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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO, A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL PENAL: O REDIMENSIONAMENTO DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO RIO DE JANEIRO 2007

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA

OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO, A

TÉCNICA DA PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA

PROPORCIONALIDADE SOB A ÓTICA DA NOVA ORDEM

CONSTITUCIONAL PENAL: O REDIMENSIONAMENTO DO

ESTATUTO DO DESARMAMENTO

RIO DE JANEIRO

2007

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LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA

OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO, A TÉCNICA DA

PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE SOB A

ÓTICA DA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL PENAL: O

REDIMENSIONAMENTO DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO

Dissertação a ser apresentada à

Universidade Estácio de Sá como

requisito parcial para obtenção

do grau de Mestre em Direito

Orientador: Prof. Dr. Rogério Gesta Leal

RIO DE JANEIRO

2007

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LUIZ EDUARDO DA SILVA LEVY DE SOUZA

Rio de Janeiro, ......... de agosto de 2007.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Dr. Rogério Gesta Leal

Presidente

Universidade Estácio de Sá

________________________________________________

Prof. Dr. Rogério J. B. S. Nascimento

Universidade Estácio de Sá

________________________________________________

Prof. Dr.

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

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À minha mãe, que sempre esteve ao meu lado nos momentos difíceis deste curso que se finda,

ao meu pai, pela força protetora que me destina lá do céu, e à minha doce Bárbara, por ter me

feito acreditar que os sonhos podem se tornar realidade.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos ao Professor Rogério Gesta Leal por seus conselhos sempre

ponderados e enriquecedores.

Aos colegas e demais professores do curso de mestrado da Universidade Estácio de Sá, pelo

incentivo e conhecimento que engrandeceram meus estudos jurídicos.

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“Brigam as idéias, não os homens”

(Tancredo Neves)

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RESUMO

A implementação do Estado Democrático de Direito, em especial, a nova concepção que lhe

foi aferida a partir do século XX, gerou a necessidade de uma revisão nos pilares do

constitucionalismo, conformando-o com os novos ideais surgidos. Em decorrência da nova

contextualização que o constitucionalismo passou a ter, novos cânones interpretativos foram

introduzidos. A crescente valorização dos direitos fundamentais acabou por gerar situações

em que os mesmos passaram a entrar em conflito entre si. A solução para tal foco de tensão só

pode ser alcançada através da técnica da ponderação, a qual utiliza-se, principalmente, do

princípio da proporcionalidade como mecanismo para sua implementação. Em se tratando de

questão de natureza penal, o referido princípio possui uma dupla dimensão, a qual não pode

ser ignorada pelo legislador, tampouco, pelo julgador. A mudança de paradigma no Direito

Penal - existente dentro do moderno Estado Democrático de Direito - decorre da nova

concepção que o bem jurídico penal passou a desfrutar. A ciência jurídico-penal passou a

tutelar não mais exclusivamente os valores de natureza individual, mas também os de índole

coletiva. Este necessário equilíbrio na tutela penal passa a ser a orientação a ser seguida pelo

operador do direito. Nesse sentido, a presente dissertação busca analisar todo esse

redimensionamento da interpretação constitucional, em especial os novos valores de cunho

penal inseridos, realizando o estudo de algumas questões conflituosas existentes no Estatuto

do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) concatenado com os atuais valores tutelados pelo

Direito Penal Constitucional. .

Palavras-chave: novo constitucionalismo; Estado Democrático de Direito; moderna

interpretação constitucional; ponderação; princípio da proporcionalidade; bem jurídico penal;

Estatuto do Desarmamento.

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ABSTRACT

The implementation of a Democratic State by Law, particularly the new attributed concept

originating in the XX century, has generated the necessity of a revision in the

constitutionalism pillars, along with emerging concurring ideals. The redesign of the essence

of the constitutionalism resulted in introduced canonical interpretations. The basic human

rights increase of the value consummated in the creation of situations where conflicts existed

among themselves. Such focus of tension may only be solved through the ponderation

technique, in which the proportionality principle is used to regulate its implementation. A

double dimension is associated to the referenced principal since it is of penal nature, therefore

it cannot be ignored neither by the legislator, nor, by the one who judges. The paradigm

change in criminal law within the modern Democratic State by Law derives from new concept

that the penal jurisdiction legal goods began to experience. The criminal jurisdiction science

started to tutor values of individual nature as values of collective nature. The necessary

balance in criminal guardianship begins to be the orientation to be followed by the operator of

the law. On this basis, the present dissertation aims in analyzing adjustments made to the

constitutional interpretation, more specifically new inserted criminal values, and thus carrying

through the study of existing conflicting debates in the Statute of Disarmament (Law nº

10,826/03) concatenated with the current values caused by the Criminal Constitutional Law.

Keywords: new constitutionalism; Democratic State by Law; modern constitutional

interpretation; ponderation; proportionality principle; penal jurisdiction legal goods; Statute of

Disarmament.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 12

1. OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO ....................................... 17

1.1 O NOVO CONSTITUCIONALISMO E A MODERNA INTERPRETAÇÃO....... 17

1.2 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DENTRO DE UM CONTEXTO

HISTÓRICO E FILOSÓFICO....................................................................................... 18

1.3 OS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL........................... 21

1.4 OS ELEMENTOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL......................... 25

1.5 OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL............................. 26

1.5.1 Método jurídico ou interpretativo-clássico............................................................ 27

1.5.2 Método tópico-problemático................................................................................. 28

1.5.3 Método científico-espiritual.................................................................................. 28

1.5.4 Método Concretista.............................................................................................. 29

1.5.4.1 Método Concretista de Konrad Hesse............................................................... 29

1.5.4.2 Método concretista de Peter Häberle................................................................ 31

1.5.4.3 Método Concretista de Friedrich Muller........................................................... 33

1.5.5 Método Sistêmico-Constitucional de solução de caso concreto visando a efetivação dos Direitos Humanos....................................................................................

34

1.6 A PONDERAÇÃO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................... 36

2. A PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM

MATÉRIA PENAL....................................................................................................... 39

2.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A PONDERAÇÃO COMO TÉCNICA

DE DECISÃO EM CONFLITOS ENVOLVENDO DIREITOS FUNDAMENTAIS.... 39

2.2 A MUDANÇA NO PAPEL DOS MAGISTRADOS E OS LIMITES À

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DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL........................................................................... 45

2.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO PRINCIPAL

MECANISMO À APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NA

OCORRÊNCIA DE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS..................... 51

2.3.1 Aportes iniciais....................................................................................................... 51

2.3.2 Desenvolvimento Histórico.................................................................................... 52

2.3.3 Elementos constitutivos......................................................................................... 53

2.3.4 Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade................................................ 54

2.4 O DUPLO VIÉS DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA

PENAL............................................................................................................................ 55

2.4.1 A proibição do excesso de punição e a vedação à proteção insuficiente dos bens

jurídicos tutelados............................................................................................................ 55

2.4.2 Elementos constitutivos aplicados especificamente na seara penal....................... 58

3. O DIREITO PENAL SOB O NOVO ENFOQUE CONSTITUCIONAL: A

ALTERAÇÃO NO PARADIGMA DOS BENS JURÍDICOS A SEREM

TUTELADOS PELA NORMA PENAL...................................................................... 61

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 61

3.2 IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA – O NÃO DESENVOLVIMENTO PELO

DIREITO PENAL DA MUDANÇA DE PARADIGMA NA PROTEÇÃO DOS

BENS JURÍDICOS TUTELADOS PELA CONSTITUIÇÃO.......................................

64

3.3 A EVOLUÇÃO SOCIAL E O UNIVERSO DOS BENS JURÍDICOS QUE

GOZAM DE PROTEÇÃO PELO DIREITO PENAL.................................................... 67

3.3.1 Os alicerces dos bens jurídicos penais.................................................................... 67

3.3.2 A busca de uma nova conceituação dos bens jurídicos a serem tutelados pelo

Direito Penal – a divergência entre as escolas contemporâneas...................................... 70

3.4 O PAPEL LIMITADOR DA CONSTITUIÇÃO NO EXERCÍCIO DA

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ATIVIDADE DO LEGISLADOR PENAL................................................................... 74

3.4.1 A Constituição como limite à atividade penalizadora do legislador....................... 75

3.4.2 A Constituição como limite à atividade despenalizadora do legislador................. 76

3.4.3 A Constituição e seus mecanismos no controle da atividade do legislador penal.. 77

3.5 A CONSTITUIÇÃO COMO FUNDAMENTO AO TRATAMENTO PENAL DE

CONDUTAS VIOLADORAS DE BENS JURÍDICOS CONSTITUCIONALMENTE

RELEVANTES............................................................................................................... 81

4. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO SOB A NOVA CONCEPÇÃO DO

DIREITO CONSTITUCIONAL PENAL.................................................................... 84

4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................. 84

4.2 O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA ARMAMENTISTA NO BRASIL...... 86

4.3 O SURGIMENTO DAS LEIS DE ARMAS............................................................. 87

4.4 A LEI nº 9.437/97 (LEI DAS ARMAS DE FOGO)................................................. 90

4.5 ASPECTOS GERAIS DA LEI nº 10.826/03 (ESTATUTO DO

DESARMAMENTO)..................................................................................................... 92

4.6 A PROBLEMÁTICA REFERENTE À EFICÁCIA DO ARTIGO 12 DO ED –

UMA INTERPRETAÇÃO SOB O CRITÉRIO SISTEMÁTICO COM OS ARTIGOS

30 E 32............................................................................................................................ 94

4.7 A PRORROGAÇÃO DO PRAZO DOS ARTIGOS 30 E 32 DO ED POR

MEDIDAS PROVISÓRIAS – ANÁLISE DA COMPATIBILIDADE

CONSTITUCIONAL...................................................................................................... 95

4.8 DA EFETIVA EFICÁCIA DE ALGUNS DISPOSITIVOS DO ESTATUTO DO

DESARMAMENTO ANTE A INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTO

ESPECIFICAMENTE EDITADO – ANÁLISE SOB A ÓTICA DA DUPLA FACE

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DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL................... 97

4.9 DA INEXISTÊNCIA DE ABOLITIO CRIMINIS TEMPORALIS EM RELAÇÃO

ÀS CONDUTAS PREVISTAS NO ARTIGO 12 DO ED DURANTE O PRAZO

CONCEDIDO PELOS ARTIGOS 30 E 32 (E SUAS PRORROGAÇÕES) PARA A

REGULARIZAÇÃO/ENTREGA DAS ARMAS DE FOGO NAS CONDIÇÕES ALI

PREVISTAS – UMA PONDERAÇÃO ENTRE OS INTERESSES EM CONFLITO,

SOB A ÉGIDE DO PRINCÍPIO DA

PROPORCIONALIDADE.............................................................................................. 100

4.9.1 Da impossibilidade de aplicação dos critérios tradicionais de solução de

antinomias entre normas infraconstitucionais que revelem conflitos entre direitos

elencados na Constituição – da incidência da técnica da ponderação para solucionar a

colisão entre direitos constitucionalmente previstos...................................................... 101

4.9.2 Da aplicação da técnica da ponderação à problemática decorrente da não-

eficácia do artigo 12 do ED durante o prazo híbrido concedido pelos artigos 30 e 32 –

a necessidade da observância do princípio da proporcionalidade por seu duplo viés.. 102

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 119

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INTRODUÇÃO

O constitucionalismo contemporâneo vem, progressivamente, buscando

construir uma sustentação teórica para a concretização das normas constitucionais, sem

prejuízo da consolidação do caráter normativo e supremo da Constituição.

A Constituição de 1988 foi feita com características de instrumento de

transformação da realidade nacional. Será assim, na medida em que cumpra e se realize na

vida prática.

A proposta que procura destituir a Lei Maior de sua dimensão política e

axiológica, para reservar-lhe um papel puramente procedimental, não é compatível com as

conquistas do processo civilizatório. O ideal democrático realiza-se não apenas pelo princípio

majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos fundamentais.

Na busca de se assegurar o respeito aos direitos fundamentais, a serem

exercidos dentro de uma organização política organizada, surge a forma contemporânea de

Estado: o Democrático de Direito.

Em que pese suas raízes remontarem ao século XVIII, no qual surgiram os

ideais iluministas que embasaram a forma anterior de organização estatal, o Estado

Democrático de Direito não se resume à garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. A

evolução da sociedade durante os séculos fez com que valores de natureza coletiva surgissem

e reclamassem idêntica proteção à conferida, até então, exclusivamente, àqueles referentes aos

indivíduos de per si.

As relações sociais que se resumiam a dois agentes deram espaço as que

comportavam dezenas, centenas, milhares, milhões de pessoas. Em decorrência desta

mudança de cenário, surgiram as denominadas pretensões transindividuais.

Tal quadro tornou-se mais evidente a partir do último quadrante do século XX.

Atenta a esta nova realidade, as Constituições contemporâneas passaram a positivar esses

direitos de índole coletiva (lato sensu) que eclodiam nas sociedades hodiernas.

O Brasil, país de desenvolvimento tardio, experimentou os ideais do novo

Constitucionalismo de forma recente. Após passar por um regime de exceção, encerrado na

metade da década de 80, veio à luz a Constituição da República de 1988, a qual expôs em

seus dispositivos a novel visão do Direito Constitucional, então vigente nos países mais

avançados. Por tal motivo, os juristas encontram-se em constante estado de descoberta dos

sentidos dos princípios e das regras esposados no texto constitucional.

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Em razão de tal fator histórico e da configuração das relações sociais existentes

atualmente, a Constituição de 1988 trouxe em seu texto o reconhecimento de diversos valores

de cunho transindividual, sem prejuízo de outros de natureza individual, todos gozando de

idêntica hierarquia.

Ocorre que, em determinados fatos sociais, os direitos individuais e os

transindividuais apresentarão um aparente conflito, eis que poderão tutelar aquele caso

concreto de forma diversa. Em tal situação, o operador do Direito deverá se valer da

interpretação constitucional, a fim de solucionar a questão divergente que lhe é colocada, de

forma a harmonizar os direitos em colisão.

A interpretação das normas constitucionais constitui a construção de uma

reflexão que revele a norma adequada, a partir de um sentido prévio fornecido pelo contexto

no qual a Constituição se insere. Partindo de tal perspectiva, será feita uma sucinta análise da moderna interpretação

constitucional a partir de uma visão histórica e filosófica.

Nessa esteira, acatando a premissa de que as normas constitucionais,

especialmente as que tratam de direitos fundamentais, possuem singularidades que a diferenciam

das demais e que, desta feita, demandam um tratamento interpretativo especial, serão lançadas

breves linhas sobre os elementos, métodos e princípios de interpretação da norma constitucional

mais difundidos, evidenciando suas peculiaridades, similitudes e contradições.

Prosseguindo, será enfatizada a ponderação como técnica de decisão em conflitos

envolvendo direitos fundamentais para, ao final, serem descartadas as sofisticações e

complexidades metodológicas desnecessárias e sustentada uma interpretação que efetive esses

direitos e concretize a Constituição, validando sua força normativa.

Fixadas as bases fundamentais da técnica da ponderação, far-se-á o estudo do

princípio da proporcionalidade, posto que configura o principal instrumento a ser utilizado

quando da aplicação do referido método interpretativo.

O princípio da proporcionalidade, de origem européia (mais especificamente

alemã), apresenta-se como essencial à própria afirmação do Estado Democrático de Direito,

uma vez que será um dos mecanismos a dar o fundamental equilíbrio que esse necessita. Não

por outro motivo, embora não encontre previsão expressa no texto da Carta Constitucional

brasileira de 1988, o mencionado princípio encontra sua validade na própria afirmação da

adoção do Estado Democrático de Direito no país pelo constituinte originário.1

1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o

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O necessário equilíbrio que deverá existir entre os direitos fundamentais, tanto

individuais, quanto coletivos (lato sensu), será obtido com a utilização do princípio da

proporcionalidade dentro da ponderação que ocorrerá entre os valores constitucionais em

jogo.

O princípio da proporcionalidade utilizado dentro do Direito Penal possui

característica diversa de quando é utilizado no campo extra-penal. A observância da

dicotomia de proteção na disciplina da tutela penal apresenta-se como fruto do trabalho de

desvendamento permanente da Lei Maior pelos estudiosos do Direito Constitucional e do

Direito Penal.

A ponderação entre os direitos do indivíduo transgressor das normas de

conduta de natureza penal e os direitos da coletividade em ter uma proteção suficiente dos

bens jurídicos que lhe são fundamentais deve ser realizada com extremo zelo, posto que

configura-se, hoje, como o ponto mais sensível do Direito Constitucional Penal.

Conforme será verificado no curso do presente trabalho, a conceituação do bem

jurídico passível de proteção pela norma penal foi alterado com o advento da denominada

sociedade de massa.

A divergência entre as escolas penais modernas acerca do conceito do bem

jurídico penal será esposada, posto que de fundamental importância para o entendimento do

desenvolvimento histórico da tutela penal e da necessidade de ser a mesma repensada diante

do novo quadro existente na sociedade do século XXI.

Em decorrência de tal controvérsia, será possível verificar-se a profunda crise

em que se encontra o Direito Penal hodiernamente, vez que não consegue acompanhar o

desenvolvimento social, apresentando um déficit evidente de tutela dos bens jurídicos

essenciais, os quais reclamam sua proteção.

A adequação da ciência jurídico-penal à sociedade contemporânea passa por

uma inevitável mudança em seu paradigma. Hoje não basta a defesa exclusiva do indivíduo de

condutas infracionais; deve-se proteger, também, a coletividade como um todo.

Dentro do cenário constitucional hodierno, determinados direitos

fundamentais, reveladores de valores relevantes à sociedade, necessitam de um grau de

proteção maior, o qual só pode ser atingido plenamente através da tutela penal. E, assim,

impõe-se ao legislador a criação de uma regulação protetora desses valores constitucionais. exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). “Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)” (grifo nosso)

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Sob outro prisma, os excessos na tutela penal deverão ser vedados em todas as

suas dimensões. E não de outra forma, esta é justamente a exegese do princípio da

proporcionalidade na seara penal.

A tal orientação, frise-se de origem constitucional, deverá o legislador

infraconstitucional se ater quando de sua produção legiferante de natureza penal. E quando tal

concepção não for respeitada, caberá à jurisdição constitucional atuar de modo a sanar esta

inconstitucionalidade da norma legal penal.

Nesse contexto, a presente dissertação pretende analisar algumas questões

tormentosas envolvendo a Lei nº 10.826/03, a qual ficou conhecida como Estatuto do

Desarmamento. No estudo, serão considerados os valores em conflito, utilizando-se da técnica

da ponderação, posto que a única apta a dirimir conflitos envolvendo direitos fundamentais

previstos no texto constitucional.

A solução será obtida com a aplicação do princípio da proporcionalidade,

considerando-se suas características específicas quando incidente em matéria penal.

Verificar-se-á que os entendimentos predominantes tanto na doutrina quanto na

jurisprudência carecem de uma análise correta do mencionado princípio, ante seu duplo viés.

Conforme será demonstrado, os citados posicionamentos revelam uma observância parcial do

princípio, seja exclusivamente por sua ótica negativa, seja estritamente por sua ótica positiva.

A relevância do presente estudo reside principalmente na contribuição social

imediata que ele poderá produzir. O objetivo é fazer uma nova reflexão sobre a mens legis que

orientou o referido diploma, revendo a exigência de motivos jurídicos relevantes e elencados

na própria Constituição da República e suas mais diversas conseqüências sócio-jurídicas.

A contribuição social se verifica na correta aplicação destas leis especiais aos

fatos típicos por elas disciplinados, efetivando o Estado, no desempenho de sua função típica

de veiculador do jus puniendi, seu corolário precípuo: a realização efetiva da justiça.

A pesquisa foi desenvolvida pelo método de abordagem dedutiva, com técnicas

bibliográfica e documental, envolvendo coleta de doutrina nacional e estrangeira, acerca: a)

do novo constitucionalismo e da moderna interpretação constitucional, seus princípios,

elementos e métodos; b) da ponderação como técnica de decisão em conflitos envolvendo

direitos fundamentais; c) do princípio da proporcionalidade e de sua dupla dimensão em

matéria penal; d) da nova concepção dos bens jurídicos penais; e) da mudança de paradigma

no Direito Penal; f) do estudo das questões mais polêmicas envolvendo o Estatuto do

Desarmamento, sob a ótica da ponderação e do princípio da proporcionalidade.

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A pesquisa documental, a seu turno, foi fundamentada na Constituição da

República de 1988 e na legislação infraconstitucional, bem como em acórdãos dos Tribunais

Superiores relativos ao tema.

O presente trabalho, dentro da Área de Concentração Direito Público e

Evolução Social, na linha de pesquisa de acesso à justiça e efetividade do processo, pretende

expor as incertezas geradas pela controvérsia sobre a efetiva eficácia da norma jurídica

disciplinada nas denominadas Leis de Armas, buscando propor uma linha de raciocínio

jurídico apta a ensejar uma solução que preserve a mens legis e, conseqüentemente, a

segurança jurídica, instituto este essencial às ações humanas em sociedade, analisando, in

fine, a tipicidade ou não de determinadas condutas no tempo.

O raciocínio a ser desenvolvido será pautado pelas diretrizes do método da

ponderação na análise da colisão entre direitos fundamentais previstos na Constituição. O

estudo será direcionado para a aplicação do referido mecanismo dentro dos pontos de tensão

inseridos no Direito Penal.

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1. OS MODERNOS CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO

1.1 O novo Constitucionalismo e a moderna interpretação

O verdadeiro e efetivo direito constitucional no Brasil, entendido como ícone

da afirmação dos direitos fundamentais em face do Estado, teve seu marco com a Carta

Constitucional de 1988.2

O texto constitucional elaborado pelos representantes da nação brasileira,

reunidos em uma Assembléia Nacional Constituinte, além de concretizar os novos ideais de

um moderno direito constitucional e dos tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos, os quais inspiravam as novas Constituições que surgiam nos países de

desenvolvimento constitucional tardio, teve como fator mais importante traduzir-se em uma

declaração clara e expressa da sociedade de absoluta rejeição ao regime totalitário, de caráter

ditatorial, que perdurou de meados da década de 60 a meados da década de 80.

A convocação da Assembléia Nacional Constituinte iniciou o processo de

libertação das amarras do atraso e do desrespeito aos direitos fundamentais veiculados pelo

odioso governo de exceção até pouco existente no Brasil, o qual era caracterizado pela

violação constante dos direitos dos cidadãos, onde seus mecanismos legais de proteção

restaram esvaziados.

O sentimento existente não só entre os juristas, mas entre todos os brasileiros,

com o advento de uma verdadeira “Constituição Cidadã”, foi definido com extrema felicidade

por Luís Roberto Barroso, ao afirmar que:

“sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. Uma Constituição não é só técnica. Tem de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. O surgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, de maior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Superamos a

2 A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, possuía como características principais, ser escrita (redigida sob a forma de um texto legal impresso) , promulgada (decorrente diretamente da vontade popular expressada por uma Assembléia Nacional Constituinte), dogmática (elaborada em um único momento histórico), analítica (redigida com diversos dispositivos), compromissária (revela os ideais e interesses de diversos grupos sociais, inclusive minoritários), dirigente (dotada de normas programáticas) e rígida (o processo de reforma do texto constitucional é de natureza complexa, existindo restrições à alterações de natureza supressiva de determinadas matérias).

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crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor.” 3

Nesta mesma época, diante da ineficiência das fórmulas clássicas de

interpretação do Direito, juristas das mais diversas tendências, inspirados pelos novos direitos

identificados, passaram a buscar métodos mais modernos, que aproximassem o Direito da

Justiça.

Todo o Direito foi remodelado e a norma, por via de conseqüência,

redimensionada, passando a ser analisada sob uma perspectiva mais ampla, em conexão com a

realidade. Paralelamente, um novo enfoque foi atribuído ao papel do julgador, o qual passa a

ter função criativa, tornando-se protagonista do processo de criação do Direito.4

Como bem pondera Barroso, a doutrina e jurisprudência pátrias ainda

encontram-se em fase de amadurecimento, o que aumenta sensivelmente a importância das

referências estrangeiras. Entretanto, em que pese tal necessidade, deve-se atentar para que, em

tal processo, não seja criada, de um lado uma subserviência intelectual – a qual consiste na

importação acrítica de fórmulas alheias, com uma conseqüente incapacidade de reflexão

própria – e de outro uma soberba intelectual - pela qual se rejeita aquilo que não se tem

instintivamente. Desta forma, é forçoso reconhecer que não é possível utilizar-se modelos

puros, concebidos alhures. Porém, o sincretismo, desde que consciente e coerente, apresenta-

se como inevitável e desejável.5

1.2. A moderna interpretação dentro de um contexto histórico e filosófico

No Brasil, o marco histórico do novo direito constitucional, assim como dos

estudos acerca de uma nova interpretação da Constituição, foi a Carta Magna, promulgada em

1988, sepultando, de forma definitiva, o regime de exceção que perdurou por duas décadas no

país.

3 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005). 4 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993. 5 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005).

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19

Na Europa, o fenômeno ocorreu pouco antes, com a gradual superação da

crença liberal no imediatismo da Constituição formal, cujas raízes remontam o início do

século XX, e com o distanciamento da idéia de que a interpretação da letra da lei é o único

componente importante. A norma constitucional passa, assim, por um redimensionamento,

sendo interpretada em interação com outras questões meta-jurídicas.6

No que tange ao marco filosófico, este encontra-se umbilicalmente ligado à

crise política do positivismo e à superação do jusnaturalismo.

Pós-positivismo é a denominação que vem sendo empregada para representar a

atual fase do pensamento jurídico, que relaciona ética com a política e com o direito,

superando a visão positivista7 lançada por Hans Kelsen.

A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação de

outras ciências foram gradativamente perdendo espaço por não corresponderem ao estágio de

evolução do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam as causas da

humanidade.

No Brasil, foi após a crise do regime autoritário e a passagem para o regime

aberto e democrático que as idéias de justiça e legitimidade foram reintroduzidas à análise

jurídica, distanciando-se do pensamento positivista.

Dentro deste cenário de reaproximação da ética com o Direito, os valores

compartilhados pela comunidade, mas relegados à Filosofia, foram inseridos na Constituição,

implícita ou explicitamente, sob a denominação de princípios. 8

6 Tal posição vai ao encontro da defendida por Hesse. “A radical separação no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como anteriormente observado, essa separação pode levar a uma confirmação, confessa ou não, da tese que atribui exclusiva força determinante às relações fáticas. Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo.(HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.14).

7 “(...) o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural” não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a aredução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria de direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Biri, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.p.26). 8 Humberto Ávila defende o entendimento de que as normas constitucionais se subdividem em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Entre essas espécies normativas não há hierarquia, mesmo porque as funções desempenhadas pelos princípios e pelas regras são distintas. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.26). Sobre o tema: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 53; ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997. p. 87.

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20

A Constituição ganhou nova roupagem, passando a ser vista como um sistema

aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias

de justiça e de realização dos direitos fundamentais passaram a desempenhar um papel

central.

A nível teórico, de acordo com Barroso, uma das transformações que

revolucionou o conhecimento convencional concernente à aplicação do direito constitucional

foi o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação, voltada para as Constituições

mais abertas.9

Nesse processo passaram a ser considerados como relevantes alguns fatores

pertencentes ao campo de outras ciências sociais, que até então eram considerados estranhos à

interpretação jurídica.

Nesta dicção, a idéia de uma nova interpretação constitucional liga-se ao

desenvolvimento de algumas fórmulas de realização da vontade da Constituição, a qual deriva

da necessidade de uma ordem normativa suficientemente sólida e forte, que valorize

elementos sociais, políticos, econômicos e filosóficos de seu tempo, e que se manifeste na

sociedade, entre todos os que vivem a Constituição.

José Joaquim Gomes Canotilho sistematiza dois objetivos impostos aos

aplicadores das normas constitucionais, incumbidos de aplicar e concretizar a Constituição, os

quais seriam: encontrar um resultado constitucionalmente justo através da adoção de um

procedimento (método) racional e controlável e fundamentar esta solução desta mesma forma.

Em sua visão, considerar a interpretação como tarefa, implica, por conseguinte, que toda

norma é significativa, mas o significado não constitui um dado prévio; mas, sim, o resultado

da tarefa interpretativa.10

Como bem ressalta Konrad Hesse, a interpretação da Constituição tem, pois,

“um papel decisivo para a consolidação e a preservação da força normativa da Constituição. A

interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma.”11

9 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3208>. Acesso em 20 out. 2005. 10 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1193.

11 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.22.

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21

As tendências mais modernas apontam para a formulação de regras e princípios

instrumentais que impliquem em um processo de realização das normas constitucionais, com

a pretensão de eficácia dos bens e direitos ali protegidos, sobretudo os intitulados de

fundamentais.12 Ao contrário do que possam transparecer, não representam um desprezo aos

cânones gerais de interpretação propostos por Savigny, tampouco do método subsuntivo, haja

vista que boa parcela das questões jurídicas permanece sendo resolvida por ele.

Tecidas tais considerações preliminares, passe-se ao exame dos mais

relevantes princípios, elementos, métodos e técnicas que balizam a atividade interpretação

contemporânea.

1.3. Os princípios de interpretação constitucional

A perspectiva pós-positivista13 e principiológica do Direito foi determinante na

evolução e na formação de uma nova interpretação constitucional. Ao lado dos princípios que

foram expressamente inseridos na Constituição, desenvolveu-se um catálogo de princípios

específicos de interpretação constitucional14, os quais não encerram conclusões de antemão

obrigatórias, sendo valorados apenas como pontos de partida ou fórmulas de busca, que se

manejam como argumentos - sem gradação, nem limite - para a solução do caso concreto.

Nesse sentido, Barroso elucida que “os princípios instrumentais de

interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas

que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão

posta”.15

12 “Qualquer Constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através de sua realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos do constitucionais que, na atividade legiferante, administrativa e judicial, aplicam as normas da constituição. Nesta tarefa realizadora, participam ainda todos os cidadãos”pluralismo” de intérpretes fundamentam na constituição, de forma discreta e imediata, os seus direitos e deveres.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1186). 13 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999. 14 Humberto Ávila não utiliza a denominação princípio e sim postulado normativo, por considerar que tal nomenclatura contribuiria mais para confundir do que para esclarecer. Aduz, que os postulados prescrevem modos de raciocínio e de argumentação relativamente a normas que, indiretamente prescrevem comportamentos.(ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 89). 15 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 358.

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22

Quanto à sua função dogmática, deve-se dizer que, embora se apresentem

como enunciados lógicos e, nessa condição, pareçam anteriores aos problemas interpretativos,

tais princípios funcionam como fórmulas persuasivas, das quais se valem os aplicadores do

direito para justificar pré-decisões que, mesmo necessárias ou convenientes, sem o apoio

desses cânones interpretativos se mostrariam arbitrárias ou desprovidas de fundamento.

Virgílio Afonso da Silva, em posição contrária a boa parte da doutrina, não

atribui grande relevância aos princípios difundidos pelos juristas brasileiros por considerar

que muitos deles não se diferenciam dos cânones tradicionais e, ainda, por não acreditar na

possibilidade de aplicação destes em conjunto com outras práticas de interpretação.16A crítica

formulada prospera, mas é falha em muitos aspectos, haja vista que a consagração em um

mesmo texto de opções e interesses diversos, com conceitos abertos, demanda meios mais

aprimorados de interpretação, os quais, uma vez manejados com cautela e bom senso, podem

ser perfeitamente conjugados.

