Luiz Karol - Programa de Pós-Graduação em Letras ... · Latina. Apuleio de Madaura, em suas...

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DE DEO SOCRATIS, A DEMONOLOGIA NO CONTEXTO DO IMPÉRIO GRECO-ROMANO Luiz Karol Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas Orientador: Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves Rio de Janeiro Outubro de 2016

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DE DEO SOCRATIS,

A DEMONOLOGIA NO CONTEXTO DO IMPRIO GRECO-ROMANO

Luiz Karol

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-

graduao em Letras Clssicas, da Faculdade de

Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessrios para a

obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas

Orientador: Prof. Dr. Anderson de Arajo Martins Esteves

Rio de Janeiro

Outubro de 2016

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DE DEO SOCRATIS,

A DEMONOLOGIA NO CONTEXTO DO IMPRIO GRECO-ROMANO

Luiz Karol

Orientador: Prof. Dr. Anderson de Arajo Martins Esteves

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Letras Clssicas,

da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte

dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas.

Aprovada por:

______________________________________________

Presidente: Prof. Dr. Anderson de Arajo Martins Esteves

______________________________________________

Prof. Dr. Ams Colho da Silva

_______________________________________________

Prof. Dra. Arlete Jos Mota

_______________________________________________

Prof. Dra. Cludia Ftima Morais Martins

_______________________________________________

Prof. Dr. Ricardo de Souza Nogueira

_______________________________________________

Prof. Dr. lvaro Alfredo Bragana Jnior (Suplente)

_______________________________________________

Prof. Dr. Airto Ceolin Montagner (Suplente)

Rio de Janeiro

Outubro de 2016

3

Agradecimentos

Ao amigo e orientador, magister no sentido

etimolgico do termo, Anderson.

grande mestra e professora Georgina Maral cujo

incentivo na vida acadmica sempre me acompanhou

desde o tempo da graduao.

Graa, uxor dilectissima.

Felipe e Isis.

Paruus sermo, sed magna gratitudo.

4

5

RESUMO

DE DEO SOCRATIS,

A DEMONOLOGIA NO CONTEXTO DO IMPRIO GRECO-ROMANO

Luiz Karol

Orientador: Prof. Dr. Anderson de Arajo Martins Esteves

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Letras

Clssicas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras Clssicas

O segundo sculo de nossa era foi um momento mpar na histria da humanidade,

pelo menos no que tange ao Imprio Romano, que, por assimilar e proteger a herana da

cultura grega, tornara-se aquilo que Paul Veyne designa por Imprio Greco-romano.

Mesmo tutelados pelo poder romano, os gregos desse perodo tentam restabelecer a

grandiosidade de suas . Trata-se ento do perodo conhecido como a Segunda

Sofstica, em que oradores gregos percorrem todo o Imprio disseminando o saber

filosfico mediante apresentao de palestras. Coexistem as vertentes do Epicurismo,

Estoicismo e Platonismo Mdio, temperadas com um pouco de Aristotelismo. Das trs

vertentes, a ltima sempre foi muito pouco estudada, pelo menos no que tange Literatura

Latina. Apuleio de Madaura, em suas prprias palavras, um filsofo platnico, a exemplo

dos sbios da Segunda Sofstica, tornara-se um orador de concerto de muito sucesso em

Cartago e legou-nos trs obras sobre filosofia platnica. Nosso trabalho versar sobre uma

delas, De deo Socratis, palestra proferida em latim sobre um dos mais instigantes assuntos

do Platonismo Mdio, os daemons. Trata-se do nico e mais abrangente documento em

latim a tratar do assunto, ao contrrio dos demais documentos, em grego e latim, que o

tratam somente como assunto subalterno. O presente trabalho parte da traduo do original

latino, acrescida de uma contextualizao histrica, literria, comentrios e notas sobre o

texto.

Palavras-chave: 1. Apuleio; 2. De deo Socratis; 3. Demonologia; 4. A Segunda Sofstica

em Roma; 5. Platonismo Mdio em Roma.

Rio de Janeiro

Outubro de 2016

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ABSTRACT

DE DEO SOCRATIS,

THE DEMONOLOGY IN THE CONTEXT OF THE GRECO-ROMAN EMPIRE

Luiz Karol

Orientador: Prof. Dr. Anderson de Arajo Martins Esteves

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em

Letras Clssicas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Letras

Clssicas

The second century of our era was a unique moment in human history, at least with

regard to the Roman Empire, which, by assimilating and protecting the legacy of Greek

culture, had become, in Paul Veynes words, the Graeco-Roman Empire. Even under the

Roman power, the Greeks in this period try to restore the grandeur of their . It is a

period known as the Second Sophistic, in which Greek speakers run through the entire

Empire spreading philosophical knowledge by presenting lectures overall. The aspects of

Epicureanism, Stoicism and Middle Platonism coexist, tempered a bit by Aristotelianism.

From this three tendencies, the last was always very little studied, at least as it concerns to

Latin Literature. Apuleius of Madaura, in his own words, a Platonic philosopher, following

the example of the wise men of the Second Sophistic, had become a very successful

concert speaker in Carthage and bequeathed us three works on Platonic philosophy. We

will deal with De deo Socratis, a lecture given in Latin on one of the most intriguing issues

of Middle Platonism, the daemons. This is the single most comprehensive Latin document

on it, unlike other ones in Greek and Latin, which treat demonology only as a subordinate

issue. Our work starts from the translation of the original Latin, plus a historical

contextualization, literary, comments and notes on the text.

Keywords: 1. Apuleius;, 2. De deo Socratis; 3. Demonology; 4. Second Sophistic at Rome;

5. Middle Platonism at Rome.

Rio de Janeiro

Outubro de 2016

7

SUMRIO

INTRODUO 8

1. O AUTOR E SEU TEMPO 14

1.2. Apuleio: vida, obra e panorama histrico. 17

1.3.Contexto literrio do sculo II d.C. 29

2. O AUTOR E SUA OBRA

2.1. Obras filosficas e gerais 36

2.2. Descrio das obras 37

3. DEMONOLOGIA

3. A demonologia na Antiguidade 64

3.1. A demonologia antes de Plato 66

3.2. Plato 68

3.3. Seguidores e continuadores de Plato 68

3.4. A demonologia em Roma 70

4. INTRODUO A DE DEO SOCRATIS

4.1. Sntese descritiva da obra 71

4.2. Estrutura, anlise e comentrios da obra 77

5. TEXTO E TRADUO 95

6. CONCLUSO 144

7. BIBLIOGRAFIA 147

8

Introduo

De deo Socratis um dos textos mais curiosos sobre o amlgama que foi a

civilizao grego-romana nos primeiros sculos de nossa era. No se trata de um tema

muito conhecido, embora h muito j existisse uma profuso de referncias textuais a ele.

Desde Herclito a Plotino, passando obrigatoriamente por Plato, fala-se no daemn, de

vrias formas e maneiras. Em outras palavras, essa figura perpassa todo pensamento

filosfico-religioso dos gregos, desde Herclito e Hesodo, at os neoplatnicos, mas,

curiosamente, e principalmente em virtude do desenvolvimento do cristianismo, o assunto

permaneceu nas sombras at final do sculo XIX1, quando o texto que resolvemos estudar

foi traduzido em ingls2 e, no sculo passado, em francs

3 e italiano

4. Lembramos que os

estudos sistemticos sobre esse texto datam apenas do sculo passado quando comearam a

aparecer estudos5 e edies crticas

6.

No terceiro captulo de rebours, de Huysmans (1903, p. 34), lido h muitos anos,

o autor descreve, com uma adjetivao profusa, suas impresses sobre Apuleio,

especificamente sobre a obra Metamorfoses:

Esse africano o7 deleitava; a lngua latina alcanava o auge

8 em suas

Metamorfoses; ela revolvia o lodo, variadas guas, provenientes de todas

as provncias, e todas se misturavam, se confundiam num matiz

caprichoso, extico, quase novo; maneirismos, novos detalhes da

sociedade latina confluam em neologismos criados para as necessidades

da conversao num recanto romano da frica; de resto, sua jovialidade

de homem evidentemente gordo, sua exuberncia meridional divertiam9.

Lanando-nos leitura, descobrimos que, por trs de todo esse espetculo de

linguagem, havia uma segunda mensagem, quase inicitica, de redeno, que descrevia,

mediante a utilizao do personagem-asno Lcio, o mesmo caminho, mutatis mutandis,

dos habitantes da caverna de Plato em direo luz, ou seja, ao conhecimento. Esse

1 Existem algumas edies francesas anteriores: Baron des Coutures, 1698, e Compains de Saint-Martin,

1707, mas no se trata de edies crticas. 2 Londres: Frank H. Cilley, 1866

3 Paris: Garnier, Henri Clouard, 1933

4 Fogia: Bastogi Editrice Italiana, A. Corina, 1997

5 Rathke, 1911; Dillon, 1977

6 Clouard, 1933; Beaujeu, 2002

7 Trata-se aqui do protagonista do romance, Jean des Esseintes.

8 Grifo nosso.

9 Cet Africain le rjouissait ; la langue latine battait le plein dans ses Mtamorphoses ; elle roulait des limons,

des eaux varies, accourues de toutes les provinces, et toutes se mlaient, se confondaient en une teinte

bizarre, exotique, presque neuve; des manirismes, des dtails nouveaux de la socit latine trouvaient se

mouler en des nologismes crs pour les besoins de la conversation, dans un coin romain de l'Afrique ; puis

sa jovialit d'homme videmment gras, son exubrance mridionale amusaient. (Todas as tradues deste

trabalho, francs, ingls, italiano e latim, so de nossa autoria, salvo meno em contrrio).

9

paralelismo nos levou, primeiramente, a uma breve pesquisa sobre a obra publicada de

Apuleio e sua aquisio; em seguida, separao dos textos que versavam sobre

Filosofia, e, finalmente, escolha do texto mais agradvel e instigante sobre o assunto. Da

a escolha de De deo Socratis. nico texto latino que aborda o assunto da demonologia

medioplatnica de forma abrangente e minuciosa. O preciosismo lingustico apontado por

Huysmans, indicando o afastamento entre o latim de Ccero e de Apuleio, constituiu, da

mesma forma, um motor de nossa curiosidade sobre o madaurense.

