LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA OS MODERNOS CÂNONES DA ... · luiz eduardo da silva levy de...
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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA
OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO, A
TÉCNICA DA PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM
CONSTITUCIONAL PENAL: O REDIMENSIONAMENTO DO
ESTATUTO DO DESARMAMENTO
RIO DE JANEIRO
2007
1
LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA
OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO, A TÉCNICA DA
PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE SOB A
ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL PENAL: O
REDIMENSIONAMENTO DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO
Dissertação a ser apresentada à
Universidade Estácio de Sá como
requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Direito
Orientador: Prof. Dr. Rogério Gesta Leal
RIO DE JANEIRO
2007
2
LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA
Rio de Janeiro, ......... de agosto de 2007.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Rogério Gesta Leal
Presidente
Universidade Estácio de Sá
________________________________________________
Prof. Dr. Rogério J. B. S. Nascimento
Universidade Estácio de Sá
________________________________________________
Prof. Dr.
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
3
À minha mãe, que sempre esteve ao meu lado nos momentos difíceis deste curso que se finda,
ao meu pai, pela força protetora que me destina lá do céu, e à minha doce Bárbara, por ter me
feito acreditar que os sonhos podem se tornar realidade.
4
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos ao Professor Rogério Gesta Leal por seus conselhos sempre
ponderados e enriquecedores.
Aos colegas e demais professores do curso de mestrado da Universidade Estácio de Sá, pelo
incentivo e conhecimento que engrandeceram meus estudos jurídicos.
5
“Brigam as idéias, não os homens”
(Tancredo Neves)
6
RESUMO
A implementação do Estado Democrático de Direito, em especial, a nova concepção que lhe
foi aferida a partir do século XX, gerou a necessidade de uma revisão nos pilares do
constitucionalismo, conformando-o com os novos ideais surgidos. Em decorrência da nova
contextualização que o constitucionalismo passou a ter, novos cânones interpretativos foram
introduzidos. A crescente valorização dos direitos fundamentais acabou por gerar situações
em que os mesmos passaram a entrar em conflito entre si. A solução para tal foco de tensão só
pode ser alcançada através da técnica da ponderação, a qual utiliza-se, principalmente, do
princípio da proporcionalidade como mecanismo para sua implementação. Em se tratando de
questão de natureza penal, o referido princípio possui uma dupla dimensão, a qual não pode
ser ignorada pelo legislador, tampouco, pelo julgador. A mudança de paradigma no Direito
Penal - existente dentro do moderno Estado Democrático de Direito - decorre da nova
concepção que o bem jurídico penal passou a desfrutar. A ciência jurídico-penal passou a
tutelar não mais exclusivamente os valores de natureza individual, mas também os de índole
coletiva. Este necessário equilíbrio na tutela penal passa a ser a orientação a ser seguida pelo
operador do direito. Nesse sentido, a presente dissertação busca analisar todo esse
redimensionamento da interpretação constitucional, em especial os novos valores de cunho
penal inseridos, realizando o estudo de algumas questões conflituosas existentes no Estatuto
do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) concatenado com os atuais valores tutelados pelo
Direito Penal Constitucional. .
Palavras-chave: novo constitucionalismo; Estado Democrático de Direito; moderna
interpretação constitucional; ponderação; princípio da proporcionalidade; bem jurídico penal;
Estatuto do Desarmamento.
7
ABSTRACT
The implementation of a Democratic State by Law, particularly the new attributed concept
originating in the XX century, has generated the necessity of a revision in the
constitutionalism pillars, along with emerging concurring ideals. The redesign of the essence
of the constitutionalism resulted in introduced canonical interpretations. The basic human
rights increase of the value consummated in the creation of situations where conflicts existed
among themselves. Such focus of tension may only be solved through the ponderation
technique, in which the proportionality principle is used to regulate its implementation. A
double dimension is associated to the referenced principal since it is of penal nature, therefore
it cannot be ignored neither by the legislator, nor, by the one who judges. The paradigm
change in criminal law within the modern Democratic State by Law derives from new concept
that the penal jurisdiction legal goods began to experience. The criminal jurisdiction science
started to tutor values of individual nature as values of collective nature. The necessary
balance in criminal guardianship begins to be the orientation to be followed by the operator of
the law. On this basis, the present dissertation aims in analyzing adjustments made to the
constitutional interpretation, more specifically new inserted criminal values, and thus carrying
through the study of existing conflicting debates in the Statute of Disarmament (Law nº
10,826/03) concatenated with the current values caused by the Criminal Constitutional Law.
Keywords: new constitutionalism; Democratic State by Law; modern constitutional
interpretation; ponderation; proportionality principle; penal jurisdiction legal goods; Statute of
Disarmament.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 12
1. OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO ....................................... 17
1.1 O NOVO CONSTITUCIONALISMO E A MODERNA INTERPRETAÇÃO....... 17
1.2 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DENTRO DE UM CONTEXTO
HISTÓRICO E FILOSÓFICO....................................................................................... 18
1.3 OS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL........................... 21
1.4 OS ELEMENTOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL......................... 25
1.5 OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL............................. 26
1.5.1 Método jurídico ou interpretativo-clássico............................................................ 27
1.5.2 Método tópico-problemático................................................................................. 28
1.5.3 Método científico-espiritual.................................................................................. 28
1.5.4 Método Concretista.............................................................................................. 29
1.5.4.1 Método Concretista de Konrad Hesse............................................................... 29
1.5.4.2 Método concretista de Peter Häberle................................................................ 31
1.5.4.3 Método Concretista de Friedrich Muller........................................................... 33
1.5.5 Método Sistêmico-Constitucional de solução de caso concreto visando a efetivação dos Direitos Humanos....................................................................................
34
1.6 A PONDERAÇÃO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................... 36
2. A PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM
MATÉRIA PENAL....................................................................................................... 39
2.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PONDERAÇÃO COMO TÉCNICA
DE DECISÃO EM CONFLITOS ENVOLVENDO DIREITOS FUNDAMENTAIS.... 39
2.2 A MUDANÇA NO PAPEL DOS MAGISTRADOS E OS LIMITES À
9
DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL........................................................................... 45
2.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO PRINCIPAL
MECANISMO À APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NA
OCORRÊNCIA DE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS..................... 51
2.3.1 Aportes iniciais....................................................................................................... 51
2.3.2 Desenvolvimento Histórico.................................................................................... 52
2.3.3 Elementos constitutivos......................................................................................... 53
2.3.4 Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade................................................ 54
2.4 O DUPLO VIÉS DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA
PENAL............................................................................................................................ 55
2.4.1 A proibição do excesso de punição e a vedação à proteção insuficiente dos bens
jurídicos tutelados............................................................................................................ 55
2.4.2 Elementos constitutivos aplicados especificamente na seara penal....................... 58
3. O DIREITO PENAL SOB O NOVO ENFOQUE CONSTITUCIONAL: A
ALTERAÇÃO NO PARADIGMA DOS BENS JURÍDICOS A SEREM
TUTELADOS PELA NORMA PENAL...................................................................... 61
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 61
3.2 IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA – O NÃO DESENVOLVIMENTO PELO
DIREITO PENAL DA MUDANÇA DE PARADIGMA NA PROTEÇÃO DOS
BENS JURÍDICOS TUTELADOS PELA CONSTITUIÇÃO.......................................
64
3.3 A EVOLUÇÃO SOCIAL E O UNIVERSO DOS BENS JURÍDICOS QUE
GOZAM DE PROTEÇÃO PELO DIREITO PENAL.................................................... 67
3.3.1 Os alicerces dos bens jurídicos penais.................................................................... 67
3.3.2 A busca de uma nova conceituação dos bens jurídicos a serem tutelados pelo
Direito Penal – a divergência entre as escolas contemporâneas...................................... 70
3.4 O PAPEL LIMITADOR DA CONSTITUIÇÃO NO EXERCÍCIO DA
10
ATIVIDADE DO LEGISLADOR PENAL................................................................... 74
3.4.1 A Constituição como limite à atividade penalizadora do legislador....................... 75
3.4.2 A Constituição como limite à atividade despenalizadora do legislador................. 76
3.4.3 A Constituição e seus mecanismos no controle da atividade do legislador penal.. 77
3.5 A CONSTITUIÇÃO COMO FUNDAMENTO AO TRATAMENTO PENAL DE
CONDUTAS VIOLADORAS DE BENS JURÍDICOS CONSTITUCIONALMENTE
RELEVANTES............................................................................................................... 81
4. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO SOB A NOVA CONCEPÇÃO DO
DIREITO CONSTITUCIONAL PENAL.................................................................... 84
4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 84
4.2 O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA ARMAMENTISTA NO BRASIL...... 86
4.3 O SURGIMENTO DAS LEIS DE ARMAS............................................................. 87
4.4 A LEI nº 9.437/97 (LEI DAS ARMAS DE FOGO)................................................. 90
4.5 ASPECTOS GERAIS DA LEI nº 10.826/03 (ESTATUTO DO
DESARMAMENTO)..................................................................................................... 92
4.6 A PROBLEMÁTICA REFERENTE À EFICÁCIA DO ARTIGO 12 DO ED –
UMA INTERPRETAÇÃO SOB O CRITÉRIO SISTEMÁTICO COM OS ARTIGOS
30 E 32............................................................................................................................ 94
4.7 A PRORROGAÇÃO DO PRAZO DOS ARTIGOS 30 E 32 DO ED POR
MEDIDAS PROVISÓRIAS – ANÁLISE DA COMPATIBILIDADE
CONSTITUCIONAL...................................................................................................... 95
4.8 DA EFETIVA EFICÁCIA DE ALGUNS DISPOSITIVOS DO ESTATUTO DO
DESARMAMENTO ANTE A INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTO
ESPECIFICAMENTE EDITADO – ANÁLISE SOB A ÓTICA DA DUPLA FACE
11
DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL................... 97
4.9 DA INEXISTÊNCIA DE ABOLITIO CRIMINIS TEMPORALIS EM RELAÇÃO
ÀS CONDUTAS PREVISTAS NO ARTIGO 12 DO ED DURANTE O PRAZO
CONCEDIDO PELOS ARTIGOS 30 E 32 (E SUAS PRORROGAÇÕES) PARA A
REGULARIZAÇÃO/ENTREGA DAS ARMAS DE FOGO NAS CONDIÇÕES ALI
PREVISTAS – UMA PONDERAÇÃO ENTRE OS INTERESSES EM CONFLITO,
SOB A ÉGIDE DO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE.............................................................................................. 100
4.9.1 Da impossibilidade de aplicação dos critérios tradicionais de solução de
antinomias entre normas infraconstitucionais que revelem conflitos entre direitos
elencados na Constituição – da incidência da técnica da ponderação para solucionar a
colisão entre direitos constitucionalmente previstos...................................................... 101
4.9.2 Da aplicação da técnica da ponderação à problemática decorrente da não-
eficácia do artigo 12 do ED durante o prazo híbrido concedido pelos artigos 30 e 32 –
a necessidade da observância do princípio da proporcionalidade por seu duplo viés.. 102
CONCLUSÃO ............................................................................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 119
12
INTRODUÇÃO
O constitucionalismo contemporâneo vem, progressivamente, buscando
construir uma sustentação teórica para a concretização das normas constitucionais, sem
prejuízo da consolidação do caráter normativo e supremo da Constituição.
A Constituição de 1988 foi feita com características de instrumento de
transformação da realidade nacional. Será assim, na medida em que cumpra e se realize na
vida prática.
A proposta que procura destituir a Lei Maior de sua dimensão política e
axiológica, para reservar-lhe um papel puramente procedimental, não é compatível com as
conquistas do processo civilizatório. O ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio
majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais.
Na busca de se assegurar o respeito aos direitos fundamentais, a serem
exercidos dentro de uma organização política organizada, surge a forma contemporânea de
Estado: o Democrático de Direito.
Em que pese suas raízes remontarem ao século XVIII, no qual surgiram os
ideais iluministas que embasaram a forma anterior de organização estatal, o Estado
Democrático de Direito não se resume à garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. A
evolução da sociedade durante os séculos fez com que valores de natureza coletiva surgissem
e reclamassem idêntica proteção à conferida, até então, exclusivamente, àqueles referentes aos
indivíduos de per si.
As relações sociais que se resumiam a dois agentes deram espaço as que
comportavam dezenas, centenas, milhares, milhões de pessoas. Em decorrência desta
mudança de cenário, surgiram as denominadas pretensões transindividuais.
Tal quadro tornou-se mais evidente a partir do último quadrante do século XX.
Atenta a esta nova realidade, as Constituições contemporâneas passaram a positivar esses
direitos de índole coletiva (lato sensu) que eclodiam nas sociedades hodiernas.
O Brasil, país de desenvolvimento tardio, experimentou os ideais do novo
Constitucionalismo de forma recente. Após passar por um regime de exceção, encerrado na
metade da década de 80, veio à luz a Constituição da República de 1988, a qual expôs em
seus dispositivos a novel visão do Direito Constitucional, então vigente nos países mais
avançados. Por tal motivo, os juristas encontram-se em constante estado de descoberta dos
sentidos dos princípios e das regras esposados no texto constitucional.
13
Em razão de tal fator histórico e da configuração das relações sociais existentes
atualmente, a Constituição de 1988 trouxe em seu texto o reconhecimento de diversos valores
de cunho transindividual, sem prejuízo de outros de natureza individual, todos gozando de
idêntica hierarquia.
Ocorre que, em determinados fatos sociais, os direitos individuais e os
transindividuais apresentarão um aparente conflito, eis que poderão tutelar aquele caso
concreto de forma diversa. Em tal situação, o operador do Direito deverá se valer da
interpretação constitucional, a fim de solucionar a questão divergente que lhe é colocada, de
forma a harmonizar os direitos em colisão.
A interpretação das normas constitucionais constitui a construção de uma
reflexão que revele a norma adequada, a partir de um sentido prévio fornecido pelo contexto
no qual a Constituição se insere. Partindo de tal perspectiva, será feita uma sucinta análise da moderna interpretação
constitucional a partir de uma visão histórica e filosófica.
Nessa esteira, acatando a premissa de que as normas constitucionais,
especialmente as que tratam de direitos fundamentais, possuem singularidades que a diferenciam
das demais e que, desta feita, demandam um tratamento interpretativo especial, serão lançadas
breves linhas sobre os elementos, métodos e princípios de interpretação da norma constitucional
mais difundidos, evidenciando suas peculiaridades, similitudes e contradições.
Prosseguindo, será enfatizada a ponderação como técnica de decisão em conflitos
envolvendo direitos fundamentais para, ao final, serem descartadas as sofisticações e
complexidades metodológicas desnecessárias e sustentada uma interpretação que efetive esses
direitos e concretize a Constituição, validando sua força normativa.
Fixadas as bases fundamentais da técnica da ponderação, far-se-á o estudo do
princípio da proporcionalidade, posto que configura o principal instrumento a ser utilizado
quando da aplicação do referido método interpretativo.
O princípio da proporcionalidade, de origem européia (mais especificamente
alemã), apresenta-se como essencial à própria afirmação do Estado Democrático de Direito,
uma vez que será um dos mecanismos a dar o fundamental equilíbrio que esse necessita. Não
por outro motivo, embora não encontre previsão expressa no texto da Carta Constitucional
brasileira de 1988, o mencionado princípio encontra sua validade na própria afirmação da
adoção do Estado Democrático de Direito no país pelo constituinte originário.1
1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
14
O necessário equilíbrio que deverá existir entre os direitos fundamentais, tanto
individuais, quanto coletivos (lato sensu), será obtido com a utilização do princípio da
proporcionalidade dentro da ponderação que ocorrerá entre os valores constitucionais em
jogo.
O princípio da proporcionalidade utilizado dentro do Direito Penal possui
característica diversa de quando é utilizado no campo extra-penal. A observância da
dicotomia de proteção na disciplina da tutela penal apresenta-se como fruto do trabalho de
desvendamento permanente da Lei Maior pelos estudiosos do Direito Constitucional e do
Direito Penal.
A ponderação entre os direitos do indivíduo transgressor das normas de
conduta de natureza penal e os direitos da coletividade em ter uma proteção suficiente dos
bens jurídicos que lhe são fundamentais deve ser realizada com extremo zelo, posto que
configura-se, hoje, como o ponto mais sensível do Direito Constitucional Penal.
Conforme será verificado no curso do presente trabalho, a conceituação do bem
jurídico passível de proteção pela norma penal foi alterado com o advento da denominada
sociedade de massa.
A divergência entre as escolas penais modernas acerca do conceito do bem
jurídico penal será esposada, posto que de fundamental importância para o entendimento do
desenvolvimento histórico da tutela penal e da necessidade de ser a mesma repensada diante
do novo quadro existente na sociedade do século XXI.
Em decorrência de tal controvérsia, será possível verificar-se a profunda crise
em que se encontra o Direito Penal hodiernamente, vez que não consegue acompanhar o
desenvolvimento social, apresentando um déficit evidente de tutela dos bens jurídicos
essenciais, os quais reclamam sua proteção.
A adequação da ciência jurídico-penal à sociedade contemporânea passa por
uma inevitável mudança em seu paradigma. Hoje não basta a defesa exclusiva do indivíduo de
condutas infracionais; deve-se proteger, também, a coletividade como um todo.
Dentro do cenário constitucional hodierno, determinados direitos
fundamentais, reveladores de valores relevantes à sociedade, necessitam de um grau de
proteção maior, o qual só pode ser atingido plenamente através da tutela penal. E, assim,
impõe-se ao legislador a criação de uma regulação protetora desses valores constitucionais. exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). “Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)” (grifo nosso)
15
Sob outro prisma, os excessos na tutela penal deverão ser vedados em todas as
suas dimensões. E não de outra forma, esta é justamente a exegese do princípio da
proporcionalidade na seara penal.
A tal orientação, frise-se de origem constitucional, deverá o legislador
infraconstitucional se ater quando de sua produção legiferante de natureza penal. E quando tal
concepção não for respeitada, caberá à jurisdição constitucional atuar de modo a sanar esta
inconstitucionalidade da norma legal penal.
Nesse contexto, a presente dissertação pretende analisar algumas questões
tormentosas envolvendo a Lei nº 10.826/03, a qual ficou conhecida como Estatuto do
Desarmamento. No estudo, serão considerados os valores em conflito, utilizando-se da técnica
da ponderação, posto que a única apta a dirimir conflitos envolvendo direitos fundamentais
previstos no texto constitucional.
A solução será obtida com a aplicação do princípio da proporcionalidade,
considerando-se suas características específicas quando incidente em matéria penal.
Verificar-se-á que os entendimentos predominantes tanto na doutrina quanto na
jurisprudência carecem de uma análise correta do mencionado princípio, ante seu duplo viés.
Conforme será demonstrado, os citados posicionamentos revelam uma observância parcial do
princípio, seja exclusivamente por sua ótica negativa, seja estritamente por sua ótica positiva.
A relevância do presente estudo reside principalmente na contribuição social
imediata que ele poderá produzir. O objetivo é fazer uma nova reflexão sobre a mens legis que
orientou o referido diploma, revendo a exigência de motivos jurídicos relevantes e elencados
na própria Constituição da República e suas mais diversas conseqüências sócio-jurídicas.
A contribuição social se verifica na correta aplicação destas leis especiais aos
fatos típicos por elas disciplinados, efetivando o Estado, no desempenho de sua função típica
de veiculador do jus puniendi, seu corolário precípuo: a realização efetiva da justiça.
A pesquisa foi desenvolvida pelo método de abordagem dedutiva, com técnicas
bibliográfica e documental, envolvendo coleta de doutrina nacional e estrangeira, acerca: a)
do novo constitucionalismo e da moderna interpretação constitucional, seus princípios,
elementos e métodos; b) da ponderação como técnica de decisão em conflitos envolvendo
direitos fundamentais; c) do princípio da proporcionalidade e de sua dupla dimensão em
matéria penal; d) da nova concepção dos bens jurídicos penais; e) da mudança de paradigma
no Direito Penal; f) do estudo das questões mais polêmicas envolvendo o Estatuto do
Desarmamento, sob a ótica da ponderação e do princípio da proporcionalidade.
16
A pesquisa documental, a seu turno, foi fundamentada na Constituição da
República de 1988 e na legislação infraconstitucional, bem como em acórdãos dos Tribunais
Superiores relativos ao tema.
O presente trabalho, dentro da Área de Concentração Direito Público e
Evolução Social, na linha de pesquisa de acesso à justiça e efetividade do processo, pretende
expor as incertezas geradas pela controvérsia sobre a efetiva eficácia da norma jurídica
disciplinada nas denominadas Leis de Armas, buscando propor uma linha de raciocínio
jurídico apta a ensejar uma solução que preserve a mens legis e, conseqüentemente, a
segurança jurídica, instituto este essencial às ações humanas em sociedade, analisando, in
fine, a tipicidade ou não de determinadas condutas no tempo.
O raciocínio a ser desenvolvido será pautado pelas diretrizes do método da
ponderação na análise da colisão entre direitos fundamentais previstos na Constituição. O
estudo será direcionado para a aplicação do referido mecanismo dentro dos pontos de tensão
inseridos no Direito Penal.
17
1. OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO
1.1 O novo Constitucionalismo e a moderna interpretação
O verdadeiro e efetivo direito constitucional no Brasil, entendido como ícone
da afirmação dos direitos fundamentais em face do Estado, teve seu marco com a Carta
Constitucional de 1988.2
O texto constitucional elaborado pelos representantes da nação brasileira,
reunidos em uma Assembléia Nacional Constituinte, além de concretizar os novos ideais de
um moderno direito constitucional e dos tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos, os quais inspiravam as novas Constituições que surgiam nos países de
desenvolvimento constitucional tardio, teve como fator mais importante traduzir-se em uma
declaração clara e expressa da sociedade de absoluta rejeição ao regime totalitário, de caráter
ditatorial, que perdurou de meados da década de 60 a meados da década de 80.
A convocação da Assembléia Nacional Constituinte iniciou o processo de
libertação das amarras do atraso e do desrespeito aos direitos fundamentais veiculados pelo
odioso governo de exceção até pouco existente no Brasil, o qual era caracterizado pela
violação constante dos direitos dos cidadãos, onde seus mecanismos legais de proteção
restaram esvaziados.
O sentimento existente não só entre os juristas, mas entre todos os brasileiros,
com o advento de uma verdadeira “Constituição Cidadã”, foi definido com extrema felicidade
por Luís Roberto Barroso, ao afirmar que:
“sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a
2 A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, possuía como características principais, ser escrita (redigida sob a forma de um texto legal impresso) , promulgada (decorrente diretamente da vontade popular expressada por uma Assembléia Nacional Constituinte), dogmática (elaborada em um único momento histórico), analítica (redigida com diversos dispositivos), compromissária (revela os ideais e interesses de diversos grupos sociais, inclusive minoritários), dirigente (dotada de normas programáticas) e rígida (o processo de reforma do texto constitucional é de natureza complexa, existindo restrições à alterações de natureza supressiva de determinadas matérias).
18
crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor.” 3
Nesta mesma época, diante da ineficiência das fórmulas clássicas de
interpretação do Direito, juristas das mais diversas tendências, inspirados pelos novos direitos
identificados, passaram a buscar métodos mais modernos, que aproximassem o Direito da
Justiça.
Todo o Direito foi remodelado e a norma, por via de conseqüência,
redimensionada, passando a ser analisada sob uma perspectiva mais ampla, em conexão com a
realidade. Paralelamente, um novo enfoque foi atribuído ao papel do julgador, o qual passa a
ter função criativa, tornando-se protagonista do processo de criação do Direito.4
Como bem pondera Barroso, a doutrina e jurisprudência pátrias ainda
encontram-se em fase de amadurecimento, o que aumenta sensivelmente a importância das
referências estrangeiras. Entretanto, em que pese tal necessidade, deve-se atentar para que, em
tal processo, não seja criada, de um lado uma subserviência intelectual – a qual consiste na
importação acrítica de fórmulas alheias, com uma conseqüente incapacidade de reflexão
própria – e de outro uma soberba intelectual - pela qual se rejeita aquilo que não se tem
instintivamente. Desta forma, é forçoso reconhecer que não é possível utilizar-se modelos
puros, concebidos alhures. Porém, o sincretismo, desde que consciente e coerente, apresenta-
se como inevitável e desejável.5
1.2. A moderna interpretação dentro de um contexto histórico e filosófico
No Brasil, o marco histórico do novo direito constitucional, assim como dos
estudos acerca de uma nova interpretação da Constituição, foi a Carta Magna, promulgada em
1988, sepultando, de forma definitiva, o regime de exceção que perdurou por duas décadas no
país.
3 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005). 4 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993. 5 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005).
19
Na Europa, o fenômeno ocorreu pouco antes, com a gradual superação da
crença liberal no imediatismo da Constituição formal, cujas raízes remontam o início do
século XX, e com o distanciamento da idéia de que a interpretação da letra da lei é o único
componente importante. A norma constitucional passa, assim, por um redimensionamento,
sendo interpretada em interação com outras questões meta-jurídicas.6
No que tange ao marco filosófico, este encontra-se umbilicalmente ligado à
crise política do positivismo e à superação do jusnaturalismo.
Pós-positivismo é a denominação que vem sendo empregada para representar a
atual fase do pensamento jurídico, que relaciona ética com a política e com o direito,
superando a visão positivista7 lançada por Hans Kelsen.
A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação de
outras ciências foram gradativamente perdendo espaço por não corresponderem ao estágio de
evolução do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam as causas da
humanidade.
No Brasil, foi após a crise do regime autoritário e a passagem para o regime
aberto e democrático que as idéias de justiça e legitimidade foram reintroduzidas à análise
jurídica, distanciando-se do pensamento positivista.
Dentro deste cenário de reaproximação da ética com o Direito, os valores
compartilhados pela comunidade, mas relegados à Filosofia, foram inseridos na Constituição,
implícita ou explicitamente, sob a denominação de princípios. 8
6 Tal posição vai ao encontro da defendida por Hesse. “A radical separação no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como anteriormente observado, essa separação pode levar a uma confirmação, confessa ou não, da tese que atribui exclusiva força determinante às relações fáticas. Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo.(HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.14).
7 “(...) o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural” não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a aredução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria de direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Biri, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.p.26). 8 Humberto Ávila defende o entendimento de que as normas constitucionais se subdividem em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Entre essas espécies normativas não há hierarquia, mesmo porque as funções desempenhadas pelos princípios e pelas regras são distintas. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.26). Sobre o tema: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 53; ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997. p. 87.
20
A Constituição ganhou nova roupagem, passando a ser vista como um sistema
aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias
de justiça e de realização dos direitos fundamentais passaram a desempenhar um papel
central.
A nível teórico, de acordo com Barroso, uma das transformações que
revolucionou o conhecimento convencional concernente à aplicação do direito constitucional
foi o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação, voltada para as Constituições
mais abertas.9
Nesse processo passaram a ser considerados como relevantes alguns fatores
pertencentes ao campo de outras ciências sociais, que até então eram considerados estranhos à
interpretação jurídica.
Nesta dicção, a idéia de uma nova interpretação constitucional liga-se ao
desenvolvimento de algumas fórmulas de realização da vontade da Constituição, a qual deriva
da necessidade de uma ordem normativa suficientemente sólida e forte, que valorize
elementos sociais, políticos, econômicos e filosóficos de seu tempo, e que se manifeste na
sociedade, entre todos os que vivem a Constituição.
José Joaquim Gomes Canotilho sistematiza dois objetivos impostos aos
aplicadores das normas constitucionais, incumbidos de aplicar e concretizar a Constituição, os
quais seriam: encontrar um resultado constitucionalmente justo através da adoção de um
procedimento (método) racional e controlável e fundamentar esta solução desta mesma forma.
Em sua visão, considerar a interpretação como tarefa, implica, por conseguinte, que toda
norma é significativa, mas o significado não constitui um dado prévio; mas, sim, o resultado
da tarefa interpretativa.10
Como bem ressalta Konrad Hesse, a interpretação da Constituição tem, pois,
“um papel decisivo para a consolidação e a preservação da força normativa da Constituição. A
interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma.”11
9 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005. 10 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1193.
11 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.22.
21
As tendências mais modernas apontam para a formulação de regras e princípios
instrumentais que impliquem em um processo de realização das normas constitucionais, com
a pretensão de eficácia dos bens e direitos ali protegidos, sobretudo os intitulados de
fundamentais.12 Ao contrário do que possam transparecer, não representam um desprezo aos
cânones gerais de interpretação propostos por Savigny, tampouco do método subsuntivo, haja
vista que boa parcela das questões jurídicas permanece sendo resolvida por ele.
Tecidas tais considerações preliminares, passe-se ao exame dos mais
relevantes princípios, elementos, métodos e técnicas que balizam a atividade interpretação
contemporânea.
1.3. Os princípios de interpretação constitucional
A perspectiva pós-positivista13 e principiológica do Direito foi determinante na
evolução e na formação de uma nova interpretação constitucional. Ao lado dos princípios que
foram expressamente inseridos na Constituição, desenvolveu-se um catálogo de princípios
específicos de interpretação constitucional14, os quais não encerram conclusões de antemão
obrigatórias, sendo valorados apenas como pontos de partida ou fórmulas de busca, que se
manejam como argumentos - sem gradação, nem limite - para a solução do caso concreto.
Nesse sentido, Barroso elucida que “os princípios instrumentais de
interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas
que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão
posta”.15
12 “Qualquer Constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através de sua realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos do constitucionais que, na atividade legiferante, administrativa e judicial, aplicam as normas da constituição. Nesta tarefa realizadora, participam ainda todos os cidadãos”pluralismo” de intérpretes fundamentam na constituição, de forma discreta e imediata, os seus direitos e deveres.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1186). 13 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999. 14 Humberto Ávila não utiliza a denominação princípio e sim postulado normativo, por considerar que tal nomenclatura contribuiria mais para confundir do que para esclarecer. Aduz, que os postulados prescrevem modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que, indiretamente prescrevem comportamentos.(ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 89). 15 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 358.
22
Quanto à sua função dogmática, deve-se dizer que, embora se apresentem
como enunciados lógicos e, nessa condição, pareçam anteriores aos problemas interpretativos,
tais princípios funcionam como fórmulas persuasivas, das quais se valem os aplicadores do
direito para justificar pré-decisões que, mesmo necessárias ou convenientes, sem o apoio
desses cânones interpretativos se mostrariam arbitrárias ou desprovidas de fundamento.
Virgílio Afonso da Silva, em posição contrária a boa parte da doutrina, não
atribui grande relevância aos princípios difundidos pelos juristas brasileiros por considerar
que muitos deles não se diferenciam dos cânones tradicionais e, ainda, por não acreditar na
possibilidade de aplicação destes em conjunto com outras práticas de interpretação.16A crítica
formulada prospera, mas é falha em muitos aspectos, haja vista que a consagração em um
mesmo texto de opções e interesses diversos, com conceitos abertos, demanda meios mais
aprimorados de interpretação, os quais, uma vez manejados com cautela e bom senso, podem
ser perfeitamente conjugados.