Neste diapasão, o primeiro princípio a ser destacado é o da Unidade da

Constituição, segundo o qual as normas constitucionais devem ser vistas não como

dispositivos isolados, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e

princípios, que é instituído pelo próprio texto constitucional.

Sob esta ótica, a Constituição deve ser interpretada e compreendida como uma

unidade, otimizando o texto constitucional e permitindo aos intérpretes e aplicadores construir

as soluções exigidas em cada situação interpretação.17

Em decorrência da própria conceituação anterior, tem-se o Princípio do Efeito

Integrador, o qual constitui-se em um sub-princípio densificador do Princípio da Unidade da

Constituição, e segundo o qual deve-se buscar, sempre, a integração dos dispositivos

constitucionais, posto que a Carta Magna configura um sistema de normas, as quais não

podem ser interpretadas isoladamente.

O Princípio da Harmonização ou da Concordância Prática consiste,

essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais ao se

deparar com situações de concorrência entre bens dotados de igual proteção constitucional,

16 SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso. Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. 17 Para Canotilho, “o princípio da unidade da Constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a Constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias e antagonismos) entre as suas normas.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1209).

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23

adote a solução que apresente-se mais pertinente ao caso em tela, buscando harmonizar os

dispositivos em jogo, vedando-se, expressamente, a eliminação de quaisquer deles.18

O referido cânone interpretativo possui grande alcance e vêm sendo utilizado

com relativa freqüência pelo Supremo Tribunal Federal.

Encontra-se profundamente ligado ao princípio da proporcionalidade e tem

seu valor em questões de colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e

bens jurídicos protegidos constitucionalmente.

O Princípio da Força Normativa da Constituição, a seu turno, consubstancia

um apelo aos aplicadores da Constituição, para que na solução de problemas jurídico-

constitucionais dê-se preferência àqueles pontos de vista que convertam para uma eficácia

ótima da lei fundamental.19 Em outras palavras, a Constituição possui força própria, não

necessitando de qualquer legislação extravagante para reafirmar-lhe.

Nesta mesma perspectiva, merece realce o Princípio da Máxima Efetividade,

o qual encontra-se estreitamente vinculado ao princípio anterior, em relação ao qual configura

um sub-princípio. Orienta os intérpretes da Lei Maior para que em toda situação interpretação,

sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos, cujas normas,

naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas. Em se tratando de direitos

e garantias constitucionais, sob seu viés positivo, deve-se dar interpretação extensiva a seus

dispositivos, sempre que a própria exegese da norma permitir.20

Outro princípio muito citado pela doutrina é o da Interpretação conforme a

Constituição, cuja aplicação ocorre tanto no âmbito da interpretação, quanto no do controle

de constitucionalidade, neste como técnica de solução de caráter supressivo, ou não, de parte

de norma legal cuja constitucionalidade tenha sido negada pela Corte Constitucional, no

exercício da jurisdição constitucional.21

18 “Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”.(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1209). 19 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p.22. 20 Diversamente, quando o intérprete estiver diante de normas que tratem de restrições a direitos e garantias fundamentais deverá o operador do Direito valer-se de interpretação de caráter restritivo. 21 Nessa linha, Barroso afirma que “a interpretação conforme a constituição pode ser apreciada como um princípio de interpretação e como uma técnica de controle da constitucionalidade.” (BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361).

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24

Sua aplicação é significativa quando, em face de normas de múltiplos

significados, existem diferentes alternativas de interpretação, umas em desconformidade e

outras em consonância com o texto constitucional, sendo que estas devem ser preferidas

àquelas. Frise-se, por oportuno, que eventual interpretação manifestamente contrária à

Constituição não será possível, implicando, necessariamente, em seu imediato descarte pelo

intérprete.

Modernamente, esse princípio passou a consubstanciar, também, um mandato

de otimização do querer constitucional, ao não significar tão somente que entre duas

interpretações possíveis da mesma norma se há de optar por aquela que a torna compatível

com a Carta Constitucional, mas, também, que, entre diversas exegeses igualmente

constitucionais, deve-se escolher a que se orienta para a razão de ser da Constituição e para a

realização dos direitos fundamentais ali veiculados.

Finalmente, porém com a maior relevância dentro da interpretação

constitucional contemporânea, destaca-se o Princípio da Proporcionalidade.

Na visão de Barroso, trata-se de um importante instrumento de proteção dos

direitos fundamentais e do interesse público, por promover o controle da discricionariedade

dos atos do Poder Público e por funcionar como uma medida segundo a qual determinada

norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização de sua função

constitucional.22

O princípio da proporcionalidade constitui, destarte, uma verdadeira garantia

constitucional, protegendo os cidadãos contra o uso desequilibrado – tanto no sentido

comissivo, quanto no omissivo - do poder estatal, auxiliando o juiz na tarefa de interpretar as

normas constitucionais.

Uma melhor análise do referido princípio e, em especial, sua aplicação na seara

penal, como forma de vedação ao excesso na punição, mas também de proibição à proteção

insuficiente do bem jurídico tutelado, serão objeto de estudo no capítulo seguinte da presente

dissertação.

22 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 363.

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1.4. Os elementos de interpretação constitucional

Mecanismos essenciais ao correto entendimento do significado das normas, os

denominados elementos de interpretação podem ser utilizados tanto na seara constitucional,

quanto na análise da legislação infraconstitucional e, inclusive, em sua integração com os

mandamentos constitucionais.

A doutrina destaca quatro principais elementos com efetiva aplicação na

interpretação contemporânea, a saber: o gramatical, o histórico, o sistemático e o

teleológico.23

O elemento gramatical, também denominado literal, restringe-se,

exclusivamente, em aferir o sentido textual da norma, procedendo-se a uma análise

estritamente gramatical dos termos que a compõem. Portanto, consiste em revelar

semanticamente o sentido das palavras.

É o primeiro mecanismo a ser utilizado no processo interpretativo. Constitui-

se, todavia, no momento inicial e também no limite do processo interpretativo. Limite pois,

segundo tal critério, o intérprete encontra duas barreiras extremas: não pode ir além da letra

da lei, nem tão pouco negar as palavras que constem expressamente no texto legal.

Tal elemento, conforme se depreende, tem seu campo de utilização, em muito,

restrito, posto que, invariavelmente, necessitar-se-á da análise dos diversos sentidos que um

termo possa ter dentro de um dispositivo, bem como de uma apreciação conjunta das

múltiplas normas referentes ao objeto sob apuração.

Com menor destaque, observa-se o elemento histórico. Seu objetivo consiste

em revelar o sentido da norma pelo exame da vontade histórica do constituinte. Portanto, no

momento de sua elaboração. O intérprete utiliza-se do contexto histórico e sócio-político

existente quando da criação do texto legal sob análise.

Tal critério não encontra muito prestígio no mundo jurídico, posto que, quando

a lei é feita, passa a ter vida própria, ter existência objetiva, não podendo ficar presa a

concepções subjetivas e, sobretudo, existentes em um determinado momento histórico

pretérito, muitas das vezes não condizente com a realidade em que o operador do Direito se

encontra.

23 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 12ª edição, São Paulo: Atlas. 2002; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997.

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Como é cediço, a lei é mais inteligente que o legislador. Desprende-se da

vontade que a criou e sujeita-se à evolução dos fatos.

A lei constitucional é gerada por uma vontade subjetiva do legislador, a mens

legislatoris, mas se desprende desta vontade, possuindo vontade própria e existência objetiva.

Ante os princípios constitucionais da Unidade da Constituição e do Efeito

Integrador, este entendido como sub-princípio densificador daquele, ambos inseridos no

campo da interpretação constitucional, exsurge o elemento sistemático.

Por tal elemento, tem-se que as normas compõem um sistema, o qual deve ser

analisado em todo o seu conjunto, não cabendo uma interpretação isolada de suas normas. O

sistema configura-se em um conjunto de elementos harmonicamente articulados. Assim, é

preciso que haja composição e harmonia entre as partes deste sistema.

Desta forma, o intérprete deverá analisar, primeiramente, o dispositivo dentro

da lei em que se insere e, posteriormente, conjuntamente com as demais normas que integram

o ordenamento jurídico, principalmente e precipuamente, com as disposições elencadas no

texto constitucional.

Só será possível determinar-se o sentido de determinado dispositivo após

confrontá-lo com os demais regramentos legais (lato sensu) pertinentes.

Por fim, tem-se o elemento teleológico, segundo o qual, o intérprete, ao

realizar sua atividade precípua, deve buscar o sentido da norma, o seu real significado.

Toda norma possui um objetivo a ser alcançado. A tal é dado o nome de mens

legis, ou, sentido da norma. O operador do Direito, ao exercer a função de interpretação de

um dispositivo, deverá sempre buscar o fim almejado por aquele texto legal sob análise, o(s)

bem(ns) jurídico(s) que a norma visa proteger.

Importante frisar que a utilização do elemento teleológico terá resultados mais

eficazes se veiculado em conjunto com o elemento sistemático, posto que apresenta-se

essencial à compreensão do correto objetivo da norma sua análise em conjunto com as demais

normas afins.

1.5. Os métodos de interpretação constitucional

Ao lado dos princípios instrumentais de exegese constitucional, é disposta na

doutrina uma extensa lista de métodos, os quais refletem a preocupação de se sintonizar a

normatividade com a realidade fática. Representam uma evolução seletiva que conserva parte

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dos conceitos clássicos de interpretação, mas que também acrescenta novos conceitos e

idéias.

Neste aspecto, considerando a progressiva sofisticação das normas jurídicas

dotadas de maior abstração e de textura mais aberta, torna-se importante, tanto para o

operador do direito, como para a comunidade destinatária, uma maior precisão metodológica,

essencialmente ligada à idéia da segurança jurídica.24

Os métodos que são hodiernamente utilizados pelos operadores da Constituição

são, fundamentalmente, o método jurídico ou interpretativo-clássico; o tópico-problemático; o

interpretativo-concretizador; o científico-espiritual; o normativo-estruturante e o sistêmico

constitucional de solução do caso concreto, cujos traços mais significativos serão expostos a

seguir.

1.5.1. Método jurídico ou interpretativo-clássico

Para os defensores deste método, deve-se interpretar a Constituição da mesma

forma que se interpreta a Lei. Só através desta tarefa se passa da leitura política, ideológica ou

simplesmente empírica para a leitura jurídica do texto constitucional, seja ele qual for.25

Assim, para se captar o sentido da norma constitucional, a Constituição há de

ser interpretada segundo as regras tradicionais da interpretação, articulando-se e

complementando-se os mesmos mecanismos que são levados em conta na interpretação das

leis, em geral.

A concatenação destes instrumentos resguarda o princípio da legalidade, pois é,

simultaneamente, o ponto de partida e de chegada para a tarefa de captação do sentido da

norma. A tarefa do intérprete, enquanto aplicador do direito, se resume em descobrir o

verdadeiro significado das normas e guiar-se por ele na sua aplicação.

Trata-se, como se depreende, de uma concepção interpretação baseada na

crença de que toda norma possui um sentido em si, seja aquele que o legislador pretendeu

atribuir-lhe originariamente (mens legislatoris), seja o que, afinal e à sua revelia, acabou

embutido no texto (mens legis). 24 “Para que as decisões não sejam reflexo das convicções íntimas e pessoais do julgador é preciso valorizar o procedimento, construindo parâmetros formais de legitimidade que assegurem uma aplicação do direito tão democrática quanto se exige seja a sua produção.” (NASCIMENTO, Rogerio J. B. S.. Contribuindo para uma doutrina constitucional adequada: dialogando com a teoria da constituição dirigente. In: Júris Poiesis - Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), pp. 421-437). 25 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Constituição e Inconstitucionalidade. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

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1.5.2. Método tópico-problemático

A tópica não é uma técnica de pensar moderna, embora dela se escute muito

falar contemporaneamente. Ao revés, é um modo de pensar muito antigo que vem antes de

Aristóteles, junto com ele e depois dele. Este modo de pensar foi retomado por Theodor

Viehweg, em sua obra Topik und Jurisprudenz, publicada pela primeira vez em 1953, onde

sugere que a tópica deveria ser utilizada como técnica de interpretação do Direito.

Em consonância com a lição de Canotilho, o método tópico-problemático, no

âmbito do Direito Constitucional, parte das seguintes premissas:

“(1) carácter prático da interpretação constitucional, dado que, como toda interpretação, procura resolver os problemas concretos; (2) carácter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; (3) preferência pela discussão do problema em virtude da open textura (abertura) das normas constitucionais que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo.”26

Instala-se um processo aberto entre vários participantes, partindo de tópicos ou

pontos de vistas, a fim de se desvendar a interpretação mais apropriada para o caso concreto.

O método tópico caracteriza-se como uma "arte de invenção" e, como tal, uma

"técnica de pensar o problema", elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma

solução adequada.

A principal crítica feita ao método tópico é a sustentada por Canotilho de que

“além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do

problema para a norma, mas desta para os problemas”.27

1.5.3. Método científico-espiritual

Desenvolvido por juristas alemães, dentre eles Rudolf Smend, tal método parte

da premissa que a Constituição se apresenta como um conjunto de distintos fatores

integrativos, elementos de coesão entre os indivíduos.

Como método de interpretação, a corrente científico-espiritual admite um

sistema de valores subjacentes ao texto constitucional, revelando-se a Constituição um

elemento do processo de integração, não apenas do ponto de vista jurídico-formal, enquanto

norma-suporte e fundamento de validade de todo o ordenamento, mas também e sobretudo em 26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1197. 27 Ibidem, p. 1198.

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uma perspectiva política e sociológica, como instrumento de regulação (absorção/superação)

de conflitos, de construção e de preservação da unidade social.

1.5.4. Método Concretista

O método concretista foi desenvolvido pelos juristas alemães Konrad Hesse,

Friedrich Müller e Peter Häberle, tendo cada um deles oferecido valiosas contribuições para o

seu desenvolvimento.

O ponto de partida para a compreensão deste método é a constatação de que a

leitura de qualquer texto normativo, inclusive do texto constitucional, começa pela pré-

compreensão do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de uma dada situação

histórica concreta.

O método concretista evidencia algumas premissas da atividade interpretativa e

gira em torno de três tópicos essenciais: a compreensão prévia do intérprete na tarefa de

obtenção do sentido constitucional; os dados fáticos do problema a solucionar e a relação

entre o texto e o contexto.

1.5.4.1. Método Concretista de Konrad Hesse

Konrad Hesse é um dos ícones de maior expressão no Direito Constitucional

contemporâneo, cuja produção é referência obrigatória para um efetivo estudo do Direito

Constitucional. Sua obra intitulada de “A Força Normativa da Constituição” apresenta uma

nova perspectiva da Constituição, como responsável pela unidade política da sociedade, onde

o texto constitucional se identifica como instrumento político e jurídico de ordenação e

fundação social.28

Se contrapondo a tese de Ferdinand Lassale, que reduz a Constituição jurídica

de um Estado a um “pedaço de papel”, pelo fato das questões constitucionais não serem

questões jurídicas, mas tão somente políticas, Hesse sustenta que a Constituição não está

28 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991.

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30

desvinculada da realidade histórica de seu tempo, mas que, também, não se condiciona

simplesmente por esta realidade.29

Busca demonstrar que o desfecho do embate entre os fatores reais do poder

(militar, social, econômico e intelectual) e a Constituição não há de verificar-se em desfavor

desta. Assim, não há que se desprezar o significado dos fatores históricos, políticos e sociais

presentes em toda e qualquer ordem constitucional.

Na visão do jurista, a concretização da Constituição é determinada pela

realidade social e, ao mesmo tempo, é determinante em relação a ela, tornando-se impossível

definir como fundamental tão somente a pura normatividade ou a eficácia das condições

sócio-políticas e econômicas.30

Hesse destaca a chamada vontade da Constituição, ressaltando sempre a

necessidade de se preservar sua força normativa.31 Nas palavras do jurista, “a Constituição

adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”.32

O pressuposto material para o desenvolvimento da chamada “força normativa”

é a correspondência desta com o presente e com os anseios de melhora nas condições sociais,

haja vista a função de aprimoramento social que é inerente à norma constitucional.

Assim, afirma que “a norma constitucional mostra-se eficaz, adquire poder e

prestígio se for determinada pelo princípio da necessidade. A força vital e a eficácia da

Constituição assentam-se na sua vinculação às potências espontâneas e às tendências

dominantes de seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação

objetiva.”33

Na tese de Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face do

problema concreto, de forma que a determinação do sentido da norma constitucional e a sua

aplicação ao caso concreto constituem um processo unitário.

Nas palavras do jurista alemão:

“a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima

29 Sustenta, também, que “o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas – ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco.”(HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p. 13). 30 (HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991, p. 15) 31 Concebida, neste contexto, como expressão dos elementos culturais e espirituais que constituem o espaço elaboração da norma constitucional. 32 Ibidem, p. 16. 33 Ibidem, p. 18.

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31

concretização da norma (Gebot optimaler Verklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação."34

Destarte, a concepção concretizadora de Hesse acerca da interpretação do

Direito se orienta através de um pensamento problematicamente orientado, de uma atividade

de construção, não de descoberta. O operador não extrai a norma do texto, como se este

previamente a contivesse. A norma, portanto, é edificada a partir da conexão da

normatividade com a realidade.

1.5.4.2. Método concretista de Peter Häberle

Peter Häberle propõe uma interpretação constitucional que contraria a

orientação interpretação clássica e que contempla o ajuste do tema “Constituição e realidade

constitucional” com a incorporação das ciências sociais e das teorias jurídico-funcionais,

assim como de métodos voltados para o interesse público.

Na concepção do autor, a teoria da interpretação constitucional tem

concentrado seus esforços em dois pontos principais: a questão acerca das tarefas e objetivos

da interpretação e a referente aos métodos, que envolve o processo da interpretação e suas

regras.

Todavia, há um aspecto fundamental para o qual não se tem dado a devida

importância: a questão relativa aos participantes da interpretação. Isto se dá em razão do forte

vínculo que a teoria da interpretação constitucional tem mantido com um modelo de

sociedade fechada, conferindo especial destaque aos procedimentos formalizados e à

interpretação constitucional realizada pelos magistrados. Contudo, por mais importante que

seja a interpretação constitucional dos juízes, ela não é a única possível.

Nesta esteira de pensamento, o pensador alemão defende a idéia de que todo

aquele que vive a norma constitucional acaba por interpretá-la. E que, em assim sendo, a

sociedade se converte em força produtiva de interpretação, potencialmente apta a oferecer

alternativas para a interpretação constitucional, tornando-se impensável uma interpretação da

34 Ibidem, p. 23.

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32

Constituição sem a participação do conjunto social pluralista (órgãos estatais, participantes de

processos, peritos, pareceristas, dentre outros).35

Em uma sociedade aberta, a democracia não se desenvolve apenas por

representação, mas também mediante a controvérsia sobre alternativas, possibilidades e

necessidades da realidade, bem como sobre o “concerto” científico das questões

constitucionais, nas quais não pode haver interrupção, assim como não existe e nem deve

existir dirigente.36 Neste diapasão, a interpretação é vista através de um enfoque democrático,

sintonizada com uma sociedade aberta.

A tese concretizadora de Häberle desdobra-se em três pontos principais: a

ampliação do círculo de intérpretes da Constituição; o conceito de interpretação como um

processo aberto e público; e, a referência desse conceito à própria Constituição, como

realidade constituída.

Com efeito, o professor alemão expõe sua tese, afirmando que:

“a interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos "vinculados às corporações" (Zünftamässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.” 37

O método concretista de Häberle, apesar de ser atraente e de contribuir para

uma ideologia democrática, demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos

fundamentais: sólido consenso, instituições fortes, cultura política desenvolvida, pressupostos

não encontrados em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

35 Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 2002. 36 Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que “há muitas outras formas de participação direta do povo na vida política e na direção dos assuntos públicos, que dão configuração concreta à democracia participativa, que não elimina as instituições da democracia participativa. Ao contrário, reforça-a, fazendo com que a relação governo/povo, representante/representado, seja mais estreita e mais dinâmica, propiciando melhores condições para o desenvolvimento de um governo efetivo do povo, pelo povo e em favor do povo.” (SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. Estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2002). 37 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 2002, p. 13.

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33

Ademais, a ampliação de interpretações pode conduzir a uma interpretação

duvidosa e imprecisa, indubitavelmente descomprometida com a segurança jurídica e com a

unidade da constituição.

1.5.4.3. Método Concretista de Friedrich Muller

A Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Muller38 está inserida no campo

da metodologia, mas assim como as demais doutrinas concretistas, guarda ligação com as

teorias da norma e da Constituição.

Pressupõe uma teoria da norma estabelecida a partir da relação norma-

realidade, demandando do operador no processo de concretização do Direito, uma intervenção

mais ativa e criadora.39

A concretização normativa, no método de Muller, se processa através de um

trabalho sobre os dados lingüísticos do texto normativo e sobre os dados fáticos, culminando

na definição de um programa normativo que expressa o modelo de ordenação e de um campo

normativo40 que traduz um segmento da realidade correlata.

A interpretação conjuga o programa normativo com o campo de mesma

natureza, ressaltando as possibilidades mais ajustadas às demandas da realidade pertinente a

determinada norma. Esta norma jurídica construída não é uma norma individual, eis que o seu

campo normativo, composto por elementos de um setor da realidade, pode ser aplicável a

casos análogos.

A norma-decisão é a decisão individual, a qual terá como base a norma-

jurídica.41 Ao aplicar esta norma-decisão, o juiz deverá demonstrar que esta decisão que ele

concretizou pode ser imputada à norma jurídica por ele invocada e, por sua vez, que esta

provêm de um texto do qual ele partiu.

Na ótica do criador do método, utilizando-se as premissas da teoria proposta,

resta superada a interpretação como reconstrução da vontade do legislador, haja vista que a

decisão normativa somente é extraída com o exame de um caso concreto. Também fica

38 MULLER. Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Tradução de Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 39 “Não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentado nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão jurídica. (MULLER. Friedrich. Métodos de Trabalho de Direito Constitucional. Tradução de Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p. 50). 40 Na tradução que ora se utiliza, o autor vale-se da expressão âmbito normativo ou âmbito da norma. Na doutrina, há, também, outras terminologias, como domínio normativo. 41 O texto da Constituição não se confunde com a norma jurídica, pois este é composto pelo programa e pelo campo normativo.

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34

afastado o decisionismo do juiz, pois este deve decidir em conformidade com o direito,

atuando apenas como intermediário do poder no Estado de Direito.

1.5.5 Método Sistêmico-Constitucional de solução de caso concreto visando a efetivação dos

Direitos Humanos

A análise recente da evolução dos estudos voltados para o Direito

Constitucional reflete a preocupação dos juristas com a concretização das normas

constitucionais, notadamente as que cuidam dos direitos fundamentais. Uma série de pontos

de vista já foram inseridos nesta discussão, dentre eles a tentativa de interpretação dos direitos

fundamentais como instituições (Häberle) e a formulação de inúmeros princípios e métodos

modernos voltados para a exegese constitucional.

Ao lado de tais idéias, situa-se o método sistêmico-constitucional elaborado

pelo Professor Rogério Gesta Leal. Partindo de uma abordagem meta disciplinar, o caso

concreto é analisado sob vários ângulos, através de um procedimento integrado de

compreensão e aplicação dos ordenamentos.

Ao analisar a fértil e bem fundamentada proposta de Gesta Leal, percebe-se

que as raízes de sua metodologia localizam-se na insuficiência dos métodos dedutivo puro e

indutivo puro, para solucionarem as questões trazidas ao Judiciário, oriundas das complexas

relações sociais contemporâneas.42

Enquanto procedimento investigativo, o método criado por Gesta Leal

“trabalha com a noção de desconfiança de fórmulas e equações prontas para enfrentar

problemas sociais e a certeza de que o modelo cartesiano de pensar esgotou as estratégias que

moldaram um homem dolorosamente fraturado em sua condição de ser no mundo”.43

Nessa perspectiva, pode-se dizer que a metodologia sistêmico constitucional de

solução do caso concreto vai se fundar numa abordagem dos casos judiciais a partir de sua

natureza meta-normativa, bem como em um procedimento global integrado.

42 Na dicção de Rogério Gesta Leal, as formas de interpretação da norma classicamente utilizadas pelos sistemas romano-germânicos (dedutivo puro) são demasiadamente presos à intelecção da regra jurídica, utilizando muito mais métodos gramaticais e da mens legisiatoris, do que buscando formas de emancipação e adequação da norma aos fatos contemporâneos.O método indutivo também apresenta insuficiências a despeito de partir exatamente deles para encontrar possíveis respostas normativas. (LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio). 43 LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio), p.128.

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35

O método referido norteia-se por algumas idéias que guiam sua aplicação, as

quais, não por outro motivo, estarão presentes em todos os momentos de abordagem do caso

concreto. Neste sentido, são elas: a idéia da re-ligação; a idéia do debate; a idéia de

compreensão; a idéia de magnanimidade; a idéia de incitação às boas vontades, visando

estimular uma associação de esforços voltados a explorar os sentimentos mais nobres e

humanistas; a idéia da resistência, para opor às barbáries institucionalizadas em nosso

cotidiano uma certa postura alternativa de vida e sentimentos.

Em um primeiro momento, o que se estará analisando será o problema inter-

pessoal ou coletivo, a partir de seu enfoque e contextualização social. Nesta etapa, verificar-

se-á a natureza social do conflito, os sujeitos conflitantes, a história detalhada; as variáveis

econômicas, políticas, culturais, religiosas, afetivas, sexuais, etc. e em que medida tais

elementos atingem os sujeitos conflitantes ou mesmo podem conformar o conflito em si.

O estudo das particularidades do caso é indispensável ao sucesso da

metodologia. Desta forma, a análise pormenorizada dos elementos conformadores do

processo implica, inexoravelmente, em uma decisão satisfatória.

O que prepondera, portanto, é a parte fática, marcada pela coleta das

informações e das razões identificadoras dos sujeitos em litígio e do objeto a ser enfrentado na

lide.

Neste aspecto, é indispensável frisar que todas as questões e variáveis direta e

indiretamente ligadas ao conflito, às partes envolvidas44 e ao objeto sejam suscitadas, de

forma a possibilitar a percepção clara dos fundamentos e razões fáticas, para se evitar

determinadas padronizações tradicionais que a jurisprudência recorrentemente tem imposto à

tradição jurídica ocidental.

Ainda com relação à delimitação fática do objeto, devem os pedidos judiciais

serem certos e determinados, haja vista que a certeza e a determinação são verdadeiras

qualidades que não se excluem, mas se somam na lógica do sistema jurídico. Outro ponto

relevante que se insere nesta fase é a ponderação acerca das funções e finalidades dos direitos.

Significa dizer que os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais devem

permanecer no plano da função a que devem desempenhar, sob pena de se cometer um desvio,

um abuso de direito; o ato abusivo é o ato contrário ao fim da instituição, à sua finalidade.

44 A importância da delimitação do perfil meta-jurídico dos sujeitos de direitos envolvidos em lides jurisdicionais, e as circunstâncias materiais que os cercam, é tão importante que, por vezes, a própria legislação é que impõe tal aferição, inclusive para os fins de resolver o litígio, como ocorre no âmbito das relações de consumo e laborais, quando se impõem considerar uma das partes como hipossuficiente em face da outra.

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36

Em um segundo momento, a abordagem se voltará para os elementos

dogmático-positivos dos temas/problemas propostos, numa perspectiva sistêmica, reflexiva e

crítica.

As normas45 aplicáveis ao caso deverão ser levantadas partindo da idéia da

concatenação interior que liga todos os institutos jurídicos e as regras de Direito numa grande

unidade ordenadora das relações sociais.

Nesta etapa o operador selecionará no ordenamento jurídico, dentre as regras e

princípios constitucionais e infraconstitucionais, o que for necessário à solução do caso

concreto.

De acordo com Gesta Leal, “no manejo deste sistema jurídico, importa ter

presente alguns critérios de aplicação das normas (regras e princípios), através de

procedimentos racionais e controláveis, dentre os quais destaca-se a ponderação”.46

A ponderação, como mecanismo de convivência de normas que tutelam

valores ou bens jurídicos contrapostos é uma alternativa para a busca de um resultado

socialmente desejável.47

Outro ponto relevante na metodologia de Leal é a forma de se interpretar o

ordenamento jurídico, que deve pautar-se em premissas filosóficas, metodológicas e

epistemológicas, sob pena de comprometer todo o procedimento.

Finalmente, o terceiro e último momento será marcado pela avaliação crítica e

aprofundada, a partir dos elementos reunidos na fase anterior.

Apresentados os mais relevantes métodos modernos de interpretação, cumpre

destacar com maior ênfase a técnica da ponderação, ante sua especial importância no deslinde

das questões que envolvam interesses constitucionais em aparente divergência.

1.6. A Ponderação e os Direitos Fundamentais

O ordenamento jurídico, como se sabe, é composto por normas

harmonicamente articuladas. Para seu correto funcionamento, uma situação fática não poderá

45 Não se interpretam normas. O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo.( GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo, Malheiros, 2005). 46 LEAL, Rogério Gesta. Desafios Hermenêuticos e Pragmáticos à efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil (mimio). 47 A técnica da ponderação será objeto de análise no capítulo seguinte.

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37

ter disciplina em disposições legais que se contraponham. Em havendo conflito entre leis, três

são os critérios de solução: o hierárquico, o cronológico e o da especialização.48

Entretanto, situação diversa ocorre se a antinomia verificar-se entre normas

dispostas diretamente no texto constitucional, onde tais critérios são insatisfatórios.

A uma, pois não há hierarquia entre normas constitucionais.

A duas, porque, especialmente se tais dispositivos em divergência versarem

sobre direitos fundamentais, em se aplicando os referidos mecanismos, uma norma

necessariamente ficaria prejudicada em virtude da aplicação de uma outra.

A três, pois não há direito absoluto na Constituição. Todos são dotados de

relatividade.

Diante de tal controvérsia entre normas constitucionais, surge a ponderação,

entendida como mecanismo de convivência de normas que tutelam valores ou bens jurídicos

contrapostos, como uma alternativa para a busca de um resultado socialmente desejável.

Conforme acima fundamentado, quando se trabalha com a Constituição não é

possível simplesmente escolher uma norma em detrimento das demais: o princípio da

unidade, pelo qual todas as disposições constitucionais têm a mesma hierarquia e devem ser

interpretadas de forma harmônica não admite esta solução.49

Na verdade, a ponderação se aplica a casos, onde há confrontos de razões, de

interesses, de valores ou de bens albergados por normas constitucionais. O valor desta técnica

reside na possibilidade de solucionar esses conflitos normativos da maneira menos traumática

para o sistema como um todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver sem

a negação de qualquer delas, ainda que em determinado caso concreto elas possam ser

aplicadas em intensidades diferentes.

Um estudo mais aprofundado da ponderação será realizado no capítulo

seguinte do presente trabalho, eis que essencial ao embasamento teórico da tese que se busca

demonstrar.

