reconhecido" d) Condição:

- "A correres dessa maneira, acabarás por cair" e) Concessão:

- "Cansais-vos depressa, apesar de serdes jovens!"

Com outras preposições ou locuções:

- "Persegui-o até o encontrardes"

"Os dois irmãos, além de (sobre) ~ jovens e sadios, e­ram alegres e bons rapazes"

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13

"Em vez de te queixares da má sorte, seria melhor tabalha­

res IT

Etc.

No entanto, quando se pretende realçar a acção, usa-se a for­

ma impessoal:

- "Vamos com ele, sem nos apartar um ponto" (Vieira).

- "Esperaram seu império ou consentimento para vingar suas

injlJrias" (Vieira).

- "Ao p6r do sol, gépidas, ostrogodos ( •.. ) preparavam-se

para morrer" (Herculano).

§:::~TEE~~~:

- "Os quais lhe ~g~~~~hl c'irigirem-se para o lado do célebre

mosteiro" (Herculano).

(= Os auais lhe Rg~~~~~gID dirigir-se ... )

- "Q~~~hl;~~ estalarem os foguetes"

(= Qhl~~~ºID;~~ estalar os foguetes)

- ";{~;~~ correrem os animais"

(= ;{~~ID;~~ correr os animais)

l. ~~f~~~:i:~~:

Com os verbos parecer, ouvir, ~, sentir e outros, quando

estes se empregam impessoalmente, segue-se-lhes infinitivo

pessoal; quando, pelo contrári~ esses verbos se empregam pes­

soalmente, o infinitivo toma a forma impessoal. (Tavares e

V. Cuesta).

Vázquez C1lesta observa que esta última construção é a mais

freqt:.ente. Na minha opinão é também a mais correcta no que

respeita aos verbos ver, ouvir, sentir. Aliás, Tavares e

Saic Ali só incluem na ,regra o verbo parecer, isto é, somen­

te atribuem a este verbo a possibilidade de dupla construção

- impessoal ou pessoal. Na verdade, a construção impessoal

com o verbo parecer ocorre com frequência, resultando muito

elegante, como se vê no exemplo de Herculano, ao contrário

do que sucede com os outros três verbos.

Concl~são

Toc'.as estas regras e ainda outras menos importantes, que omiti,

podem sofrer numerosas excepções. Já atrás observei que a constru­

ção com infinitivo pessoal ou impessoal pode, em muitos casos, fi-

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car ao arbítrio de quem fala ou escreve. Todavia, as excepções

que se verificam obedecem normalmente a dois princípios:

1. Quando o infinitivo que exprime a noção predicativa prin­

cipal, vem muito afastado do verbo subsidiário, toma ge­

ralmente a forma pessoal: "Deviam-no traz ar todos vocês nas palmas, dar mil graças aos céus e g~ggg;r~lli de crer" (Castilho). Algumas vezes essa distância nem precisa de

ser grande. Note-se o seguinte exemplo de Herculano: "Al­

guns mancebos mais destros fingiam acometer-se, ~~é~jg;r~lli'

~~º~~;r~lli' g~;r~lli=~~º~~g~g"·

2. Quando se pretende pór a acção em realce, usa-se o infini­ti vo pessoal; quando se quer pór em evidência o sU,jei to,

emprega-se a forma pessoal. Em geral, não se trata de uma

escolha consciente, mas de pura intuição da língua. No seguinte passo de Vieira, essa escolha, porém, deve ter

sido bem consciente: "Parece que havia de dizer: os Anjos

ouvem a palavra de Deus para a fazerem, e não os Anjos fa­

zem a pa12vra de Deus para a ouvirem ... Pois porque diz

que fazem para ouvir, e não ouvem para ~?" (Cit. por

Said Ali).

A fechar, transcrevo mais um comentário de Celso Cunha acer­ca do emprego das duas formas do infinitivo: "Trata-se, pois, de

um emprego selectivo, mais do terreno da estilística do que, pro­

priamente, da gramática". (Op,cit., p. 333).

Bibliografia

ALI (M. Said) , Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 7a . ed. Edições Melhoramentos, Rio de Janeiro 1971.

(Esta Gramática, apesar de histórica, abrange o português moderno).

CUNHA (Celso Ferreira da), Gramática do Português Contemporâneo. Belo Horizonte 1969.

STEN (Holger), L'infinitivo impessoal et l'infinitivo pessoal en

portugais moderne. "Bol.de Filologia", XIII, fase.

1-2, 3-4. Lisboa 1952. TAVARES (José Pereira), Gramática Portuguesa, 2a • ed. Coimbra Edi­

tora, Lda. Coimbra 1957. VÁZQUEZ CUESTA (Pilar) e LUZ (M: A. MENDES da), Gramática Portu­

guesa, 2 vols., 3a . ed. Editorial Gredos, Madrid

1971.