Neste diapasão, o primeiro princípio a ser destacado é o da Unidade da
Constituição, segundo o qual as normas constitucionais devem ser vistas não como
dispositivos isolados, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e
princípios, que é instituído pelo próprio texto constitucional.
Sob esta ótica, a Constituição deve ser interpretada e compreendida como uma
unidade, otimizando o texto constitucional e permitindo aos intérpretes e aplicadores construir
as soluções exigidas em cada situação interpretação.17
Em decorrência da própria conceituação anterior, tem-se o Princípio do Efeito
Integrador, o qual constitui-se em um sub-princípio densificador do Princípio da Unidade da
Constituição, e segundo o qual deve-se buscar, sempre, a integração dos dispositivos
constitucionais, posto que a Carta Magna configura um sistema de normas, as quais não
podem ser interpretadas isoladamente.
O Princípio da Harmonização ou da Concordância Prática consiste,
essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais ao se
deparar com situações de concorrência entre bens dotados de igual proteção constitucional,
16 SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. 17 Para Canotilho, “o princípio da unidade da Constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias e antagonismos) entre as suas normas.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1209).
23
adote a solução que apresente-se mais pertinente ao caso em tela, buscando harmonizar os
dispositivos em jogo, vedando-se, expressamente, a eliminação de quaisquer deles.18
O referido cânone interpretativo possui grande alcance e vêm sendo utilizado
com relativa freqüência pelo Supremo Tribunal Federal.
Encontra-se profundamente ligado ao princípio da proporcionalidade e tem
seu valor em questões de colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e
bens jurídicos protegidos constitucionalmente.
O Princípio da Força Normativa da Constituição, a seu turno, consubstancia
um apelo aos aplicadores da Constituição, para que na solução de problemas jurídico-
constitucionais dê-se preferência àqueles pontos de vista que convertam para uma eficácia
ótima da lei fundamental.19 Em outras palavras, a Constituição possui força própria, não
necessitando de qualquer legislação extravagante para reafirmar-lhe.
Nesta mesma perspectiva, merece realce o Princípio da Máxima Efetividade,
o qual encontra-se estreitamente vinculado ao princípio anterior, em relação ao qual configura
um sub-princípio. Orienta os intérpretes da Lei Maior para que em toda situação interpretação,
sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos, cujas normas,
naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas. Em se tratando de direitos
e garantias constitucionais, sob seu viés positivo, deve-se dar interpretação extensiva a seus
dispositivos, sempre que a própria exegese da norma permitir.20
Outro princípio muito citado pela doutrina é o da Interpretação conforme a
Constituição, cuja aplicação ocorre tanto no âmbito da interpretação, quanto no do controle
de constitucionalidade, neste como técnica de solução de caráter supressivo, ou não, de parte
de norma legal cuja constitucionalidade tenha sido negada pela Corte Constitucional, no
exercício da jurisdição constitucional.21
18 “Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”.(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1209). 19 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.22. 20 Diversamente, quando o intérprete estiver diante de normas que tratem de restrições a direitos e garantias fundamentais deverá o operador do Direito valer-se de interpretação de caráter restritivo. 21 Nessa linha, Barroso afirma que “a interpretação conforme a constituição pode ser apreciada como um princípio de interpretação e como uma técnica de controle da constitucionalidade.” (BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361).
24
Sua aplicação é significativa quando, em face de normas de múltiplos
significados, existem diferentes alternativas de interpretação, umas em desconformidade e
outras em consonância com o texto constitucional, sendo que estas devem ser preferidas
àquelas. Frise-se, por oportuno, que eventual interpretação manifestamente contrária à
Constituição não será possível, implicando, necessariamente, em seu imediato descarte pelo
intérprete.
Modernamente, esse princípio passou a consubstanciar, também, um mandato
de otimização do querer constitucional, ao não significar tão somente que entre duas
interpretações possíveis da mesma norma se há de optar por aquela que a torna compatível
com a Carta Constitucional, mas, também, que, entre diversas exegeses igualmente
constitucionais, deve-se escolher a que se orienta para a razão de ser da Constituição e para a
realização dos direitos fundamentais ali veiculados.
Finalmente, porém com a maior relevância dentro da interpretação
constitucional contemporânea, destaca-se o Princípio da Proporcionalidade.
Na visão de Barroso, trata-se de um importante instrumento de proteção dos
direitos fundamentais e do interesse público, por promover o controle da discricionariedade
dos atos do Poder Público e por funcionar como uma medida segundo a qual determinada
norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização de sua função
constitucional.22
O princípio da proporcionalidade constitui, destarte, uma verdadeira garantia
constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso desequilibrado – tanto no sentido
comissivo, quanto no omissivo - do poder estatal, auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as
normas constitucionais.
Uma melhor análise do referido princípio e, em especial, sua aplicação na seara
penal, como forma de vedação ao excesso na punição, mas também de proibição à proteção
insuficiente do bem jurídico tutelado, serão objeto de estudo no capítulo seguinte da presente
dissertação.
22 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 363.
25
1.4. Os elementos de interpretação constitucional
Mecanismos essenciais ao correto entendimento do significado das normas, os
denominados elementos de interpretação podem ser utilizados tanto na seara constitucional,
quanto na análise da legislação infraconstitucional e, inclusive, em sua integração com os
mandamentos constitucionais.
A doutrina destaca quatro principais elementos com efetiva aplicação na
interpretação contemporânea, a saber: o gramatical, o histórico, o sistemático e o
teleológico.23
O elemento gramatical, também denominado literal, restringe-se,
exclusivamente, em aferir o sentido textual da norma, procedendo-se a uma análise
estritamente gramatical dos termos que a compõem. Portanto, consiste em revelar
semanticamente o sentido das palavras.
É o primeiro mecanismo a ser utilizado no processo interpretativo. Constitui-
se, todavia, no momento inicial e também no limite do processo interpretativo. Limite pois,
segundo tal critério, o intérprete encontra duas barreiras extremas: não pode ir além da letra
da lei, nem tão pouco negar as palavras que constem expressamente no texto legal.
Tal elemento, conforme se depreende, tem seu campo de utilização, em muito,
restrito, posto que, invariavelmente, necessitar-se-á da análise dos diversos sentidos que um
termo possa ter dentro de um dispositivo, bem como de uma apreciação conjunta das
múltiplas normas referentes ao objeto sob apuração.
Com menor destaque, observa-se o elemento histórico. Seu objetivo consiste
em revelar o sentido da norma pelo exame da vontade histórica do constituinte. Portanto, no
momento de sua elaboração. O intérprete utiliza-se do contexto histórico e sócio-político
existente quando da criação do texto legal sob análise.
Tal critério não encontra muito prestígio no mundo jurídico, posto que, quando
a lei é feita, passa a ter vida própria, ter existência objetiva, não podendo ficar presa a
concepções subjetivas e, sobretudo, existentes em um determinado momento histórico
pretérito, muitas das vezes não condizente com a realidade em que o operador do Direito se
encontra.
23 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 12ª edição, São Paulo: Atlas. 2002; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997.
26
Como é cediço, a lei é mais inteligente que o legislador. Desprende-se da
vontade que a criou e sujeita-se à evolução dos fatos.
A lei constitucional é gerada por uma vontade subjetiva do legislador, a mens
legislatoris, mas se desprende desta vontade, possuindo vontade própria e existência objetiva.
Ante os princípios constitucionais da Unidade da Constituição e do Efeito
Integrador, este entendido como sub-princípio densificador daquele, ambos inseridos no
campo da interpretação constitucional, exsurge o elemento sistemático.
Por tal elemento, tem-se que as normas compõem um sistema, o qual deve ser
analisado em todo o seu conjunto, não cabendo uma interpretação isolada de suas normas. O
sistema configura-se em um conjunto de elementos harmonicamente articulados. Assim, é
preciso que haja composição e harmonia entre as partes deste sistema.
Desta forma, o intérprete deverá analisar, primeiramente, o dispositivo dentro
da lei em que se insere e, posteriormente, conjuntamente com as demais normas que integram
o ordenamento jurídico, principalmente e precipuamente, com as disposições elencadas no
texto constitucional.
Só será possível determinar-se o sentido de determinado dispositivo após
confrontá-lo com os demais regramentos legais (lato sensu) pertinentes.
Por fim, tem-se o elemento teleológico, segundo o qual, o intérprete, ao
realizar sua atividade precípua, deve buscar o sentido da norma, o seu real significado.
Toda norma possui um objetivo a ser alcançado. A tal é dado o nome de mens
legis, ou, sentido da norma. O operador do Direito, ao exercer a função de interpretação de
um dispositivo, deverá sempre buscar o fim almejado por aquele texto legal sob análise, o(s)
bem(ns) jurídico(s) que a norma visa proteger.
Importante frisar que a utilização do elemento teleológico terá resultados mais
eficazes se veiculado em conjunto com o elemento sistemático, posto que apresenta-se
essencial à compreensão do correto objetivo da norma sua análise em conjunto com as demais
normas afins.
1.5. Os métodos de interpretação constitucional
Ao lado dos princípios instrumentais de exegese constitucional, é disposta na
doutrina uma extensa lista de métodos, os quais refletem a preocupação de se sintonizar a
normatividade com a realidade fática. Representam uma evolução seletiva que conserva parte
27
dos conceitos clássicos de interpretação, mas que também acrescenta novos conceitos e
idéias.
Neste aspecto, considerando a progressiva sofisticação das normas jurídicas
dotadas de maior abstração e de textura mais aberta, torna-se importante, tanto para o
operador do direito, como para a comunidade destinatária, uma maior precisão metodológica,
essencialmente ligada à idéia da segurança jurídica.24
Os métodos que são hodiernamente utilizados pelos operadores da Constituição
são, fundamentalmente, o método jurídico ou interpretativo-clássico; o tópico-problemático; o
interpretativo-concretizador; o científico-espiritual; o normativo-estruturante e o sistêmico
constitucional de solução do caso concreto, cujos traços mais significativos serão expostos a
seguir.
1.5.1. Método jurídico ou interpretativo-clássico
Para os defensores deste método, deve-se interpretar a Constituição da mesma
forma que se interpreta a Lei. Só através desta tarefa se passa da leitura política, ideológica ou
simplesmente empírica para a leitura jurídica do texto constitucional, seja ele qual for.25
Assim, para se captar o sentido da norma constitucional, a Constituição há de
ser interpretada segundo as regras tradicionais da interpretação, articulando-se e
complementando-se os mesmos mecanismos que são levados em conta na interpretação das
leis, em geral.
A concatenação destes instrumentos resguarda o princípio da legalidade, pois é,
simultaneamente, o ponto de partida e de chegada para a tarefa de captação do sentido da
norma. A tarefa do intérprete, enquanto aplicador do direito, se resume em descobrir o
verdadeiro significado das normas e guiar-se por ele na sua aplicação.
Trata-se, como se depreende, de uma concepção interpretação baseada na
crença de que toda norma possui um sentido em si, seja aquele que o legislador pretendeu
atribuir-lhe originariamente (mens legislatoris), seja o que, afinal e à sua revelia, acabou
embutido no texto (mens legis). 24 “Para que as decisões não sejam reflexo das convicções íntimas e pessoais do julgador é preciso valorizar o procedimento, construindo parâmetros formais de legitimidade que assegurem uma aplicação do direito tão democrática quanto se exige seja a sua produção.” (NASCIMENTO, Rogerio J. B. S.. Contribuindo para uma doutrina constitucional adequada: dialogando com a teoria da constituição dirigente. In: Júris Poiesis - Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), pp. 421-437). 25 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Constituição e Inconstitucionalidade. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
28
1.5.2. Método tópico-problemático
A tópica não é uma técnica de pensar moderna, embora dela se escute muito
falar contemporaneamente. Ao revés, é um modo de pensar muito antigo que vem antes de
Aristóteles, junto com ele e depois dele. Este modo de pensar foi retomado por Theodor
Viehweg, em sua obra Topik und Jurisprudenz, publicada pela primeira vez em 1953, onde
sugere que a tópica deveria ser utilizada como técnica de interpretação do Direito.
Em consonância com a lição de Canotilho, o método tópico-problemático, no
âmbito do Direito Constitucional, parte das seguintes premissas:
“(1) carácter prático da interpretação constitucional, dado que, como toda interpretação, procura resolver os problemas concretos; (2) carácter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; (3) preferência pela discussão do problema em virtude da open textura (abertura) das normas constitucionais que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo.”26
Instala-se um processo aberto entre vários participantes, partindo de tópicos ou
pontos de vistas, a fim de se desvendar a interpretação mais apropriada para o caso concreto.
O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma
"técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma
solução adequada.
A principal crítica feita ao método tópico é a sustentada por Canotilho de que
“além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do
problema para a norma, mas desta para os problemas”.27
1.5.3. Método científico-espiritual
Desenvolvido por juristas alemães, dentre eles Rudolf Smend, tal método parte
da premissa que a Constituição se apresenta como um conjunto de distintos fatores
integrativos, elementos de coesão entre os indivíduos.
Como método de interpretação, a corrente científico-espiritual admite um
sistema de valores subjacentes ao texto constitucional, revelando-se a Constituição um
elemento do processo de integração, não apenas do ponto de vista jurídico-formal, enquanto
norma-suporte e fundamento de validade de todo o ordenamento, mas também e sobretudo em 26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1197. 27 Ibidem, p. 1198.
29
uma perspectiva política e sociológica, como instrumento de regulação (absorção/superação)
de conflitos, de construção e de preservação da unidade social.
1.5.4. Método Concretista
O método concretista foi desenvolvido pelos juristas alemães Konrad Hesse,
Friedrich Müller e Peter Häberle, tendo cada um deles oferecido valiosas contribuições para o
seu desenvolvimento.
O ponto de partida para a compreensão deste método é a constatação de que a
leitura de qualquer texto normativo, inclusive do texto constitucional, começa pela pré-
compreensão do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de uma dada situação
histórica concreta.
O método concretista evidencia algumas premissas da atividade interpretativa e
gira em torno de três tópicos essenciais: a compreensão prévia do intérprete na tarefa de
obtenção do sentido constitucional; os dados fáticos do problema a solucionar e a relação
entre o texto e o contexto.
1.5.4.1. Método Concretista de Konrad Hesse
Konrad Hesse é um dos ícones de maior expressão no Direito Constitucional
contemporâneo, cuja produção é referência obrigatória para um efetivo estudo do Direito
Constitucional. Sua obra intitulada de “A Força Normativa da Constituição” apresenta uma
nova perspectiva da Constituição, como responsável pela unidade política da sociedade, onde
o texto constitucional se identifica como instrumento político e jurídico de ordenação e
fundação social.28
Se contrapondo a tese de Ferdinand Lassale, que reduz a Constituição jurídica
de um Estado a um “pedaço de papel”, pelo fato das questões constitucionais não serem
questões jurídicas, mas tão somente políticas, Hesse sustenta que a Constituição não está
28 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991.
30
desvinculada da realidade histórica de seu tempo, mas que, também, não se condiciona
simplesmente por esta realidade.29
Busca demonstrar que o desfecho do embate entre os fatores reais do poder
(militar, social, econômico e intelectual) e a Constituição não há de verificar-se em desfavor
desta. Assim, não há que se desprezar o significado dos fatores históricos, políticos e sociais
presentes em toda e qualquer ordem constitucional.
Na visão do jurista, a concretização da Constituição é determinada pela
realidade social e, ao mesmo tempo, é determinante em relação a ela, tornando-se impossível
definir como fundamental tão somente a pura normatividade ou a eficácia das condições
sócio-políticas e econômicas.30
Hesse destaca a chamada vontade da Constituição, ressaltando sempre a
necessidade de se preservar sua força normativa.31 Nas palavras do jurista, “a Constituição
adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”.32
O pressuposto material para o desenvolvimento da chamada “força normativa”
é a correspondência desta com o presente e com os anseios de melhora nas condições sociais,
haja vista a função de aprimoramento social que é inerente à norma constitucional.
Assim, afirma que “a norma constitucional mostra-se eficaz, adquire poder e
prestígio se for determinada pelo princípio da necessidade. A força vital e a eficácia da
Constituição assentam-se na sua vinculação às potências espontâneas e às tendências
dominantes de seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação
objetiva.”33
Na tese de Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face do
problema concreto, de forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua
aplicação ao caso concreto constituem um processo unitário.
Nas palavras do jurista alemão:
“a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima
29 Sustenta, também, que “o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco.”(HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p. 13). 30 (HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p. 15) 31 Concebida, neste contexto, como expressão dos elementos culturais e espirituais que constituem o espaço elaboração da norma constitucional. 32 Ibidem, p. 16. 33 Ibidem, p. 18.
31
concretização da norma (Gebot optimaler Verklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."34
Destarte, a concepção concretizadora de Hesse acerca da interpretação do
Direito se orienta através de um pensamento problematicamente orientado, de uma atividade
de construção, não de descoberta. O operador não extrai a norma do texto, como se este
previamente a contivesse. A norma, portanto, é edificada a partir da conexão da
normatividade com a realidade.
1.5.4.2. Método concretista de Peter Häberle
Peter Häberle propõe uma interpretação constitucional que contraria a
orientação interpretação clássica e que contempla o ajuste do tema “Constituição e realidade
constitucional” com a incorporação das ciências sociais e das teorias jurídico-funcionais,
assim como de métodos voltados para o interesse público.
Na concepção do autor, a teoria da interpretação constitucional tem
concentrado seus esforços em dois pontos principais: a questão acerca das tarefas e objetivos
da interpretação e a referente aos métodos, que envolve o processo da interpretação e suas
regras.
Todavia, há um aspecto fundamental para o qual não se tem dado a devida
importância: a questão relativa aos participantes da interpretação. Isto se dá em razão do forte
vínculo que a teoria da interpretação constitucional tem mantido com um modelo de
sociedade fechada, conferindo especial destaque aos procedimentos formalizados e à
interpretação constitucional realizada pelos magistrados. Contudo, por mais importante que
seja a interpretação constitucional dos juízes, ela não é a única possível.
Nesta esteira de pensamento, o pensador alemão defende a idéia de que todo
aquele que vive a norma constitucional acaba por interpretá-la. E que, em assim sendo, a
sociedade se converte em força produtiva de interpretação, potencialmente apta a oferecer
alternativas para a interpretação constitucional, tornando-se impensável uma interpretação da
34 Ibidem, p. 23.
32
Constituição sem a participação do conjunto social pluralista (órgãos estatais, participantes de
processos, peritos, pareceristas, dentre outros).35
Em uma sociedade aberta, a democracia não se desenvolve apenas por
representação, mas também mediante a controvérsia sobre alternativas, possibilidades e
necessidades da realidade, bem como sobre o “concerto” científico das questões
constitucionais, nas quais não pode haver interrupção, assim como não existe e nem deve
existir dirigente.36 Neste diapasão, a interpretação é vista através de um enfoque democrático,
sintonizada com uma sociedade aberta.
A tese concretizadora de Häberle desdobra-se em três pontos principais: a
ampliação do círculo de intérpretes da Constituição; o conceito de interpretação como um
processo aberto e público; e, a referência desse conceito à própria Constituição, como
realidade constituída.
Com efeito, o professor alemão expõe sua tese, afirmando que:
“a interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" (Zünftamässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.” 37
O método concretista de Häberle, apesar de ser atraente e de contribuir para
uma ideologia democrática, demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos
fundamentais: sólido consenso, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos
não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
35 Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 2002. 36 Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que “há muitas outras formas de participação direta do povo na vida política e na direção dos assuntos públicos, que dão configuração concreta à democracia participativa, que não elimina as instituições da democracia participativa. Ao contrário, reforça-a, fazendo com que a relação governo/povo, representante/representado, seja mais estreita e mais dinâmica, propiciando melhores condições para o desenvolvimento de um governo efetivo do povo, pelo povo e em favor do povo.” (SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. Estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2002). 37 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 2002, p. 13.
33
Ademais, a ampliação de interpretações pode conduzir a uma interpretação
duvidosa e imprecisa, indubitavelmente descomprometida com a segurança jurídica e com a
unidade da constituição.
1.5.4.3. Método Concretista de Friedrich Muller
A Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Muller38 está inserida no campo
da metodologia, mas assim como as demais doutrinas concretistas, guarda ligação com as
teorias da norma e da Constituição.
Pressupõe uma teoria da norma estabelecida a partir da relação norma-
realidade, demandando do operador no processo de concretização do Direito, uma intervenção
mais ativa e criadora.39
A concretização normativa, no método de Muller, se processa através de um
trabalho sobre os dados lingüísticos do texto normativo e sobre os dados fáticos, culminando
na definição de um programa normativo que expressa o modelo de ordenação e de um campo
normativo40 que traduz um segmento da realidade correlata.
A interpretação conjuga o programa normativo com o campo de mesma
natureza, ressaltando as possibilidades mais ajustadas às demandas da realidade pertinente a
determinada norma. Esta norma jurídica construída não é uma norma individual, eis que o seu
campo normativo, composto por elementos de um setor da realidade, pode ser aplicável a
casos análogos.
A norma-decisão é a decisão individual, a qual terá como base a norma-
jurídica.41 Ao aplicar esta norma-decisão, o juiz deverá demonstrar que esta decisão que ele
concretizou pode ser imputada à norma jurídica por ele invocada e, por sua vez, que esta
provêm de um texto do qual ele partiu.
Na ótica do criador do método, utilizando-se as premissas da teoria proposta,
resta superada a interpretação como reconstrução da vontade do legislador, haja vista que a
decisão normativa somente é extraída com o exame de um caso concreto. Também fica
38 MULLER. Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Tradução de Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 39 “Não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentado nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão jurídica. (MULLER. Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Tradução de Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p. 50). 40 Na tradução que ora se utiliza, o autor vale-se da expressão âmbito normativo ou âmbito da norma. Na doutrina, há, também, outras terminologias, como domínio normativo. 41 O texto da Constituição não se confunde com a norma jurídica, pois este é composto pelo programa e pelo campo normativo.
34
afastado o decisionismo do juiz, pois este deve decidir em conformidade com o direito,
atuando apenas como intermediário do poder no Estado de Direito.
1.5.5 Método Sistêmico-Constitucional de solução de caso concreto visando a efetivação dos
Direitos Humanos
A análise recente da evolução dos estudos voltados para o Direito
Constitucional reflete a preocupação dos juristas com a concretização das normas
constitucionais, notadamente as que cuidam dos direitos fundamentais. Uma série de pontos
de vista já foram inseridos nesta discussão, dentre eles a tentativa de interpretação dos direitos
fundamentais como instituições (Häberle) e a formulação de inúmeros princípios e métodos
modernos voltados para a exegese constitucional.
Ao lado de tais idéias, situa-se o método sistêmico-constitucional elaborado
pelo Professor Rogério Gesta Leal. Partindo de uma abordagem meta disciplinar, o caso
concreto é analisado sob vários ângulos, através de um procedimento integrado de
compreensão e aplicação dos ordenamentos.
Ao analisar a fértil e bem fundamentada proposta de Gesta Leal, percebe-se
que as raízes de sua metodologia localizam-se na insuficiência dos métodos dedutivo puro e
indutivo puro, para solucionarem as questões trazidas ao Judiciário, oriundas das complexas
relações sociais contemporâneas.42
Enquanto procedimento investigativo, o método criado por Gesta Leal
“trabalha com a noção de desconfiança de fórmulas e equações prontas para enfrentar
problemas sociais e a certeza de que o modelo cartesiano de pensar esgotou as estratégias que
moldaram um homem dolorosamente fraturado em sua condição de ser no mundo”.43
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a metodologia sistêmico constitucional de
solução do caso concreto vai se fundar numa abordagem dos casos judiciais a partir de sua
natureza meta-normativa, bem como em um procedimento global integrado.
42 Na dicção de Rogério Gesta Leal, as formas de interpretação da norma classicamente utilizadas pelos sistemas romano-germânicos (dedutivo puro) são demasiadamente presos à intelecção da regra jurídica, utilizando muito mais métodos gramaticais e da mens legisiatoris, do que buscando formas de emancipação e adequação da norma aos fatos contemporâneos.O método indutivo também apresenta insuficiências a despeito de partir exatamente deles para encontrar possíveis respostas normativas. (LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio). 43 LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio), p.128.
35
O método referido norteia-se por algumas idéias que guiam sua aplicação, as
quais, não por outro motivo, estarão presentes em todos os momentos de abordagem do caso
concreto. Neste sentido, são elas: a idéia da re-ligação; a idéia do debate; a idéia de
compreensão; a idéia de magnanimidade; a idéia de incitação às boas vontades, visando
estimular uma associação de esforços voltados a explorar os sentimentos mais nobres e
humanistas; a idéia da resistência, para opor às barbáries institucionalizadas em nosso
cotidiano uma certa postura alternativa de vida e sentimentos.
Em um primeiro momento, o que se estará analisando será o problema inter-
pessoal ou coletivo, a partir de seu enfoque e contextualização social. Nesta etapa, verificar-
se-á a natureza social do conflito, os sujeitos conflitantes, a história detalhada; as variáveis
econômicas, políticas, culturais, religiosas, afetivas, sexuais, etc. e em que medida tais
elementos atingem os sujeitos conflitantes ou mesmo podem conformar o conflito em si.
O estudo das particularidades do caso é indispensável ao sucesso da
metodologia. Desta forma, a análise pormenorizada dos elementos conformadores do
processo implica, inexoravelmente, em uma decisão satisfatória.
O que prepondera, portanto, é a parte fática, marcada pela coleta das
informações e das razões identificadoras dos sujeitos em litígio e do objeto a ser enfrentado na
lide.
Neste aspecto, é indispensável frisar que todas as questões e variáveis direta e
indiretamente ligadas ao conflito, às partes envolvidas44 e ao objeto sejam suscitadas, de
forma a possibilitar a percepção clara dos fundamentos e razões fáticas, para se evitar
determinadas padronizações tradicionais que a jurisprudência recorrentemente tem imposto à
tradição jurídica ocidental.
Ainda com relação à delimitação fática do objeto, devem os pedidos judiciais
serem certos e determinados, haja vista que a certeza e a determinação são verdadeiras
qualidades que não se excluem, mas se somam na lógica do sistema jurídico. Outro ponto
relevante que se insere nesta fase é a ponderação acerca das funções e finalidades dos direitos.
Significa dizer que os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais devem
permanecer no plano da função a que devem desempenhar, sob pena de se cometer um desvio,
um abuso de direito; o ato abusivo é o ato contrário ao fim da instituição, à sua finalidade.
44 A importância da delimitação do perfil meta-jurídico dos sujeitos de direitos envolvidos em lides jurisdicionais, e as circunstâncias materiais que os cercam, é tão importante que, por vezes, a própria legislação é que impõe tal aferição, inclusive para os fins de resolver o litígio, como ocorre no âmbito das relações de consumo e laborais, quando se impõem considerar uma das partes como hipossuficiente em face da outra.
36
Em um segundo momento, a abordagem se voltará para os elementos
dogmático-positivos dos temas/problemas propostos, numa perspectiva sistêmica, reflexiva e
crítica.
As normas45 aplicáveis ao caso deverão ser levantadas partindo da idéia da
concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as regras de Direito numa grande
unidade ordenadora das relações sociais.
Nesta etapa o operador selecionará no ordenamento jurídico, dentre as regras e
princípios constitucionais e infraconstitucionais, o que for necessário à solução do caso
concreto.
De acordo com Gesta Leal, “no manejo deste sistema jurídico, importa ter
presente alguns critérios de aplicação das normas (regras e princípios), através de
procedimentos racionais e controláveis, dentre os quais destaca-se a ponderação”.46
A ponderação, como mecanismo de convivência de normas que tutelam
valores ou bens jurídicos contrapostos é uma alternativa para a busca de um resultado
socialmente desejável.47
Outro ponto relevante na metodologia de Leal é a forma de se interpretar o
ordenamento jurídico, que deve pautar-se em premissas filosóficas, metodológicas e
epistemológicas, sob pena de comprometer todo o procedimento.
Finalmente, o terceiro e último momento será marcado pela avaliação crítica e
aprofundada, a partir dos elementos reunidos na fase anterior.
Apresentados os mais relevantes métodos modernos de interpretação, cumpre
destacar com maior ênfase a técnica da ponderação, ante sua especial importância no deslinde
das questões que envolvam interesses constitucionais em aparente divergência.
1.6. A Ponderação e os Direitos Fundamentais
O ordenamento jurídico, como se sabe, é composto por normas
harmonicamente articuladas. Para seu correto funcionamento, uma situação fática não poderá
45 Não se interpretam normas. O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo.( GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo, Malheiros, 2005). 46 LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio). 47 A técnica da ponderação será objeto de análise no capítulo seguinte.
37
ter disciplina em disposições legais que se contraponham. Em havendo conflito entre leis, três
são os critérios de solução: o hierárquico, o cronológico e o da especialização.48
Entretanto, situação diversa ocorre se a antinomia verificar-se entre normas
dispostas diretamente no texto constitucional, onde tais critérios são insatisfatórios.
A uma, pois não há hierarquia entre normas constitucionais.
A duas, porque, especialmente se tais dispositivos em divergência versarem
sobre direitos fundamentais, em se aplicando os referidos mecanismos, uma norma
necessariamente ficaria prejudicada em virtude da aplicação de uma outra.
A três, pois não há direito absoluto na Constituição. Todos são dotados de
relatividade.
Diante de tal controvérsia entre normas constitucionais, surge a ponderação,
entendida como mecanismo de convivência de normas que tutelam valores ou bens jurídicos
contrapostos, como uma alternativa para a busca de um resultado socialmente desejável.
Conforme acima fundamentado, quando se trabalha com a Constituição não é
possível simplesmente escolher uma norma em detrimento das demais: o princípio da
unidade, pelo qual todas as disposições constitucionais têm a mesma hierarquia e devem ser
interpretadas de forma harmônica não admite esta solução.49
Na verdade, a ponderação se aplica a casos, onde há confrontos de razões, de
interesses, de valores ou de bens albergados por normas constitucionais. O valor desta técnica
reside na possibilidade de solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática
para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver sem
a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser
aplicadas em intensidades diferentes.
Um estudo mais aprofundado da ponderação será realizado no capítulo
seguinte do presente trabalho, eis que essencial ao embasamento teórico da tese que se busca
demonstrar.
A necessidade da utilização da ponderação em matéria constitucional penal
apresenta-se em conformidade com o moderno pensamento sobre as questões de alta
indagação decorrentes de um eventual foco de tensão existente quando em conflito os direitos
do indivíduo praticante de uma infração criminal e o direito da sociedade à segurança e 48 De acordo com o método hierárquico, a lei considerada superior, segundo o critério disposto na Constituição da República, prevalece sobre a inferior; com relação ao cronológico, aplica-se a lei posteriormente promulgada em detrimento da anterior; pelo método da especialização, a lei que confira tratamento específico à situação em tela tem prevalência sobre a lei de caráter genérico. 49 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 55.