A necessidade da utilização da ponderação em matéria constitucional penal

apresenta-se em conformidade com o moderno pensamento sobre as questões de alta

indagação decorrentes de um eventual foco de tensão existente quando em conflito os direitos

do indivíduo praticante de uma infração criminal e o direito da sociedade à segurança e 48 De acordo com o método hierárquico, a lei considerada superior, segundo o critério disposto na Constituição da República, prevalece sobre a inferior; com relação ao cronológico, aplica-se a lei posteriormente promulgada em detrimento da anterior; pelo método da especialização, a lei que confira tratamento específico à situação em tela tem prevalência sobre a lei de caráter genérico. 49 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 55.

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38

incolumidade, conforme veremos nos capítulos que se seguem nesta dissertação,

apresentando-se seu embasamento teórico e sua aplicação em um estudo de caso.

Os cânones expostos apontam para um progresso da interpretação, enquanto

instrumentos de interpretação que devam ser manejados à luz de casos concretos, através de

uma atividade entre objeto e método, realidade e norma, para recíproco esclarecimento,

aproximação e explicitação. No entanto, precisam ser lapidados a fim de que possam ser

utilizados sem representar uma ameaça às legalidades democráticas do ordenamento jurídico,

cujas raízes estão na Constituição.

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39

2. A PONDERAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA

PENAL

2.1. Breves apontamentos sobre a ponderação como técnica de decisão em conflitos

envolvendo direitos fundamentais

O constitucionalismo vive um momento marcado por mudanças, reflexas das

transformações operadas na sociedade. Esse conjunto de mudanças, que vêm recebendo

distintas denominações, dentre elas neoconstitucionalismo, constitucionalismo

contemporâneo e paradigma constitucional, possui alguns traços marcantes, relacionados,

principalmente, à importância outorgada aos princípios como ingredientes necessários à

compreensão da estrutura e do funcionamento de um sistema jurídico e, em particular, das

sociedades contemporâneas avançadas.50

Os direitos fundamentais, enquanto normas principiológicas, possuem uma

carga valorativa que não se coaduna com a objetividade das normas que veiculam regras de

comportamento. E como tal, por nortearem o sistema jurídico, emanando valores, podem

importar em diferentes soluções quando aplicadas a cada situação, não comportando uma

interpretação fechada e restritiva.

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal entende não haver distinção entre as

normas constitucionais, sejam elas principiológicas, ou não. Posiciona-se no sentido de que a

interpretação de direitos fundamentais conduz ao desenvolvimento de uma lógica flexível, ou

seja, de balanceamento dos valores envolvidos na situação concreta, partindo de um juízo de

razoabilidade com o fito de extrair o conteúdo dos direitos fundamentais conflitantes para

harmonizá-los, dada as circunstâncias apresentadas.

Essa mudança de concepção, derivada das evoluções das relações sociais e do

próprio direito, paulatinamente é incorporada ao discurso e à atividade desenvolvida pelo

intérprete final, que efetivamente dá vida às interpretações. Rogério Gesta Leal define bem

esse processo e ressalta que “o processo de constituição do significado do texto está

profundamente marcado pelos elementos discursivos e categoriais erigidos pelo tempo

daquela história”.51

50 ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1999. p. 309-310. 51 LEAL. Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2000. p. 132

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40

Se num primeiro momento, as fórmulas abstratas e a descrição judicial

solucionavam todos os problemas, no atual estágio de desenvolvimento do Direito todo o foco

situa-se no caso concreto e em suas particularidades. São inúmeras as situações conflituosas

que emergem, o que torna inaceitável um único posicionamento já que em muitos casos há

interesses e valores colidentes.

O modelo legal racionalista, a que basta a igualdade meramente formal e que

se utiliza de conceitos quase casuísticos, como se observa com facilidade nas grandes

codificações, não mais satisfaz e é substituído por um nova concepção que vai buscar a

igualdade material e utilizar-se-á cada vez mais de conceitos jurídicos imprecisos (também

chamados conceitos jurídicos indeterminados), o que exige uma atuação mais efetiva e

criativa do Judiciário.

Os juízes, enquanto intérpretes finais do Direito, passam a desempenhar suas

funções guiados não exclusivamente pelo êxito, mas pela correção, pela pretensão de justiça,

na necessidade de justificar racionalmente suas divisões, como característica essencial de uma

sociedade democrática, na qual o poder se submete à razão e não a razão ao poder.52

A mera declaração53 do conteúdo da lei, sustentada no período liberal é

definitivamente substituída por novos e modernos instrumentos técnicos e dogmáticos de

interpretação e aplicação da lei54. Os juízes passam a co-participantes do processo de criação

do direito.

Os princípios surgem com uma nova roupagem, abandonando o papel

secundário que o positivismo jurídico havia lhes reservado. Ao lado das regras

constitucionais, passam a dar um novo sentido a todo o ordenamento jurídico. Toda a

interpretação é redimensionada e reformulada, passando a norma a ser analisada de uma

forma mais ampla, em conexão com a realidade.

52 ATIENZA, Manuel. El Sentido del Derecho. 2.ed. Barcelona: Ariel, 1999. p. 309-310. 53 Essa idéia surgiu com a Teoria da Separação de Poderes de Montesquieu. Sustentava o jurista, a divisão do poder público em três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um composto por órgãos específicos e pessoas diferentes. Essa separação, segundo o autor, é essencial para que haja a liberdade do cidadão em se sentir seguro perante o Estado e perante outro cidadão, pois se fosse dado a mais de um desses poderes o poder de legislar e ao mesmo tempo julgar, essa medida seria extremamente autoritária e arbitrária perante o cidadão que estaria praticamente indefeso, ou seja, estaria a mercê de um juiz legislador. Na visão do jurista, cabia aos magistrados apenas a declaração da lei. (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000). 54 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

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41

Novos cânones da interpretação, pautados em premissas filosóficas,

sociológicas e epistemológicas, são inseridos entre os elementos de interpretação tradicionais,

em especial o teleológico e o sistemático, com o objetivo de acompanhar as mudanças

processadas na sociedade e de promover uma aplicação mais justa da lei.

Nesse panorama, acompanhando as regras de interpretação já analisadas no

capítulo anterior, surge a ponderação como “a técnica jurídica de solução de conflitos

normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas

interpretativas tradicionais”.55

Como bem conceitua Ana Paula de Barcellos, a ponderação é uma técnica de

decisão pela qual se solucionam conflitos normativos que não puderam ser resolvidos pelos

elementos clássicos da interpretação jurídica (semântico, lógico, histórico, sistemático e

teleológico) nem pela moderna interpretação constitucional (princípios de interpretação

propriamente constitucional, interpretação orientada pelos princípios, etc.).56

Pode também ser definida como técnica de decisão que valoriza as dimensões

fáticas do problema, impondo uma coordenação e conjugação dos bens jurídicos conflitantes

ou concorrentes de forma a harmonizá-los nas circunstâncias da situação material, evitando o

sacrifício total de uns em relação aos outros.

Assim, a ponderação se aplica em situações onde há confrontos de razões, de

interesses, de valores ou de bens tutelados por normas de natureza constitucional.

A grande virtude desta técnica encontra-se, justamente, na possibilidade de

solucionar esses conflitos normativos de forma que se gere o menor abalo possível no

ordenamento jurídico. Assim, as normas em oposição continuam a conviver sem a negação de

qualquer delas, sendo certo que diante da situação fática potencialmente encadeadora de

tensão possam ser aplicadas em intensidades diferentes.

Até alguns anos atrás, essa técnica esteve vinculada à teoria dos princípios,

sendo aceita por grande parte da doutrina apenas para solucionar conflitos envolvendo

princípios de mesma hierarquia, como por exemplo, a liberdade de expressão e de imprensa

versus o direito à honra, à vida privada e à intimidade. Essa concepção surgiu com o jurista

americano Ronald Dworkin, e foi aprimorada por Alexy, que sustenta que os princípios, para

55 Conceito mencionado por Ana Paula de Barcellos. (BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p.23).

56 A estrutura geral da subsunção pode ser descrita da seguinte forma: premissa maior - enunciado normativo - incidindo sobre a premissa menor - fatos - e produzindo como conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto.

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serem aplicados, devem ser sopesados, ao contrário das regras, que se materializam pelo

dogma do “tudo ou nada”.

Com o desenvolvimento do direito constitucional no século XX e,

conseqüentemente, da interpretação, passou-se a admitir que a aplicação da técnica da

ponderação também em tensões envolvendo normas que veiculem regras e não somente

princípios.

Assim, atualmente, vem sendo reiteradamente aplicada pelos Tribunais,

também em conflitos envolvendo regras entre si, princípios entre si e/ou entre regras e

princípios57, confirmando a tendência defendida por Humberto Ávila, segundo a qual é uma

técnica autônoma, “que, aliás, vem sendo aplicada em diversos outros ambientes que não o do

conflito de princípios”.58

Há um outro grupo de doutrinadores59, vinculados às discussões sobre a teoria

da argumentação, que tratam da ponderação como um elemento indispensável ao discurso e à

decisão racionais. Para os que defendem tal concepção, a análise ponderativa não se limitaria

às normas, atingindo todos os argumentos inerentes ao discurso, sejam eles de natureza moral,

política ou econômica.

O procedimento da técnica ponderativa, para ser aplicado de forma correta,

necessita que sejam obedecidas algumas fases (três, na verdade), a fim de se verificar ser

hipótese, ou não, de sua incidência.

Na primeira etapa, os comandos normativos conflitantes são identificados. É

importante ressalvar que, como esclarece Ana Paula de Barcellos, a norma para ser

identificada pressupõe uma análise anterior, a qual também se submete a uma interpretação

57 Vários foram os autores que já se debruçaram sobre o tema, estabelecendo distinções entre princípios e regras. Para Alexy, “a distinção não pode ser baseada no modo tudo ou nada de aplicação proposto por Dworkin, mas deve resumir-se, sobretudo, a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras instituem obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas ou derrogadas em função dos outros princípios colidentes”. (Apud: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005).

58 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003.

59 Apud BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 27.

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prévia. Nessa fase são formados dois grupos contendo os valores colidentes consubstanciados

nas normas encontradas no sistema jurídico.

É indispensável, nessa fase, observar o que a doutrina alemã denomina de

núcleo essencial da norma (Wesensgehalt). Constitui o conteúdo mínimo e intangível do

direito fundamental, que deve sempre ser protegido em quaisquer circunstâncias, sob pena de

fulminar o próprio direito. Assim é que as restrições aos direitos fundamentais encontram sua

constitucionalidade na preservação ao núcleo essencial do direito.

Nesse diapasão, Otto Prado60 expõe que o núcleo essencial, ou conteúdo

essencial, "limita a possibilidade de limitar, isto é, estabelece um limite além do qual não é

possível a atividade limitadora dos direitos fundamentais". Logo, um direito fundamental só

pode ser considerado ilegitimamente restringido se seu núcleo essencial for afetado.

No segundo momento, as circunstâncias concretas do caso e suas repercussões

jurídicas são analisadas. Aqui é feita a correlação dos fatos com as normas identificadas na

primeira etapa. Conquanto sejam tratados como momentos distintos pela doutrina, a primeira

e a segunda fase na prática ocorrem simultaneamente, visto não ser possível examinar a

norma de forma isolada da realidade fática.

Após uma minuciosa análise da parte jurídica e das particularidades do caso

concreto, a terceira etapa, a da decisão, se ocupa efetivamente da ponderação, ou melhor

dizendo, da distribuição dos pesos entre o grupo de normas identificado no início do

procedimento. Nesse momento, com base no princípio da proporcionalidade, o juiz graduará

as normas envolvidas, e decidirá o grupo que prevalecerá.

Tal processo, contudo, pode desencadear caminhos distintos, que irão depender

da maneira como o intérprete analisará a situação. Desde a etapa inicial, com o

reconhecimento das normas pertinentes, passando pela identificação dos fatos relevantes, até a

atribuição geral de pesos e a conclusão, todas as etapas exigem avaliações de caráter

subjetivo, que poderão variar em virtude da pré-compreensão do aplicador.

Em função desta subjetividade, é objeto de grande discussão na doutrina a

possibilidade de serem estabelecidos parâmetros de controle para esse processo, tanto

normativos, como argumentativos.

60 Apud: MORAES, Guilherme Peña de. Direitos fundamentais: conflitos e soluções. Niterói: Labor Juris, 2000.p. 65.

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Na visão de Barcellos:

“É possível falar de uma ponderação em abstrato e de uma ponderação em concreto. A ponderação em abstrato é a desenvolvida pela dogmática jurídica considerando a metodologia própria do direito e os conflitos já identificados pela experiência. A ponderação em abstrato procura formular modelos de solução pré-fabricados (parâmetros gerais e particulares)61 que deverão ser empregados pelo aplicador nos casos que se mostrem semelhantes. Caso os modelos propostos pela ponderação em abstrato não sejam inteiramente adequados às particularidades do caso concreto, o intérprete deverá proceder a uma nova ponderação - a ponderação em concreto -, agora tendo em conta os elementos específicos da situação real. A utilidade da distinção consiste especialmente em fomentar, na doutrina, o estudo e a formulação de parâmetros que possam servir de norte ao aplicador, reduzindo a subjetividade do processo ponderativo.”62

De fato, seria fácil solucionar tais questões se estas já fossem previstas na

norma. Porém, a dinâmica social se desenvolve rapidamente e o Direito não a acompanha. Há

sempre situações inusitadas envolvendo uma diversidade de variáveis que, lamentavelmente,

não podem ser previstas pelo legislador.

Apesar dos parâmetros sugeridos pela doutrina reduzirem a gravidade dos

efeitos da ponderação, ainda assim há riscos, os quais residem na flexibilização (e na

restrição) de cláusulas pétreas (em especial de direitos fundamentais), na insegurança que o

distanciamento dos enunciados normativos produz em um Estado de Direito e na

possibilidade de casuísmos e violações ao princípio da igualdade.

De qualquer sorte, mesmo havendo um certo risco em sua aplicação, a

ponderação logrou resultados positivos, pois possibilitou que normas aparentemente

contrárias pudessem harmoniosamente conviver sem modificação de seus teores, fortalecendo

o que Konrad Hesse denominou de “força normativa da Constituição”.63

Sob outro ângulo, não há como desprezar o valor desta técnica para decisões

socialmente mais justas. O grande desafio será confiado aos órgãos jurisdicionais, que

deverão estar abertos à nova técnica, para que possam atuar de forma mais criativa e decisiva

na efetivação dos direitos fundamentais.

61 Os parâmetros gerais são utilizados em qualquer ponderação, ao passo que os específicos são aplicados apenas entre normas particulares. Na obra de Ana Paula de Barcellos foram propostos dois parâmetros gerais: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das normas que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais sobre as demais normas. (BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005). 62 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 117 63 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1991.

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2.2. A mudança no papel dos magistrados e os limites à discricionariedade judicial

Para se atualizarem, os operadores e aplicadores do direito necessitam

acompanhar os movimentos sociais. Essa tarefa é confiada aos juristas e magistrados, que

devem disciplinar esses movimentos, em consonância com o Poder Legislativo e dentro de

uma concepção histórica que lhes permita um comprometimento simultâneo com os ganhos

do passado e com as reais aspirações de futuro da sociedade.

A tendência, universalmente perceptível, é a de se criarem, a cada dia, novas

questões, isto é, novos direitos, que não surgem com o objetivo de substituírem outros

anteriores, mas, sim, somarem-se a eles.

A promulgação de Constituições abertas e uma progressiva discricionariedade

na interpretação das leis vêm permitindo à magistratura acompanhar essas mudanças rápidas

do comportamento em sociedade. Por outro lado, têm dificultado o trabalho do aplicador do

Direito Constitucional, que terá que fazer um esforço maior para extrair o significado de

termos constantes de direitos fundamentais como liberdade e igualdade.

Como postula Oscar Vilhena Vieira,

“a adoção dos princípios da liberdade e igualdade, não transforma essas expressões éticas em conceitos técnico-jurídicos, neutralizando o seu significado, assim como não encerram a disputa política sobre a natureza e direção do pacto político firmado pela comunidade no processo constituinte. Simplesmente transfere para a esfera de aplicação da constituição a disputa sobre o verdadeiro valor desses princípios. Daí os tribunais estarem sempre envolvidos nas mais intrincadas disputas de caráter político, tendo freqüentemente que resolver conflitos entre princípios e direitos.” 64

A ponderação, apesar de dilatar o campo de discricionariedade depositado

tradicionalmente nos órgãos jurisdicionais, torna as decisões judiciais mais justas, pois

possibilita que pequenas incorreções do direito sejam facilmente corrigidas pelo juiz através

da conjugação e da aplicação de mais de uma norma ao caso concreto. Além disso, possibilita

que o sistema gradualmente se renove, acompanhando as mudanças sociais.

Todas as virtudes da mencionada regra, entretanto, só se materializam quando

as decisões são legítimas, ou seja, quando estão associadas a uma argumentação jurídica

consistente, que permita seu controle pelos jurisdicionados.

64 Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html.

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O juiz moderno não pode prostrar-se diante do caso concreto como uma

máquina insensível. Sua atividade desenvolve-se com o objetivo de pacificar com justiça o

conflito de interesses submetido a sua apreciação. Para tanto, não pode o julgador acomodar-

se sob os influxos da lógica do razoável, o juiz moderno é desafiado a assumir cada vez mais

um papel ativo e criativo na interpretação da lei, adaptando-a, em nome da justiça, aos

princípios e aos valores de seu tempo.

Sendo da essência dos princípios que eles entrem freqüentemente em conflito

entre si, cumpre ao intérprete encontrar um compromisso, pelo qual se destine, a cada

princípio, um determinado âmbito de aplicação. Diante do conflito entre princípios, não se

deve de modo algum tentar eliminar algum deles. A missão do intérprete é buscar uma

solução conciliadora, definir a área de atuação de cada um dos princípios e qual deles que

deverá prevalecer. Tal prevalência não implica restrição em abstrato da força impositiva do

princípio afastado. Em outras circunstâncias, diante de novos fatores relevantes, o princípio

antes afastado está pronto para ser aplicado.

Além disso, por conviver com conflitos oriundos de uma sociedade plural,

imprevisível, marcada por grandes desigualdades sociais e culturais, o magistrado precisa

desenvolver uma dogmática constitucional comprometida com a justiça distributiva, com a

inclusão social e a com a solidariedade.

Dentro dessa perspectiva, o Judiciário assume a obrigação de dar sua

contribuição e tal mister demanda uma interpretação mais dinâmica, mais criativa, na medida

que força os magistrados a participarem da concretização da Constituição. Não há como negar

que o espaço da discricionariedade se amplia. Entretanto, como salienta Cappelletti65, a

grande diferença em relação ao papel tradicional dos juízes é apenas de grau e não de

conteúdo, porque toda interpretação possui alguma discricionariedade.

Não há como se imaginar um julgador totalmente neutro, visto que, em

qualquer situação, é impossível desfazer-se dos conceitos, princípios e valores que foram se

amalgamando ao caráter, à personalidade e à própria alma de cada um. Os juízes são seres

que convivem em sociedade e que se sujeitam às interferências sócias, morais e religiosas.

François Ost66, jurista e filósofo francês, ao escrever sobre as imagens do

direito e sobre os três modelos de juiz, evidencia a relevância da evolução da sociedade e a

65 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993. p. 42. 66 OST, François e VAN de Kerchov, Michel. Júpiter, Hércules, Hermes: Três modelos de juez. In:Revista Doxa 14. 1993, pp. 169-194.

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grande dificuldade em se estabelecer um modelo de magistrado que sustente a modernidade e

que esteja habilitado a compreender os problemas advindos de situações inusitadas e inéditas.

Na ótica de Ost, a mudança nas relações sociais e a própria modernização da

sociedade propiciaram ao longo dos tempos o aparecimento efetivo de três tipos de Juiz, ou

seja, de três espécies de manifestação da autoridade do magistrado no julgamento das lides.

O primeiro modelo seria o “Juiz Júpiter”, que tem sua base científica em Hans

Kelsen e sua referência no liberalismo político e econômico. Seria o modelo associado à

escola normativista do Direito e ao positivismo, o qual defende a completude do sistema

jurídico e a autoridade das leis como solução para todo e qualquer problema. Para esse

magistrado basta a igualdade formal, ignorando-se as inúmeras desigualdades existentes entre

os cidadãos.

A racionalidade infalível do legislador e do juiz, a decisão judicial como um

silogismo perfeito e a previsibilidade das decisões constituem as linhas mestras desta

concepção, que colocam o intérprete como mero reprodutor de “fórmulas perfeitas”.

Em um segundo momento, Ost destaca a figura do “Juiz Hércules”, que não se

contenta com a dogmática positivista e que vê nos princípios uma das formas de

preenchimento das lacunas deixadas pela lei. Seria o juiz típico do common law, que prioriza

a pacificação social e a solução dos conflitos e que não se conforma com as regras gerais por

considerar que estas podem não representar as principais opções dos cidadãos.

Para Ost67, o “Juiz Herculiano”68 seria uma espécie de “engenheiro social” e o

Direito um “fenómeno fáctico, complejo, formado por los comportamientos de las

autoridades judiciales”69, onde as regras são simples possibilidades jurídicas e as decisões

judiciárias o coração do sistema.

Finalmente, Ost apresenta o “Juiz Hermes”, que valoriza a circulação de idéias,

dados e informações que não estão nos códigos e nas leis, bem como incentiva os discursos.

Para “Hermes”, o campo jurídico deve ser analisado “como uma combinación infinita de

67 OST, François e VAN de kerchov, Michel. Júpiter, Hércules, Hermes: Três modelos de juez. In: Revista Doxa 14. 1993, pp. 169-194.

68 Esse modelo de juiz realça a atuação que tiveram alguns magistrados na análise das ações envolvendo o sistema de cotas nas Universidades do Brasil. Os defensores deste sistema asseveram que a Constituição prevê a desigualdade das diferenças sociais, e, diante isso, a igualdade material, e não formal, deve prevalecer.Com o sistema de cotas, as diferenças fáticas gritantes são amenizadas, iniciando a proporcionar uma igualdade jurídica material.

69 Ibidem, pp. 169-194.

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poderes, tan pronto separados como confundidos, a menudo intercambiables; una

multiplicación de los actores, una diversidade de los roles, una inversion de las réplicas”.70 71

“Hermes” traz a imagem do Direito pós-moderno e usa a figura de uma rede

para ilustrar esta concepção. Sustenta que no sistema há recursos que podem ser utilizados

pelos próprios usuários no desate de conflitos e que estes precisam despertar para seus

potenciais jurídicos. Representa o Magistrado que valoriza as decisões obtidas pelo consenso

dos envolvidos, sem imposição externa e que incentiva as discussões, sustentando que as

decisões não devem ficar restritas aos gabinetes dos magistrados.

Como define Ost, “si Júpiter insiste en el pólo convención y Hércules em el

pólo invencion, Hermes, em cambio, respeta el carácter hermenêutico o reflectante del juicio

jurídico que no se reduce ni a la improvisación ni a la simple determinación de uma regra

superior”.72

O “Juiz Hermes” traduz-se no modelo mais apropriado para a atual fase de

desenvolvimento do Direito, pois torna palpável no processo de aplicação do direito a

utilização de conteúdos e idéias advindos de outras áreas. Para ele, o Direito é um instrumento

dinâmico de promoção social, historicamente comprometido com a correção de desigualdades

e com a consecução de padrões mínimos de equilíbrio sócio-econômico. Portanto,

incompatível com um modelo rígido e fechado de interpretação do sistema jurídico.

A grande celeuma que gira em torno das interpretações modernas e da técnica

da ponderação reside nas limitações e nos riscos à discricionariedade judicial, pois eles

existem e como definiu Cappelletti73 “com relação ao Poder Judiciário, cuidam-se de riscos

menos graves, senão por outra razão, porque exatamente por sua própria natureza e estrutura,

é o ramo menos perigoso”.

A materialização valorativa das Constituições e dos princípios, os quais são

abstratos por natureza, para servirem como postulados de justiça, precisam ter seus conteúdos

definidos e sintonizados com o ordenamento vigente. Os juízes, ao se depararem com o caso

concreto e com a colisão de valores morais, terão que enfrentar essa tarefa desenvolvendo

uma dogmática interpretativa que se harmonize com os diversos princípios morais acolhidos

pela Constituição. Essas questões podem ser deixadas à discricionariedade (decisionismo) das

maiorias eventuais dos tribunais ou engendrar uma discussão ética mais profunda. 70 Este modelo de juiz seria aquele que promove uma interpretação aberta com os envolvidos na lide, estabelecendo uma interpretação nos moldes do que propõe Peter Haberle, que convida toda a sociedade a participar da interpretação do direito. 71 Ibidem, pp. 169-194. 72 Ibidem, pp. 169-194. 73 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993.p.49.

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Sobre esse decisionismo judicial, pontua Oscar Vilhena Vieira:

“Constituições compromissárias, como a brasileira impõem dificuldades adicionais ao judiciário. Além da obrigação de trabalhar com normas de textura aberta, que abrigam conceitos políticos e princípios morais, os juizes são obrigados a arbitrar uma competição de valores e diretivas normativas, muitas vezes contraditórios. Na ausência de um grupo hegemônico que dê ao documento constitucional uma identidade, seja ideológica, política ou econômica, o que se tem é a fragmentação do texto em pequenos acordos tópicos. Muitos desses acordos são meramente estratégicos, pois sabe-se que não terão eficácia imediata; mas também não caracterizam uma derrota na arena constituinte, o que ocorreria pela adoção de determinados interesses pelo texto constitucional, em detrimento de outros valores dele excluídos. O compromisso, configurado pela adoção de valores e princípios antagônicos, ao menos sinaliza com a possibilidade disputas futuras, por intermédio da legislação ordinária, da ação administrativa e da batalha nos tribunais. Constituições como a brasileira são resultado de um processo constituinte marcado por forte pluralismo e corporativismo, em que cada grupo organizado buscou a maximização de seus interesses e encontrou eco junto a um corpo político.74

A Constituição aponta muitas vezes para soluções distintas ao tratar de um

mesmo tema. A resolução via judiciário desses conflitos de valores impõe aos juizes

exercícios interpretativos e harmonizadores extremamente complexos e não poucas vezes

infrutíferos.

Canotilho sistematiza dois objetivos impostos aos aplicadores das normas

constitucionais (legislador, administrador, juiz): encontrar um resultado constitucionalmente

justo, através da adoção de um procedimento racional e controlável; e fundamentar

igualmente este resultado, de forma racional e controlável. Em sua visão, considerar a

interpretação como tarefa, quer dizer que toda norma é significativa, mas o significado não

constitui um dado prévio e sim o resultado da tarefa interpretativa.75

Em “Juízes Legisladores”, Cappelletti ressalta que a possibilidade de

criatividade não deve ser confundida com plena liberdade do intérprete. Assim, tanto a

atividade legislativa quanto a jurisdicional constituem processos de criação do direito e a

questão que se coloca é a distinção do modo de criação judiciária em relação ao do

Legislativo.

O direito proveniente das decisões judiciais deve ser visto como uma fonte

especial do Direito, que não se esgota com simples posicionamentos, mas como uma

argumentação racional e canalizada de forma coerente. O juiz criativo desempenha um papel

muito mais difícil e complexo, pois decide de forma ética, política e jurídica.

74 Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html. 75 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, p. 1193.

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Nos Estados Unidos, o poder criativo dos magistrados se confunde com a

própria história do direito. Substancialistas, os juízes americanos se baseiam num sistema

cognitivo de valores fundamentais, nos quais o peso da tradição influencia fortemente, mas

não impede, pelo contrário, privilegia, a constante evolução do direito. Segundo o contexto

histórico e as circunstâncias sob as quais são lavradas, as jurisprudências passam a ter força

de lei, desde que aplicadas de forma contextual e coerentemente.

No pensamento de Dworkin76, o juiz deve ter como ponto de partida a

capacidade de manutenção e, principalmente, de reconstrução racional da ordem jurídica da

qual ele é parte. Seu construtivismo fala da criação jurisprudencial de um direito em contínua

progressão, tendo em vista a realização dos princípios de liberdade e igualdade.

Como bem leciona Clemerson Merlin Cleve, a Carta de 1988 “demanda um

Judiciário ativista no melhor sentido da expressão (não no sentido de um prisioneiro de um

decisionismo subjetivista). E exige, ainda, uma atuação do Poder Judiciário voltada para a

plena realização dos comandos constitucionais.”77

O fato de pressões político-partidárias influenciarem diretamente o produto dos

parlamentos, também é visto como um fator favorável à discricionariedade da interpretação

judicial. Os magistrados em geral não sofrem tais coações quando no exercício de seu mister,

embora não estejam imunes a erros. Há riscos nessa postura mais ousada, sobretudo quando

se considera, como propõe Habermas78, a sobrecarga de tarefas qualitativamente novas e

quantitativamente maiores, a cada dia. Esse mesmo autor enfatiza que o encarregado de fazer

cumprir as leis não deveria ser o criador das mesmas. Não obstante as críticas, a tendência ao

construtivismo parece irreversível.

Quase desnecessário se faz, entretanto, reafirmar que a concepção da jurisdição

com função meramente declarativa, passiva e mecânica é irreal e extremamente frágil.

Inóspita a um ambiente como o do Judiciário da atualidade, que requer posições mais

dinâmicas e de resultado.

O caráter criativo e ativo de uma demanda judicial se adapta, sem sombra de

dúvida, ao Estado contemporâneo, em que os efeitos das decisões ultrapassam as partes

presentes fisicamente em juízo.

76 VIANNA, Luiz Werneck (et.al). A judicialização da política e das relações sociais. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 77 CLÈVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 78 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

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Nesse diapasão, uma vez não observado o verdadeiro e completo sentido dos

princípios esculpidos na Constituição, caberá ao julgador agir, reafirmando e,

conseqüentemente, preservando os valores e ideais valiosos à sociedade, que não por outro

motivo encontram-se expressamente reconhecidos na Lei Maior.

2.3. O princípio da proporcionalidade como principal mecanismo à aplicação da técnica

da ponderação na ocorrência de colisão entre direitos fundamentais

2.3.1 Aportes iniciais

O princípio da proporcionalidade, a partir da segunda metade do século XX,

passou a desfrutar de grande relevância no cenário jurídico mundial. Sua utilização é

freqüente nos tribunais. Mesmo que a referência não seja expressa, implicitamente tem-se

como inequívoco seu manuseio pelo julgador.

Utilizado, ordinariamente, para aferir a legitimidade das restrições de direitos.

Muito embora possa ser aplicado também com o fito de manter o equilíbrio na concessão de

poderes, privilégios ou benefícios, o princípio em tela, em essência, consubstancia uma pauta

de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso,

prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, proibição da prestação

insuficiente, direito justo e valores afins.

Precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de natureza

constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação

para todo o ordenamento jurídico.

Hodiernamente, pode-se afirmar, com total segurança, que é um dos principais,

senão o principal elemento da interpretação aplicado pelos julgadores na análise das

demandas que envolvam direitos fundamentais aparentemente em conflito que lhes são

diariamente submetidas.

A utilização em larga escala decorre do fato do princípio da proporcionalidade

ser o principal mecanismo de aplicação da técnica da ponderação. E, conforme já verificado,

esta terá lugar sempre que direitos fundamentais apresentarem-se em divergência diante em

um caso concreto.