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ANÁLISE ESTILÍSTICA DE UM T'EXTO BARROCO

FAZER CRISTANDADE

Se, para guardar ovelhas mansas, é necessário amor e

muito amor, que será para ir tirar das brenhas ovelhas fe­

ras, para as amansar e afeiçoar aos novos pastos, para as

acostumar à voz do pastor e à obediência do cajado, e, so-

5 bretudo, para desprezar os perigos de confiar de suas gar­

ras e dentes enquanto são ainda feras e não ovelhas? Se é

necessário amor, para ser pastor de ovelhas que comem no

prado e bebem no rio, que amor será necessário para ser

pastor de ovelhas, que talvez comem os pastores e lhes be-

lo bem o sangue? E ninguém se escuse (como escusam alguns)

com a rudeza da gente, e com dizer que são pedras, que são

troncos, que são brutos animais, porque, ainda que verda­

deiramente alguns o sejam ou o pareçam, a indústria e a

graça tudo vence; e, de brutos, e de troncos, e de pedras

15 os fará homens. Dizei-me: qual é mais poderosa, a graça,

ou a natureza? a graça, ou a arte? Pois o que faz a arte

e 8. natureza, porque havemos de desconfiar que o faça a

graça de Deus, acompanhada da vossa indústria? Concedo­

-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra; vede

20 o que faz em uma pedra, a arte: Arranca o estatuário uma

nedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e,

depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cin­

zel na mão e começa a formar um homen, primeiro membro a

membro, e depois feição por feição até a mais miúda: on-

25 deia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos,

afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces,

torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe

as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui

desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem per-

30 feito e talvez um santo que se pode pór no altar.

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o mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à

graça divina. E uma pedra, como dizeis, esse índio rude?

Pois trabalhai e continuai com ele (que nada se faz sem

trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro

35 dia, dai uma martelada e outra martelada, e v6s vereis

como, dessa pedra tosca e informe, fazeis não s6 um ho­

mem, senão um cristão e pode ser que um santo.

p e . Ant6nio Vieira

Dos Sermões

A.NÁLISE ESTILÍSTICA DO TEXTO "FAZER CRISTANDADE"

1. Apresentação do texto

a) Género: prosa - orat6ria sagrada.

b) Assunto: incitamento à acção missionária junto dos

índios do Brasil.

c) Epoca: século XVII.

d) Fragmento de um sermão.

2. Composição do texto

a) Apresentação tipográfica: normal, sem nada a assinalar.

Ortografia e pontuação actualizadas.

b) Considero o texto dividido em três partes:

1. "Se ... indústria" (linhas 1-18) - dificuldades da e­

vangelização, mas que podem ser vencidas com a ajuda

da graça de Deus, acompanhada da "indústria" humana.

2. "Concedo-vos ... altar" (linhas 18-30) - o estatuário

e a pedra tosca. Comparação.

21

3. "O mesmo ..• santo" (linhas 31-37) - remate: lição que

o missionário pode tirar do trabalho do estatuário.

3. Comentário

A) Ligação das proposições

a) Predominam as orações secundárias, de extensão média.

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b) Orações adverbiais: ca. 10; orações adjectivas: ca. 5; orações substantivas: ca. 5. Aparecem numerosas frases

de infinitivo, mas nenhum gerundivo.

c) De uma maneira geral, nenhum outro elemento da oração

antecede o sujeito e o predicado (abstraindo dos prono­

mes pessoais átonos, quando proclíticos). Aponto apenas

o caso do advérbio "verdadeiramente" (linha 12-13). Embora raramente, aparece também a inversão do sujeito,

como em "Arranca o estatuário" (linha 20). d) Predomina a hipotaxe. E notável uma série de orações

assindéticas, muito curtas, em que estão expressos a­

penas o predicado, o complemento indirecto (pronominal)

e o complemento directo (linha 24-29). e) O hipérbaton aparece apenas uma vez "vede o que faz em

uma pedra, a arte" (linha 19-20).

B) Vocabulário e escolha de palavras

a) Relação entre as diversas categorias de palavras:

Substantivos: ca. 86 (ca. 62 concretos + ca. 24 ab­

stractos).

Adjectivos: ca. 17; verbos: ca. 69; advérbios: oa. 14 (excluí o advérbio "não"; dos 14 contados alguns

são repetidos e meramente funcionais, como "mais",

por ex.).

b) Pelos números indicados na alínea anterior, vemos que

predominam os substantivos concretos.

c) Ora empregadas metaforicamente, ora comparativamente,

ora no sentido rea~, as palavras estão adaptadas ao

tema de maneira perfeita e admirável.