38
incolumidade, conforme veremos nos capítulos que se seguem nesta dissertação,
apresentando-se seu embasamento teórico e sua aplicação em um estudo de caso.
Os cânones expostos apontam para um progresso da interpretação, enquanto
instrumentos de interpretação que devam ser manejados à luz de casos concretos, através de
uma atividade entre objeto e método, realidade e norma, para recíproco esclarecimento,
aproximação e explicitação. No entanto, precisam ser lapidados a fim de que possam ser
utilizados sem representar uma ameaça às legalidades democráticas do ordenamento jurídico,
cujas raízes estão na Constituição.
39
2. A PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA
PENAL
2.1. Breves apontamentos sobre a ponderação como técnica de decisão em conflitos
envolvendo direitos fundamentais
O constitucionalismo vive um momento marcado por mudanças, reflexas das
transformações operadas na sociedade. Esse conjunto de mudanças, que vêm recebendo
distintas denominações, dentre elas neoconstitucionalismo, constitucionalismo
contemporâneo e paradigma constitucional, possui alguns traços marcantes, relacionados,
principalmente, à importância outorgada aos princípios como ingredientes necessários à
compreensão da estrutura e do funcionamento de um sistema jurídico e, em particular, das
sociedades contemporâneas avançadas.50
Os direitos fundamentais, enquanto normas principiológicas, possuem uma
carga valorativa que não se coaduna com a objetividade das normas que veiculam regras de
comportamento. E como tal, por nortearem o sistema jurídico, emanando valores, podem
importar em diferentes soluções quando aplicadas a cada situação, não comportando uma
interpretação fechada e restritiva.
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal entende não haver distinção entre as
normas constitucionais, sejam elas principiológicas, ou não. Posiciona-se no sentido de que a
interpretação de direitos fundamentais conduz ao desenvolvimento de uma lógica flexível, ou
seja, de balanceamento dos valores envolvidos na situação concreta, partindo de um juízo de
razoabilidade com o fito de extrair o conteúdo dos direitos fundamentais conflitantes para
harmonizá-los, dada as circunstâncias apresentadas.
Essa mudança de concepção, derivada das evoluções das relações sociais e do
próprio direito, paulatinamente é incorporada ao discurso e à atividade desenvolvida pelo
intérprete final, que efetivamente dá vida às interpretações. Rogério Gesta Leal define bem
esse processo e ressalta que “o processo de constituição do significado do texto está
profundamente marcado pelos elementos discursivos e categoriais erigidos pelo tempo
daquela história”.51
50 ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1999. p. 309-310. 51 LEAL. Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2000. p. 132
40
Se num primeiro momento, as fórmulas abstratas e a descrição judicial
solucionavam todos os problemas, no atual estágio de desenvolvimento do Direito todo o foco
situa-se no caso concreto e em suas particularidades. São inúmeras as situações conflituosas
que emergem, o que torna inaceitável um único posicionamento já que em muitos casos há
interesses e valores colidentes.
O modelo legal racionalista, a que basta a igualdade meramente formal e que
se utiliza de conceitos quase casuísticos, como se observa com facilidade nas grandes
codificações, não mais satisfaz e é substituído por um nova concepção que vai buscar a
igualdade material e utilizar-se-á cada vez mais de conceitos jurídicos imprecisos (também
chamados conceitos jurídicos indeterminados), o que exige uma atuação mais efetiva e
criativa do Judiciário.
Os juízes, enquanto intérpretes finais do Direito, passam a desempenhar suas
funções guiados não exclusivamente pelo êxito, mas pela correção, pela pretensão de justiça,
na necessidade de justificar racionalmente suas divisões, como característica essencial de uma
sociedade democrática, na qual o poder se submete à razão e não a razão ao poder.52
A mera declaração53 do conteúdo da lei, sustentada no período liberal é
definitivamente substituída por novos e modernos instrumentos técnicos e dogmáticos de
interpretação e aplicação da lei54. Os juízes passam a co-participantes do processo de criação
do direito.
Os princípios surgem com uma nova roupagem, abandonando o papel
secundário que o positivismo jurídico havia lhes reservado. Ao lado das regras
constitucionais, passam a dar um novo sentido a todo o ordenamento jurídico. Toda a
interpretação é redimensionada e reformulada, passando a norma a ser analisada de uma
forma mais ampla, em conexão com a realidade.
52 ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1999. p. 309-310. 53 Essa idéia surgiu com a Teoria da Separação de Poderes de Montesquieu. Sustentava o jurista, a divisão do poder público em três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um composto por órgãos específicos e pessoas diferentes. Essa separação, segundo o autor, é essencial para que haja a liberdade do cidadão em se sentir seguro perante o Estado e perante outro cidadão, pois se fosse dado a mais de um desses poderes o poder de legislar e ao mesmo tempo julgar, essa medida seria extremamente autoritária e arbitrária perante o cidadão que estaria praticamente indefeso, ou seja, estaria a mercê de um juiz legislador. Na visão do jurista, cabia aos magistrados apenas a declaração da lei. (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000). 54 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
41
Novos cânones da interpretação, pautados em premissas filosóficas,
sociológicas e epistemológicas, são inseridos entre os elementos de interpretação tradicionais,
em especial o teleológico e o sistemático, com o objetivo de acompanhar as mudanças
processadas na sociedade e de promover uma aplicação mais justa da lei.
Nesse panorama, acompanhando as regras de interpretação já analisadas no
capítulo anterior, surge a ponderação como “a técnica jurídica de solução de conflitos
normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas
interpretativas tradicionais”.55
Como bem conceitua Ana Paula de Barcellos, a ponderação é uma técnica de
decisão pela qual se solucionam conflitos normativos que não puderam ser resolvidos pelos
elementos clássicos da interpretação jurídica (semântico, lógico, histórico, sistemático e
teleológico) nem pela moderna interpretação constitucional (princípios de interpretação
propriamente constitucional, interpretação orientada pelos princípios, etc.).56
Pode também ser definida como técnica de decisão que valoriza as dimensões
fáticas do problema, impondo uma coordenação e conjugação dos bens jurídicos conflitantes
ou concorrentes de forma a harmonizá-los nas circunstâncias da situação material, evitando o
sacrifício total de uns em relação aos outros.
Assim, a ponderação se aplica em situações onde há confrontos de razões, de
interesses, de valores ou de bens tutelados por normas de natureza constitucional.
A grande virtude desta técnica encontra-se, justamente, na possibilidade de
solucionar esses conflitos normativos de forma que se gere o menor abalo possível no
ordenamento jurídico. Assim, as normas em oposição continuam a conviver sem a negação de
qualquer delas, sendo certo que diante da situação fática potencialmente encadeadora de
tensão possam ser aplicadas em intensidades diferentes.
Até alguns anos atrás, essa técnica esteve vinculada à teoria dos princípios,
sendo aceita por grande parte da doutrina apenas para solucionar conflitos envolvendo
princípios de mesma hierarquia, como por exemplo, a liberdade de expressão e de imprensa
versus o direito à honra, à vida privada e à intimidade. Essa concepção surgiu com o jurista
americano Ronald Dworkin, e foi aprimorada por Alexy, que sustenta que os princípios, para
55 Conceito mencionado por Ana Paula de Barcellos. (BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p.23).
56 A estrutura geral da subsunção pode ser descrita da seguinte forma: premissa maior - enunciado normativo - incidindo sobre a premissa menor - fatos - e produzindo como conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto.
42
serem aplicados, devem ser sopesados, ao contrário das regras, que se materializam pelo
dogma do “tudo ou nada”.
Com o desenvolvimento do direito constitucional no século XX e,
conseqüentemente, da interpretação, passou-se a admitir que a aplicação da técnica da
ponderação também em tensões envolvendo normas que veiculem regras e não somente
princípios.
Assim, atualmente, vem sendo reiteradamente aplicada pelos Tribunais,
também em conflitos envolvendo regras entre si, princípios entre si e/ou entre regras e
princípios57, confirmando a tendência defendida por Humberto Ávila, segundo a qual é uma
técnica autônoma, “que, aliás, vem sendo aplicada em diversos outros ambientes que não o do
conflito de princípios”.58
Há um outro grupo de doutrinadores59, vinculados às discussões sobre a teoria
da argumentação, que tratam da ponderação como um elemento indispensável ao discurso e à
decisão racionais. Para os que defendem tal concepção, a análise ponderativa não se limitaria
às normas, atingindo todos os argumentos inerentes ao discurso, sejam eles de natureza moral,
política ou econômica.
O procedimento da técnica ponderativa, para ser aplicado de forma correta,
necessita que sejam obedecidas algumas fases (três, na verdade), a fim de se verificar ser
hipótese, ou não, de sua incidência.
Na primeira etapa, os comandos normativos conflitantes são identificados. É
importante ressalvar que, como esclarece Ana Paula de Barcellos, a norma para ser
identificada pressupõe uma análise anterior, a qual também se submete a uma interpretação
57 Vários foram os autores que já se debruçaram sobre o tema, estabelecendo distinções entre princípios e regras. Para Alexy, “a distinção não pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes”. (Apud: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005).
58 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003.
59 Apud BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 27.
43
prévia. Nessa fase são formados dois grupos contendo os valores colidentes consubstanciados
nas normas encontradas no sistema jurídico.
É indispensável, nessa fase, observar o que a doutrina alemã denomina de
núcleo essencial da norma (Wesensgehalt). Constitui o conteúdo mínimo e intangível do
direito fundamental, que deve sempre ser protegido em quaisquer circunstâncias, sob pena de
fulminar o próprio direito. Assim é que as restrições aos direitos fundamentais encontram sua
constitucionalidade na preservação ao núcleo essencial do direito.
Nesse diapasão, Otto Prado60 expõe que o núcleo essencial, ou conteúdo
essencial, "limita a possibilidade de limitar, isto é, estabelece um limite além do qual não é
possível a atividade limitadora dos direitos fundamentais". Logo, um direito fundamental só
pode ser considerado ilegitimamente restringido se seu núcleo essencial for afetado.
No segundo momento, as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões
jurídicas são analisadas. Aqui é feita a correlação dos fatos com as normas identificadas na
primeira etapa. Conquanto sejam tratados como momentos distintos pela doutrina, a primeira
e a segunda fase na prática ocorrem simultaneamente, visto não ser possível examinar a
norma de forma isolada da realidade fática.
Após uma minuciosa análise da parte jurídica e das particularidades do caso
concreto, a terceira etapa, a da decisão, se ocupa efetivamente da ponderação, ou melhor
dizendo, da distribuição dos pesos entre o grupo de normas identificado no início do
procedimento. Nesse momento, com base no princípio da proporcionalidade, o juiz graduará
as normas envolvidas, e decidirá o grupo que prevalecerá.
Tal processo, contudo, pode desencadear caminhos distintos, que irão depender
da maneira como o intérprete analisará a situação. Desde a etapa inicial, com o
reconhecimento das normas pertinentes, passando pela identificação dos fatos relevantes, até a
atribuição geral de pesos e a conclusão, todas as etapas exigem avaliações de caráter
subjetivo, que poderão variar em virtude da pré-compreensão do aplicador.
Em função desta subjetividade, é objeto de grande discussão na doutrina a
possibilidade de serem estabelecidos parâmetros de controle para esse processo, tanto
normativos, como argumentativos.
60 Apud: MORAES, Guilherme Peña de. Direitos fundamentais: conflitos e soluções. Niterói: Labor Juris, 2000.p. 65.
44
Na visão de Barcellos:
“É possível falar de uma ponderação em abstrato e de uma ponderação em concreto. A ponderação em abstrato é a desenvolvida pela dogmática jurídica considerando a metodologia própria do direito e os conflitos já identificados pela experiência. A ponderação em abstrato procura formular modelos de solução pré-fabricados (parâmetros gerais e particulares)61 que deverão ser empregados pelo aplicador nos casos que se mostrem semelhantes. Caso os modelos propostos pela ponderação em abstrato não sejam inteiramente adequados às particularidades do caso concreto, o intérprete deverá proceder a uma nova ponderação - a ponderação em concreto -, agora tendo em conta os elementos específicos da situação real. A utilidade da distinção consiste especialmente em fomentar, na doutrina, o estudo e a formulação de parâmetros que possam servir de norte ao aplicador, reduzindo a subjetividade do processo ponderativo.”62
De fato, seria fácil solucionar tais questões se estas já fossem previstas na
norma. Porém, a dinâmica social se desenvolve rapidamente e o Direito não a acompanha. Há
sempre situações inusitadas envolvendo uma diversidade de variáveis que, lamentavelmente,
não podem ser previstas pelo legislador.
Apesar dos parâmetros sugeridos pela doutrina reduzirem a gravidade dos
efeitos da ponderação, ainda assim há riscos, os quais residem na flexibilização (e na
restrição) de cláusulas pétreas (em especial de direitos fundamentais), na insegurança que o
distanciamento dos enunciados normativos produz em um Estado de Direito e na
possibilidade de casuísmos e violações ao princípio da igualdade.
De qualquer sorte, mesmo havendo um certo risco em sua aplicação, a
ponderação logrou resultados positivos, pois possibilitou que normas aparentemente
contrárias pudessem harmoniosamente conviver sem modificação de seus teores, fortalecendo
o que Konrad Hesse denominou de “força normativa da Constituição”.63
Sob outro ângulo, não há como desprezar o valor desta técnica para decisões
socialmente mais justas. O grande desafio será confiado aos órgãos jurisdicionais, que
deverão estar abertos à nova técnica, para que possam atuar de forma mais criativa e decisiva
na efetivação dos direitos fundamentais.
61 Os parâmetros gerais são utilizados em qualquer ponderação, ao passo que os específicos são aplicados apenas entre normas particulares. Na obra de Ana Paula de Barcellos foram propostos dois parâmetros gerais: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das normas que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais sobre as demais normas. (BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005). 62 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 117 63 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991.
45
2.2. A mudança no papel dos magistrados e os limites à discricionariedade judicial
Para se atualizarem, os operadores e aplicadores do direito necessitam
acompanhar os movimentos sociais. Essa tarefa é confiada aos juristas e magistrados, que
devem disciplinar esses movimentos, em consonância com o Poder Legislativo e dentro de
uma concepção histórica que lhes permita um comprometimento simultâneo com os ganhos
do passado e com as reais aspirações de futuro da sociedade.
A tendência, universalmente perceptível, é a de se criarem, a cada dia, novas
questões, isto é, novos direitos, que não surgem com o objetivo de substituírem outros
anteriores, mas, sim, somarem-se a eles.
A promulgação de Constituições abertas e uma progressiva discricionariedade
na interpretação das leis vêm permitindo à magistratura acompanhar essas mudanças rápidas
do comportamento em sociedade. Por outro lado, têm dificultado o trabalho do aplicador do
Direito Constitucional, que terá que fazer um esforço maior para extrair o significado de
termos constantes de direitos fundamentais como liberdade e igualdade.
Como postula Oscar Vilhena Vieira,
“a adoção dos princípios da liberdade e igualdade, não transforma essas expressões éticas em conceitos técnico-jurídicos, neutralizando o seu significado, assim como não encerram a disputa política sobre a natureza e direção do pacto político firmado pela comunidade no processo constituinte. Simplesmente transfere para a esfera de aplicação da constituição a disputa sobre o verdadeiro valor desses princípios. Daí os tribunais estarem sempre envolvidos nas mais intrincadas disputas de caráter político, tendo freqüentemente que resolver conflitos entre princípios e direitos.” 64
A ponderação, apesar de dilatar o campo de discricionariedade depositado
tradicionalmente nos órgãos jurisdicionais, torna as decisões judiciais mais justas, pois
possibilita que pequenas incorreções do direito sejam facilmente corrigidas pelo juiz através
da conjugação e da aplicação de mais de uma norma ao caso concreto. Além disso, possibilita
que o sistema gradualmente se renove, acompanhando as mudanças sociais.
Todas as virtudes da mencionada regra, entretanto, só se materializam quando
as decisões são legítimas, ou seja, quando estão associadas a uma argumentação jurídica
consistente, que permita seu controle pelos jurisdicionados.
64 Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html.
46
O juiz moderno não pode prostrar-se diante do caso concreto como uma
máquina insensível. Sua atividade desenvolve-se com o objetivo de pacificar com justiça o
conflito de interesses submetido a sua apreciação. Para tanto, não pode o julgador acomodar-
se sob os influxos da lógica do razoável, o juiz moderno é desafiado a assumir cada vez mais
um papel ativo e criativo na interpretação da lei, adaptando-a, em nome da justiça, aos
princípios e aos valores de seu tempo.
Sendo da essência dos princípios que eles entrem freqüentemente em conflito
entre si, cumpre ao intérprete encontrar um compromisso, pelo qual se destine, a cada
princípio, um determinado âmbito de aplicação. Diante do conflito entre princípios, não se
deve de modo algum tentar eliminar algum deles. A missão do intérprete é buscar uma
solução conciliadora, definir a área de atuação de cada um dos princípios e qual deles que
deverá prevalecer. Tal prevalência não implica restrição em abstrato da força impositiva do
princípio afastado. Em outras circunstâncias, diante de novos fatores relevantes, o princípio
antes afastado está pronto para ser aplicado.
Além disso, por conviver com conflitos oriundos de uma sociedade plural,
imprevisível, marcada por grandes desigualdades sociais e culturais, o magistrado precisa
desenvolver uma dogmática constitucional comprometida com a justiça distributiva, com a
inclusão social e a com a solidariedade.
Dentro dessa perspectiva, o Judiciário assume a obrigação de dar sua
contribuição e tal mister demanda uma interpretação mais dinâmica, mais criativa, na medida
que força os magistrados a participarem da concretização da Constituição. Não há como negar
que o espaço da discricionariedade se amplia. Entretanto, como salienta Cappelletti65, a
grande diferença em relação ao papel tradicional dos juízes é apenas de grau e não de
conteúdo, porque toda interpretação possui alguma discricionariedade.
Não há como se imaginar um julgador totalmente neutro, visto que, em
qualquer situação, é impossível desfazer-se dos conceitos, princípios e valores que foram se
amalgamando ao caráter, à personalidade e à própria alma de cada um. Os juízes são seres
que convivem em sociedade e que se sujeitam às interferências sócias, morais e religiosas.
François Ost66, jurista e filósofo francês, ao escrever sobre as imagens do
direito e sobre os três modelos de juiz, evidencia a relevância da evolução da sociedade e a
65 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993. p. 42. 66 OST, François e VAN de Kerchov, Michel. Júpiter, Hércules, Hermes: Três modelos de juez. In:Revista Doxa 14. 1993, pp. 169-194.
47
grande dificuldade em se estabelecer um modelo de magistrado que sustente a modernidade e
que esteja habilitado a compreender os problemas advindos de situações inusitadas e inéditas.
Na ótica de Ost, a mudança nas relações sociais e a própria modernização da
sociedade propiciaram ao longo dos tempos o aparecimento efetivo de três tipos de Juiz, ou
seja, de três espécies de manifestação da autoridade do magistrado no julgamento das lides.
O primeiro modelo seria o “Juiz Júpiter”, que tem sua base científica em Hans
Kelsen e sua referência no liberalismo político e econômico. Seria o modelo associado à
escola normativista do Direito e ao positivismo, o qual defende a completude do sistema
jurídico e a autoridade das leis como solução para todo e qualquer problema. Para esse
magistrado basta a igualdade formal, ignorando-se as inúmeras desigualdades existentes entre
os cidadãos.
A racionalidade infalível do legislador e do juiz, a decisão judicial como um
silogismo perfeito e a previsibilidade das decisões constituem as linhas mestras desta
concepção, que colocam o intérprete como mero reprodutor de “fórmulas perfeitas”.
Em um segundo momento, Ost destaca a figura do “Juiz Hércules”, que não se
contenta com a dogmática positivista e que vê nos princípios uma das formas de
preenchimento das lacunas deixadas pela lei. Seria o juiz típico do common law, que prioriza
a pacificação social e a solução dos conflitos e que não se conforma com as regras gerais por
considerar que estas podem não representar as principais opções dos cidadãos.
Para Ost67, o “Juiz Herculiano”68 seria uma espécie de “engenheiro social” e o
Direito um “fenómeno fáctico, complejo, formado por los comportamientos de las
autoridades judiciales”69, onde as regras são simples possibilidades jurídicas e as decisões
judiciárias o coração do sistema.
Finalmente, Ost apresenta o “Juiz Hermes”, que valoriza a circulação de idéias,
dados e informações que não estão nos códigos e nas leis, bem como incentiva os discursos.
Para “Hermes”, o campo jurídico deve ser analisado “como uma combinación infinita de
67 OST, François e VAN de kerchov, Michel. Júpiter, Hércules, Hermes: Três modelos de juez. In: Revista Doxa 14. 1993, pp. 169-194.
68 Esse modelo de juiz realça a atuação que tiveram alguns magistrados na análise das ações envolvendo o sistema de cotas nas Universidades do Brasil. Os defensores deste sistema asseveram que a Constituição prevê a desigualdade das diferenças sociais, e, diante isso, a igualdade material, e não formal, deve prevalecer.Com o sistema de cotas, as diferenças fáticas gritantes são amenizadas, iniciando a proporcionar uma igualdade jurídica material.
69 Ibidem, pp. 169-194.
48
poderes, tan pronto separados como confundidos, a menudo intercambiables; una
multiplicación de los actores, una diversidade de los roles, una inversion de las réplicas”.70 71
“Hermes” traz a imagem do Direito pós-moderno e usa a figura de uma rede
para ilustrar esta concepção. Sustenta que no sistema há recursos que podem ser utilizados
pelos próprios usuários no desate de conflitos e que estes precisam despertar para seus
potenciais jurídicos. Representa o Magistrado que valoriza as decisões obtidas pelo consenso
dos envolvidos, sem imposição externa e que incentiva as discussões, sustentando que as
decisões não devem ficar restritas aos gabinetes dos magistrados.
Como define Ost, “si Júpiter insiste en el pólo convención y Hércules em el
pólo invencion, Hermes, em cambio, respeta el carácter hermenêutico o reflectante del juicio
jurídico que no se reduce ni a la improvisación ni a la simple determinación de uma regra
superior”.72
O “Juiz Hermes” traduz-se no modelo mais apropriado para a atual fase de
desenvolvimento do Direito, pois torna palpável no processo de aplicação do direito a
utilização de conteúdos e idéias advindos de outras áreas. Para ele, o Direito é um instrumento
dinâmico de promoção social, historicamente comprometido com a correção de desigualdades
e com a consecução de padrões mínimos de equilíbrio sócio-econômico. Portanto,
incompatível com um modelo rígido e fechado de interpretação do sistema jurídico.
A grande celeuma que gira em torno das interpretações modernas e da técnica
da ponderação reside nas limitações e nos riscos à discricionariedade judicial, pois eles
existem e como definiu Cappelletti73 “com relação ao Poder Judiciário, cuidam-se de riscos
menos graves, senão por outra razão, porque exatamente por sua própria natureza e estrutura,
é o ramo menos perigoso”.
A materialização valorativa das Constituições e dos princípios, os quais são
abstratos por natureza, para servirem como postulados de justiça, precisam ter seus conteúdos
definidos e sintonizados com o ordenamento vigente. Os juízes, ao se depararem com o caso
concreto e com a colisão de valores morais, terão que enfrentar essa tarefa desenvolvendo
uma dogmática interpretativa que se harmonize com os diversos princípios morais acolhidos
pela Constituição. Essas questões podem ser deixadas à discricionariedade (decisionismo) das
maiorias eventuais dos tribunais ou engendrar uma discussão ética mais profunda. 70 Este modelo de juiz seria aquele que promove uma interpretação aberta com os envolvidos na lide, estabelecendo uma interpretação nos moldes do que propõe Peter Haberle, que convida toda a sociedade a participar da interpretação do direito. 71 Ibidem, pp. 169-194. 72 Ibidem, pp. 169-194. 73 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993.p.49.
49
Sobre esse decisionismo judicial, pontua Oscar Vilhena Vieira:
“Constituições compromissárias, como a brasileira impõem dificuldades adicionais ao judiciário. Além da obrigação de trabalhar com normas de textura aberta, que abrigam conceitos políticos e princípios morais, os juizes são obrigados a arbitrar uma competição de valores e diretivas normativas, muitas vezes contraditórios. Na ausência de um grupo hegemônico que dê ao documento constitucional uma identidade, seja ideológica, política ou econômica, o que se tem é a fragmentação do texto em pequenos acordos tópicos. Muitos desses acordos são meramente estratégicos, pois sabe-se que não terão eficácia imediata; mas também não caracterizam uma derrota na arena constituinte, o que ocorreria pela adoção de determinados interesses pelo texto constitucional, em detrimento de outros valores dele excluídos. O compromisso, configurado pela adoção de valores e princípios antagônicos, ao menos sinaliza com a possibilidade disputas futuras, por intermédio da legislação ordinária, da ação administrativa e da batalha nos tribunais. Constituições como a brasileira são resultado de um processo constituinte marcado por forte pluralismo e corporativismo, em que cada grupo organizado buscou a maximização de seus interesses e encontrou eco junto a um corpo político.74
A Constituição aponta muitas vezes para soluções distintas ao tratar de um
mesmo tema. A resolução via judiciário desses conflitos de valores impõe aos juizes
exercícios interpretativos e harmonizadores extremamente complexos e não poucas vezes
infrutíferos.
Canotilho sistematiza dois objetivos impostos aos aplicadores das normas
constitucionais (legislador, administrador, juiz): encontrar um resultado constitucionalmente
justo, através da adoção de um procedimento racional e controlável; e fundamentar
igualmente este resultado, de forma racional e controlável. Em sua visão, considerar a
interpretação como tarefa, quer dizer que toda norma é significativa, mas o significado não
constitui um dado prévio e sim o resultado da tarefa interpretativa.75
Em “Juízes Legisladores”, Cappelletti ressalta que a possibilidade de
criatividade não deve ser confundida com plena liberdade do intérprete. Assim, tanto a
atividade legislativa quanto a jurisdicional constituem processos de criação do direito e a
questão que se coloca é a distinção do modo de criação judiciária em relação ao do
Legislativo.
O direito proveniente das decisões judiciais deve ser visto como uma fonte
especial do Direito, que não se esgota com simples posicionamentos, mas como uma
argumentação racional e canalizada de forma coerente. O juiz criativo desempenha um papel
muito mais difícil e complexo, pois decide de forma ética, política e jurídica.
74 Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html. 75 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1193.
50
Nos Estados Unidos, o poder criativo dos magistrados se confunde com a
própria história do direito. Substancialistas, os juízes americanos se baseiam num sistema
cognitivo de valores fundamentais, nos quais o peso da tradição influencia fortemente, mas
não impede, pelo contrário, privilegia, a constante evolução do direito. Segundo o contexto
histórico e as circunstâncias sob as quais são lavradas, as jurisprudências passam a ter força
de lei, desde que aplicadas de forma contextual e coerentemente.
No pensamento de Dworkin76, o juiz deve ter como ponto de partida a
capacidade de manutenção e, principalmente, de reconstrução racional da ordem jurídica da
qual ele é parte. Seu construtivismo fala da criação jurisprudencial de um direito em contínua
progressão, tendo em vista a realização dos princípios de liberdade e igualdade.
Como bem leciona Clemerson Merlin Cleve, a Carta de 1988 “demanda um
Judiciário ativista no melhor sentido da expressão (não no sentido de um prisioneiro de um
decisionismo subjetivista). E exige, ainda, uma atuação do Poder Judiciário voltada para a
plena realização dos comandos constitucionais.”77
O fato de pressões político-partidárias influenciarem diretamente o produto dos
parlamentos, também é visto como um fator favorável à discricionariedade da interpretação
judicial. Os magistrados em geral não sofrem tais coações quando no exercício de seu mister,
embora não estejam imunes a erros. Há riscos nessa postura mais ousada, sobretudo quando
se considera, como propõe Habermas78, a sobrecarga de tarefas qualitativamente novas e
quantitativamente maiores, a cada dia. Esse mesmo autor enfatiza que o encarregado de fazer
cumprir as leis não deveria ser o criador das mesmas. Não obstante as críticas, a tendência ao
construtivismo parece irreversível.
Quase desnecessário se faz, entretanto, reafirmar que a concepção da jurisdição
com função meramente declarativa, passiva e mecânica é irreal e extremamente frágil.
Inóspita a um ambiente como o do Judiciário da atualidade, que requer posições mais
dinâmicas e de resultado.
O caráter criativo e ativo de uma demanda judicial se adapta, sem sombra de
dúvida, ao Estado contemporâneo, em que os efeitos das decisões ultrapassam as partes
presentes fisicamente em juízo.
76 VIANNA, Luiz Werneck (et.al). A judicialização da política e das relações sociais. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 77 CLÈVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 78 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
51
Nesse diapasão, uma vez não observado o verdadeiro e completo sentido dos
princípios esculpidos na Constituição, caberá ao julgador agir, reafirmando e,
conseqüentemente, preservando os valores e ideais valiosos à sociedade, que não por outro
motivo encontram-se expressamente reconhecidos na Lei Maior.
2.3. O princípio da proporcionalidade como principal mecanismo à aplicação da técnica
da ponderação na ocorrência de colisão entre direitos fundamentais
2.3.1 Aportes iniciais
O princípio da proporcionalidade, a partir da segunda metade do século XX,
passou a desfrutar de grande relevância no cenário jurídico mundial. Sua utilização é
freqüente nos tribunais. Mesmo que a referência não seja expressa, implicitamente tem-se
como inequívoco seu manuseio pelo julgador.
Utilizado, ordinariamente, para aferir a legitimidade das restrições de direitos.
Muito embora possa ser aplicado também com o fito de manter o equilíbrio na concessão de
poderes, privilégios ou benefícios, o princípio em tela, em essência, consubstancia uma pauta
de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso,
prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, proibição da prestação
insuficiente, direito justo e valores afins.
Precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de natureza
constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação
para todo o ordenamento jurídico.
Hodiernamente, pode-se afirmar, com total segurança, que é um dos principais,
senão o principal elemento da interpretação aplicado pelos julgadores na análise das
demandas que envolvam direitos fundamentais aparentemente em conflito que lhes são
diariamente submetidas.
A utilização em larga escala decorre do fato do princípio da proporcionalidade
ser o principal mecanismo de aplicação da técnica da ponderação. E, conforme já verificado,
esta terá lugar sempre que direitos fundamentais apresentarem-se em divergência diante em
um caso concreto.