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2.3.2 Desenvolvimento Histórico

A primeira notícia que se tem do princípio da proporcionalidade registrado em

um texto normativo remete à Carta Magna de 1215.79 Em que pese tal menção não ter o

significado completo que atualmente o referido princípio detém, verifica-se a preocupação já

antiga da coletividade em adotar decisões dotadas de equilíbrio.80

Observada a origem remota, somente na fase do Iluminismo o princípio da

proporcionalidade passou a ter uma feição mais próxima de sua realidade atual. Afirmação de

tal concepção veio, de forma expressa, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

de 1789.

Com o passar dos séculos e seu conseqüente aperfeiçoamento, a

proporcionalidade experimentou um grande avanço no período pós-guerras do século XX.

Após a experiência nazista e dos demais regimes totalitários, a comunidade mundial viu-se na

obrigação da adoção de mecanismos que reafirmassem os direitos fundamentais. Entretanto,

tais meios deveriam ser suficientemente aptos a proteger de forma eficaz os direitos humanos

positivados em face de regimes autoritários.

Neste cenário, o princípio da proporcionalidade foi revisitado e passou a ter

uma importância vital na reafirmação dos direitos dos cidadãos em face da “mão pesada” do

Estado.

De origem européia, passou a ser concebido como um instrumento de

efetivação integral do Estado Democrático de Direito, retirando deste sua origem e força

normativa. A previsão expressa desta forma de Estado no texto constitucional tornou-se a

base propriamente constitucional do principio da proporcionalidade.

Na América Latina, porém, esta nova visão da proporcionalidade só foi

eficazmente aplicada após o término dos regimes totalitários implementados, sob a pretensa

bandeira de combate ao comunismo. Desta forma, sua nova concepção passou a ter lugar

apenas no último quarto do século XX, com o conseqüente declínio de tais governos de

exceção.

79 Carta Magna de 1215: “Item 20: For a trivial offence, a free man shall be fined only in a=proportion to the degree of his offence, and for a serious offence correspondingly, but not so heavily as to deprive him of his livelihood. In the same way, a merchant shall be spared his merchandise, and a husbandman the implements of his husbandry, if they fall upon the mercy of a royal court. None of these fines shall be imposed except by the assessment on oath of reputable men of the neighborhood. Item 21: Earls and barons shall be fined only by their equals, and in proportion to the gravity of their offence.” 80 Apud FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005.

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No Brasil, somente na segunda metade da década de 80, com o término da

ditadura militar, o princípio da proporcionalidade adquiriu sua nova forma. E tal ocorreu com

o advento da Carta Constitucional de 1988, a qual adotava expressamente o Estado

Democrático de Direito, conforme referido no prefácio e em seu artigo 1º.81

E diante desta matriz constitucional, Mariângela Gomes afirma ter o princípio

da proporcionalidade três dimensões inerentes aos valores prescritos na Carta Constitucional,

a saber: fundamentador, orientador e crítico. Fundamentador no sentido que se aplica a todo o

ordenamento jurídico; orientador, pois pré-determina os objetivos a serem alcançados pelo

ordenamento; e, por fim, crítico, na medida em que torna possível o controle jurisdicional de

todas as normas jurídicas, verificando sua compatibilidade com os valores esposados no texto

constitucional.82

2.3.3 Elementos constitutivos

Visando facilitar a aplicação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal

Constitucional Alemão, asseverou a existência de três sub-princípios informadores, quais

sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.83

O critério da adequação (ou conformidade) busca verificar a viabilidade do

meio proposto ante o fim almejado. Em outras palavras, uma solução será adequada, sob o

prisma do princípio da proporcionalidade, se a via que propõe for apta a alcançar o resultado

pretendido.

Quanto à necessidade, deve-se analisar se a opção adotada restringiu da menor

forma possível o direito fundamental em conflito. Isto é, deve-se adotar o meio restritivo

menos gravoso para o direito que será por ele afetado. E assim, incumbe saber se o meio

escolhido era efetivamente necessário, bem como se há outro que apresente-se menos danoso.

Já a proporcionalidade em sentido estrito só terá lugar após a verificação dos

postulados acima descritos. Implica em uma equação onde as vantagens obtidas pela solução

81 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). “Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)” (grifo nosso) 82 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 30. 83 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1997.

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adotada sejam superiores às desvantagens geradas. Os prejuízos causados ao direito que

restou restringido devem ser inferiores aos bônus alcançados com a opção eleita.

Frise-se, por oportuno, que a proporcionalidade em sentido estrito possui

grande importância dentro desta íntima análise do princípio da proporcionalidade, posto que,

muitas vezes, uma decisão perfeitamente adequada e necessária poderá vir a ser

desproporcional (estritamente). Não por outro motivo é qualificada como a verdadeira

ponderação.

2.3.4 Distinção entre proporcionalidade e razoabilidade

A utilização da proporcionalidade como sinônimo de razoabilidade, o que

comumente se verifica, inclusive em reiterados acórdãos do próprio Supremo Tribunal

Federal, encontra em Barroso84 um árduo defensor.

Entretanto, conforme se depreende da própria origem e razão de ser de cada

instituto há real distinção entre eles.

No Brasil, por não possuir expressa previsão no texto constitucional, o

princípio da razoabilidade retira seu fundamento de validade da cláusula do devido processo

legal substantivo.85

A razoabilidade, de origem no direito norte-americana, possui maior aplicação

na restrita análise dos atos estatais. Deverá ser analisada tanto por seu viés interno, quanto

externo. Há razoabilidade interna em um ato administrativo ou normativo quando o meio

proposto for apto a atingir o fim desejado. Já a razoabilidade de natureza externa ocorrerá

quando o conteúdo do ato estatal estiver em plena conformidade com o restante do

ordenamento jurídico, sobretudo com a Constituição.

Portanto, conforme verificado, a razoabilidade não possui a mesma

complexidade que a proporcionalidade. A verificação compulsória da existência de seus três

sub-princípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) faz com que a

proporcionalidade desfrute de uma maior relevância dentro do cenário jurídico

contemporâneo.

84 BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2003. 85 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Artigo 5º, inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (grifo).

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2.4. O duplo viés do princípio da proporcionalidade em matéria penal

2.4.1 A proibição do excesso de punição e a vedação à proteção insuficiente dos bens

jurídicos tutelados

Em se tratando de ponderação em matéria penal, por se referir a direitos

fundamentais de proteção, o princípio da proporcionalidade deve ser entendido sob seu duplo

aspecto. Não basta, apenas, a proteção contra os excessos no exercício do jus puniendi pelo

Estado. Será necessária, também, uma proteção suficiente dos bens jurídicos que suscitam

uma defesa estatal efetiva.

A origem desta concepção do princípio da proporcionalidade em seu viés

positivo, ou seja, a proibição à proteção insuficiente dos bens jurídicos que gozem de especial

proteção no texto constitucional, ocorreu na Alemanha, na década de 70, quando seu Tribunal

Constitucional decidiu sobre a questão do aborto, especificamente se o feto deveria gozar ou

não de proteção jurídico-penal. No julgamento, a Corte alemã considerou que o legislador, ao

implementar um dever de proteção que lhe foi imposto pela Constituição, considerando que

este não possa ser garantido satisfatoriamente de outra forma, impõe-se-lhe recorrer às normas

penais para assegurar tal defesa exigida. Na hipótese, restou assentado que o Direito Penal

poderia ser utilizado para garantir o direito à vida do feto (BverfG, Urteil v. 25.02.1975 – 1

BVF 1-6/74).86

Através deste leading case, e sua conseqüente solução pelo Tribunal

Constitucional Alemão, o princípio da proporcionalidade em matéria penal passou a ter a sua

dupla face judicialmente reconhecida.

Assim, no âmbito penal, não basta analisar a proporcionalidade somente pela

ótica da proibição do excesso na punição, deve-se, outrossim, verificar se a decisão tomada

não gerou uma proteção insuficiente do bem jurídico tutelado. A proteção a ser conferida pelo

legislador deve ser satisfatória, de modo que a exigência constitucional reste plenamente

eficaz.

Neste diapasão, se o legislador não conferiu a necessária proteção ao bem

jurídico que lhe era exigida pela Constituição, tal omissão, seja parcial ou integral, implicará

em inevitável inconstitucionalidade daquela opção política adotada. Tal situação poderá

86 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. nº 22 (julho/dezembro de 2005). Rio de Janeiro. 2006, pp. 180-181.

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ocorrer quando forem realizadas descriminalizações de determinadas condutas que, sob o

prisma constitucional, são merecedoras de proteção pela norma penal, ante sua natureza. Da

mesma forma, com a redução de penas anteriormente cominadas e, até mesmo, com a

substituição de penas privativas de liberdade por medidas alternativas.

Ao Estado incumbe manter-se inerte de forma a viabilizar o pleno exercício do

direito à vida e do direito de liberdade do indivíduo e, concorrentemente, agir de forma a

assegurar estes mesmos direitos à coletividade, quando violados por um de seus integrantes.

Isto porque os direitos fundamentais devem ser observados não somente por uma ótica

individual, mas, também, sob o prisma da coletividade.

Porém, como bem adverte Ingo Sarlet, a perspectiva objetiva dos direitos

fundamentais legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no interesse

comunitário prevalente, devendo-se sempre preservar seu núcleo essencial, não sendo válida,

porém, a fixação de uma regra imutável no sentido da existência de uma subordinação

constante dos direitos fundamentais (do indivíduo) em prol dos interesses fundamentais da

coletividade.87

Assim, por diversas vezes, a segurança pública terá de ser objeto de proteção

pelo Direito Penal. Quando a incolumidade pública encontrar-se violada, ou na iminência de

sê-lo, por uma conduta transgressora da norma jurídica de um agente, deverá o Estado atuar

para garantir aquele interesse público, reafirmando as premissas instituídas pela ciência

jurídico-penal.

A incolumidade pública constitui um interesse público que deverá ser

preservado pelo Direito, posto que é de interesse geral, de toda a coletividade. A norma penal

ao assegurar a incolumidade pública está, implicitamente, garantindo direitos, também, de

ordem individual, como o direito à vida, à integridade física, de um incontável número de

pessoas.88 89

O Direito Penal preconizado na Constituição atem-se a dois objetivos que

devem co-existir de forma harmônica e equilibrada: a limitação do exercício do ius puniendi

estatal, com a finalidade de garantir de eventuais excessos os direitos individuais daqueles que

se encontrem submetidos a tal tutela, e a preservação dos mandatos constitucionais de 87 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq.. 88 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª edição. São Paulo: Saraiva. 2005. p.7. 89 Damásio exemplifica hipótese em que a segurança pública encontra-se sendo violada com a ação de um indivíduo que efetua um disparo de arma de fogo em uma via pública, onde existam pessoas transitando. Inequivocamente, o agente põe em risco a vida daquelas pessoas que estavam no local, indistintamente. (JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª edição. São Paulo: Renovar. 2005. p.8).

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criminalização, como limite à liberdade do legislador ordinário ao editar normas

despenalizadoras.90

Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição obriga o legislador a

proteger determinados bens jurídicos com sanções penais, posto que revelam valores de

grande importância à coletividade. A cominação penal à transgressão de tais bens deve ser

firme, não se é permitido a aplicação de medidas alternativas, menos severas.

Como bem observa Streck, o princípio da proporcionalidade não deverá apenas

se limitar à orientação de um ‘garantismo negativo’, posto que lhe é igualmente essencial a

adoção das diretrizes do denominado ‘garantismo positivo’.91

Portanto, a proporcionalidade em matéria penal possui uma dupla face: proíbe

o excesso estatal, mas também veda a proteção insuficiente da sociedade.

A proibição do excesso no direito de punir é dogma que há muito encontra-se

sedimentado na orientação jurídica pátria. É certo que o Estado ao definir as condutas que

configurarão delitos passíveis de punição, bem como ao aplicar a correspondente sanção, por

tais deveres encontrarem-se inseridos na seara do Direito Penal, só poderá fazê-lo no justo e

suficiente quantum à ação típica perpetrada pelo indivíduo. Qualquer excesso na punição não

será tolerado.

Da mesma forma, a proteção conferida aos bens jurídicos que são caros à

sociedade, por configurarem direitos fundamentais especiais, não poderá ser insuficiente, sob

pena de haver uma transgressão a tais declarações constitucionais. Aqui, não cabe ao Estado

deixar de realizar tal proteção social de forma efetiva, dispondo da aplicação das sanções

previstas àquelas que violem bens especiais, que por sua natureza e relevância merecem

tratamento protetivo pelo Direito Penal.

Desta forma, como bem leciona Ingo Sarlet:

“a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição do excesso, já que

vinculada igualmente a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões a direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal.”92

90 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 8.ed. São Paulo: Saraiva, 1997; MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol.1. Campinas: Bookseller, 1997; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16.ed, São Paulo: Atlas, 2000. 91 STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Ano 08, nº 07 (janeiro de 2005). Rio de Janeiro. p. 233. 92 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq..

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O autor conclui seu raciocínio afirmando que há uma ligação fundamental

entre o dever de proteção e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais,

configurando, assim, a legitimação para o exercício do direito de punir pelo Estado. Os bens

jurídicos que merecem proteção pelo Direito Penal serão objeto de estudo no capítulo

seguinte.

É importante não se perder de vista que o sujeito que pratica uma conduta

infracional penal, da mesma forma que é titular de direitos fundamentais, está violando

direitos igualmente fundamentais de outro(s) indivíduo(s).

Decerto, um indivíduo que comete um crime não estará, automaticamente,

dispondo de seus direitos fundamentais. Mesmo transgressor de uma norma de conduta e,

conseqüentemente, do direito fundamental de terceiro(s), o agente criminoso não está,

obrigatoriamente, abrindo mão de seus direitos essenciais, mas, sim, possibilitando ao poder

estatal a aplicação da sanção que, provavelmente, irá limitá-los, como, por exemplo, com a

restrição de sua liberdade de ir e vir.

Decerto que, na própria essência do Direito Penal, tem-se como primado que a

restrição à liberdade do indivíduo transgressor da norma penal fundamenta-se na garantia à

liberdade dos demais, sujeitos passivos de tal ação infracional.

Portanto, deve-se ter como inequívoca a aplicação do princípio da

proporcionalidade como critério material para a aferição da legitimidade constitucional de

medidas restritivas de direitos fundamentais.

Assim, deve-se proibir o excesso no exercício do direito de punir pelo Estado

(Übermassverbot), bem como vedar-se uma proteção insuficiente dos bens jurídicos tutelados

(Untermassverbot) ante o cometimento de crimes e seus executores. Em outras palavras, o

garantismo deverá ser proporcional.

2.4.2 Elementos constitutivos aplicados especificamente na seara penal

Conforme já verificado, o princípio da proporcionalidade é constituído pelos

elementos da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Ocorre que,

diferentemente de quando aplicado genericamente aos demais ramos do Direito, ao tratar da

norma penal, tais sub-princípios revestem-se de características próprias.

Esta concepção diferenciada teve seu reconhecimento formal pelo Tribunal

Constitucional alemão, o qual resumiu de forma objetiva os referidos requisitos, conforme

reproduzido abaixo, in verbis:

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“De acuerdo com las exigencias de la ‘prohibición del exceso’, la limitación del derecho fundamental que aquí entra em consideración debe ser idónea para la protección eficaz del bien jurídico. Esa limitación debe ser además necesaria, lo que no sucederá cuando existan alternativas de actuación más suaves. Finalmente, la limitación debe ser proporcionada em sentido estricto, lo que significa que se encuentre em uma relación razonable com la importancia y el significado del derecho fundamental [BVerf GE 67,157(173)]”.93

Frise-se que na concepção alemã, conforme retratado no trecho supra, o critério

da adequação também é identificado como da idoneidade. São palavras sinônimas dentro da

estrutura do princípio da proporcionalidade.

Uma norma será adequada quando sua finalidade puder ser alcançada através

do meio que propõe. Desta forma, ao ser aplicado tal elemento à seara penal, a análise da lei

penal deverá ser iniciada pela identificação do bem jurídico que visa proteger. Estando o

mesmo em conformidade com os preceitos constitucionais, a referida norma restará adequada

desde que tenha observado os limites negativos e positivos impostos na concretização da

tutela do citado bem jurídico penal.

Exemplo de falta de observância pelo legislador de tais orientações

constitucionais ocorre em leis penais que tipificam condutas criminosas onde a pena

apresenta-se excessiva ou insuficiente. Em outras palavras, o meio proposto para atingir

determinado fim verifica-se inadequado.

Já o sub-princípio da necessidade, em matéria penal, consiste em identificar se

é necessária a utilização da norma penal sob análise para a efetiva proteção do bem jurídico

visado. A tutela penal só se demonstrará necessária se a proteção do bem jurídico não restar

suficiente com a utilização exclusiva dos outros ramos do Direito.

Assim, se um descumprimento contratual puder ser sanado no campo cível de

forma que o bem jurídico tutelado reste suficientemente protegido, não há que se falar em

incidência de norma penal nesta hipótese. Entretanto, se o inadimplemento de um contrato

administrativo implicar em, por exemplo, graves danos aos consumidores em geral, a tutela

penal poderá fazer-se necessária para a proteção efetiva do bem jurídico violado.94

93 Apud FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 162. 94 Nas relações de consumo, a tutela penal far-se-á necessária nas hipóteses elencadas nos artigos 63 a 74 da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), posto que constituem condutas de alta gravidade para a preservação do bem jurídico acima mencionado. Frise-se que em tais casos, a mera tutela nos âmbitos cível e administrativo não apresenta-se suficiente à proteção do citado valor constitucional que o referido diploma legal visa garantir.

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Em outro diapasão, na supressão de determinada norma penal do ordenamento

jurídico deverá ser observado pelo legislador se tal medida apresenta-se necessária à proteção

do bem jurídico tutelado. Não basta que a retirada da lex penal do universo jurídico seja

adequada à obtenção de seu fim. Só se apresentará legítima tal exclusão se, em não sendo

regulado por outro texto legal penal, o bem jurídico em tela ficar devidamente resguardado

com o tratamento conferido pelas searas cível e administrativa.95

A proporcionalidade em sentido estrito implica em identificar se os benefícios

trazidos com a opção eleita superam os prejuízos gerados pela restrição de determinado(s)

direito(s) fundamental(is).

Aplicado ao Direito Penal, tal elemento implica em verificar se a intervenção

da norma penal apresenta-se proporcional à relevância que lhe é conferida na ordem

constitucional. A sanção cominada deverá ser proporcional à gravidade da conduta tipificada,

bem como à importância que o bem jurídico tutelado desfruta dentro do sistema de proteção

instituído pela Constituição.

Em uma palavra, só haverá incidência do Direito Penal na tutela de um bem

jurídico se a mesma se verificar adequada, necessária e proporcional à sua eficaz proteção

pela ciência jurídica.

Entretanto, o princípio da proporcionalidade em sua dupla dimensão só terá

incidência em relação aos bens jurídicos que sejam passíveis de tutela pelo Direito Penal.

Neste sentido, impende-se uma análise da extensão desses valores na seara penal e do papel

que incumbe à ciência jurídico-penal no cenário contemporâneo. Tais reflexões serão objeto

de estudo no capítulo que se segue.

95 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 165.

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3. O DIREITO PENAL SOB O NOVO ENFOQUE CONSTITUCIONAL: A

ALTERAÇÃO NO PARADIGMA DOS BENS JURÍDICOS A SEREM TUTELADOS

PELA NORMA PENAL

3.1.Considerações iniciais

As até então esporádicas ondas de violência tornaram-se um constante estado

de infringência das normas penais. O estágio atual assusta pela extrema gravidade das

infrações cometidas, grande parte com utilização de radical violência física, colocando a

comunidade em posição de absoluta impotência.

O medo é o sentimento mais comum entre as pessoas. Confrontos armados

entre criminosos pelo controle de ponto de venda de entorpecentes em plena luz do dia,

roubos cometidos com extrema violência, inclusive com o resultado morte, cada vez mais

freqüentes, inclusive tendo inocentes crianças como vítimas96, homicídios cometidos por

motivos insignificantes e repugnantes, ante a facilidade na obtenção de uma arma de fogo, são

o cotidiano de uma sociedade que vive em constante insegurança.

Olavo de Carvalho faz uma constatação que reflete de forma clara o

sintomático quadro de caos social, ao afirmar que

“nenhum governo do mundo tem hoje a autoridade para se arrogar por monopólio dos meios de segurança física: o banditismo é mais próspero do que qualquer nação da terra, cresce 7% ao ano, duplica-se a cada década, e o Banco Mundial, ao incluir oficialmente em suas análises a variável denominada Produto Criminoso Bruto, já reconhece a impossibilidade de distinguir, no sistema financeiro do planeta, a parte limpa e a suja. A expressão “quinto poder” já não é apenas um giro lingüístico. Ela assinala que boa parte da população do planeta se abriga hoje sob a proteção dos chefes do tráfico internacional, sem ligar a mínima para os chamados poderes constituídos. Estamos diante de um fenômeno histórico singular, a formação de uma nova classe dominante, sem pátria nem rosto, que dita leis e reg o mundo à margem de todas as teorias, cada dia mais fictícias, que legitimam há dois séculos todas as formas de governo conhecidas.” 97

96 Exemplo de tal circunstância verificou-se na morte de João Hélio, de seis anos de idade, morto em 07 de fevereiro de 2007, no Rio de Janeiro, após ter sido arrastado por mais de sete quilômetros por criminosos que acabaram de subtrair mediante grave ameaça exercida pelo emprego de arma de fogo o veículo que a mãe da criança conduzia. João Hélio não conseguiu se soltar inteiramente do cinto de segurança, ficando pendurado e sendo arrastado pelos criminosos por aproximadamente quinze minutos. (Notícia veiculada no sítio Folha on line de 08/02/07. Disponível em :< http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u131469.shtml>. Acesso em 10/02/07)). 97 CARVALHO, Olavo de. As armas e a nova ordem (artigo publicado no Jornal da Tarde. São Paulo, de 14.07.2004, p.34). Apud THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp.20-21

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Inquestionavelmente o sentimento de impunidade, reinante na sociedade,

funciona como mecanismo de propulsão da violência. O indivíduo ao praticar um crime tem a

prévia convicção que a falta de operacionalidade do Estado aliada a pouca eficácia das

medidas de penalização certamente tornarão difícil sua punição.

Ademais, como ter esperança de melhora se justamente aqueles que deveriam

buscar as soluções práticas e eficientes para tais mazelas não são passíveis da mínima

confiança pela população. Não há um dia sequer que não se abra um jornal de grande

circulação e não se leia uma notícia narrando o envolvimento de agentes estatais de alto

escalão em novos casos de corrupção, como deputados federais, senadores da República,

governadores.

Verifica-se a impossibilidade de efetividade dos direitos fundamentais pelo

cidadão. Conseqüentemente, tem-se uma crise de segurança desses direitos, posto que há uma

evidente proteção insuficiente desses direitos fundamentais que deveriam ser assegurados

pelo poder público.

Isto porque os direitos fundamentais não devem ter sua natureza jurídica

restrita a meros direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, pois

configuram, também, direitos objetivos, posto que, ante a força normativa da Constituição,

representam normas de observância obrigatória pelos órgãos de poder (sob a ótica da divisão

horizontal: Legislativo, Executivo e Judiciário).98

98 Ingo Sarlet, ao tratar da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, leciona que: “apesar de encontrarmos já na doutrina constitucional do primeiro pós-guerra certos desenvolvimentos do que hoje se considera a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, é com o advento da Lei Fundamental de 1949 que ocorreu o impulso decisivo neste sentido. Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência continuam a evocar a paradigmática e multicitada decisão proferida em 1958 pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no caso “Lüth”, na qual, além de outros aspectos relevantes (notadamente a referência ao conhecido – mas nem por isso incontroverso - “efeito irradiante” dos direitos fundamentais), foi dado continuidade a uma tendência já revelada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, de acordo com o que consignou Pérez Luño, os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais, entendimento este, aliás, consagrado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Espanhol praticamente desde o início de sua profícua judicatura. Que também a dignidade da pessoa humana – na condição precisamente de valor e princípio central e fundamental da ordem jurídico-constitucional apresenta uma dimensão objetiva (até mesmo pelo fato de os direitos fundamentais, pelo menos em princípio, nela encontrarem o seu fundamento e referencial) resulta evidente, dispensando aqui maior referência. (SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq..).

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Diante de tal situação, a sociedade apresenta-se descrente do exercício de seus

direitos fundamentais. Estes passam a ser vistos como utopias, em especial àqueles

pertencentes às camadas sociais mais excluídas.

Sintoma evidente desta desmotivação social é o crescente número de

simpatizantes com a adoção da pena de morte e da prisão perpétua no país, a redução da

maioridade penal para dezesseis anos, dentre outras formas extremas e desarrazoadas de

resposta ao quadro de extremo caos de ineficácia à garantia dos direitos fundamentais

vivenciado no Brasil.

Tais “soluções extremas”, de conotação evidentemente vingativa, em que pese

a situação limite existente atualmente, não se justificam dentro de um Estado Democrático de

Direito. A reiterada adoção pela sociedade dos dogmas do Movimento Lei e Ordem,

capitaneado por Michel Foucault, todas as vezes em que “ondas de violência” atingem a

comunidade, a experiência já demonstrou que remediam a situação paliativamente e por um

curtíssimo espaço de tempo.

Em vista desse impasse, cabe uma indagação: há solução para tal estado

caótico em desenvolvimento no país?

Nem tudo está perdido. Incumbe aos pesquisadores das ciências jurídicas,

políticas e sociais o estudo desta situação de colapso social, com o fito de obter soluções

efetivas para se reverter tal quadro, de forma equilibrada.

Desta forma, é essencial uma mudança de posição da ciência jurídica. Torna-se

imperiosa a implementação de uma visão crítica da realidade, em substituição aquela

meramente descritiva e passiva até então existente. Não mais se admite que o Direito

permaneça neste aparente estado de inércia ante a alta velocidade dos acontecimentos,

sobretudo aqueles relacionados à criminalidade.

E, conforme restará verificado, a causa de tal colapso jurídico-social não

resulta da insuficiência de normas, em especial de cunho penal, a tutelar tais condutas. A

problemática encontra-se na concepção adotada pela política criminal implementada no país.

Visando contribuir para a busca de soluções ao referido estado caótico do

sistema de proteção da sociedade em face da criminalidade contemporânea, serão traçadas

breves considerações sobre algumas possíveis origens de tal problemática e sobre caminhos a

serem trilhados para a cura de tais sintomas.

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3.2. Identificação do problema – o não desenvolvimento pelo Direito Penal da mudança

de paradigma na proteção dos bens jurídicos tutelados pela Constituição

Nos séculos XVIII e XIX, duas grandes revoluções marcaram a história da

humanidade, modificando de forma substantiva a concepção de Estado e o paradigma adotado

pelo Direito: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.

O caráter libertário da Revolução Francesa, com seus apelos à liberdade, à

igualdade e à fraternidade, buscando limitar o poder estatal, reforçou o princípio da

legalidade, passando a ser visto sob uma ótica extremamente individualista. As normas

criadas visavam garantir a liberdade, limitando-se o governo a fazer somente o que a lei

autorizasse, enquanto os cidadãos podiam fazer tudo o que a norma legal não vedasse.99

Apesar de não se amoldar à realidade atual, os dogmas dos iluministas tiveram

sua importância histórica, por representar a vitória de uma luta por ideais de liberdade e

democracia100, bem como por ter ajudado a implantar na consciência ocidental os valores das

garantias e liberdades individuais.

O surgimento das Cartas americana e francesa marca, respectivamente em

1787 e 1791, o primado da Lei. Interessante notar, como bem ressalta Norberto Bobbio, uma

diferença essencial de concepção entre as duas escolas, já que “os constituintes franceses

pretendiam afirmar primária e exclusivamente os direitos do indivíduo, enquanto que os

constituintes americanos relacionaram os direitos do indivíduo com o bem comum da

sociedade”.101

Havia uma rígida separação entre sociedade e Estado, sob uma concepção

individualista. Na ótica de Bobbio, não se privilegiava o poder do povo, mas o individual,

ainda que tomado um a um, de todos que compunham a sociedade.

O Estado Liberal de Direito garantia a propriedade e as liberdades individuais.

Paralelamente a toda efervescência política e social dos tempos do liberalismo,

evoluía uma nova realidade já concretizada no final do século XIX: o desenvolvimento das

indústrias. A Revolução Industrial foi capaz de promover alterações sociais profundas. 99 Neste sentido rezava expressamente o artigo 16 da Declaração dos Direitos Homem, in verbis: “Toda sociedade que não assegura os direitos, nem a separação dos poderes, não possui Constituição”. 100 Democracia – Em sociologia política, diz-se do regime político, ou forma de governo, em que a soberania reside no povo que, por sua maioria, mas sempre indiretamente, representado por uma elite reduzida de seus delegados, exerce o poder, sob o princípio da absoluta igualdade de direitos entre os cidadãos. Diz-se do governo do povo, pelo povo, para o povo” . NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. Rio de janeiro: APM Editora, 1987. 101 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004.

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A visão individualista passou a perder força na medida em que os

relacionamentos sociais passam a assumir um caráter comunitário.

As sociedades dos séculos XX e XXI desenvolveram-se e passaram a priorizar

as relações de massa em detrimento das antigas demandas inter-individuais. O coletivo passou

a preponderar sobre o individual.

Conseqüentemente, a violência que passou a incidir nessas sociedades dotadas

de maior complexidade se diferencia daquela existente nos séculos passados. O

desenvolvimento extremamente acelerado das comunidades implicou, necessariamente, em

novas modalidades de infrações à ordem social.

A autora Ruth Maria Chittó Gauer, ao analisar as sociedades pós-modernas,

identifica como fatores fundamentais ao seu colapso a profunda desigualdade social e

econômica, a miséria existente nas camadas mais excluídas da sociedade, a falta de programas

de governo que garantam as condições mínimas de vida digna aos cidadãos e, também, a

omissão estatal em implementar políticas de segurança dotadas de efetividade. Tais

elementos, associados entre si, levam à explosão da violência dentro do corpo social.102

Uma das causas prováveis desta profunda desordem social advém do

paradigma que ainda predomina na ciência jurídico-penal. Em que pese o avançado

desenvolvimento alcançado pela sociedade brasileira e, conseqüentemente, das condutas

infracionais praticadas pela mesma e contra a mesma, é certo que, hodiernamente, ainda não

foram sedimentadas as condições necessárias para o tratamento pelo Estado dos delitos de

natureza transindividual, os quais predominam na conjuntura atual.

Os direitos fundamentais relativos aos interesses de cunho coletivo, para que

sejam efetivamente assegurados, necessitam de uma real proteção pelo Direito, funcionando

este como uma blindagem normativa a eventuais transgressões.

Entretanto, a situação caótica que ocorre atualmente dentro das comunidades

em muito se deve ao fato do Direito Penal não conseguir cumprir sua função precípua de

proteção aos bens jurídicos que gozem de especial tratamento pela Constituição. Enquanto ao

Direito incumbe assegurar a convivência pacífica da sociedade, à seara penal impõe-se a

proteção dos bens jurídicos fundamentais.