Não aparecem palavras conotativas.

d) Não se encontram estrangeirismos, nem arcaísmos, nem

termos de gíria. Também não podemos falar de termos

técnicos, mas de vocábulos adequados a um sermão.

e) Os tempos predominantes são o presente do indicativo,

o infinitivo impessoal e o futuro do indicativo. Tam­

bém são de notar alguns imperativos, próprios de quem

se dirige, com fins didácticos, a uma assistência. Em

cerca de 69 formas verbais apenas 5 estão no conjunti­

vo (pres.): "escuse" (linha lo), "pareçam" (linha 13), "faça" (linha 17), "seja" (linha 19). Há mesmo dois

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verbos no presente indicativo não obstante estarem ante­

cedidos do advérbio talvez: "comem" (linha 9) e "bebem"

(linha 9-10). Esta construção já se não aceita no portu­guês moderno.

Não há formas da passiva. Formas da perifrástica há duas:

"havemos de desconfiar" (linha 17) e "começa a formar"

(linha 23).

c) Figuras e tropas

a) ~~~~~~~_~~_~g!~g~~f~~~2ª2_~~E~~~~~~~

1) Sinonímia: "tosca, bruta ( ... ), informe" (linha 21),

"tosca e informe" (linha 36).

2) Repetições: - Anáfora (= repetição da mesma palavra ou de um

membro da frase no princípio das frases ou ver­sos seguintes):

"para" (linhas 1-9), "que são" (linha 11). - D~ácope (= emprego da mesma ou de semelhante pala­

vra, intercalada outra ou outras de permeia):

"amor e muito amor" (linha 1-2), "um dia e ou­

tro dia" (linha 34-35), "uma martelada e outra

martelada" (linha 35). - Anadiplose (= figura que consiste no emprego de

uma palavra ou expressão de um período no come­ço do período segUinte):

"Se ( .•. ) é necessário/ Se é necessário" (linhas

1 e 6-7). - Clímax (= gradação, escala):

"que são pedras, que são troncos, que são brutos

animais" (linha 11-12), "e de brutos, e de tron­

cos, e de pedras" (linha 14), "Tosca, bruta, du­ra, informe" (linha 21).

- Assíndeton: "que são pedras, etc." (linha 11).

"ondeia-lhe os cabelos ... acolá recama" (linha 24-

29) .

- Elipse: "que um santo" (linha 37).

Desnecessário se torna dar exemplos, pois quase todo

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o texto se serve de comparações e metáforas, desde as

ovelhas e respectivo pastor, até à célebre comparação

com o estatuário.

'T. Conclusão

3) Mo~fologia e estilo

Os artigos, tanto o definido como o indefinido, são usa­

dos com grande sobriedade, e tão discretamente que pouco

se nota o seu emprego ou a sua omissão.

A abundância de substantivos concretos impregna todo o

texto de visualidade, reforçada pelo grande número de for­

mas varbais, que imprimem movimento à exposição. O predo­

mínio do presente do indicativo mais contribui ainda pa­

ra isso, dando maior vivacidade ao assunto e tornando-o

mais próximo do leitor ou do ouvinte.

Adjectivos e advérbios são usados com bastante parcimónia,

se exceptuarmos os quatros epítetos - "tosca, bruta, dura,

informe" - aplicados a um único substantivo - "pedra" , na

linha 20-21. Neste caso, porém, o autor pretende sobre­

tudo criar o clímax.

b) Sintaxe e estilo

Já vimos que predomina a hipotaxe, orações secundárias

de extensão média. Apesar da subordinação, por vezes em

períodos relativamente extensos, como o primeiro e o ter­

ceiro, por ex., os membros da frase estão dispostos com

tal harmonia e encadeamento lógico que o sentido nunca se

torna obscuro. Aliás, a subordinação não é densa ou ex­

cessiva, porque alterna frequentemente com ligações sin­

déticas ou assindéticas, de que o autor sabe tirar gran­

de partido estilístico, como se verifica, por ex., nas

linhas 11-12, l~, 24-29.