52
2.3.2 Desenvolvimento Histórico
A primeira notícia que se tem do princípio da proporcionalidade registrado em
um texto normativo remete à Carta Magna de 1215.79 Em que pese tal menção não ter o
significado completo que atualmente o referido princípio detém, verifica-se a preocupação já
antiga da coletividade em adotar decisões dotadas de equilíbrio.80
Observada a origem remota, somente na fase do Iluminismo o princípio da
proporcionalidade passou a ter uma feição mais próxima de sua realidade atual. Afirmação de
tal concepção veio, de forma expressa, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789.
Com o passar dos séculos e seu conseqüente aperfeiçoamento, a
proporcionalidade experimentou um grande avanço no período pós-guerras do século XX.
Após a experiência nazista e dos demais regimes totalitários, a comunidade mundial viu-se na
obrigação da adoção de mecanismos que reafirmassem os direitos fundamentais. Entretanto,
tais meios deveriam ser suficientemente aptos a proteger de forma eficaz os direitos humanos
positivados em face de regimes autoritários.
Neste cenário, o princípio da proporcionalidade foi revisitado e passou a ter
uma importância vital na reafirmação dos direitos dos cidadãos em face da “mão pesada” do
Estado.
De origem européia, passou a ser concebido como um instrumento de
efetivação integral do Estado Democrático de Direito, retirando deste sua origem e força
normativa. A previsão expressa desta forma de Estado no texto constitucional tornou-se a
base propriamente constitucional do principio da proporcionalidade.
Na América Latina, porém, esta nova visão da proporcionalidade só foi
eficazmente aplicada após o término dos regimes totalitários implementados, sob a pretensa
bandeira de combate ao comunismo. Desta forma, sua nova concepção passou a ter lugar
apenas no último quarto do século XX, com o conseqüente declínio de tais governos de
exceção.
79 Carta Magna de 1215: “Item 20: For a trivial offence, a free man shall be fined only in a=proportion to the degree of his offence, and for a serious offence correspondingly, but not so heavily as to deprive him of his livelihood. In the same way, a merchant shall be spared his merchandise, and a husbandman the implements of his husbandry, if they fall upon the mercy of a royal court. None of these fines shall be imposed except by the assessment on oath of reputable men of the neighborhood. Item 21: Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the gravity of their offence.” 80 Apud FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005.
53
No Brasil, somente na segunda metade da década de 80, com o término da
ditadura militar, o princípio da proporcionalidade adquiriu sua nova forma. E tal ocorreu com
o advento da Carta Constitucional de 1988, a qual adotava expressamente o Estado
Democrático de Direito, conforme referido no prefácio e em seu artigo 1º.81
E diante desta matriz constitucional, Mariângela Gomes afirma ter o princípio
da proporcionalidade três dimensões inerentes aos valores prescritos na Carta Constitucional,
a saber: fundamentador, orientador e crítico. Fundamentador no sentido que se aplica a todo o
ordenamento jurídico; orientador, pois pré-determina os objetivos a serem alcançados pelo
ordenamento; e, por fim, crítico, na medida em que torna possível o controle jurisdicional de
todas as normas jurídicas, verificando sua compatibilidade com os valores esposados no texto
constitucional.82
2.3.3 Elementos constitutivos
Visando facilitar a aplicação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal
Constitucional Alemão, asseverou a existência de três sub-princípios informadores, quais
sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.83
O critério da adequação (ou conformidade) busca verificar a viabilidade do
meio proposto ante o fim almejado. Em outras palavras, uma solução será adequada, sob o
prisma do princípio da proporcionalidade, se a via que propõe for apta a alcançar o resultado
pretendido.
Quanto à necessidade, deve-se analisar se a opção adotada restringiu da menor
forma possível o direito fundamental em conflito. Isto é, deve-se adotar o meio restritivo
menos gravoso para o direito que será por ele afetado. E assim, incumbe saber se o meio
escolhido era efetivamente necessário, bem como se há outro que apresente-se menos danoso.
Já a proporcionalidade em sentido estrito só terá lugar após a verificação dos
postulados acima descritos. Implica em uma equação onde as vantagens obtidas pela solução
81 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). “Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)” (grifo nosso) 82 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 30. 83 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997.
54
adotada sejam superiores às desvantagens geradas. Os prejuízos causados ao direito que
restou restringido devem ser inferiores aos bônus alcançados com a opção eleita.
Frise-se, por oportuno, que a proporcionalidade em sentido estrito possui
grande importância dentro desta íntima análise do princípio da proporcionalidade, posto que,
muitas vezes, uma decisão perfeitamente adequada e necessária poderá vir a ser
desproporcional (estritamente). Não por outro motivo é qualificada como a verdadeira
ponderação.
2.3.4 Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade
A utilização da proporcionalidade como sinônimo de razoabilidade, o que
comumente se verifica, inclusive em reiterados acórdãos do próprio Supremo Tribunal
Federal, encontra em Barroso84 um árduo defensor.
Entretanto, conforme se depreende da própria origem e razão de ser de cada
instituto há real distinção entre eles.
No Brasil, por não possuir expressa previsão no texto constitucional, o
princípio da razoabilidade retira seu fundamento de validade da cláusula do devido processo
legal substantivo.85
A razoabilidade, de origem no direito norte-americana, possui maior aplicação
na restrita análise dos atos estatais. Deverá ser analisada tanto por seu viés interno, quanto
externo. Há razoabilidade interna em um ato administrativo ou normativo quando o meio
proposto for apto a atingir o fim desejado. Já a razoabilidade de natureza externa ocorrerá
quando o conteúdo do ato estatal estiver em plena conformidade com o restante do
ordenamento jurídico, sobretudo com a Constituição.
Portanto, conforme verificado, a razoabilidade não possui a mesma
complexidade que a proporcionalidade. A verificação compulsória da existência de seus três
sub-princípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) faz com que a
proporcionalidade desfrute de uma maior relevância dentro do cenário jurídico
contemporâneo.
84 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003. 85 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Artigo 5º, inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (grifo).
55
2.4. O duplo viés do princípio da proporcionalidade em matéria penal
2.4.1 A proibição do excesso de punição e a vedação à proteção insuficiente dos bens
jurídicos tutelados
Em se tratando de ponderação em matéria penal, por se referir a direitos
fundamentais de proteção, o princípio da proporcionalidade deve ser entendido sob seu duplo
aspecto. Não basta, apenas, a proteção contra os excessos no exercício do jus puniendi pelo
Estado. Será necessária, também, uma proteção suficiente dos bens jurídicos que suscitam
uma defesa estatal efetiva.
A origem desta concepção do princípio da proporcionalidade em seu viés
positivo, ou seja, a proibição à proteção insuficiente dos bens jurídicos que gozem de especial
proteção no texto constitucional, ocorreu na Alemanha, na década de 70, quando seu Tribunal
Constitucional decidiu sobre a questão do aborto, especificamente se o feto deveria gozar ou
não de proteção jurídico-penal. No julgamento, a Corte alemã considerou que o legislador, ao
implementar um dever de proteção que lhe foi imposto pela Constituição, considerando que
este não possa ser garantido satisfatoriamente de outra forma, impõe-se-lhe recorrer às normas
penais para assegurar tal defesa exigida. Na hipótese, restou assentado que o Direito Penal
poderia ser utilizado para garantir o direito à vida do feto (BverfG, Urteil v. 25.02.1975 – 1
BVF 1-6/74).86
Através deste leading case, e sua conseqüente solução pelo Tribunal
Constitucional Alemão, o princípio da proporcionalidade em matéria penal passou a ter a sua
dupla face judicialmente reconhecida.
Assim, no âmbito penal, não basta analisar a proporcionalidade somente pela
ótica da proibição do excesso na punição, deve-se, outrossim, verificar se a decisão tomada
não gerou uma proteção insuficiente do bem jurídico tutelado. A proteção a ser conferida pelo
legislador deve ser satisfatória, de modo que a exigência constitucional reste plenamente
eficaz.
Neste diapasão, se o legislador não conferiu a necessária proteção ao bem
jurídico que lhe era exigida pela Constituição, tal omissão, seja parcial ou integral, implicará
em inevitável inconstitucionalidade daquela opção política adotada. Tal situação poderá
86 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. nº 22 (julho/dezembro de 2005). Rio de Janeiro. 2006, pp. 180-181.
56
ocorrer quando forem realizadas descriminalizações de determinadas condutas que, sob o
prisma constitucional, são merecedoras de proteção pela norma penal, ante sua natureza. Da
mesma forma, com a redução de penas anteriormente cominadas e, até mesmo, com a
substituição de penas privativas de liberdade por medidas alternativas.
Ao Estado incumbe manter-se inerte de forma a viabilizar o pleno exercício do
direito à vida e do direito de liberdade do indivíduo e, concorrentemente, agir de forma a
assegurar estes mesmos direitos à coletividade, quando violados por um de seus integrantes.
Isto porque os direitos fundamentais devem ser observados não somente por uma ótica
individual, mas, também, sob o prisma da coletividade.
Porém, como bem adverte Ingo Sarlet, a perspectiva objetiva dos direitos
fundamentais legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse
comunitário prevalente, devendo-se sempre preservar seu núcleo essencial, não sendo válida,
porém, a fixação de uma regra imutável no sentido da existência de uma subordinação
constante dos direitos fundamentais (do indivíduo) em prol dos interesses fundamentais da
coletividade.87
Assim, por diversas vezes, a segurança pública terá de ser objeto de proteção
pelo Direito Penal. Quando a incolumidade pública encontrar-se violada, ou na iminência de
sê-lo, por uma conduta transgressora da norma jurídica de um agente, deverá o Estado atuar
para garantir aquele interesse público, reafirmando as premissas instituídas pela ciência
jurídico-penal.
A incolumidade pública constitui um interesse público que deverá ser
preservado pelo Direito, posto que é de interesse geral, de toda a coletividade. A norma penal
ao assegurar a incolumidade pública está, implicitamente, garantindo direitos, também, de
ordem individual, como o direito à vida, à integridade física, de um incontável número de
pessoas.88 89
O Direito Penal preconizado na Constituição atem-se a dois objetivos que
devem co-existir de forma harmônica e equilibrada: a limitação do exercício do ius puniendi
estatal, com a finalidade de garantir de eventuais excessos os direitos individuais daqueles que
se encontrem submetidos a tal tutela, e a preservação dos mandatos constitucionais de 87 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq.. 88 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª edição. São Paulo: Saraiva. 2005. p.7. 89 Damásio exemplifica hipótese em que a segurança pública encontra-se sendo violada com a ação de um indivíduo que efetua um disparo de arma de fogo em uma via pública, onde existam pessoas transitando. Inequivocamente, o agente põe em risco a vida daquelas pessoas que estavam no local, indistintamente. (JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª edição. São Paulo: Renovar. 2005. p.8).
57
criminalização, como limite à liberdade do legislador ordinário ao editar normas
despenalizadoras.90
Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição obriga o legislador a
proteger determinados bens jurídicos com sanções penais, posto que revelam valores de
grande importância à coletividade. A cominação penal à transgressão de tais bens deve ser
firme, não se é permitido a aplicação de medidas alternativas, menos severas.
Como bem observa Streck, o princípio da proporcionalidade não deverá apenas
se limitar à orientação de um ‘garantismo negativo’, posto que lhe é igualmente essencial a
adoção das diretrizes do denominado ‘garantismo positivo’.91
Portanto, a proporcionalidade em matéria penal possui uma dupla face: proíbe
o excesso estatal, mas também veda a proteção insuficiente da sociedade.
A proibição do excesso no direito de punir é dogma que há muito encontra-se
sedimentado na orientação jurídica pátria. É certo que o Estado ao definir as condutas que
configurarão delitos passíveis de punição, bem como ao aplicar a correspondente sanção, por
tais deveres encontrarem-se inseridos na seara do Direito Penal, só poderá fazê-lo no justo e
suficiente quantum à ação típica perpetrada pelo indivíduo. Qualquer excesso na punição não
será tolerado.
Da mesma forma, a proteção conferida aos bens jurídicos que são caros à
sociedade, por configurarem direitos fundamentais especiais, não poderá ser insuficiente, sob
pena de haver uma transgressão a tais declarações constitucionais. Aqui, não cabe ao Estado
deixar de realizar tal proteção social de forma efetiva, dispondo da aplicação das sanções
previstas àquelas que violem bens especiais, que por sua natureza e relevância merecem
tratamento protetivo pelo Direito Penal.
Desta forma, como bem leciona Ingo Sarlet:
“a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição do excesso, já que
vinculada igualmente a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões a direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal.”92
90 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 8.ed. São Paulo: Saraiva, 1997; MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol.1. Campinas: Bookseller, 1997; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16.ed, São Paulo: Atlas, 2000. 91 STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Ano 08, nº 07 (janeiro de 2005). Rio de Janeiro. p. 233. 92 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq..
58
O autor conclui seu raciocínio afirmando que há uma ligação fundamental
entre o dever de proteção e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais,
configurando, assim, a legitimação para o exercício do direito de punir pelo Estado. Os bens
jurídicos que merecem proteção pelo Direito Penal serão objeto de estudo no capítulo
seguinte.
É importante não se perder de vista que o sujeito que pratica uma conduta
infracional penal, da mesma forma que é titular de direitos fundamentais, está violando
direitos igualmente fundamentais de outro(s) indivíduo(s).
Decerto, um indivíduo que comete um crime não estará, automaticamente,
dispondo de seus direitos fundamentais. Mesmo transgressor de uma norma de conduta e,
conseqüentemente, do direito fundamental de terceiro(s), o agente criminoso não está,
obrigatoriamente, abrindo mão de seus direitos essenciais, mas, sim, possibilitando ao poder
estatal a aplicação da sanção que, provavelmente, irá limitá-los, como, por exemplo, com a
restrição de sua liberdade de ir e vir.
Decerto que, na própria essência do Direito Penal, tem-se como primado que a
restrição à liberdade do indivíduo transgressor da norma penal fundamenta-se na garantia à
liberdade dos demais, sujeitos passivos de tal ação infracional.
Portanto, deve-se ter como inequívoca a aplicação do princípio da
proporcionalidade como critério material para a aferição da legitimidade constitucional de
medidas restritivas de direitos fundamentais.
Assim, deve-se proibir o excesso no exercício do direito de punir pelo Estado
(Übermassverbot), bem como vedar-se uma proteção insuficiente dos bens jurídicos tutelados
(Untermassverbot) ante o cometimento de crimes e seus executores. Em outras palavras, o
garantismo deverá ser proporcional.
2.4.2 Elementos constitutivos aplicados especificamente na seara penal
Conforme já verificado, o princípio da proporcionalidade é constituído pelos
elementos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Ocorre que,
diferentemente de quando aplicado genericamente aos demais ramos do Direito, ao tratar da
norma penal, tais sub-princípios revestem-se de características próprias.
Esta concepção diferenciada teve seu reconhecimento formal pelo Tribunal
Constitucional alemão, o qual resumiu de forma objetiva os referidos requisitos, conforme
reproduzido abaixo, in verbis:
59
“De acuerdo com las exigencias de la ‘prohibición del exceso’, la limitación del derecho fundamental que aquí entra em consideración debe ser idónea para la protección eficaz del bien jurídico. Esa limitación debe ser además necesaria, lo que no sucederá cuando existan alternativas de actuación más suaves. Finalmente, la limitación debe ser proporcionada em sentido estricto, lo que significa que se encuentre em uma relación razonable com la importancia y el significado del derecho fundamental [BVerf GE 67,157(173)]”.93
Frise-se que na concepção alemã, conforme retratado no trecho supra, o critério
da adequação também é identificado como da idoneidade. São palavras sinônimas dentro da
estrutura do princípio da proporcionalidade.
Uma norma será adequada quando sua finalidade puder ser alcançada através
do meio que propõe. Desta forma, ao ser aplicado tal elemento à seara penal, a análise da lei
penal deverá ser iniciada pela identificação do bem jurídico que visa proteger. Estando o
mesmo em conformidade com os preceitos constitucionais, a referida norma restará adequada
desde que tenha observado os limites negativos e positivos impostos na concretização da
tutela do citado bem jurídico penal.
Exemplo de falta de observância pelo legislador de tais orientações
constitucionais ocorre em leis penais que tipificam condutas criminosas onde a pena
apresenta-se excessiva ou insuficiente. Em outras palavras, o meio proposto para atingir
determinado fim verifica-se inadequado.
Já o sub-princípio da necessidade, em matéria penal, consiste em identificar se
é necessária a utilização da norma penal sob análise para a efetiva proteção do bem jurídico
visado. A tutela penal só se demonstrará necessária se a proteção do bem jurídico não restar
suficiente com a utilização exclusiva dos outros ramos do Direito.
Assim, se um descumprimento contratual puder ser sanado no campo cível de
forma que o bem jurídico tutelado reste suficientemente protegido, não há que se falar em
incidência de norma penal nesta hipótese. Entretanto, se o inadimplemento de um contrato
administrativo implicar em, por exemplo, graves danos aos consumidores em geral, a tutela
penal poderá fazer-se necessária para a proteção efetiva do bem jurídico violado.94
93 Apud FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 162. 94 Nas relações de consumo, a tutela penal far-se-á necessária nas hipóteses elencadas nos artigos 63 a 74 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), posto que constituem condutas de alta gravidade para a preservação do bem jurídico acima mencionado. Frise-se que em tais casos, a mera tutela nos âmbitos cível e administrativo não apresenta-se suficiente à proteção do citado valor constitucional que o referido diploma legal visa garantir.
60
Em outro diapasão, na supressão de determinada norma penal do ordenamento
jurídico deverá ser observado pelo legislador se tal medida apresenta-se necessária à proteção
do bem jurídico tutelado. Não basta que a retirada da lex penal do universo jurídico seja
adequada à obtenção de seu fim. Só se apresentará legítima tal exclusão se, em não sendo
regulado por outro texto legal penal, o bem jurídico em tela ficar devidamente resguardado
com o tratamento conferido pelas searas cível e administrativa.95
A proporcionalidade em sentido estrito implica em identificar se os benefícios
trazidos com a opção eleita superam os prejuízos gerados pela restrição de determinado(s)
direito(s) fundamental(is).
Aplicado ao Direito Penal, tal elemento implica em verificar se a intervenção
da norma penal apresenta-se proporcional à relevância que lhe é conferida na ordem
constitucional. A sanção cominada deverá ser proporcional à gravidade da conduta tipificada,
bem como à importância que o bem jurídico tutelado desfruta dentro do sistema de proteção
instituído pela Constituição.
Em uma palavra, só haverá incidência do Direito Penal na tutela de um bem
jurídico se a mesma se verificar adequada, necessária e proporcional à sua eficaz proteção
pela ciência jurídica.
Entretanto, o princípio da proporcionalidade em sua dupla dimensão só terá
incidência em relação aos bens jurídicos que sejam passíveis de tutela pelo Direito Penal.
Neste sentido, impende-se uma análise da extensão desses valores na seara penal e do papel
que incumbe à ciência jurídico-penal no cenário contemporâneo. Tais reflexões serão objeto
de estudo no capítulo que se segue.
95 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 165.
61
3. O DIREITO PENAL SOB O NOVO ENFOQUE CONSTITUCIONAL: A
ALTERAÇÃO NO PARADIGMA DOS BENS JURÍDICOS A SEREM TUTELADOS
PELA NORMA PENAL
3.1.Considerações iniciais
As até então esporádicas ondas de violência tornaram-se um constante estado
de infringência das normas penais. O estágio atual assusta pela extrema gravidade das
infrações cometidas, grande parte com utilização de radical violência física, colocando a
comunidade em posição de absoluta impotência.
O medo é o sentimento mais comum entre as pessoas. Confrontos armados
entre criminosos pelo controle de ponto de venda de entorpecentes em plena luz do dia,
roubos cometidos com extrema violência, inclusive com o resultado morte, cada vez mais
freqüentes, inclusive tendo inocentes crianças como vítimas96, homicídios cometidos por
motivos insignificantes e repugnantes, ante a facilidade na obtenção de uma arma de fogo, são
o cotidiano de uma sociedade que vive em constante insegurança.
Olavo de Carvalho faz uma constatação que reflete de forma clara o
sintomático quadro de caos social, ao afirmar que
“nenhum governo do mundo tem hoje a autoridade para se arrogar por monopólio dos meios de segurança física: o banditismo é mais próspero do que qualquer nação da terra, cresce 7% ao ano, duplica-se a cada década, e o Banco Mundial, ao incluir oficialmente em suas análises a variável denominada Produto Criminoso Bruto, já reconhece a impossibilidade de distinguir, no sistema financeiro do planeta, a parte limpa e a suja. A expressão “quinto poder” já não é apenas um giro lingüístico. Ela assinala que boa parte da população do planeta se abriga hoje sob a proteção dos chefes do tráfico internacional, sem ligar a mínima para os chamados poderes constituídos. Estamos diante de um fenômeno histórico singular, a formação de uma nova classe dominante, sem pátria nem rosto, que dita leis e reg o mundo à margem de todas as teorias, cada dia mais fictícias, que legitimam há dois séculos todas as formas de governo conhecidas.” 97
96 Exemplo de tal circunstância verificou-se na morte de João Hélio, de seis anos de idade, morto em 07 de fevereiro de 2007, no Rio de Janeiro, após ter sido arrastado por mais de sete quilômetros por criminosos que acabaram de subtrair mediante grave ameaça exercida pelo emprego de arma de fogo o veículo que a mãe da criança conduzia. João Hélio não conseguiu se soltar inteiramente do cinto de segurança, ficando pendurado e sendo arrastado pelos criminosos por aproximadamente quinze minutos. (Notícia veiculada no sítio Folha on line de 08/02/07. Disponível em :< http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u131469.shtml>. Acesso em 10/02/07)). 97 CARVALHO, Olavo de. As armas e a nova ordem (artigo publicado no Jornal da Tarde. São Paulo, de 14.07.2004, p.34). Apud THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp.20-21
62
Inquestionavelmente o sentimento de impunidade, reinante na sociedade,
funciona como mecanismo de propulsão da violência. O indivíduo ao praticar um crime tem a
prévia convicção que a falta de operacionalidade do Estado aliada a pouca eficácia das
medidas de penalização certamente tornarão difícil sua punição.
Ademais, como ter esperança de melhora se justamente aqueles que deveriam
buscar as soluções práticas e eficientes para tais mazelas não são passíveis da mínima
confiança pela população. Não há um dia sequer que não se abra um jornal de grande
circulação e não se leia uma notícia narrando o envolvimento de agentes estatais de alto
escalão em novos casos de corrupção, como deputados federais, senadores da República,
governadores.
Verifica-se a impossibilidade de efetividade dos direitos fundamentais pelo
cidadão. Conseqüentemente, tem-se uma crise de segurança desses direitos, posto que há uma
evidente proteção insuficiente desses direitos fundamentais que deveriam ser assegurados
pelo poder público.
Isto porque os direitos fundamentais não devem ter sua natureza jurídica
restrita a meros direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, pois
configuram, também, direitos objetivos, posto que, ante a força normativa da Constituição,
representam normas de observância obrigatória pelos órgãos de poder (sob a ótica da divisão
horizontal: Legislativo, Executivo e Judiciário).98
98 Ingo Sarlet, ao tratar da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, leciona que: “apesar de encontrarmos já na doutrina constitucional do primeiro pós-guerra certos desenvolvimentos do que hoje se considera a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, é com o advento da Lei Fundamental de 1949 que ocorreu o impulso decisivo neste sentido. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência continuam a evocar a paradigmática e multicitada decisão proferida em 1958 pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no caso “Lüth”, na qual, além de outros aspectos relevantes (notadamente a referência ao conhecido – mas nem por isso incontroverso - “efeito irradiante” dos direitos fundamentais), foi dado continuidade a uma tendência já revelada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Pérez Luño, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente desde o início de sua profícua judicatura. Que também a dignidade da pessoa humana – na condição precisamente de valor e princípio central e fundamental da ordem jurídico-constitucional apresenta uma dimensão objetiva (até mesmo pelo fato de os direitos fundamentais, pelo menos em princípio, nela encontrarem o seu fundamento e referencial) resulta evidente, dispensando aqui maior referência. (SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq..).
63
Diante de tal situação, a sociedade apresenta-se descrente do exercício de seus
direitos fundamentais. Estes passam a ser vistos como utopias, em especial àqueles
pertencentes às camadas sociais mais excluídas.
Sintoma evidente desta desmotivação social é o crescente número de
simpatizantes com a adoção da pena de morte e da prisão perpétua no país, a redução da
maioridade penal para dezesseis anos, dentre outras formas extremas e desarrazoadas de
resposta ao quadro de extremo caos de ineficácia à garantia dos direitos fundamentais
vivenciado no Brasil.
Tais “soluções extremas”, de conotação evidentemente vingativa, em que pese
a situação limite existente atualmente, não se justificam dentro de um Estado Democrático de
Direito. A reiterada adoção pela sociedade dos dogmas do Movimento Lei e Ordem,
capitaneado por Michel Foucault, todas as vezes em que “ondas de violência” atingem a
comunidade, a experiência já demonstrou que remediam a situação paliativamente e por um
curtíssimo espaço de tempo.
Em vista desse impasse, cabe uma indagação: há solução para tal estado
caótico em desenvolvimento no país?
Nem tudo está perdido. Incumbe aos pesquisadores das ciências jurídicas,
políticas e sociais o estudo desta situação de colapso social, com o fito de obter soluções
efetivas para se reverter tal quadro, de forma equilibrada.
Desta forma, é essencial uma mudança de posição da ciência jurídica. Torna-se
imperiosa a implementação de uma visão crítica da realidade, em substituição aquela
meramente descritiva e passiva até então existente. Não mais se admite que o Direito
permaneça neste aparente estado de inércia ante a alta velocidade dos acontecimentos,
sobretudo aqueles relacionados à criminalidade.
E, conforme restará verificado, a causa de tal colapso jurídico-social não
resulta da insuficiência de normas, em especial de cunho penal, a tutelar tais condutas. A
problemática encontra-se na concepção adotada pela política criminal implementada no país.
Visando contribuir para a busca de soluções ao referido estado caótico do
sistema de proteção da sociedade em face da criminalidade contemporânea, serão traçadas
breves considerações sobre algumas possíveis origens de tal problemática e sobre caminhos a
serem trilhados para a cura de tais sintomas.
64
3.2. Identificação do problema – o não desenvolvimento pelo Direito Penal da mudança
de paradigma na proteção dos bens jurídicos tutelados pela Constituição
Nos séculos XVIII e XIX, duas grandes revoluções marcaram a história da
humanidade, modificando de forma substantiva a concepção de Estado e o paradigma adotado
pelo Direito: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
O caráter libertário da Revolução Francesa, com seus apelos à liberdade, à
igualdade e à fraternidade, buscando limitar o poder estatal, reforçou o princípio da
legalidade, passando a ser visto sob uma ótica extremamente individualista. As normas
criadas visavam garantir a liberdade, limitando-se o governo a fazer somente o que a lei
autorizasse, enquanto os cidadãos podiam fazer tudo o que a norma legal não vedasse.99
Apesar de não se amoldar à realidade atual, os dogmas dos iluministas tiveram
sua importância histórica, por representar a vitória de uma luta por ideais de liberdade e
democracia100, bem como por ter ajudado a implantar na consciência ocidental os valores das
garantias e liberdades individuais.
O surgimento das Cartas americana e francesa marca, respectivamente em
1787 e 1791, o primado da Lei. Interessante notar, como bem ressalta Norberto Bobbio, uma
diferença essencial de concepção entre as duas escolas, já que “os constituintes franceses
pretendiam afirmar primária e exclusivamente os direitos do indivíduo, enquanto que os
constituintes americanos relacionaram os direitos do indivíduo com o bem comum da
sociedade”.101
Havia uma rígida separação entre sociedade e Estado, sob uma concepção
individualista. Na ótica de Bobbio, não se privilegiava o poder do povo, mas o individual,
ainda que tomado um a um, de todos que compunham a sociedade.
O Estado Liberal de Direito garantia a propriedade e as liberdades individuais.
Paralelamente a toda efervescência política e social dos tempos do liberalismo,
evoluía uma nova realidade já concretizada no final do século XIX: o desenvolvimento das
indústrias. A Revolução Industrial foi capaz de promover alterações sociais profundas. 99 Neste sentido rezava expressamente o artigo 16 da Declaração dos Direitos Homem, in verbis: “Toda sociedade que não assegura os direitos, nem a separação dos poderes, não possui Constituição”. 100 Democracia – Em sociologia política, diz-se do regime político, ou forma de governo, em que a soberania reside no povo que, por sua maioria, mas sempre indiretamente, representado por uma elite reduzida de seus delegados, exerce o poder, sob o princípio da absoluta igualdade de direitos entre os cidadãos. Diz-se do governo do povo, pelo povo, para o povo” . NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. Rio de janeiro: APM Editora, 1987. 101 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.
65
A visão individualista passou a perder força na medida em que os
relacionamentos sociais passam a assumir um caráter comunitário.
As sociedades dos séculos XX e XXI desenvolveram-se e passaram a priorizar
as relações de massa em detrimento das antigas demandas inter-individuais. O coletivo passou
a preponderar sobre o individual.
Conseqüentemente, a violência que passou a incidir nessas sociedades dotadas
de maior complexidade se diferencia daquela existente nos séculos passados. O
desenvolvimento extremamente acelerado das comunidades implicou, necessariamente, em
novas modalidades de infrações à ordem social.
A autora Ruth Maria Chittó Gauer, ao analisar as sociedades pós-modernas,
identifica como fatores fundamentais ao seu colapso a profunda desigualdade social e
econômica, a miséria existente nas camadas mais excluídas da sociedade, a falta de programas
de governo que garantam as condições mínimas de vida digna aos cidadãos e, também, a
omissão estatal em implementar políticas de segurança dotadas de efetividade. Tais
elementos, associados entre si, levam à explosão da violência dentro do corpo social.102
Uma das causas prováveis desta profunda desordem social advém do
paradigma que ainda predomina na ciência jurídico-penal. Em que pese o avançado
desenvolvimento alcançado pela sociedade brasileira e, conseqüentemente, das condutas
infracionais praticadas pela mesma e contra a mesma, é certo que, hodiernamente, ainda não
foram sedimentadas as condições necessárias para o tratamento pelo Estado dos delitos de
natureza transindividual, os quais predominam na conjuntura atual.
Os direitos fundamentais relativos aos interesses de cunho coletivo, para que
sejam efetivamente assegurados, necessitam de uma real proteção pelo Direito, funcionando
este como uma blindagem normativa a eventuais transgressões.
Entretanto, a situação caótica que ocorre atualmente dentro das comunidades
em muito se deve ao fato do Direito Penal não conseguir cumprir sua função precípua de
proteção aos bens jurídicos que gozem de especial tratamento pela Constituição. Enquanto ao
Direito incumbe assegurar a convivência pacífica da sociedade, à seara penal impõe-se a
proteção dos bens jurídicos fundamentais.