Como é cediço, o Direito Penal só terá incidência quando o tratamento

conferido pelos demais ramos do Direito não for suficiente à efetiva proteção do bem jurídico

102 GAUER, Ruth Maria Chittó. A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá. 2000, p. 34.

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violado. Portanto, sua aplicação terá natureza subsidiária, ou seja, só ocorrerá nas hipóteses de

grave violação a um direito especialmente protegido pela Constituição.

O caráter subsidiário e fragmentário do Direito Penal, tido como a ultima ratio

do ordenamento jurídico, acentuou ao longo dos anos a visão restritiva de sua aplicação, fruto

do ideal iluminista, surgido no Estado Liberal. Tal visão unilateral da norma penal face à

Constituição cerceou a atividade punitiva estatal.

A falta de uma doutrina contemporânea que colocasse em xeque tais princípios

liberais, tidos, então, como absolutos, fez com que o estudo das normas penais não evoluísse

na mesma velocidade que as transformações sociais e estruturais do Estado. Os dogmas

iluministas aplicáveis ao Estado Liberal se perpetuaram, passando a ter incidência, também,

no Estado Democrático de Direito.

Com tal transformação no projeto de Estado, passou-se de um modelo

estritamente legal e formalista para um de cunho constitucional e material. Em outras

palavras, a Constituição passou a ocupar a posição de norma superior e orientadora do

ordenamento jurídico e da própria organização estatal. Com efeito, os diversos ramos do

Direito passaram a ter como fonte principal a Carta Constitucional e não mais normas

infraconstitucionais esparsas.

Dalmo de Abreu Dallari identifica de forma peculiar esta mudança de modelo

de Estado, in verbis:

“A idéia moderna de um Estado Democrático de Direito tem suas raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores. A fixação desse ponto de partida é um dado de fundamental importância, pois as grandes transformações do Estado e os grandes debates sobre ele, nos dois últimos séculos, têm sido determinados pela crença naqueles postulados, podendo-se concluir que os sistemas políticos do século XIX e da primeira metade do século XX não foram mais do que tentativas de realizar as aspirações do século XVIII. A afirmação desse ponto de partida é indispensável para a compreensão dos conflitos sobre os objetivos do Estado e a participação popular, explicando também, em boa medida, a extrema dificuldade que se tem encontrado para ajustar a idéia do Estado Democrático de Direito às exigências da vida contemporânea.”103

Em razão de tal mudança de paradigma, o Direito Penal deve ser interpretado à

luz da Lei Maior, criando-se um ‘Direito Penal Constitucional’. Conseqüentemente, as

normas legais penais adquirem uma maior legitimidade, posto que tiram seu fundamento de

validade diretamente da Constituição, e não de leis de igual hierarquia.

103 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 1993, p.123.

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A evolução da dogmática jurídica leva Luciano Feldens a afirmar a existência

de uma verdadeira “Constituição Penal”, a qual seria

“o conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal requerido pela Constituição, as quais compreendem os princípios e regras gerais respeitantes à matéria criminal (penal e processual penal) positivados na ordem constitucional.”104

De igual forma, Luigi Ferrajoli afirma que incumbe ao Direito, justamente,

adotar uma posição positiva (e crítica) na efetivação dos princípios elencados no texto

constitucional, sendo refutada uma norma legal que não os observe, posto que, restará

inválida (lato sensu).105

Ao Direito Penal incumbe não só a defesa dos direitos individuais, mas,

concorrentemente, a proteção aos direitos transindividuais, ante a nova concepção que lhe é

atribuída pelos ideais do Estado Democrático de Direito. E neste sentido, conforme ensina

Cláudio Heleno Fragoso, caberá ao Estado combater as ações delituosas que atinjam

diretamente “um bem ou interesse coletivo, ou seja, a segurança de todos os cidadãos ou de

um número indeterminado de pessoas”.106

Defendendo-se ambas as esferas de direitos, ter-se-á o equilíbrio necessário ao

desenvolvimento pacífico da sociedade, fim imediato da própria razão de ser do Estado.

3.3 A evolução social e o universo dos bens jurídicos que gozam de proteção pelo Direito

Penal

3.3.1 Os alicerces dos bens jurídicos penais

Os bens jurídicos que reclamam tratamento pelo Direito Penal são compostos

pelos bens, direitos e valores que gozam de especial condição pela Constituição. São aqueles

que possuem extrema importância para a sociedade, seja para o indivíduo particularmente

(individuais) ou para a coletividade como um todo (coletivos lato sensu). O próprio texto

104 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 23. 105 Luigi Ferrajoli afirma que “la ciência jurídica há dejado de ser, supuesto que lo hubiera sido alguma vez, simple descripción, para ser crítica y proyección de su próprio objeto: crítica del derecho inválido aunque vigente cuando se separa de la Constitución; reinterpretación del sistema normativo em su totalidad a la luz de los principios estabelecidos em aquélla” (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999, p.106). 106 FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal. 3º volume. 2ª edição. São Paulo:Bushatsk, p. 765.

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constitucional revela uma proteção maior a ser conferida a tais valores pela ciência do Direito,

in casu, pela seara penal.

Sucede que os valores que desfrutam de proteção direta pela norma penal

encontram-se em profundo desenvolvimento. Se há tempos atrás somente os bens de caráter

individual necessitavam desta tutela, atualmente outros valores reclamam tal defesa.

O surgimento do Estado Democrático de Direito faz com que os conceitos

oriundos do Estado Liberal sejam revisitados ante a nova perspectiva de funções e valores que

se inaugura com o nascente modelo estatal.

A constante mutação experimentada pela sociedade fez com que as questões

individuais cedessem, cada vez mais, um campo maior de incidência às demandas que

envolvam a coletividade. Da restrita proteção aos direitos individuais, passa-se à criação de

mecanismos de defesa de direitos coletivos (em sentido amplo). Tutela-se o meio ambiente, as

relações de consumo, a segurança pública.

No passado, apenas a defesa do indivíduo e de seus bens era preconizada pelo

Direito. Hoje, incumbe ao ordenamento jurídico a proteção não só do indivíduo, mas,

também, do grupo de indivíduos, estejam eles identificados ou não.

A noção trazida por Norberto Bobbio sobre o desenvolvimento histórico dos

direitos fundamentais, o qual pode ser identificado através das chamadas “gerações de

direitos”, apresenta-se de grande valia.107 108

Tendo por base o ideal trazido pela Revolução Francesa de 1789, qual seja

“liberdade, igualdade e fraternidade”, podem ser identificadas as denominadas dimensões de

direitos fundamentais.

A primeira é composta pelos direitos de natureza individual, os quais refletem

o ideal da ‘liberdade’, necessitando para sua livre fruição de uma abstenção do Estado.109

Entretanto, observou o legislador que a mera existência de direitos individuais

não seria suficiente para assegurá-los de forma integral a todos os integrantes da comunidade.

A igualdade que se verificava na primeira dimensão era meramente formal. Surge, então, a

segunda fase, onde, embasados no dogma da ‘igualdade’, os direitos sociais passam a ser

107 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus. 2004. 108 A expressão “geração” utilizada por Norberto Bobbio não apresenta-se dotada de profunda técnica, posto que, na verdade, tal “geração” – na concepção dos direitos fundamentais - não eliminaria outra “geração”; uma vez que todas convivem simultaneamente. Por tal motivo, ao invés de “gerações” de direitos, apresenta-se mais correta a utilização da expressão “dimensões” de direitos. 109 Como exemplos de direitos individuais: o direito à vida, à liberdade de locomoção, de expressão, religiosa, de exercício de atividade profissional, etc.

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assegurados através da ação estatal. O poder governante entra em exercício com o objetivo de

garantir, efetivamente, uma igualdade verdadeira (material) entre os indivíduos.110

A vida em sociedade continuou a se desenvolver e as relações onde os

componentes poderiam ser perfeitamente individualizados deram lugar às de natureza

transindividual. Nestas, o interesse em jogo atinge um universo tão vasto de indivíduos que

torna inviável a identificação de cada um.

Diante desta nova realidade surgem os direitos transindividuais, os quais tem

como sua própria essência bens jurídicos cujo alcance subjetivo apresenta-se em grau

máximo. Tal novel espécie de direitos gera a necessidade de uma tutela própria, posto que

revela os ideais da ‘fraternidade’ e da ‘solidariedade. Ao Estado incumbe exercer uma

proteção eficiente a possíveis ataques e transgressões.111 112

O desenvolvimento dos direitos fundamentais não foi acompanhado pelo

Direito Penal. Este, via de regra, restringiu-se, apenas, a continuar a tutelar os interesses de

cunho estritamente individual.

Os bens jurídicos de natureza transindividual, expressamente reconhecidos no

texto constitucional113, não receberam tratamento adequado pelo Direito Substantivo Penal.

Para que os direitos desta natureza possam ser exercidos de forma plena, comumente far-se-á

necessária a ação do Estado a fim de efetivá-los.

Decerto que, freqüentemente, o próprio Poder Público será o agente violador

desses direitos de índole coletiva (lato sensu). Entretanto, incumbe ao próprio Poder

Constituinte a criação de mecanismos para sua proteção, a ser executado pelo próprio Estado,

seja através do Ministério Público, seja através do Terceiro Setor.

E aqui não se perca de vista que a razão de agir do Direito Penal na tutela e

proteção desses direitos só será justificada quando a Carta Constitucional assim prescrever.

Um conjunto restrito de direitos, cujo sujeito passivo será a coletividade, gozará desta especial

defesa pela norma penal, ante sua importância constitucional.

110 Exemplos de direitos coletivos: direito à saúde, à educação, ao lazer, etc. 111 Os direitos transindivduais podem ser identificados através da defesa do meio ambiente saudável, proteção ao patrimônio público em todas as suas esferas, etc. 112 O constante desenvolvimento da sociedade impende o reconhecimento da existência de uma quarta e de uma quinta dimensão de direitos. A quarta seria composta pelos direitos ligados à bioética, à manipulação genética, à clonagem humana, às ‘células-tronco’, aos alimentos transgênicos e afins. Já a quinta englobaria os direitos ligados à cibernética, à robótica, à realidade virtual e afins. 113 Exemplos: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Artigo 218: O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas (...); “Artigo 225: Todos têm direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

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Assim, resta evidente a vinculação entre os deveres de proteção dos direitos

fundamentais pelo Estado e a teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, legitimando

a intervenção estatal.

Em que pese tal dedução lógica fazer-se evidente, tal não ocorre no Direito

Penal. Isto porque há uma divergência na doutrina quanto à correta conceituação a ser

atribuída aos bens jurídicos que necessitam de tratamento pela ciência jurídico-penal,

conforme veremos a seguir.

3.3.2 A busca de uma nova conceituação dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito

Penal – a divergência entre as escolas contemporâneas

Os valores intangíveis de transgressão, conforme definido na Carta

Constitucional, não receberam a integral proteção pela legislação infraconstitucional, a qual

tutelou, apenas, os bens jurídicos de natureza estritamente individual.

Tal desequilíbrio de proteção aos bens jurídicos expressos na Constituição gera

uma falsa premissa de que os interesses individuais teriam prevalência sobre os de cunho

coletivo. Embora não reflita a verdade, isto ocorre devido à própria origem do Direito Penal.

A ciência jurídico-penal originou-se como um mecanismo de combate às

infrações praticadas contra direitos de índole individual, em especial o direito de propriedade.

Assim, punia-se o menos favorecido economicamente que atentava contra os bens dos mais

abastados.

Este foco individualista manteve-se durante todo o Estado Liberal, ante a

concepção iluminista que era adotada. Ocorre que, com o surgimento do Estado Democrático

de Direito e, conseqüentemente, o nascimento de novos direitos, especialmente os de viés

coletivo (lato sensu), uma reestruturação dos ideais do Direito faz-se necessária, em especial

em seu campo penal.

Passou-se da simples defesa da propriedade individual para a proteção ao meio

ambiente, ao patrimônio público, à economia, às instituições do país. As relações sociais

deixaram de ter o caráter inter-individual para tornarem-se inter-comunitárias, onde seus

componentes, muitas das vezes, não podem ser especificados, ante seu caráter transindividual.

Outrossim, deve-se ter bem claro que através de violações a bens jurídicos

referentes à coletividade, tem-se, indiretamente, uma transgressão a bens jurídicos de cunho

individual. Feldens exemplifica tal raciocínio com os denominados crimes ambientais, onde

são contaminados, de forma indiscriminada, o ar e a água, gerando, inclusive, prejuízos

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econômico-financeiras para o Estado e, conseqüentemente, direta e indiretamente à

coletividade, especialmente aos indivíduos integrantes da classe de menor renda.114

E assim, as conseqüências da prática de violações a tais bens transindividuais

atingiriam não somente um único indivíduo, mas, sim, centenas, milhares, milhões de

pessoas, posto que pertencem à coletividade como um todo.

Nesse cenário, observa-se que a própria concepção de bem jurídico a ser

tutelado pelo Direito Penal é posta em xeque, posto que torna-se imperiosa uma revisão na

própria classificação dos bens jurídicos, a fim de melhor adequá-los ao plano constitucional

contemporâneo que alicerça o Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, Maria da Conceição Ferreira da Cunha assevera que “seria

inconstitucional criar uma ordem de bens jurídicos penais de forma a inverter a ordem de

valores constitucional”.115

Na busca desta nova conceituação do bem jurídico penal, apresentam-se três

principais correntes doutrinárias: os penalistas liberais-individualistas, os minimalistas e os

comunitaristas.

Os denominados penalistas liberais-individualistas, baseados no ideal

iluminista, sustentam um sentido mais limitado do conceito, não devendo abarcar em sua

essência eventual proteção penal aos bens de interesse coletivo, mas somente aos de natureza

individual. Argumentam que caso se acolhesse na seara de proteção penal os bens daquela

essência haveria uma relativização na posição de ultima ratio do Direito Penal; ou seja, este

seria aplicado não como medida extrema, mas, indevidamente, de forma antecipada.116

Com entendimento diverso, os defensores de um Direito Penal de intervenção

mínima, defendem uma redução cada vez mais drástica nos bens a serem tutelados. Assim,

partem da premissa que os equívocos do Direito Penal e os erros do processo penal são

suficientes para limitar a aplicação das sanções estatais ao indivíduo, sobretudo pois em

contradição com um bem jurídico maior, qual seja seu direito de liberdade. Com origem nos

ensinamentos de Luigi Ferrajoli, esta corrente doutrinária prega que a obtenção dos “direitos

sociais máximos” só será possível com a existência de um “direito penal mínimo”.117

114 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 59. 115 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995. p.238. 116 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006, nº 22 (julho/dezembro de 2005). 117 Ibidem.

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Em sentido oposto às posições acima esposadas, apresentam-se os

comunitaristas. Asseveram quanto à necessidade de uma maior ampliação do conceito de bem

jurídico, devendo estar, inexoravelmente, jungido à realidade vivenciada pela sociedade,

como requisito fundamental à sua operacionalidade. Assim, na conceituação de bem jurídico

penal deve-se ter sempre em foco que determinados valores de natureza coletiva, previstos no

texto constitucional, necessitam, para sua própria sobrevivência e aplicação, de proteção

penal.118

Dos fundamentos apresentados pelos três posicionamentos, resta evidente que

a contradição entre tais encontra-se no seguinte ponto: de um lado há os que se prendem à

ultrapassada visão que os pensadores iluministas tinham sobre o campo de atuação da tutela

penal; bem como aqueles que defendem que com uma intervenção sancionadora cada vez

mais restrita do Estado sobre as condutas dos indivíduos, os direitos sociais terão maior

aplicabilidade; e de outro, um raciocínio mais moderno e adequado aos novos influxos

experimentados pela sociedade.

Os penalistas liberais-iluministas atem-se a uma idéia de Direito Penal

extremamente limitado; restrita aos bens jurídicos de caráter individual.

Já para os defensores do Direito Penal de intervenção mínima, a figura do

Estado é vista sempre sob um véu de desconfiança. Para tais pensadores o Estado apresenta-se

sempre com uma conotação opressora e, assim, caberia ao Direito (Penal) justamente

defender o indivíduo dessa função tendenciosamente prejudicial.

Frise-se, por oportuno, que esta corrente doutrinária, extremamente atuante nos

dias de hoje, prende-se à já ultrapassada concepção do Estado como sendo o Leviatã. E, desta

forma, o indivíduo, mesmo na posição de transgressor de uma norma de conduta de grande

relevância ao equilíbrio da sociedade, deverá sempre ser protegido da “mão pesada do

Estado”, posto que, na metáfora de Hobbes, estaria na posição de débil indefeso em face do

Leviatã.119

Em um estágio mais avançado de pensamento constitucional penal, os

comunitaristas, atentos à função transformadora inerente ao verdadeiro Estado Democrático

de Direito, buscam compatibilizar o dogma até então exclusivamente predominante, segundo

o qual caberia ao Direito (Penal) equilibrar o jus puniendi do Estado com sua inequívoca

obrigação de proteger de forma efetiva a sociedade de seus integrantes violadores contumazes

118 Ibidem. 119 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um estado Eclesiástico e Civil. 4.ed. São Paulo: Nova Cultura. 1998.

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de suas regras de conduta. Em não sendo as mesmas respeitadas, gerar-se-ia um desequilíbrio

nas bases fundamentais da própria vida em sociedade.

Tal divergência entre as escolas do Direito Constitucional Penal

contemporâneo tem nítidos reflexos nas orientações seguidas pelos juristas brasileiros.

Sob a bandeira da defesa de um verdadeiro ‘garantismo’, o pensamento

nacional alinhou-se aos ideais expostos pelos originais penalistas liberais-iluministas, numa

postura de intervenção mínima da ultima ratio. Assim, deve-se vedar sempre o excesso na

punição estatal ao indivíduo violador de norma infracional penal, devendo ser a mesma

aplicada somente em última hipótese e com parcimônia, posto que atinge um dos bens mais

caros ao indivíduo, qual seja a sua liberdade.

Demonstrando a contradição que ocorre na própria essência deste

posicionamento, Lênio Streck ressalta que ao não anuir com a possibilidade do Direito Penal

tutelar bens jurídicos de natureza transindividual, estar-se-ia, então, de forma contraditória,

abrindo-se mão de um relevante mecanismo à obtenção do fim precípuo visado por tal

pensamento os “direitos sociais máximos”.120

Sob outro prisma, é certo que ainda recente e a cada dia agregando novos

adeptos, situa-se um entendimento de vanguarda, que, sob as lições esposadas pelos ideais

trazidos pelos comunitaristas, sustenta a necessidade do dever de proteção de determinados

bens fundamentais de cunho social através do Direito Penal.

Streck resume de forma clara o paradoxo existente entre tais correntes

doutrinárias brasileiras, esclarecendo que:

“Parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas críticos brasileiros fazem esta leitura do garantismo tão – somente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o Direito penal deve ser (sempre) examinado também através de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar a acerca do dever de proteção de determinados bens fundamenteis do Direito Penal. Isto significa dizer que, quando o legislador não realiza esta proteção via Direito Penal é cabível a utilização da cláusula de ‘proibição de proteção insuficiente’ (Unthermassverbot).” 121

Perfeito o raciocínio do autor sulista. O equilíbrio que deve existir na tutela

penal deve agregar o garantismo por seu enfoque negativo e, também, por seu prisma

positivo.

120 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista clássico. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006, nº 22 (julho/dezembro de 2005), p.168. 121 STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), p. 230.

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Ademais, o garantismo penal na sua dimensão negativa acaba, não raras vezes,

privilegiando a elite econômica ou as classes mais influentes da sociedade, deixando de

criminalizar (ou mesmo descriminalizando) delitos de cunho econômico e tributário, que por

vezes prejudicam a sociedade como um todo e se revestem de alto potencial ofensivo.122

Na Europa, o Direito Penal é utilizado como mecanismo de proteção de bens

jurídicos de caráter social, como, por exemplo, nas condutas violadoras do sistema

econômico, fiscal e tributário, bem como naquelas que afetem o meio ambiente ou o

patrimônio público.

No Brasil, a incidência da tutela penal sobre os referidos bens de índole

coletiva (lato sensu) encontra fundamentação no próprio texto constitucional. Isto porque,

conforme já esposado, a tais valores foi deferida especial proteção pelo constituinte

originário, ante sua essencialidade ao desenvolvimento equilibrado da sociedade.

3.4 O papel limitador da Constituição no exercício da atividade do legislador penal

A análise da função limitadora da Carta Magna à normatização das condutas

que reclamem a tutela de natureza penal pelo legislador ordinário implica em verificar a

compatibilidade material daquela norma com as regras e princípios colacionados no texto

constitucional. Válido ressaltar que tal limitação encontra-se dotada de plena legitimidade,

posto que somente a Constituição, fruto direto do poder constituinte, poderia limitar a função

do legislador infraconstitucional, o qual representa o poder constituído.

O mestre italiano Luigi Ferrajoli sustenta que após a primeira fase do

positivismo123, onde o legislador era dotado de plenos poderes em seu atuar, prevalecendo o

princípio da legalidade em seu caráter estritamente formal, hoje está-se diante de uma

segunda fase, caracterizada pela vinculação da produção legislativa aos valores essenciais

constantes do texto constitucional, imperando-se o princípio da legalidade substancial. A

122 SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência. In: Revista de Estudos Criminais. Ano 03, nº12, Sapucaia do Sul: Nota Dez. 2003, pp 86 et seq.. 123 O ápice do positivismo jurídico se deu com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Para Kelsen, o direito é uma ciência livre de ideologias, e de considerações extra-jurídicas, que preocupa-se apenas com o dever ser, não com o ser, que é fático. A norma vale não porque tem valor moral, mas porque foi produzida de maneira legítima. Na ótica de Bobbio, (...) é uma concepção do direito que nasce quando “direito positivo” e “direito natural” não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria de direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito”. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito; compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Biri, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.p.26.

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validade da norma não decorre somente de sua compatibilidade com os requisitos formais

previstos na Lei Maior, mas, também, da observância dos princípios e dos direitos

fundamentais trazidos no texto constitucional.124

Portanto, o legislador penal deverá observar as restrições substanciais

existentes na Lei Maior, as quais possuem um duplo viés.

3.4.1 A Constituição como limite à atividade penalizadora do legislador

A prática pelo sujeito de direitos de uma determinada conduta, seja de natureza

comissiva ou omissiva, violadora do ordenamento jurídico, gera conseqüências que podem

variar conforme o bem jurídico atingido. Assim, o ato infracional poderá ter implicações

administrativas, cíveis e/ou criminais.

Quando o bem jurídico atingido não gozar de maior relevância, bem como a

conduta praticada não se constituir de considerável gravidade, os danos gerados encontrarão

suficiente tratamento na esfera cível-administrativa.

Ante o caráter subsidiário do Direito Penal, apenas quando restarem violados

bens jurídicos que desfrutem de especial proteção no texto constitucional terá incidência a

ultima ratio. Portanto, só haverá a tutela penal em hipóteses específicas.

Conforme já aduzido na presente dissertação, com o surgimento do

constitucionalismo moderno, o mecanismo de interpretação do Direito Penal foi alterado,

passando-se à sua análise sob o prisma constitucional. A norma de natureza penal deverá estar

em conformidade com a Constituição e não somente com as demais normas

infraconstitucionais, como antes ocorria.

A filtragem constitucional125 da ciência jurídico-penal implica na busca de um

maior equilíbrio na aplicação deste ramo do Direito. Assim, somente as condutas que

realmente necessitem de tratamento por uma norma penal repressiva deverão ser tuteladas

pelo Direito Penal.

Cumpre observar que o exercício regular de um direito fundamental pelo

indivíduo, em consonância com o ordenamento jurídico, não será passível de qualquer

conseqüência penal. A reprimenda estatal só incidirá quando houver abuso em tal fruição.

124 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil,. Madrid: Trotta. 1999, p. 66. 125 Expressão utilizada por Lênio Luiz Streck em sua obra Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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Somente a utilização desmedida de tal direito tornará necessária a aplicação da sanção penal

estatal.

Inobstante a compulsoriedade de tal tutela penal, a penalidade a ser

implementada pelo Estado, titular do jus puniendi, deverá ser proporcional à gravidade da

conduta praticada. O agente infrator deverá receber a sanção estritamente suficiente à sua

ação/omissão violadora do bem jurídico tutelado.

Tal aspecto possui grande importância na própria razão de ser do próprio

Direito Penal, posto que este possui um caráter estritamente fragmentário, de aplicação

restrita e comedida. Não poderá ser utilizado, em hipótese alguma, como mecanismo de

implementação de vingança estatal face os indivíduos violadores de suas normas de conduta.

A pena a ser aplicada pelo crime praticado deverá ter um caráter sancionador e

ressocializador ao agente infrator, bem como servir de exemplo aos demais membros da

comunidade quanto às conseqüências de sua prática.

Porém, em que pese tais aspectos, nunca a sanção penal poderá ser aplicada em

excesso. Por mais que a conduta praticada cause repulsa no meio social ante a forma que foi

praticada e/ou as conseqüências causadas, a penalização aplicada ao indivíduo infrator deverá

corresponder aos patamares regulados pela norma penal, vedando-se, sob qualquer hipótese,

excesso na punição.

Assim, a Constituição funciona como um limite à atividade penalizadora do

legislador.

3.4.2 A Constituição como limite à atividade despenalizadora do legislador

A Constituição consistirá não apenas em um limite à configuração de ilícitos

penais (e suas sanções), cuja tutela não mereça tratamento pela ciência jurídico-penal, ante a

falta de relevância do bem jurídico violado. Servirá, também, como norma de referência à

tutela de interesses relevantes à coletividade, a qual deverá ser, necessariamente, observada, a

fim de ser evitado um eventual déficit de proteção penal.

Nos dizeres de Luciano Feldens, as condicionantes impostas pela Carta Magna

ao legislador penal constituem, ao mesmo tempo, um limite material e um fundamento de

penalização no exercício da atividade legislativa complementar. Uma limitação ao vedarem a

criminalização de condutas que não necessitem de tal tratamento. Uma fundamentação

quando reclamam a normatização penal de condutas violadoras de bens jurídicos que gozem

de especial proteção no texto constitucional.

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O legislador não poderá se deixar levar pelos influxos sociais momentâneos

pela adoção de medidas legislativas de caráter excessivamente punitivas, muitas das vezes

intencionalmente impulsionados pela mídia, atuando de modo casuístico, sem maior

preocupação com os resultados concretos e, menos ainda, com sua legitimidade

constitucional.

Desta forma, conclui-se que o legislador, ao realizar a normatização da tutela

penal, não possui uma liberdade plena e irrestrita. Ao elaborar as normas de natureza penal,

deverá sempre observar o necessário equilíbrio entre a preservação dos direitos do agente

criminoso e a proteção eficiente da sociedade, tornando, assim, o fruto de sua criação dotado

de inequívoca legitimidade.

Ressalte-se, por oportuno, que o legislador penal não terá seu poder de criação

inutilizado. O exercício de sua atividade precípua permanece integral, porém não poderá

exercê-la de forma desmedida e desvinculada. Deverá pautar-se segundo as orientações

trazidas pelos valores previstos no texto constitucional.

Em outras palavras, o legislador penal deverá guiar-se por dois limites de

observância obrigatória: um superior (proibição de excesso punitivo) e outro inferior

(proibição de proteção deficiente). Tal equação decorre diretamente da correta interpretação

da Carta Constitucional de 1988, ícone da mudança do paradigma da interpretação no Brasil,

fruto do Constitucionalismo contemporâneo.

3.4.3 A Constituição e seus mecanismos no controle da atividade do legislador penal

Como bem asseverou a Corte Alemã (Bundesverfassungsgericht) “as

prescrições que o legislador expede devem ser suficientes a uma adequada e efetiva proteção,

devendo estar fundamentadas em cuidadosas investigações e em avaliações plausíveis”.126

Portanto, na hipótese do legislador não atender a tais finalidades

constitucionais ao elaborar um texto normativo, caberá ao julgador reconhecer a

inconstitucionalidade da referida norma por excesso na punição ou por proteção deficiente do

bem jurídico previsto no texto constitucional.

No Brasil, país de constitucionalidade tardia, os juízes possuem papel de

extremo relevo no panorama constitucional inaugurado com a Carta Magna de 1988. A

“Constituição Cidadã”, seguindo os modelos das Constituições dirigentes e compromissárias 126 Acórdão BVerfGE 88,203 (STRECK, Lênio Luiz. Do Garantismo Negativo ao Garantismo Positivo: a dupla face do princípio da proporcionalidade. In: Juris Poiesis – Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: ano 08, nº 07 (janeiro de 2005), pp. 245/246).

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surgidas após a 2ª Guerra Mundial, atribui ao Direito uma importância fundamental na

transformação sócio-política do país.

E dentro do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário passou a ter

importância nunca antes observada. Isto porque funciona como instrumento essencial à

efetivação dos direitos fundamentais e, através da jurisdição, constitui-se como grande

defensor dos valores materiais previstos na Carta Constitucional brasileira de 1988.127

Entretanto, muitas vezes ocorrerá a proteção insuficiente do bem jurídico

constitucionalmente tutelado ante uma omissão legislativa. Ao legislador ordinário incumbe

regulamentar o preceito de proteção constitucional, porém incide em omissão quando não o

faz, quedando-se inerte. Em razão disto, gera-se uma inconstitucionalidade por omissão.

Situação similar também poderá ocorrer quando a norma legal elaborada para tal fim não

proteger de forma suficiente o bem jurídico tutelado.

E tal controle das normas legais penais será feito através da jurisdição

constitucional.

A jurisdição constitucional, de forma sucinta, pode ser definida como o

exercício da defesa jurisdicional da Constituição. Constitui um dos mecanismos fundamentais

à efetivação do Estado Democrático de Direito, tendo duas idéias centrais: a garantia dos

direitos fundamentais e a limitação do poder estatal. Da mesma forma, apresenta-se como

instituição política essencial à garantia da supremacia da Carta Constitucional.128

Inequivocamente, o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis é a

vertente mais importante do exercício da jurisdição constitucional no Brasil.129

127 Lênio Streck resume, de forma precisa e sucinta, a transformação do Estado Liberal em Estado Social e, por fim, em Estado Democrático de Direito, in verbis: “se no paradigma liberal o Direito tinha a função meramente ordenadora, estando na legislação o ponto de tensão nas relações entre Estado e Sociedade, no Estado-Social sua função passa a ser promovedora, estando apontadas as baterias para o Poder Executivo, pela exata razão da necessidade da realização das políticas do Wellfare State. Já no Estado Democrático de Direito, fórmula constitucionalizada nos textos magnos das principais democracias, a função do Direito passa a ser transformadora, onde o pólo de tensão, em determinadas circunstancias previstas nos textos constitucionais, passa para o Poder Judiciário ou para os Tribunais Constitucionais.” (ANDRADE, André (Organizador). Constitucionalização do Direito: A Constituição como lócus da hermenêutica jurídica (Apresentação de Lênio Luiz Streck). Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2003, p. 13). 128 Conforme ensina o mestre Mauro Cappelletti, a Jurisdição Constitucional possui diversas formas de manifestação, tais como o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, o Mandado de Segurança, o Habeas Corpus, o Habeas Data, a Ação Popular, os institutos do Tribunal Constitucional Federal Alemão, as declarações da Assembléia Popular da ex-URSS, dentre outras (CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. 2ª edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999). 129 No Brasil, adota-se o sistema misto (ou híbrido) do controle de constitucionalidade das leis. Na verdade, o denominado sistema misto nada mais é que a conjugação dos institutos do controle difuso com os do controle concentrado.