c) Impressões gerais

Não obstante as figuras de estilo já apontadas, o"texto

dá a impressão de grande sobriedade. Com efeito, o voca­

bulário é corrente, não rebuscado, e a adjectivação es­

cassa, mas compensada pela grande precisão do substan­

tivo e do verbo. Também não se verifica o cultismo e con­

ceptismo tão característicos dessa época: não encontramos

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jogos de palavras, nem preciosismos, nem conceitos arti­ficiosos e subtis. O barroco, aqui, consiste na sábia disposi9ão dos membros da frase, na sua simetria e ritmo, além das diversas figuras e tropos já atrás mencionados. Mesmo as perguntas retóricas não são inteiramente gra­tuitas, porquanto apresentam um nitido carácter didácti­co, para maior clareza da exposi9ão. E como se Vieira em­pregasse um barroco de linhas rectas, fugindo às curvas, que, nas artes plásticas, são de facto uma das marcas notórias desse estilo. Pela sintaxe e pelo aspecto da expressão, o texto não pode considerar-se tipicamente barroco, sem todavia deixar de ser muito caracteristico do periodo. Quanto ao ritmo, convém notar a existência de verdadei­ras frases métricas. Vejamos os seguintes exemplos:

1. "p(a)ra guardar ovelhas !!@gsas" (linha 1) - 7 silabas métricas (redondilha maior)

2. "é necessário amor e muito a.!!!.Qf: (linha 1-2) - 10 sila­bas métricas (decassilabo sáfico)

3. "p(a)ra as aman~ e afei90ar aos novos pastos" (linha 3) - 12 silabas métricas (alexandrino)

Ainda ligado ao aspecto ritmico, podemos notar a interes­sante constru9ão de certos periodos, em que, a unidades frásicas relativamente curtas, se sucede uma longa frase a rematar o pe­riodo. Metaforicamente, poderiamos comparar a um rio que, descen­do rápido a montanha de degrau em degrau, de repente se espalha solene e vagarosamente na planicie.

Exemplos: 1. "que será e não ovelhas?" (linha 2-6) 2. "Dizei-me indústria?" (linha 15-18) 3. ','ondeia-lhe os cabelos .•. altar." (linha 24-30)

Graficamente:

~'-----ou:

(descendente)

(ascendente)

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Em resumo, podemos dizer que este texto apresenta, entre ou­

tras, as seguintes qualidades principais: grande precisão do vo­

cabulário; sobriedade, simplicidade (embora aparente) e clareza;

simetria e ritmo frásicos. Com estes predicados, o estilo corre

fluentemente e é de agradável leitura, tudo sem prejuízo do seu

notável 'iigor expressivo, destinado a impressionar vivamente a­

queles a quem era dirigido.

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De seneste numre af R1DS

49. Hanne Korzen: Snak om sffitningsknuder. (udsolgt)

50. 1- Eva Dam Jensen: Kommunikation i fremmedsprogsundervis­ningen. (udsolgt)

11- ------------ : Allé tú 1-4. Appendix til Komm~~ika­tion i fremmedsprogsundervisningen.

51. Aase Lagoni Danstrup: Fantastisk litteraturs dialektiske forhold til samfundet: D1NO BUZZAT1.

52. Karen Landschultz og Lilian Stage: T0vemekanismer i fransk.

53. Alain Henry et Hilde Olrik: Le texte alternatif. Les antago­nismes du récit dans l'Histoire des 'l'reize de Balzac.

54. Michele Simonsen: Eros et Thanatos. Une lecture de la Vé­nus d'1lle.

55. Hans Boll-Johansen: Skyldig? 1kke-Skyldig? Om Camus' : La Chute.

56. Ghani Merad: Traduction du passif danois en fran9ais.

57. Henning N01ke: Problemer ved opstilling af en typologi for de franske adverbialled.

58. Daniela Quarta: Gramsci e iI futurismo.

59. Ole Hjordt-Vetlesen: Romanske ethnica: Derivation og dis­similation. I deI, 1talien.

60. Brynja Svane: Politisk engagement og ideologi i Eugene Sue: Les Mysteres de Paris (1842-43).

61. I0rn Korzen: Substantiv + substantivsammensffitninger pa moderne italiensk. I: Aflednings- og verbalsammensffitninger.

62. José Ma. Alegre peyrón: Semblanza de Carlomagno en la Vita Karoli Magni 1mperatoris deI cronista Eginardo. ----

63 - I0rn Korzen : Substantiv + substantiv-sammensffitninger pa moderne italiensk. 11- " Ad-Hoc" sammensffitninger.

64 - Kirsten Grubb Jensen: Amore romantico e amore neoclas-sico.

65 - Ole M0rdrup : Trffik af de franske verbers morfologi.

66. Hans Peter Lund: Eléments du voyage romantique.

67. Steen Jansen: A quoi pourra servir une sémiotique des textes littéraires?

68. Marcel Hénaff: Les Âges de la lecture sadielLne. 69. Luís Adolfo P. Walter De Vasconcelos: Três estudos portu­

gueses.

Nffiste nummer: Ole Posander: Frie prffidikater og le participe présent.

.\IL1\5 BOGTRYK.OFFSET K~flf_NHAV" Un 44·2