A relevncia do estudo, evidentemente, alm do fato desta ser o nico texto

suprstite em latim sobre o assunto, reside principalmente em duas motivaes

importantes: o fato de a figura do daemn ser um elemento de introduo de racionalidade

nas estruturas de pensamento do Platonismo Mdio e tambm a nossa curiosidade sobre

como o modus cogitandi latino se apodera desses fenmenos. Alm do mais, todos os

autores desse perodo em que viveu Apuleio, trataram desse assunto, e ele, como se

arrogava o ttulo de philosophus platonicus, alm de ter escrito o tratado, mais genrico,

De Platone et eius dogmate, em que cita os daemons, escreveu tambm um tratado, na

forma de discurso epidctico, em que essas entidades tornam-se o assunto principal,

diferena de outros autores, como Plutarco, que o faz assunto subalterno s suas

necessidades discursivas. Segundo Beaujeu (2002, p.5 ss.), Margagliotta (2012, p.67) e

Timotin (2012, p.112), trata-se do mais completo manual sobre o assunto, apesar de suas

pequenas imprecises de detalhe. Alm disso, debruar-se sobre o segundo sculo de nossa

era reveste-se de grande importncia para o desenvolvimento e atualizao dos estudos

clssicos no Brasil, uma vez que nele se realiza verdadeiramente a sntese dos espritos

helnico e latino, naquilo que Paul Veyne chama de O imprio greco-romano10

.

Mas o que so os daemons? So entidades divinas intermedirias (medixim)

responsveis pelo contato dos homens com os deuses superiores:

Em todos os pases, em todos os tempos, acha-se comumente

disseminada a crena em seres sobrenaturais, de uma categoria inferior

dos deuses, intervindo diretamente no rumo das coisas e especialmente

dos negcios humanos, seres benficos, malficos ou indiferentes, com

quem o homem busca conciliar-se mediante prticas religiosas ou

mgicas; o povo temvel e inumervel dos espritos, demnios, anjos e

10

VEYNE, 2009.

10

gnios de toda espcie, invisveis, ativos e perturbadores.11

(BEAUJEU,

2002, p. 184)

Tratava-se originalmente de um mito popular, simples entidades invisveis que estavam por

toda parte observando os homens e, s vezes, se intrometendo em seus negcios, ajudando

ou atrapalhando. Os poetas e filsofos desde muito cedo se apropriaram desse mito:

Homero, Hesodo, Herclito, Plato. Os filsofos, porm, tinham de ajustar as

caractersticas desses entes tanto aos seus propsitos pedaggicos quanto sua metafsica

ou, mais propriamente, sua teologia. Plato os apresenta no Banquete, na Apologia de

Scrates, nas Leis e na Repblica, sem nunca, entretanto, dedicar-lhes uma obra especfica,

isto , sem estabelecer uma demonologia sistemtica ou, pelo menos, as suas bases. Como

dissemos acima, Apuleio faz do daemn o assunto principal de seu discurso. Em que pese

o ttulo, De deo Socratis, o autor primeiramente faz uma brevssima descrio do universo

segundo sua prpria viso dos textos platnicos, passa a uma descrio dos daemons em

geral, em seguida a uma descrio do daemn de Scrates e, finalmente, a um elogio da

filosofia. Embora lhe seja negado, s vezes, o ttulo de filsofo, no se lhe pode negar o

ttulo de pensador e de platnico, mais especificamente de pensador medioplatnico, tanto

que Dillon (1996, p.306 ss.), no que talvez seja a obra definitiva sobre o assunto, reserva-

lhe um extenso e minucioso captulo.

Nosso objetivo, por conseguinte, examinar a demonologia do Platonismo Mdio,

do ponto de vista do modus cogitandi latino, conforme apresentada por Apuleio em De deo

Socratis. Com vistas a esse propsito, empreendemos a traduo do texto original

De deo Socratis uma palestra sobre os daemons para um pblico culto de lngua

latina, ministrada provavelmente em Cartago por volta dos anos 150. Pode-se conceb-lo

tambm como um manual que se prope a apresentar a esse pblico, de forma sistemtica,

o conjunto de conhecimentos, populares e filosficos, sobre os daemons, transmitidos

pela tradio platnica. Apuleio tenta dar ordem s confusas ideias disseminadas sobre

essas entidades pelo Platonismo, Pitagorismo e pelas religies de mistrio, mediante uma

completa e articulada classificao dos daemons. Pode-se afirmar ento que a obra um

manual do que os homens esclarecidos da poca precisavam saber sobre os daemons.

11

Dans tous les pays et dans tous les temps, on trouve communment rpandue la croyance des tres

surnaturels, dun rang infrieur celui des dieux, intervenant directement dans le cours des choses et

spcialement des affaires humaines, tres bienfaisants ou malfiques ou indiffrents, que lhomme cherche

se concilier par des pratiques religieuses ou magiques; cest le peuple innombrable et redoutable des esprits,

dmons, anges et gnies de toute sorte, invisibles, actifs et tracassants.

11

Friedrich Andres (apud Margagliotta, 2012, p.67) afirma que De deo Socratis12

pode ser

considerado superior em relao a todos os demais tratados da Antiguidade Clssica a

respeito desse assunto13

. Todos estes autores citados so unnimes em afirmar que o texto

se mostra mais conciso e sistemtico que De genio Socratis, de Plutarco, e mais elegante e

rico que as Dialexeis de Mximo de Tiro. Essa dissertao, pois, no se apresenta como um

tratado rigoroso. antes de tudo um discurso destinado a esclarecer conceitos religiosos e

filosficos, na sua forma popular, apresentando um estilo fluente, leve e cheio de

elementos retricos que o afastam da gravidade, quase aspereza, de um tratado filosfico.

Embora lhe falte o rigor de um tratado filosfico, a obra mostra-se bem estruturada

pela diviso em quatro sees principais, em forma de narrativa, com poucas intervenes

de um interlocutor imaginrio. Na introduo, o autor nos fala de deuses e homens;

comeando pela tripartio dos deuses superiores, apresenta os deuses visveis, isto , os

astros, passando aos deuses invisveis e terminando com os homens. Na primeira parte, o

autor descreve os daemons em sua generalidade, seu papel, sua localizao, caractersticas

e classificao. Na segunda, especificamente do daemn de Scrates, em que faz uma

distino entre sabedoria e adivinhao definindo seus campos e a utilidade de cada uma

para o filsofo grego e, por extenso, para todos os homens. Na ltima parte, a concluso,

Apuleio dirige-se ao pblico em uma exortao prtica da filosofia e culto do daemn

individual, fazendo tambm um curioso elogio reabilitante do personagem homrico

Ulisses.

Foi fundamental na construo deste trabalho, pari passu com a traduo do texto,

a leitura genrica de artigos e de autores que versam sobre Apuleio ou sobre a

demonologia no Platonismo Mdio, a saber: Dillon (1996), com o estudo pormenorizado

dessa corrente filosfica intermediria, sendo considerada a obra mais completa, qui

definitiva, sobre o assunto; Beaujeu (1971), com o texto estabelecido e a contextualizao

da obra dentro da evoluo, embora resumida, da demonologia; Harrison (2008), com a

contextualizao do autor em seu tempo e seu espao geogrfico, e a anlise dos aspectos

particulares da obra; Fletcher (2014), com a relao entre a filosofia e sua representao

em Apuleio, e finalmente Margagliotta (2012), com um trabalho comparativo entre a

descrio do daemn de Apuleio e de Plutarco.

12

Doravante DDS. 13

(a suo avviso) il De Deo Socratis pu considerarsi superiore rispetto a tutti gli altri trattati ellet classica

risguardanti questo tema che ci sono pervenuti.

12

Nossa tese est dividida em: O autor e seu tempo, em que falamos especificamente

da vida do autor inserida no grande panorama do complexo que foi o Imprio Greco-

romano do sculo II de nossa era, pontuando principalmente as caractersticas do esprito

do tempo (Zeitgeist) que poderiam, segundo nossa tica, ter influenciado Apuleio, ou, pelo

menos, ter-se manifestado em seus escritos. Nesse mesmo captulo esboamos os

problemas referentes ao levantamento dos dados biogrficos do autor, sem, porm, buscar

resolv-los, haja vista que tal tarefa exclui-se do escopo deste trabalho. Relacionamos

tambm, nesse mesmo captulo, com detalhe a produo literria do autor, fazendo um

sumrio das obras suprstites. No terceiro captulo, A demonologia, apresentamos um

panorama histrico da demonologia, desde os precedentes, anteriores a Plato, at sua

manifestao em Roma. No quarto captulo, Introduo a De deo Socratis, guisa de

prolegmenos traduo, sumarizamos a obra em aspectos que julgamos necessrios sua

contextualizao e inteleco, bem como apresentamos dela uma anlise e comentrios

mais pormenorizados dos aspectos relevantes da obra. No quinto captulo, Texto e

traduo, inclumos o texto original e nossa traduo.

A traduo revelou-se uma tarefa um tanto rdua, haja vista o lxico muito

especfico, s vezes nico, adotado pelo autor, bem como os significados discrepantes do

sentido normal, na acepo estatstica, que alguns vocbulos tomam sob sua pena. Nesse

aspecto, os dicionrios Gaffiot, Oxford Latin Dictionary (OLD) e Saraiva foram

fundamentais, durante o processo de traduo, por apresentar os sentidos especficos que

alguns vocbulos tomam na obra de Apuleio, mais especificamente em De deo Socratis.

No texto em questo, procuramos seguir o lema atribudo pela tradio a Eusbio

Jernimo de que a traduo tem de ser to fiel quanto possvel e to livre quanto

necessria. Dessa forma, em pontos diversos, ora buscamos mais reproduzir o estilo

original do autor, na medida do possvel, ora optamos por maior inteligibilidade e fluncia

mais prxima da nossa lngua. Frise-se aqui que, apesar da autoridade da traduo do texto

principal com que cotejamos, em alguns momentos, discordamos em questes de detalhes,

sem, todavia, deixar de buscar fundamentao de plausibilidade nos demais comentaristas,

principalmente Timotin. Como exemplo, utilizamos vrgulas em passagens que o texto

latino direto; acrescentamos conjunes, principalmente coordenativas, onde se

apresentam vrgulas; inserimos anafricos, seja substantivos, seja pronomes, onde a coeso

em lngua portuguesa ficava prejudicada pela ausncia dos aspectos morfossintticos

13

especficos das flexes casuais latinas, mas sempre com parcimnia e muita cautela.

Enfim, sempre que possvel, visamos o mximo possvel a no destoar do texto original

latino.

Quanto aos nomes de personagens mticos, histricos e topnimos em latim,

procuramos seguir o Vocabulrio Onomstico da Lngua Portuguesa da Academia das

Cincias de Lisboa (1940) e a obra de referncia ndices de Nomes Prprios Gregos e

Latinos (1995). Convm ressalvar, porm, que, em virtude da diferena de acentuao

grfica entre o portugus brasileiro e o europeu, tivemos de adaptar algumas grafias,

trocando, por exemplo, os acentos agudos das slabas tnicas de algumas palavras

proparoxtonas por acento circunflexos, como de norma no Brasil.