Como é cediço, o Direito Penal só terá incidência quando o tratamento
conferido pelos demais ramos do Direito não for suficiente à efetiva proteção do bem jurídico
102 GAUER, Ruth Maria Chittó. A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá. 2000, p. 34.
66
violado. Portanto, sua aplicação terá natureza subsidiária, ou seja, só ocorrerá nas hipóteses de
grave violação a um direito especialmente protegido pela Constituição.
O caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal, tido como a ultima ratio
do ordenamento jurídico, acentuou ao longo dos anos a visão restritiva de sua aplicação, fruto
do ideal iluminista, surgido no Estado Liberal. Tal visão unilateral da norma penal face à
Constituição cerceou a atividade punitiva estatal.
A falta de uma doutrina contemporânea que colocasse em xeque tais princípios
liberais, tidos, então, como absolutos, fez com que o estudo das normas penais não evoluísse
na mesma velocidade que as transformações sociais e estruturais do Estado. Os dogmas
iluministas aplicáveis ao Estado Liberal se perpetuaram, passando a ter incidência, também,
no Estado Democrático de Direito.
Com tal transformação no projeto de Estado, passou-se de um modelo
estritamente legal e formalista para um de cunho constitucional e material. Em outras
palavras, a Constituição passou a ocupar a posição de norma superior e orientadora do
ordenamento jurídico e da própria organização estatal. Com efeito, os diversos ramos do
Direito passaram a ter como fonte principal a Carta Constitucional e não mais normas
infraconstitucionais esparsas.
Dalmo de Abreu Dallari identifica de forma peculiar esta mudança de modelo
de Estado, in verbis:
“A idéia moderna de um Estado Democrático de Direito tem suas raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores. A fixação desse ponto de partida é um dado de fundamental importância, pois as grandes transformações do Estado e os grandes debates sobre ele, nos dois últimos séculos, têm sido determinados pela crença naqueles postulados, podendo-se concluir que os sistemas políticos do século XIX e da primeira metade do século XX não foram mais do que tentativas de realizar as aspirações do século XVIII. A afirmação desse ponto de partida é indispensável para a compreensão dos conflitos sobre os objetivos do Estado e a participação popular, explicando também, em boa medida, a extrema dificuldade que se tem encontrado para ajustar a idéia do Estado Democrático de Direito às exigências da vida contemporânea.”103
Em razão de tal mudança de paradigma, o Direito Penal deve ser interpretado à
luz da Lei Maior, criando-se um ‘Direito Penal Constitucional’. Conseqüentemente, as
normas legais penais adquirem uma maior legitimidade, posto que tiram seu fundamento de
validade diretamente da Constituição, e não de leis de igual hierarquia.
103 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1993, p.123.
67
A evolução da dogmática jurídica leva Luciano Feldens a afirmar a existência
de uma verdadeira “Constituição Penal”, a qual seria
“o conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal requerido pela Constituição, as quais compreendem os princípios e regras gerais respeitantes à matéria criminal (penal e processual penal) positivados na ordem constitucional.”104
De igual forma, Luigi Ferrajoli afirma que incumbe ao Direito, justamente,
adotar uma posição positiva (e crítica) na efetivação dos princípios elencados no texto
constitucional, sendo refutada uma norma legal que não os observe, posto que, restará
inválida (lato sensu).105
Ao Direito Penal incumbe não só a defesa dos direitos individuais, mas,
concorrentemente, a proteção aos direitos transindividuais, ante a nova concepção que lhe é
atribuída pelos ideais do Estado Democrático de Direito. E neste sentido, conforme ensina
Cláudio Heleno Fragoso, caberá ao Estado combater as ações delituosas que atinjam
diretamente “um bem ou interesse coletivo, ou seja, a segurança de todos os cidadãos ou de
um número indeterminado de pessoas”.106
Defendendo-se ambas as esferas de direitos, ter-se-á o equilíbrio necessário ao
desenvolvimento pacífico da sociedade, fim imediato da própria razão de ser do Estado.
3.3 A evolução social e o universo dos bens jurídicos que gozam de proteção pelo Direito
Penal
3.3.1 Os alicerces dos bens jurídicos penais
Os bens jurídicos que reclamam tratamento pelo Direito Penal são compostos
pelos bens, direitos e valores que gozam de especial condição pela Constituição. São aqueles
que possuem extrema importância para a sociedade, seja para o indivíduo particularmente
(individuais) ou para a coletividade como um todo (coletivos lato sensu). O próprio texto
104 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 23. 105 Luigi Ferrajoli afirma que “la ciência jurídica há dejado de ser, supuesto que lo hubiera sido alguma vez, simple descripción, para ser crítica y proyección de su próprio objeto: crítica del derecho inválido aunque vigente cuando se separa de la Constitución; reinterpretación del sistema normativo em su totalidad a la luz de los principios estabelecidos em aquélla” (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999, p.106). 106 FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal. 3º volume. 2ª edição. São Paulo:Bushatsk, p. 765.
68
constitucional revela uma proteção maior a ser conferida a tais valores pela ciência do Direito,
in casu, pela seara penal.
Sucede que os valores que desfrutam de proteção direta pela norma penal
encontram-se em profundo desenvolvimento. Se há tempos atrás somente os bens de caráter
individual necessitavam desta tutela, atualmente outros valores reclamam tal defesa.
O surgimento do Estado Democrático de Direito faz com que os conceitos
oriundos do Estado Liberal sejam revisitados ante a nova perspectiva de funções e valores que
se inaugura com o nascente modelo estatal.
A constante mutação experimentada pela sociedade fez com que as questões
individuais cedessem, cada vez mais, um campo maior de incidência às demandas que
envolvam a coletividade. Da restrita proteção aos direitos individuais, passa-se à criação de
mecanismos de defesa de direitos coletivos (em sentido amplo). Tutela-se o meio ambiente, as
relações de consumo, a segurança pública.
No passado, apenas a defesa do indivíduo e de seus bens era preconizada pelo
Direito. Hoje, incumbe ao ordenamento jurídico a proteção não só do indivíduo, mas,
também, do grupo de indivíduos, estejam eles identificados ou não.
A noção trazida por Norberto Bobbio sobre o desenvolvimento histórico dos
direitos fundamentais, o qual pode ser identificado através das chamadas “gerações de
direitos”, apresenta-se de grande valia.107 108
Tendo por base o ideal trazido pela Revolução Francesa de 1789, qual seja
“liberdade, igualdade e fraternidade”, podem ser identificadas as denominadas dimensões de
direitos fundamentais.
A primeira é composta pelos direitos de natureza individual, os quais refletem
o ideal da ‘liberdade’, necessitando para sua livre fruição de uma abstenção do Estado.109
Entretanto, observou o legislador que a mera existência de direitos individuais
não seria suficiente para assegurá-los de forma integral a todos os integrantes da comunidade.
A igualdade que se verificava na primeira dimensão era meramente formal. Surge, então, a
segunda fase, onde, embasados no dogma da ‘igualdade’, os direitos sociais passam a ser
107 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus. 2004. 108 A expressão “geração” utilizada por Norberto Bobbio não apresenta-se dotada de profunda técnica, posto que, na verdade, tal “geração” – na concepção dos direitos fundamentais - não eliminaria outra “geração”; uma vez que todas convivem simultaneamente. Por tal motivo, ao invés de “gerações” de direitos, apresenta-se mais correta a utilização da expressão “dimensões” de direitos. 109 Como exemplos de direitos individuais: o direito à vida, à liberdade de locomoção, de expressão, religiosa, de exercício de atividade profissional, etc.
69
assegurados através da ação estatal. O poder governante entra em exercício com o objetivo de
garantir, efetivamente, uma igualdade verdadeira (material) entre os indivíduos.110
A vida em sociedade continuou a se desenvolver e as relações onde os
componentes poderiam ser perfeitamente individualizados deram lugar às de natureza
transindividual. Nestas, o interesse em jogo atinge um universo tão vasto de indivíduos que
torna inviável a identificação de cada um.
Diante desta nova realidade surgem os direitos transindividuais, os quais tem
como sua própria essência bens jurídicos cujo alcance subjetivo apresenta-se em grau
máximo. Tal novel espécie de direitos gera a necessidade de uma tutela própria, posto que
revela os ideais da ‘fraternidade’ e da ‘solidariedade. Ao Estado incumbe exercer uma
proteção eficiente a possíveis ataques e transgressões.111 112
O desenvolvimento dos direitos fundamentais não foi acompanhado pelo
Direito Penal. Este, via de regra, restringiu-se, apenas, a continuar a tutelar os interesses de
cunho estritamente individual.
Os bens jurídicos de natureza transindividual, expressamente reconhecidos no
texto constitucional113, não receberam tratamento adequado pelo Direito Substantivo Penal.
Para que os direitos desta natureza possam ser exercidos de forma plena, comumente far-se-á
necessária a ação do Estado a fim de efetivá-los.
Decerto que, freqüentemente, o próprio Poder Público será o agente violador
desses direitos de índole coletiva (lato sensu). Entretanto, incumbe ao próprio Poder
Constituinte a criação de mecanismos para sua proteção, a ser executado pelo próprio Estado,
seja através do Ministério Público, seja através do Terceiro Setor.
E aqui não se perca de vista que a razão de agir do Direito Penal na tutela e
proteção desses direitos só será justificada quando a Carta Constitucional assim prescrever.
Um conjunto restrito de direitos, cujo sujeito passivo será a coletividade, gozará desta especial
defesa pela norma penal, ante sua importância constitucional.
110 Exemplos de direitos coletivos: direito à saúde, à educação, ao lazer, etc. 111 Os direitos transindivduais podem ser identificados através da defesa do meio ambiente saudável, proteção ao patrimônio público em todas as suas esferas, etc. 112 O constante desenvolvimento da sociedade impende o reconhecimento da existência de uma quarta e de uma quinta dimensão de direitos. A quarta seria composta pelos direitos ligados à bioética, à manipulação genética, à clonagem humana, às ‘células-tronco’, aos alimentos transgênicos e afins. Já a quinta englobaria os direitos ligados à cibernética, à robótica, à realidade virtual e afins. 113 Exemplos: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Artigo 218: O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas (...); “Artigo 225: Todos têm direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
70
Assim, resta evidente a vinculação entre os deveres de proteção dos direitos
fundamentais pelo Estado e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, legitimando
a intervenção estatal.
Em que pese tal dedução lógica fazer-se evidente, tal não ocorre no Direito
Penal. Isto porque há uma divergência na doutrina quanto à correta conceituação a ser
atribuída aos bens jurídicos que necessitam de tratamento pela ciência jurídico-penal,
conforme veremos a seguir.
3.3.2 A busca de uma nova conceituação dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito
Penal – a divergência entre as escolas contemporâneas
Os valores intangíveis de transgressão, conforme definido na Carta
Constitucional, não receberam a integral proteção pela legislação infraconstitucional, a qual
tutelou, apenas, os bens jurídicos de natureza estritamente individual.
Tal desequilíbrio de proteção aos bens jurídicos expressos na Constituição gera
uma falsa premissa de que os interesses individuais teriam prevalência sobre os de cunho
coletivo. Embora não reflita a verdade, isto ocorre devido à própria origem do Direito Penal.
A ciência jurídico-penal originou-se como um mecanismo de combate às
infrações praticadas contra direitos de índole individual, em especial o direito de propriedade.
Assim, punia-se o menos favorecido economicamente que atentava contra os bens dos mais
abastados.
Este foco individualista manteve-se durante todo o Estado Liberal, ante a
concepção iluminista que era adotada. Ocorre que, com o surgimento do Estado Democrático
de Direito e, conseqüentemente, o nascimento de novos direitos, especialmente os de viés
coletivo (lato sensu), uma reestruturação dos ideais do Direito faz-se necessária, em especial
em seu campo penal.
Passou-se da simples defesa da propriedade individual para a proteção ao meio
ambiente, ao patrimônio público, à economia, às instituições do país. As relações sociais
deixaram de ter o caráter inter-individual para tornarem-se inter-comunitárias, onde seus
componentes, muitas das vezes, não podem ser especificados, ante seu caráter transindividual.
Outrossim, deve-se ter bem claro que através de violações a bens jurídicos
referentes à coletividade, tem-se, indiretamente, uma transgressão a bens jurídicos de cunho
individual. Feldens exemplifica tal raciocínio com os denominados crimes ambientais, onde
são contaminados, de forma indiscriminada, o ar e a água, gerando, inclusive, prejuízos
71
econômico-financeiras para o Estado e, conseqüentemente, direta e indiretamente à
coletividade, especialmente aos indivíduos integrantes da classe de menor renda.114
E assim, as conseqüências da prática de violações a tais bens transindividuais
atingiriam não somente um único indivíduo, mas, sim, centenas, milhares, milhões de
pessoas, posto que pertencem à coletividade como um todo.
Nesse cenário, observa-se que a própria concepção de bem jurídico a ser
tutelado pelo Direito Penal é posta em xeque, posto que torna-se imperiosa uma revisão na
própria classificação dos bens jurídicos, a fim de melhor adequá-los ao plano constitucional
contemporâneo que alicerça o Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, Maria da Conceição Ferreira da Cunha assevera que “seria
inconstitucional criar uma ordem de bens jurídicos penais de forma a inverter a ordem de
valores constitucional”.115
Na busca desta nova conceituação do bem jurídico penal, apresentam-se três
principais correntes doutrinárias: os penalistas liberais-individualistas, os minimalistas e os
comunitaristas.
Os denominados penalistas liberais-individualistas, baseados no ideal
iluminista, sustentam um sentido mais limitado do conceito, não devendo abarcar em sua
essência eventual proteção penal aos bens de interesse coletivo, mas somente aos de natureza
individual. Argumentam que caso se acolhesse na seara de proteção penal os bens daquela
essência haveria uma relativização na posição de ultima ratio do Direito Penal; ou seja, este
seria aplicado não como medida extrema, mas, indevidamente, de forma antecipada.116
Com entendimento diverso, os defensores de um Direito Penal de intervenção
mínima, defendem uma redução cada vez mais drástica nos bens a serem tutelados. Assim,
partem da premissa que os equívocos do Direito Penal e os erros do processo penal são
suficientes para limitar a aplicação das sanções estatais ao indivíduo, sobretudo pois em
contradição com um bem jurídico maior, qual seja seu direito de liberdade. Com origem nos
ensinamentos de Luigi Ferrajoli, esta corrente doutrinária prega que a obtenção dos “direitos
sociais máximos” só será possível com a existência de um “direito penal mínimo”.117
114 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 59. 115 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p.238. 116 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006, nº 22 (julho/dezembro de 2005). 117 Ibidem.
72
Em sentido oposto às posições acima esposadas, apresentam-se os
comunitaristas. Asseveram quanto à necessidade de uma maior ampliação do conceito de bem
jurídico, devendo estar, inexoravelmente, jungido à realidade vivenciada pela sociedade,
como requisito fundamental à sua operacionalidade. Assim, na conceituação de bem jurídico
penal deve-se ter sempre em foco que determinados valores de natureza coletiva, previstos no
texto constitucional, necessitam, para sua própria sobrevivência e aplicação, de proteção
penal.118
Dos fundamentos apresentados pelos três posicionamentos, resta evidente que
a contradição entre tais encontra-se no seguinte ponto: de um lado há os que se prendem à
ultrapassada visão que os pensadores iluministas tinham sobre o campo de atuação da tutela
penal; bem como aqueles que defendem que com uma intervenção sancionadora cada vez
mais restrita do Estado sobre as condutas dos indivíduos, os direitos sociais terão maior
aplicabilidade; e de outro, um raciocínio mais moderno e adequado aos novos influxos
experimentados pela sociedade.
Os penalistas liberais-iluministas atem-se a uma idéia de Direito Penal
extremamente limitado; restrita aos bens jurídicos de caráter individual.
Já para os defensores do Direito Penal de intervenção mínima, a figura do
Estado é vista sempre sob um véu de desconfiança. Para tais pensadores o Estado apresenta-se
sempre com uma conotação opressora e, assim, caberia ao Direito (Penal) justamente
defender o indivíduo dessa função tendenciosamente prejudicial.
Frise-se, por oportuno, que esta corrente doutrinária, extremamente atuante nos
dias de hoje, prende-se à já ultrapassada concepção do Estado como sendo o Leviatã. E, desta
forma, o indivíduo, mesmo na posição de transgressor de uma norma de conduta de grande
relevância ao equilíbrio da sociedade, deverá sempre ser protegido da “mão pesada do
Estado”, posto que, na metáfora de Hobbes, estaria na posição de débil indefeso em face do
Leviatã.119
Em um estágio mais avançado de pensamento constitucional penal, os
comunitaristas, atentos à função transformadora inerente ao verdadeiro Estado Democrático
de Direito, buscam compatibilizar o dogma até então exclusivamente predominante, segundo
o qual caberia ao Direito (Penal) equilibrar o jus puniendi do Estado com sua inequívoca
obrigação de proteger de forma efetiva a sociedade de seus integrantes violadores contumazes
118 Ibidem. 119 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um estado Eclesiástico e Civil. 4.ed. São Paulo: Nova Cultura. 1998.
73
de suas regras de conduta. Em não sendo as mesmas respeitadas, gerar-se-ia um desequilíbrio
nas bases fundamentais da própria vida em sociedade.
Tal divergência entre as escolas do Direito Constitucional Penal
contemporâneo tem nítidos reflexos nas orientações seguidas pelos juristas brasileiros.
Sob a bandeira da defesa de um verdadeiro ‘garantismo’, o pensamento
nacional alinhou-se aos ideais expostos pelos originais penalistas liberais-iluministas, numa
postura de intervenção mínima da ultima ratio. Assim, deve-se vedar sempre o excesso na
punição estatal ao indivíduo violador de norma infracional penal, devendo ser a mesma
aplicada somente em última hipótese e com parcimônia, posto que atinge um dos bens mais
caros ao indivíduo, qual seja a sua liberdade.
Demonstrando a contradição que ocorre na própria essência deste
posicionamento, Lênio Streck ressalta que ao não anuir com a possibilidade do Direito Penal
tutelar bens jurídicos de natureza transindividual, estar-se-ia, então, de forma contraditória,
abrindo-se mão de um relevante mecanismo à obtenção do fim precípuo visado por tal
pensamento os “direitos sociais máximos”.120
Sob outro prisma, é certo que ainda recente e a cada dia agregando novos
adeptos, situa-se um entendimento de vanguarda, que, sob as lições esposadas pelos ideais
trazidos pelos comunitaristas, sustenta a necessidade do dever de proteção de determinados
bens fundamentais de cunho social através do Direito Penal.
Streck resume de forma clara o paradoxo existente entre tais correntes
doutrinárias brasileiras, esclarecendo que:
“Parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas críticos brasileiros fazem esta leitura do garantismo tão – somente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o Direito penal deve ser (sempre) examinado também através de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar a acerca do dever de proteção de determinados bens fundamenteis do Direito Penal. Isto significa dizer que, quando o legislador não realiza esta proteção via Direito Penal é cabível a utilização da cláusula de ‘proibição de proteção insuficiente’ (Unthermassverbot).” 121
Perfeito o raciocínio do autor sulista. O equilíbrio que deve existir na tutela
penal deve agregar o garantismo por seu enfoque negativo e, também, por seu prisma
positivo.
120 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006, nº 22 (julho/dezembro de 2005), p.168. 121 STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), p. 230.
74
Ademais, o garantismo penal na sua dimensão negativa acaba, não raras vezes,
privilegiando a elite econômica ou as classes mais influentes da sociedade, deixando de
criminalizar (ou mesmo descriminalizando) delitos de cunho econômico e tributário, que por
vezes prejudicam a sociedade como um todo e se revestem de alto potencial ofensivo.122
Na Europa, o Direito Penal é utilizado como mecanismo de proteção de bens
jurídicos de caráter social, como, por exemplo, nas condutas violadoras do sistema
econômico, fiscal e tributário, bem como naquelas que afetem o meio ambiente ou o
patrimônio público.
No Brasil, a incidência da tutela penal sobre os referidos bens de índole
coletiva (lato sensu) encontra fundamentação no próprio texto constitucional. Isto porque,
conforme já esposado, a tais valores foi deferida especial proteção pelo constituinte
originário, ante sua essencialidade ao desenvolvimento equilibrado da sociedade.
3.4 O papel limitador da Constituição no exercício da atividade do legislador penal
A análise da função limitadora da Carta Magna à normatização das condutas
que reclamem a tutela de natureza penal pelo legislador ordinário implica em verificar a
compatibilidade material daquela norma com as regras e princípios colacionados no texto
constitucional. Válido ressaltar que tal limitação encontra-se dotada de plena legitimidade,
posto que somente a Constituição, fruto direto do poder constituinte, poderia limitar a função
do legislador infraconstitucional, o qual representa o poder constituído.
O mestre italiano Luigi Ferrajoli sustenta que após a primeira fase do
positivismo123, onde o legislador era dotado de plenos poderes em seu atuar, prevalecendo o
princípio da legalidade em seu caráter estritamente formal, hoje está-se diante de uma
segunda fase, caracterizada pela vinculação da produção legislativa aos valores essenciais
constantes do texto constitucional, imperando-se o princípio da legalidade substancial. A
122 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq.. 123 O ápice do positivismo jurídico se deu com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Para Kelsen, o direito é uma ciência livre de ideologias, e de considerações extra-jurídicas, que preocupa-se apenas com o dever ser, não com o ser, que é fático. A norma vale não porque tem valor moral, mas porque foi produzida de maneira legítima. Na ótica de Bobbio, (...) é uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural” não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria de direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Biri, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.p.26.
75
validade da norma não decorre somente de sua compatibilidade com os requisitos formais
previstos na Lei Maior, mas, também, da observância dos princípios e dos direitos
fundamentais trazidos no texto constitucional.124
Portanto, o legislador penal deverá observar as restrições substanciais
existentes na Lei Maior, as quais possuem um duplo viés.
3.4.1 A Constituição como limite à atividade penalizadora do legislador
A prática pelo sujeito de direitos de uma determinada conduta, seja de natureza
comissiva ou omissiva, violadora do ordenamento jurídico, gera conseqüências que podem
variar conforme o bem jurídico atingido. Assim, o ato infracional poderá ter implicações
administrativas, cíveis e/ou criminais.
Quando o bem jurídico atingido não gozar de maior relevância, bem como a
conduta praticada não se constituir de considerável gravidade, os danos gerados encontrarão
suficiente tratamento na esfera cível-administrativa.
Ante o caráter subsidiário do Direito Penal, apenas quando restarem violados
bens jurídicos que desfrutem de especial proteção no texto constitucional terá incidência a
ultima ratio. Portanto, só haverá a tutela penal em hipóteses específicas.
Conforme já aduzido na presente dissertação, com o surgimento do
constitucionalismo moderno, o mecanismo de interpretação do Direito Penal foi alterado,
passando-se à sua análise sob o prisma constitucional. A norma de natureza penal deverá estar
em conformidade com a Constituição e não somente com as demais normas
infraconstitucionais, como antes ocorria.
A filtragem constitucional125 da ciência jurídico-penal implica na busca de um
maior equilíbrio na aplicação deste ramo do Direito. Assim, somente as condutas que
realmente necessitem de tratamento por uma norma penal repressiva deverão ser tuteladas
pelo Direito Penal.
Cumpre observar que o exercício regular de um direito fundamental pelo
indivíduo, em consonância com o ordenamento jurídico, não será passível de qualquer
conseqüência penal. A reprimenda estatal só incidirá quando houver abuso em tal fruição.
124 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil,. Madrid: Trotta. 1999, p. 66. 125 Expressão utilizada por Lênio Luiz Streck em sua obra Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
76
Somente a utilização desmedida de tal direito tornará necessária a aplicação da sanção penal
estatal.
Inobstante a compulsoriedade de tal tutela penal, a penalidade a ser
implementada pelo Estado, titular do jus puniendi, deverá ser proporcional à gravidade da
conduta praticada. O agente infrator deverá receber a sanção estritamente suficiente à sua
ação/omissão violadora do bem jurídico tutelado.
Tal aspecto possui grande importância na própria razão de ser do próprio
Direito Penal, posto que este possui um caráter estritamente fragmentário, de aplicação
restrita e comedida. Não poderá ser utilizado, em hipótese alguma, como mecanismo de
implementação de vingança estatal face os indivíduos violadores de suas normas de conduta.
A pena a ser aplicada pelo crime praticado deverá ter um caráter sancionador e
ressocializador ao agente infrator, bem como servir de exemplo aos demais membros da
comunidade quanto às conseqüências de sua prática.
Porém, em que pese tais aspectos, nunca a sanção penal poderá ser aplicada em
excesso. Por mais que a conduta praticada cause repulsa no meio social ante a forma que foi
praticada e/ou as conseqüências causadas, a penalização aplicada ao indivíduo infrator deverá
corresponder aos patamares regulados pela norma penal, vedando-se, sob qualquer hipótese,
excesso na punição.
Assim, a Constituição funciona como um limite à atividade penalizadora do
legislador.
3.4.2 A Constituição como limite à atividade despenalizadora do legislador
A Constituição consistirá não apenas em um limite à configuração de ilícitos
penais (e suas sanções), cuja tutela não mereça tratamento pela ciência jurídico-penal, ante a
falta de relevância do bem jurídico violado. Servirá, também, como norma de referência à
tutela de interesses relevantes à coletividade, a qual deverá ser, necessariamente, observada, a
fim de ser evitado um eventual déficit de proteção penal.
Nos dizeres de Luciano Feldens, as condicionantes impostas pela Carta Magna
ao legislador penal constituem, ao mesmo tempo, um limite material e um fundamento de
penalização no exercício da atividade legislativa complementar. Uma limitação ao vedarem a
criminalização de condutas que não necessitem de tal tratamento. Uma fundamentação
quando reclamam a normatização penal de condutas violadoras de bens jurídicos que gozem
de especial proteção no texto constitucional.
77
O legislador não poderá se deixar levar pelos influxos sociais momentâneos
pela adoção de medidas legislativas de caráter excessivamente punitivas, muitas das vezes
intencionalmente impulsionados pela mídia, atuando de modo casuístico, sem maior
preocupação com os resultados concretos e, menos ainda, com sua legitimidade
constitucional.
Desta forma, conclui-se que o legislador, ao realizar a normatização da tutela
penal, não possui uma liberdade plena e irrestrita. Ao elaborar as normas de natureza penal,
deverá sempre observar o necessário equilíbrio entre a preservação dos direitos do agente
criminoso e a proteção eficiente da sociedade, tornando, assim, o fruto de sua criação dotado
de inequívoca legitimidade.
Ressalte-se, por oportuno, que o legislador penal não terá seu poder de criação
inutilizado. O exercício de sua atividade precípua permanece integral, porém não poderá
exercê-la de forma desmedida e desvinculada. Deverá pautar-se segundo as orientações
trazidas pelos valores previstos no texto constitucional.
Em outras palavras, o legislador penal deverá guiar-se por dois limites de
observância obrigatória: um superior (proibição de excesso punitivo) e outro inferior
(proibição de proteção deficiente). Tal equação decorre diretamente da correta interpretação
da Carta Constitucional de 1988, ícone da mudança do paradigma da interpretação no Brasil,
fruto do Constitucionalismo contemporâneo.
3.4.3 A Constituição e seus mecanismos no controle da atividade do legislador penal
Como bem asseverou a Corte Alemã (Bundesverfassungsgericht) “as
prescrições que o legislador expede devem ser suficientes a uma adequada e efetiva proteção,
devendo estar fundamentadas em cuidadosas investigações e em avaliações plausíveis”.126
Portanto, na hipótese do legislador não atender a tais finalidades
constitucionais ao elaborar um texto normativo, caberá ao julgador reconhecer a
inconstitucionalidade da referida norma por excesso na punição ou por proteção deficiente do
bem jurídico previsto no texto constitucional.
No Brasil, país de constitucionalidade tardia, os juízes possuem papel de
extremo relevo no panorama constitucional inaugurado com a Carta Magna de 1988. A
“Constituição Cidadã”, seguindo os modelos das Constituições dirigentes e compromissárias 126 Acórdão BVerfGE 88,203 (STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), pp. 245/246).
78
surgidas após a 2ª Guerra Mundial, atribui ao Direito uma importância fundamental na
transformação sócio-política do país.
E dentro do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário passou a ter
importância nunca antes observada. Isto porque funciona como instrumento essencial à
efetivação dos direitos fundamentais e, através da jurisdição, constitui-se como grande
defensor dos valores materiais previstos na Carta Constitucional brasileira de 1988.127
Entretanto, muitas vezes ocorrerá a proteção insuficiente do bem jurídico
constitucionalmente tutelado ante uma omissão legislativa. Ao legislador ordinário incumbe
regulamentar o preceito de proteção constitucional, porém incide em omissão quando não o
faz, quedando-se inerte. Em razão disto, gera-se uma inconstitucionalidade por omissão.
Situação similar também poderá ocorrer quando a norma legal elaborada para tal fim não
proteger de forma suficiente o bem jurídico tutelado.
E tal controle das normas legais penais será feito através da jurisdição
constitucional.
A jurisdição constitucional, de forma sucinta, pode ser definida como o
exercício da defesa jurisdicional da Constituição. Constitui um dos mecanismos fundamentais
à efetivação do Estado Democrático de Direito, tendo duas idéias centrais: a garantia dos
direitos fundamentais e a limitação do poder estatal. Da mesma forma, apresenta-se como
instituição política essencial à garantia da supremacia da Carta Constitucional.128
Inequivocamente, o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis é a
vertente mais importante do exercício da jurisdição constitucional no Brasil.129
127 Lênio Streck resume, de forma precisa e sucinta, a transformação do Estado Liberal em Estado Social e, por fim, em Estado Democrático de Direito, in verbis: “se no paradigma liberal o Direito tinha a função meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado e Sociedade, no Estado-Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Wellfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão, em determinadas circunstancias previstas nos textos constitucionais, passa para o Poder Judiciário ou para os Tribunais Constitucionais.” (ANDRADE, André (Organizador). Constitucionalização do Direito: A Constituição como lócus da hermenêutica jurídica (Apresentação de Lênio Luiz Streck). Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2003, p. 13). 128 Conforme ensina o mestre Mauro Cappelletti, a Jurisdição Constitucional possui diversas formas de manifestação, tais como o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, o Mandado de Segurança, o Habeas Corpus, o Habeas Data, a Ação Popular, os institutos do Tribunal Constitucional Federal Alemão, as declarações da Assembléia Popular da ex-URSS, dentre outras (CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999). 129 No Brasil, adota-se o sistema misto (ou híbrido) do controle de constitucionalidade das leis. Na verdade, o denominado sistema misto nada mais é que a conjugação dos institutos do controle difuso com os do controle concentrado.
79
A questão da legitimidade das decisões jurisdicionais é uma das questões mais
importantes do direito contemporâneo, pois envolve o problema da legitimidade da decisão do
juiz em face da decisão tomada pelos representantes da maioria na casa legislativa.