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A questão da legitimidade das decisões jurisdicionais é uma das questões mais

importantes do direito contemporâneo, pois envolve o problema da legitimidade da decisão do

juiz em face da decisão tomada pelos representantes da maioria na casa legislativa.

Incumbe ao julgador analisar se a lex sob análise observou os ditames

orientadores da norma penal esposados na Constituição. Especificamente, deverá ser

verificado o caráter criminalizador da norma, bem como, seu aspecto despenalizador (integral

ou parcial).

Fundamenta-se o exercício do controle da constitucionalidade sobre as normas

penais, sob o enfoque da dupla face do princípio da proporcionalidade em matéria penal pelo

caráter objetivo que os direitos fundamentais desfrutam, sendo, assim, de observância

obrigatória pelo legislador.

Valendo-se do duplo viés do princípio da proporcionalidade em matéria penal,

ao realizar a ponderação, o órgão julgador deverá observar se a referida norma apresenta

coerência com o sistema jurídico de índole penal, constatando se foi evitado o excesso na

punição, bem como se a proteção ao bem jurídico foi realizada de forma suficiente à sua

integridade. Com efeito, dever-se-á extirpar exageros punitivos e déficits de proteção penal.

Frise-se, por oportuno, que o julgador deverá verificar a concordância formal e,

principalmente, material da norma legal com o texto constitucional. Isto porque, o juiz não

representa um simples aplicador de leis, mas, sim, um agente integrador do ordenamento

jurídico. Ao operador do Direito incumbe realizar a interpretação da legislação

infraconstitucional sob a luz dos direitos fundamentais previstos na Constituição, realizando-

se, assim, a filtragem constitucional da norma legal, valendo-se da técnica da ponderação

sempre que houver conflito entre os direitos constitucionais envolvidos.

O controle difuso na CRFB/1988 tem como característica a sua aplicabilidade por qualquer juiz ou tribunal, diante de um determinado caso concreto, que decidirá sobre a compatibilidade de determinado ato com a Constituição Federal, como questão prévia, imprescindível ao julgamento da lide. Neste, a declaração de inconstitucionalidade não constitui objeto principal da ação, configurando-se como questão prejudicial, ou seja, questão de direito substantivo de que depende a decisão final a tomar no processo e que fará parte da motivação do decisum, em julgamento incidenter tantum. A decisão judicial, prolatada em processo no qual foi encetado esse controle, fará coisa julgada entre as partes e com relação restrita ao caso concreto apresentado em juízo, não vinculando outras decisões. Declarado inconstitucional, o ato normativo somente poderá ter sua execução suspensa caso a inconstitucionalidade seja definitivamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, e após a edição de resolução do Senado, nos termos do artigo 52, X da Constituição Federal. No controle concentrado de constitucionalidade, diversamente, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo em tese ou omissão, independentemente da existência de uma lide. Já nessa via de controle, o próprio pedido da ação intentada será a inconstitucionalidade do ato, que deverá ser declarada no dispositivo da decisão, em julgamento principal, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em controle de constitucionalidade a nível federal ou pelo órgão especial dos Tribunais estaduais, quando em jogo o controle de constitucionalidade estadual.

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Ao realizar a adequação da legislação infraconstitucional com as diretrizes

delineadas no corpo da Constituição, o juiz estará, também, efetivando os fins preceituados

pelo Estado Democrático de Direito.

No estudo de caso proposto no capítulo seguinte será analisada a

compatibilidade formal e substancial da lei em comento com a Carta Magna, tornando mais

fácil a compreensão desta indispensável vinculação acima retratada.

Sob os ideais desta contemporânea concepção de Estado, caberá ao Direito

Penal realizar, justamente, este equilíbrio na proteção aos direitos individuais e, no mesmo

tom, aos direitos transindividuais. Garante-se ao indivíduo infrator um tratamento justo e à

sociedade a integridade de seus direitos.

A ciência jurídica deve caminhar ao lado do desenvolvimento social. Desta

forma, a manutenção de um eventual enfoque exclusivamente individualista, em detrimento

da observância, concomitante, com os bens de natureza transindividual, ensejará um odioso

retrocesso na própria tutela estatal, eis que em total descompasso com os valores

constitucionalmente relevantes para a sociedade.

Hoje, não mais se justifica tal concepção de intervenção mínima (ou

abolicionista) do Direito Penal. Da mesma forma, não apresenta-se razoável a aplicação da

prática do “tolerância zero”, baseada na repressão integral e com extremo rigor aos delitos

cometidos, mesmo que de menor potencial ofensivo.130

Outrossim, a ciência jurídico-penal deverá atuar quando sua interferência

apresentar-se necessária à manutenção do equilíbrio social e, conseqüentemente, da própria

organização estatal. E em sendo imperiosa sua tutela em face de violações a interesses que

atinjam a comunidade, o Estado deverá agir buscando restaurar a pacificação social,

sancionando o transgressor de forma justa e estritamente suficiente.

Em assim agindo, estar-se-á efetivando o principio da proporcionalidade em

sua concepção específica dentro do Direito Penal, proibindo-se o excesso na punição ao

agente infrator e, concomitantemente, vedando-se uma eventual proteção insuficiente ao bem

jurídico violado e, conseqüentemente, à própria sociedade.

Os direitos fundamentais e a democracia convivem em uma relação de

implicação recíproca; isto é, só há democracia onde se respeitam e se efetivam os direitos

fundamentais, e vice-versa.

130 A política do “tolerância zero” teve origem nos Estados Unidos da América, tendo grande evidencia nos anos 90, quando implementada em Nova York, pelo Prefeito Rudolph Guilianni.

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Atuando desta forma e, assim, assegurando os direitos fundamentais

colecionados no texto constitucional, os quais constituem “condições estruturantes e

essenciais ao bom funcionamento do próprio regime democrático”, conforme leciona

Gustavo Binenbojm, a atuação da justiça constitucional será a favor, e não contrária à

democracia.131

Assim, a jurisdição constitucional apresenta-se como de vital importância na

consolidação da democracia e da efetivação dos direitos fundamentais, pois só com a

prevalência dos valores trazidos pela Constituição da República é que serão alcançados estes

objetivos maiores do Estado Democrático de Direito.

3.5 A Constituição como fundamento ao tratamento penal de condutas violadoras de

bens jurídicos constitucionalmente relevantes

Conforme referido anteriormente, o conceito iluminista sobre bem jurídico

necessitava, há muito, ser atualizado. A concepção construída no Estado Liberal não mais se

coadunava com o desenvolvimento social alcançado e com uma nova forma de Estado, qual

seja o Democrático de Direito.

Se anteriormente bastava ao Direito Penal funcionar como um mecanismo de

contenção à índole penalizadora do legislador infraconstitucional, visando sempre a

preservação dos direitos e liberdades individuais, tal quadro não se apresenta mais condizente

com o aumento da criminalidade e o conseqüente desequilíbrio no exercício do ius puniendi

pelo Estado.

Buscando trazer ao cenário jurídico um novo conceito sobre o bem jurídico de

caráter penal surgem os comunitaristas. Em seus estudos, propõem um reequilíbrio na tutela

penal estatal, devendo o legislador, sem se descuidar de sua proibição em penalizar com

excesso o agente infrator, observar uma proteção suficiente ao bem jurídico atacado e, via de

conseqüência, à própria sociedade.

Assim, o bem jurídico deixa de ser somente o objeto criado pela proteção

conferida pela ciência jurídico-penal para se tornar a própria fonte da tutela penal. Opera

como a razão de ser da prestação estatal de cunho penal.

131 BINENBOJN, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira – Legitimidade Democrática e Instrumentos de Realização. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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O Direito Penal passa a funcionar como um instrumento de defesa aos bens

jurídicos cuja proteção encontra-se necessária ante sua abordagem especial feita no texto

constitucional. O bem jurídico deixa de ser somente a conseqüência para se tornar a origem

legitimadora da extrema ratio.

Questão que vem levantando grande discussão entre os pensadores modernos

do Direito Penal, de visão comunitarista, consiste em definir se o bem jurídico que reclame

proteção penal precisa, necessariamente, estar expressamente referido no texto da

Constituição.

Um primeiro entendimento, expoente no direito internacional, sustenta a

restrição da tutela penal aos valores expressamente tratados na Lei Maior. Isto porque, em

sendo a Constituição a fonte única de validade – tanto formal quanto material – das normas

penais incriminadoras, apenas o rol de bens e direitos ali elencados gozariam de tal proteção

especial.132

Assim, mesmo que o bem atingido pela conduta praticada pelo agente não goze

de igual relevância àquele que será sacrificado pelo exercício do ius puniendi estatal, tal

sanção será legitima se, ao menos, o primeiro tiver previsão no texto constitucional.

Já uma segunda orientação, também de origem européia, caminha em sentido

diverso, ao afirmar a desnecessidade do bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal

encontrar, obrigatoriamente, previsão na Carta da República. Argumentam que caso somente

os bens jurídicos elencados na Constituição fossem suscetíveis de proteção pelo Direito Penal

estaria o legislador limitado a um grupo restrito de valores. 133

Ademais, a evolução dos interesses e bens caros à coletividade, frutos do

desenvolvimento social, não gozariam de qualquer defesa, posto que por terem nascidos de

forma recente estaria o Estado proibido de exercer sua tutela protetiva, eis que não constantes

explicitamente no texto constitucional. O simples fato de não constarem expressamente de

algum dispositivo da Lei Maior não os torna inferiores em uma imaginaria escala de valores

essenciais à comunidade.

Os autores italianos Dolcini e Marinucci expõem de forma enfática as razões

de fundo de tal posicionamento, quando afirmam que durante a história mundial há vários

exemplos de bens, sejam de natureza individual ou coletiva, que foram violados pela ordem

legal precedente, por não encontrarem prévio tratamento legal. E, desta forma, em se

132 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face do princípio da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 51. 133 Ibidem, p.51

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mantendo tal pensamento, novas violações a bens socialmente relevantes ocorrerão no futuro,

por mera decorrência de um empecilho formal à sua proteção pelo Direito Penal. Citam como

exemplo o meio ambiente, o qual só passou a conferir efetiva proteção pelas ordens

constitucionais em um passado recente, ante o agravamento da situação ecológica no mundo. 134

Portanto, para tal entendimento, existindo um bem jurídico dotado de

inequívoca relevância social, estará o legislador penal apto a deferir-lhe proteção, mesmo que

não encontre expressa previsão na ordem constitucional.

Caminhando nesse sentido, porém com uma construção mais harmônica,

Feldens sustenta que os bens jurídicos socialmente relevantes, mesmo que não possuam

expressa previsão no texto constitucional, sempre terão ligação com algum valor

constitucionalmente protegido. Caberia ao jurista justamente encontrar esses elos de ligação

de forma a legitimar tal proteção. Enfatiza que tal conexão deverá ser devidamente

fundamentada, sob pena de violar-se a noção precípua da Constituição como fonte exclusiva

de validade dos bens jurídicos aptos a receberam a proteção jurídico-penal.135

E sob tal raciocínio, o autor sulista afirma a existência de ‘mandados

constitucionais de penalização’, os quais poderão estar de forma expressa (formalmente) no

texto constitucional ou de forma implícita, extraídos de alguma norma constitucional

expressa, em especial as referentes aos direitos fundamentais e à efetivação do principio da

proporcionalidade na tutela penal.136

Apresentado o Direito Penal sob a nova roupagem que lhe foi conferida pela

Carta da República de 1988, ampliando a concepção do bem jurídico objeto de sua proteção,

em consonância com a moderna concepção do princípio da proporcionalidade em matéria

penal, a presente dissertação destacará no próximo capítulo um estudo de caso que dará

efetividade aos ensinamentos das teses levantadas.

134 Ibidem, pp. 52-53. 135 Ibidem, pp. 53-54. 136 Ibidem, pp. 60-68.

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4. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO SOB A NOVA CONCEPÇÃO DO

DIREITO CONSTITUCIONAL PENAL 4.1 Considerações Iniciais

Como é cediço, um diploma legal de natureza infraconstitucional retira seu

fundamento de validade da Constituição. Tal conclusão decorre do princípio da supremacia da

Constituição, o qual já foi tratado no primeiro capítulo da presente dissertação.

Com efeito, a norma, ao ser elaborada, deverá observar um duplo aspecto:

formal e material.

Formalmente, a lei deverá ter seu processo de formação em conformidade com

os ditames formais previstos na Carta Constitucional. Tendo o processo legislativo respeitado

tais regramentos, a referida norma estará apta a ter eficácia.137

Para que a citada legislação possua validade, terá que possuir coerência

substancial com o texto constitucional. Isto é, seu conteúdo deverá ter compatibilidade

material com as regras e princípios esposados na Carta Magna.

Uma vez observados ambos os critérios, a norma legal estará dotada de

legitimidade, atributo necessário à sua aceitação e, conseqüente, adoção pelos cidadãos,

destinatários finais de sua elaboração.

A verificação da legitimidade constitucional da norma legal elaborada caberá,

em última análise, ao julgador. A ele incumbe destrinchar o texto normativo, a fim de

evidenciar a compatibilidade formal e material com a Lei Maior. Entretanto, tal processo não

será meramente estéril; mas, sim, de natureza crítica.

Neste sentido, o mestre italiano Luigi Ferrajoli resume de forma bem didática

esta função precípua do julgador, ao afirmar que “la jurisdicción ya no es la simple sujeción

del juez a la ley, sino también análisis crítico de su significado como médio de controlar su

legitimidad constitucional”.138

Portanto, somente as normas legitimamente constitucionais serão consideradas

pela jurisdição. E, conseqüentemente, apenas essas vinculam o julgador na efetivação de seu

mister. 137 O artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/420) reza que “salvo disposição em contrária, a lei começa a vigorar em todo o país 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada. §1º Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia 3 (três) meses depois de oficialmente publicada.(...)”. 138 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta. 1999, p.106

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O instituto da vigência encontra sua base constitucional nos princípios da

legalidade e da segurança jurídica. Conseqüentemente, a vacatio legis139 tem sua raiz

constitucional em tais pilares.

O princípio da legalidade pode ser definido como o produto mais expressivo da

orientação positivista, base da concepção moderna da Ciência do Direito.

Tal princípio ao ser aplicado no campo do Direito Penal possui relevância

fundamental na própria sistematização da matéria e, via de conseqüência, em sua própria

normatização. Isto porque, ao definir que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem

pena sem prévia cominação legal” – artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna e artigo 1º do

Código Penal – adota um caráter restritivo e específico, diverso daquele aplicado às relações

de natureza cível.

Portanto, verifica-se que o princípio da legalidade, no Direito Moderno, é o

principal fundamento do Direito Penal sistematizado.

Não obstante tal constatação, o princípio da segurança jurídica, o qual tem sua

origem indireta no próprio princípio da legalidade, possui grande importância dentro da

Ciência do Direito e, em especial, no próprio ordenamento jurídico. O citado instituto é

essencial ao Direito Positivo, posto que garante a tranqüilidade às pessoas sobre a

possibilidade de praticarem determinada conduta (comissiva ou omissiva) e suas respectivas

conseqüências legais.

Assim, a certeza quanto ao efetivo início de eficácia de uma determinada lei é

essencial à segurança jurídica que deve existir entre os sujeitos destinatários da mesma, seja

direta ou indiretamente.

A problemática existente quanto à fixação da correta data da entrada em vigor

das normas repressivas da Lei nº 10.826/03, em decorrência da incerteza quanto às suas

vacatio legis, gera um panorama de insegurança jurídica, justamente contrário ao que

preconiza nossa Lei Maior e o próprio Direito Positivo.

Neste contexto, o objeto que dá origem ao presente estudo de caso reside

justamente nas controvérsias geradas quanto à efetiva vigência do denominado Estatuto do

Desarmamento (Lei nº 10.826/03), ante a contradição de dispositivos e de normas

139 Vacatio legis é uma expressão latina que designa o período decorrente do dia da publicação de uma lei até a data em que esta entra em vigor. Durante a vacatio legis ainda vigora a lei anterior. No Brasil a vacatio legis é, salvo determinação expressa da lei, de 45 dias. Adota-se o sistema sincrônico/simultâneo em que a lei entra em vigor na mesma data e em todo território nacional (artigo 1º LICC). A contagem do prazo para a entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral (artigo 8º da Lei Complementar nº 107, de 2001).

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supervenientes que alteraram a vacatio legis do mencionado diploma. Será analisado o

referido texto legal original e suas alterações supervenientes, por outros textos legais, por

medidas-provisórias, questionando tal viabilidade jurídica e o posicionamento da doutrina e

jurisprudência sobre o tema, bem como às conseqüências de tal insegurança jurídica criada.

Sem perder o enfoque crítico, serão levantadas todas as nuances atinentes à

questão, em especial as decorrências geradas pelos posicionamentos adotados à época da

ebulição da divergência quanto à Lei nº 9.437/97 e os “novos” entendimentos que vêm se

firmando quanto à recorrente problemática agora verificada na Lei nº 10.826/03, com a

verificação das posições adotadas pelos tribunais superiores, sendo utilizada a jurisprudência

já sedimentada sobre o assunto, porém que ainda comporta discussão.

O estudo será pautado pela verificação dos interesses em conflito, propondo-se

como solução interpretação a utilização da técnica da ponderação sobre a vexata questio em

tela, sob a ótica da dupla face do princípio da proporcionalidade em matéria penal, buscando-

se uma solução equilibrada, ante uma filtragem constitucional do Direito Penal e,

conseqüentemente, das normas que o compõem.

4.2 O desenvolvimento da cultura armamentista no Brasil

O surgimento e a utilização de armas de fogo pela população brasileira remete

a tempos passados. No Brasil, tal hábito está intimamente ligado à própria forma de

colonização a que o país foi submetido.

O colonizador europeu, conhecedor de seu poderio bélico, não teve maiores

dificuldades para impor sua dominação sobre uma população primitiva e desarmada, que

valia-se, única e exclusivamente, de lanças e flechas para, inocentemente, tentar defender a

terra que possuía.

Com o advento das culturas da cana-de-açúcar e do café e, posteriormente, com

o ciclo da mineração, a civilização foi se interiorizando, revelando locais antes

completamente desabitados e que necessitavam de uma maior proteção ante os mistérios das

florestas e do desconhecido.

Baseada na equivocada crença de que armas de fogo seriam suficientes para

garantir a segurança dos homens, em especial daqueles que viviam no interior do país,

começou a se fixar a cultura do armamento civil.

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Os ciclos econômicos experimentados pelo Brasil culminaram em um acúmulo

de riqueza significativo por um grupo limitado de pessoas. A fim de ser garantida a segurança

desta classe houve um crescimento na remessa de armas de fogo e similares da Europa para a

então colônia portuguesa.

Aliado a tal fator, a presença da família real no país e a conseqüente fixação do

centro do Império Português no Brasil e a posterior proclamação da Independência

impulsionaram a necessidade de um maior armamento interno para o exercício da defesa das

fronteiras.

Inobstante tais registros históricos, a população então existente no Brasil

cultivava o hábito de possuir armas de fogo para exercício de sua defesa pessoal e,

principalmente, de sua propriedade.

4.3 O surgimento das Leis de Armas

O elevadíssimo quantitativo de armas de fogo e similares nas mãos da

população civil passou a preocupar a monarquia nacional. Diante de tal quadro, o Código

Criminal do Império de 1830 passou a sancionar com pena de prisão a conduta de utilizar

armas offensivas, gênero no qual se inseriam as armas de fogo.140

No mesmo sentido, a Lei de 26.10.1831 tipificava em seu artigo 3º o uso ilegal

de pistolas e armas brancas, cominando pena de prisão àqueles que praticassem tal ação

delitiva.141

O Código Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais e 1932 mantinham a

proibição do uso de armas de fogo, bem como de sua fabricação.142

A Lei das Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31) também sancionava as

referidas condutas em seus artigos 18 e 19.143

140 Código Criminal do Império do Brasil de 1830: “Artigo 297: Usar de armas offensivas que forem prohibidas. Penas – de prisão por quinze a sessenta dias e de multa correspondente à metade do tempo, além da perda das armas”.(sic) 141Lei de 26.10.1831: “Artigo 3º: O uso, sem licença, de pistolas, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovellas ou qualquer outro instrumento perfurante será punido com a pena de prisão com trabalho, por um a seis meses, duplicando-se na reincidência, e ficando em vigor a disposição do Código quanto às armas proihibidas”.(sic) 142 Código Penal de 1890: “Artigo 376: Estabelecer, sem licença do Governo, fábrica de armas ou pólvora. Penas – de perda para a Nação dos objetos apreendidos e multa de 200$ a 500$.(sic) “Artigo 377: Usar de armas offensivas sem licença da autoridade policial. Pena – de prisão celular por quinze a sessenta dias.(...)”.(sic) 143 Lei das Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31): “Art. 18. Fabricar, importar, exportar, ter em depósito ou vender, sem permissão da autoridade, arma ou munição: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, ou

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Em que pese o tratamento legal repressivo conferido às condutas relacionadas

com armas de fogo, o desaparelhamento estatal e sua ineficiência frente ao aumento

assustadoramente veloz da violência durante os séculos fez com que em pleno século XX o

país passasse a apresentar um enorme número de armas de fogo nas mãos de civis. Tal quadro

revelou-se extremamente desastroso, visto que o número de ações ilícitas cometidas com

armas de fogo, muitas em razão de acidentes domésticos, chegou a níveis alarmantes.

Diante de tal situação, o legislador constatou que as condutas relacionadas à

utilização de arma de fogo, que até o final do século XX eram tidas como meras

contravenções penais, necessitavam de regulamentação mais severa, com tratamento de crime

e com cominação adequada às suas gravidades, objetivando, precipuamente, desarmar a

população.

Frise-se, por oportuno, que nem no Código Penal de 1940 (D.L. nº 2.848/40)

havia previsão expressa da utilização de arma de fogo como crime autônomo. A tipificação

se restringia, apenas, à realização de determinada infração penal (principal) com o emprego de

arma, circunstância esta que implicaria em um agravamento da pena referente àquele crime

praticado.144

E assim, o significativo aumento da violência agravou, ainda mais, o quadro já

caótico da política de segurança envolvendo armas de fogo no país.

No cenário mundial a realidade não se mostrava muito distante. Atenta a tal

situação de emergência, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados

Americanos (OEA) e a Comunidade Européia realizaram diversos congressos no decorrer dos

anos 90 com a finalidade de discutir e propor soluções no sentido de um maior controle sobre

as armas de fogo nos países associados.145

multa, de um a cinco contos de réis, ou ambas cumulativamente, se o fato não constitui crime contra a ordem política ou social. “Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente. § 1º A pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em sentença irrecorrível, por violência contra pessoa. § 2º Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a um conto de réis, quem, possuindo arma ou munição: a) deixa de fazer comunicação ou entrega à autoridade, quando a lei o determina; b) permite que alienado menor de 18 anos ou pessoa inexperiente no manejo de arma a tenha consigo; c) omite as cautelas necessárias para impedir que dela se apodere facilmente alienado, menor de 18 anos ou pessoa inexperiente em manejá-la.” 144 Exemplos no Código Penal (Decreto-Lei 2.848 de 07 de dezembro de 1940): roubo com emprego de arma (artigo 157, §2º, inciso I); quadrilha armada (artigo 288, parágrafo único). 145 Dentre os encontros mundiais organizados pela ONU, pela OEA e pela Comunidade Européia estão: IX Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo, Egito, de 29 de abril a 08 de maio de 1995; Reunião da Comissão de Prevenção do Delito e Justiça Penal (ONU), realizado em Viena, Áustria, em maio de 1996; Reunião da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD-OEA), em Caracas, Venezuela, em maio de 1996; Convenção Interamericana contra a

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Diante de tal orientação das entidades internacionais, bem como do cenário

preocupante existente no país, em 20 de fevereiro de 1997 foi promulgada a Lei nº 9.437

(conhecida como Lei de Armas), onde as condutas relacionadas com armas de fogo passaram

a ter tratamento específico e diferenciado, com sanções e cominações pertinentes, passando a

ser consideradas crime e não mais mera contravenção penal.

O diploma legal especial tinha por objetivo: combater a violência, com o

recrudescimento na sanção penal às condutas praticadas com o emprego de armas de fogo, as

quais foram elevadas à categoria de crime; evitar a prática de crimes violentos, normalmente

realizados com a utilização de armas de fogo, e exercer um maior controle sobre as armas de

fogo existentes no país, criando-se um sistema único de registro de âmbito nacional.

A referida lei também teve o mérito de instituir em nosso país uma rigorosa

política nacional sobre as armas de fogo, especialmente no âmbito administrativo, não se

limitando somente ao aspecto criminal.

Com o passar dos anos, verificou-se que a então revolucionária Lei de Armas

(Lei nº 9.437/97), então em vigor, não mais condizia com a evolução da violência decorrente

das inúmeras inovações técnicas das armas de fogo, munições e acessórios e das novas

modalidades de ações típicas perpetradas, em especial pela alta marginalidade.

A cominação legal para tal conduta não mais cumpria seu papel de punição,

ressocialização e de exemplo à comunidade, uma vez que a população civil voltou a se armar,

diante do quadro de violência que se agravava cada vez mais, fruto do aumento das

organizações criminosas e da impotência do Estado no setor da segurança pública.

Somado a tais circunstâncias fáticas, com o advento da Lei dos Juizados

Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal (Lei nº 10.259/01), os tipos penais

referentes às condutas com armas de fogo, tipificadas no artigo 10 da Lei nº 9.437/97,

passaram a ser considerados crimes de menor potencial ofensivo, tendo em vista a simetria

que deveria existir tanto no âmbito da Justiça Comum, quanto no da Justiça Federal.146 Tal

normatização esvaziou, e muito, a eficácia da Lei de Armas, posto que tornou possível a

Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e outros Materiais Correlatos (OEA), em novembro de 1997 da; Reunião do Conselho das Comunidades Européias, em junho de 1991. 146 Conforme entendimento predominante na doutrina e nos Tribunais pátrios, o artigo 2º caput e parágrafo único da Lei nº 10.259/01 (Lei dos Juizados Especiais Federais Cíveis e Criminais) revogou o artigo 61 da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Comum Estadual), posto que versou sobre o mesmo assunto e, ante o princípio da simetria, terá incidência sobre a lex (anterior) dos JECrim´s da Justiça Comum Estadual.

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aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, incidentes nos procedimentos

ocorridos no Juizado Especial Criminal, tais como a transação penal.147

Atento a tal estado deficitário e urgido pela necessidade de uma resposta

estatal, o legislador trouxe ao cenário jurídico a Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, a

qual ficou conhecida como Estatuto do Desarmamento.

Tal novo diploma, em que pese muito se assemelhar com a anterior lei, tem

como fins precípuos: o desarmamento da população civil; dificultar o porte e a propriedade de

armas de fogo pelo cidadão; a tipificação de novas condutas e o agravamento na cominação

legal dos tipos já existentes relacionados a armas de fogo, posto que muitas das vezes irão

incidir na prática de delitos mais graves executados através do seu emprego (como

homicídios, roubos, estupros, seqüestros, formação de quadrilha); a criação de um cadastro

mais técnico e mais completo para o controle das armas existentes no Brasil.

Ademais, passaram a ser identificadas como crime condutas relacionadas com

munições e acessórios, mesmo que independentemente da existência de arma de fogo na

situação fática.148 No mesmo sentido, foram agravadas as penas referentes aos crimes.

Fixado o cenário nacional ensejador de tais diplomas legais, passemos a vexata

questio do presente trabalho.

Coincidência ou não, ambas as referidas leis especiais enfrentaram/enfrentam

divergências de entendimentos quanto à sua efetiva entrada em vigor em nosso ordenamento

jurídico. Isto porque a vacatio legis de determinados tipos penais de cada uma restou

controversa.

Em que pese a questão de fundo ser a mesma, isto é, a problemática quanto à

vigência da lei, cada diploma possui situação específica diversa, razão pela qual passaremos a

análise individual de cada um.

4.4 A Lei nº 9.437/97 (Lei das Armas de Fogo)

A Lei nº 9.437/97 passou a prever como crime, e não mais como contravenção

penal, as condutas praticadas com armas de fogo. Ademais, tipificou diversas novas condutas

147 O instituto da transação penal encontra-se regulado no artigo 76 da Lei nº 9.099/95.

148 Artigos 12, 13, 14, 16, 17 e 18 da Lei nº 10.826/03.

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envolvendo armas de fogo, bem como especificou objetos que seriam tutelados por sua

prescrição legal.

Ocorre que a divergência criada pelo conflito de datas fixadoras do termo

inicial da vacatio legis gerou incerteza quanto à efetiva vigência da reprimenda penal de tais

condutas.

A Lei de Armas, denominação pela qual ficou conhecido o mencionado

diploma legal, rezava em seu artigo 5º que o proprietário, possuidor ou detentor de arma de

fogo teria o prazo de seis meses, a partir da data da promulgação da lei, para promover o

registro da referida arma que estivesse em situação irregular.149

Neste sentido, durante tal prazo, as condutas típicas previstas no artigo 10 não

seriam aplicadas a tais agentes (artigo 20).150

Ocorre que, à época, o referido registro das armas de fogo só se tornou possível

após a publicação do respectivo Regulamento da lei, Decreto nº 2.222, o que ocorreu somente

no dia 08/05/97, logo, mais de dois meses após a lex nova.151

Tal discrepância de datas entre a publicação da lei especial e de seu respectivo

regulamento gerou dúvida quanto à data da efetiva entrada em vigor das condutas típicas

disciplinadas no artigo 10 da lei, ante a já mencionada vacatio legis de seis meses prevista no

artigo 5º. Ou a contagem do prazo deveria ser feita a partir da data da promulgação da Lei nº

9.437/97 (20/02/97), conseqüentemente as condutas típicas entrariam em vigor em

20/08/1997, seis meses após a promulgação da lei. Ou o termo inicial seria o correspondente à

data da publicação do Regulamento (Dec. nº 2.222/97), qual seja 08/05/97, entrando em vigor

as novas figuras típicas em 08/11/97, nos exatos termos do referido artigo 20 da Lei de

Armas.

O Superior Tribunal de Justiça, através de sua 5ª Turma, adotou o segundo

posicionamento152, orientação esta que foi corroborada pelo Ministério da Justiça, através de

comunicado divulgado na Imprensa Oficial.

149 Lei nº 9.437/97: “Art. 5º O proprietário, possuidor ou detentor de arma de fogo tem o prazo de seis meses, prorrogável por igual período, a critério do Poder Executivo, a partir da data da promulgação desta Lei, para promover o registro da arma ainda não registrada ou que teve a propriedade transferida, ficando dispensado de comprovar a sua origem, mediante requerimento, na conformidade do regulamento. Parágrafo único. Presume-se de boa fé a pessoa que promover o registro de arma de fogo que tenha em sua posse.”

150 Quanto às demais disposições, a lei já entraria em vigor na data de sua publicação (21/02/1997) (artigo 20). 151 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 30. 152 Posicionamento pacificado pelo STJ nos julgamentos: RHC nº 7.423, DJU de 15.06.1998, p.140; RHC nº 6.726, DJU de 24.11.1997, p. 61252.