Alm dos dicionrios acima citados, valemo-nos em nossa traduo, do Dicionrio

Oxford de literatura clssica, do Dicionrio da mitologia grega e romana (2005), de

Pierre Grimal, do Dicionrio Mtico-Etimolgico da Mitologia Grega (1991) e do

Dicionrio Mtico-Etimolgico da Mitologia e Religio Romana (1993) de Junito Brando.

Como texto-base, adotamos a edio crtica de Jean Beaujeu (2002), publicada pela

Societ ddition Les Belles Lettres, sem deixar de consultar as edies de Chrystian

Ltjohann (1878) e Theodore Alois William Bucley (1844), alm da prpria editio

princeps de Francesco de Asula (1521), no sem alguma dificuldade. Cumpre notar nesta

ltima uma introduo considerada atualmente apcrifa pelos editores crticos e estudiosos

(Beaujeu, Harrison, Margagliotta e Timotin). Comparando as referidas edies,

conclumos que a edio de Beaujeu aquela que, onde se faz necessrio, resume, amplia,

comenta e desenvolve os aspectos mais importantes da obra e da crtica, sendo apontada,

explcita ou implicitamente, como a edio mais importante pelos trs outros estudiosos

citados acima. Tomamos o cuidado especial de buscar diferenas de interpretao nos

autores, sem, entretanto, notar quaisquer discrepncias, mesmo de detalhes, entre eles.

14

1. O AUTOR EM SEU TEMPO

Embora floresa sob o reinado de Antonino Pio e no se tenha notcias dele depois

de Marco Aurlio, Apuleio de Madaura nasce sob o principado do sucessor de Trajano,

Adriano, imperador cosmopolita, viajante incansvel, acima de tudo um imperador romano

e comandante de um exrcito romano. Esse imperador compartilhava as durezas da vida de

campanha e exigia das tropas uma vigorosa disciplina e alto padro profissional. Chefe do

servio pblico cuja atividade dirigia atenta e diretamente nos locais que visitava por todo

Imprio. Pode parecer-nos certo que a personalidade do imperador no influenciasse o

homem comum, visto que este muito estava afastado daquele, mas Adriano, em sua ao

poltico-administrativa, traz ao Imprio Romano lei, ordem e segurana. Com que mais

sonharia o homem comum? Com mais nada, certamente. E o homem de letras? Decerto

com algo mais, visto que a todos estavam acessveis as informaes da grandeza alcanada

e mundos desconhecidos e novos, fato instigador das angstias humanas. Lei, ordem e

segurana, urbi et orbi, respondem no s a um anseio popular, mas tambm quele anseio

de universalidade que, em meados do sculo anterior, j agitava as mentes romanas e cujo

exemplo mais eloquente Plnio Velho, com a coleta de exemplaria documentata

provindos de todo o mundo que o Imprio Romano abrangia. a necessidade de dominar o

mundo fsico pela compreenso. Mas que dizer do supramundo, o inefvel alm-vida? Se

elementos de razo prtica, os escritos, nos apresentam os testemunhos do mundo alm-

mares e alm-montes, que outros elementos podero trazer os testemunhos do mundo

alm-vida? Aqueles, pelos cinco sentidos, podero ser alcanados, e estes?

Nosso autor de nada mais pde se valer que dos escritos e da razo de seu tempo,

cuja dominante o Mdio Platonismo, corrente coexistente com a Segunda Sofstica, e que

j incorpora aos ensinamentos de Plato, cuja principal caracterstica a necessidade de

transcendncia universalizante; elementos aristotlicos, ou seja, a necessidade de

sistematizao, bem a gosto dos romanos, e influncias pitagricas, isto , a necessidade de

racionalizar matematicamente o cosmos. Esse amlgama de concepes encontra no texto

escolhido, logo na primeira linha do primeiro pargrafo, uma ncora textual na expresso

trifariam divisit (DDS, 1). Se o fundo, entretanto, clama em sua maior parte pelo criador da

Academia, a forma inteiramente romana lngua e retrica. Mas se o fundo clama, o

autor atende plenamente? Em parte, uma vez que so pocas e vises de mundo diferentes.

15

Enquanto os gregos flertam com o aperon14

, a ausncia de limites, os romanos sempre se

apegaram ao limes e principalmente ao finis (Eco, 1989). Enquanto os gregos vivem de um

passado glorioso que tentam reviver nas letras, e somente nelas o podem, Roma conhece o

um grande apogeu. Talvez, influenciado por esse movimento das letras e esse esprito do

tempo, o nosso autor, romano de provncia, em oposio aos gregos que escreveram sobre

o assunto dispersamente Plato, Xenofonte, Plutarco e Mximo de Tiro tenha

concentrado em um nico escrito todo conhecimento da poca sobre os daimones: em vez

de apresent-lo como assunto subalterno aos conceitos e fatos histricos veiculados pelos

escritos daqueles autores, ao contrrio, torna-o o principal contedo de sua dissertao em

latim, para um pblico de lngua e pensamento latino. Centralidade e esgotamento do tema,

como caractersticas latinas; referncia a todo cosmo, como caracterstica grega, e,

finalmente, amor filosofia, ainda que de forma simplesmente epidctica, como

caracterstica do Imprio Greco-romano. Procuraremos, portanto, ver como a retrica

romana se apropria do assunto e como o apresenta. Vale lembrar que o adjetivo

provinciano, aplicado a nosso autor, no gratuito, pois, em sua gnese, as provncias

eram os estados no itlicos cujos habitantes estavam sob a administrao de Roma,

pagando impostos, fato que lhes confere uma mentalidade hbrida, haja vista que a

administrao aludida mostrava uma tolerncia muito grande com a lngua e a religio dos

estrangeiros (STROH, 2013, p. 32). Podemos ento conceder a essa relativa liberalidade

do estado pago romano a personalidade multifacetada, ou, no mnimo, bifronte, de nosso

autor.

Sobre a Segunda Sofstica, necessrio fazer uma pequena digresso, uma vez que

nosso autor pode se enquadrar naquilo que Ludwig Radermacher chamou, com uma

expresso insupervel, oradores de concerto (LESKY, 1995, p.872), homens que se

sobressaam em pblico pela improvisao e pela declamao cuidadosamente preparada.

Desde Iscrates e Plato, apesar do antagonismo de filosofia e retrica, ou at mesmo por

causa dele, esses dois campos, lutando pela hegemonia pedaggica, determinam o

panorama educativo nos sculos posteriores Academia e ao Liceu. Houve, de um lado e

de outro, excessos, mas tambm tentativas de conciliao entre filosofia e retrica, visto

que ambas reclamavam para si o direito exclusivo de intervir na formao da plis e da

urbs. No perodo enfocado, sculo II d.C., as velhas e as novas escolas filosficas, j h

14

, ilimitado, infinito, imenso, inumervel, inextrincvel; inexperiente, no experimentado,

desconhecedor. [Bailly, s.u., trad.]

16

algum tempo, eram suficientemente fortes para afirmarem seus direitos, haja vista que

grandes oradores como Ccero, por exemplo, trs sculos antes, j haviam tentado conciliar

as duas partes. Na poca imperial, com o afastamento da filosofia de amplos setores dos

campos contestados do conhecimento, instalou-se de forma geral a retrica no tratamento,

no domnio e na determinao do saber, da instruo e da literatura. Isso se deu de forma

bem marcante, mesmo que por um curto espao de tempo, antes que o Neoplatonismo

dominasse e desse novo movimento vida cultural do imprio greco-romano. Em outras

palavras, a rixa platnica entre filosofia e retrica havia se esvaecido, convivendo as duas

em relaes de boa vizinhana, cada uma cuidando de sua parte do universo, como j

preconizara Aristteles, e at mesmo vindo em auxlio recproco. Como dissemos, nosso

autor se enquadra naqueles oradores de concerto, cuja tradio pretende-se que remonte

a Grgias, quer seja pela improvisao, quer seja pela declamao cuidadosamente

preparada. Segundo Lesky (1995, p.872), no difcil imaginar, O culto de que estes

homens eram objeto, s se pode comparar como o prestado s estrelas dos nossos dias.

Por declamao cuidadosamente preparada no se deve entender, entretanto, o

empolamento cultivado nas escolas asiticas (ou asinicas), mas exatamente o cuidado em

que as antigas formas e o excessivo cuidado com o estilo sejam considerados como

ultrapassados, peas de museu. Deve-se levar em conta tambm que autores to dspares,

como Plutarco e Ccero, vivendo o esprito dessa reao s duas correntes, aticista e

asinica, no se rendam totalmente a uma ou outra escola. Se de um lado, Ccero, um

sculo antes, procura estabelecer um equilbrio entre as duas, Plutarco, por outro, busca,

mesmo com recurso s formas populares da koin, abrandar a exuberncia de uma corrente

e a aridez da outra. Mesmo assim, o tempo deste ltimo a poca das grandes e admiradas

exibies de rtores famosos, da luta interminvel entre os dinastas filosficos, da

penetrao incessante do irracional sob a forma de misticismo, da evaso do mundo pela

de superstio banal. Essa poca, dos Antoninos, tanto foi o tempo de um homem,

Apuleio, que com tudo isso compactuava, seja pelo culto dos daemons, seja pelo

sacerdcio de sis, quanto o tempo de outro que a tudo isso acompanhava com o riso

corrosivo, com o ceticismo duro e, principalmente, com a stira mordaz, Luciano de

Samsata. Tempos ricos em que a astrologia, a crena nos daemons e o novo misticismo

de nosso autor, de um lado, podiam conviver pacificamente com a crtica ctica de seu

contemporneo, de outro.

17

Neste primeiro mdulo do trabalho, falaremos sobre o contexto histrico do autor,

sobre a histria cultural, a literatura e o Imprio Greco-romano. No segundo, do autor

propriamente dito e sua produo. No terceiro, do daemn . No quarto, do texto, mediante

traduo e comentrios.

1.1. Apuleio: vida, obra e panorama histrico

Retirando-se todo anedotrio e conjecturas, somente duas fontes sobre o autor

existem de fato: ele mesmo e Agostinho de Hipona, outro escritor do Norte da frica, que

certamente conhecia bem os escritos de Apuleio. Somente as obras de ambos lanam luzes

sobre alguns pontos da vida do primeiro, ficando, entretanto, muitos outros ainda na

penumbra. O nico detalhe confivel o nomen, enquanto o praenomen, Lucius, atribudo

ao autor em manuscritos medievais e renascentistas, jamais foi encontrado em fontes da

Antiguidade Clssica. A hiptese mais verossmil que se afigura a de que os copistas e

comentaristas posteriores, na Idade Mdia e Renascena, o tenham intudo da aparente

semelhana que se sugere entre o autor e seu personagem, Lcio de Corinto, no final das

Metamorfoses:

Nam sibi uisus est quiete proxima, dum magno deo coronas

exaptat, et de eius ore, quo singulorum fata dictat, audisse mitti

sibi Madaurensem, sed admodum pauperem, sui statim sua sacra

deberet ministrare; nam et illi studiorum gloriam et ipsi grande

compendium sua comparari prouidentia. (Met., 11.27).