Incumbe ao julgador analisar se a lex sob análise observou os ditames
orientadores da norma penal esposados na Constituição. Especificamente, deverá ser
verificado o caráter criminalizador da norma, bem como, seu aspecto despenalizador (integral
ou parcial).
Fundamenta-se o exercício do controle da constitucionalidade sobre as normas
penais, sob o enfoque da dupla face do princípio da proporcionalidade em matéria penal pelo
caráter objetivo que os direitos fundamentais desfrutam, sendo, assim, de observância
obrigatória pelo legislador.
Valendo-se do duplo viés do princípio da proporcionalidade em matéria penal,
ao realizar a ponderação, o órgão julgador deverá observar se a referida norma apresenta
coerência com o sistema jurídico de índole penal, constatando se foi evitado o excesso na
punição, bem como se a proteção ao bem jurídico foi realizada de forma suficiente à sua
integridade. Com efeito, dever-se-á extirpar exageros punitivos e déficits de proteção penal.
Frise-se, por oportuno, que o julgador deverá verificar a concordância formal e,
principalmente, material da norma legal com o texto constitucional. Isto porque, o juiz não
representa um simples aplicador de leis, mas, sim, um agente integrador do ordenamento
jurídico. Ao operador do Direito incumbe realizar a interpretação da legislação
infraconstitucional sob a luz dos direitos fundamentais previstos na Constituição, realizando-
se, assim, a filtragem constitucional da norma legal, valendo-se da técnica da ponderação
sempre que houver conflito entre os direitos constitucionais envolvidos.
O controle difuso na CRFB/1988 tem como característica a sua aplicabilidade por qualquer juiz ou tribunal, diante de um determinado caso concreto, que decidirá sobre a compatibilidade de determinado ato com a Constituição Federal, como questão prévia, imprescindível ao julgamento da lide. Neste, a declaração de inconstitucionalidade não constitui objeto principal da ação, configurando-se como questão prejudicial, ou seja, questão de direito substantivo de que depende a decisão final a tomar no processo e que fará parte da motivação do decisum, em julgamento incidenter tantum. A decisão judicial, prolatada em processo no qual foi encetado esse controle, fará coisa julgada entre as partes e com relação restrita ao caso concreto apresentado em juízo, não vinculando outras decisões. Declarado inconstitucional, o ato normativo somente poderá ter sua execução suspensa caso a inconstitucionalidade seja definitivamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, e após a edição de resolução do Senado, nos termos do artigo 52, X da Constituição Federal. No controle concentrado de constitucionalidade, diversamente, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo em tese ou omissão, independentemente da existência de uma lide. Já nessa via de controle, o próprio pedido da ação intentada será a inconstitucionalidade do ato, que deverá ser declarada no dispositivo da decisão, em julgamento principal, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em controle de constitucionalidade a nível federal ou pelo órgão especial dos Tribunais estaduais, quando em jogo o controle de constitucionalidade estadual.
80
Ao realizar a adequação da legislação infraconstitucional com as diretrizes
delineadas no corpo da Constituição, o juiz estará, também, efetivando os fins preceituados
pelo Estado Democrático de Direito.
No estudo de caso proposto no capítulo seguinte será analisada a
compatibilidade formal e substancial da lei em comento com a Carta Magna, tornando mais
fácil a compreensão desta indispensável vinculação acima retratada.
Sob os ideais desta contemporânea concepção de Estado, caberá ao Direito
Penal realizar, justamente, este equilíbrio na proteção aos direitos individuais e, no mesmo
tom, aos direitos transindividuais. Garante-se ao indivíduo infrator um tratamento justo e à
sociedade a integridade de seus direitos.
A ciência jurídica deve caminhar ao lado do desenvolvimento social. Desta
forma, a manutenção de um eventual enfoque exclusivamente individualista, em detrimento
da observância, concomitante, com os bens de natureza transindividual, ensejará um odioso
retrocesso na própria tutela estatal, eis que em total descompasso com os valores
constitucionalmente relevantes para a sociedade.
Hoje, não mais se justifica tal concepção de intervenção mínima (ou
abolicionista) do Direito Penal. Da mesma forma, não apresenta-se razoável a aplicação da
prática do “tolerância zero”, baseada na repressão integral e com extremo rigor aos delitos
cometidos, mesmo que de menor potencial ofensivo.130
Outrossim, a ciência jurídico-penal deverá atuar quando sua interferência
apresentar-se necessária à manutenção do equilíbrio social e, conseqüentemente, da própria
organização estatal. E em sendo imperiosa sua tutela em face de violações a interesses que
atinjam a comunidade, o Estado deverá agir buscando restaurar a pacificação social,
sancionando o transgressor de forma justa e estritamente suficiente.
Em assim agindo, estar-se-á efetivando o principio da proporcionalidade em
sua concepção específica dentro do Direito Penal, proibindo-se o excesso na punição ao
agente infrator e, concomitantemente, vedando-se uma eventual proteção insuficiente ao bem
jurídico violado e, conseqüentemente, à própria sociedade.
Os direitos fundamentais e a democracia convivem em uma relação de
implicação recíproca; isto é, só há democracia onde se respeitam e se efetivam os direitos
fundamentais, e vice-versa.
130 A política do “tolerância zero” teve origem nos Estados Unidos da América, tendo grande evidencia nos anos 90, quando implementada em Nova York, pelo Prefeito Rudolph Guilianni.
81
Atuando desta forma e, assim, assegurando os direitos fundamentais
colecionados no texto constitucional, os quais constituem “condições estruturantes e
essenciais ao bom funcionamento do próprio regime democrático”, conforme leciona
Gustavo Binenbojm, a atuação da justiça constitucional será a favor, e não contrária à
democracia.131
Assim, a jurisdição constitucional apresenta-se como de vital importância na
consolidação da democracia e da efetivação dos direitos fundamentais, pois só com a
prevalência dos valores trazidos pela Constituição da República é que serão alcançados estes
objetivos maiores do Estado Democrático de Direito.
3.5 A Constituição como fundamento ao tratamento penal de condutas violadoras de
bens jurídicos constitucionalmente relevantes
Conforme referido anteriormente, o conceito iluminista sobre bem jurídico
necessitava, há muito, ser atualizado. A concepção construída no Estado Liberal não mais se
coadunava com o desenvolvimento social alcançado e com uma nova forma de Estado, qual
seja o Democrático de Direito.
Se anteriormente bastava ao Direito Penal funcionar como um mecanismo de
contenção à índole penalizadora do legislador infraconstitucional, visando sempre a
preservação dos direitos e liberdades individuais, tal quadro não se apresenta mais condizente
com o aumento da criminalidade e o conseqüente desequilíbrio no exercício do ius puniendi
pelo Estado.
Buscando trazer ao cenário jurídico um novo conceito sobre o bem jurídico de
caráter penal surgem os comunitaristas. Em seus estudos, propõem um reequilíbrio na tutela
penal estatal, devendo o legislador, sem se descuidar de sua proibição em penalizar com
excesso o agente infrator, observar uma proteção suficiente ao bem jurídico atacado e, via de
conseqüência, à própria sociedade.
Assim, o bem jurídico deixa de ser somente o objeto criado pela proteção
conferida pela ciência jurídico-penal para se tornar a própria fonte da tutela penal. Opera
como a razão de ser da prestação estatal de cunho penal.
131 BINENBOJN, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira – Legitimidade Democrática e Instrumentos de Realização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
82
O Direito Penal passa a funcionar como um instrumento de defesa aos bens
jurídicos cuja proteção encontra-se necessária ante sua abordagem especial feita no texto
constitucional. O bem jurídico deixa de ser somente a conseqüência para se tornar a origem
legitimadora da extrema ratio.
Questão que vem levantando grande discussão entre os pensadores modernos
do Direito Penal, de visão comunitarista, consiste em definir se o bem jurídico que reclame
proteção penal precisa, necessariamente, estar expressamente referido no texto da
Constituição.
Um primeiro entendimento, expoente no direito internacional, sustenta a
restrição da tutela penal aos valores expressamente tratados na Lei Maior. Isto porque, em
sendo a Constituição a fonte única de validade – tanto formal quanto material – das normas
penais incriminadoras, apenas o rol de bens e direitos ali elencados gozariam de tal proteção
especial.132
Assim, mesmo que o bem atingido pela conduta praticada pelo agente não goze
de igual relevância àquele que será sacrificado pelo exercício do ius puniendi estatal, tal
sanção será legitima se, ao menos, o primeiro tiver previsão no texto constitucional.
Já uma segunda orientação, também de origem européia, caminha em sentido
diverso, ao afirmar a desnecessidade do bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal
encontrar, obrigatoriamente, previsão na Carta da República. Argumentam que caso somente
os bens jurídicos elencados na Constituição fossem suscetíveis de proteção pelo Direito Penal
estaria o legislador limitado a um grupo restrito de valores. 133
Ademais, a evolução dos interesses e bens caros à coletividade, frutos do
desenvolvimento social, não gozariam de qualquer defesa, posto que por terem nascidos de
forma recente estaria o Estado proibido de exercer sua tutela protetiva, eis que não constantes
explicitamente no texto constitucional. O simples fato de não constarem expressamente de
algum dispositivo da Lei Maior não os torna inferiores em uma imaginaria escala de valores
essenciais à comunidade.
Os autores italianos Dolcini e Marinucci expõem de forma enfática as razões
de fundo de tal posicionamento, quando afirmam que durante a história mundial há vários
exemplos de bens, sejam de natureza individual ou coletiva, que foram violados pela ordem
legal precedente, por não encontrarem prévio tratamento legal. E, desta forma, em se
132 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 51. 133 Ibidem, p.51
83
mantendo tal pensamento, novas violações a bens socialmente relevantes ocorrerão no futuro,
por mera decorrência de um empecilho formal à sua proteção pelo Direito Penal. Citam como
exemplo o meio ambiente, o qual só passou a conferir efetiva proteção pelas ordens
constitucionais em um passado recente, ante o agravamento da situação ecológica no mundo. 134
Portanto, para tal entendimento, existindo um bem jurídico dotado de
inequívoca relevância social, estará o legislador penal apto a deferir-lhe proteção, mesmo que
não encontre expressa previsão na ordem constitucional.
Caminhando nesse sentido, porém com uma construção mais harmônica,
Feldens sustenta que os bens jurídicos socialmente relevantes, mesmo que não possuam
expressa previsão no texto constitucional, sempre terão ligação com algum valor
constitucionalmente protegido. Caberia ao jurista justamente encontrar esses elos de ligação
de forma a legitimar tal proteção. Enfatiza que tal conexão deverá ser devidamente
fundamentada, sob pena de violar-se a noção precípua da Constituição como fonte exclusiva
de validade dos bens jurídicos aptos a receberam a proteção jurídico-penal.135
E sob tal raciocínio, o autor sulista afirma a existência de ‘mandados
constitucionais de penalização’, os quais poderão estar de forma expressa (formalmente) no
texto constitucional ou de forma implícita, extraídos de alguma norma constitucional
expressa, em especial as referentes aos direitos fundamentais e à efetivação do principio da
proporcionalidade na tutela penal.136
Apresentado o Direito Penal sob a nova roupagem que lhe foi conferida pela
Carta da República de 1988, ampliando a concepção do bem jurídico objeto de sua proteção,
em consonância com a moderna concepção do princípio da proporcionalidade em matéria
penal, a presente dissertação destacará no próximo capítulo um estudo de caso que dará
efetividade aos ensinamentos das teses levantadas.
134 Ibidem, pp. 52-53. 135 Ibidem, pp. 53-54. 136 Ibidem, pp. 60-68.
84
4. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO SOB A NOVA CONCEPÇÃO DO
DIREITO CONSTITUCIONAL PENAL 4.1 Considerações Iniciais
Como é cediço, um diploma legal de natureza infraconstitucional retira seu
fundamento de validade da Constituição. Tal conclusão decorre do princípio da supremacia da
Constituição, o qual já foi tratado no primeiro capítulo da presente dissertação.
Com efeito, a norma, ao ser elaborada, deverá observar um duplo aspecto:
formal e material.
Formalmente, a lei deverá ter seu processo de formação em conformidade com
os ditames formais previstos na Carta Constitucional. Tendo o processo legislativo respeitado
tais regramentos, a referida norma estará apta a ter eficácia.137
Para que a citada legislação possua validade, terá que possuir coerência
substancial com o texto constitucional. Isto é, seu conteúdo deverá ter compatibilidade
material com as regras e princípios esposados na Carta Magna.
Uma vez observados ambos os critérios, a norma legal estará dotada de
legitimidade, atributo necessário à sua aceitação e, conseqüente, adoção pelos cidadãos,
destinatários finais de sua elaboração.
A verificação da legitimidade constitucional da norma legal elaborada caberá,
em última análise, ao julgador. A ele incumbe destrinchar o texto normativo, a fim de
evidenciar a compatibilidade formal e material com a Lei Maior. Entretanto, tal processo não
será meramente estéril; mas, sim, de natureza crítica.
Neste sentido, o mestre italiano Luigi Ferrajoli resume de forma bem didática
esta função precípua do julgador, ao afirmar que “la jurisdicción ya no es la simple sujeción
del juez a la ley, sino también análisis crítico de su significado como médio de controlar su
legitimidad constitucional”.138
Portanto, somente as normas legitimamente constitucionais serão consideradas
pela jurisdição. E, conseqüentemente, apenas essas vinculam o julgador na efetivação de seu
mister. 137 O artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/420) reza que “salvo disposição em contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada. §1º Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia 3 (três) meses depois de oficialmente publicada.(...)”. 138 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999, p.106
85
O instituto da vigência encontra sua base constitucional nos princípios da
legalidade e da segurança jurídica. Conseqüentemente, a vacatio legis139 tem sua raiz
constitucional em tais pilares.
O princípio da legalidade pode ser definido como o produto mais expressivo da
orientação positivista, base da concepção moderna da Ciência do Direito.
Tal princípio ao ser aplicado no campo do Direito Penal possui relevância
fundamental na própria sistematização da matéria e, via de conseqüência, em sua própria
normatização. Isto porque, ao definir que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal” – artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna e artigo 1º do
Código Penal – adota um caráter restritivo e específico, diverso daquele aplicado às relações
de natureza cível.
Portanto, verifica-se que o princípio da legalidade, no Direito Moderno, é o
principal fundamento do Direito Penal sistematizado.
Não obstante tal constatação, o princípio da segurança jurídica, o qual tem sua
origem indireta no próprio princípio da legalidade, possui grande importância dentro da
Ciência do Direito e, em especial, no próprio ordenamento jurídico. O citado instituto é
essencial ao Direito Positivo, posto que garante a tranqüilidade às pessoas sobre a
possibilidade de praticarem determinada conduta (comissiva ou omissiva) e suas respectivas
conseqüências legais.
Assim, a certeza quanto ao efetivo início de eficácia de uma determinada lei é
essencial à segurança jurídica que deve existir entre os sujeitos destinatários da mesma, seja
direta ou indiretamente.
A problemática existente quanto à fixação da correta data da entrada em vigor
das normas repressivas da Lei nº 10.826/03, em decorrência da incerteza quanto às suas
vacatio legis, gera um panorama de insegurança jurídica, justamente contrário ao que
preconiza nossa Lei Maior e o próprio Direito Positivo.
Neste contexto, o objeto que dá origem ao presente estudo de caso reside
justamente nas controvérsias geradas quanto à efetiva vigência do denominado Estatuto do
Desarmamento (Lei nº 10.826/03), ante a contradição de dispositivos e de normas
139 Vacatio legis é uma expressão latina que designa o período decorrente do dia da publicação de uma lei até a data em que esta entra em vigor. Durante a vacatio legis ainda vigora a lei anterior. No Brasil a vacatio legis é, salvo determinação expressa da lei, de 45 dias. Adota-se o sistema sincrônico/simultâneo em que a lei entra em vigor na mesma data e em todo território nacional (artigo 1º LICC). A contagem do prazo para a entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral (artigo 8º da Lei Complementar nº 107, de 2001).
86
supervenientes que alteraram a vacatio legis do mencionado diploma. Será analisado o
referido texto legal original e suas alterações supervenientes, por outros textos legais, por
medidas-provisórias, questionando tal viabilidade jurídica e o posicionamento da doutrina e
jurisprudência sobre o tema, bem como às conseqüências de tal insegurança jurídica criada.
Sem perder o enfoque crítico, serão levantadas todas as nuances atinentes à
questão, em especial as decorrências geradas pelos posicionamentos adotados à época da
ebulição da divergência quanto à Lei nº 9.437/97 e os “novos” entendimentos que vêm se
firmando quanto à recorrente problemática agora verificada na Lei nº 10.826/03, com a
verificação das posições adotadas pelos tribunais superiores, sendo utilizada a jurisprudência
já sedimentada sobre o assunto, porém que ainda comporta discussão.
O estudo será pautado pela verificação dos interesses em conflito, propondo-se
como solução interpretação a utilização da técnica da ponderação sobre a vexata questio em
tela, sob a ótica da dupla face do princípio da proporcionalidade em matéria penal, buscando-
se uma solução equilibrada, ante uma filtragem constitucional do Direito Penal e,
conseqüentemente, das normas que o compõem.
4.2 O desenvolvimento da cultura armamentista no Brasil
O surgimento e a utilização de armas de fogo pela população brasileira remete
a tempos passados. No Brasil, tal hábito está intimamente ligado à própria forma de
colonização a que o país foi submetido.
O colonizador europeu, conhecedor de seu poderio bélico, não teve maiores
dificuldades para impor sua dominação sobre uma população primitiva e desarmada, que
valia-se, única e exclusivamente, de lanças e flechas para, inocentemente, tentar defender a
terra que possuía.
Com o advento das culturas da cana-de-açúcar e do café e, posteriormente, com
o ciclo da mineração, a civilização foi se interiorizando, revelando locais antes
completamente desabitados e que necessitavam de uma maior proteção ante os mistérios das
florestas e do desconhecido.
Baseada na equivocada crença de que armas de fogo seriam suficientes para
garantir a segurança dos homens, em especial daqueles que viviam no interior do país,
começou a se fixar a cultura do armamento civil.
87
Os ciclos econômicos experimentados pelo Brasil culminaram em um acúmulo
de riqueza significativo por um grupo limitado de pessoas. A fim de ser garantida a segurança
desta classe houve um crescimento na remessa de armas de fogo e similares da Europa para a
então colônia portuguesa.
Aliado a tal fator, a presença da família real no país e a conseqüente fixação do
centro do Império Português no Brasil e a posterior proclamação da Independência
impulsionaram a necessidade de um maior armamento interno para o exercício da defesa das
fronteiras.
Inobstante tais registros históricos, a população então existente no Brasil
cultivava o hábito de possuir armas de fogo para exercício de sua defesa pessoal e,
principalmente, de sua propriedade.
4.3 O surgimento das Leis de Armas
O elevadíssimo quantitativo de armas de fogo e similares nas mãos da
população civil passou a preocupar a monarquia nacional. Diante de tal quadro, o Código
Criminal do Império de 1830 passou a sancionar com pena de prisão a conduta de utilizar
armas offensivas, gênero no qual se inseriam as armas de fogo.140
No mesmo sentido, a Lei de 26.10.1831 tipificava em seu artigo 3º o uso ilegal
de pistolas e armas brancas, cominando pena de prisão àqueles que praticassem tal ação
delitiva.141
O Código Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais e 1932 mantinham a
proibição do uso de armas de fogo, bem como de sua fabricação.142
A Lei das Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31) também sancionava as
referidas condutas em seus artigos 18 e 19.143
140 Código Criminal do Império do Brasil de 1830: “Artigo 297: Usar de armas offensivas que forem prohibidas. Penas – de prisão por quinze a sessenta dias e de multa correspondente à metade do tempo, além da perda das armas”.(sic) 141Lei de 26.10.1831: “Artigo 3º: O uso, sem licença, de pistolas, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovellas ou qualquer outro instrumento perfurante será punido com a pena de prisão com trabalho, por um a seis meses, duplicando-se na reincidência, e ficando em vigor a disposição do Código quanto às armas proihibidas”.(sic) 142 Código Penal de 1890: “Artigo 376: Estabelecer, sem licença do Governo, fábrica de armas ou pólvora. Penas – de perda para a Nação dos objetos apreendidos e multa de 200$ a 500$.(sic) “Artigo 377: Usar de armas offensivas sem licença da autoridade policial. Pena – de prisão celular por quinze a sessenta dias.(...)”.(sic) 143 Lei das Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31): “Art. 18. Fabricar, importar, exportar, ter em depósito ou vender, sem permissão da autoridade, arma ou munição: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, ou
88
Em que pese o tratamento legal repressivo conferido às condutas relacionadas
com armas de fogo, o desaparelhamento estatal e sua ineficiência frente ao aumento
assustadoramente veloz da violência durante os séculos fez com que em pleno século XX o
país passasse a apresentar um enorme número de armas de fogo nas mãos de civis. Tal quadro
revelou-se extremamente desastroso, visto que o número de ações ilícitas cometidas com
armas de fogo, muitas em razão de acidentes domésticos, chegou a níveis alarmantes.
Diante de tal situação, o legislador constatou que as condutas relacionadas à
utilização de arma de fogo, que até o final do século XX eram tidas como meras
contravenções penais, necessitavam de regulamentação mais severa, com tratamento de crime
e com cominação adequada às suas gravidades, objetivando, precipuamente, desarmar a
população.
Frise-se, por oportuno, que nem no Código Penal de 1940 (D.L. nº 2.848/40)
havia previsão expressa da utilização de arma de fogo como crime autônomo. A tipificação
se restringia, apenas, à realização de determinada infração penal (principal) com o emprego de
arma, circunstância esta que implicaria em um agravamento da pena referente àquele crime
praticado.144
E assim, o significativo aumento da violência agravou, ainda mais, o quadro já
caótico da política de segurança envolvendo armas de fogo no país.
No cenário mundial a realidade não se mostrava muito distante. Atenta a tal
situação de emergência, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados
Americanos (OEA) e a Comunidade Européia realizaram diversos congressos no decorrer dos
anos 90 com a finalidade de discutir e propor soluções no sentido de um maior controle sobre
as armas de fogo nos países associados.145
multa, de um a cinco contos de réis, ou ambas cumulativamente, se o fato não constitui crime contra a ordem política ou social. “Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente. § 1º A pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em sentença irrecorrível, por violência contra pessoa. § 2º Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a um conto de réis, quem, possuindo arma ou munição: a) deixa de fazer comunicação ou entrega à autoridade, quando a lei o determina; b) permite que alienado menor de 18 anos ou pessoa inexperiente no manejo de arma a tenha consigo; c) omite as cautelas necessárias para impedir que dela se apodere facilmente alienado, menor de 18 anos ou pessoa inexperiente em manejá-la.” 144 Exemplos no Código Penal (Decreto-Lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940): roubo com emprego de arma (artigo 157, §2º, inciso I); quadrilha armada (artigo 288, parágrafo único). 145 Dentre os encontros mundiais organizados pela ONU, pela OEA e pela Comunidade Européia estão: IX Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo, Egito, de 29 de abril a 08 de maio de 1995; Reunião da Comissão de Prevenção do Delito e Justiça Penal (ONU), realizado em Viena, Áustria, em maio de 1996; Reunião da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD-OEA), em Caracas, Venezuela, em maio de 1996; Convenção Interamericana contra a
89
Diante de tal orientação das entidades internacionais, bem como do cenário
preocupante existente no país, em 20 de fevereiro de 1997 foi promulgada a Lei nº 9.437
(conhecida como Lei de Armas), onde as condutas relacionadas com armas de fogo passaram
a ter tratamento específico e diferenciado, com sanções e cominações pertinentes, passando a
ser consideradas crime e não mais mera contravenção penal.
O diploma legal especial tinha por objetivo: combater a violência, com o
recrudescimento na sanção penal às condutas praticadas com o emprego de armas de fogo, as
quais foram elevadas à categoria de crime; evitar a prática de crimes violentos, normalmente
realizados com a utilização de armas de fogo, e exercer um maior controle sobre as armas de
fogo existentes no país, criando-se um sistema único de registro de âmbito nacional.
A referida lei também teve o mérito de instituir em nosso país uma rigorosa
política nacional sobre as armas de fogo, especialmente no âmbito administrativo, não se
limitando somente ao aspecto criminal.
Com o passar dos anos, verificou-se que a então revolucionária Lei de Armas
(Lei nº 9.437/97), então em vigor, não mais condizia com a evolução da violência decorrente
das inúmeras inovações técnicas das armas de fogo, munições e acessórios e das novas
modalidades de ações típicas perpetradas, em especial pela alta marginalidade.
A cominação legal para tal conduta não mais cumpria seu papel de punição,
ressocialização e de exemplo à comunidade, uma vez que a população civil voltou a se armar,
diante do quadro de violência que se agravava cada vez mais, fruto do aumento das
organizações criminosas e da impotência do Estado no setor da segurança pública.
Somado a tais circunstâncias fáticas, com o advento da Lei dos Juizados
Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal (Lei nº 10.259/01), os tipos penais
referentes às condutas com armas de fogo, tipificadas no artigo 10 da Lei nº 9.437/97,
passaram a ser considerados crimes de menor potencial ofensivo, tendo em vista a simetria
que deveria existir tanto no âmbito da Justiça Comum, quanto no da Justiça Federal.146 Tal
normatização esvaziou, e muito, a eficácia da Lei de Armas, posto que tornou possível a
Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos (OEA), em novembro de 1997 da; Reunião do Conselho das Comunidades Européias, em junho de 1991. 146 Conforme entendimento predominante na doutrina e nos Tribunais pátrios, o artigo 2º caput e parágrafo único da Lei nº 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais) revogou o artigo 61 da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Comum Estadual), posto que versou sobre o mesmo assunto e, ante o princípio da simetria, terá incidência sobre a lex (anterior) dos JECrim´s da Justiça Comum Estadual.
90
aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, incidentes nos procedimentos
ocorridos no Juizado Especial Criminal, tais como a transação penal.147
Atento a tal estado deficitário e urgido pela necessidade de uma resposta
estatal, o legislador trouxe ao cenário jurídico a Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, a
qual ficou conhecida como Estatuto do Desarmamento.
Tal novo diploma, em que pese muito se assemelhar com a anterior lei, tem
como fins precípuos: o desarmamento da população civil; dificultar o porte e a propriedade de
armas de fogo pelo cidadão; a tipificação de novas condutas e o agravamento na cominação
legal dos tipos já existentes relacionados a armas de fogo, posto que muitas das vezes irão
incidir na prática de delitos mais graves executados através do seu emprego (como
homicídios, roubos, estupros, seqüestros, formação de quadrilha); a criação de um cadastro
mais técnico e mais completo para o controle das armas existentes no Brasil.
Ademais, passaram a ser identificadas como crime condutas relacionadas com
munições e acessórios, mesmo que independentemente da existência de arma de fogo na
situação fática.148 No mesmo sentido, foram agravadas as penas referentes aos crimes.
Fixado o cenário nacional ensejador de tais diplomas legais, passemos a vexata
questio do presente trabalho.
Coincidência ou não, ambas as referidas leis especiais enfrentaram/enfrentam
divergências de entendimentos quanto à sua efetiva entrada em vigor em nosso ordenamento
jurídico. Isto porque a vacatio legis de determinados tipos penais de cada uma restou
controversa.
Em que pese a questão de fundo ser a mesma, isto é, a problemática quanto à
vigência da lei, cada diploma possui situação específica diversa, razão pela qual passaremos a
análise individual de cada um.
4.4 A Lei nº 9.437/97 (Lei das Armas de Fogo)
A Lei nº 9.437/97 passou a prever como crime, e não mais como contravenção
penal, as condutas praticadas com armas de fogo. Ademais, tipificou diversas novas condutas
147 O instituto da transação penal encontra-se regulado no artigo 76 da Lei nº 9.099/95.
148 Artigos 12, 13, 14, 16, 17 e 18 da Lei nº 10.826/03.
91
envolvendo armas de fogo, bem como especificou objetos que seriam tutelados por sua
prescrição legal.
Ocorre que a divergência criada pelo conflito de datas fixadoras do termo
inicial da vacatio legis gerou incerteza quanto à efetiva vigência da reprimenda penal de tais
condutas.
A Lei de Armas, denominação pela qual ficou conhecido o mencionado
diploma legal, rezava em seu artigo 5º que o proprietário, possuidor ou detentor de arma de
fogo teria o prazo de seis meses, a partir da data da promulgação da lei, para promover o
registro da referida arma que estivesse em situação irregular.149
Neste sentido, durante tal prazo, as condutas típicas previstas no artigo 10 não
seriam aplicadas a tais agentes (artigo 20).150
Ocorre que, à época, o referido registro das armas de fogo só se tornou possível
após a publicação do respectivo Regulamento da lei, Decreto nº 2.222, o que ocorreu somente
no dia 08/05/97, logo, mais de dois meses após a lex nova.151
Tal discrepância de datas entre a publicação da lei especial e de seu respectivo
regulamento gerou dúvida quanto à data da efetiva entrada em vigor das condutas típicas
disciplinadas no artigo 10 da lei, ante a já mencionada vacatio legis de seis meses prevista no
artigo 5º. Ou a contagem do prazo deveria ser feita a partir da data da promulgação da Lei nº
9.437/97 (20/02/97), conseqüentemente as condutas típicas entrariam em vigor em
20/08/1997, seis meses após a promulgação da lei. Ou o termo inicial seria o correspondente à
data da publicação do Regulamento (Dec. nº 2.222/97), qual seja 08/05/97, entrando em vigor
as novas figuras típicas em 08/11/97, nos exatos termos do referido artigo 20 da Lei de
Armas.
O Superior Tribunal de Justiça, através de sua 5ª Turma, adotou o segundo
posicionamento152, orientação esta que foi corroborada pelo Ministério da Justiça, através de
comunicado divulgado na Imprensa Oficial.
149 Lei nº 9.437/97: “Art. 5º O proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo tem o prazo de seis meses, prorrogável por igual período, a critério do Poder Executivo, a partir da data da promulgação desta Lei, para promover o registro da arma ainda não registrada ou que teve a propriedade transferida, ficando dispensado de comprovar a sua origem, mediante requerimento, na conformidade do regulamento. Parágrafo único. Presume-se de boa fé a pessoa que promover o registro de arma de fogo que tenha em sua posse.”
150 Quanto às demais disposições, a lei já entraria em vigor na data de sua publicação (21/02/1997) (artigo 20). 151 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 30. 152 Posicionamento pacificado pelo STJ nos julgamentos: RHC nº 7.423, DJU de 15.06.1998, p.140; RHC nº 6.726, DJU de 24.11.1997, p. 61252.
92
Após a sedimentação de tal entendimento por parte do STJ e do Ministério da
Justiça, tal questão não gerou maiores controvérsias, em que pese a prévia existência do
Decreto nº 92.795/86, o qual regulamentava sucintamente as contravenções penais praticadas
com armas de fogo.