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Após a sedimentação de tal entendimento por parte do STJ e do Ministério da

Justiça, tal questão não gerou maiores controvérsias, em que pese a prévia existência do

Decreto nº 92.795/86, o qual regulamentava sucintamente as contravenções penais praticadas

com armas de fogo.

Entretanto, questão a ser analisada no presente trabalho consistirá em

definirmos se durante a vacatio legis do mencionado diploma a referida conduta seria

absolutamente atípica ou se permaneceria em vigor o artigo 19 do Decreto-lei nº 3.688/41, o

qual previa como contravenção penal tal prática, em que pese a revogação expressa de tal

dispositivo no que concerne às armas de fogo pelo artigo 21 da Lei de Armas.

Tal resposta será dada mais à frente, posto que, mutatis mutandis, tal

controvérsia se repetiu quando do advento do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03),

tornando-se imperioso um estudo sobre o tema, não meramente positivista, mas, sim, sob a

ótica da verdadeira natureza do princípio da proporcionalidade na seara constitucional penal.

4.5 Aspectos gerais da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento)

Em que pesem os grandes avanços obtidos pela Lei nº 9.437/97 no combate à

violência relacionada às condutas praticadas com armas de fogo, o desenvolvimento

tecnológico da indústria armamentista, a melhor estruturação alcançada pelas organizações

criminosas, a impotência estatal no combate ao aumento dos crimes praticados com a

utilização de armas de fogo, munições e acessórios e a conseqüente insegurança gerada na

sociedade, que passou novamente a se armar sob a ilusão de se auto-proteger, fez com que a

então Lei de Armas tornasse-se defasada e, via de conseqüência, ineficaz na normatização e,

em especial, na reprimenda de tais condutas.

Sob este cenário, foi promulgada a Lei nº 10.826/03, denominada Estatuto do

Desarmamento, a qual previu novos tipos penais, passando a regular novas formas de ações

que envolvam armas de fogo, bem como passaram a ser consideradas crime condutas

relacionadas com munições e acessórios, mesmo que independentemente da existência de

arma de fogo na situação fática. Também foram agravadas as penas referentes aos crimes.

Visa a lei a defesa da incolumidade pública, da segurança pública. Tais bens

jurídicos possuem natureza transindividual. São também protegidos na Lei de Tóxicos (Lei nº

11.343/06), no Código Nacional de Trânsito (Lei nº 9.503/97), na Lei do Meio Ambiente (Lei

nº 9.605/98), dentre outras legislações.

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A incolumidade pública configura-se em um valor vinculado ao coletivo. Isto

é, não se refere a uma só pessoa, mas, sim, a uma comunidade, a uma coletividade. Trata-se,

portanto, de um interesse público, incumbindo ao Estado a sua preservação.153

A segurança pública constitui um bem jurídico previsto diretamente na

Constituição da República de 1988, em seu Prefácio e em seus artigos 5º caput (incolumidade

de todos os indivíduos) e 144 (incolumidade de toda a coletividade)154, gozando de especial

proteção, inclusive e finalisticamente pela norma penal. As armas de fogo, ante sua

nocividade, necessitam ser tuteladas pelo Estado, posto que põe em risco a incolumidade

pública.

Nesse diapasão, o Estatuto do Desarmamento tem como bem jurídico a ser

protegido a incolumidade pública. Objetiva-se a integridade física dos membros da

comunidade. Não é exigível que a conduta infracional em si atinja os indivíduos

isoladamente, posto que o bem jurídico tutelado é da coletividade.155

A opção do legislador em punir a conduta de quem possui uma arma de fogo

em sua residência revela-se perfeitamente em consonância com os valores trazidos pela nova

Carta Constitucional brasileira e, sobretudo, com o princípio da proporcionalidade sob seu

prisma que veda a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, no caso da Lei nº 10.826/03

a incolumidade pública. Desejou o legislador proteger a vida, a integridade física das pessoas

(coletivamente) tipificando tal conduta, inequivocamente potencializadora da prática de

crimes mais graves realizados com o emprego de arma de fogo.

Diferentemente do que possa parecer, o Estatuto do Desarmamento não é

contra a posse (em sentido amplo) de arma de fogo pelo “cidadão de bem”. Muito pelo

contrário. Caso o indivíduo preencha os requisitos legais156 poderá ter perfeitamente a posse

(em sentido amplo) de uma arma de fogo. A finalidade da lei nova é justamente proteger a

153 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 6. 154 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Prefácio: (...) Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...) (grifo nosso); “Artigo 5º caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...) (grifo nosso); “Artigo 144: A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos (...)” (grifo nosso). 155 JESUS, Damásio E. de, Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 11.

156 Os requisitos encontram-se previstos no artigo 5º da Lei nº 10.826/03.

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sociedade dos indivíduos que não têm aptidão e, em ultima análise, condições mínimas de ter

uma arma de fogo em suas mãos.157

Coincidentemente à Lei nº 9.437/97, a Lei nº 10.826/03 também apresenta

problemas quanto à vacatio legis de algumas de suas normas incriminadoras, em especial a de

seu artigo 12.158

4.6 A problemática referente à eficácia do artigo 12 do ED – uma interpretação sob o

critério sistemático com os artigos 30 e 32

Os artigos 30 e 32 da mencionada lei especial prevêem um prazo de 180

(cento e oitenta) dias para os possuidores de armas de fogo não registradas regularizarem-nas

ou entregá-las à Polícia Federal, sem que lhes seja imposta qualquer sanção.159

Os referidos artigos possuem vinculação direta com o artigo 12, funcionando

como impeditivos à sua eficácia. Isto porque, conforme verificado no primeiro capítulo, o

operador do Direito ao realizar a interpretação de um dispositivo legal deverá fazê-lo de

forma sistemática, e não isoladamente.

O critério sistemático de interpretação, aplicado ao Estatuto do

Desarmamento e especificamente aos seus artigos 30 e 32, consiste na análise dos dispositivos

em destaque dentro do conjunto do citado diploma legal, bem como, em uma segunda fase,

diante do ordenamento jurídico como um todo.

Assim, verifica-se que o prazo concedido aos possuidores de armas de fogo

de origem lícita, porém em situação irregular, para que procedam à sua regularização ou as

entreguem à Polícia Federal, impede que o artigo 12 tenha plena eficácia, uma vez que este

157 Em sentido contrário: THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp. 32 e 33. 158 Lei nº 10.826/03: “Artigo 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.” 159 Lei nº 10.826/03: “Artigo 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos. “Artigo 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.”

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tutela, justamente, a conduta do sujeito que possui ou tem sob sua guarda, em sua residência

ou local de trabalho, arma de fogo de uso permitido em situação irregular.160

Raciocínio contrário implicaria em negativa de aplicação dos artigos 30 e 32

do ED, posto que prevêem a implementação de uma política de desarmamento voluntário da

população.

O artigo 12 do ED agrava consideravelmente a sanção penal dos tipos

previstos no artigo 10 da Lei nº 9.437/97. Apresentar-se-ia como um contra-senso se tal

sanção mais gravosa incidisse imediatamente, quando a própria lei prevê e estimula a entrega

das armas de fogo pela população (artigos 30 e 32).

Assim, enquanto em curso o prazo previsto nos artigos 30 e 32 do ED para o

desarmamento civil as figuras típicas do artigo 12 não terão incidência.

4.7 A prorrogação do prazo dos artigos 30 e 32 do ED por Medidas Provisórias – análise

da compatibilidade constitucional

Conforme constatado, é indubitável a correlação dos artigos 30 e 32 com o

artigo 12, o qual trata da posse de arma de fogo de uso permitido em residência ou em local

de trabalho e, conseqüentemente, permaneceu em vacatio legis até o dia 23 de junho de 2004,

data esta em que expiraria tal prazo de 180 (cento e oitenta) dias para a regularização ou a

entrega voluntária das armas de fogo.

Porém, tal prazo foi estendido por Medidas Provisórias e leis correlatas que se

sucederam após o decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias da edição anterior.

Assim, primeiramente foi editada a MP nº 174 de 18/03/04, transformada

posteriormente na Lei nº 10.884 de 2004, a qual fez a primeira prorrogação suplementar de

180 (cento e oitenta) dias no prazo originário (expirando no dia 23 de dezembro de 2004). A

seguir, veio ao cenário jurídico a MP nº 229 de 18.12.2004, convertida na Lei nº 11.118 de

2005, fixando como novo prazo fatal o dia 23 de junho de 2005. Por fim, foi publicada a MP

nº 253 de 23/06/05, posteriormente traduzida na Lei nº 11.191 de 2005, a qual fixou o prazo

derradeiro no dia 23 de outubro de 2005.

160 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 23; CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 67.

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Feito o registro, impende-se analisar no presente trabalho a possibilidade, ou

não, de Medidas Provisórias tratarem de matéria penal e a natureza da matéria veiculada por

tais espécies normativas acima mencionadas.

Conforme reza de forma expressa o artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da

Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº

32 de 11/09/01), é vedada a edição de Medidas Provisórias que tratem de direito penal.

Em que pese o referido dispositivo constitucional não fazer distinção, surge

na doutrina uma divergência quanto à possibilidade de Medida Provisória tratar de matéria

penal, estritamente quando para beneficiar o agente criminoso.

Um primeiro entendimento sustenta tal possibilidade, ao fundamento que o

texto constitucional objetivava, efetivamente, impedir a edição de Medida Provisória somente

que viesse a prejudicar a situação do réu. Assim dever-se-ia fazer uma interpretação extensiva

na citada norma constitucional, eis que estar-se-ia efetivando um direito individual, qual seja a

liberdade do acusado.161

Já um segundo grupo de juristas, integrantes do posicionamento majoritário

na doutrina, entende que a vedação constitucional é integral. Não cabe a edição de Medida

Provisória que tenha por objeto matéria referente ao Direito Penal, seja para beneficiar ou

para prejudicar o réu. Fundamentam tal entendimento aduzindo que onde a Constituição não

fez distinção não cabe ao interprete fazer.162

Decerto, o posicionamento majoritário apresenta-se mais condizente com uma

interpretação constitucional sob o critério teleológico. Não resta dúvida que a intenção do

constituinte foi retirar do âmbito de incidência das Medidas Provisórias qualquer objeto que

tenha natureza penal.

Objetivou o constituinte vedar a possibilidade de uma só pessoa decidir sobre

a aplicação ou não de normas atinentes a direitos fundamentais, tanto de caráter individual,

quanto coletivo (lato sensu). Desta forma, são evitadas leis casuísticas e de caráter

personalíssimo. Na lição de Zaffaroni e Pierangeli, “o povo é o único soberano, a fonte do

161 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, p.73; STF: RExt 254.818/PR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, Data do julgamento 08/11/2000. Disponível em <www.stf.gov.br,> Acesso em 29/12 /2006. . 162 Posicionando-se desta forma: JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 26-30; TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986, p.25; MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, vol.1. Campinas: Bookseller, 1997, pp. 179-180.

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poder do Estado, e, conseqüentemente, sem a intervenção legítima de seus representantes, não

pode haver lei penal”.163

Ocorre que, após uma análise mais detida das referidas Medidas Provisórias

e, em especial, de seus objetos, verifica-se que a matéria ali veiculada tem cunho

administrativo, e não penal.

Os artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/03 ao concederem o prazo de 180 (cento e

oitenta) dias, após a publicação da Lei, para que os possuidores de armas de fogo de origem

lícita, porém em estado irregular, regularizem-nas ou as entregarem à Polícia Federal, estão

tratando, inequivocamente, de uma matéria meramente administrativa. Isto é, a regularização

ou entrega das armas de fogo é um ato de natureza administrativa, extra-penal.

Em que pese a concessão de tal prazo indiretamente implicar na não-

incidência ainda que momentânea das disposições contidas no artigo 12 do mesmo Estatuto

do Desarmamento, tal ato do Poder Público tem índole estritamente administrativa. Constitui

uma autorização da Administração Pública ao cidadão para que regularize uma situação

administrativamente irregular em que se encontra.

Da mesma forma que a definição do rol das substâncias consideradas

entorpecentes é feita por uma Portaria do Ministério da Saúde, a qual tem natureza

administrativa, a fixação do prazo para regularização/entrega das armas de fogo por um

dispositivo legal, posteriormente prorrogado por Medidas Provisórias (convertidas

ulteriormente em leis), possui idêntica natureza.

Portanto, sendo a disposição contida nos artigos 30 e 32 de natureza

administrativa, não há qualquer óbice que tal matéria seja tratada por Medidas Provisórias,

não se fazendo aqui aplicável a restrição prevista no artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da

Carta Constitucional (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32 de

11/09/01).

4.8 Da efetiva eficácia de alguns dispositivos do Estatuto do Desarmamento ante a

inexistência de Regulamento especificamente editado – análise sob a ótica da dupla face

do princípio da proporcionalidade em matéria penal

163 ZAFFARONI e PIERANGELI. Direito Penal brasileiro, Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 127.

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O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) prevê a elaboração de um

Regulamento, a fim de melhor disciplinar os aspectos técnico-administrativos constantes de

suas normas. O valor a ser pago a título de indenização ao cidadão que entregar

voluntariamente sua arma de fogo à Polícia Federal, a forma de registro dos armamentos, a

classificação das armas de fogo, munições e acessórios são matérias que seriam objeto de

regulamentação posterior.

Em 1º de julho de 2004 foi promulgado o Decreto nº 5.123, o qual

regulamentava as referidas questões técnicas da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do

Desarmamento).

Ocorre que, diante do advento ulterior do decreto regulamentador do ED, um

grupo de juristas passou a sustentar que determinados dispositivos legais só teriam incidência

após a publicação daquele. Assim, artigos como o 12, o 14 e o 16, os quais dispunham sobre a

posse, a guarda, o porte e o transporte de armas de fogo de uso permitido, restrito e proibido,

bem como sobre munições e acessórios e condutas relativas aos mesmos, só passariam a ter

incidência após o dia 02 de julho de 2004.164

Curioso observar que da mesma forma como ocorreu quando do advento da

primeira Lei de Armas (Lei nº 9.437/97), verifica-se a repetição no cenário doutrinário e

jurisprudencial da mesma controvérsia quanto à fixação do termo inicial da contagem do

prazo da vacatio legis do artigo 10, referente ao prazo para regularização das armas de fogo,

face à necessidade incondicional (ou não) de publicação de novo Regulamento sobre a

matéria, ante a previsão contida na lex nova.

Naquela oportunidade ficou assentado que o artigo 10, o qual trazia os tipos

penais da Lei nº 9.437/97, só teria o termo inicial de sua vacatio legis contado a partir da

publicação de seu decreto regulamentador, ante o disposto no artigo 5º da citada lei. Assim, o

marco seria correspondente à data da publicação do Regulamento (Dec. nº 2.222/97), qual

seja 08/05/97, entrando em vigor as novas figuras típicas daquele diploma 180 (cento e

oitenta) dias após, conforme rezava o artigo 20 da Lei de Armas.165

Na hipótese referente à regulamentação da Lei nº 9.437/97, o posicionamento

que prevaleceu encontra-se em conformidade com a interpretação sistemática das normas sob

análise, posto que o Decreto nº 92.795/86, então existente para regulamentar as contravenções

164 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 67 e 188; JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13. 165 Este foi o posicionamento adotado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 7.423, DJU de 15.06.1998, p.140; RHC nº 6.726, DJU de 24.11.1997, p. 61252) e, curiosamente, pelo Ministério da Justiça, através de comunicado divulgado na Imprensa Oficial.

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penais relativas às armas de fogo, não conferia o tratamento complexo e necessário exigido

pelo então novel diploma, o qual transformou em crime a referida conduta tipificada, àquela

oportunidade, como mera contravenção penal.

Entretanto, tal raciocínio jurídico não se aplica ao Estatuto do Desarmamento.

Diferentemente do que sustentam os integrantes do posicionamento doutrinário anteriormente

referido, na hipótese da Lei nº 10.826/03 há uma norma regulamentadora prévia (Dec. nº

2.222/97) que confere o tratamento necessário às questões técnicas existentes no novo

diploma legal, ao fazer expressa referência à classificação trazida pelo Regulamento nº 105 do

Ministério do Exército, embora tenha sido editada ainda na vigência da Lei de Armas anterior

(Lei nº 9.437/97). Tal circunstância, de maneira nenhuma, descaracteriza sua aplicabilidade

ao ED.

Ademais, o próprio Decreto nº 5.123/04, regulamentador da Lei nº 10.826/03,

em repetição ao Decreto nº 2.222/97, traz expresso em seu artigo 49 que os critérios técnicos

de classificação das armas de fogo, acessórios e munições são aqueles constantes do

mencionado Regulamento nº 105 do Ministério do Exército (Regulamento para a Fiscalização

de Produtos Controlados do Exército). E tal Regulamento encontra-se em pleno vigor, não

tendo sido revogado pelo ED.166

O fundamento suscitado pela citada corrente doutrinária, segundo o qual com

a revogação expressa da Lei nº 9.437/97 pela Lei nº 10.826/03 o Dec. nº 2.222/97 estaria

automaticamente também com sua validade finda, uma vez que o acessório segue o principal,

encontra-se em completo desacordo com o princípio da proporcionalidade.

Isto porque, conforme constatado no segundo capítulo da presente

dissertação, o mencionado princípio possui um duplo viés quando aplicado ao Direito Penal.

Ao mesmo tempo em que deve-se vedar o excesso na punição ao agente transgressor da

norma penal, proíbe-se a proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado, ora atingido por

aquela conduta infracional.

Se há uma norma regulamentadora que confere tratamento satisfatório às

disposições contidas na nova lei, as quais, frise-se por oportuno, no aspecto técnico-

administrativo não conferem mudanças significativas ao contido na legislação anterior e, em

especial, aos tipos incriminadores, condicionar a não-aplicação dos dispositivos que trazem as

condutas criminais à exigência despropositada da edição de um regulamento prévio constitui

166 Neste sentido, BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – armas de uso permitido e restrito e outras considerações. Disponível em <www.amperj.org.br> Acesso em 10/04/2007.

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um raciocínio em plena divergência com o viés positivo do princípio da proporcionalidade em

matéria penal.

Em se admitindo tal lógica exclusivamente pautada no garantismo sob seu

enfoque negativo estar-se-ia conferindo proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado pela

norma penal, qual seja a incolumidade pública. Privilegiar-se-ia um entendimento puramente

formalista em detrimento de uma concepção substancial das normas enfocadas.

Ademais, caso fosse adotado tal posicionamento essencialmente de cunho

formalista o mesmo não se sustentaria à análise das disposições do próprio Decreto nº

5.123/2004, pois seus artigos 76 e 77 rezam que o referido regulamento só entrará em vigor

na data de sua publicação, bem como que somente em tal momento o Decreto nº 2.222/97

estará, então, revogado, configurando uma contradição fundamental na própria essência de

todo o embasamento desta corrente doutrinária.

Portanto, ante as razões esposadas, em perfeita observância do princípio da

proporcionalidade por sua dupla dimensão, apresenta-se inteiramente legítima a utilização do

Dec. nº 2.222/97 (e conseqüentemente do Regulamento nº 105 do Ministério do Exército) às

normas da Lei nº 10.826/03, enquanto não restar expressamente revogado por regulamento

ulterior. Os tipos incriminadores previstos no ED terão imediata eficácia, com exceção do

artigo 12, ante o disposto nos artigos 30 e 32, os quais terão o início da contagem de seu prazo

na data da publicação do referido diploma em que se encontram inseridos.

Desta forma, não haverá excesso na punição ao agente infrator, bem como o

bem jurídico tutelado (in casu a incolumidade pública) restará suficientemente protegido.

4.9 Da inexistência de abolitio criminis temporalis em relação às condutas previstas no

artigo 12 do ED durante o prazo concedido pelos artigos 30 e 32 (e suas prorrogações)

para a regularização/entrega das armas de fogo nas condições ali previstas – uma

ponderação entre os interesses em conflito, sob a égide do princípio da

proporcionalidade.

Conforme analisado anteriormente, durante o prazo fixado pelos artigos 30 e

32 do ED (e suas prorrogações) para a regularização ou entrega das armas de fogo de origem

lícita que estejam em situação irregular a norma penal prevista no artigo 12 da referida lei

estaria com sua eficácia suspensa.

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101

Diante de tal assertiva surge uma questão de extrema relevância a ser

respondida pelos operadores do Direito: durante tal período, como serão classificadas as

condutas praticadas com armas de fogo, munições e acessórios que encontrem tipificação no

artigo 12 do ED? Qual fenômeno terá se produzido? Houve uma anistia legal? Uma abolitio

criminis temporalis? Ou as condutas continuam típicas?

Tais questionamentos serão respondidos a seguir, após uma detida análise das

circunstâncias que envolvem o caso em tela, as quais reclamam uma verificação completa dos

direitos em conflito, valendo-se da técnica da ponderação para harmonizá-los

constitucionalmente.

4.9.1 Da impossibilidade de aplicação dos critérios tradicionais de solução de antinomias entre

normas infraconstitucionais que revelem conflitos entre direitos elencados na Constituição –

da incidência da técnica da ponderação para solucionar a colisão entre direitos

constitucionalmente previstos

O caso objeto do presente estudo comporta um conflito de natureza

constitucional, e não meramente legal. Isto porque, para que se obtenha uma resposta

juridicamente correta e, conseqüentemente, justa na problemática envolvendo qual tratamento

legal será conferido às condutas com armas de fogo praticadas durante o período em que o

artigo 12 do ED encontrava-se com sua eficácia suspensa pelos artigos 30 e 32 do ED é

necessário que sejam ponderados dois direitos em conflito: o direito individual de liberdade x

o direito da coletividade à segurança pública.

Tais direitos são de natureza diretamente constitucional, posto que encontram

previsão e tratamento expressos na Constituição da República, nos artigos 5º caput e artigo

144.

Em outras palavras, a problemática envolvendo a aplicação, ou não, do artigo

12 do ED (e suas questões adjacentes) revela um foco de tensão entre dois direitos

constitucionais. De um lado temos o direito do agente infrator em não ser punido de forma

mais severa e de outro o direito da coletividade em não ficar desprotegida ante a prática de

uma conduta criminosa de relevante gravidade.

Independentemente do enfoque a ser abordado nas próximas linhas envolver,

inclusive, a análise de normas legais, a questão principal a ser dirimida encontra sua pedra de

toque no conflito que se forma entre dois direitos que encontram sua sede no texto

constitucional.

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Assim, demonstra-se inviável a aplicação dos critérios tradicionais de solução

de antinomias entre normas infraconstitucionais167 ao caso objeto do presente estudo.

A solução do referido conflito só será possível através da aplicação da técnica

da ponderação, posto que tratam-se de direitos de índole constitucional, não podendo negar-se

eficácia a um em favor da aplicação integral do outro. Em tal hipótese, deve-se buscar a

harmonização entre os mesmos, de forma que a solução a ser utilizada preserve a essência de

ambos, ante a opção que se apresente mais adequada, necessária e proporcional à solução do

conflito em estudo. Assim, ao realizar a ponderação, será necessária a utilização do princípio

da proporcionalidade.

Na seara constitucional penal o princípio da proporcionalidade possui um duplo

viés: proíbe o excesso na punição estatal ao agente, mas, também, veda a proteção insuficiente

ao bem jurídico tutelado, ora violado, e, em última análise, à própria sociedade.

Assim, seja prevalecendo a solução que privilegie o direito à liberdade do

indivíduo infrator, seja a que priorize o direito da coletividade à segurança pública, a opção

eleita deverá ter observado, necessariamente, o princípio da proporcionalidade na dupla

dimensão que lhe é conferida no Direito Penal contemporâneo.

4.9.2 Da aplicação da técnica da ponderação à problemática decorrente da não-eficácia do

artigo 12 do ED durante o prazo híbrido concedido pelos artigos 30 e 32 – a necessidade da

observância do princípio da proporcionalidade por seu duplo viés

Quid iuris as condutas praticadas com armas de fogo previstas no referido

artigo 12 seriam absolutamente atípicas durante o referido período concessivo dos artigos 30 e

32 do ED?

A presente indagação constitui o motivo de maior divergência e, conseqüente,

debate entre os doutrinadores, com reflexo na jurisprudência, acerca das normas do Estatuto

do Desarmamento. Entretanto, conforme será demonstrado a seguir, verifica-se que o

princípio da proporcionalidade não restou analisado em sua integralidade pelos

posicionamentos jurídicos firmados sobre o tema.

167 Critérios hierárquico, cronológico e da especialidade.

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Um primeiro posicionamento, minoritário na doutrina, sustenta que o artigo

12 do ED encontra-se vigente desde sua publicação, uma vez que os artigos 30 e 32 do

mesmo diploma não teriam incidência sobre aquele. Conseqüentemente, todas as condutas

previstas no citado artigo apresentam-se com sua tipicidade íntegra.168

O referido entendimento, data venia, não encontra-se em conformidade com

as técnicas da interpretação contemporânea, posto que, conforme já analisado no presente

estudo, a interpretação das citadas normas sob os critérios sistemático e teleológico torna

evidente a relação de interdependência entre as mesmas. E assim, o artigo 12 só terá eficácia

após o decurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32.169

Uma segunda corrente doutrinária defende que as condutas previstas no artigo

12 tornaram-se típicas somente após o termino do prazo para regularização/entrega das armas

de fogo originalmente previsto nos artigos 30 e 32, com a edição do Decreto Regulamentador

da lex nova. Isto porque, as reiteradas prorrogações do referido prazo apresentam-se

inconstitucionais e, conseqüentemente, inválidas, vez que foram fruto de Medidas Provisórias

que versaram sobre matéria penal, o que é expressamente vedado pelo artigo 62, §1º, inciso I,

alínea ‘b’, da Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada ao citado

dispositivo pela Emenda Constitucional nº 32 de 11/09/01). Desta forma, durante o transcurso

do prazo originário dos artigos 30 e 32 e enquanto não editado o Decreto Regulamentador

(Dec. nº 5.123/04) as referidas condutas elencadas no artigo 12 restariam atípicas, tendo se

operado uma “anistia temporária”.170

Já um terceiro entendimento sustenta a atipicidade das condutas normatizadas

no artigo 12 enquanto em vigor o prazo concessivo dos artigos 30 e 32 e suas posteriores

prorrogações, sob o fundamento que em que pesem tais prorrogações terem sido levadas a

cabo por Medidas Provisórias, a vedação contida no artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da

Constituição da República de 1988 (conforme Emenda Constitucional nº 32 de 11/09/01) 168 BRUNO, Túlio Caiban. Os artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento não impedem a pronta incrminacao da conduta de possuir ou manter sob guarda arma de fogo no interior de residência, embora concedam prazo para seu registro ou entrega. No encontro de leis no tempo, estes dispositivos não se constituem em norma penal benéfica. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. nº 22 (julho/dezembro de 2005). Rio de Janeiro. 2006, pp. 427-431. 169 Para melhor análise da fundamentação apresentada deverá ser verificado o tópico “A problemática referente à eficácia do artigo 12 do ED – interpretação sob o critério sistemático com os artigos 30 e 32 do citado diploma” do presente capítulo. 170 Posicionando-se desta forma: JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 29-31; BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu artigo 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), Boletim do IBCCrim, nº 137. São Paulo, abril de 2004, p. 12 e A medida provisória nº 229/04 e o Estatuto do Desarmamento – retomando a questão da eficácia de seus artigos 12 e 14 (posse irregular de arma de fogo), Boletim do IBCCrim, nº 147. São Paulo, fevereiro de 2005, pp. 9-10; GOMES, Luiz Flávio; Artigo sobre o tema disponível em <www.netflash.com.br/justicavirtual/artigos> Acesso em 29/11/2006.

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restringe-se a previsões que prejudiquem o réu. Caso o objeto da MP tenha por finalidade

beneficiar o acusado não encontrará qualquer óbice no citado dispositivo constitucional. Para

tal grupo de juristas, torna-se necessária uma interpretação extensiva da referida norma

constitucional, eis que tutela a defesa do direito de liberdade do acusado. Neste sentido,

durante tal período concessivo efetivou-se uma “atipicidade temporária” das condutas

descritas no artigo 12.171

Ambos os posicionamentos, embora embasados em um dispositivo

constitucional, não demonstram uma análise mais aprofundada da natureza das Medidas

Provisórias citadas. Em conformidade com o anteriormente esposado, os mencionados

modelos legislativos, ao tratarem da prorrogação do prazo para regularização/entrega das

armas de fogo pela população, têm por objeto matéria de natureza estritamente administrativa,

não-penal. Portanto, não haveria qualquer restrição constitucional para que tal prazo fosse

prorrogado por Medida Provisória.172

Superada a questão referente às prorrogações de prazo veiculadas pelas

Medidas Provisórias, apresenta-se uma quarta corrente na doutrina sustentando que durante o

prazo permissivo dos artigos 30 e 32 e suas respectivas prorrogações as condutas descritas no

artigo 12 encontrar-se-iam atípicas, vez que operou-se uma abolitio criminis temporalis. Em

outras palavras, os fatos praticados durante esse período não seriam dotados de tipicidade, eis

que deixaram de ser considerados crime.

Frise-se que, segundo tal entendimento, as condutas praticadas anteriormente

à promulgação do ED, isto é, aquelas que encontravam previsão no artigo 10 da Lei nº

9.437/97, permaneceriam típicas e, conseqüentemente, puníveis. Não se operou a abolitio

criminis propriamente dita. Na verdade, o legislador, através dos artigos 30 e 32, concedeu

um período de “atipicidade temporária” às ações praticadas com armas de fogo que encontram

171 Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento, 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 67-68, 73, 75-76, 188-189. 172 Para melhor análise da fundamentação apresentada deverá ser verificado o tópico “A prorrogação do prazo dos artigos 30 e 32 da Lei nº 10.826/03 por Medidas Provisórias – análise da compatibilidade constitucional” do presente capítulo.

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expressa tipificação no artigo 12. Tal posicionamento prevaleceu na doutrina173, sendo

abarcado pela jurisprudência pátria, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça.174

Da análise dos fundamentos apresentados pelo referido entendimento

predominante na doutrina e na jurisprudência verifica-se não ter o mesmo observado o

princípio da proporcionalidade.

Inicialmente, esta esdrúxula figura denominada “abolitio criminis temporalis”

configura-se numa tentativa, sem sombra de dúvidas criativa, de se compatibilizar dois

institutos absolutamente diversos, supostamente veiculados nos dispositivos sob estudo. De

um lado a tradicional abolitio criminis e de outro uma norma com vigência temporária.

Com a devida vênia, tal posicionamento não se sustenta ante os basilares

pressupostos formadores do Direito Penal. Ora, não há a mínima razoabilidade em se

sustentar que a conduta de possuir arma de fogo será atípica justamente quando passou a

receber maior sanção pelo legislador enquanto que sua prática sob a égide da lei (anterior)

menos grave permanecerá típica. Para que tal entendimento apresente-se juridicamente

razoável, ou operou-se a abolitio criminis de forma integral e, assim, com maior razão as

condutas praticadas na vigência da lei anterior menos gravosa também terão a extinção

superveniente de sua punibilidade (nos termos do artigo 107, inciso III, do Código Penal)175,

ou, então, não há que se falar no citado instituto.