Pois na noite anterior, ele teve um sonho, enquanto dispunha

guirlandas para o sumo deus, e de sua boca, pela qual se dita o

destino dos indivduos, ouviu que ser-lhe-ia mandado um

madaurense, mas muito pobre, e que ele deveria imediatamente

ministrar-lhe os sacramentos15

, pois sua providncia no s lhe

reservara a glria literria como tambm uma grande remunerao.

Outra certeza a data aproximada e local de nascimento: por volta de 120 d.C., em

Madaura ou Madauros16

, atual MDaourouch, provncia de Souk Ahras, Arglia, uma

cidade do interior da provncia romana da frica Pr-consular, situada nos aclives sulistas

do monte Atlas, a cerca de 230 km a sudoeste de Cartago, atual Tnis, na Tunsia.

Sobre essa cidade, os registros so quase inexistentes, portanto seus primrdios so

obscuros. Apuleio relata na Apologia que, poca da terceira guerra pnica, a cidade

pertencia aos domnios de um rei nmida chamado Sfax, que, depois de alguma indeciso,

15

Isto , inici-lo nos mistrios. 16

No aplicativo geogrfico Google Maps, acha-se pelo primeiro nome, Madaura.

18

aliou-se a Cartago na luta contra Roma. Derrotados os cartagineses em 203 a.C., a cidade

passou para os domnios do rei Massinissa, aliado de Cipio, cujos descendentes reinaram

sobre a Numdia at 46 a.C. Ento, o monarca Juba I, aliado de Pompeu na guerra civil, foi

deposto por Csar, que instituiu a provncia romana de Africa Nova, em lugar do reino

independente anterior, para aumentar a j existente provncia romana da frica baseada em

Cartago. Aps um mal sucedido retorno ao status de reino vassalo, sob Juba II, protegido

de Augusto, entre 29 e 25 a.C., a Numdia foi unida antiga provncia da frica para

formar a frica Pr-consular, num sistema que durou at a repartio de Stimo Severo. A

prpria Madaura foi restaurada, no perodo dos imperadores Flavianos, como uma colnia

romana, com o ttulo de Colonia Flavia Augusta vetenarorum Madaurensium. No decorrer

dos dois sculos seguintes, a cidade floresceu, como atestam suas grandes runas, ainda

hoje, objeto de escavaes.

Apuleio refere-se sua ptria nestes termos:

De patria mea uero, quod eam sitam Numidiae et Gaetuliae in ipso

confinio meis scriptis ostendi scis, quibus memet professus sum,

cum Lolliano Auito C.V. praesente publice dissererem,

Seminumidam et Semigaetulum: non uideo quid mihi sit in ea re

pudendum, haud minus quam Cyro maiori, quod genere mixto fuit

Semimedus ac Semipersa. Non enim ubi prognatus, sed ut moratus

quisque sit spectandum, nec qua regione, sed qua ratione uitam

uiuere inierit, considerandum est (Apol. 24, 1-3)

Quanto ao meu lugar de origem, na verdade, pelos meus escritos

sabeis que ele est situado nesse mesmo limite da Numdia e da

Getlia, acerca das quais declarei, quando apresentei uma

conferncia pblica na presena de Loliano Avito, que eu mesmo

sou seminmida e semigtulo: quanto a mim, no vejo nisso o que

haja para envergonhar-se, no menos que o grande Ciro, porque,

quanto origem miscigenada, era meio medo e meio persa. De

fato, no onde nasceu, mas de que costumes cada um dotado

deve-se observar, nem em que regio, mas por que modo de pensar

ter adotado para viver sua vida, deve ser considerado

Nec hoc eo dixi, quo me patriae meae paeniteret, etsi adhuc Syfacis

oppidum essemus. Quo tamen uicto ad Masinissam regem munere

populi Romani concessimus ac deinceps ueteranorum militum nouo

conditu splendidissima colonia sumus, in qua colonia patrem habui

loco principis duumuiralem cunctis honoribus perfunctum; cuius

ego locum in illa re publica, exinde ut participare curiam coepi,

nequaquam degener pari, spero, honore et existimatione tueor.

(Apol. 24, 7-9)

19

E no falei disso para que me envergonhasse de minha ptria17

,

mesmo se fssemos ainda a cidade de Sfax. Depois que este foi

vencido, passamos, pelo favor do povo romano, ao poder do Rei

Massinissa, e mais tarde, com um novo assentamento de soldados

veteranos, somos uma florescentssima, nessa colnia, tive meu pai

dumviro, no cargo principal, tendo exercido antes toda a carreira

pblica; lugar de quem, mesmo naquele governo, desde que

comecei a participar da cria, de modo algum da mesma forma

indigno, espero, conservo com honra e considerao. (Apol. 24)

Como era de se esperar, a lngua e a cultura dos cartagineses permaneceram fortes,

tanto naquela rea, quanto em outras partes da frica do Norte Romana. muito provvel

que Apuleio falasse pnico como sua primeira linguagem vernacular, da mesma forma que

outros de origem similar, como seu enteado Pudens (Apol. 98) de Ea na Africa Tripolitana

(moderna Lbia), e o imperador Stimo Severo, nascido uma gerao depois de Apuleio em

Leptis Magna, no longe de Ea. Esse fato, compreensivelmente, no informado em suas

obras em latim. Embora o pnico pudesse ser o vernculo de uma colnia da frica do

Norte, o latim era a linguagem de toda literatura formal e discurso jurdico. Fronto,

escritor oriundo de uma colnia similar, Cirta, uma gerao antes de Apuleio, da mesma

forma, no menciona o pnico em seus escritos, embora tivesse sido seu primeiro

vernculo tambm. importante, para uma legtima apreciao de Apuleio, entender que

ele pertence no a uma linha subalterna africana, mas principal tendncia da cultura e

literatura latina, com sua muito alardeada fluncia em grego como deveria ser para um

romano bem educado. Essa a diferena bvia, mas fundamental que separa Apuleio e

outras figuras literrias romanas, com interesses sofsticos, das figuras gregas

contemporneas da segunda sofstica, que, por outro lado, parecem igualar-se a Apuleio

em seus interesses em performance retrica e filosfica. Embora ele, como Fronto, possa

falar ligeiramente de seus antecedentes africanos, Apuleio, por seu nome, cultura literria e

educao, , quanto identidade cultural, um falante e escritor fundamentalmente romano,

expressando-se pela lngua e retrica latina.

A data de nascimento nos anos 120 d.C. comumente deduzida de diversas

passagens de suas obras. Em Florida (16), o autor declara ter sido um companheiro de

estudos de Estrabo Emiliano, que provavelmente foi um contemporneo prximo e teria

provavelmente cerca de trinta e dois anos poca de seu consulado em 156 d.C.; na

Apologia (89), declara ainda que sua esposa, Pudentila, teria cerca de quarenta anos

17

Literalmente: E tanto mais no falei dessas coisas para que, por esse meio, me envergonhasse de minha

ptria

20

poca do julgamento18

(158-9 d.C.), e que ela seria um pouco mais velha que ele (Apol.

27), enquanto ele aparenta ser mais velho que o filho dela, Ponciano, este julga ser Apuleio

um par apropriado para sua me (Apol. 72) e com o qual tinha estudado em Atenas.

Portanto razovel que Apuleio contasse por volta de trinta anos, mas no menos, poca

da Apologia, e que ele nascera em meados de 120 d.C. Isso o faz contemporneo de Aulo-

Glio, a quem pode ter conhecido pessoalmente, bem como dos gregos Galeno, Luciano e

lio Aristides. Dessa forma, sua vida decorre no apogeu da renovao intelectual grega da

Segunda Sofstica, em que os escritores gregos tentaram de forma denodada reviver as

glrias passadas de sua cultura nas ricas cidades do Mediterrneo grego, sob a proteo do

governo romano. Como suas obras de cunho filosfico sugerem, as escolhas da carreira e

do gnero literrio de Apuleio foram fundamentalmente influenciadas pelo que estava

acontecendo aos seus contemporneos no mundo grego.

Quanto ao ambiente familiar, seu pai alcanara o cargo de duumvir, que era a mais

alta magistratura da colonia, amealhando uma fortuna que chegou a dois milhes de

sestrcios na ocasio de sua morte, pouco antes de 158 d.C. (Apol. 24.9), quantia que

proporcionou aos dois filhos uma vida sem maiores problemas, podendo ento comear

uma carreira pblica de prestgio. Como cidado de uma colonia, ele deveria ter a

cidadania romana e os trs nomes usuais nesse perodo, mas somente o nome da gens

certo: o nome Apuleius encontra-se em quatro diferentes inscries de Madaura e, embora

nenhuma delas possa ser solidamente datada, exceto as do perodo imperial, esse nmero

sugere que a famlia era, at certo ponto, muito bem situada (Harrison, 2008, p.4).

As origens da famlia, entretanto, podem ser apenas objeto de conjecturas. Muitas

famlias naquela regio derivaram seus nomes de senadores romanos que haviam

outorgado direito de voto a famlias nativas aps ajuda militar, nas guerras pnicas

(Harrison, 2008, p.4). possvel, ento que a famlia do autor fosse de origem local e

tivesse recebido o nome e a cidadania da gens Appuleia, notvel na antiga repblica

romana e conhecida mais tarde por um de seus membros que se casou com a irm mais

velha de Augusto. No h, entretanto, nenhum ramo africano atestado desse Apuleio ou de

ningum de sua famlia. Outra hiptese, segundo Harrison, de que a famlia do escritor

teria vindo para Madaura, numa das levas de colonos da Itlia, ou de qualquer outro lugar,

quando a Colonia Flaviana foi criada, ou possivelmente como antigos soldados das

18

Vide adiante, no captulo 2.2 deste trabalho a descrio desse julgamento, no verbete Apologia.

21

campanhas de Vespasiano ou Tito. A autodescrio do escritor como seminumidam et

semigaetulum (Apol. 24), todavia, parece mais se referir posio geogrfica de sua

cidade, Madaura, no limite da Numdia e Getlia, que sua prpria origem tnica. Mas,

mesmo sem referncia etnia, a frica romana era uma regio em que muitos

proeminentes aristocratas clamorosamente reivindicavam origens locais, quando na

verdade eram, pelo menos em parte, descendentes de colonizadores. Embora a questo da

origem da famlia parea intrincada, haja vista todas as referncias e as fontes, trs fatos

essenciais acerca de Apuleio so claros: era cidado romano de nome latino, pertencia a

uma famlia importante na colonia e era pessoalmente rico, pelo menos poca da morte

do pai, tudo o mais so conjecturas.