Entretanto, questão a ser analisada no presente trabalho consistirá em
definirmos se durante a vacatio legis do mencionado diploma a referida conduta seria
absolutamente atípica ou se permaneceria em vigor o artigo 19 do Decreto-lei nº 3.688/41, o
qual previa como contravenção penal tal prática, em que pese a revogação expressa de tal
dispositivo no que concerne às armas de fogo pelo artigo 21 da Lei de Armas.
Tal resposta será dada mais à frente, posto que, mutatis mutandis, tal
controvérsia se repetiu quando do advento do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03),
tornando-se imperioso um estudo sobre o tema, não meramente positivista, mas, sim, sob a
ótica da verdadeira natureza do princípio da proporcionalidade na seara constitucional penal.
4.5 Aspectos gerais da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento)
Em que pesem os grandes avanços obtidos pela Lei nº 9.437/97 no combate à
violência relacionada às condutas praticadas com armas de fogo, o desenvolvimento
tecnológico da indústria armamentista, a melhor estruturação alcançada pelas organizações
criminosas, a impotência estatal no combate ao aumento dos crimes praticados com a
utilização de armas de fogo, munições e acessórios e a conseqüente insegurança gerada na
sociedade, que passou novamente a se armar sob a ilusão de se auto-proteger, fez com que a
então Lei de Armas tornasse-se defasada e, via de conseqüência, ineficaz na normatização e,
em especial, na reprimenda de tais condutas.
Sob este cenário, foi promulgada a Lei nº 10.826/03, denominada Estatuto do
Desarmamento, a qual previu novos tipos penais, passando a regular novas formas de ações
que envolvam armas de fogo, bem como passaram a ser consideradas crime condutas
relacionadas com munições e acessórios, mesmo que independentemente da existência de
arma de fogo na situação fática. Também foram agravadas as penas referentes aos crimes.
Visa a lei a defesa da incolumidade pública, da segurança pública. Tais bens
jurídicos possuem natureza transindividual. São também protegidos na Lei de Tóxicos (Lei nº
11.343/06), no Código Nacional de Trânsito (Lei nº 9.503/97), na Lei do Meio Ambiente (Lei
nº 9.605/98), dentre outras legislações.
93
A incolumidade pública configura-se em um valor vinculado ao coletivo. Isto
é, não se refere a uma só pessoa, mas, sim, a uma comunidade, a uma coletividade. Trata-se,
portanto, de um interesse público, incumbindo ao Estado a sua preservação.153
A segurança pública constitui um bem jurídico previsto diretamente na
Constituição da República de 1988, em seu Prefácio e em seus artigos 5º caput (incolumidade
de todos os indivíduos) e 144 (incolumidade de toda a coletividade)154, gozando de especial
proteção, inclusive e finalisticamente pela norma penal. As armas de fogo, ante sua
nocividade, necessitam ser tuteladas pelo Estado, posto que põe em risco a incolumidade
pública.
Nesse diapasão, o Estatuto do Desarmamento tem como bem jurídico a ser
protegido a incolumidade pública. Objetiva-se a integridade física dos membros da
comunidade. Não é exigível que a conduta infracional em si atinja os indivíduos
isoladamente, posto que o bem jurídico tutelado é da coletividade.155
A opção do legislador em punir a conduta de quem possui uma arma de fogo
em sua residência revela-se perfeitamente em consonância com os valores trazidos pela nova
Carta Constitucional brasileira e, sobretudo, com o princípio da proporcionalidade sob seu
prisma que veda a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, no caso da Lei nº 10.826/03
a incolumidade pública. Desejou o legislador proteger a vida, a integridade física das pessoas
(coletivamente) tipificando tal conduta, inequivocamente potencializadora da prática de
crimes mais graves realizados com o emprego de arma de fogo.
Diferentemente do que possa parecer, o Estatuto do Desarmamento não é
contra a posse (em sentido amplo) de arma de fogo pelo “cidadão de bem”. Muito pelo
contrário. Caso o indivíduo preencha os requisitos legais156 poderá ter perfeitamente a posse
(em sentido amplo) de uma arma de fogo. A finalidade da lei nova é justamente proteger a
153 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 6. 154 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: (...) Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...) (grifo nosso); “Artigo 5º caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...) (grifo nosso); “Artigo 144: A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos (...)” (grifo nosso). 155 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 11.
156 Os requisitos encontram-se previstos no artigo 5º da Lei nº 10.826/03.
94
sociedade dos indivíduos que não têm aptidão e, em ultima análise, condições mínimas de ter
uma arma de fogo em suas mãos.157
Coincidentemente à Lei nº 9.437/97, a Lei nº 10.826/03 também apresenta
problemas quanto à vacatio legis de algumas de suas normas incriminadoras, em especial a de
seu artigo 12.158
4.6 A problemática referente à eficácia do artigo 12 do ED – uma interpretação sob o
critério sistemático com os artigos 30 e 32
Os artigos 30 e 32 da mencionada lei especial prevêem um prazo de 180
(cento e oitenta) dias para os possuidores de armas de fogo não registradas regularizarem-nas
ou entregá-las à Polícia Federal, sem que lhes seja imposta qualquer sanção.159
Os referidos artigos possuem vinculação direta com o artigo 12, funcionando
como impeditivos à sua eficácia. Isto porque, conforme verificado no primeiro capítulo, o
operador do Direito ao realizar a interpretação de um dispositivo legal deverá fazê-lo de
forma sistemática, e não isoladamente.
O critério sistemático de interpretação, aplicado ao Estatuto do
Desarmamento e especificamente aos seus artigos 30 e 32, consiste na análise dos dispositivos
em destaque dentro do conjunto do citado diploma legal, bem como, em uma segunda fase,
diante do ordenamento jurídico como um todo.
Assim, verifica-se que o prazo concedido aos possuidores de armas de fogo
de origem lícita, porém em situação irregular, para que procedam à sua regularização ou as
entreguem à Polícia Federal, impede que o artigo 12 tenha plena eficácia, uma vez que este
157 Em sentido contrário: THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp. 32 e 33. 158 Lei nº 10.826/03: “Artigo 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.” 159 Lei nº 10.826/03: “Artigo 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos. “Artigo 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.”
95
tutela, justamente, a conduta do sujeito que possui ou tem sob sua guarda, em sua residência
ou local de trabalho, arma de fogo de uso permitido em situação irregular.160
Raciocínio contrário implicaria em negativa de aplicação dos artigos 30 e 32
do ED, posto que prevêem a implementação de uma política de desarmamento voluntário da
população.
O artigo 12 do ED agrava consideravelmente a sanção penal dos tipos
previstos no artigo 10 da Lei nº 9.437/97. Apresentar-se-ia como um contra-senso se tal
sanção mais gravosa incidisse imediatamente, quando a própria lei prevê e estimula a entrega
das armas de fogo pela população (artigos 30 e 32).
Assim, enquanto em curso o prazo previsto nos artigos 30 e 32 do ED para o
desarmamento civil as figuras típicas do artigo 12 não terão incidência.
4.7 A prorrogação do prazo dos artigos 30 e 32 do ED por Medidas Provisórias – análise
da compatibilidade constitucional
Conforme constatado, é indubitável a correlação dos artigos 30 e 32 com o
artigo 12, o qual trata da posse de arma de fogo de uso permitido em residência ou em local
de trabalho e, conseqüentemente, permaneceu em vacatio legis até o dia 23 de junho de 2004,
data esta em que expiraria tal prazo de 180 (cento e oitenta) dias para a regularização ou a
entrega voluntária das armas de fogo.
Porém, tal prazo foi estendido por Medidas Provisórias e leis correlatas que se
sucederam após o decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias da edição anterior.
Assim, primeiramente foi editada a MP nº 174 de 18/03/04, transformada
posteriormente na Lei nº 10.884 de 2004, a qual fez a primeira prorrogação suplementar de
180 (cento e oitenta) dias no prazo originário (expirando no dia 23 de dezembro de 2004). A
seguir, veio ao cenário jurídico a MP nº 229 de 18.12.2004, convertida na Lei nº 11.118 de
2005, fixando como novo prazo fatal o dia 23 de junho de 2005. Por fim, foi publicada a MP
nº 253 de 23/06/05, posteriormente traduzida na Lei nº 11.191 de 2005, a qual fixou o prazo
derradeiro no dia 23 de outubro de 2005.
160 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 23; CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 67.
96
Feito o registro, impende-se analisar no presente trabalho a possibilidade, ou
não, de Medidas Provisórias tratarem de matéria penal e a natureza da matéria veiculada por
tais espécies normativas acima mencionadas.
Conforme reza de forma expressa o artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da
Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº
32 de 11/09/01), é vedada a edição de Medidas Provisórias que tratem de direito penal.
Em que pese o referido dispositivo constitucional não fazer distinção, surge
na doutrina uma divergência quanto à possibilidade de Medida Provisória tratar de matéria
penal, estritamente quando para beneficiar o agente criminoso.
Um primeiro entendimento sustenta tal possibilidade, ao fundamento que o
texto constitucional objetivava, efetivamente, impedir a edição de Medida Provisória somente
que viesse a prejudicar a situação do réu. Assim dever-se-ia fazer uma interpretação extensiva
na citada norma constitucional, eis que estar-se-ia efetivando um direito individual, qual seja a
liberdade do acusado.161
Já um segundo grupo de juristas, integrantes do posicionamento majoritário
na doutrina, entende que a vedação constitucional é integral. Não cabe a edição de Medida
Provisória que tenha por objeto matéria referente ao Direito Penal, seja para beneficiar ou
para prejudicar o réu. Fundamentam tal entendimento aduzindo que onde a Constituição não
fez distinção não cabe ao interprete fazer.162
Decerto, o posicionamento majoritário apresenta-se mais condizente com uma
interpretação constitucional sob o critério teleológico. Não resta dúvida que a intenção do
constituinte foi retirar do âmbito de incidência das Medidas Provisórias qualquer objeto que
tenha natureza penal.
Objetivou o constituinte vedar a possibilidade de uma só pessoa decidir sobre
a aplicação ou não de normas atinentes a direitos fundamentais, tanto de caráter individual,
quanto coletivo (lato sensu). Desta forma, são evitadas leis casuísticas e de caráter
personalíssimo. Na lição de Zaffaroni e Pierangeli, “o povo é o único soberano, a fonte do
161 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p.73; STF: RExt 254.818/PR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, Data do julgamento 08/11/2000. Disponível em <www.stf.gov.br,> Acesso em 29/12 /2006. . 162 Posicionando-se desta forma: JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 26-30; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986, p.25; MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol.1. Campinas: Bookseller, 1997, pp. 179-180.
97
poder do Estado, e, conseqüentemente, sem a intervenção legítima de seus representantes, não
pode haver lei penal”.163
Ocorre que, após uma análise mais detida das referidas Medidas Provisórias
e, em especial, de seus objetos, verifica-se que a matéria ali veiculada tem cunho
administrativo, e não penal.
Os artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/03 ao concederem o prazo de 180 (cento e
oitenta) dias, após a publicação da Lei, para que os possuidores de armas de fogo de origem
lícita, porém em estado irregular, regularizem-nas ou as entregarem à Polícia Federal, estão
tratando, inequivocamente, de uma matéria meramente administrativa. Isto é, a regularização
ou entrega das armas de fogo é um ato de natureza administrativa, extra-penal.
Em que pese a concessão de tal prazo indiretamente implicar na não-
incidência ainda que momentânea das disposições contidas no artigo 12 do mesmo Estatuto
do Desarmamento, tal ato do Poder Público tem índole estritamente administrativa. Constitui
uma autorização da Administração Pública ao cidadão para que regularize uma situação
administrativamente irregular em que se encontra.
Da mesma forma que a definição do rol das substâncias consideradas
entorpecentes é feita por uma Portaria do Ministério da Saúde, a qual tem natureza
administrativa, a fixação do prazo para regularização/entrega das armas de fogo por um
dispositivo legal, posteriormente prorrogado por Medidas Provisórias (convertidas
ulteriormente em leis), possui idêntica natureza.
Portanto, sendo a disposição contida nos artigos 30 e 32 de natureza
administrativa, não há qualquer óbice que tal matéria seja tratada por Medidas Provisórias,
não se fazendo aqui aplicável a restrição prevista no artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da
Carta Constitucional (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32 de
11/09/01).
4.8 Da efetiva eficácia de alguns dispositivos do Estatuto do Desarmamento ante a
inexistência de Regulamento especificamente editado – análise sob a ótica da dupla face
do princípio da proporcionalidade em matéria penal
163 ZAFFARONI e PIERANGELI. Direito Penal brasileiro, Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 127.
98
O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) prevê a elaboração de um
Regulamento, a fim de melhor disciplinar os aspectos técnico-administrativos constantes de
suas normas. O valor a ser pago a título de indenização ao cidadão que entregar
voluntariamente sua arma de fogo à Polícia Federal, a forma de registro dos armamentos, a
classificação das armas de fogo, munições e acessórios são matérias que seriam objeto de
regulamentação posterior.
Em 1º de julho de 2004 foi promulgado o Decreto nº 5.123, o qual
regulamentava as referidas questões técnicas da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do
Desarmamento).
Ocorre que, diante do advento ulterior do decreto regulamentador do ED, um
grupo de juristas passou a sustentar que determinados dispositivos legais só teriam incidência
após a publicação daquele. Assim, artigos como o 12, o 14 e o 16, os quais dispunham sobre a
posse, a guarda, o porte e o transporte de armas de fogo de uso permitido, restrito e proibido,
bem como sobre munições e acessórios e condutas relativas aos mesmos, só passariam a ter
incidência após o dia 02 de julho de 2004.164
Curioso observar que da mesma forma como ocorreu quando do advento da
primeira Lei de Armas (Lei nº 9.437/97), verifica-se a repetição no cenário doutrinário e
jurisprudencial da mesma controvérsia quanto à fixação do termo inicial da contagem do
prazo da vacatio legis do artigo 10, referente ao prazo para regularização das armas de fogo,
face à necessidade incondicional (ou não) de publicação de novo Regulamento sobre a
matéria, ante a previsão contida na lex nova.
Naquela oportunidade ficou assentado que o artigo 10, o qual trazia os tipos
penais da Lei nº 9.437/97, só teria o termo inicial de sua vacatio legis contado a partir da
publicação de seu decreto regulamentador, ante o disposto no artigo 5º da citada lei. Assim, o
marco seria correspondente à data da publicação do Regulamento (Dec. nº 2.222/97), qual
seja 08/05/97, entrando em vigor as novas figuras típicas daquele diploma 180 (cento e
oitenta) dias após, conforme rezava o artigo 20 da Lei de Armas.165
Na hipótese referente à regulamentação da Lei nº 9.437/97, o posicionamento
que prevaleceu encontra-se em conformidade com a interpretação sistemática das normas sob
análise, posto que o Decreto nº 92.795/86, então existente para regulamentar as contravenções
164 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 67 e 188; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13. 165 Este foi o posicionamento adotado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 7.423, DJU de 15.06.1998, p.140; RHC nº 6.726, DJU de 24.11.1997, p. 61252) e, curiosamente, pelo Ministério da Justiça, através de comunicado divulgado na Imprensa Oficial.
99
penais relativas às armas de fogo, não conferia o tratamento complexo e necessário exigido
pelo então novel diploma, o qual transformou em crime a referida conduta tipificada, àquela
oportunidade, como mera contravenção penal.
Entretanto, tal raciocínio jurídico não se aplica ao Estatuto do Desarmamento.
Diferentemente do que sustentam os integrantes do posicionamento doutrinário anteriormente
referido, na hipótese da Lei nº 10.826/03 há uma norma regulamentadora prévia (Dec. nº
2.222/97) que confere o tratamento necessário às questões técnicas existentes no novo
diploma legal, ao fazer expressa referência à classificação trazida pelo Regulamento nº 105 do
Ministério do Exército, embora tenha sido editada ainda na vigência da Lei de Armas anterior
(Lei nº 9.437/97). Tal circunstância, de maneira nenhuma, descaracteriza sua aplicabilidade
ao ED.
Ademais, o próprio Decreto nº 5.123/04, regulamentador da Lei nº 10.826/03,
em repetição ao Decreto nº 2.222/97, traz expresso em seu artigo 49 que os critérios técnicos
de classificação das armas de fogo, acessórios e munições são aqueles constantes do
mencionado Regulamento nº 105 do Ministério do Exército (Regulamento para a Fiscalização
de Produtos Controlados do Exército). E tal Regulamento encontra-se em pleno vigor, não
tendo sido revogado pelo ED.166
O fundamento suscitado pela citada corrente doutrinária, segundo o qual com
a revogação expressa da Lei nº 9.437/97 pela Lei nº 10.826/03 o Dec. nº 2.222/97 estaria
automaticamente também com sua validade finda, uma vez que o acessório segue o principal,
encontra-se em completo desacordo com o princípio da proporcionalidade.
Isto porque, conforme constatado no segundo capítulo da presente
dissertação, o mencionado princípio possui um duplo viés quando aplicado ao Direito Penal.
Ao mesmo tempo em que deve-se vedar o excesso na punição ao agente transgressor da
norma penal, proíbe-se a proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado, ora atingido por
aquela conduta infracional.
Se há uma norma regulamentadora que confere tratamento satisfatório às
disposições contidas na nova lei, as quais, frise-se por oportuno, no aspecto técnico-
administrativo não conferem mudanças significativas ao contido na legislação anterior e, em
especial, aos tipos incriminadores, condicionar a não-aplicação dos dispositivos que trazem as
condutas criminais à exigência despropositada da edição de um regulamento prévio constitui
166 Neste sentido, BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – armas de uso permitido e restrito e outras considerações. Disponível em <www.amperj.org.br> Acesso em 10/04/2007.
100
um raciocínio em plena divergência com o viés positivo do princípio da proporcionalidade em
matéria penal.
Em se admitindo tal lógica exclusivamente pautada no garantismo sob seu
enfoque negativo estar-se-ia conferindo proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado pela
norma penal, qual seja a incolumidade pública. Privilegiar-se-ia um entendimento puramente
formalista em detrimento de uma concepção substancial das normas enfocadas.
Ademais, caso fosse adotado tal posicionamento essencialmente de cunho
formalista o mesmo não se sustentaria à análise das disposições do próprio Decreto nº
5.123/2004, pois seus artigos 76 e 77 rezam que o referido regulamento só entrará em vigor
na data de sua publicação, bem como que somente em tal momento o Decreto nº 2.222/97
estará, então, revogado, configurando uma contradição fundamental na própria essência de
todo o embasamento desta corrente doutrinária.
Portanto, ante as razões esposadas, em perfeita observância do princípio da
proporcionalidade por sua dupla dimensão, apresenta-se inteiramente legítima a utilização do
Dec. nº 2.222/97 (e conseqüentemente do Regulamento nº 105 do Ministério do Exército) às
normas da Lei nº 10.826/03, enquanto não restar expressamente revogado por regulamento
ulterior. Os tipos incriminadores previstos no ED terão imediata eficácia, com exceção do
artigo 12, ante o disposto nos artigos 30 e 32, os quais terão o início da contagem de seu prazo
na data da publicação do referido diploma em que se encontram inseridos.
Desta forma, não haverá excesso na punição ao agente infrator, bem como o
bem jurídico tutelado (in casu a incolumidade pública) restará suficientemente protegido.
4.9 Da inexistência de abolitio criminis temporalis em relação às condutas previstas no
artigo 12 do ED durante o prazo concedido pelos artigos 30 e 32 (e suas prorrogações)
para a regularização/entrega das armas de fogo nas condições ali previstas – uma
ponderação entre os interesses em conflito, sob a égide do princípio da
proporcionalidade.
Conforme analisado anteriormente, durante o prazo fixado pelos artigos 30 e
32 do ED (e suas prorrogações) para a regularização ou entrega das armas de fogo de origem
lícita que estejam em situação irregular a norma penal prevista no artigo 12 da referida lei
estaria com sua eficácia suspensa.
101
Diante de tal assertiva surge uma questão de extrema relevância a ser
respondida pelos operadores do Direito: durante tal período, como serão classificadas as
condutas praticadas com armas de fogo, munições e acessórios que encontrem tipificação no
artigo 12 do ED? Qual fenômeno terá se produzido? Houve uma anistia legal? Uma abolitio
criminis temporalis? Ou as condutas continuam típicas?
Tais questionamentos serão respondidos a seguir, após uma detida análise das
circunstâncias que envolvem o caso em tela, as quais reclamam uma verificação completa dos
direitos em conflito, valendo-se da técnica da ponderação para harmonizá-los
constitucionalmente.
4.9.1 Da impossibilidade de aplicação dos critérios tradicionais de solução de antinomias entre
normas infraconstitucionais que revelem conflitos entre direitos elencados na Constituição –
da incidência da técnica da ponderação para solucionar a colisão entre direitos
constitucionalmente previstos
O caso objeto do presente estudo comporta um conflito de natureza
constitucional, e não meramente legal. Isto porque, para que se obtenha uma resposta
juridicamente correta e, conseqüentemente, justa na problemática envolvendo qual tratamento
legal será conferido às condutas com armas de fogo praticadas durante o período em que o
artigo 12 do ED encontrava-se com sua eficácia suspensa pelos artigos 30 e 32 do ED é
necessário que sejam ponderados dois direitos em conflito: o direito individual de liberdade x
o direito da coletividade à segurança pública.
Tais direitos são de natureza diretamente constitucional, posto que encontram
previsão e tratamento expressos na Constituição da República, nos artigos 5º caput e artigo
144.
Em outras palavras, a problemática envolvendo a aplicação, ou não, do artigo
12 do ED (e suas questões adjacentes) revela um foco de tensão entre dois direitos
constitucionais. De um lado temos o direito do agente infrator em não ser punido de forma
mais severa e de outro o direito da coletividade em não ficar desprotegida ante a prática de
uma conduta criminosa de relevante gravidade.
Independentemente do enfoque a ser abordado nas próximas linhas envolver,
inclusive, a análise de normas legais, a questão principal a ser dirimida encontra sua pedra de
toque no conflito que se forma entre dois direitos que encontram sua sede no texto
constitucional.
102
Assim, demonstra-se inviável a aplicação dos critérios tradicionais de solução
de antinomias entre normas infraconstitucionais167 ao caso objeto do presente estudo.
A solução do referido conflito só será possível através da aplicação da técnica
da ponderação, posto que tratam-se de direitos de índole constitucional, não podendo negar-se
eficácia a um em favor da aplicação integral do outro. Em tal hipótese, deve-se buscar a
harmonização entre os mesmos, de forma que a solução a ser utilizada preserve a essência de
ambos, ante a opção que se apresente mais adequada, necessária e proporcional à solução do
conflito em estudo. Assim, ao realizar a ponderação, será necessária a utilização do princípio
da proporcionalidade.
Na seara constitucional penal o princípio da proporcionalidade possui um duplo
viés: proíbe o excesso na punição estatal ao agente, mas, também, veda a proteção insuficiente
ao bem jurídico tutelado, ora violado, e, em última análise, à própria sociedade.
Assim, seja prevalecendo a solução que privilegie o direito à liberdade do
indivíduo infrator, seja a que priorize o direito da coletividade à segurança pública, a opção
eleita deverá ter observado, necessariamente, o princípio da proporcionalidade na dupla
dimensão que lhe é conferida no Direito Penal contemporâneo.
4.9.2 Da aplicação da técnica da ponderação à problemática decorrente da não-eficácia do
artigo 12 do ED durante o prazo híbrido concedido pelos artigos 30 e 32 – a necessidade da
observância do princípio da proporcionalidade por seu duplo viés
Quid iuris as condutas praticadas com armas de fogo previstas no referido
artigo 12 seriam absolutamente atípicas durante o referido período concessivo dos artigos 30 e
32 do ED?
A presente indagação constitui o motivo de maior divergência e, conseqüente,
debate entre os doutrinadores, com reflexo na jurisprudência, acerca das normas do Estatuto
do Desarmamento. Entretanto, conforme será demonstrado a seguir, verifica-se que o
princípio da proporcionalidade não restou analisado em sua integralidade pelos
posicionamentos jurídicos firmados sobre o tema.
167 Critérios hierárquico, cronológico e da especialidade.
103
Um primeiro posicionamento, minoritário na doutrina, sustenta que o artigo
12 do ED encontra-se vigente desde sua publicação, uma vez que os artigos 30 e 32 do
mesmo diploma não teriam incidência sobre aquele. Conseqüentemente, todas as condutas
previstas no citado artigo apresentam-se com sua tipicidade íntegra.168
O referido entendimento, data venia, não encontra-se em conformidade com
as técnicas da interpretação contemporânea, posto que, conforme já analisado no presente
estudo, a interpretação das citadas normas sob os critérios sistemático e teleológico torna
evidente a relação de interdependência entre as mesmas. E assim, o artigo 12 só terá eficácia
após o decurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32.169
Uma segunda corrente doutrinária defende que as condutas previstas no artigo
12 tornaram-se típicas somente após o termino do prazo para regularização/entrega das armas
de fogo originalmente previsto nos artigos 30 e 32, com a edição do Decreto Regulamentador
da lex nova. Isto porque, as reiteradas prorrogações do referido prazo apresentam-se
inconstitucionais e, conseqüentemente, inválidas, vez que foram fruto de Medidas Provisórias
que versaram sobre matéria penal, o que é expressamente vedado pelo artigo 62, §1º, inciso I,
alínea ‘b’, da Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada ao citado
dispositivo pela Emenda Constitucional nº 32 de 11/09/01). Desta forma, durante o transcurso
do prazo originário dos artigos 30 e 32 e enquanto não editado o Decreto Regulamentador
(Dec. nº 5.123/04) as referidas condutas elencadas no artigo 12 restariam atípicas, tendo se
operado uma “anistia temporária”.170
Já um terceiro entendimento sustenta a atipicidade das condutas normatizadas
no artigo 12 enquanto em vigor o prazo concessivo dos artigos 30 e 32 e suas posteriores
prorrogações, sob o fundamento que em que pesem tais prorrogações terem sido levadas a
cabo por Medidas Provisórias, a vedação contida no artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da
Constituição da República de 1988 (conforme Emenda Constitucional nº 32 de 11/09/01) 168 BRUNO, Túlio Caiban. Os artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento não impedem a pronta incrminacao da conduta de possuir ou manter sob guarda arma de fogo no interior de residência, embora concedam prazo para seu registro ou entrega. No encontro de leis no tempo, estes dispositivos não se constituem em norma penal benéfica. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. nº 22 (julho/dezembro de 2005). Rio de Janeiro. 2006, pp. 427-431. 169 Para melhor análise da fundamentação apresentada deverá ser verificado o tópico “A problemática referente à eficácia do artigo 12 do ED – interpretação sob o critério sistemático com os artigos 30 e 32 do citado diploma” do presente capítulo. 170 Posicionando-se desta forma: JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 29-31; BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu artigo 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), Boletim do IBCCrim, nº 137. São Paulo, abril de 2004, p. 12 e A medida provisória nº 229/04 e o Estatuto do Desarmamento – retomando a questão da eficácia de seus artigos 12 e 14 (posse irregular de arma de fogo), Boletim do IBCCrim, nº 147. São Paulo, fevereiro de 2005, pp. 9-10; GOMES, Luiz Flávio; Artigo sobre o tema disponível em <www.netflash.com.br/justicavirtual/artigos> Acesso em 29/11/2006.
104
restringe-se a previsões que prejudiquem o réu. Caso o objeto da MP tenha por finalidade
beneficiar o acusado não encontrará qualquer óbice no citado dispositivo constitucional. Para
tal grupo de juristas, torna-se necessária uma interpretação extensiva da referida norma
constitucional, eis que tutela a defesa do direito de liberdade do acusado. Neste sentido,
durante tal período concessivo efetivou-se uma “atipicidade temporária” das condutas
descritas no artigo 12.171
Ambos os posicionamentos, embora embasados em um dispositivo
constitucional, não demonstram uma análise mais aprofundada da natureza das Medidas
Provisórias citadas. Em conformidade com o anteriormente esposado, os mencionados
modelos legislativos, ao tratarem da prorrogação do prazo para regularização/entrega das
armas de fogo pela população, têm por objeto matéria de natureza estritamente administrativa,
não-penal. Portanto, não haveria qualquer restrição constitucional para que tal prazo fosse
prorrogado por Medida Provisória.172
Superada a questão referente às prorrogações de prazo veiculadas pelas
Medidas Provisórias, apresenta-se uma quarta corrente na doutrina sustentando que durante o
prazo permissivo dos artigos 30 e 32 e suas respectivas prorrogações as condutas descritas no
artigo 12 encontrar-se-iam atípicas, vez que operou-se uma abolitio criminis temporalis. Em
outras palavras, os fatos praticados durante esse período não seriam dotados de tipicidade, eis
que deixaram de ser considerados crime.
Frise-se que, segundo tal entendimento, as condutas praticadas anteriormente
à promulgação do ED, isto é, aquelas que encontravam previsão no artigo 10 da Lei nº
9.437/97, permaneceriam típicas e, conseqüentemente, puníveis. Não se operou a abolitio
criminis propriamente dita. Na verdade, o legislador, através dos artigos 30 e 32, concedeu
um período de “atipicidade temporária” às ações praticadas com armas de fogo que encontram
171 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 67-68, 73, 75-76, 188-189. 172 Para melhor análise da fundamentação apresentada deverá ser verificado o tópico “A prorrogação do prazo dos artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/03 por Medidas Provisórias – análise da compatibilidade constitucional” do presente capítulo.
105
expressa tipificação no artigo 12. Tal posicionamento prevaleceu na doutrina173, sendo
abarcado pela jurisprudência pátria, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça.174
Da análise dos fundamentos apresentados pelo referido entendimento
predominante na doutrina e na jurisprudência verifica-se não ter o mesmo observado o
princípio da proporcionalidade.
Inicialmente, esta esdrúxula figura denominada “abolitio criminis temporalis”
configura-se numa tentativa, sem sombra de dúvidas criativa, de se compatibilizar dois
institutos absolutamente diversos, supostamente veiculados nos dispositivos sob estudo. De
um lado a tradicional abolitio criminis e de outro uma norma com vigência temporária.
Com a devida vênia, tal posicionamento não se sustenta ante os basilares
pressupostos formadores do Direito Penal. Ora, não há a mínima razoabilidade em se
sustentar que a conduta de possuir arma de fogo será atípica justamente quando passou a
receber maior sanção pelo legislador enquanto que sua prática sob a égide da lei (anterior)
menos grave permanecerá típica. Para que tal entendimento apresente-se juridicamente
razoável, ou operou-se a abolitio criminis de forma integral e, assim, com maior razão as
condutas praticadas na vigência da lei anterior menos gravosa também terão a extinção
superveniente de sua punibilidade (nos termos do artigo 107, inciso III, do Código Penal)175,
ou, então, não há que se falar no citado instituto.