Ultrapassada a contradição existente na própria essência do mencionado

entendimento majoritário, verifica-se que o mesmo observou somente a face negativa do

principio da proporcionalidade. Em se adotando tal posicionamento, o bem jurídico objeto

inequívoco do mencionado novel diploma legal restará protegido de forma insuficiente.

Isto porque, para que se obtenha uma correta resposta ao conflito em tela não

se pode perder de vista a real intenção do legislador ao criar o denominado Estatuto do

Desarmamento. Desta forma, a interpretação dos dispositivos deverá ser feita em estrita

congruência com o critério teleológico.

173 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento, 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 29-31; BASTOS, Marcelo Lessa. Estatuto do Desarmamento – não incidência, por ora, de seu artigo 12 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), Boletim do IBCCrim, nº 137. São Paulo, abril de 2004, p. 12 e A medida provisória nº 229/04 e o Estatuto do Desarmamento – retomando a questão da eficácia de seus artigos 12 e 14 (posse irregular de arma de fogo), Boletim do IBCCrim, nº 147. São Paulo, fevereiro de 2005, pp. 9-10; GOMES, Luiz Flávio; Referendo do Desarmamento: Acertos e Aberrações. Artigo disponível em <www.juristas.com.br> Acesso em 29/11/2006. 174 STJ: HC 39787/DF, HABEAS CORPUS 2004/0166747-8, Relator Ministro Felix Fisher, Quinta Turma, Data do julgamento 07/04/2005. Disponível em <www.stj.gov.br,> Acesso em 10/12/2006. 175 Neste sentido: THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, pp. 43 e 50.

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Resta evidente e indiscutível o objetivo do legislador na citada lex nova

quando agrava a conduta dos crimes envolvendo armas de fogo, reforçando o quantum da

pena e incluindo diversos outros objetos e ações subjacentes (como munição, acessórios,

supressão específica, etc.). Ademais, previu expressamente a destruição das armas de fogo,

acessórios e munições apreendidas, sendo vedada a cessão para qualquer pessoa ou

instituição, mesmo que pertencente à segurança pública.176 177

Neste sentido, observa-se que os dispositivos não podem ser interpretados de

forma isolada e estritamente gramatical, posto que se inserem em um sistema de normas, o

qual tem uma lógica encadeada de funcionamento.

Em outras palavras, as normas devem ser interpretadas sistemática e

teleológicamente, i. e., através de uma análise conjunta dos dispositivos, buscando-se a real

intenção do legislador ao estabelecer aquela regra de conduta.

A Lei nº 10.826/03 tem por finalidades precípuas a diminuição da violência e,

conseqüentemente, da prática de crimes envolvendo armas de fogo, através do desarmamento

da população e do agravamento das sanções e tipificação de novas condutas que envolvam

armas de fogo, acessórios e munições. Não por outro motivo denominou-se Estatuto do

Desarmamento.

Portanto, apresenta-se absolutamente desarrazoado sustentar a extinção da

punibilidade, seja temporária ou definitiva, das condutas com armas de fogo de uso permitido,

tipificadas no artigo 12 do ED, praticadas durante o prazo referido nos artigos 30 e 32 da

citada lei, com suas respectivas prorrogações. Ora, se a finalidade do legislador foi justamente

desarmar a população, combatendo os crimes dessa espécie, não há como se defender a

atipicidade de tal conduta justamente quando em vigor a lei produto de tal opção legislativa.

O Ministro Joaquim Barbosa, relator do RHC 86.723/GO, asseverou no Pleno

do STF que seria paradoxal que uma lei que vise à contenção da criminalidade autorizasse,

176 Lei nº 10.826/03: “Artigo 25: Armas de fogo, acessórios ou munições apreendidos serão, após elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, encaminhados pelo juiz competente, quando não mais interessarem à persecução penal, ao Comando do Exército, para destruição, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas. Parágrafo único. As armas de fogo apreendidas ou encontradas e que não constituam prova em inquérito policial ou criminal deverão ser encaminhadas, no mesmo prazo, sob pena de responsabilidade, pela autoridade competente para destruição, vedada a cessão para qualquer pessoa ou instituição.”

177 A Lei nº 9.437/97 não previa a destruição das armas de fogo apreendidas. Em tal diploma, somente seriam encaminhadas ao Ministério do Exército aquelas encontradas sem registro ou sem autorização (conforme rezavam o artigo 14 da citada lei e o artigo 44 do Decreto nº 2.222/97).

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ainda que implicitamente, o porte de arma de fogo por determinado prazo, situação esta que

contribuiria para a potencialização do cometimento de crimes.178

Em outras palavras, como permitir que a população possa permanecer armada

se o objetivo é exatamente desarmá-la?

Evidentemente, se a finalidade é melhorar uma situação crítica não será

agravando-a ainda mais que se alcançará o resultado pretendido. Nesse diapasão, constitui o

óbvio ululante que para retirar as armas das mãos dos cidadãos não poderia uma lei estimular

que os mesmos permaneçam armados, concedendo-lhes como prêmio a atipicidade de tal

conduta.

Assim, não se configura razoável que as condutas descritas no artigo 12 da

Lei nº 10.826/03 sejam consideradas atípicas justamente quando surge no cenário jurídico a

lei que visa o desarmamento civil.

Cumpre ressaltar, desde já, que, evidentemente, as condutas descritas no

citado artigo 12 do ED que sejam fruto de tipificação originária no citado diploma, sem

anterior previsão pelo ordenamento jurídico, especificamente às ações referentes a “possuir ou

manter sob sua guarda acessório ou munição de uso permitido”, permaneceram em vacatio

legis durante o decurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32 (com suas prorrogações). Tal

conclusão se justifica pois, conforme já verificado, o artigo 12 não terá incidência enquanto

em vigor o mencionado período concessivo para regularização/entrega das armas de fogo de

origem lícita. Os “acessórios” e as “munições” só foram devidamente identificados e

classificados pelo Dec. nº 5.123/04, o qual regulamentou a Lei nº 10.826/03, posto que não

encontravam previsão na Lei de Armas anterior (Lei nº 9.437/97).

Frise-se, por oportuno, que a atipicidade absoluta das condutas de “possuir ou

manter sob sua guarda acessório ou munição de uso permitido” previstas no artigo 12 do ED

durante o referido prazo dos artigos 30 e 32 do ED só se justifica pelo fato das mesmas não

encontrarem tipificação prévia no ordenamento jurídico; situação diversa da que se verifica

com as armas de fogo de uso permitido, conforme analisado a seguir.

As figuras típicas de possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo de uso

permitido no interior de sua residência, ou dependência desta, ou em local de trabalho,

descritas no artigo 12 da Lei nº 10.826/03 já possuíam previsão legal no artigo 10 caput da

Lei nº 9.437/97. Portanto, com a entrada em vigor do artigo 12 do ED, o artigo 10 da lex

178 STF: RHC 86.723/GO, relator Min. Joaquim Barbosa, 06.12.2005. No mesmo sentido o julgamento pelo STF do RHC 86.681/DF, Relator Min. Eros Grau, 06.12.2005. Disponível em <www.stf.gov.br>. Acesso em 10.12.2006.

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anterior estaria revogado. Neste sentido, o artigo 36 do novel diploma legal revoga a Lei nº

9.437/97.179

Entretanto, conforme já esposado, o artigo 12 do ED teve sua vacatio legis

ampliada, só tendo eficácia após o transcurso do prazo previsto nos artigos 30 e 32, isto é, no

dia 23 de outubro de 2005, e não em 23 de dezembro de 2003 como o restante do ED. Sendo

assim, verifica-se um lapso temporal compreendido entre 23/12/03 e 23/10/05 onde embora o

ED estivesse em vigor, seu artigo 12 ainda não encontrava incidência.

Fixados tais pressupostos, como permaneceriam as condutas com armas de

fogo de uso permitido descritas no artigo 12 do ED durante o referido período?

A questão em tela, conforme já mencionado, envolve um conflito entre dois

direitos constitucionais, quais sejam o direito de liberdade do agente infrator e o direito da

coletividade à manutenção de sua segurança. Em se tratando de colisão entre direitos de

índole constitucional, inexistente norma específica para solucioná-lo, faz-se necessária a

utilização da técnica da ponderação.

No manuseio da ponderação em matéria penal, o intérprete terá como

instrumento fundamental para a obtenção da solução que melhor harmonize os interesses em

divergência o princípio da proporcionalidade. Tal princípio quando aplicado ao Direito Penal

possui uma dupla face: veda o excesso na punição ao agente infrator, ao mesmo tempo que

proíbe a proteção deficiente do bem jurídico tutelado pela norma, conforme previsão

constitucional.

Aplicando a técnica da ponderação ao caso em tela, o excesso punitivo estaria

refletido na aplicação integral do artigo 12 do ED aos agentes que praticassem as referidas

condutas ali tipificadas durante o período de eficácia dos artigos 30 e 32 do citado diploma

legal (com suas respectivas ampliações) e, conseqüentemente, de vacatio legis do artigo 12.

Por outro lado, a proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, in casu a

incolumidade pública e, por conseguinte, da coletividade, ocorreria na hipótese da referida

conduta praticada no citado período fosse classificada como atípica, ante a ocorrência do

esdrúxulo fenômeno da abolitio criminis temporalis da figura típica prevista no artigo 12 do

ED.

A aplicação da técnica da ponderação ao caso em tela, ante os bens jurídicos

constitucionais em conflito, utilizando-se o principio da proporcionalidade em sua dupla face,

implica na necessidade da obtenção de uma solução equilibrada.

179 Lei nº 10.826/03: “Artigo 36: É revogada a Lei no 9.437, de 20 de fevereiro de 1997”.

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Neste diapasão, impõe-se realizar uma interpretação teleológica do artigo 36 do

ED; isto é, buscar a real mens legis quando este se refere à revogação da norma anterior.

Assim, em se considerando que a Lei nº 9.437/97 restaria revogada pela entrada em vigor da

Lei nº 10.826/03, posto que haveria uma duplicidade de normas tratando do mesmo assunto,

uma vez permanecendo em vacatio legis o artigo 12 do ED, o artigo 10 da Lei nº 9.437/97,

conseqüentemente, não estaria expressamente revogado.

Em não havendo duplicidade de tratamento legal para a mesma conduta,

permaneceria em vigor a cominação legal específica do artigo 10 da Lei de Armas, visto que

grande parte das condutas típicas descritas no artigo 12 do ED tem sua origem no artigo 10 da

Lei nº 9.437/97, ante a inequívoca mens legis do novo diploma. Sob a ótica do princípio da

proporcionalidade, a referida solução apresenta-se mais adequada, compatível e proporcional

(em sentido estrito), configurando-se como a perfeita harmonização entre os bens em conflito.

Assim, a aplicação do artigo 10 da Lei nº 9.437/97 àquelas condutas praticadas

durante o interstício mencionado do artigo 12 do ED, apresenta-se como a solução ponderada

e, conseqüentemente, proporcional à problemática em tela, posto que, desta forma, não haverá

excesso na punição ao agente infrator, nem proteção insuficiente do bem jurídico tutelado, in

casu a incolumidade pública.

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CONCLUSÃO

O novo constitucionalismo imprimiu ao Estado Democrático de Direito uma

série de modificações que se mostravam necessárias à sua modernização e à efetivação dos

direitos fundamentais. A complexidade das relações sociais atingidas com a evolução já não

mais se coadunava com o modelo fechado e restritivo, que remontava o período liberal.

Tornou-se indispensável repensar-se numa dogmática que oferecesse

sustentação teórica para a concretização das normas constitucionais, as quais, uma vez

ampliadas e aprofundadas em seus conteúdos, já não mais conviviam com os métodos

clássicos de interpretação constitucional.

A proposta que procura destituir a Lei Maior de sua dimensão política e

axiológica, para reservar-lhe um papel puramente procedimental, não apresenta-se compatível

com as conquistas do processo civilizatório. O ideal democrático realiza-se não apenas pelo

princípio majoritário, mas também pelo compromisso na efetivação dos direitos

fundamentais, que também pode ser obtida pela decisão justa.

Através da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, compreende-se que

os mesmos possuem eficácia irradiante, ou seja, informam o ordenamento jurídico do qual

fazem parte para orientar tanto a produção quanto a aplicação do direito. Também a partir do

corte objetivo, os direitos fundamentais têm a proteção do Estado não só contra os atos do

Poder Público, mas também contra lesões ou ameaças por parte de terceiros.

Visando, portanto, dar concretude a esses proclamados direitos fundamentais,

desenvolveu-se uma nova interpretação constitucional, de índole construtivista, baseada em

métodos e princípios de interpretação focados na abstração e abertura das normas

constitucionais à moralidade e à política. Todos eles convergindo para a necessária

convivência da norma com o caso concreto, como realidades indissociáveis.

Essas novas pautas de interpretação traduzem-se numa proposta de

harmonização e convivência de direitos, que possuem o mesmo quilate e que não podem

jamais ocupar lugar de preponderância. Devem ser compatibilizados e, em caso de conflito, a

regra a ser utilizada é a da ponderação.

A ponderação consiste numa regra de decisão, aplicada em casos onde há

conflitos envolvendo direitos fundamentais. A técnica procede à interpretação das normas

constitucionais segundo os cânones modernos.

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O operador do Direito, ao se debruçar sobre uma situação fática que implique

aparente colisão entre normas integrantes da Constituição da República, deverá, inicialmente,

identificar os direitos constitucionais em conflito. Prosseguindo, buscará encontrar as normas

aplicáveis à espécie. Uma vez relacionadas as normas com a situação fática, passar-se-á,

efetivamente, à ponderação, que consiste em sopesar os valores em jogo, compatibilizando-os,

de forma que possam conviver harmoniosamente.

Na ponderação, os direitos fundamentais coexistem, mas sofrem pequenas

restrições para serem aplicados à situação fática. Apesar de possuir riscos, por aumentar o

subjetivismo das decisões, ela aproxima a justiça do direito, pois não se subsume ao conteúdo

da lei, comportando uma análise mais ampla, mais criativa do direito.

Não por outro motivo, se insere no atual discurso constitucional, pois,

juntamente com as modernas regras e princípios constitucionais, utiliza-se de conhecimentos

circundantes, advindos de outros campos, mas indispensáveis à uma interpretação mais justa e

correta.

Apesar dos benefícios trazidos pelas propostas modernas de interpretação e

pela própria ponderação, impõe-se-lhes a crítica, de ordem geral, de que todas elas acabam

por mitigar a normatividade da Constituição, aumentando a discricionariedade judicial. São os

riscos, que, entretanto, podem ser suavizados quando procedidos da necessária fundamentação

jurídica, indispensável a toda e qualquer decisão judicial, por lhe conferir legitimidade.

Em que pese a freqüência com que se verifica o choque entre direitos

fundamentais, a jurisdição constitucional brasileira ainda demonstra pouco avanço no que

concerne aos métodos e técnicas aplicáveis, fato que pode ser constatado pelas decisões

proferidas em sede de colisão entre direitos dessa natureza.

A implementação da ponderação implica na utilização de mecanismos próprio.

Neste sentido, o princípio da proporcionalidade apresenta-se como o principal instrumento na

consecução da mencionada técnica.

O princípio da proporcionalidade tem como finalidade a preservação dos

direitos fundamentais, sejam de natureza individual, quanto coletiva (lato sensu). E sendo

certo que os referidos direitos possuem papel essencial na afirmação do Estado Democrático

de Direito como organização voltada à defesa e efetivação daqueles, o princípio da

proporcionalidade revela sua importância na concretização desse modelo estatal

contemporâneo.

Em que pese o mencionado princípio não gozar de previsão literal no texto

constitucional brasileiro, sua existência é reconhecida inequivocamente, eis que decorre

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diretamente da cláusula do Estado Democrático de Direito, expressamente adotada pela

Constituição da República de 1988, em seu artigo 1º.

Frise-se que o princípio da proporcionalidade será fundamental na obtenção do

equilíbrio necessário que deverá haver dentro da organização estatal e, sobretudo, na própria

sociedade, razão de ser do Estado. Isto porque, conforme verificado, comumente surgirão

focos de tensão entre direitos fundamentais, os quais precisarão ser dirimidos através da

ponderação.

O princípio da proporcionalidade funciona, outrossim, como instrumento de

proteção dos direitos fundamentais. Através dele far-se-á o balanceamento necessário entre

valores essenciais à coletividade como justiça, igualdade, liberdade, dignidade da pessoa

humana e segurança, previstos expressamente na Constituição.

Este propalado equilíbrio advém da própria pacificação que deve haver na

sociedade e, conseqüentemente, no Estado. Equilibrados os valores tidos como essenciais pelo

conjunto social, o país estará apto a trilhar o caminho de seu desenvolvimento.

O referido princípio ao ser utilizado na seara penal, diante da ordem

constitucional vigente, deverá ser observado em sua dupla dimensão: proíbe o excesso de

punição ao agente infrator e, simultaneamente, veda a proteção insuficiente dos bem jurídico

tutelado.

Ao Estado não é lícito aplicar sanção ao agente transgressor da norma penal de

forma excessiva, devendo ser, estritamente, justa e proporcional à conduta praticada. No

mesmo sentido, não lhe é permitido conferir ao bem jurídico violado proteção em nível

insuficiente, posto que necessita de um especial tratamento estatal ante a essencialidade do

valor que traduz.

Em não se observando tal equação, inequivocamente quebrar-se-á o essencial

equilíbrio que deve existir dentro da organização social e, por via de conseqüência, dentro do

próprio Estado.

Assim, se o legislador excedeu na punição ou não conferiu proteção em nível

suficiente ao bem jurídico tutelado, conforme lhe era exigido pela Carta Constitucional, tal

excesso/omissão ensejará a inconstitucionalidade da opção política adotada.

Em um Estado Democrático de Direito, sob a ótica do neoconstitucionalismo,

compete ao Direito Penal focar suas normas no combate à prática das infrações que violam os

direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana, bem como as que

inviabilizam a efetivação dos propósitos a serem cumpridos pelo poder estatal e

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expressamente esposados na Lei Maior. Assim, o Direito Penal passa a ser interpretado à luz

da Constituição, criando-se um verdadeiro ‘Direito Penal Constitucional’.

Desta forma, sob o novo enfoque dado ao Direito Penal, o Estado deixa de

ocupar a posição de oposição com a Sociedade e com o Indivíduo, passando a ser entendido

como o responsável pela defesa e, conseqüente, efetivação dos direitos a esses inerentes.

Partindo-se dessa premissa, afirma-se a constitucionalidade da extensão da

função de proteção penal a bens jurídicos de interesse da coletividade (interesses

transindividuais). Supera-se, deste modo, o entendimento - que não mais se justifica - no

sentido de que o Direito Penal ao exercer a tutela dos denominados bens de natureza

transindividual estaria deslocando-se de sua posição de ultima ratio, passando a ter incidência

de forma antecipada e não justificada.

Uma visão constitucionalista do Direito consiste, justamente, em entender a

Constituição como o próprio fundamento daquele. Assim, de um lado ter-se-á situações em

que a criminalização de determinadas condutas se apresentará constitucionalmente adequada,

e de outro hipóteses em que se deverá analisar até que ponto a despenalização seria

constitucionalmente legítima.

Colecionando todos os pensamentos esposados, verifica-se de forma clara na

Constituição do Brasil de 1988 um duplo objetivo a ser alcançado na proteção dos direitos

humanos-fundamentais pelo Estado: deve-se defendê-los de excessos na punição e, da mesma

forma, de omissões na penalização àqueles que os violarem.

Tal orientação é diretamente dirigida ao legislador infra-constitucional, o qual,

ao exercer sua função precípua, deverá manter o equilíbrio essencial entre os dois prismas da

tutela penal acima mencionados. Se assim não o fizer, restará não observado o duplo viés do

princípio da proporcionalidade em matéria penal.

Em outras palavras, só terão validade os dispositivos penais se o objetivo a ser

alcançado for, sempre, o da proteção integral dos direitos. Na hipótese de somente os direitos

do criminoso serem observados, sendo deixados de lado os referentes à preservação do bem

jurídico atingido, bem como os da efetiva proteção da coletividade, e vice-versa, o princípio

da proporcionalidade não terá sido devidamente respeitado. E assim, aquela norma

“desequilibrada” tornar-se-á um risco à integridade do sistema jurídico-penal, devendo ser

declarada inconstitucional.

A liberdade que o legislador possui no exercício de sua atividade precípua não

restará suprimido; porém, a Constituição funcionará como limite às suas práticas

penalizadoras (viés negativo) e despenalizadoras (viés positivo), atendendo-se ao equilíbrio

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que deve existir nas normas penais, em observância à exegese do princípio da

proporcionalidade.

Em outro diapasão, uma norma de natureza penal restará ilegítima sob o

prisma constitucional quando criminalizar/penalizar condutas que não necessitem da tutela

penal e/ou quando descriminalizar/despenalizar situações fáticas que reclamem tal tratamento

ante disposição constante do texto constitucional.

O controle da constitucionalidade do atuar do legislador incumbe à jurisdição

constitucional. E como é cediço, o julgador sempre baseará sua busca na obtenção de uma

solução que atinja o ideal máximo e norteador de toda a ciência jurídica: a realização efetiva

da justiça. Para que tal desiderato seja alcançado é necessário que a decisão tomada esteja

devidamente fundamentada. Somente a justificação racional tornará legítima a opção eleita.

Tal legitimidade deverá ser entendida como o viés social da efetivação da democracia.

Frise-se que existindo um bem jurídico dotado de inequívoca relevância social

estará o legislador penal apto a deferir-lhe proteção, mesmo que não encontre expressa

previsão na ordem constitucional. Fundamenta-se tal possibilidade na própria história da

civilização moderna, onde por diversas vezes bens extremamente caros ao corpo social foram

violados pelo simples fato de, por não possuírem prévia tutela constitucional, encontrarem-se

excluídos do campo de abrangência dos valores aptos a receberem proteção pelo legislador.

O desenvolvimento dos direitos fundamentais, de simplesmente individuais

para coletivos (lato sensu), não foi acompanhado pelo Direito Penal. As escolas doutrinárias

que pautaram a ciência jurídico-penal moderna não reconheceram a importância desses

valores transindividuais que sedimentavam-se dentro da sociedade. Desta forma, a norma

penal insistia em restringir-se à tutela exclusiva dos bens jurídicos de cunho individual.

Atento a tal circunstância, o constituinte trouxe para o texto constitucional o

reconhecimento de tais valores, conferindo-lhes especial proteção. Conseqüentemente, impõe-

se ao legislador a obrigação de auferir a tais valores a devida proteção, inclusive com normas

penais, em consonância com a orientação da Lei Maior.

Portanto, o bem jurídico penal, que no passado se limitava a valores de caráter

individual, hodiernamente passou a abranger, também, os de natureza coletiva

(transindividual). Assim, houve uma ampliação na dimensão do conceito de bem jurídico

penal, comportando os valores de índole individual e meta-individual.

O desenvolvimento da cultura armamentista no Brasil, conforme se verificou,

coincide com a evolução sócio-econômica experimentada no país no decorrer de sua história.

Fundamentadas na simples defesa dos módulos de produção e de seus proprietários, as armas

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de fogo enraizaram-se nos hábitos da população civil, a qual passou a se armar como forma de

proteção pessoal.

O acúmulo de armas de fogo nas mãos dos cidadãos gerou a necessidade de

uma disciplina legal por parte do Estado. Assim, o Código Criminal do Império de 1830, a Lei

de 26.10.1831, o Código Penal de 1890 e a Consolidação das Leis Penais e 1932 e a Lei das

Contravenções Penais (D.L. nº 3.688/31) passaram a tipificar as condutas relacionadas com

armas de fogo. Ocorre que, em tais diplomas legais, os tipos referidos eram classificados

como contravenções penais.

Diante do avanço da violência e, em especial, da prática de crimes de maior

gravidade com o emprego de armas de fogo, tornou-se imperioso um tratamento mais

adequado às condutas referentes às armas. Nesse sentido, foi editada a Lei nº 9.437/97,

denominada Lei das Armas de Fogo, a qual passou a tipificar como crime as ações relativas às

armas de fogo. Além do aspecto punitivo criminal, a referida lei instituiu uma rigorosa

política nacional sobre as armas de fogo, de caráter administrativo.

Com o passar dos anos, as inovações técnicas das armas de fogo, munições e

acessórios e as novas modalidades de condutas praticadas com os mesmos fizeram com que a

mencionada lei não se apresentasse mais condizente com a realidade que se verificava.

Tornou-se ineficaz diante do quadro de violência que se apresentava.

A necessidade de uma adequada resposta estatal ao referido cenário, visando a

defesa da incolumidade pública, implicou na publicação da Lei nº 10.826/03, a qual ficou

conhecida como Estatuto do Desarmamento (ED). Possuía como objetivos imediatos o

desarmamento da população civil - através de um maior rigor na obtenção do porte pelo

cidadão e da criação de um cadastro de armas mais técnico e mais completo – e a confecção

de um tratamento penal condizente com a realidade – com a tipificação de novas condutas

(inclusive com munições e acessórios) e o agravamento na cominação legal dos tipos já

existentes relacionados a armas de fogo.

Entretanto, sua entrada em vigor não transcorreu de forma tranqüila. Muito

pelo contrário. Alguns de seus dispositivos, ante a sistemática ligação existente entre os

mesmos, foram motivo de grande controvérsia na doutrina e jurisprudência pátrias.

O surgimento no ordenamento jurídico de normas supervenientes – medidas

provisórias e suas alterações - que dilataram os prazos de algumas regras do mencionado

diploma geraram um quadro de incerteza junto à população, passando-se a um estado de

insegurança jurídica.

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Sintomática tal controvérsia existente no Estatuto do Desarmamento (Lei nº

10.826/03), posto que quando da edição da Lei nº 9.437/97 verificou-se um similar estado de

divergência doutrinária e jurisprudencial em relação a algumas normas deste diploma legal.

Decerto que, diante da nova perspectiva que o Direito Penal passou a ter após a

entrada em vigor da Constituição da República de 1988, a análise da vexata questio presente

no Estatuto do Desarmamento necessita de um estudo devidamente pautado pelos novos

dogmas da ordem constitucional vigente.

Nesse sentido, a análise da questão em tela implica na verificação dos

interesses em conflito, propondo-se como solução interpretação a utilização da técnica da

ponderação. Esta, ante a natureza dos direitos em jogo, será feita através do princípio da

proporcionalidade, o qual, quando aplicado em matéria penal, deverá observar dois primas

fundamentais: vedar o excesso punitivo estatal sobre o indivíduo, bem como proibir uma

proteção deficiente ao bem jurídico protegido que tenha sido violado pela conduta infracional.

Partindo de tais premissas, foram obtidas as seguintes conclusões no estudo de

caso veiculado na presente dissertação, pontualmente:

I – Os artigos 30 e 32 do ED, os quais concedem um prazo de 180 (cento e

oitenta) dias aos possuidores de armas de fogo de origem lícita, porém em situação irregular,

para que procedam à sua regularização ou as entreguem à Polícia Federal, impedem que o

artigo 12 tenha plena eficácia, uma vez que este tutela, justamente, a conduta do sujeito que

possui ou tem sob sua guarda, em sua residência ou local de trabalho, arma de fogo de uso

permitido em situação irregular. Tal conclusão decorre de uma interpretação do citado

diploma legal através do critério sistemático.

Ademais, uma vez que o artigo 12 do ED agrava consideravelmente a sanção

penal dos tipos previstos no artigo 10 da Lei nº 9.437/97, restaria incongruente se a mesma

fosse aplicada quando os artigos 30 e 32 da mesma lei estimulam justamente a entrega das

armas de fogo pela população.

II – Os prazos previstos nos artigos 30 e 32 do ED foram estendidos por

Medidas Provisórias supervenientes. Em que pese o artigo 62, §1º, inciso I, alínea ‘b’, da

Constituição da República de 1988 (conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº

32 de 11/09/01) vedar expressamente a possibilidade de tal modalidade legislativa versar

sobre Direito Penal, e aí, segundo uma interpretação sob o critério teleológico, proíbe-se tanto

a previsão para beneficiar quanto para agravar a situação do acusado, verifica-se a

legitimidade das mesmas incidirem sobre os referidos dispositivos da Lei nº 10.826/03 e,

conseqüentemente, postergarem o período de não-incidência das figuras típicas do artigo 12.

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Isto porque, inobstante o fato dos citados dispositivos do Estatuto do Desarmamento

incidirem sobre o artigo 12, o qual tem cunho penal, a matéria neles veiculada possui natureza

estritamente administrativa, posto que versa exclusivamente sobre o procedimento para

regularização/entrega de armas de fogo nos termos assinalados.

III – A previsão de edição de Regulamento pelo Estatuto do Desarmamento

não impede a imediata eficácia de seus dispositivos legais, uma vez que o Decreto

Regulamentador anterior – Decreto nº 2.222/97 - confere o tratamento necessário às questões

técnicas existentes no novo diploma legal, ao fazer expressa referência à classificação trazida

pelo Regulamento nº 105 do Ministério do Exército, no mesmo sentido que a norma

regulamentadora ulterior (Dec. nº 5.123/04, artigo 49), a qual é expressa ao afirmar que

somente quando de sua publicação o Dec. nº 2.222/97 estaria revogado.

Portanto, os tipos criminais da Lei nº 10.826/03 possuíam imediata incidência

(com as devidas ressalvas anteriores) desde sua publicação e não apenas com o Dec. nº

5.123/04, estando tal raciocínio em consonância com o duplo viés que o princípio da

proporcionalidade possui quando aplicado ao Direito Penal.

IV – Não se verificou o esdrúxulo fenômeno da abolitio criminis temporalis

em relação às condutas previstas no artigo 12 do ED durante o prazo concedido pelos artigos

30 e 32 (e suas prorrogações) para a regularização/entrega das armas de fogo nas condições

ali previstas. Isto porque, em se aceitando sua existência no caso em estudo, estar-se-ia

observando o princípio da proporcionalidade apenas em seu viés negativo.

Há, na verdade, dois direitos em conflito: o direito individual de liberdade x o

direito da coletividade à segurança pública, os quais encontram expressa previsão no texto

constitucional. Para a solução de tal divergência, a técnica da ponderação apresenta-se como a

única forma viável para a harmonização dos mesmos. E, em se tratando de norma penal,

deverá ser aplicada valendo-se do princípio da proporcionalidade em sua dupla dimensão.

Assim, em observância a essa dupla face do princípio da proporcionalidade e a

própria mens legis do referido diploma legal, durante o período suspensivo de eficácia do

artigo 12 do ED, permaneceria incidindo o artigo 10 da Lei nº 9.437/97. A uma, pois não se

verificaria duplo tratamento legal às condutas tipificadas nos citados dispositivos, não

havendo, portanto, revogação do anterior enquanto não vigente o ulterior. A duas, porque a

norma anterior previa sanção menos gravosa, não ocorrendo, desta forma, excesso na punição.

A três, pois se a intenção do legislador foi justamente desarmar a população, apresentar-se-ia

contraditório conceder-se um período de atipicidade à conduta de possuir arma de fogo.

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A solução apresentada, obtida através do emprego da técnica da ponderação,

observa o duplo viés que o princípio da proporcionalidade possui em matéria penal, não

punindo em excesso o agente infrator, bem como não conferindo proteção insuficiente ao bem

jurídico tutelado, qual seja a incolumidade pública.

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