Como jovem abastado, foi-lhe garantido acesso a um estudo de alto nvel, pois a

educao literria da elite era ento, como por toda a antiguidade, a condio de se manter

a prosperidade, e as circunstncias de Apuleio eram similares s das demais figuras

literrias do perodo no que diz respeito a isso. Mais de dois sculos depois, Madaura ainda

era um centro de ensino, como nos revela Agostinho de Hipona, que aprendera literatura e

retrica l:

et anno quidem illo intermissa erant studia mea, dum mihi reducto a

Madauris, in qua uicina urbe iam coeperam litteraturae atque oratoriae

percipiendae gratia peregrinari, (Conf. 2.3.5)

e nesse mesmo ano, tinham sido interrompidos meus estudos, quando de

meu afastamento de Madaura, cidade vizinha em que j comeara a me

deslocar por conta de assistir aulas de literatura e oratria.

Apuleio, ao contrrio, sugere que seus estudos comearam em Cartago, a capital da

provncia e sede pr-consular, onde ele fez seu ensino bsico em letras, gramtica e

retrica e declara tambm que l comeara sua instruo em filosofia platnica.

Ita mihi et patria in concilio Africae, id est uestro, et pueritia apud uos et

magistri uos et secta, licet Athenis Atticis confirmata, tamen hic19

inchoata est, et uox mea utraque lingua iam uestris auribus ante

proxumum sexennium probe cognita. quin et libri mei non alia ubique

laude carius censentur quam quod iudicio uestro comprobantur. (Flor. 18,

15-16)

E ento minha ptria na agregao da frica a mesma vossa, e a minha

infncia foi entre vs, e meus mestres fostes vs, e minha escola

filosfica, embora na tica Atenas consolidada, aqui, entretanto, foi

iniciada, e a minha voz, em qualquer das duas lnguas, j por vossos

ouvidos antes, nos seis ltimos anos, muito bem conhecida. Ainda mais

19

Grifo nosso.

22

meus livros, em toda parte no so considerados por outro louvor mais

precioso que o fato de serem aprovados pelo vosso julgamento.

Sapientis uiri super mensam celebre dictum est: Prima, inquit, creterra

ad sitim pertinet, secunda ad hilaritatem, tertia ad uoluptatem, quarta ad

insaniam. Verum enimuero Musarum creterra uersa uice quanto crebrior

quantoque meracior, tanto propior ad animi sanitatem. Prima creterra

litteratoris rudimento20

eximit, secunda grammatici doctrina instruit21

,

tertia rhetoris eloquentia armat. Hactenus a plerisque potatur. (Flor. 20,

1-3)

De um sbio existe um clebre dito sobre a mesa: A primeira taa,

adverte, diz respeito sede; a segunda alegria; a terceira, volpia; a

quarta insanidade. Na verdade, porm, a taa das musas o inverso,

quanto mais abundante e quanto mais pura, tanto mais prpria sanidade

do esprito. A primeira, do mestre-escola, livra da condio rstica; a

segunda, a do gramtico, instrui pela doutrina; a terceira, do rtor, prov

de armas pela eloquncia. Somente at aqui pela maioria saboreada.

H que lembrar, entretanto, que seus testemunhos acerca de Cartago em Florida

dirigem-se a um auditrio cartagins, para quem tais declaraes seriam obviamente

agradveis. Continuando o relato, ele nos informa que a sequncia dos estudos o levara a

Atenas, onde, declara ele sem nenhuma modstia, teria estudado e absorvido poesia,

geometria, msica, dialtica e filosofia geral:

Ego et alias creterras Athenis bibi: poeticae commentam, geometriae

limpidam, musicae dulcem, dialecticae austerulam, iam uero uniuersae

philosophiae inexplebilem scilicet et nectaream. (Flor. 20, 4)

Eu mesmo tambm outras taas em Atenas bebi: da inveno potica, da

clareza geomtrica, da suavidade musical, do brando vigor da dialtica,

mas sobretudo a taa inesgotvel do nctar, ou seja, da filosofia universal.

Essas matrias, juntamente com sua autodescrio, e a posterior reputao de

philosophus Platonicus mostram que ele obviamente estudou dentro da tradio platnica

da poca:

Sed Aemilianus negat id genus uorsus Platonico philosopho

competere. Etiamne, Aemiliane, si Platonis ipsius exemplo doceo factos?

(Apol. 10, 6-7)

Mas Emiliano diz que no corresponde a um filsofo platnico essa

espcie de verso. Mesmo se acaso, Emiliano, eu ensine as aes mediante

o exemplo do prprio Plato?

Apuleio fala desses estudos e das meditaes acadmicas mas no d nome de

nenhum de seus mestres:

20

Note-se aqui o jogo de palavras: rudimentum tanto pode significar rudimentos, primeiras letras, quanto

rudeza do esprito, junto a eximo, que pode signifcar afastar ou libertar. 21

Novamente a polissemia, instruo pertence ao campo semntico de erguer, construir, dotar de armas.

23

Porro noster Plato, nihil ab hac secta uel paululum deuius, pythagorissat22

in plurimis; aeque et ipse ut in nomen eius a magistris meis adoptarer,

utrumque meditationibus academicis didici, et, cum dicto opus est,

impigre dicere, et, cum tacito opus est, libenter tacere. (Flor. 15.26)

Alm disso, nosso Plato, pouqussimo ou nada desviado dessa doutrina,

muito pensava como Pitgoras; da mesma forma tambm eu mesmo

poderia, em nome dele (i.e., chamado de platnico), pelos meus mestres

ser adotado, e uma e outra coisa pelas meditaes acadmicas aprendi,

no s, quando era necessrio o dizer, dizer corajosamente, como

tambm, quando era necessrio o silncio, de bom grado calar.

Os estudos filosficos do autor refletem claramente a renovao do Platonismo no

segundo sculo, especialmente sendo ele o autor do De Platone, que tem um evidente

estreito relacionamento com outros manuais da doutrina platnica, to disseminados nessa

poca no Mediterrneo.

Outro aspecto digno de nota so a longa peregrinao e os estudos duradouros

(longa peregrinatione et diutinis studiis) 23

, empreendidos antes de 158-9. Isso em parte a

autoapresentao como um intelectual itinerante maneira dos grandes sofistas gregos da

poca, mas independente dos estudos em Atenas, tudo indica que ele despendeu um tempo

em Roma: Com esse propsito, sempre desde a tenra idade, as belas artes diligentemente

cultivei, e o bom nome dos costumes e dos estudos, tanto em nossa provncia, como

tambm em Roma entre os amigos teus (Ad hoc ita semper ab ineunte aevo bonas artes

sedulo colui, eamque existimationem morum ac studiorum cum in provincia nostra tum

etiam Romae penes amicos tuos)24

, onde ele poderia ter-se encontrado com Aulo-Glio,

e estava a caminho de Alexandria poca dos eventos que desembocaram na Apologia:

Como as coisas estivessem nesse estado, entre o segundo casamento da me e o medo do

filho, por acaso, ou pelo destino, eu chego [em Ea], estando a caminho de Alexandria

(Cum in hoc statu res esset inter precationem matris et metum fili, fortene an fato ego

aduenio pergens Alexandream.)25

. Assim ele conheceu, em primeira mo, alguns dos

maiores centros intelectuais da Segunda Sofstica. Parece que ele tambm esteve em

Samos:

Samos Icario in mari modica insula est exaduersum Miletos ad

occidentem eius sita nec ab ea multo pelagi dispescitur; utramuis

clementer nauigantem dies alter in portu sistit. Ager frumento piger,

aratro inritus, fecundior oliueto, nec uinitori nec holitori scalpitur

22

Note-se aqui o neologismo s encontrado em Apuleio. 23

Apol. 23 24

Flor. 17.4 25

Apol. 72.1

24

Ceterum et incolis frequens et hospitibus celebrata. Oppidum habet,

nequaquam pro gloria, sed quod fuisse amplum semiruta moenium8

multifariam indicant. Enimuero fanum Iunonis antiquitus famigeratum; id

fanum secundo litore, si recte recordor uiam, uiginti haud amplius stadia

oppido abest. (Flor. 15.1-4)

Samos uma ilha mdia no mar de caro diante de Mileto e a

ocidente dela situada, e no est separada dela por muito mar; para uma

ou outra navegando, o dia seguinte termina no porto. Um campo pobre

em trigo, intil para o arado, mais fecundo para a oliveira, nem pelo

vinicultor, nem pelo hortelo capinada Quanto ao mais, populosa e

frequentada pelos estrangeiros. Tem uma cidadela, de modo algum

clebre, mas, porque tivesse sido, indicam-no amplamente em muitos

lugares os semiarruinados das muralhas26

. Seguramente o santurio de

Juno um lugar muito famoso desde a antiguidade, esse santurio, em

seguida costa, se bem me recordo do caminho, no dista da cidade mais

que vinte estdios.

Seria temerrio supor a reproduo de fontes de testemunhos de viajantes que no o autor,

em virtude da ocorrncia da forma verbal recordor. E em Hierpolis, na Frgia: Eu

mesmo vi na Frgia, prximo a Hierpolis (vidi et ipse apud Hierapolim Phrygiae)27

. Ele

provavelmente tambm visitou os grandes centros sofsticos da sia Menor, tais como

Prgamo, Esmirna e feso. Quanto a Samos e Hierpolis, entretanto, a falta de referncias

concretas acerca do autor nessas cidades mostra exatamente o contrrio. O seu evidente

interesse por Esculpio na Florida e na Apologia pode relacionar-se mais ao sincretismo

dessa divindade com alguma divindade fencia de Cartago do que a uma visita a Prgamo:

uestros etiam deos religiosius ueneror. Nunc quoque igitur principium

mihi apud uestras auris auspicatissimum ab Aesculapio deo capiam, qui

arcem nostrae Carthaginis indubitabili numine propitius respicit. Eius dei

hymnum Graeco et Latino carmine uobis etiam canam [iam] illi a me

dedicatum. (Flor. 18.36-8)

vossos deuses da mesma forma muito piedosamente venero. Neste

momento, por conseguinte, da mesma forma, comearei eu, perante vs,

sob os melhores auspcios dimanados do deus Esculpio, que benvolo

para a cidadela de nossa Cartago, como indubitvel poder divino, volta os

olhos. Cantarei agora para vs tambm um hino desse deus, em verso

grego e latino, a ele por mim dedicado.