Ultrapassada a contradição existente na própria essência do mencionado
entendimento majoritário, verifica-se que o mesmo observou somente a face negativa do
principio da proporcionalidade. Em se adotando tal posicionamento, o bem jurídico objeto
inequívoco do mencionado novel diploma legal restará protegido de forma insuficiente.
Isto porque, para que se obtenha uma correta resposta ao conflito em tela não
se pode perder de vista a real intenção do legislador ao criar o denominado Estatuto do
Desarmamento. Desta forma, a interpretação dos dispositivos deverá ser feita em estrita
congruência com o critério teleológico.
173 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 29-31; BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu artigo 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), Boletim do IBCCrim, nº 137. São Paulo, abril de 2004, p. 12 e A medida provisória nº 229/04 e o Estatuto do Desarmamento – retomando a questão da eficácia de seus artigos 12 e 14 (posse irregular de arma de fogo), Boletim do IBCCrim, nº 147. São Paulo, fevereiro de 2005, pp. 9-10; GOMES, Luiz Flávio; Referendo do Desarmamento: Acertos e Aberrações. Artigo disponível em <www.juristas.com.br> Acesso em 29/11/2006. 174 STJ: HC 39787/DF, HABEAS CORPUS 2004/0166747-8, Relator Ministro Felix Fisher, Quinta Turma, Data do julgamento 07/04/2005. Disponível em <www.stj.gov.br,> Acesso em 10/12/2006. 175 Neste sentido: THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp. 43 e 50.
106
Resta evidente e indiscutível o objetivo do legislador na citada lex nova
quando agrava a conduta dos crimes envolvendo armas de fogo, reforçando o quantum da
pena e incluindo diversos outros objetos e ações subjacentes (como munição, acessórios,
supressão específica, etc.). Ademais, previu expressamente a destruição das armas de fogo,
acessórios e munições apreendidas, sendo vedada a cessão para qualquer pessoa ou
instituição, mesmo que pertencente à segurança pública.176 177
Neste sentido, observa-se que os dispositivos não podem ser interpretados de
forma isolada e estritamente gramatical, posto que se inserem em um sistema de normas, o
qual tem uma lógica encadeada de funcionamento.
Em outras palavras, as normas devem ser interpretadas sistemática e
teleológicamente, i. e., através de uma análise conjunta dos dispositivos, buscando-se a real
intenção do legislador ao estabelecer aquela regra de conduta.
A Lei nº 10.826/03 tem por finalidades precípuas a diminuição da violência e,
conseqüentemente, da prática de crimes envolvendo armas de fogo, através do desarmamento
da população e do agravamento das sanções e tipificação de novas condutas que envolvam
armas de fogo, acessórios e munições. Não por outro motivo denominou-se Estatuto do
Desarmamento.
Portanto, apresenta-se absolutamente desarrazoado sustentar a extinção da
punibilidade, seja temporária ou definitiva, das condutas com armas de fogo de uso permitido,
tipificadas no artigo 12 do ED, praticadas durante o prazo referido nos artigos 30 e 32 da
citada lei, com suas respectivas prorrogações. Ora, se a finalidade do legislador foi justamente
desarmar a população, combatendo os crimes dessa espécie, não há como se defender a
atipicidade de tal conduta justamente quando em vigor a lei produto de tal opção legislativa.
O Ministro Joaquim Barbosa, relator do RHC 86.723/GO, asseverou no Pleno
do STF que seria paradoxal que uma lei que vise à contenção da criminalidade autorizasse,
176 Lei nº 10.826/03: “Artigo 25: Armas de fogo, acessórios ou munições apreendidos serão, após elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, encaminhados pelo juiz competente, quando não mais interessarem à persecução penal, ao Comando do Exército, para destruição, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas. Parágrafo único. As armas de fogo apreendidas ou encontradas e que não constituam prova em inquérito policial ou criminal deverão ser encaminhadas, no mesmo prazo, sob pena de responsabilidade, pela autoridade competente para destruição, vedada a cessão para qualquer pessoa ou instituição.”
177 A Lei nº 9.437/97 não previa a destruição das armas de fogo apreendidas. Em tal diploma, somente seriam encaminhadas ao Ministério do Exército aquelas encontradas sem registro ou sem autorização (conforme rezavam o artigo 14 da citada lei e o artigo 44 do Decreto nº 2.222/97).
107
ainda que implicitamente, o porte de arma de fogo por determinado prazo, situação esta que
contribuiria para a potencialização do cometimento de crimes.178
Em outras palavras, como permitir que a população possa permanecer armada
se o objetivo é exatamente desarmá-la?
Evidentemente, se a finalidade é melhorar uma situação crítica não será
agravando-a ainda mais que se alcançará o resultado pretendido. Nesse diapasão, constitui o
óbvio ululante que para retirar as armas das mãos dos cidadãos não poderia uma lei estimular
que os mesmos permaneçam armados, concedendo-lhes como prêmio a atipicidade de tal
conduta.
Assim, não se configura razoável que as condutas descritas no artigo 12 da
Lei nº 10.826/03 sejam consideradas atípicas justamente quando surge no cenário jurídico a
lei que visa o desarmamento civil.
Cumpre ressaltar, desde já, que, evidentemente, as condutas descritas no
citado artigo 12 do ED que sejam fruto de tipificação originária no citado diploma, sem
anterior previsão pelo ordenamento jurídico, especificamente às ações referentes a “possuir ou
manter sob sua guarda acessório ou munição de uso permitido”, permaneceram em vacatio
legis durante o decurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32 (com suas prorrogações). Tal
conclusão se justifica pois, conforme já verificado, o artigo 12 não terá incidência enquanto
em vigor o mencionado período concessivo para regularização/entrega das armas de fogo de
origem lícita. Os “acessórios” e as “munições” só foram devidamente identificados e
classificados pelo Dec. nº 5.123/04, o qual regulamentou a Lei nº 10.826/03, posto que não
encontravam previsão na Lei de Armas anterior (Lei nº 9.437/97).
Frise-se, por oportuno, que a atipicidade absoluta das condutas de “possuir ou
manter sob sua guarda acessório ou munição de uso permitido” previstas no artigo 12 do ED
durante o referido prazo dos artigos 30 e 32 do ED só se justifica pelo fato das mesmas não
encontrarem tipificação prévia no ordenamento jurídico; situação diversa da que se verifica
com as armas de fogo de uso permitido, conforme analisado a seguir.
As figuras típicas de possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo de uso
permitido no interior de sua residência, ou dependência desta, ou em local de trabalho,
descritas no artigo 12 da Lei nº 10.826/03 já possuíam previsão legal no artigo 10 caput da
Lei nº 9.437/97. Portanto, com a entrada em vigor do artigo 12 do ED, o artigo 10 da lex
178 STF: RHC 86.723/GO, relator Min. Joaquim Barbosa, 06.12.2005. No mesmo sentido o julgamento pelo STF do RHC 86.681/DF, Relator Min. Eros Grau, 06.12.2005. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em 10.12.2006.
108
anterior estaria revogado. Neste sentido, o artigo 36 do novel diploma legal revoga a Lei nº
9.437/97.179
Entretanto, conforme já esposado, o artigo 12 do ED teve sua vacatio legis
ampliada, só tendo eficácia após o transcurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32, isto é, no
dia 23 de outubro de 2005, e não em 23 de dezembro de 2003 como o restante do ED. Sendo
assim, verifica-se um lapso temporal compreendido entre 23/12/03 e 23/10/05 onde embora o
ED estivesse em vigor, seu artigo 12 ainda não encontrava incidência.
Fixados tais pressupostos, como permaneceriam as condutas com armas de
fogo de uso permitido descritas no artigo 12 do ED durante o referido período?
A questão em tela, conforme já mencionado, envolve um conflito entre dois
direitos constitucionais, quais sejam o direito de liberdade do agente infrator e o direito da
coletividade à manutenção de sua segurança. Em se tratando de colisão entre direitos de
índole constitucional, inexistente norma específica para solucioná-lo, faz-se necessária a
utilização da técnica da ponderação.
No manuseio da ponderação em matéria penal, o intérprete terá como
instrumento fundamental para a obtenção da solução que melhor harmonize os interesses em
divergência o princípio da proporcionalidade. Tal princípio quando aplicado ao Direito Penal
possui uma dupla face: veda o excesso na punição ao agente infrator, ao mesmo tempo que
proíbe a proteção deficiente do bem jurídico tutelado pela norma, conforme previsão
constitucional.
Aplicando a técnica da ponderação ao caso em tela, o excesso punitivo estaria
refletido na aplicação integral do artigo 12 do ED aos agentes que praticassem as referidas
condutas ali tipificadas durante o período de eficácia dos artigos 30 e 32 do citado diploma
legal (com suas respectivas ampliações) e, conseqüentemente, de vacatio legis do artigo 12.
Por outro lado, a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, in casu a
incolumidade pública e, por conseguinte, da coletividade, ocorreria na hipótese da referida
conduta praticada no citado período fosse classificada como atípica, ante a ocorrência do
esdrúxulo fenômeno da abolitio criminis temporalis da figura típica prevista no artigo 12 do
ED.
A aplicação da técnica da ponderação ao caso em tela, ante os bens jurídicos
constitucionais em conflito, utilizando-se o principio da proporcionalidade em sua dupla face,
implica na necessidade da obtenção de uma solução equilibrada.
179 Lei nº 10.826/03: “Artigo 36: É revogada a Lei no 9.437, de 20 de fevereiro de 1997”.
109
Neste diapasão, impõe-se realizar uma interpretação teleológica do artigo 36 do
ED; isto é, buscar a real mens legis quando este se refere à revogação da norma anterior.
Assim, em se considerando que a Lei nº 9.437/97 restaria revogada pela entrada em vigor da
Lei nº 10.826/03, posto que haveria uma duplicidade de normas tratando do mesmo assunto,
uma vez permanecendo em vacatio legis o artigo 12 do ED, o artigo 10 da Lei nº 9.437/97,
conseqüentemente, não estaria expressamente revogado.
Em não havendo duplicidade de tratamento legal para a mesma conduta,
permaneceria em vigor a cominação legal específica do artigo 10 da Lei de Armas, visto que
grande parte das condutas típicas descritas no artigo 12 do ED tem sua origem no artigo 10 da
Lei nº 9.437/97, ante a inequívoca mens legis do novo diploma. Sob a ótica do princípio da
proporcionalidade, a referida solução apresenta-se mais adequada, compatível e proporcional
(em sentido estrito), configurando-se como a perfeita harmonização entre os bens em conflito.
Assim, a aplicação do artigo 10 da Lei nº 9.437/97 àquelas condutas praticadas
durante o interstício mencionado do artigo 12 do ED, apresenta-se como a solução ponderada
e, conseqüentemente, proporcional à problemática em tela, posto que, desta forma, não haverá
excesso na punição ao agente infrator, nem proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, in
casu a incolumidade pública.
110
CONCLUSÃO
O novo constitucionalismo imprimiu ao Estado Democrático de Direito uma
série de modificações que se mostravam necessárias à sua modernização e à efetivação dos
direitos fundamentais. A complexidade das relações sociais atingidas com a evolução já não
mais se coadunava com o modelo fechado e restritivo, que remontava o período liberal.
Tornou-se indispensável repensar-se numa dogmática que oferecesse
sustentação teórica para a concretização das normas constitucionais, as quais, uma vez
ampliadas e aprofundadas em seus conteúdos, já não mais conviviam com os métodos
clássicos de interpretação constitucional.
A proposta que procura destituir a Lei Maior de sua dimensão política e
axiológica, para reservar-lhe um papel puramente procedimental, não apresenta-se compatível
com as conquistas do processo civilizatório. O ideal democrático realiza-se não apenas pelo
princípio majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos
fundamentais, que também pode ser obtida pela decisão justa.
Através da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, compreende-se que
os mesmos possuem eficácia irradiante, ou seja, informam o ordenamento jurídico do qual
fazem parte para orientar tanto a produção quanto a aplicação do direito. Também a partir do
corte objetivo, os direitos fundamentais têm a proteção do Estado não só contra os atos do
Poder Público, mas também contra lesões ou ameaças por parte de terceiros.
Visando, portanto, dar concretude a esses proclamados direitos fundamentais,
desenvolveu-se uma nova interpretação constitucional, de índole construtivista, baseada em
métodos e princípios de interpretação focados na abstração e abertura das normas
constitucionais à moralidade e à política. Todos eles convergindo para a necessária
convivência da norma com o caso concreto, como realidades indissociáveis.
Essas novas pautas de interpretação traduzem-se numa proposta de
harmonização e convivência de direitos, que possuem o mesmo quilate e que não podem
jamais ocupar lugar de preponderância. Devem ser compatibilizados e, em caso de conflito, a
regra a ser utilizada é a da ponderação.
A ponderação consiste numa regra de decisão, aplicada em casos onde há
conflitos envolvendo direitos fundamentais. A técnica procede à interpretação das normas
constitucionais segundo os cânones modernos.
111
O operador do Direito, ao se debruçar sobre uma situação fática que implique
aparente colisão entre normas integrantes da Constituição da República, deverá, inicialmente,
identificar os direitos constitucionais em conflito. Prosseguindo, buscará encontrar as normas
aplicáveis à espécie. Uma vez relacionadas as normas com a situação fática, passar-se-á,
efetivamente, à ponderação, que consiste em sopesar os valores em jogo, compatibilizando-os,
de forma que possam conviver harmoniosamente.
Na ponderação, os direitos fundamentais coexistem, mas sofrem pequenas
restrições para serem aplicados à situação fática. Apesar de possuir riscos, por aumentar o
subjetivismo das decisões, ela aproxima a justiça do direito, pois não se subsume ao conteúdo
da lei, comportando uma análise mais ampla, mais criativa do direito.
Não por outro motivo, se insere no atual discurso constitucional, pois,
juntamente com as modernas regras e princípios constitucionais, utiliza-se de conhecimentos
circundantes, advindos de outros campos, mas indispensáveis à uma interpretação mais justa e
correta.
Apesar dos benefícios trazidos pelas propostas modernas de interpretação e
pela própria ponderação, impõe-se-lhes a crítica, de ordem geral, de que todas elas acabam
por mitigar a normatividade da Constituição, aumentando a discricionariedade judicial. São os
riscos, que, entretanto, podem ser suavizados quando procedidos da necessária fundamentação
jurídica, indispensável a toda e qualquer decisão judicial, por lhe conferir legitimidade.
Em que pese a freqüência com que se verifica o choque entre direitos
fundamentais, a jurisdição constitucional brasileira ainda demonstra pouco avanço no que
concerne aos métodos e técnicas aplicáveis, fato que pode ser constatado pelas decisões
proferidas em sede de colisão entre direitos dessa natureza.
A implementação da ponderação implica na utilização de mecanismos próprio.
Neste sentido, o princípio da proporcionalidade apresenta-se como o principal instrumento na
consecução da mencionada técnica.
O princípio da proporcionalidade tem como finalidade a preservação dos
direitos fundamentais, sejam de natureza individual, quanto coletiva (lato sensu). E sendo
certo que os referidos direitos possuem papel essencial na afirmação do Estado Democrático
de Direito como organização voltada à defesa e efetivação daqueles, o princípio da
proporcionalidade revela sua importância na concretização desse modelo estatal
contemporâneo.
Em que pese o mencionado princípio não gozar de previsão literal no texto
constitucional brasileiro, sua existência é reconhecida inequivocamente, eis que decorre
112
diretamente da cláusula do Estado Democrático de Direito, expressamente adotada pela
Constituição da República de 1988, em seu artigo 1º.
Frise-se que o princípio da proporcionalidade será fundamental na obtenção do
equilíbrio necessário que deverá haver dentro da organização estatal e, sobretudo, na própria
sociedade, razão de ser do Estado. Isto porque, conforme verificado, comumente surgirão
focos de tensão entre direitos fundamentais, os quais precisarão ser dirimidos através da
ponderação.
O princípio da proporcionalidade funciona, outrossim, como instrumento de
proteção dos direitos fundamentais. Através dele far-se-á o balanceamento necessário entre
valores essenciais à coletividade como justiça, igualdade, liberdade, dignidade da pessoa
humana e segurança, previstos expressamente na Constituição.
Este propalado equilíbrio advém da própria pacificação que deve haver na
sociedade e, conseqüentemente, no Estado. Equilibrados os valores tidos como essenciais pelo
conjunto social, o país estará apto a trilhar o caminho de seu desenvolvimento.
O referido princípio ao ser utilizado na seara penal, diante da ordem
constitucional vigente, deverá ser observado em sua dupla dimensão: proíbe o excesso de
punição ao agente infrator e, simultaneamente, veda a proteção insuficiente dos bem jurídico
tutelado.
Ao Estado não é lícito aplicar sanção ao agente transgressor da norma penal de
forma excessiva, devendo ser, estritamente, justa e proporcional à conduta praticada. No
mesmo sentido, não lhe é permitido conferir ao bem jurídico violado proteção em nível
insuficiente, posto que necessita de um especial tratamento estatal ante a essencialidade do
valor que traduz.
Em não se observando tal equação, inequivocamente quebrar-se-á o essencial
equilíbrio que deve existir dentro da organização social e, por via de conseqüência, dentro do
próprio Estado.
Assim, se o legislador excedeu na punição ou não conferiu proteção em nível
suficiente ao bem jurídico tutelado, conforme lhe era exigido pela Carta Constitucional, tal
excesso/omissão ensejará a inconstitucionalidade da opção política adotada.
Em um Estado Democrático de Direito, sob a ótica do neoconstitucionalismo,
compete ao Direito Penal focar suas normas no combate à prática das infrações que violam os
direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, bem como as que
inviabilizam a efetivação dos propósitos a serem cumpridos pelo poder estatal e
113
expressamente esposados na Lei Maior. Assim, o Direito Penal passa a ser interpretado à luz
da Constituição, criando-se um verdadeiro ‘Direito Penal Constitucional’.
Desta forma, sob o novo enfoque dado ao Direito Penal, o Estado deixa de
ocupar a posição de oposição com a Sociedade e com o Indivíduo, passando a ser entendido
como o responsável pela defesa e, conseqüente, efetivação dos direitos a esses inerentes.
Partindo-se dessa premissa, afirma-se a constitucionalidade da extensão da
função de proteção penal a bens jurídicos de interesse da coletividade (interesses
transindividuais). Supera-se, deste modo, o entendimento - que não mais se justifica - no
sentido de que o Direito Penal ao exercer a tutela dos denominados bens de natureza
transindividual estaria deslocando-se de sua posição de ultima ratio, passando a ter incidência
de forma antecipada e não justificada.
Uma visão constitucionalista do Direito consiste, justamente, em entender a
Constituição como o próprio fundamento daquele. Assim, de um lado ter-se-á situações em
que a criminalização de determinadas condutas se apresentará constitucionalmente adequada,
e de outro hipóteses em que se deverá analisar até que ponto a despenalização seria
constitucionalmente legítima.
Colecionando todos os pensamentos esposados, verifica-se de forma clara na
Constituição do Brasil de 1988 um duplo objetivo a ser alcançado na proteção dos direitos
humanos-fundamentais pelo Estado: deve-se defendê-los de excessos na punição e, da mesma
forma, de omissões na penalização àqueles que os violarem.
Tal orientação é diretamente dirigida ao legislador infra-constitucional, o qual,
ao exercer sua função precípua, deverá manter o equilíbrio essencial entre os dois prismas da
tutela penal acima mencionados. Se assim não o fizer, restará não observado o duplo viés do
princípio da proporcionalidade em matéria penal.
Em outras palavras, só terão validade os dispositivos penais se o objetivo a ser
alcançado for, sempre, o da proteção integral dos direitos. Na hipótese de somente os direitos
do criminoso serem observados, sendo deixados de lado os referentes à preservação do bem
jurídico atingido, bem como os da efetiva proteção da coletividade, e vice-versa, o princípio
da proporcionalidade não terá sido devidamente respeitado. E assim, aquela norma
“desequilibrada” tornar-se-á um risco à integridade do sistema jurídico-penal, devendo ser
declarada inconstitucional.
A liberdade que o legislador possui no exercício de sua atividade precípua não
restará suprimido; porém, a Constituição funcionará como limite às suas práticas
penalizadoras (viés negativo) e despenalizadoras (viés positivo), atendendo-se ao equilíbrio
114
que deve existir nas normas penais, em observância à exegese do princípio da
proporcionalidade.
Em outro diapasão, uma norma de natureza penal restará ilegítima sob o
prisma constitucional quando criminalizar/penalizar condutas que não necessitem da tutela
penal e/ou quando descriminalizar/despenalizar situações fáticas que reclamem tal tratamento
ante disposição constante do texto constitucional.
O controle da constitucionalidade do atuar do legislador incumbe à jurisdição
constitucional. E como é cediço, o julgador sempre baseará sua busca na obtenção de uma
solução que atinja o ideal máximo e norteador de toda a ciência jurídica: a realização efetiva
da justiça. Para que tal desiderato seja alcançado é necessário que a decisão tomada esteja
devidamente fundamentada. Somente a justificação racional tornará legítima a opção eleita.
Tal legitimidade deverá ser entendida como o viés social da efetivação da democracia.
Frise-se que existindo um bem jurídico dotado de inequívoca relevância social
estará o legislador penal apto a deferir-lhe proteção, mesmo que não encontre expressa
previsão na ordem constitucional. Fundamenta-se tal possibilidade na própria história da
civilização moderna, onde por diversas vezes bens extremamente caros ao corpo social foram
violados pelo simples fato de, por não possuírem prévia tutela constitucional, encontrarem-se
excluídos do campo de abrangência dos valores aptos a receberem proteção pelo legislador.
O desenvolvimento dos direitos fundamentais, de simplesmente individuais
para coletivos (lato sensu), não foi acompanhado pelo Direito Penal. As escolas doutrinárias
que pautaram a ciência jurídico-penal moderna não reconheceram a importância desses
valores transindividuais que sedimentavam-se dentro da sociedade. Desta forma, a norma
penal insistia em restringir-se à tutela exclusiva dos bens jurídicos de cunho individual.
Atento a tal circunstância, o constituinte trouxe para o texto constitucional o
reconhecimento de tais valores, conferindo-lhes especial proteção. Conseqüentemente, impõe-
se ao legislador a obrigação de auferir a tais valores a devida proteção, inclusive com normas
penais, em consonância com a orientação da Lei Maior.
Portanto, o bem jurídico penal, que no passado se limitava a valores de caráter
individual, hodiernamente passou a abranger, também, os de natureza coletiva
(transindividual). Assim, houve uma ampliação na dimensão do conceito de bem jurídico
penal, comportando os valores de índole individual e meta-individual.
O desenvolvimento da cultura armamentista no Brasil, conforme se verificou,
coincide com a evolução sócio-econômica experimentada no país no decorrer de sua história.
Fundamentadas na simples defesa dos módulos de produção e de seus proprietários, as armas
115
de fogo enraizaram-se nos hábitos da população civil, a qual passou a se armar como forma de
proteção pessoal.
O acúmulo de armas de fogo nas mãos dos cidadãos gerou a necessidade de
uma disciplina legal por parte do Estado. Assim, o Código Criminal do Império de 1830, a Lei
de 26.10.1831, o Código Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais e 1932 e a Lei das
Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31) passaram a tipificar as condutas relacionadas com
armas de fogo. Ocorre que, em tais diplomas legais, os tipos referidos eram classificados
como contravenções penais.
Diante do avanço da violência e, em especial, da prática de crimes de maior
gravidade com o emprego de armas de fogo, tornou-se imperioso um tratamento mais
adequado às condutas referentes às armas. Nesse sentido, foi editada a Lei nº 9.437/97,
denominada Lei das Armas de Fogo, a qual passou a tipificar como crime as ações relativas às
armas de fogo. Além do aspecto punitivo criminal, a referida lei instituiu uma rigorosa
política nacional sobre as armas de fogo, de caráter administrativo.
Com o passar dos anos, as inovações técnicas das armas de fogo, munições e
acessórios e as novas modalidades de condutas praticadas com os mesmos fizeram com que a
mencionada lei não se apresentasse mais condizente com a realidade que se verificava.
Tornou-se ineficaz diante do quadro de violência que se apresentava.
A necessidade de uma adequada resposta estatal ao referido cenário, visando a
defesa da incolumidade pública, implicou na publicação da Lei nº 10.826/03, a qual ficou
conhecida como Estatuto do Desarmamento (ED). Possuía como objetivos imediatos o
desarmamento da população civil - através de um maior rigor na obtenção do porte pelo
cidadão e da criação de um cadastro de armas mais técnico e mais completo – e a confecção
de um tratamento penal condizente com a realidade – com a tipificação de novas condutas
(inclusive com munições e acessórios) e o agravamento na cominação legal dos tipos já
existentes relacionados a armas de fogo.
Entretanto, sua entrada em vigor não transcorreu de forma tranqüila. Muito
pelo contrário. Alguns de seus dispositivos, ante a sistemática ligação existente entre os
mesmos, foram motivo de grande controvérsia na doutrina e jurisprudência pátrias.
O surgimento no ordenamento jurídico de normas supervenientes – medidas
provisórias e suas alterações - que dilataram os prazos de algumas regras do mencionado
diploma geraram um quadro de incerteza junto à população, passando-se a um estado de
insegurança jurídica.
116
Sintomática tal controvérsia existente no Estatuto do Desarmamento (Lei nº
10.826/03), posto que quando da edição da Lei nº 9.437/97 verificou-se um similar estado de
divergência doutrinária e jurisprudencial em relação a algumas normas deste diploma legal.
Decerto que, diante da nova perspectiva que o Direito Penal passou a ter após a
entrada em vigor da Constituição da República de 1988, a análise da vexata questio presente
no Estatuto do Desarmamento necessita de um estudo devidamente pautado pelos novos
dogmas da ordem constitucional vigente.
Nesse sentido, a análise da questão em tela implica na verificação dos
interesses em conflito, propondo-se como solução interpretação a utilização da técnica da
ponderação. Esta, ante a natureza dos direitos em jogo, será feita através do princípio da
proporcionalidade, o qual, quando aplicado em matéria penal, deverá observar dois primas
fundamentais: vedar o excesso punitivo estatal sobre o indivíduo, bem como proibir uma
proteção deficiente ao bem jurídico protegido que tenha sido violado pela conduta infracional.
Partindo de tais premissas, foram obtidas as seguintes conclusões no estudo de
caso veiculado na presente dissertação, pontualmente:
I – Os artigos 30 e 32 do ED, os quais concedem um prazo de 180 (cento e
oitenta) dias aos possuidores de armas de fogo de origem lícita, porém em situação irregular,
para que procedam à sua regularização ou as entreguem à Polícia Federal, impedem que o
artigo 12 tenha plena eficácia, uma vez que este tutela, justamente, a conduta do sujeito que
possui ou tem sob sua guarda, em sua residência ou local de trabalho, arma de fogo de uso
permitido em situação irregular. Tal conclusão decorre de uma interpretação do citado
diploma legal através do critério sistemático.
Ademais, uma vez que o artigo 12 do ED agrava consideravelmente a sanção
penal dos tipos previstos no artigo 10 da Lei nº 9.437/97, restaria incongruente se a mesma
fosse aplicada quando os artigos 30 e 32 da mesma lei estimulam justamente a entrega das
armas de fogo pela população.
II – Os prazos previstos nos artigos 30 e 32 do ED foram estendidos por
Medidas Provisórias supervenientes. Em que pese o artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da
Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº
32 de 11/09/01) vedar expressamente a possibilidade de tal modalidade legislativa versar
sobre Direito Penal, e aí, segundo uma interpretação sob o critério teleológico, proíbe-se tanto
a previsão para beneficiar quanto para agravar a situação do acusado, verifica-se a
legitimidade das mesmas incidirem sobre os referidos dispositivos da Lei nº 10.826/03 e,
conseqüentemente, postergarem o período de não-incidência das figuras típicas do artigo 12.
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Isto porque, inobstante o fato dos citados dispositivos do Estatuto do Desarmamento
incidirem sobre o artigo 12, o qual tem cunho penal, a matéria neles veiculada possui natureza
estritamente administrativa, posto que versa exclusivamente sobre o procedimento para
regularização/entrega de armas de fogo nos termos assinalados.
III – A previsão de edição de Regulamento pelo Estatuto do Desarmamento
não impede a imediata eficácia de seus dispositivos legais, uma vez que o Decreto
Regulamentador anterior – Decreto nº 2.222/97 - confere o tratamento necessário às questões
técnicas existentes no novo diploma legal, ao fazer expressa referência à classificação trazida
pelo Regulamento nº 105 do Ministério do Exército, no mesmo sentido que a norma
regulamentadora ulterior (Dec. nº 5.123/04, artigo 49), a qual é expressa ao afirmar que
somente quando de sua publicação o Dec. nº 2.222/97 estaria revogado.
Portanto, os tipos criminais da Lei nº 10.826/03 possuíam imediata incidência
(com as devidas ressalvas anteriores) desde sua publicação e não apenas com o Dec. nº
5.123/04, estando tal raciocínio em consonância com o duplo viés que o princípio da
proporcionalidade possui quando aplicado ao Direito Penal.
IV – Não se verificou o esdrúxulo fenômeno da abolitio criminis temporalis
em relação às condutas previstas no artigo 12 do ED durante o prazo concedido pelos artigos
30 e 32 (e suas prorrogações) para a regularização/entrega das armas de fogo nas condições
ali previstas. Isto porque, em se aceitando sua existência no caso em estudo, estar-se-ia
observando o princípio da proporcionalidade apenas em seu viés negativo.
Há, na verdade, dois direitos em conflito: o direito individual de liberdade x o
direito da coletividade à segurança pública, os quais encontram expressa previsão no texto
constitucional. Para a solução de tal divergência, a técnica da ponderação apresenta-se como a
única forma viável para a harmonização dos mesmos. E, em se tratando de norma penal,
deverá ser aplicada valendo-se do princípio da proporcionalidade em sua dupla dimensão.
Assim, em observância a essa dupla face do princípio da proporcionalidade e a
própria mens legis do referido diploma legal, durante o período suspensivo de eficácia do
artigo 12 do ED, permaneceria incidindo o artigo 10 da Lei nº 9.437/97. A uma, pois não se
verificaria duplo tratamento legal às condutas tipificadas nos citados dispositivos, não
havendo, portanto, revogação do anterior enquanto não vigente o ulterior. A duas, porque a
norma anterior previa sanção menos gravosa, não ocorrendo, desta forma, excesso na punição.
A três, pois se a intenção do legislador foi justamente desarmar a população, apresentar-se-ia
contraditório conceder-se um período de atipicidade à conduta de possuir arma de fogo.
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A solução apresentada, obtida através do emprego da técnica da ponderação,
observa o duplo viés que o princípio da proporcionalidade possui em matéria penal, não
punindo em excesso o agente infrator, bem como não conferindo proteção insuficiente ao bem
jurídico tutelado, qual seja a incolumidade pública.
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