Cabe lembrar, porm, que a cidade era muito frequentada e o culto local de Esculpio

muito assistido pelos intelectuais gregos daquela poca. Em outras palavras, Apuleio,

mesmo falando grego, mas incapaz de competir eficientemente com os grandes sofistas

helnicos da poca no prprio territrio deles, parece apenas ter tido algum conhecimento

das atividades sofsticas e de seus centros, mas no a ponto de se juntar ao espetculo

26

Enlage. 27

De Mundo, 17

25

sofstico do Leste Grego. Escolheu, em vez disso, uma vida de conferencista e orador

pblico em latim, no Norte da frica. Na Apologia, provavelmente a mais antiga

ocorrncia que temos, ele aparece, com idade de trinta anos, como um apresentador

pblico totalmente pronto para voar sozinho, declamando De maiestate Aesculapii em Ea:

Nec hoc ad tempus compono, sed adhinc ferme trienium est, cum primis

diebus quibus Oeam ueneram publice disserens de Aesculapii maiestate

eadem ista prae me tuli et quot sacra nossem percensui. (Apol. 55)

E no se trata de uma histria arranjada pela circunstncia: h

aproximadamente trs anos, nos primeiros dias em que cheguei a Ea,

falando em pblico sobre a majestade de Esculpio, declarei as mesmas

coisas e apresentei todos os mistrios que eu conhecia.

Fazendo a prpria autopromoo na Apologia, considerada como muita justia uma obra

prima da Segunda Sofstica.

Durante o perodo de estudos em Atenas, por volta do incio dos 150, ele teria

partilhado o alojamento com um companheiro de estudos chamado Ponciano, como ele

prprio, originrio da frica do Norte romana, mais especificamente de Ea, a moderna

Trpoli, na Lbia28

. As consequncias disso so bem conhecidas na Apologia.

Naturalmente, dos eventos, temos somente a verso judicial tendenciosa do prprio

Apuleio naquele famoso discurso. Em seu resumo, ele nos diz que, muitos anos depois do

primeiro contato com Ponciano, por volta do final de 156, empreendeu uma longa viagem

a Alexandria, e no caminho fez uma pausa com os amigos em Ea. L, ele recebeu a visita

de Ponciano, que o persuadiu a ficar um ano inteiro e possivelmente desposar sua me

Pudentila, uma rica viva, com o propsito de resguardar a fortuna dela para seus filhos. O

casamento parece ter acontecido no final de 157 ou incio de 158. Posteriormente, no

decurso de uma representao de sua esposa na sesso do tribunal pr-consular, em um

processo referente disputa de propriedade, Apuleio foi acusado, por diversos parentes de

Pudentila, de t-la induzido a casar-se com ele mediante magia. Esse processo foi relatado,

presumivelmente durante as mesmas sees, em Sabathra, prximo a Ea, pelo procnsul

Claudio Mximo, aparentemente no final de 158 ou incio de 159. Embora no esteja

registrado em nenhum lugar, est claro que Apuleio foi absolvido; a publicao de

semelhante faanha como a Apologia no procedimento de uma parte perdedora e

constitui uma impressionante propaganda dos talentos de Apuleio como um orador

popular.

28

Apol.72

26

As atividades retricas de Apuleio tambm podem ser comprovadas pela Florida, a

coleo sobrevivente de vinte e trs excertos dos seus discursos. Alguns desses discursos,

claramente, foram pronunciados em Cartago29

. Dois excertos so de discursos apresentados

na presena de autoridades pr-consulares da frica30

. Todos os cmputos de data

extrados da Florida indicam a dcada de 160 como o limite de suas atividades como

orador pblico bem sucedido em Cartago. Outros registros de interesse so o fato de que

seu status como orador chegara a tal ponto de o senado e o povo de Cartago lhe terem

votado uma esttua, aps uma carreira de seis anos, e ele ter sido eleito sumo sacerdote da

Provncia da frica Pr-consular:

Priusquam uobis occipiam, principes Africae uiri, gratias agere ob

statuam, quam mihi praesenti honeste postulastis et absenti benigne

decreuistis Immo etiam docuit argumento suscepti sacerdotii summum

mihi honorem Carthaginis adesse. (Flor. 16)

Antes que comece, vares governantes de frica, a agradecer pela esttua

que, a mim presente, como honraria, propusestes e, ausente,

benevolamente votastes Pois bem, ele [Emiliano Estrabo] ainda deu a

entender por argumento que o cargo de sacerdote confirmado [pelo voto

do senado] confere a mim a maior honraria de Cartago

Essa honraria confirmada por Agostinho de Hipona em suas Epstolas:

Apuleius. An forte ista, ut philosophus, voluntate contempsit, qui

sacerdos provinciae, pro magno fuit ut munera ederet, venatoresque

vestiret, et pro statua sibi apud Oeenses locanda, ex qua civitate habebat

uxorem, adversus contradictionem quorumdam civium litigaret? (Epist.

138.19).

Apuleio Acaso se dir que, como filsofo, menosprezou, por sua

prpria vontade, essas coisas, quando, sendo sacerdote da provncia, teve

em grande apreo que celebrasse os jogos, munisse os caadores e, em

favor de uma esttua sua, a ser erigida entre os Eaenses, cidade da qual

tinha sua mulher, litigasse contra a oposio de alguns cidados?

Tudo isso aponta para o fato de que Apuleio, assim como os sofistas gregos

contemporneos, no s tinham uma formao slida como tambm incrementaram seu

status social mediante atividades retricas dentro das comunidades em que residiam. Nos

anos 160 ele pertence claramente comunidade de Cartago, graas aos seus talentos

oratrios, e sem dvida por causa de sua riqueza, pois somente os ricos podiam arcar com

as despesas da liturgia de um sacerdcio provincial.

Passando do autor ao ambiente das provncias poca, podemos dizer que nelas

havia um pouco mais de liberdade de pensamento, desde que no obstasse aos

29

Flor. 9, 15, 16, 17, 18 30

Flor. 4, 9, 16 e 17

27

recolhimentos de impostos e provimento de trigo para Roma. H vrias hipteses para

explicar essa liberdade relativa, das quais no nos ocuparemos. Como j dissemos, a Pax

Romana se estendeu sobre a Africa Proconsular, e, segundo os registros da Historia

Augusta, a regio foi submetida sem maiores contratempos a um governador civil. A

populao era densa, em sua maioria trabalhadora e sem sonhos de independncia.

Problemas havia somente nas fronteiras com os desertos, onde tribos nmades, atradas

pela pilhagem aparentemente fcil, s vezes incursionavam em territrio romano. De

qualquer forma, os efetivos militares na rea eram pequenos, mas suficientes para fazer

face a esse problema, e tanto a distncia quanto os efetivos proporcionavam s principais

cidades da provncia bem-estar e segurana necessrios a um desenvolvimento econmico

suficiente para sustentar uma burguesia local bem abastada e, por conseguinte, um fomento

a escolas e agremiaes culturais e religiosas. Em Cartago e Madaura, como reconhece

quase um sculo depois Agostinho de Hipona, existiam centros de estudo de gramtica e

retrica para onde migravam os jovens abastados. Quanto a Cartago, tratava-se da

residncia oficial do governador, e por isso a cidade exercia uma espcie de primazia, de

carter um tanto mais moral que jurdico-administrativo, sobre todas as demais comarcas,

atraindo, mesmo assim, os melhores nomes da regio. Madaura, apesar de cidade

importante, estava, do ponto de vista poltico-administrativo, ligada ao propraetor,

estabelecido na capital Ammaendara, na Numdia, e esta, teoricamente, ao governador de

Cartago. Apesar disso, essa dependncia da Africa Proconsular era um pouco fictcia, pois

o propraetor dependia somente do Princeps como administrador e juiz. Isso dava a essa

provncia uma caracterstica de liberdade nica em seu gnero: o chefe tinha poderes

militares fora de seu governo e, ainda que legatus, atribuies civis bem especficas numa

regio em que chegara a Pax Romana. Por outro lado, Cirta, a antiga capital dos reis

nmidas, e seus vizinhos mais modestos tambm gozavam de uma ampla autonomia

administrativa. Tudo isso se ope ideia de um Imperium Romanum autocrtico e

centralizador, mas pe em relevo principalmente a inteligente e extrema flexibilidade do

regime romano. Nessa repartio, nessa variedade, no houve segundas intenes polticas

de dividir para governar melhor, nem mesmo de impedir a formao de um esprito

nacional. Na verdade, Roma, medida que anexava territrios, criava novas engrenagens,

ou adaptava as existentes, segundo as necessidades administrativas imediatas, ou conforme

as expectativas que se colocavam nas novas reas assimiladas.

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Com o crescimento de Roma, Grcia, Prsia e demais imprios similares, no mundo

antigo, criou-se, quase que naturalmente, a forma de colonizao por povoamento. A

Grcia estendeu-se pelas provncias da sia Menor, em direo Prsia, os romanos pela

Itlia, Ibria e Glia. Modelo de colonizao que perdurou at as potncias imperialistas de

Frana e Inglaterra, a partir da Idade Moderna. A colonizao do Norte da frica pelos

romanos, entretanto, no tem exatamente esse carter de povoamento, visto que se deu

depois da derrota dos cartagineses. Se de incio o domnio dessa regio foi poltica e

estratgica, para assegurar o controle do Mediterrneo, mais tarde, com a permisso de

permanncia dos povos autctones, com sua lngua pnica e aparelhamento das elites

administrativas, pde-se caracterizar essa colonizao como de explorao moderada, haja

vista que mesmo Boissier (apud Chapot, 1951, p.311) reconhece que os nomes romanos

nas inscries epigrficas no designam sempre romanos de nascimento e certos textos

atribuem inclusive expressamente uma filiao indgena a nomes que possuam os tria

nomina. Isso nos leva a pensar em casamentos mistos, que provavelmente havia, conforme

atesta a epigrafia, e, dando asas imaginao, podemos imaginar que nossa personalidade

miscigentica nada mais que a assimilatio romana rediviva.

Essa liberdade prtica e combinao de elementos certamente se refletiriam na

mentalidade dos crculos e indivduos da provncia, tanto que, nessa poca, so das

provncias que provm as mais belas flores da romanidade.

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1.2. Contexto literrio do sculo II d.C.

Apuleio se insere perfeitamente no ambiente cultural e literrio do segundo sculo

d.C., pois, como sinalizamos acima na contextualizao histrica, o projeto pessoal levado

a cabo pelo imperador Adriano em seu reinado (117-138) elevou o Imprio Romano ao seu

mximo estgio de progresso material. A sucesso de felizes projetos administrativos:

Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurlio, conhecidos como os cinco bons

imperadores, estendeu as grandes conquistas do macrocosmo imperial ao microcosmo

individual. Poderamos, numa digresso, dizer ento que ali comea a construo da

individualidade, sem que isso queira dizer individualismo. A poca desses imperadores,

pois, foi caracterizada principalmente por ter assegurado, como nunca, um incremento

intenso da vida sociocultural. Principalmente com Adriano, as riquezas conquistadas por

Trajano foram distribudas pelas cidades de todo imprio, resultando na multiplicao de

espaos, fsicos e jurdicos, destinados ao enriquecimento espiritual dos indivduos. Como

espaos fsicos devemos entender as bibliotecas, museus, escolas, salas pblicas de

exposies e conferncias, os espaos de diverso, ginsios e termas, enfim, todos aqueles

que facilitassem e promovessem a comunicao e a convivncia dos cidados romanos.

Como espaos jurdicos, devemos entender tanto a proteo quanto os privilgios

concedidos aos mestres, professores e eruditos, que resultava num impressionante esforo

voltado para a educao e instruo. Tudo isso fazia parte de um grande programa de

proporcionar uma base cultural slida queles destinados a ocupar os cargos numa grande

mquina administrativa detentora de vrias frentes e vrias especificidades. Necessitava-se

de indivduos que atingissem um largo espectro de conhecimento com variadas e diversas

competncias. A esse ambiente de pluralismo cultural responde nosso autor com estudo

dedicado, enciclopdico, produo copiosa nos mais diversos campos do conhecimento

humano da poca.

Apesar de Plato em Grgias opor a filosofia retrica, o evoluir posterior da

filosofia, a comear por Aristteles, apagou, ou pelo menos minimizou muito, essa

oposio, principalmente no que tange ao dedutivo e indutivo. O estagirita, em sua

sistematizao, estabelece que a cincia poder contar com dois eixos ortogonais: as

artes dedutivas, caractersticas das cincias exatas, das questes universais, como queria

Plato, e as indutivas, mais aproximadas s cincias que tratam dos aspectos acidentais da

realidade. As dedutivas e exatas servem-se mais do silogismo; as indutivas e sociais, da

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retrica. Mas nenhuma das duas abandonar os preceitos bsicos da identidade, no

contradio e terceiro excludo. Lembre-se tambm que, mesmo Plato, muitas vezes, se

utiliza de estruturas do discurso retrico em seus dilogos. Afinal, a todo homem culto

desse largo perodo que conhecemos como Antiguidade Clssica era obrigatrio o domnio

do que mais tarde na Idade Mdia veio a se chamar de triuium: gramtica, lgica e retrica.

O peso inicial que se deu filosofia, seja em virtude do deslocamento da cincia dos

mundos universais para os particulares, seja pela prpria necessidade de convencimento

dos concidados e sua consequente adeso, talvez tenha feito paulatinamente acontecer,

num primeiro momento, a convivncia das duas, filosofia e retrica, e, posteriormente, a

primazia desta sobre aquela, cabendo a esta ltima a funo de pautar a nova orientao da

cultura grega nessa poca. Citroni considera Apuleio como o mais ldimo representante

latino da Segunda Sofstica, talvez, segundo nosso juzo, o nico latino que merea, de

fato, ser includo nesse movimento:

Apesar de os interesses filosficos desempenharem um papel importante,

foi retrica que coube a funo por que se pautou a nova orientao da

cultura grega nesta poca. costume dar-se o nome de segunda

sofstica a esse movimento que floresceu especialmente em Atenas e nas

cidades gregas da sia Menor. Tal designao reflecte o facto de o

movimento trazer memria vrios aspectos caractersticos da figura do

sofista proposta, no sculo V a. C., por autores como Grgias, Protgoras

e seus sequazes. Era comum a esses autores o facto de representarem a

figura do intelectual como algum que se profissionalizara na arte da

palavra, e que, para deleite do pblico, tinha a capacidade de discorrer

sobre qualquer assunto, desde os mais exigentes aos mais fteis, de tal

modo que as suas doutrinas, as suas argumentaes subtis e a sua

eloquncia causassem o maior assombro diante do pblico. A intensa

circulao cultural desta poca era incarnada por estas figuras de

retricos-conferencistas bem remunerados, aclamados como artistas do

espetculo, e estavam sempre prontos a exibir-se tanto em Roma como

em Atenas ou em qualquer outra cidade do imprio. O modelo arreigou-

se tambm na cultura latina, e teve como um dos seus mais ldimos

representantes a figura de Apuleio. (CITRONI, 2006, p.967)

Mas o que foi esse movimento, que, em muitos momentos, se confunde com o

Platonismo Mdio e ora parece se distanciar, ora parece ser subalterno?

Em uma sntese muito concisa, visto que no escopo deste trabalho apresentar um

estudo aprofundado de filosofia, podemos dizer simplesmente que o Platonismo Mdio foi

um movimento que, em seus dois sculos de durao, agrupou vrias figuras de notvel

relevo. Desenvolveu-se a partir da quinta Academia, representada pelo ecltico Antoco

de Ascalo, e findou com a chegada do Neoplatonismo. Essa escola, ou movimento,

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oferece caractersticas muito semelhantes ao Neopitagorismo, dando tambm ampla

acolhida a elementos procedentes de outras escolas, com excluso da epicurista, que se

mantm isolada de todo contato exterior. Os principais expoentes dessa escola, tico,

Calvsio Tauro, Harpocracio, Nicstrato e Celso, formam uma reao contra a excessiva

interpretao que tomara conta da Academia ps-Plato, buscando voltar ao platonismo

ortodoxo sem contaminaes, atendo-se o mais possvel aos textos originais do mestre.

Mas nem sequer estes esto livres de influncias estranhas, especialmente estoicas,

principalmente em moral, para as quais mais se inclina, ainda que ressalte como fim da

vida humana a frmula platnica da assimilao a Deus (enquanto possvel) pelo homem

( ). Podemos dizer que essa reao ao ecletismo

exagerado resultou numa assimilao moderada das demais escolas. muito sintomtico

que diversos cultores da filosofia dessa poca insistissem no carter purificatrio da

cincia, distinguindo-a em cinco graus: 1) purificao matemtica; 2) noes de lgica,

fsica e poltica; 3) ascenso ao mundo inteligvel das Ideias; 4) aquisio da capacidade de

ensinar; 5) assimilao a Deus. Essa gradao baseia-se na Repblica (527d) e considera as

cincias inferiores como preparao para chegar dialtica.

Avanando ao sculo II, um filsofo de nome Gaio acentua a tendncia ao

ecletismo, tentando combinar os ensinamentos de Plato com os de Aristteles,

principalmente pela composio de um Compndio dos dogmas platnicos, mais tarde

resumido por seu discpulo Albino, e pelos comentrios de vrios dilogos de Plato.

Nenhuma dessas obras sobreviveu seno em referncias de Albino, Apuleio e de um

comentarista annimo do Teeteto. Segundo os testemunhos, Gaio estabelecia como ideal

moral a santidade, que consistia na justia, na qual estavam contidas todas as virtudes. Na

justia realiza-se a harmonia entre o amor de Deus, o de si mesmo e o dos demais.

Podemos notar que essa orientao partilhada pelo madaurense. Albino, posterior a

Apuleio, discpulo e continuador de Gaio, mais tarde mestre do imperador Galiano, um

exemplo tpico de ecletismo. Combina elementos platnicos, aristotlicos, teofrsticos e

estoicos. Considera, da mesma forma que os demais, as cincias, ditas inferiores, como

uma preparao purificatria para a suprema, que a Dialtica, mas esta entendida no

sentido de Teologia ou cincia do divino. Distingue trs nveis de divindade: um primeiro

Deus ( ), supraceleste (), que nem se move a si mesmo, nem move

as coisas; abaixo dele o segundo Deus, infraceleste (), que a Inteligncia

(), em que esto contidas as Ideias exemplares de todas as coisas, e que o criador do

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mundo, e, finalmente, o terceiro, que a alma do mundo (). Admite tambm uma

extensa srie de deuses astrais ( ) mveis. Assinala como finalidade da

Filosofia a separao da alma em relao ao corpo (

). E como fim da vida a assimilao a Deus ( ).

Podemos perceber nesse movimento uma tendncia semelhante representada por

Apuleio, inclusive, na literatura especializada, este sempre citado, da mesma forma que

Albino, como discpulo, ou pelo menos correligionrio, de Gaio, partilhando da mesma

orientao ecltica, cultivando principalmente o gosto pelo estudo das diversas cincias.

Essa mesma literatura o considera muito brilhante como divulgador, mas pouco profundo

do ponto de vista filosfico, enfatiza e destaca ainda a importncia do seu tratamento do

conceito dos seres intermedirios entre a suprema divindade e o mundo, ou seja, os

daemons, bem como seu conceito do filsofo como um intermedirio entre os homens e a

divindade. Essas duas contribuies, por si s, j garantem seu lugar nos compndios e

manuais de histria da filosofia. J do ponto de vista literrio, podemos dizer que Apuleio

o ltimo grande escritor da literatura latina pag, com ele morre essa literatura, pois os

posteriores contentam-se apenas em repetir as frmulas e ideias antigas, sem vio, cor ou

mesmo vida:

medida que o Imprio excede a cidade romana, a literatura latina

estiola-se. Em contraste com a renovao ento experimentada pela

expresso da lngua grega, Roma est cada vez mais dependente da

influncia do Oriente. J no existe, verdadeiramente, um pensamento

romano autnomo, paralelamente ao pensamento grego h apenas

sobrevivncias moribundas. Os governadores de provncias, os

administradores, os magistrados, os comerciantes tm familiares

sofistas ( a poca, no Oriente, da segunda sofstica), retricos,

filsofos, artistas. Antigos escravos de origem oriental ocupam cargos

de grande responsabilidade. E, nesta simbiose do Oriente e do

Ocidente, a literatura de expresso latina apresenta-se como

secundria. Uma nica obra, em meados do sculo II, testemunha

ainda alguma vitalidade. Fruto desse meio espiritual complexo,

exprime-o mesmo nos seus contrastes e paradoxos. Trata-se do singular

romance escrito pelo africano Apuleio que, na infncia, aprendera a

falar e a escrever as duas lnguas de cultura, o latim e o grego. O

ttulo, As Metamor foses , grego; grego tambm o mundo onde se

desenrolam as aventuras contadas, mas muitas vezes o pensamento, o

meio espiritual, as maneiras de sentir denotam os hbitos romanos.

(Grimal, 2009, p.171)

Uma figura como nosso autor representava perfeitamente o ambiente de intensa

circulao cultural do seu tempo. Os oradores de espetculo, conferencistas muito hbeis

em retrica, eram aclamados, bem remunerados e cumulados de honras. Esse talvez seja

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um dos motivos por que tanto houve multiplicao desse tipo de profissional da palavra

como tambm sua circulao por todo Imprio Romano, sempre pronto a se apresentar, de

preferncia, em Roma e Atenas. Apuleio encarna perfeitamente esse tipo de personagem.

Outro fato, alm dos j expostos, para essa mescla de culturas, foi o filo-helenismo patente

dos imperadores, sobretudo de Adriano. A cultura do imprio na poca dos Antoninos era

bilngue, portanto era necessrio ao orador ou escritor ter a capacidade de se comunicar,

escrita e fala, em latim e grego.

notrio o acolhimento que os altos crculos sociais romanos davam aos

intelectuais gregos de renome, principalmente na capital do imprio. L esses profissionais

sempre encontraram plateias prontas a aclamar suas exibies, bem como havia a

possibilidade de estadas longas nos crculos mais esclarecidos. fcil imaginar que autores

latinos apresentassem reaes contraditrias a essa superioridade grega, almejavam o

mesmo prestgio e glria dos helnicos, mas de certo no se sentiam confortveis diante da

orgulhosa conscincia que os Gregos ostentavam sobre o imenso patrimnio das sua

tradies (CITRONI, 2006, p.969). Mas, se de um lado os romanos tinham os gregos em

alta conta, de outro, os gregos responderam, nesse mesmo sculo de Apuleio, com uma

copiosa produo de obras de tema romano em grego, como, por exemplo, as biografias de

Plutarco e os escritos histricos de Dion Cssio. Isso demonstra o reconhecimento tcito,

nunca explicitado pelos gregos, da importncia que o Imprio Romano tomara diante da

Grcia. No podemos esquecer o Panegrico de Roma de lio Aristides, obra de

encomenda, mas sincera.

A poca dos Antoninos apresenta uma caracterstica que, primeira vista, pode se

configurar num paradoxo: h grandes e diversificados fomentos vida cultural, espiritual e

filosfica. O interesse pelo novo, pelos mistrios da natureza, pelo homem, pela magia, se

espalha por todo imprio. O resultado na literatura, porm, mostra-se pfio, a literatura

sofre uma ciso esquizofrnica, perdoem-nos o neologismo, de fundo e forma: esta chega

ao seu mximo, aquela se empobrece; ao lado de uma profuso de manualistas e

resumidores, a literatura conta somente com Apuleio, o nico autor de primeira categoria

que foi capaz de traduzir os problemas e as vivncias culturais do seu tempo numa obra

original e de grande valor artstico e literrio (CITRONI, 2006, p.969). Um grande

progresso material nas bases do imprio correspondendo a uma produo intelectual

medocre.

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Para resumir o esprito da poca, pode-se dizer que uma volta ao passado ou a

tentativa de uma nova literatura se contentava apenas com o levantamento de curiosidades

de erudio, criao de exerccios lingusticos, mesmo que resvalasse para a futilidade,

desde que resultasse num produto de fino apuro estilstico e impressionasse pelos artifcios

retricos. A historiografia renuncia s grandes empresas e se contenta somente em tornar a

informao dos fatos em mais um elemento de erudio e demonstrao de conhecimento,

grandes anlises, como as guerras de Csar, Salstio, como as Historiae de Tcito, as

biografias de Suetnio, so substitudas por compndios de informao simples e rpida,

de escasso valor intelectual. A obra mais significativa do perodo, atribuda a Floro,

chama-se Eptome de Tito Livio, que separa os acontecimentos por categorias: guerras

internas, externas, etc.

O fenmeno paradoxal do depauperamento da produo literria numa

poca de grandes investimentos culturais pode-se explicar melhor, se se

tiver em conta que a civilizao da poca de Adriano e dos Antoninos

centrara as suas admirveis realizaes na administrao, no modelo

cultural da competncia erudita e da especializao. Aquilo que floresceu

foi, portanto, uma cultura de professores que tendia sua prpria

autorreproduo, e que atribua doutrina e arte da palavra o valor de

bagagem indispensvel para a nova classe dirigente. (CITRONI, 2006,

p.970)

Esse definhar literrio, todavia, foi acompanhado de um grande desenvolvimento

das cincias jurdicas, ou pelo menos de sua codificao, afinal o ius romanum era o

conhecimento intimamente ligado, e suporte, de todas as funes de gesto e organizao

do funcionamento do imprio desde a sua criao. Por conseguinte essa era foi considerada

a era de ouro da jurisprudncia latina, graas principalmente ao empenho pessoal dos

imperadores Adriano e dos Antoninos.

Principalmente em nosso autor, encontramos, ao lado do gosto pelo neologismo,

uma acentuada preferncia por vocbulos raros arcaicos. Nesse particular, ele se insere no

movimento arcasta que distingue a literatura do sculo II d.C. Esse movimento se

caracteriza pelo interesse por palavras arcaicas da literatura do passado, j em desuso, pelo

estudo filolgico dos textos latinos arcaicos, pelo estudo dos monumentos do passado, com

vistas erudio histrica. Tudo isso se traduz numa curiosidade extravagante e no gosto

por formas rebuscadas. A lngua literria latina chega a um estado sui generis em sua

expresso, uma profuso pirotcnica que rivaliza com a riqueza dos espetculos mundanos,

lngua como cone do tempo.

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Embora nosso autor pertena a um tempo considerado quase como vazio, podemos

dizer que, se, de um lado, ele cede ao esprito dessa poca, fazendo manuais, tradues,

compndios e discursos populares, de outro, ele se mostra muito sincero em seu ideal tico

nas recomendaes de De deo Socratis. Mostra-se tambm muito criativo nas

Metamorfoses, obra em que apresenta um retrato fidedigno do pensamento relacionado

vida privada de seu tempo, com grande originalidade e, como j se disse aqui, valor

artstico. Ademais, enquanto os autores romanos da poca tendiam mais para o estilo

asitico, com suas pirotecnias, talvez mesmo em contraposio aos autores gregos da

Segunda Sofstica, que propugnavam pelo estilo mais prximo do estilo retrico tico, seco

e breve, nosso autor, como discpulo indireto de Ccero, busca um estilo mdio, embora

tendendo um pouco, na verdade, para o asitico. Nisso tudo ele revela uma originalidade

de que escapam os demais autores do seu tempo, e os supera.

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2. O AUTOR E SUA OBRA

2.1. Obras filosficas e gerais

Apuleio mais conhecido pelo romance O asno de ouro ou Metamorfoses,

entretanto essa obra somente um captulo breve, embora belssimo, de um homem que

dedicou seus esforos a disseminar a sofisticada sabedoria da filosofia neoplatnica num

dos movimentos mais instigantes e florescentes da Antiguidade Clssica tardia.

Relacionaremos, em seguida, a produo intelectual do autor com breves comentrios.

Das principais obras que sobreviveram, Apologia, Florida, Metamorfoses, De Deo

Socratis, De Platone et eius dogmate e De Mundo, as trs primeiras mencionadas derivam

de um nico manuscrito do sculo XI, enquanto as demais derivam de um conjunto de

publicaes tradicionais que parecem remontar a uma edio das obras reunidas de

Apuleio (Harrison, 2008, p.10), e foram reunidas em um corpus nico apenas no sculo

XIV (BEAUJEU, 2002, p.xxxv). Embora no haja discusso quanto autoria das quatro

primeiras, incluindo De Deo Socratis, a das duas ltimas, De Platone et eius dogmate e De

Mundo, tem sido questionada, mas os estudiosos se inclinam mais a conceder autoria ao

madaurense, em virtude dos paralelismos de definies que se encontram nessas obras,

excetuando-se, por motivos bvios, Metamorfoses. Por uma questo didtica, essas obras

so distribudas em trs grupos: 1) obras oratrias, De magia ou Pro se de magia (mais

conhecida pelo nome de Apologia), e Florida; 2) o romance Metamorphoseon libri XI

(mais conhecido como Asinus aureus); 3) tratados filosficos, De Platone et eius dogmate

libri II, De Mundo, , De deo Socratis. Alm dessas obras, podemos citar um

quarto grupo que engloba duas obras cuja autoria contestada, e

Ascreplius, e um quinto, obras apenas citadas por Apuleio, ou por outros escritores, que

no chegaram at ns.

Em Florida, nosso autor diz ter se dedicado aos mais diversos tipos de escritos:

Prorsum enim non eo infitias nec radio nec subula nec lima nec torno nec

id genus ferramentis uti nosse, sed pro his praeoptare me fateor uno

chartario calamo me reficere poemata omnigenus apta virgae, lyrae,

socco, coturno, item satiras ac griphos, item historias varias rerum nec

non orationes laudatas disertis nec non dialogos laudatos philosophis,

atque haec et alia eiusdem modi tam graece quam latine, gemino voto,

pari studio, simili stilo. (Flor. IX, 27-29)

Em suma, pois, no vou contestar que nem a lanadeira, nem a sovela,

nem a lima, nem o torno, nem as ferramentas desse gnero eu soubesse

usar, mas, em vez dessas, declaro solenemente preferir uma pena de

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escrever, de todos os gneros compor poemas apropriados batuta pica,

lrica, ao borzeguim e ao coturno, da mesma forma stiras e enigmas,

histrias variadas dos assuntos, discursos louvados pelos peritos, dilogos

louvados pelos filsofos, e estas e outras, da mesma forma tanto em

grego quanto em latim, com a mesma devoo, igual dedicao, estilo

semelhante.

Canit enim Empedocles carmina, Plato dialogos, Socrates hymnos,

Epicharmus modos, Xenophon historias, Crates satiras: Apuleius vester

haec omnia novemque Musas pari studio colit (Flor. XX, 5)

Empdocles, com efeito, comps poemas; Plato, dilogos; Scrates,

hinos, Epicarmo, mimos; Xenofonte, histrias; Crates, stiras: vosso

Apuleio todos esses e as nove musas com a mesma dedicao cultiva.

Embora boa parte de suas obras no tenha sobrevivido, e essa perda, segundo

Beaujeu (1971, p.XVIII), seja pouco lamentvel, como philosophus platonicus e orador de

espetculo, Apuleio precisava fazer publicidade de seus escritos, para garantir o status de

homem de vastos e profundos conhecimentos, em virtude dos privilgios que tal fama

garantia, durante o reinado dos Antoninos, aos homens de letras

2.2. Descrio das obras

Obras suprstites genuinamente de Apuleio so: um romance: Metamorfoses (siue

Asinus aureus); trs obras de divulgao filosfica: De deo Socratis, De mundo, De

Platone et eius dogmate; duas obras retricas: Apologia (siue Pro se de magia), Florida.

Metamorphoseon libri XI (siue Asinus aureus):

Nesse romance, o autor informa inicialmente que acalentar os ouvidos do leitor

com breves histrias milsias, ao modo dos argutos papiros egpcios escritos com clamo

niltico, e lana-nos imediatamente na aventura, com uma viagem do nosso protagonista

Lcio Tesslia; Aristmenes, companheiro de caminhada, narra as desventuras de um

amigo de nome Scrates, vtima dos malefcios de uma feiticeira. Lcio chega casa de

Milo, sua mulher feiticeira, Pnfila, e a escrava Ftis. Mesmo tendo sido avisado pela

irm de leite de sua me, Lcio, levado pela cusiositas, inicia a seduo de Ftis, que lhe

franqueia as poes da domina. Lcio, querendo se transformar em pssaro, smbolo da

conscincia, unta-se com um preparado que o transforma em asno, smbolo de Seth, a